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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
CAROLINA CASTELO BRANCO COOPER
OS USOS DA HISTÓRIA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A LEI DA ANISTIA EM QUESTÃO
NITERÓI 2018
CAROLINA CASTELO BRANCO COOPER
Os usos da história e o Supremo Tribunal Federal: a Lei da Anistia em questão
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História.
Orientador: Prof. Daniel Aarão Reis
Niterói 2018
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Bibliotecária responsável: Angela Albuquerque de Insfrán - CRB7/2318
C348u Castelo Branco Cooper, Carolina Os usos da história e o Supremo Tribunal Federal: a Lei daAnistia em questão / Carolina Castelo Branco Cooper ; Daniel Aarão Reis, orientador. Niterói, 2018. 103 f.
Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,Niterói, 2018.
DOI: http://dx.doi.org/10.22409/PPGH.2018.m.12610189745
1. Justiça de Transição. 2. Supremo Tribunal Federal. 3.Anistia. 4. Tempo. 5. Produção intelectual. I. Título II.Aarão Reis,Daniel , orientador. III. Universidade FederalFluminense. Instituto de História.
CDD -
CAROLINA CASTELO BRANCO COOPER
Os usos da história e o Supremo Tribunal Federal: a Lei da Anistia em questão
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História.
Aprovada em 22 de março de 2018.
Prof. Daniel Aarão Reis – UFF Orientador
Prof a. Giselle Martins Venancio – UFF
Prof a. Lucia Grinberg – UNIRIO
Niterói 2018
À Lygia Jobim. Essa história não é a que você busca, mas a sua busca, corajosa e determinada, foi a inspiração para
esta história.
É necessário ser já historiador para ser capaz de formular
uma questão histórica. – Antoine Prost, Doze lições sobre a história 1
Essa é uma tarefa árdua, pois descrever o que se vê é
relativamente fácil, mas ver o que se precisa descrever é bem mais difícil.
– Lucien Febvre, aula inaugural do Collège de France, 13 de dezembro de 1933 2
1 PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008, p. 76. 2 FEBVRE, Lucien. De 1982 a 1993, Examen de conscience d’une histoire et d’un historien. Revue de Synthèse, Paris: Centre international de Synthèse, v. VII, n. 2, jun. 1934, p. 98. Agradeço à Rejane Souza Sales pela tradução.
RESUMO
Este trabalho explora a relação entre história, direito e justiça a partir da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, onde o Supremo Tribunal Federal foi chamado a se pronunciar sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia de 1979. Julgada em abril de 2010, a ADPF 153 reafirmou a interpretação da norma pela qual a anistia se estende aos agentes do regime militar acusados de tortura, homicídio e desaparecimento forçado, entre outros crimes. Com o objetivo de explorar as consequências epistemológicas dos processos de ‘justiça de transição’ para a história, essa pesquisa analisa de que forma os ministros recorrem ao argumento histórico e colocam em prática ferramentas de historicização. Assim, visa entender a utilização da história na construção do voto vencedor: como os juízes situam a anistia às vezes no passado, às vezes no presente, e com quais objetivos? De que forma estas dimensões temporais são empregadas para justificar a impossibilidade de reinterpretação da lei? Com isso, este estudo pretende contribuir para duas esferas da historiografia: trabalhos que exploram a historicidade do tempo e aqueles voltados para os desafios metodológicos da história do tempo presente.
Palavras-chave: Anistia. Tempo. Justiça de transição. Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT
This paper explores the relationship between history, law, and justice based on the Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 (ADPF, a type of judicial review of legislation in which the proponents claim that a certain law breaches fundamental principles), in which the Supreme Court was summoned to decide whether or not the Amnesty Law of 1979 was constitutional. Reviewed in April 2010, the ADPF 153 reaffirmed the interpretation of the law through which amnesty is granted to agents of the military regime accused of torture and homicide, amongst other crimes. With the objective of exploring the epistemological consequences of ‘transitional justice’ processes to the historical discipline, this research analyzes in which ways the Justices resort to the historical argument and put into practice historicization tools. Thus, it seeks to understand the use of history in the elaboration of the winning argument: how do the Justices situate amnesty sometimes in the past, sometimes in the present, and with what objectives? In what ways are the amnesty law’s temporal characteristics used to justify the impossibility of its reinterpretation? Finally, this paper aims to contribute to two areas of historiography: studies about the historicity of time, and studies about the methodological challenges of contemporary history.
Keywords: Amnesty. Time. Historicization. Transitional Justice.
SUMÁRIO Introdução 1
Capítulo I: Os ministros do STF e a reinterpretação da Lei da Anistia 10 A petição da OAB 15 Os votos 18 Tabela com votos resumidos 39
Capítulo II: Os usos da história na ADPF 153 45 Operacionalização da história e consequências temporais 48 Utilização de ferramentas de historicização 57 O tempo da justiça 65 Entre passado e presente, uma reinterpretação impossível? 68
Capítulo III: Tecendo fios entre o passado, o presente e a história 70 Fio primeiro: o tempo e a história 77 Fio segundo: história do tempo presente 80 História, justiça e o papel do historiador 81
AGRADECIMENTOS 87
REFERÊNCIAS 88
1
Introdução
O século XX, com seus genocídios e guerras de alcance mundial, trouxe
consequências para o campo da história. A partir da década de 1970, historiadores e outros
profissionais das humanidades passaram a pensar no fenômeno da memória, dos museus e
monumentos e das necessidades de justiça para as vítimas de violência. As formas da relação
entre passado e presente na era do “passado que não passa” também ocupou os teóricos e
filósofos da disciplina, especialmente a partir da década de 1990. Desde os anos 2000, o
conceito de “presença” se tornou objeto nos debates da história e sobre a história.
Ao mesmo tempo, vimos surgir, com os tribunais internacionais e comissões da
verdade, novas formas de tentar reger o passado. Se até o século passado as alternativas
disponíveis para aqueles no poder eram a vingança ou a clemência, as guerras mundiais, o
holocausto, os genocídios e a criação do conceito de “crimes contra a humanidade” trouxeram
consigo uma nova forma de lidar com o passado: a via da justiça. Em suas diversas formas,
essa via trouxe consigo a ideia de que é possível sancionar as injustiças do passado pelo
reconhecimento público dos crimes praticados, muitas vezes por meios legais, e centrou o
debate em torno das ideias de memória, verdade, justiça e reparação. Esta nova modalidade de
tentar governar o passado também trouxe consigo consequências epistemológicas,
metodológicas e historiográficas, adicionando novos elementos para a discussão atual sobre
filosofia da história.
Nesse contexto, observamos algumas mudanças significativas nas implicações do
fazer história contemporânea. Henry Rousso, definindo a história contemporânea, sugere que
uma de suas características é ter a lei e a justiça como produtores centrais de memórias e
narrativas sobre o passado recente. Relacionado a isso, surge a importância da esfera pública
para o historiador e os novos papéis disponíveis aos acadêmicos da disciplina: participantes de
comissões oficiais, tais como as comissões da verdade, peritos legais, etc. Desta forma, o 1
contexto de “justiça de transição” – cujas origens remontam aos tribunais pós guerras
mundiais mas cujo corpus de discussões e práticas ganharam densidade a partir do fim dos
regimes militares na América Latina, da queda da União Soviética e das transições no Leste
1 ROUSSO, Henry. The Last Catastrophe: The Writing of Contemporary History. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão: Grupo de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal de Sergipe, n. 11, 2013, p. 10..
2
Europeu e das mudanças políticas na África na virada do século – trouxe novas implicações
para a já complexa relação entre história e justiça.
É a partir das mudanças na disciplina histórica na segunda metade do século XX,
particularmente as discussões sobre o tempo histórico – incluindo regimes de historicidade,
produção de significado histórico, representações do passado, técnicas de historicização e
periodização, – que a pesquisa visa abordar a relação entre justiça e história. A discussão
recente sobre a Lei da Anistia de 1979, especificamente na ocasião da Arguição de Preceito
Fundamental (ADPF) 153 ajuizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, será a
janela pela qual irei investigar esse amplo tema.
Na historiografia sobre a ditadura militar, a Lei n. 6683 de 19 de dezembro de 1979 é
considerada um ponto importante do processo de transição, mesmo que os historiadores
divirjam sobre as dimensões desta importância. Para Maria Paula Araújo, a centralidade da
anistia no processo brasileiro é resultante do papel que ela atribui às lutas pela anistia. Para a
historiadora, o movimento pró-anistia teve um papel fundamental na história da oposição
contra a ditadura. Heloísa Greco, Fabíola del Porto e Carla Rodeghero, em seus respectivos 2
estudos sobre esse movimento, compartilham a visão de que os grupos pró-anistia foram
pioneiros na mobilização da sociedade civil em oposição ao regime, precedendo os
movimentos estudantis, operários e pelas ‘Diretas Já’ e com significativo apoio popular. Nos
trabalhos dessas pesquisadoras, as lutas da sociedade civil pela anistia ganham protagonismo
na análise da promulgação da Lei. Por outro lado, pesquisadores como Renato Lemos 3
enfatizam o caráter negociado da lei. Lemos argumenta que “a anistia de 1979 resultou de
uma grande transação entre setores moderados do regime militar e da oposição, por iniciativa
e sob o controle dos primeiros”, e enxerga a lei brasileira como um instrumento de
2 Cf. ARAÚJO, Maria Paula. Uma história oral da anistia no brasil: memória, testemunho e superação. In: ARAÚJO, Maria Paula; MONTENEGRO, Antonio T.; RODEGHERO, Carla S. (Orgs.). Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012; ARAÚJO, Maria Paula. Lutas democráticas contra a ditadura. In: REIS, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge. (Orgs.) Revolução e Democracia (1964-…). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 321-354. (As esquerdas no Brasil; v.3). 3 Cf. GRECO, Heloísa. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. 2003. 559 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2003; DEL PORTO, Fabíola B. A luta pela anistia no regime militar brasileiro: a constituição da sociedade civil no país e a construção da cidadania. 2002. 144 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas: 2002; RODEGHERO, Carla S. A Anistia de 1979 e seus significados, ontem e hoje. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo P. Sá. (Orgs.) A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 1a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 172-185; RODEGHERO, Carla S.; DIENSTMANN, Gabriel e TRINDADE, Tatiana. Anistia ampla, geral e irrestrita: história de uma luta inconclusa. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2011, 367 p.
3
“contra-revolução” preventiva. Já para o historiador Daniel Aarão Reis, a importância da 4
anistia na transição brasileira está menos nas dinâmicas da criação da lei e mais no seu valor
simbólico, como lócus de certos “deslocamentos de sentidos” em torno da qual se fixaram e
afirmaram algumas reconstruções históricas. De acordo com Reis, a anistia validou um triplo
silêncio: o silêncio sobre a tortura e os torturadores; o silêncio sobre o apoio da sociedade à
ditadura; e o silêncio sobre as propostas revolucionárias de esquerda. 5
O objetivo da pesquisa é utilizar os votos dos ministros do STF na ADPF 153, sobre a
Lei da Anistia, para examinar e discutir a utilização da história, com ênfase para as diversas
construções temporais que surgem desta atividade. Desta forma, pretendo dialogar tanto com
as reflexões recentes sobre o tempo histórico, quanto com a historiografia sobre história e
justiça, particularmente no contexto da chamada justiça de transição. O tempo está no cerne
do argumento daqueles que defendem a manutenção da interpretação vigente da Lei da
Anistia. Além do tempo ser a matéria do historiador por excelência, o tempo também tem
relevância para a aplicação do Direito, conforme exemplificado pelos conceitos de prescrição
e retroatividade penal. A importância do tempo na esfera da justiça também fica evidente nas
discussões sobre ratificação de instrumentos do direito internacional e a consequente recepção
ou não dessas normas.
Considerando esses objetivos, cabe destacar que este trabalho não é uma pesquisa
sobre as lutas pela anistia, nem pretende elaborar uma história da Lei n. 6.683 e muito menos
uma discussão sobre a validade dos argumentos jurídicos contidos no acórdão. Pretendo
explorar de que forma os ministros recorrem à história para colocar a anistia no passado ou no
presente, e como essas construções temporais contribuem para argumentação do voto
vencedor contra a reinterpretação da lei.
O trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro dedica-se a uma síntese do
inteiro teor do acórdão da ADPF 153, documento de 266 páginas que reúne os votos dos
ministros e discussões do plenário ao longo dos dois dias de votação. Optei por uma
organização temática incluindo todos os votos ao invés de acompanhar a argumentação de
cada ministro.
4 LEMOS, Renato. Anistia e crise política no Brasil pós-1964. Topoi. Revista de História, v.3, n. 5, 287-313, jul./dez. 2002. 5 Cf. REIS, Daniel Aarão. O governo Lula e a construção da memória do regime civil-militar. In: PINTO, António C.; MARTINHO, Francisco C.P. O passado que não passa: a sombra das ditaduras na Europa do sul e na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 215-233.
4
O segundo capítulo analisa os usos da história e das práticas de historicização por
parte dos ministros, observando as consequências desses usos. Nesse capítulo, esboço
algumas hipóteses sobre a utilização da história por parte dos magistrados. Diante da
reversibilidade do tempo jurídico – ou da possibilidade de reinterpretar a Lei da Anistia de
1979 para possibilitar a responsabilização penal de torturadores em 2010 – a maioria dos
ministros mobilizam a argumentação histórica para reforçar a irreversibilidade do tempo
histórico. Além disso, aqueles que acompanharam o relator no mérito da ação empregam a
história e as ferramentas de historicização de maneiras distintas e aparentemente
contraditórias, mas para atingir o mesmo objetivo: justificar a impossibilidade de reinterpretar
a lei. A lei de anistia aparece encerrada no passado e viva no presente, ao mesmo tempo.
O terceiro e último capítulo visa esboçar considerações sobre as possíveis relações
entre as atuais discussões sobre o tempo no campo da teoria da história e os processos
denominados de “justiça de transição”. Considero que essas recentes práticas sociais e
políticas estão ligadas às formas como pensamos o passado, o presente e o futuro. Alguns dos
processos de justiça de transição, tal como comissões da verdade e tribunais penais, resultam
em produção de significado histórico e constroem novas formas de se relacionar com o
passado. Com isto, também oferecem implicações epistemológicas para o saber histórico.
Porém, insisto que apesar desse cenário, ainda é escassa a produção no campo da história que
se propõe a fazer uma leitura crítica do conceito de justiça de transição. Por último, essa
discussão também permite dialogar com a historiografia dedicada à história do tempo presente
e seus desafios metodológicos. Este capítulo oferece então um mapa da constelação de ideias
em torno do trabalho, além de oferecer alguns apontamentos conclusivos sobre a análise
empreendida nos capítulos anteriores.
Entre os dias 28 e 29 de abril de 2010 o Supremo Tribunal Federal julgou a Argüição
de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, cujo objeto era a Lei n. 6.683, a Lei da
Anistia, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo General João Figueiredo em 28
de agosto de 1979. Mais de 30 anos depois da promulgação da lei e mais de 20 anos após o
fim do regime autoritário no Brasil, o mais alto tribunal do país era chamado a definir se a Lei
n. 6.683 guardava conformidade com a ordem constitucional vigente. A ação havia sido
proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 21 de outubro
5
de 2008, após uma série de debates desenvolvidos a partir dos trabalhos da Comissão da
Anistia do Ministério da Justiça.
O relator da ação no tribunal foi o ministro Eros Grau, que no dia 28 de abril leu o seu
voto, no plenário do STF, concluindo por julgar a ação improcedente e portanto confirmando
a interpretação vigente da lei da anistia. O julgamento foi suspenso e retomado no dia
seguinte, quando os outros oito ministros proferiram os seus votos. Dos onze ministros que
compõem o STF apenas nove participaram da votação da ação: o ministro Joaquim Barbosa
estava licenciado e o ministro Dias Toffoli impedido de votar neste caso. No dia 29 de abril o 6
voto do relator pela improcedência da ação venceu por maioria, com apenas dois votos
divergentes. Desta forma, o STF confirmou a validade e a constitucionalidade da 7
interpretação pela qual a Lei da Anistia é também aplicada a torturadores e agentes do
aparelho estatal.
No ajuizamento da ação da ADPF 153, a OAB argumentou que a interpretação vigente
da Lei da Anistia – segundo a qual os agentes públicos responsáveis por crimes de homicídio,
desaparecimento forçado, tortura e estupro, dentre outros, também foram anistiados – violava
diversos preceitos fundamentais estabelecidos na Constituição de 1988. A instituição requeria
que a corte interpretasse a lei conforme a Carta Magna, de modo a declarar que a anistia não
se estenderia aos crimes praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos.
Fundamental para a proposição desta Arguição foi a Audiência Pública realizada em
31 de julho de 2008 cujo título era: “Limites e Possibilidades para a Responsabilização
Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceção no
Brasil”. Atendendo à demanda da sociedade civil, a Comissão da Anistia organizou e realizou
esta audiência na sede do Ministério da Justiça, em Brasília. Esse debate foi a primeira
discussão pública no âmbito estatal acerca dos limites e possibilidades da responsabilização
criminal de agentes da repressão. 8
6 A gravação dos dois dias de julgamento estão disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=3aHVJHjOy7s (parte 1); https://www.youtube.com/watch?v=oKoiNLp2Kgw (parte 2); https://www.youtube.com/watch?v=QiLbQIAl_bE (parte 3). Acesso em: 16 jul. 2017. 7 Votaram pela improcedência da ação os ministros: Cezar Peluso, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto julgaram a ADPF 153 parcialmente procedente. 8 ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D.; BELLATO, Sueli A.; ALVARENGA, Roberta V. Justiça de transição no Brasil: O papel da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n. 1, 12-22, jan./jun. 2009. Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 14; MEYER, Emilio Peluso Neder. Responsabilização por graves violações de direitos humanos na ditadura de 1964-1985: a necessária superação da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 153/DF pelo Direito Internacional
6
Desde 2007, início da gestão de Paulo Abrão, a Comissão da Anistia vinha
empreendendo uma série de iniciativas no sentido de lograr uma ressignificação institucional
e política da ideia de anistia no Brasil, voltada não exclusivamente à reparação mas também à
memória. Em dezembro de 2008 foi realizada em Brasília a XI Conferência Nacional de 9
Direitos Humanos, coordenada pela então Secretaria Especial de Direitos Humanos, que
resultou no III Plano Nacional de Direitos Humanos, aprovado pelo presidente Luiz Inácio
Lula da Silva em dezembro de 2009. A proposta da criação de uma Comissão Nacional da
Verdade (CNV) surgiu na XI Conferência e, a partir do III Plano Nacional, em janeiro de
2010 foi instituído um grupo de trabalho para elaborar um projeto de lei para criação da
comissão. Este projeto foi encaminhado ao Congresso Nacional pelo presidente Lula em maio
do mesmo ano e foi aprovado em outubro de 2011. A Comissão Nacional da Verdade foi
criada em 13 de novembro de 2011 e instituída em 16 de maio de 2012 pela presidente Dilma
Rousseff. Sendo assim, o julgamento da ADPF 153 está inserido no contexto de criação da
CNV. Apesar de ainda não haver uma comissão em abril de 2010, já havia a intenção pública
e declarada do Governo Federal de criá-la.
Além dos crescentes debates nacionais sobre os temas de memória e verdade, outro
evento importante na conjuntura da discussão da ADPF foi o julgamento do caso Gomes Lund
vs Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados
Americanos. O caso dizia respeito às omissões do Estado brasileiro ante os fatos ocorridos na
Guerrilha do Araguaia, particularmente a falta de investigação e de apuração de
responsabilidade e a não divulgação de informações. Apesar do caso estar tramitando na
Comissão Interamericana de Direitos Humanos desde 1995, foi apenas em 26 de março de
2009, após o cumprimento do devido processo legal, que o caso foi submetido à Corte. As
audiências públicas da Corte ocorreram nos dias 20 e 21 de maio de 2010, portanto logo após
o julgamento da ADPF 153 pelo STF, e a sentença condenando o Estado brasileiro (e
declarando que a Lei da Anistia é incompatível com a Convenção Americana e representa um
impedimento à investigação e à condenação por graves violações de direitos humanos) foi
publicada em 24 de novembro do mesmo ano. Ou seja, o caso Gomes Lund chegou à Corte 10
dos Direitos Humanos. 2012. 303f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2012, p. 20. 9 Cf. ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Mutações no conceito da anistia na justiça de transição brasileira: a terceira fase de luta pela anistia. Revista de Direito Brasileira, Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito, v. 3, n. 2, 357-379, 2012. 10 MEYER, 2012, p. 209-210.
7
Interamericana enquanto a ADPF 153 tramitava no STF. Quando os ministros emitiram seus
votos em abril de 2010, o fizeram na expectativa de uma iminente sentença da Corte que
provavelmente diria respeito à Lei da Anistia. O Centro pela Justiça e Direito Internacional
(CEJIL), peticionário do caso Gomes Lund, também atuou como amicus curiae na arguição
perante o Supremo, e a jurisprudência da Corte Interamericana foi citada pelos ministros
Ricardo Lewandowski e Celso de Mello.
Todos esses fatos compõem um cenário que se convencionou chamar de processo de
justiça de transição no Brasil. A avaliação da ADPF 153 foi um momento emblemático deste 11
processo, tendo ocorrido em um contexto onde os direitos humanos, especialmente aqueles
relacionados à memória, verdade e justiça referentes ao período da ditadura, ganhavam fôlego
no debate nacional. Além dos já citados caso Gomes Lund vs. Brasil, a criação da CNV, e a
ampliação das atividades da Comissão da Anistia (incluindo a realização das Caravanas da
Anistia em todo território nacional), no mesmo ano de 2010 também foi lançado o projeto
Memórias Reveladas do Arquivo Nacional, abrindo o acesso a certos arquivos da ditadura até
então sigilosos. Apesar da ADPF 153 não ser considerada – sob a perspectiva dos militantes
da justiça de transição – um caso ideal, por conta da divergência entre o seu resultado e os
objetivos desta justiça, sua relevância para esse processo é indiscutível.
De acordo com a avaliação de Paulo Abrão e Marcelo Torelly, ex-presidente e
ex-coordenador geral de memória histórica da Comissão da Anistia, respectivamente, no
contexto brasileiro de justiça de transição, o tema da anistia ganhou centralidade. A partir de
2012 se pode pensar uma “terceira fase da luta pela anistia”. Para estes autores, se a primeira
fase dessa luta (anterior à Lei da Anistia) foi por liberdade (tanto daqueles que ainda estavam
presos quanto a liberdade de retornar ao seu país, no caso dos exilados) e a segunda (posterior
à Constituição de 1988) foi por reparação e memória, esta terceira se caracteriza pela
demanda por verdade e justiça. 12
Vale destacar que desde a Lei da Anistia de 1979, os direitos dos anistiados e seus
familiares foram sucessivamente ampliados. Primeiro pela Emenda Constitucional n. 26 de
1985, que estendia a anistia para garantir aos servidores civis e militares afastados o direito de
11 Conforme será discutido no terceiro capítulo, considero problemática a utilização acrítica do conceito “justiça de transição”, incluindo a utilização do termo como uma mera descrição contextual. O objetivo aqui é demonstrar que esta ação está inserida em um momento histórico onde novas formas de se fazer justiça e de se tentar governar o passado estavam em jogo, justificando a escolha deste caso em particular para refletir sobre as questões mais amplas propostas neste trabalho. 12 ABRÃO; TORELLY, 2012, p. 373.
8
serem promovidos ao cargo que teriam se tivessem permanecido em serviço. O Art. 8o do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) assegura esse direito aos trabalhadores
do setor privado e dirigentes e representantes sindicais. A Lei de Desaparecidos de 1995 (com
a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que atuou entre 1995
e 2007), foi um importante passo para familiares de vítimas ao reconhecer como mortas
pessoas desaparecidas durante a ditadura. A criação da Comissão da Anistia em 2001 e a Lei
10.559 de 2002, que introduziu a reparação econômica, de caráter indenizatório, à vítimas e
familiares de vítima do regime, representam os desdobramentos mais recentes da luta pela
anistia. Porém, essa ampliação do escopo da aplicação da anistia não foi além da reparação 13
simbólica e material. Na ausência de políticas públicas explicitamente voltadas para a
memória e a verdade até o lançamento do Memórias Reveladas e posteriormente a criação da
CNV, foram as Comissões Especiais sobre Mortos e Desaparecidos e a Comissão da Anistia
que ocuparam esse espaço. A atuação da Comissão da Anistia sob a coordenação do Paulo
Abrão merece destaque nesse sentido, com a publicação de diversos livros e da Revista de
Anistia Política e Justiça de Transição.
Nesse contexto, a ADPF 153 pode ser vista como um momento significante no
denominado processo de justiça de transição brasileiro, e com isso ganha relevância para este
estudo em particular. Como estou interessada nas implicações epistemológicas para a
pesquisa e escrita histórica dessas novas formas de tentar governar o passado e de se fazer
justiça que aparecem na segunda metade do século XX, os votos da ADPF me oferecem um
ponto de observação singular – porém, não exclusivo – sobre um momento específico em que
houve uma proposta de governar o passado. As atuações da Comissão da Anistia ou da
Comissão Nacional da Verdade poderiam muito bem serem escolhidas como outros pontos de
observação, por exemplo, mas não serão analisadas no escopo deste trabalho.
O julgamento da ADPF também foi emblemático por conta da sua potencialidade.
Antes desse julgamento, casos individuais a respeito de responsabilização estatal por mortos e
desaparecidos já haviam sido levados a instâncias inferiores da justiça, com diferentes
resultados. Porém, essa foi a primeira vez que um caso sobre o passado ditatorial chegou à
Suprema Corte. Ainda, pela natureza da ação, cabia à corte decidir sobre a interpretação da
Lei da Anistia como um todo, e não um caso específico. Sendo assim, uma decisão que
13 Cf. MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências: um estudo de caso brasileiro. São Paulo: Associação Editorial Humanitas; FAPESP, 2006, 272 p.
9
julgasse a ação procedente teria um potencial efeito profundo na sociedade, ensejando
mudanças significativas com a possibilidade de responsabilizar e punir criminalmente os
agentes da ditadura. 14
Além disso, os votos dos ministros do STF na ADPF 153 estão repletos de referências
históricas e à história. Desta forma, o inteiro teor do acórdão se torna uma fonte rica para o
historiador interessado em pensar as questões teóricas a respeito dos usos políticos das
práticas de historicização.
Por último, no caso particular da ADPF 153, o fato dela representar uma ação judicial
a distingue de outros momentos do processo de justiça de transição no Brasil e nos oferece a
possibilidade de refletir sobre a relação entre história, direito e justiça. Porém, antes de
adentrar nesta análise é importante ressaltar que a ADPF 153 não é um julgamento no sentido
clássico; ou seja, ninguém está sendo julgado. Não é um julgamento penal, como tantos outros
no âmbito da justiça de transição. Não há réu, não existem testemunhas nem vítimas
chamadas a depor. A ADPF, como Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, é uma
ação no âmbito do controle da constitucionalidade e seu objeto, portanto, é a interpretação da
norma legal. Isso a torna muito diferente de outras ações analisadas pelo prisma da relação
entre história e justiça. Os ministros do STF no caso da ADPF não estavam julgando – ao
menos não explicitamente – eventos históricos e seus protagonistas. Tampouco foi um
tribunal onde o historiador foi chamado a participar como perito, como tantos outros. Assim, a
análise da ADPF 153 talvez nos permita um outro olhar sobre a relação entre história e
justiça; um olhar cuja atenção recaia sobre os usos do tempo histórico e suas consequências
políticas.
14 As discussões em torno da reinterpretação da lei da anistia não terminaram com a ADPF 153: desde maio de 2014 transita no STF a ADPF 320, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que solicita nova interpretação da Lei n. 6.683/1979 de acordo com a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund vs. Brasil. Em fevereiro de 2018, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, defendeu que o STF discuta o alcance da anistia reconhecida na ADPF 153, no âmbito da ação penal contra militares acusados pelo desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva.
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Capítulo I: Os ministros do STF e a reinterpretação da Lei da Anistia
A ADPF n. 153 foi julgada entre os dias 28 e 29 de abril de 2010 pelos ministros do
Supremo Tribunal Federal. Uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é
uma das formas de controle de constitucionalidade prevista na legislação brasileira; uma ação
que analisa se determinado dispositivo legal desrespeita – ou não – os preceitos fundamentais
da Constituição Federal. A ADPF é uma via de controle abstrato da constitucionalidade,
admitida somente no nível do STF, onde se discute, no plano da teoria, a
inconstitucionalidade de uma lei, sem a necessidade de existir um caso concreto a ser
resolvido. Além disso, para que uma ADPF seja admissível na Suprema Corte, todos os outros
meios eficazes para sanar a controvérsia jurídica devem ter sido exauridos. 15
Conforme mostrado na introdução, a arguição foi proposta pela Ordem dos
Advogados do Brasil em outubro de 2008. A ação questiona especificamente o § 1o do Art. 1o
da Lei n. 6.683/79: Art. 1o – É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamentos em Atos Institucionais e Complementares. § 1o – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. 16
A OAB argumenta que esse parágrafo viola alguns preceitos fundamentais da carta magna de
1988 e, portanto, solicita que o tribunal dê à lei: [U]ma interpretação conforme à Constituição, de modo a declarar, à luz de seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985). 17
15 Cf. ORTEGA, Flávia Teixeira. Breve resumo de controle de constitucionalidade – abstrato e difuso. Jusbrasil. Disponível em: https://draflaviaortega.jusbrasil.com.br/noticias/306633425/breve-resumo-de-controle-de-constitucionalidade-abstrato-e-difuso. Acesso em: 16 jul. 2017; MARQUES, Gabriel. O que é arguição de descumprimento de preceito fundamental? Jusbrasil. Disponível em: https://gabrielmarques.jusbrasil.com.br/artigos/167710042/o-que-e-arguicao-de-descumprimento-de-preceito-fundamental. Acesso em: 16 jul 2017. 16 BRASIL. Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Brasília, 1979. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. Acesso em: 16 jul. 2017. 17 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Petição inicial de proposta de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. ADPF n. 153. Brasília/DF: 21 de outubro de 2008. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2644116. Acesso em: 16 jul. 2017
11
Apenas nove dos onze ministros que compunham a Corte participaram deste
julgamento: o ministro Joaquim Barbosa estava de licença por motivos de saúde; o ministro
Dias Toffoli exerceu o cargo de Advogado-Geral da União entre 2007 e 2009 – antes de
ocupar a cadeira de ministro do Supremo – e, nesta posição, enviou informações e pareceres
técnicos que foram anexados ao processo, o tornando impedido de votar. Assim, participaram
do julgamento da ADPF 153 os ministros Eros Grau (relator), Cezar Peluso, Celso de Mello,
Marco Aurélio Mello, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Ayres Britto, Ricardo Lewandowski e
Cármen Lúcia Antunes Rocha.
O primeiro dia do julgamento foi aberto pelo então presidente da Corte, ministro
Cezar Peluso, e começou com a leitura do relatório pelo ministro Eros Grau. Em seguida,
expuseram as suas posições Fábio Konder Comparato, representante da Ordem dos
Advogados do Brasil, e os representantes da Associação Juízes pela Democracia, do Centro
pela Justiça e Direito Internacional e da Associação Democrática e Nacionalista de Militares,
que figuram na ação como amicus curiae e defendiam a procedência da ação em nome de
uma re-interpretação da Lei da Anistia. Após essas exposições, foi a vez dos representantes da
Advocacia-Geral da União, do Congresso Nacional e da Procuradoria-Geral da República
sustentarem seus pareceres, todos eles pela improcedência da ação.
Após as manifestações de todas as partes, foi a vez do ministro relator Eros Grau
iniciar a leitura do seu voto. Eros Grau primeiro se dedicou a rejeitar as preliminares, antes 18
de entrar no mérito da ação. Em uma ação processual, as preliminares incluem todas as
questões sobre os pressupostos processuais e as condições da ação em si. Nesta fase, cumpre
verificar se a ação se revela tecnicamente admissível ou não. Desta forma, a decisão da
questão preliminar condiciona a apreciação da questão de mérito. 19
Antes de continuar a leitura do seu voto, Eros Grau foi interrompido pelo ministro
Marco Aurélio, que solicitou que o plenário se manifestasse em relação às preliminares antes
18 Nascido em agosto de 1940, Eros Grau é Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e foi Professor Titular na mesma instituição até 2009. Foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal em junho de 2004 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Até ocupar o posto de ministro Grau exercia a advocacia em São Paulo e a função de árbitro junto à Corte Internacional de Arbitragem, além das suas atividades como docente. Ex-militante comunista, foi filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) na sua juventude. Grau foi preso em São Paulo em 1972 e passou uma semana nas dependências do DOI-Codi – então comandado pelo Coronel Brilhante Ustra, – onde foi torturado. O único ministro do STF vítima de tortura durante a ditadura, Grau foi sorteado para ser relator da ADPF 153. Se aposentou voluntariamente do Supremo Tribunal em julho de 2010, às vésperas de completar 70 anos de idade. A sua vaga foi ocupada pelo ministro Luiz Fux, nomeado pela ex-presidente Dilma Rousseff em fevereiro de 2011. 19 FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Preliminares, prejudiciais e mérito da causa. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 66, jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4145. Acesso em: 16 jul. 2017.
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do prosseguimento da ação. Apenas o ministro Marco Aurélio acatou as preliminares,
concluindo pela inadequação da ação e extinguindo o processo sem julgamento de mérito, por
falta de interesse processual. Os outros oito ministros rejeitaram as preliminares e, vencido
Marco Aurélio, deu-se prosseguimento ao julgamento.
Assim, durante duas horas, o ministro relator leu a íntegra do seu voto no plenário do
Supremo Tribunal Federal, se posicionando a favor da improcedência da ação. A sessão foi
encerrada e a Corte retomou o julgamento no dia seguinte, quando os outros ministros leram
seus votos. Na análise de mérito, o tribunal, por maioria, julgou improcedente a ADPF 153,
nos termos do voto do ministro relator Eros Grau. Foram vencidos os ministros Ricardo
Lewandowski e Ayres Britto, que julgaram a ação parcialmente procedente.
Este capítulo tem como objetivo situar o leitor e familiarizá-lo com o objeto da
pesquisa, antes de prosseguir para uma análise crítica no capítulo seguinte. Com isso, não
pretendo construir uma narrativa histórica meramente descritiva, onde os fatos são separados
da interpretação, o texto do contexto. Porém, como o presente trabalho se baseia em grande
parte numa análise textual desses votos, creio ser desejável equipar o leitor com elementos
que o permitam monitorar o trabalho do historiador, com os parâmetros necessários para
exercer sua própria avaliação acerca da pesquisa. Acredito que isso se torna duplamente
necessário neste caso em particular, pelas razões a seguir.
Em primeiro lugar, se trata de um estudo aprofundado sobre uma fonte em particular –
o inteiro teor do acórdão da ADPF 153 – cujas especificidades imagino serem desconhecidas
para o leitor não especializado, mesmo que a decisão do STF seja pública e notória. Desta
forma, oferecer uma síntese dos votos, construindo um quadro onde o leitor possa reconhecer
os principais pontos argumentativos e também situar as diferentes nuances do argumento
vencedor, é oferecer ao público as ferramentas mínimas de controle da análise histórica.
Em segundo lugar, a história do tempo presente apresenta dificuldades para o
historiador, devido à proximidade dos acontecimentos narrados e ao maior risco de
“contaminação” da análise com as opiniões subjetivas daquele que está analisando. Tratar de
um assunto tão atual – e controverso – como a possibilidade de revisão da Lei da Anistia traz
consigo um risco maior de parcialidade, mesmo que aceitemos que não exista análise
imparcial. Como lidar com o problema do distanciamento na história do tempo presente? Uma
das possibilidades é a construção de uma argumentação persuasiva em negociação com o
13
leitor, de forma a buscar uma relação de confiança e credibilidade entre o historiador e o seu
público. 20
Carlos Fico, em artigo sobre os desafios do historiador do tempo presente no caso do
Brasil e da Argentina, sugere que o historiador explique ao leitor “por que chegou a dadas
conclusões e por que as está enunciando de uma dada maneira.” Ele prossegue: O que me parece essencial é que esta atitude de compartilhar com o leitor os achados de sua pesquisa, bem como os recursos retóricos que mobiliza, deve configurar-se em um elemento imanente à narrativa histórica, não em um complemento didático acessório meramente reiterativo. Desse modo, [...] preconizo a necessidade propriamente narrativa de um desinteressado compartilhamento do “métier” do historiador com o leitor, capaz de guiá-lo através da pesquisa e torná-lo, desse modo, “cúmplice” dos enunciados que queremos sustentar. 21
Fico conclui propondo “uma narrativa dos eventos que é confiável porque fundada em uma
alegação de verdade que não decorre apenas da eloquência do autor, mas de uma adesão às
conclusões compartilhada pelo leitor”. 22
Portanto, parto da proposição de Fico na construção do capítulo inicial. Espero que, a
partir da síntese dos votos, eu possa compartilhar com o público o processo de construção da
análise interpretativa, afastando a possibilidade de persuadir o leitor com base na autoridade
sobre o tema ou no domínio exclusivo do conteúdo da fonte. É importante ressaltar que, dada
a natureza histórica desta pesquisa, não é o objetivo deste trabalho fazer uma discussão
jurídica ou sobre validade dos argumentos técnicos dos ministros. 23
De acordo com Gabriel Ducatti Lino Machado em artigo na Revista Anistia Política e
Justiça de Transição, publicada pelo Ministério da Justiça, sobre a decisão da ADPF 153:
“Pode-se, facilmente, falar na decisão do STF; não se pode, contudo, falar facilmente na
fundamentação do STF.” Machado aponta para o fato de que “[a] forma dos julgamentos do
20 Travei contato com essa perspectiva em um artigo de Carlos Fico: FICO, Carlos. Violência, trauma e frustração no Brasil e na Argentina: o papel do historiador. Topoi: Revista de História, v. 14, n. 27, jul./dez. 2013, p. 253. 21 Ibid., p. 258. 22 Ibid. , p. 261. 23 Para uma análise da ADPF 153 sob a perspectiva do direito, ver anais do seminário “A Justiça Transicional no Brasil: A anistia e o papel das Cortes na superação do passado autoritário”, disponível na Revista Anistia Política e Justiça de Transição n. 7, principalmente os artigos de MACHADO, Gabriel Ducatti Lino e MATOS, Saulo Monteiro de. Outras trabalhos nessa perspectiva incluem: MEYER, 2012; MENDONÇA, Paula. Argumentação jurídica no Estado democrático de direito: reflexões analíticas da Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) 153 de 2010. 2016. 101f. Dissertação (Mestrado em Constituição e Sociedade) – Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Brasília, 2016; SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. Disponível em: https://idejust.files.wordpress.com/2010/07/o-julgamento-da-adpf-153-pelo-supremo-tribunal-federal-e-a-inacabada-transicao-democratica-brasileira.pdf Acesso em: 16 jan. 2018.
14
STF permite que cada um dos ministros fundamente – de acordo com seus próprios
pressupostos teóricos, metodologia e argumentos – sua decisão individual.” O que há então 24
são decisões independentes, baseadas em fundamentações distintas, de onde, uma vez
aplicada a regra da maioria, surge uma decisão vencedora. “Como falar-se, então, em
fundamentação do STF? A decisão do STF não decorre da fundamentação do STF”, conclui
Machado. Apesar de alguns argumentos se repetirem ao longo do julgamento, as decisões, 25
mesmo que convergentes no mérito, utilizam justificações muito divergentes entre si.
Nesse caso específico da ADPF 153, o voto do ministro relator Eros Grau, além de ser
o voto vitorioso, foi o voto que guiou a discussão e se tornou um voto emblemático da decisão
do caso. Levando em consideração essa característica multifacetada da fonte e a importância
do voto de Grau – saudado pelos seus companheiros como um voto excepcional , – o cerne 26
deste trabalho será voltado para as palavras do relator.
Começarei com um breve resumo da petição da arguente, a OAB, para que se possa
melhor compreender o que está em jogo no julgamento antes de prosseguir para o conteúdo
dos votos dos ministros. Em seguida, a partir da definição dos temas centrais do voto de Grau,
irei estabelecendo conexões com os argumentos dos outros ministros que votaram pela
improcedência da ação. Desta forma, usarei o voto de Grau como guia, considerando-o centro
de gravidade do debate, em torno do qual posicionarei os outros juízes. Mas, para que o
restante do capítulo faça sentido, cabe já apontar algumas características que explicam os
contornos gerais do quadro a ser desenhado.
No campo da interpretação vencedora, os votos mais consistentes em matéria de
argumentação, além do voto do relator, são os votos dos ministros Cármen Lúcia, Celso de
Mello e Gilmar Mendes. Estes votos são mais longos e oferecem uma janela para o método
interpretativo e argumentativo dos seus autores. Já o voto da Ministra Ellen Gracie é um voto
de três páginas que se restringe a acompanhar o ministro Eros Grau nos seus pontos centrais.
O voto do ministro Marco Aurélio é singular porque além de curto (quatro páginas) ele insiste
que qualquer discussão sobre a revisão da Lei da Anistia é “estritamente acadêmica” pois
todos os crimes já teriam sido prescritos. O voto do ministro Cezar Peluso, presidente da
24 MACHADO, Gabriel Ducatti Lino. O julgamento da Lei de Anistia (Lei n. 6.683/79) pelo STF: dos problemas metodológicos ao problema substancial. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília: Ministério da Justiça , n. 7, jan./jun. 2012, 232. 25 Ibid. 26 Na discussão no plenário, o ministro Gilmar Mendes comentou que estava certo de que “o ministro Eros Grau, com a emoção, inclusive, com que encerrou esse voto, fez, talvez, o seu mais brilhante voto perante esta Corte.”
15
corte, apesar de ser mais longo também foca na questão da prescrição dos crimes, não
dialogando tanto com os outros argumentos expostos.
Dentre os dois votos divergentes, os ministros Ayres Britto e Ricardo Lewandowski se
utilizam de argumentos distintos para concordar na avaliação do mérito. O ministro Ricardo
Lewandowski engaja-se em uma discussão mais densa sobre os aspectos técnico-jurídicos da
suposta conexão entre os crimes políticos e os crimes comuns, citando a legislação e a
jurisprudência sobre o tema. Ele conclui que a Lei da Anistia não se estende a crimes comuns
e utiliza o conceito de conexão de forma equivocada, portanto os agentes do Estado não estão
automaticamente abrangidos pela anistia e são passíveis de persecução criminal. O ministro
defende que se realize uma abordagem caso a caso para se estabelecer a natureza do crime
cometido, excluindo de persecução aqueles que cometeram crimes comprovadamente
políticos. Já Ayres Britto não se detém tão atentamente na questão da conexão e faz um voto 27
mais abrangente, discutindo longamente a tortura no regime militar, como será mostrado
adiante. Ele também julga a ação parcialmente procedente, pedindo a exclusão de qualquer
interpretação que estenda a anistia aos crimes previstos no inciso XLIII do Art 5o da
Constituição. 28
Levando em consideração essas diferenças e nuances, proponho uma análise a partir
dos seguintes eixos temáticos: a ideia de um acordo em torno da promulgação da lei; a
hipótese de revisão; a Emenda Constitucional n. 26/1985; o sentido dos crimes conexos e a
violência estatal; o direito à verdade; prescrição dos crimes; e o papel da análise histórica na
interpretação jurídica.
A petição da OAB
A proposta da ADPF 153, enviada ao STF pela OAB em outubro de 2008, contém 29
páginas e segue duas linhas argumentativas. A primeira delas nega que a “conexão criminal” 29
referida no § 1o do Art. 1o da Lei da Anistia possa incluir os crimes praticados pelos agentes da
repressão, afirmando que esses crimes são crimes comuns. A OAB afirma que:
27 BRASIL, 2010, Voto do ministro Ricardo Lewandowski, p. 28-29, 31-32. 28 Este inciso considera crimes inafiançáveis e insuscetíveis de anistia a tortura, o tráfico de drogas, o terrorismo e os crimes hediondos, que inclui estupro e homicídio. 29 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 2008.
16
[É] irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo. 30
A segunda linha argumentativa é a de que, ainda que se admita a conexão criminal, ela não
seria válida por ofender os seguintes preceitos fundamentais da Constituição: isonomia em
matéria de segurança; a obrigação do Estado de não ocultar a verdade; desrespeito aos
princípios democrático e republicano; e a dignidade da pessoa humana.
A primeira parte da petição é dedicada a justificar o cabimento de uma Arguição de
Preceito Fundamental para esse caso específico. Assim, os arguentes discutem os
pré-requisitos técnicos-legais para esse tipo de mecanismo de controle de constitucionalidade,
demonstrando como a Lei n. 6.683/79 em particular pode ser objeto de uma ADPF. Em
seguida, dedicam o restante do voto à argumentação dos preceitos fundamentais supostamente
violados pela lei da anistia.
A isonomia é um princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei e, no caso da
indefinição de “crimes conexos”, a OAB vê uma diferenciação de tratamento entre aqueles
que cometeram “crimes políticos”, definidos em lei, e aqueles que cometeram delitos cuja
classificação e reconhecimento não foram feitos pelo legislador. Os autores dos crimes
políticos foram processados e julgados, enquanto os autores dos “crimes conexos” não são
conhecidos, nem muito menos processados ou condenados. Em segundo lugar, o fato do § 2o
do Art. 1o excluir da anistia os “crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”
(os chamados crimes de sangue) também fere o princípio de isonomia.
O segundo preceito fundamental ferido é o direito à informação. Os peticionários
enxergam na Lei da Anistia um óbice para a revelação da verdade sobre os crimes cometidos
pelos agentes militares, pois a lei ajuda a ocultar a identidade desses agentes.
Em terceiro lugar, o fato da lei ter sido votada em um contexto autoritário, por um
Congresso Nacional onde um terço dos senadores eram eleitos indiretamente , e sancionada 31
por um Chefe de Estado não-eleito fere os princípios democrático e republicano que embasam
a organização do Estado brasileiro a partir da Constituição de 1988. Nesse ponto, a OAB
também ressalta que a Lei da Anistia não foi legitimada pelo povo após a inauguração do
30 Ibidis. 31 Em 1o de abril de 1977 o general Ernesto Geisel fechou o Congresso Nacional (recorrendo ao AI-5) e implementou reformas constitucionais que ficaram conhecidas como “Pacote de Abril”. Essas reformas tinham como objetivo garantir a vitória da ARENA nas eleições de 1978 e, entre outras coisas, mantinha as eleições indiretas para governador, estabelecia eleições indiretas para um terço dos senadores e modificava o cálculo de número de deputados federais por Estado. O Congresso foi reaberto em 15 de abril de 1977.
17
regime democrático. Os arguentes defendem que a anistia foi uma auto-anistia, onde os
governantes anistiaram a si mesmos, o que fere o direito internacional, além do princípio
republicano.
Por último, os autores da ação apontam que a Constituição de 1988 considera a tortura
insuscetível de anistia, por determinar a incompatibilidade da tortura com o princípio supremo
do respeito à dignidade humana. Desta forma, seria inadmissível dar à Lei da Anistia a
interpretação vigente, pois isso implicaria na não-admissão da lei pela Constituição. Nesse
ponto da argumentação, a OAB questiona o suposto acordo da qual resultou a Lei, indagando:
“Quem foram as partes nesse alegado acordo?” Para os arguentes, os sobreviventes ou
familiares de vítimas do regime não participaram do acordo e os parlamentares, mesmo os da
oposição, não tinham legitimidade para representar essas vítimas. A OAB faz a seguinte
argumentação histórica: Na verdade crua dos fatos, em 1979 quase todos os que se haviam revoltado contra o regime militar com armas na mão já haviam sido mortos. Restavam, portanto, nas prisões militares e policiais, unicamente pessoas acusadas de delitos de opinião. Tal significa que, no suposto acordo político, jamais revelado à opinião pública, a anistia aos responsáveis por delitos de opinião serviu de biombo para encobrir a concessão de impunidade aos criminosos oficiais, que agiam em nome do Estado, ou seja, por conta de todo o povo brasileiro. 32
Essa afirmação não é respaldada por evidências; por exemplo, vários dos presos
políticos que iniciaram uma greve de fome em 22 de julho de 1979, contra o projeto de lei da
anistia apresentado ao Congresso, tinham participado ativamente de grupos revolucionários
armados. No entanto, é interessante observar que esta é a única referência, ao longo de toda 33
a petição, à violência praticada por uma parte dos opositores do regime. Desta forma, a OAB
colabora com o apagamento do caráter revolucionário desses grupos e contribui para a
construção da ideia de resistência pacífica ao regime, conforme o processo de deslocamento
de sentidos apontado por Daniel Aarão Reis. 34
32 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 2008. 33 Dentre os 14 presos que assinaram a declaração de greve encontravam-se Alex Polari de Alverga, Gilney Amorim Viana, Jesus Parede Soto, Manoel Henrique Ferreira, Nelson Rodrigues Filho e Perly Cipriano, todos eles militantes de grupos como o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), a Ação Libertadora Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Cf. VIANA, Gilney Amorim; CIPRIANO, Perly. Fome de liberdade: a luta dos presos políticos pela anistia. 2a ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; EDUFES, 2009, 368 p. 34 Cf. REIS, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo P.S. (Orgs.). O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004, 29-52; REIS, Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. 84 p. (Descobrindo o Brasil)
18
A questão do “acordo” em torno da lei dominou boa parte dos votos do ministros,
ganhando bastante relevância na defesa da improcedência da ação, mesmo não sendo esse um
argumento jurídico. Passemos então à análise dos votos, tratando primeiramente desta
questão.
Os votos
O pacto pela anistia: a ideia de um acordo em torno da promulgação da lei
O ministro relator Eros Grau exalta os “fatos históricos que antecederam a aprovação
[...] da Lei n. 6.683/79” ao longo do seu voto, ressaltando “a formidável luta pela anistia.” 35
Conforme veremos adiante, no capítulo 2, Grau faz uma minuciosa reconstituição histórica do
período, citando nominalmente os atores da campanha pela lei. Para Grau a luta pela anistia
representa “a página mais vibrante de resistência e atividade democrática da nossa História”. 36
Nas palavras do ministro: “Essas jornadas, inesquecíveis, foram heróicas. Não se as pode
desprezar.” 37
Para comprovar que os atores que lutavam pela anistia em 1979 estavam cientes e de
acordo com as características da Lei, incluindo o trecho sobre “crimes conexos”, Grau faz uso
de citações de Dalmo de Abreu Dallari e de José Paulo Sepúlveda Pertence. Dalmo Dallari é
um jurista e professor de Direito que atuou na defesa dos direitos humanos durante a ditadura
militar, na Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo sob a liderança de D.
Paulo Evaristo Arns. Dallari foi preso e sequestrado durante o regime. Grau cita um
depoimento de Dallari prestado à Fundação Perseu Abramo em 2006 onde ele afirma: Nós sabíamos que seria inevitável aceitar limitações e admitir que criminosos participantes do governo ou protegidos por ele escapassem da punição que mereciam por justiça, mas considerávamos conveniente aceitar essa distorção, pelo benefício que resultaria aos perseguidos e às suas famílias e pela perspectiva de que teríamos ao nosso lado companheiros de indiscutível vocação democrática e amadurecidos pela experiência. 38
Quanto à Sepúlveda Pertence, além de ex-ministro do STF entre 1985 e 2007, ele
também foi Conselheiro da OAB em 1979 e, como tal, encaminhou um parecer à Comissão
Mista responsável por discutir a Lei da Anistia no Congresso. Pertence havia sido duplamente
cassado durante a ditadura militar: como membro do Ministério Público e como professor da
35 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 10. 36 Ibid., p. 11. 37 Ibid. , p. 11. 38 DALLARI, Dalmo, 2006, apud BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 11.
19
Universidade de Brasília. Eros Grau cita tanto o parecer da OAB de 1979 quanto uma
entrevista concedida pelo ex-ministro ao portal Carta Maior em 2010. Novamente para
comprovar que os atores da época, mesmo aqueles que defendiam uma anistia ampla, geral e
irrestrita, aceitaram a anistia aos torturadores como parte de um acordo, Grau utiliza um
trecho do parecer: 17. Nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro de nossa História poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável como passo adiante no caminho da democracia. 18. De outro lado, de tal modo a violência da repressão política foi tolerada – quando não estimulada, em certos períodos, pelos altos escalões do Poder – que uma eventual persecução penal dos seus executores materiais poderá vir a ganhar certo colorido de farisaísmo. 39
Em seguida, Grau cita Sepúlveda na entrevista de 2010, onde o ex-ministro afirma que à
época reconhecia abertamente o “significado inequívoco” do § 1o do Art. 1o da lei e que “sem
alimentar esperanças vãs de que pudesse ele ser eliminado pelo Congresso, concentrava a
impugnação ao projeto governamental no § 2o do art. 1o, que excluía da anistia os já
condenados por atos de violência contra o regime.” 40
Em uma seção de seu voto intitulada “A transição para a democracia”, Eros Grau
escreve: Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu resultam fustigados os que se manifestaram politicamente em nome dos subversivos. Inclusive a OAB, de modo que nestes autos encontramos a OAB de hoje contra a OAB de ontem. É inadmissível desprezarmos os que lutaram pela anistia como se o tivessem feito, todos, de modo ilegítimo. Como se tivessem sido cúmplices dos outros. O que se deseja agora, em uma tentativa, mais do que reescrever, de reconstruir a História? Que a transição tivesse sido feita, um dia, posteriormente ao momento daquele acordo, com sangue e lágrimas, com violência? 41
O ministro reafirma a existência de um pacto político para justificar as falhas e carências da
lei, mas também para justificar a impossibilidade de mudá-la. Uma nova interpretação seria
uma tentativa de reescrever a história.
39 SEPÚLVEDA PERTENCE, J.P., 1979, apud BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 24-25. 40 SEPÚLVEDA PERTENCE, J.P., 2010, apud BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 25. 41 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 26-27.
20
Esse enaltecimento do acordo que tornou a lei possível é recorrente no voto dos outros
ministros. Não foi só Eros Grau que utilizou citações dos atores de 1979 para justificar uma
interpretação em 2010. Dos nove ministros que votaram no caso, oito citam o parecer de
Sepúlveda Pertence. Apenas o ministro Ayres Britto, que votou pela procedência da ação, 42
não faz referência ao parecer. Gilmar Mendes também cita a entrevista de 2010 concedida
pelo ex-ministro à Carta Maior, além de fazer referência ao parecer de agosto de 1979 do
Instituto de Advogados Brasileiros e a um discurso de 1981 do então Senador Paulo Brossard.
Este mesmo discurso de Brossard aparece transcrito no voto de Celso de Mello. A Ministra
Ellen Gracie também faz referência à mesma citação de Dalmo Dallari utilizada por Eros
Grau.
No tema do acordo, Cármen Lúcia vê uma alta participação popular. Ela afirma que
“esta é uma lei que foi acordada, mas não apenas por uns poucos brasileiros, num país de
silenciosos, como eram próprios daqueles momentos ditatoriais.” E segue: Bem ao contrário, o sinal determinante que se pode anotar na Lei n. 6683/79 é exatamente o de ser o primeiro passo formal deflagrador do processo de participação da sociedade civil num período em que ela se mantinha ausente, não poucas vezes clandestina em seus quereres e em seus fazeres políticos, por absoluta falta de espaço e possibilidades, que lhe eram negados. E a sociedade falou altissonante sobre o Projeto de Lei, que se veio a converter na denominada Lei da Anistia, objeto do presente questionamento, pela voz de sua então mais importante entidade, qual seja, a Ordem dos Advogados do Brasil, então Presidida pelo Dr. Eduardo Seabra Fagundes. 43
Mais adiante no seu voto a ministra enfatiza novamente a amplitude da luta pela anistia na
sociedade, dizendo: Não se pode negar que a anistia brasileira, concedida na forma da Lei n. 6.683/79, resultou de uma pressão social, em especial dos principais setores atuantes da sociedade civil, como intelectuais, estudantes, sindicatos, e foi objeto de amplo debate e de manifestações expressas e específicas das principais entidades e personalidades então atores do processo da chamada “abertura”. 44
A ministra Ellen Gracie, mesmo ressaltando que a argumentação sobre o acordo é
meramente política e não jurídica, também reafirma que “nem aqueles que desse pacto não
participaram – porque não pretendiam a finalidade de democratização do país – podem negar
a sua existência. Seria recusar validade à história suficientemente documentada.” 45
42 Em referência a Sepúlveda Pertence, o ministro Marco Aurélio disse: “se ele estivesse aqui, seria o décimo voto”; para Ellen Gracie, Sepúlveda está “presente nesse julgamento como se ainda participasse da bancada.” 43 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 4. 44 Ibid., p. 15. 45 BRASIL, 2010, Voto da ministra Ellen Gracie, p. 2.
21
Em concordância com Grau, o ministro Cezar Peluso diz que “todos os votos que
acompanharam o brilhantíssimo voto do ministro relator mostraram que a lei nasceu de um
acordo costurado por quem tinha legitimidade social e política para, naquele momento
histórico, celebrar um pacto nacional.” 46
O ministro Gilmar Mendes também afirma que “o ponto fundamental a ser levado em
conta é o fato de que a anistia ampla e geral representa o resultado de um compromisso
constitucional que tornou possível a própria fundação e a construção da ordem constitucional
de 1988.” Mais adiante ele retoma a ideia de pacto como argumento justificativo da 47
amplitude da lei: A ideia de anistia, como integrante deste pacto político constitucionalizado, não pode ser tomada de forma restritiva – ao contrário –, perderia sentido a própria ideia de pacto, ou de constituição pactuada! 48
Já ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto divergente a favor da procedência da
ação, discorda da interpretação de que houve um acordo. Para ele: [A] Lei da Anistia, longe de ter sido outorgada dentro de um contexto de concessões mútuas e obedecendo a uma espécie de ‘acordo tácito’, celebrado não se sabe bem ao certo por quem, ela em verdade foi editada em meio a um clima de crescente insatisfação popular contra o regime autoritário. 49
Após discorrer sobre a recessão econômica da década de 1970 e sob crescente pressão de
organismos internacionais de direitos humanos, Lewandowski conclui que a insatisfação
popular e o acirramento das disputas internas dentro da cúpula militar refletiam uma “séria
crise de legitimidade” do governo. “As pressões e tensões daí recorrentes atingiram níveis tais
que passaram a ameaçar a própria sobrevivência do regime, convencendo os seus próceres de
que era chegada a hora de promover mudanças no modelo político-institucional, embora de
forma controlada,” escreve o ministro. 50
A hipótese de revisão
Na seção do seu voto chamada “Interpretação e revisão da Lei da Anistia”, o ministro
relator Eros Grau começa afirmando que “no Estado democrático de direito o Poder Judiciário
não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto
46 BRASIL, 2010, Voto do ministro Cezar Peluso, p. 6. 47 BRASIL, 2010, Voto do ministro Gilmar Mendes, p. 21. 48 Ibid., p. 28. 49 BRASIL, 2010, Voto do ministro Ricardo Lewandowski, p. 9. 50 Ibid., p. 11.
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normativo.” Esta tarefa seria incumbência do Poder Legislativo. “Nem mesmo para reparar 51
flagrantes iniquidades o Supremo pode avançar sobre a competência constitucional do Poder
Legislativo,” escreve o juiz. Para Grau é certo que ao Poder Judiciário não cabe rever a lei, 52
essa atribuição recai exclusivamente no Poder Legislativo. O relator em seguida oferece um
estudo comparado dos casos do Chile, da Argentina e do Uruguai para salientar a atuação do
Poder Legislativo nos processos de revisão da anistia nesses países. “Ao Supremo Tribunal
Federal – repito-o – não incumbe legislar,” termina Grau. 53
Sobre a possibilidade de revisão da Lei da Anistia pelo Congresso, a ministra Cármen
Lúcia concorda com o relator mas apresenta um voto com outras nuances. Ela afirma que: Numa primeira análise, parece certo aceitar-se exatamente o quanto exposto pela Ordem dos Advogados do Brasil na presente Arguição de Preceito Fundamental. Atualmente, a anistia decretada nas condições antes explicitadas – concedida aos autores de crimes políticos ou seus conexos (de qualquer natureza), incluídos os crimes comuns praticados por agentes públicos acusados de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores – contraria o sistema constitucional vigente, em especial o seu art. 5o [que assegura isonomia e a inviolabilidade do direito à vida], pelo que seria com ela incompatível. 54
Alguns parágrafos a seguir ela diz: O disposto no § 1o do art. 1o da Lei n. 6.683/79 não me parece justo, em especial porque desafia o respeito integral aos direitos humanos. Mas a sua análise conduz-se à conclusão, a que também chegou o Ministro Relator, de que também não pode ser alterado, para os fins propostos, pela via judicial. Nem sempre as leis são justas, embora sejam criadas para que sejam. 55
E mais adiante, Cármen Lúcia complementa: Não foi a primeira anistia política concedida em finais de períodos ditatoriais de que foi melancolicamente pródiga a história brasileira. Bem o mostrou em seu voto o Ministro Eros Grau, mais de trinta leis de anistia foram concedidas no Brasil. Pode-se mudá-las? Não tenho dúvidas quanto a tal possibilidade, desde que pela via legislativa, não pela judicial. 56
Assim, podemos perceber que Cármen Lúcia é mais radical que Eros Grau ao afirmar
categoricamente que considera certos aspectos da lei inconstitucionais e injustos, mesmo que
acompanhe o voto do relator pela improcedência da Arguição por favorecer uma análise que
leve em conta os elementos históricos.
51 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 27. 52 Ibid. 53 Ibid. , p. 31. 54 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 13. 55 Ibid. , p. 15. 56 Ibid. , p. 17.
23
Ambos os ministros argumentam que a revisão da Lei da Anistia só poderia ser feita
pelo Poder Legislativo, por caber a esta instância e não ao Poder Judiciário a responsabilidade
de legislar. Apesar deste argumento ser verdadeiro, ele não inviabiliza a demanda da arguente.
A OAB solicitou uma nova interpretação de um trecho da norma, não uma revisão da lei em
si.
Além da questão das diferentes atribuições do judiciário e do legislativo, outro
argumento utilizado para justificar a não reinterpretação da lei foi o princípio da
irretroatividade do direito penal. A constituição prevê que “a lei penal penal não retroagirá,
salvo para beneficiar o réu.” Em outra palavras, uma revisão criminal não pode agravar a 57
situação do réu ou condenado. A ministra Cármen Lúcia foi a primeira a trazer este princípio
para o debate: É possível mudar a interpretação de um dispositivo legal, mesmo após três décadas de sedimentação de uma linha de entendimento e interpretação? Parece-me certo que sim.
Entretanto, cuidando-se, como no caso, de matéria penal, a mudança que eventualmente sobreviesse, em primeiro lugar, não poderia retroagir se não fosse para beneficiar até mesmo o condenado; em segundo lugar, teria de ser sobre norma ainda não exaurida em sua aplicação. 58
Cármen Lúcia então argumenta que se a Lei da Anistia for considerada alheia à história do
contexto de sua promulgação, à intenção legislativa no momento de sua elaboração e ao
espírito e razão da lei, “a presente Arguicao de Descrumprimento de Preceito Fundamental se
converteria numa espécie de ‘revisão criminal às avessas’, instituída exclusivamente em
prejuízo aos anistiados”, o que contraria o princípio da irretroatividade penal. 59
Além de Cármen Lúcia, os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso
também fazem referência a proibição de retroagir uma lei gravosa. A discussão sobre as
consequências desta argumentação serão retomadas mais adiante.
A Emenda Constitucional n. 26/85: o lugar da anistia na nova ordem constitucional
Outro ponto central na argumentação de Eros Grau e que foi amplamente debatido foi
a sua interpretação da Emenda Constitucional (EC) n. 26, de 27 de novembro de 1985. Irei
tentar me abster de uma discussão jurídica, mas apresento essa questão pois mobilizou outros
57 Art. 5o, XL, da Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 26 jan. 2018. 58 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 12. 59 Ibid. , p. 13-14.
24
ministros e foi uma das ferramentas utilizadas para historicizar a anistia, conforme será
apresentado em mais detalhe no próximo capítulo.
A EC n. 26/85 convocou a Assembléia Nacional Constituinte e, no seu Art. 4o,
reafirmou a anistia: Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.
§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais.
§ 2º A anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis previstos no "caput" deste artigo, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Eros Grau interpreta essa emenda como o “ato originário” da Constituição, que “inaugura a
nova ordem constitucional”, e dessa forma alega que: Eis o que se deu: a anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Não que a anistia que aproveita a todos já não seja mais a da lei de 1979, porém a do artigo 4o, § 1o da EC 26/85. Mas estão todos como que [re]anistiados pela emenda, que abrange inclusive os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Por isso não tem sentido questionar se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988. Pois a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. 60
Por fim, ele conclui que: Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, teremos que sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem.
61
Dos ministros que votaram junto com o relator, Gilmar Mendes foi o único que se
dedicou a justificar esta interpretação da EC no seu voto. Para Mendes: A EC n. 26, de 1985, constitui um peculiar ato constitucional, que não tem natureza própria de emenda constitucional. Em verdade, trata-se de um ato político que rompe com a Constituição anterior e, por isso, não pode dela fazer parte, formal ou materialmente. Ela traz as novas bases para a construção de outra ordem constitucional. 62
A partir desta afirmação o ministro inicia uma discussão teórica-jurídica que ocupa as onze
páginas finais do seu voto. Para Gilmar Mendes, como a EC n. 26 representa o fundamento da
60 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 32-33. 61 Ibid., p. 33. 62 BRASIL, 2010, Voto do ministro Gilmar Mendes, p. 40.
25
nova ordem constitucional, qualquer modificação dos seus contornos originais repercutiria nas
bases da Constituição e, portanto, em “toda a vida político-institucional pós-1988.” 63
A ministra Carmem Lúcia, apesar de concordar com a avaliação de mérito do relator,
rejeita a interpretação feita de que a EC n. 26 constitucionaliza a Lei da Anistia e portanto
previne qualquer mudança de interpretação. Para a ministra: A conclusão do eminente relator no sentido de que, alterada a interpretação da Lei prevaleceria o que posto pela Emenda Constitucional n. 26/85 não me sensibiliza, em primeiro lugar, porque o óbice que o próprio Poder Judiciário vem pondo a pedidos de persecução penal em casos em que se busca punir atos de tortura tem sido a lei, não a Emenda Constitucional, daí o objeto da Arguição; em segundo lugar, porque se se chegasse à interpretação pleiteada pela ora Arguente para a lei o mesmo se daria em relação à Emenda Constitucional, como é certo, por serem idênticas as expressões.
A alegação de que a Emenda Constitucional n. 26/85 integraria a ordem constitucional formalmente instalada em 5 de outubro de 1988 não me convence, porque a Constituição de 1988 é Lei Fundamental no sentido de que é fundante e fundadora, logo o que veio antes e não foi por ela cuidado expressamente para ser mantido não há de merecer o adjetivo de norma integrante do sistema constitucional.
64
O ministro Ayres Britto, em seu voto divergente, também questionou a argumentação
do relator, se aproximando assim do raciocínio de Cármen Lúcia ao dizer que: “O ato de
convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte é, digamos assim, prefacialmente
constituinte. É apenas precária e efemeramente um ato constituinte.” 65
Já Ricardo Lewandowski, que votou na mesma linha de Britto, além de rejeitar a
argumentação majoritária sobre a EC n. 26, ressalta que “a Constituição de 1988, embora
pudesse fazê-lo, não ratificou a tal anistia, preferindo concedê-la, em outros termos, para
beneficiários distintos, no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.” 66
Lewandowski foi o único ministro a levantar essa linha de argumentação.
63 Ibid. , p. 50. 64 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 10-11. 65 BRASIL, 2010, Voto do ministro Ayres Britto, p. 12. 66 BRASIL, 2010, Voto do ministro Ricardo Lewandowski, p. 29. O art 8o do ADCT concede anistia: “aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.” Disponível em: https://www.senado.gov.br/atividade/const/con1988/ADC1988_08.09.2016/art_8_.asp. Acesso em 26 jan. 2018.
26
O sentido dos “crimes conexos” e a violência estatal
O cerne da ADPF 153 diz respeito à interpretação de que os “crimes conexos”
descritos no § 1o do Art. 1o incluem os crimes praticados pelos agentes militares. No parecer
que pede a instauração da ação, os arguentes declaram que: É sabido que esse último dispositivo legal foi redigido intencionalmente de forma obscura, a fim de incluir sub-repticiamente, no âmbito da anistia criminal, os agentes públicos que comandaram e executaram crimes comuns contra opositores políticos ao regime militar. 67
Analisando a questão dos crimes conexos, Eros Grau argumenta que a própria lei
define o que seriam esses crimes para os efeitos do Art. 1. Para o relator: Essa expressão, crimes conexos a crimes políticos, conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. Sempre há de ter sido assim. A chamada Lei de Anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Tenho que a expressão ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal. 68
E logo adiante ele prossegue: A Arguente tem razão: o legislador procurou estender a conexão aos crimes praticados pelos agentes de Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção. Daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral. Anistia que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados – e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou, veremos logo adiante – pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. 69
Grau retoma Sepúlveda Pertence para demonstrar esse ponto, concluindo que a lei “não foi
ampla plenamente, mas seguramente foi bilateral.” Todos os ministros que votaram com o
relator reconheceram a “bilateralidade” da lei.
O ministro Celso de Mello ecoa a interpretação de Grau ao dizer que a Lei da Anistia
de 1979 “promoveu verdadeira interpretação autêntica do termo ‘crime conexo’”. Nas 70
palavras do ministro: E foi com esse elevado propósito que se fez inequivocamente bilateral (e recíproca) a concessão da anistia, com a finalidade de favorecer aqueles que, em situação de conflitante polaridade e independentemente de sua posição no arco ideológico, protagonizaram o processo político ao longo do regime militar, viabilizando-se, desse modo, por efeito da bilateralidade do benefício concedido pela Lei n. 6.683/79, a construção do necessário consenso, sem o qual não teria sido possível a colimação dos altos objetivos perseguidos pelo Estado e, sobretudo, pela sociedade civil naquele particular e delicado momento histórico da vida nacional. 71
67 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 2008. 68 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 15. 69 Ibid., p. 15-16. 70 BRASIL, 2010, Voto do ministro Celso de Mello, p. 16-17. 71 Ibid., p. 17.
27
Como Grau, Celso de Mello faz referência ao parecer de Pertence e à ideia de acordo para
legitimar o caráter bilateral da Lei. O ministro dá ênfase ao argumento de que a lei não é uma
autoanistia, diferentemente do relator. Para Celso de Mello, é exatamente o caráter bilateral da
lei, o fato dela ser uma anistia de “mão dupla” que se estendeu tanto aos militares quanto aos
opositores, que faz com que ela não possa ser considerada uma autoanistia. Para o ministro, a
lei brasileira não foi uma “anistia em branco”, utilizada unicamente para suprimir a
responsabilidade dos agentes estatais. 72
O ministro Cezar Peluso concorda com o argumento exposto por Grau e Celso de
Mello de que o sentido da “conexão” na Lei n. 6.683 é único, por ser definido pela própria lei:
“Ora, evidentissimamente, o caso não cuida de conexão nesse sentido tradicional e
técnico-jurídico. A conexão aqui pressuposta tem outro sentido, é o sentido que chamo de
metajurídico.” Diferentemente dos outros ministros, o presidente da Corte ataca o argumento 73
da OAB de que a lei seria “obscura”: Mas o que me parece interessante é que o que, no fundo, inspira esta ação é exatamente a percepção da clareza da lei. Se houvesse dúvida a respeito do alcance da lei, não se abalançaria a autora a pedir ao Tribunal que declarasse outra coisa. Se a lei fosse obscura, se a lei fosse pouco clara, seria incompreensível que pedisse à Corte declarar-lhe algum sentido contrário. Isto é, só um sentido reconhecido pressupostamente como claro seria incompatível com a Constituição. E, textualmente, no ítem no 13 da petição inicial, consta que “a despeito da má redação, a finalidade foi incluir subrepticiamente, no âmbito da anistia criminal, os agentes públicos que comandaram e executaram crimes comuns contra opositores políticos ao regime militar”. Noutra palavras, é a própria autora que reconhece ser esse o sentido da lei, não obstante pretenda que o Tribunal declare tal sentido incompatível com a Constituição. 74
Já o ministro Ayres Britto vai na direção contrária, dizendo: “eu não consigo enxergar
no texto da Lei da Anistia essa clareza que outros enxergam, com tanta facilidade [...]”. O 75
ministro não encontra clareza na suposta conexão. Para ele: Quem redigiu essa lei não teve coragem – digamos assim – de assumir essa propalada intenção de anistiar torturadores, estupradores, assassinos frios de prisioneiros já rendidos; pessoas que jogavam de um avião em pleno voo as suas vítimas; pessoas que ligavam fios desencapados a tomadas elétricas e os prendiam à genitália feminina; pessoas que estupravam mulheres na presença dos pais, dos namorados, dos maridos. 76
72 Ibid. , p. 27. 73 BRASIL, 2010, Voto do ministro Cezar Peluso, p. 2. 74 Ibid. , p. 4-5. 75 BRASIL, 2010, Voto do ministro Ayres Britto, p. 3. 76 Ibid., p. 4-5.
28
É interessante ressaltar que essa foi a única descrição dos métodos de tortura exposta no
tribunal.
O ministro Ricardo Lewandowski dedicou quase a totalidade do seu voto divergente
analisando a questão da conexão criminal e a distinção da natureza dos crimes comuns e dos
crimes políticos. Lewandowski evidentemente rejeita a interpretação de uma conexão “sui
generis” e argumenta que a simples menção à conexão no texto da lei não estabelece o
vínculo material entre os dois tipos de crime. “A partir de uma perspectiva estritamente 77
técnico-jurídica, pois, não há como cogitar-se de conexão material entre os ilícitos sob
exame”, escreve Lewandowski. “Mas, embora essa questão ainda possa despertar certa
perplexidade entre aqueles que, hodiernamente, se debruçam sobre a questão, o seu deslinde
não suscitou maiores dificuldades para esta Suprema Corte”, completa o ministro. 78
Para alguns dos ministros, essa relação na lei entre os crimes da oposição e os crimes
dos agentes estatais seria justificada por refletir uma realidade onde os dois lados lutavam em
posições equivalentes, no que se convencionou chamar de “teoria dos dois demônios”. A
historiadora argentina Marina Franco, em um trabalho sobre a teoria dos dois demônios na
memória social da pós-ditadura em seu país, argumenta que esta suposta “teoria” nunca foi
enunciada positivamente como tal; não há um corpus definido de ideias que a constitui como
teoria nem tampouco atores que reclamam sua autoria ou que defendem o uso positivo do
termo. Para a autora, o termo já surgiu como uma crítica à visão que ele pretende explicar; se
referem a esta ideia somente aqueles interessados em questioná-la. Ao invés de uma teoria, 79
“o que há é um conjunto de representações coletivas, de ampla circulação, cujas formulações
mais óbvias cristalizaram em torno de alguns enunciados públicos nos primeiros anos
pós-ditatoriais”. 80
Ainda não existem estudos de fôlego dedicados à representação desta ideia na
memória sobre a ditadura brasileira, ao estilo da pesquisa de Franco, ou até mesmo análises
sobre a utilização da teoria dos dois demônios na historiografia brasileira. Quando utilizado, o
termo é sempre remetido à sua origem no contexto argentino, e normalmente aparece em
77 BRASIL, 2010, Voto do ministro Ricardo Lewandowski, p. 14. 78 Ibid. , p. 15. 79 FRANCO, Marina. La “teoría de los dos demonios”: un símbolo de la posdictadura en la Argentina. Contra Corriente, Raleigh: North Carolina State University, v. 11, n. 2, 2014, p. 22-23. 80 Ibid. , p. 23. Tradução minha, no original: “lo que hay es un conjunto de representaciones colectivas, de amplia circulación, cuyas formulaciones más obvias cristalizaron en algunos enunciados públicos en los primeros años posdictatoriales.”
29
análises comparativas entre os dois países. Não é o objetivo deste trabalho teorizar sobre os 81
“dois demônios” no cenário brasileiro, porém observar que os ecos desta ideia ressoam em
alguns trechos dos votos dos ministros do STF é instigante. 82
Os ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes foram bastante precisos e explícitos
quanto às suas visões sobre a suposta guerra vivida durante a ditadura militar. Do voto de
ambos surge uma ideia de enfrentamento mútuo onde as Forças Armadas e os militantes de
esquerda representam dois lados equivalentes. Na discussão sobre o sentido “metajurídico” da
conexão criminal na Lei Anistia, citada anteriormente, Peluso afirma que: [...] não fosse esse dado, teríamos, para lembrar palavra muito significativa de Drummond de Andrade, uma anistia cambaia. Por que teríamos uma anistia cambaia? Porque, a entender-se aqui conexão como fenômeno puramente processual, ela só se aplicaria aos casos de concurso de crimes e de concursos de pessoas. Ou seja, só valeria para um dos lados das pessoas que se encontravam numa situação sócio-política de conflito, isto é, só para um dos lados haveria a anistia, que seria muito mais restrita do que é, perdendo, assim, todo o seu significado histórico na transição para um regime democrático. 83
Mais adiante ele reafirma esta tese de uma “situação sócio-política de conflito”: Não falo aqui das motivações como razões subjetivas da prática dos crimes, mas o dado objetivo de crimes praticados no mesmo contexto sócio-político de conflito e de luta pelo poder. Este dado identifica os crimes praticados de ambos os lados, e essa identificação histórica, entre crimes contra o regime e de crimes contra os opositores, situando-os na mesma moldura histórica e política, atende ao imperativo da igualdade, pois teriam de receber, como receberam, tratamento normativo igual. 84
Para o ministro Gilmar Mendes: “A anistia ampla e geral, insculpida na lei
6.683/1979, é abrangente o bastante para abarcar todas as posições político-ideológicas
existentes na contraposição amigo/inimigo estabelecidas no regime político precedente [...].” 85
Mendes vai além de Peluso na sua descrição do suposto “contexto sócio-político de conflito”.
Em sua análise sobre ao processo da redemocratização brasileira, Mendes nos oferece uma
breve narrativa sobre “as lutas internas” ocorridas durante a ditadura militar no Brasil: A contraposição ideológica permitiu a realização de diversas agressões, que se constituíram em fatos típicos criminais, praticados, de um lado, pelo Estado forte e
81 No âmbito desta pesquisa, o único trabalho encontrado que faz uma análise da teoria dos dois demônios no contexto nacional é o artigo do advogado e doutorando em Relações Internacionais: QUINALHA, Renan Honório. Com quantos lados se faz uma verdade? Notas sobre a Comissão Nacional da Verdade e a “teoria dos dois demônios”. Revista Jurídica da Presidência, Brasília: Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, v. 15, n. 105, 181-204, Fev./Mai. 2013. 82 Diante das hipóteses de Franco sobre a inexistência do termo como objeto autônomo no contexto argentino, berço da teoria, acredito que utilização desse termo na historiografia brasileira deve ser problematizada com maior rigor. Além disso, as ideias expressas pelos ministros nunca são definidas como “teoria dos dois demônios” por eles mesmos. Por estas razões optei por não utilizar esta nomenclatura neste trabalho. 83 BRASIL, 2010, Voto do ministro Cezar Peluso, p. 2-3. 84 Ibid. , p. 5-6. 85 BRASIL, 2010, Voto do ministro Gilmar Mendes, p. 29.
30
monopolizador do aparelho organizatório e, de outro, por núcleos de cidadãos ideologicamente contrários. Não obstante o desnível de potencialidade ofensiva exercida durante os tempos da beligerância, é preciso observar que tanto houve agressões praticadas pelo Estado, por meio de seus agentes repressores, quanto por intermédio de cidadãos organizados politicamente, em derredor de um direcionamento político. Sequestros, torturas e homicídios foram praticados de parte a parte, muito embora se possa reconhecer que, quantitativamente, mais atos ilícitos foram realizados pelo Estado e seus diversos agentes do que pelos militantes opositores do Estado. Embora seja razoável admitir que a grande maioria das ofensas foi praticada pelos militares, não é razoável introduzir, no campo da análise política e no campo das definições jurídicas, compreensões morais acerca da natureza justificadora da violência. Não é possível conferir ilicitude criminal a alguns atos e, ao mesmo tempo, reconhecer que outros de igual repercussão possuem natureza distinta e podem ser justificados em razão do objetivo político ideológico que o geraram. Assim, a perspectiva ideológica não justifica o cometimento de atrocidades como sequestros, torturas e homicídios cruéis. Ademais, ainda que fosse possível justificá-las – e não é possível –, é certo que muitos dos que recorreram a estes delitos não buscavam a normalidade democrática, mas a defender sistemas políticos autoritários, seja para manter o regime de exceção, seja para instalar novas formas de administração de cunho totalitário, com bases stalinistas, castristas ou maoístas. 86
O jurista constrói uma equivalência entre querer a justiça para crimes de Estado e justificar os
crimes cometidos pela oposição civil armada, justificativa esta inexistente na petição inicial.
Na construção de Gilmar Mendes, a ênfase desliza da justiça para a justificativa; dos crimes
praticados pelos agentes do Estado para os crimes praticados pelos militantes de esquerda.
Mesmo o relator do processo, ministro Eros Grau, que em seu voto reprime duramente
as ações militares e louva com grandiloquência a oposição civil ao regime, emite uma opinião
que também equipara os “dois lados” em suas considerações finais : “É necessário dizer, por
fim, vigorosa e reiteradamente, que a decisão pela improcedência da presente ação não exclui
o repúdio a todas as modalidades de tortura, de ontem e de hoje, civis e militares, policiais ou
delinquentes.” 87
No tema da tortura, Eros Grau argumenta que a Lei da Anistia precede tanto a
Convenção das Nações Unidas contra a Tortura (em vigor desde 1987) como a Lei n. 9.455 de
1997 que define o crime de tortura. Desta forma, “por impossibilidade lógica”, não se pode
aplicar uma lei à anistia consumada antes de sua vigência. O argumento com base na 88
86 Ibid. , p. 24-25. 87 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 34. 88 Ibid. , p. 26.
31
anterioridade temporal também é repetido pelos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes 89
. 90
Porém, mesmo rejeitando a lógica da arguente, é interessante ressaltar a forma como
os ministros falam sobre a tortura em seus votos. A aversão explícita à tortura é compartilhada
pelos magistrados, porém a tortura é descrita como excesso e exceção . Além disto, o
torturador e a tortura são vistos através de uma interpretação psicologizante. Para Cármen
Lúcia, Tortura é barbárie, é o desumanismo da ação de um ser mais animal que gente, é a negação da humanidade, mais que a dignidade, que a quem pratica talvez nem ao menos saiba o que tanto vem a ser. 91
No voto do ministro Celso de Mello, a tortura é definida como um “gesto
caracterizador de profunda insensibilidade moral daquele que se presta, com ele, a ofender a
dignidade da pessoa humana.” Ele prossegue: 92
Surgem, então, personagens sinistros e instituições sombrias, sob cuja égide e autoridade praticaram-se, covardemente, delitos ominosos contra os que se opunham ao regime político, e que foram submetidos a atos de inaudita vilania, como a prática do homicídio, do seqüestro, do desaparecimento forçado de pessoas e de sua eliminação física, de violência sexual e tortura. 93
Outro ministro que discorre longamente sobre a tortura no regime militar é o ministro
Ayres Britto. Uma análise do seu voto é interessante pois ele foi um dos dois ministros que
votaram pela procedência da ADPF. Mesmo assim, compartilha amplamente a visão de que a
tortura foi a exceção: E aqui, essa minha preocupação de clareza no propósito de anistiar é tanto mais necessária quanto se sabe que as pessoas de que estamos a falar – os estupradores, os assassinos, os torturadores – cometeram excessos no próprio interior de um regime de exceção. Não foram pessoas que se contentaram com a própria dureza do regime de exceção; foram além dos rigores do regime de exceção para a ele acrescentar horrores por conta própria. Pessoas que exacerbaram no cometimento de crimes no interior do próprio regime de exceção, por si mesmo autoritário, por si mesmo prepotente, por si mesmo duro, por si mesmo ignorante de direitos subjetivos.
[...] Essas pessoas de quem estamos a tratar – torturadores et caterva – desobedeceram não só à legalidade democrática de 1946, como à própria legalidade autoritária do regime militar. Pessoas que transitaram à margem de qualquer ideia de lei, desonrando as próprias Forças Armadas, que não compactuavam nas suas leis com atos de selvageria, porque o torturador não é um ideólogo. Ele não elabora mentalmente qualquer teoria ou filosofia política. [...] O torturador não comete crime político, não comete crime de opinião, reitere-se o juízo. O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado. O torturador é aquele que experimenta o
89 BRASIL, 2010, Voto do ministro Celso de Mello, p. 28. 90 BRASIL, 2010, Voto do ministro Gilmar Mendes, p. 36-37. 91 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 20. 92 BRASIL, 2010, Voto do ministro Celso de Mello, p. 5. 93 Ibid. , p. 4.
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mais intenso dos prazeres diante do mais intenso dos sofrimentos alheios, perpetrados por ele próprio. É uma espécie de cascavel de ferocidade tal que morde até o som dos próprio chocalhos. 94
Britto deixa explícito a sua interpretação de que os repressores do regime atuavam
isoladamente e com total autonomia. O ministro afirma que a tortura desonrou as Forças
Armadas e prossegue o seu voto dizendo que: De caráter relativo ou não absoluto foi o movimento pela abertura democrática (que seria ampla, geral e irrestrita). Não o movimento pela anistia. Até porque a anistia promove uma falta de isonomia no interior das Forças Armadas, devido a que a maioria dos militares jamais incidiu em tortura. Não compactuou com tortura ou coisa que o valha.
Então esses militares torturadores que desonraram as Forças Armadas, o Estado, a Pátria e o próprio Deus (permito-me dizer) não podem ser tratados em igualdade de condições com os militares honrados que acreditavam numa estruturação estatal e numa forma de governo boas para o Brasil. Equivocadamente ao meu sentir, e no sentir de muitas outras pessoas, mas agindo de boa-fé. 95
Ayres Britto vai mais longe do que qualquer outro ministro em afirmar não só que o
torturador era a exceção dentro da corporação militar, mas que os militares governaram o país
agindo de boa-fé e em nome de uma nova “estruturação estatal”. O ministro reveste a
argumentação da violação da isonomia citada no parecer da OAB em uma roupagem
completamente distinta. O seu voto é uma excelente ilustração das complexidades e
ambiguidades, por vezes paradoxais, que cercam a memória sobre a tortura. Apesar de ser um
voto a favor de uma re-interpretação da lei, nesse aspecto foi um voto conciliatório, pois
protege as Forças Armadas ao isolar os “monstros”.
Direito à verdade
O ministro relator Eros Grau rejeita o argumento da OAB de que a Lei da Anistia
representa um óbice à verdade, dizendo que: “Não vejo, de outra parte, como se possa afirmar
que a Lei n. 6.683/79 impede o acesso a informações atinentes à atuação dos agentes da
repressão [...]”. Em suas observações finais, o ministro reitera a necessidade de permitir o 96
acesso aos documentos históricos como forma de exercício do direito à verdade: “Impõe-se,
sim, o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu
entre nós durante as décadas sombrias que conheci.” 97
94 BRASIL, 2010, Voto do ministro Ayres Britto, p. 5-7. 95 Ibid. , p. 9. 96 Ibid. , p. 7. 97 Ibid. , p. 34.
33
Com a exceção dos ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes, todos os outros que
votaram junto com o relator fizeram menção direta ao direito à verdade. Cármen Lúcia
terminou o seu voto afirmando que “o Brasil tem o direito de saber e o Estado tem o dever de
informar, para que não sejam esquecidos os horrores perpetrados contra os brasileiros.” 98
Antes disso ela faz referência à manifestação do amicus curiae do Centro pela Justiça e
Direito Internacional para dizer: Assim, o direito à verdade, o direito à história, o dever do Estado brasileiro de investigar, encontrar respostas, divulgar e adotar as providências sobre os desmandos cometidos no período ditatorial não estão em questão, e, se estivessem, pelo menos eu, com certeza, daria resposta exatamente no sentido enaltecido pela advogada. Apenas, deve ser enfatizado que não é essa a questão, nem ao menos como objeto de exame ou argumentação para a resposta judicial a ser dada na presente argüição, simplesmente não é este o tema posto, nem parece haver dúvidas tão graves quanto as que se suscitam na presente argüição.
É certo que todo povo tem direito de conhecer toda a verdade da sua história, todo cidadão tem o direito de saber o que o Estado por ele formado faz, como faz, porque faz e para que faz.
Todo povo tem o direito de saber, mesmo dos seus piores momentos. Saber para lembrar, lembrar para não esquecer e não esquecer para não repetir erros que custaram vidas e que marcaram os que foram sacrificados por pais torturados, irmãos desaparecidos, dentre outras atrocidades. 99
O ministro Celso de Mello dedica cinco páginas do seu voto à questão do acesso à
verdade. Ele faz uma análise histórica comparativa entre os modelos de governo autoritários e
democráticos, ressaltando que o governo militar “privilegiou e cultivou o sigilo” enquanto o 100
“novo estatuto político brasileiro [...] consagrou a publicidade dos atos e das atividades
estatais como valor constitucional a ser observado”. O ministro discute o valor da 101
transparência em governos democráticos, enfatizando que o direito à informação é um
“instrumento viabilizador do exercício da fiscalização social a que estão sujeitos os atos do
poder público.” Celso de Mello termina a sua argumentação e o seu voto com a seguinte 102
conclusão: Vê-se, portanto, que assiste, a toda a sociedade, o direito de ver esclarecidos os fatos ocorridos em período tão obscuro de nossa história, direito este que, para ser exercido em plenitude, não depende da responsabilização criminal dos autores de tais fatos, a significar, portanto, que a Lei no 6.683/79 não se qualifica como
98 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 21. 99 Ibid., p. 2-3. 100 BRASIL, 2010, Voto do ministro Celso de Mello, p. 41. 101 Ibid., p. 42. 102 Ibid., p. 44.
34
obstáculo jurídico à recuperação da memória histórica e ao conhecimento da verdade. 103
Os dois ministros que votaram a favor da procedência da ação não fizeram nenhum
argumento em relação à suposta afronta ao direito à verdade.
Prescrição dos crimes
A questão da prescritibilidade dos crimes anistiados pela Lei n. 6.683 foi analisada nas
preliminares. Neste momento Eros Grau se manifestou dizendo que a matéria da prescrição
não prejudica a apreciação da ação, pois a apuração da prescrição só poderia ocorrer depois da
conclusão em relação à aplicação da lei. Mesmo assim, esta questão reapareceu como
argumento no julgamento de mérito dos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar
Peluso.
Conforme destacado no início deste capítulo, Marco Aurélio foi o único ministro que
acatou as preliminares e votou por extinguir o processo sem análise de mérito. Portanto, no
momento do seu voto o ministro começou dizendo: Presidente, continuo convencido de que atuamos no vácuo, tendo em conta o objeto que se busca proteger com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Se o Tribunal concluir pela constitucionalidade da Lei, não surtirá efeitos quanto àqueles que praticaram este ou aquele crime. Se o Tribunal – havendo prevalência da divergência, do voto divergente – assentar a inconstitucionalidade, o resultado em termos de concretude, em termos de afastamento de lesão, quer no campo penal, quer no campo cível, não ocorrerá por uma razão muito simples. 104
Neste momento o ministro é interrompido pelo ministro Ayres Britto, que argumenta que a
análise da prescrição deverá ocorrer caso a caso. Em resposta, Marco Aurélio afirma que o
prazo maior de prescrição quanto à persecução criminal é de vinte anos, e tendo em conta que
já se passaram trinta e um anos da Lei da Anistia na data do julgamento, todos os crimes já
foram prescritos. “A discussão, Presidente, é – sob a minha óptica, com a vênia dos colegas –
estritamente acadêmica, para ficar nos Anais do Tribunal,” admite Marco Aurélio. No fim 105
das suas poucas considerações ele frisa que se sente votando “sem uma concretude maior
quanto à eficácia”. 106
103 Ibid., p. 45. 104 BRASIL, 2010, Voto do ministro Marco Aurélio, p. 1. 105 Ibid. 106 Ibid. , p. 3.
35
O ministro Celso de Mello concorda com a avaliação de Marco Aurélio, embora isso
não o tenha impedido de analisar a fundo o mérito da questão. Para Celso de Mello: Como já observado neste julgamento, a pretensão punitiva do Estado, caso acolhida a postulação deduzida pela parte ora argüente, achar-se-ia atingida pela prescrição penal, calculada esta pelo prazo mais longo (20 anos) previsto em nosso ordenamento positivo. 107
Em relação à questão da prescritibilidade dos crimes, Cezar Peluso também insiste que
todas as ações criminais estão prescritas e questiona: E a pergunta decisiva seria: qual o interesse legítimo – não digo apenas o interesse jurídico – que ficaria, que restaria para justificar julgamento de procedência desta ação? Ela não serviria para instauração de ação penal, porque todas as ações penais estão prescritas, de modo que, na matéria, não se poderia chegar a nenhuma sentença de mérito! Qual, portanto, a utilidade do julgamento de procedência desta ação? Ela não tem nenhuma repercussão de ordem prática, nenhuma, no campo jurídico. 108
O ministro Ayres Britto novamente interrompe o voto para argumentar que o Estado está
impedido de deflagrar a persecução enquanto a Lei da Anistia estiver vigente e que, portanto,
o Estado só desencadearia a persecução após o afastamento da mesma, fazendo com que
questão da prescrição só pudesse ser avaliada posteriormente. Não convencido, Cezar Peluso
insiste na sua linha argumentativa.
O papel da análise histórica na interpretação jurídica
As distintas visões sobre a interpretação jurídica – e mais especificamente o papel da
interpretação histórica no método do juiz – iluminam as nuances entre os votos dos ministros
na ADPF 153. Nesse ponto, é importante ressaltar que, diferentemente dos outros temas
analisados neste capítulo, o assunto da análise histórica nem sempre é discutido
explicitamente nos votos. Na maioria dos casos o papel da história na interpretação jurídica
não é um tema discutido abertamente pelos ministros, mas sim uma ferramenta utilizada de
diferentes maneiras. Além disso, a inserção do elemento histórico na interpretação da lei
muitas vezes é justificada por motivos jurídicos; não é defendida, por si só, como um método
hermenêutico.
O voto do ministro relator Eros Grau é um voto que se apoia em grande parte em
argumentos históricos. Diferentemente dos outros ministros, Grau nos brinda com uma
detalhada explicação do seu método interpretativo, logo no início de seu voto:
107 BRASIL, 2010, Voto do ministro Celso de Mello, p. 32. 108 BRASIL, 2010, Voto do ministro Cezar Peluso, p. 8.
36
Permito-me, neste passo, deixar bem vincados dois pontos, o primeiro dizendo com o fato de que todo, todo e qualquer texto normativo é obscuro até o momento da interpretação. Hoje temos como assentado o pensamento que distingue texto normativo e norma jurídica, a dimensão textual e a dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. [...] Interpretar/aplicar é dar concreção [= concretizar] ao direito. Neste sentido, a interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: a sua inserção na vida.
No parágrafo seguinte, ele prossegue: É que – como a interpretação do direito consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas – cumpre definirmos qual é a realidade, qual o momento da realidade a ser tomado pelo intérprete da Lei n. 6.683/79. 109
Grau prossegue por outros caminhos, até retomar essa discussão no ponto “A
interpretação do direito e as leis-medida”. O ministro faz uma distinção entre leis dotadas de
generalidade e abstração, que constituem preceito primário, e as leis-medida. Essa distinção e
suas consequências serão exploradas em detalhe no próximo capítulo. Por hora, é relevante
ressaltar que, para o relator: Pois o que se impõe deixarmos bem vincado é a inarredável necessidade de, no caso de lei-medida, interpretar-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. 110
Ou seja, ao definir a Lei da Anistia como lei-medida , Eros Grau justifica então a necessidade
de interpretá-la à luz do contexto de sua criação, à luz do contexto da abertura ‘lenta, gradual
e segura’. Nas suas palavras: “É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a
democracia política, da transição conciliada de 1979 que há de ser ponderada para que
possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683.” 111
Desta forma, se pensarmos no papel da argumentação histórica na interpretação
jurídica, podemos situar o ministro Eros Grau em um extremo da discussão, onde a
circunstância da lei-medida obriga o juiz a interpretar o texto normativo a partir da realidade
do momento da sua criação, ou seja, obriga o juiz a realizar uma reconstituição histórica dos
fatos que cercaram a promulgação da lei.
109 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 4-5. 110 Ibid. , p. 20. 111 Ibid. , p. 22.
37
Em seguida podemos observar o voto da ministra Cármen Lúcia que, apesar de
demonstrar ser um pouco mais crítica ao método de interpretação histórico, baseou o seu voto
em argumentos históricos. Para Cármen Lúcia: A opção inicial do intérprete do § 1o do art. 1o da Lei n. 6.683/79 haverá de ser entre a adoção de elementos de inteligência da norma segundo os parâmetros atuais, incluídos os princípios constitucionais vigentes, desapegando-se do seu momento originário, de seu surgimento, ou, diversamente, acolher como elemento determinante para a sua interpretação o quadro fático-histórico no qual veio a ser criada e a finalidade nela planteada. Da tribuna, na sessão inicial desse julgamento, foi lembrado que nem sempre o elemento histórico é o melhor dos critérios para se chegar à interpretação da norma. E há razão geral, em tal argumento. Entretanto, para o caso específico, difícil seria desconhecer o que se vivia e para o que se deu a elaboração da Lei agora em questão e na qual se contém o dispositivo para o qual se pede interpretação específica. 112
Mais adiante ela prossegue nessa linha argumentativa, dizendo: Numa primeira análise, parece certo aceitar-se exatamente o quanto exposto pela Ordem dos Advogados do Brasil na presente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. [...] Todavia, o exame mais aprofundado de todos os elementos do que nos autos se contém impõe uma análise que considere mais que apenas a leitura seca da Lei da Anistia e da Constituição da República, e se busque a interpretação que conduza à aplicação efetiva e eficaz de todo o sistema constitucional brasileiro, levando-se em consideração o momento político de transição do regime autoritário para o democrático no qual foi promulgada a Lei da Anistia. 113
Cármen Lúcia termina esse raciocínio afirmando que uma interpretação normativa
completamente alheia ao espírito a lei, que só pode ser compreendido levando em
consideração o momento histórico da sua promulgação, se converteria numa “revisão criminal
às avessas”, “na qual se superaria a realidade histórica e a eficácia de uma lei vigente há mais
de trinta anos”. 114
A ministra da Corte não justifica a interpretação histórica da forma pragmática
e técnica como o faz o ministro Eros Grau. Ao invés disso, ao longo de todo o seu voto fica
sempre claro que a interpretação histórica é uma opção, dentre outras, e que esta opção traz
consigo consequências. Nas palavras de Cármen Lúcia: A não se considerar os fins a que se destinou a Lei n. 6.683/79, quando de sua edição, a desconectando-se a norma do seu § 1o do art. 1o do momento e das contingências históricas, nas quais se deu a sua aceitação, não apenas pelo Congresso Nacional, mas também pela sociedade civil, grandemente representada, naquele instante, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, sem
112 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 11. 113 Ibid. , p. 13. 114 Ibid. , p. 12-14.
38
dúvida seria de se considerar que, inocorrendo conexão entre os crimes de tortura e os crimes políticos, não haveria como se considerar anistiados todos eles. O que se põe em causa, contudo, repita-se ainda uma vez, é se a interpretação da lei há de relevar o momento histórico em que ela, especificamente, foi criada e as finalidades – ainda que dramáticas para os cidadãos – por ela buscadas, para se dar um novo passo na caminhada rumo à retomada do Estado de Direito ou se, contrariamente, o presente não tem compromisso com este triste passado, porque até mesmo as instituições repensam e podem se contrapor ao quanto antes por elas mesmo decidido e publicamente exposto e comprometido. 115
Postas as duas opções, a juíza opta por interpretar a norma de 1979 à luz da sua história. 116
Mais criterioso com a utilização da interpretação histórica, o ministro Celso de Mello
representa ainda outro ponto nessa discussão. Na opinião dele o método hermenêutico que se
apoia no exame dos debates parlamentares de 1979, tal como apresentado por alguns de seus
colegas, é relativo sob a perspectiva da interpretação jurídica. “Na realidade, o argumento
histórico, no processo da interpretação, não se reveste de natureza absoluta nem traduz fator
preponderante na definição do sentido e do alcance das cláusulas inscritas no texto da
Constituição e das leis,” diz o ministro. Porém, ele justifica a utilização desse método 117
hermenêutico, pois: [...] qualifica-se como expressivo elemento de útil indagação das circunstâncias que motivaram a elaboração de determinado texto normativo inscrito na Constituição ou nas leis, permitindo o conhecimento das razões que levaram o legislador a acolher ou a rejeitar as propostas submetidas ao exame do Poder Legislativo, tal como assinala o magistério da doutrina. Daí a importância, para fins de exegese, da análise dos debates parlamentares, cujo conhecimento poderá orientar o julgador no processo de interpretação jurídica, ainda que esse critério hermenêutico não ostente, como já acentuado, valor preponderante nem represente fator que vincule o juiz no desempenho de suas funções. 118
Celso de Mello em seguida cita o discurso do ex-deputado, ex-senador e ex-ministro Paulo
Brossard, proferido em março de 1981. Mas, apesar do ministro se utilizar da interpretação
histórica, ele acredita que esta não deve ser determinante na interpretação jurídica.
Por último, para completar este quadro, observemos o voto do ministro Ayres Britto,
que votou contra a maioria. Britto se volta para Eros Grau, dizendo que o relator colocou
muita ênfase no contexto da lei mas não tanto na vontade objetiva da norma. “Ou seja, atentou
115 Ibid. , p. 17-18. 116 Ibid. , p. 19. 117 BRASIL, 2010, Voto do ministro Celso de Mello, p. 20. 118 Ibid. , p. 20-21.
39
bem mais para os precedentes da lei do que para lei em si,” critica o ministro. Ele 119
prossegue: Mas eu entendo que, no caso, as tratativas ou precedentes devem ser considerados secundariamente, porque o chamado “método histórico de interpretação”, em rigor, não é um método. É um paramétodo de interpretação jurídica, porque a ele só se deve recorrer quando subsiste alguma dúvida de intelecção quanto à vontade normativa do texto interpretado. Vontade normativa não revelada pelos quatro métodos tradicionais a que o operador jurídico recorre: o modo literal, o lógico, o teleológico e o sistemático. Ou seja, o método histórico não é para afastar a priori qualquer dúvida; não é para antecipadamente afastar dúvida de interpretação. É para tirar dúvida por acaso remanescente da aplicação dos outros métodos de interpretação. E, nesse caso da Lei da Anistia, eu não tenho nenhuma dúvida de que os crimes hediondos e equiparados não foram incluídos no chamado relato ou núcleo deôntico da lei. 120
Aqui temos uma posição radicalmente distinta da do relator. Para Ayres Britto, “o que
interessa é a vontade objetiva da lei, não é a vontade subjetiva do legislador.” Isso não 121
significa que o ministro não recorra à história na sua argumentação. Pelo contrário, ele
discorre sobre a natureza da tortura e os seus contornos durante o regime militar, conforme
destacado anteriormente. Porém, justifica sua incursão na história, dizendo: “Estou tentando
aqui seguir o método hegeliano [sic], não de análise dos fatos históricos linearmente, mas de
compreensão histórica dos fatos, que é outra categoria, é outra postura interpretativa.” 122
Tabela com votos resumidos
Para sintetizar as principais questões colocadas, segue um quadro ilustrativo que
dispõe, de forma sintética, os temas analisados ao longo do capítulo e as principais colocações
de cada ministro em cada tema. Como o papel da análise histórica na interpretação jurídica 123
não é propriamente um tópico discutido pelos ministros e, dessa forma, difere dos outros
pontos analisados, não foi incluído no quadro. Além disso, os usos da história pelos
magistrados ocuparão todo o próximo capítulo e portanto não acredito ser oportuno antecipar
esta discussão.
119 BRASIL, 2010, Voto do ministro Ayres Britto, p. 3. 120 Ibid. , p. 4. 121 Ibid. , p. 8. 122 Ibid. , p. 7. 123 Nos casos onde um determinado ministro não faz menção à determinado tema, utilizo “--”. Por questões de espaço, apresento cinco ministros em um primeiro quadro e quatro em um segundo, logo abaixo.
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Temas
Votos
Eros Grau Cármen Lúcia Ellen Gracie Marco Aurélio Celso de Mello
O pacto pela anistia: a ideia de um acordo em torno da promulgação da lei
Exalta o caráter heróico da luta pela anistia e enaltece o pacto, enfatizando a sua importância na transição democrática e reconhecendo o seu caráter bilateral.
Vê alta participação popular nos movimentos pela anistia e afirma que a lei resultou de pressão social e foi objeto de amplo debate.
Apesar de se tratar de argumentação política e não jurídica, houve uma “verdadeira concertação” que permitiu a abertura; negar a existência do pacto seria recusar validade à história.
-- --
A hipótese de revisão
Apenas o poder legislativo poderia rever a lei da anistia.
Afirma que aspectos da lei são incompatíveis com a constituição e injustos, e que a lei poderia ser evidentemente revista pelo legislativo, mas não pelo judiciário, pois é uma lei do direito penal e portanto não pode retroagir se não for para beneficiar o condenado.
-- Toca indiretamente no princípio da irretroatividade penal ao dizer que a lei da anistia aboliu os crimes e é uma lei penal em sentido inverso.
Uma vez editada, os efeitos jurídicos da lei da anistia não podem ser suprimidos por legislação superveniente sob pena de incidir em aplicação retroativa de leis gravosas, o que é proibido constitucionalmente.
A Emenda Constitucional n. 26/85: o lugar da anistia na nova ordem constitucional
EC 26 inaugura nova ordem constitucional e portanto constitucionaliza a anistia.
Não concorda com avaliação de que EC integra nova ordem; ressalta que essa argumentação é irrelevante ao caso pois a óbice imposta à persecução judicial de torturadores tem sido a Lei 6.683/79 e não a EC 26/85, e como ambos os
-- -- --
41
textos são iguais em relação à anistia, uma nova interpretação da Lei da anistia traria automaticamente uma nota interpretação da EC n. 26.
O sentido dos “crimes conexos” e a violência estatal
A conexão na Lei da anistia é uma conexão sui generis, própria do momento histórico da promulgação da lei, intencionalmente redigido para incluir na anistia os agentes do regime militar. Expressa “vigorosa e reiteradamente” que a decisão de improcedência da ação não exclui repúdio a todas as modalidades de tortura, mas estabelece uma relação de equivalência entre a tortura praticada por civis e militares.
Não há conexão técnico-formal dos crimes de tortura com qualquer outro crime, incluindo crimes políticos, porém a interpretação da lei deve ser feita levando em conta seu contexto histórico e as finalidades buscadas. Além disso, considera que tortura é barbárie, ato desumano de um ser animal.
Anistia é necessariamente mútua; é o seu objetivo de pacificação social que confere à anistia caráter bilateral.
Lei traz definição própria de conexão. Os “desvios de conduta” cometidos pelo regime se dizem relacionados com crimes políticos porque ocorreram a pretexto de combater “aqueles que se insurgiram”.
Lei da anistia promoveu uma interpretação autêntica do termo “crime conexos” e se fez inequivocamente bilateral; a opção de estender o benefício da lei para além dos crimes políticos era admitida pela doutrina da época e portanto legítima. Considera que torturadores são personagens sinistros dentro de instituições sombrias, que praticam atos de covardia.
Direito à verdade
Lei da anistia não impede acesso à informação; impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ocultam a verdade.
O Estado brasileiro tem o dever de investigar o que ocorreu na ditadura; o povo tem o direito de conhecer a verdade para lembrar para que nunca mais aconteça.
O conhecimento do passado não é obstaculizado pela anistia mas sim por outras normas que cobrem de sigilo certos documentos.
-- Governo militar privilegiou o sigilo e a transparência é característica fundamental de governos democráticos; sociedade tem direito de esclarecer o que aconteceu na ditadura e anistia não representa óbice.
42
Prescrição dos crimes
A matéria da prescrição não prejudica a apreciação do mérito, visto que somente se ultrapassada a interpretação ampla da anistia poderia se apurar a prescrição.
Verificação de prescrição depende da avaliação de mérito da ação; se uma nova interpretação (que não inclua crimes de tortura) prevalecer, prescrição será avaliada caso a caso.
-- Votou por extinguir a ação antes da análise de mérito. Ministros estão atuando no vácuo pois todos os crimes cometidos na ditadura estão prescritos e portanto a reinterpretação da lei não surtirá efeitos.
Pretensão punitiva do Estado está atingida pela prescrição penal, cujo prazo maior de prescrição criminal é de 20 anos.
Temas
Votos
Cezar Peluso Gilmar Mendes Ricardo Lewandowski
Ayres Britto
O pacto pela anistia: a ideia de um acordo em torno da promulgação da lei
Lei nasceu de um acordo costurado por quem tinha legitimidade à época de celebrar um pacto nacional.
Anistia representa resultado de um compromisso constitucional que tornou possível o retorno ao Estado de Direito.
Rejeita existência de um acordo e afirma que anistia foi concedida pelos militares, de forma controlada, em reação à pressão popular e desestabilização do regime.
--
A hipótese de revisão
Não há possibilidade de revisão legislativa porque a lei da anistia operou todos os seus efeitos no momento em que incidiu e apagou todos os crimes, portanto qualquer lei que revogue a anistia será lex gravior e por isso não pode retroagir, pois só retroage lei penal benéfica ao réu;
Cita o jurista Aníbal Bruno para dizer que a anistia “uma vez concedida, não pode ser revogada”.
-- --
A Emenda Constitucional n. 26/85: o lugar da anistia na nova
-- EC 26 rompe com ordem constitucional anterior e inaugura nova ordem,
Rejeita argumentação de Grau e ressalta que a constituição não ratificou a anistia tal como descrita na Lei
EC 26 é apenas prefacialmente constituinte, não integra nova ordem, e relativizou a
43
ordem constitucional
qualquer mudança na EC colocaria em risco toda a ordem constitucional vigente.
6.683, e sim declarou a anistia em outros termos, para beneficiários distintos, no art. 8o do ADCT.
anistia.
O sentido dos “crimes conexos” e a violência estatal
Conexão no sentido da lei é única, definido pela própria lei, com objetivo explícito de incluir agentes do regime militar. Durante a ditadura havia um contexto de conflito sócio-político e de luta pelo poder que situa os crimes contra o regime e os crimes contra os opositores na mesma moldura histórica, justificando a anistia para os dois lados.
Não faz menção ao sentido dos crimes conexos, mas discute a amplitude da anistia e defende que esta é própria ao caráter pactual da lei; a anistia foi abrangente o bastante para abarcar todas as posições ideológicas existentes no período, não havendo incompatibilidade da amplitude com a CF de 1988. A perspectiva ideológica não justifica o crime; introduzir compreensões morais acerca da natureza justificadora da violência seria inaceitável.
Rejeita a interpretação de uma conexão sui generis e argumenta que a simples menção à conexão no texto da lei não estabelece o vínculo material entre os dois tipos de crimes.
Não enxerga clareza na suposta conexão da lei; quem a redigiu não teve coragem de assumir a intenção de anistiar agentes da repressão. Torturador é um monstro, um tarado e desnaturado; casos de tortura foram excessos dentro de um regime de exceção; torturadores desonraram as Forças Armadas e a maioria dos militares não compactuou com a tortura.
Direito à verdade
-- -- -- --
Prescrição dos crimes
Não há interesse legítimo que justifique a procedência da ação uma vez que todas as ações penais estão prescritas; julgamento não tem nenhuma repercussão de ordem prática ou jurídica.
A ocorrência (ou não) da prescrição deverá ser analisada caso a caso se a interpretação vigente da anistia for declarada inconstitucional; suposta prescrição não prejudica a apreciação da ADPF.
A matéria da prescrição deve ser examinada antes de eventual abertura de ação penal e portanto não interfere na ADPF; recorda também que o STF já decidiu em outro caso que o desaparecimento forçado é um crime de caráter permanente e portanto não prescreve.
Estado estava impedido de deflagrar persecução criminal por conta da Lei da Anistia; a análise de prescrição só pode ocorrer uma vez que o Estado puder desencadear a persecução.
44
A partir do quadro desenhado, espero que o leitor possa mapear os temas centrais do
julgamento da ADPF e visualizar as nuances nas argumentações de cada ministro,
melhorando suas condições de acompanhar uma análise mais aprofundada sobre certos
aspectos desses votos.
45
Capítulo II: Os usos da história na ADPF 153
Ao analisar o teor da fonte sob exame, percebi que os juízes periodizam e discutem o
contexto histórico da lei para colocar a anistia às vezes no passado, outras no presente, com
objetivos similares. A história que aparece nos votos está intimamente ligada às construções
temporais. Mesmo algumas das justificativas dos ministros pela impossibilidade de
reinterpretação da lei estão fundamentadas em argumentos históricos e ligadas ao tempo da
anistia.
Desta forma, neste capítulo o objetivo é analisar como a história aparece nos votos dos
ministros do STF na ADPF 153, sob duas dimensões. Primeiro, irei observar como eles
operacionalizam a história: como eles constroem e utilizam argumentos históricos como
elemento de persuasão e como interpretam e analisam o contexto histórico da Lei da Anistia.
Inspirada por leituras de Reinhart Koselleck, Paul Ricoeur e Berber Bevernage, dentre outros,
me interesso principalmente pela dimensão temporal da construção histórica. Como os
ministros utilizam a história para articular passado, presente e futuro em seus votos? E quais
as consequências disso na construção do voto vencedor?
Em segundo lugar, compreendendo o métier do historiador na sua dimensão de
práticas de historicização, irei observar como os ministros colocam em uso essas práticas em
suas argumentações. Em outras palavras, como eles aplicam os procedimentos do fazer
histórico; principalmente, como eles periodizam e como colocam determinados objetos no
passado ou no presente.
No livro History, Memory, and State-Sponsored Violence , publicado em 2012, o
filósofo e historiador Berber Bevernage traz novas contribuições para os debates sobre
memória, trauma e justiça. Nele, o autor questiona: “O que significa algo ou alguém ser ‘do
passado’ e como coisas, pessoas ou eventos se tornam passado?” O autor aponta para uma 124
característica da história com alto potencial político: sua capacidade de regular a distância
temporal. Em outras palavras, de determinar o que é passado. Ele nos lembra que a distância
entre passado e presente não é um dado natural e sim uma construção histórica, para então
definir o conceito de performatividade da história: Esse entendimento – de que o distanciamento entre passado e presente não resulta simplesmente da passagem do tempo, mas é alguma coisa que deve ser ativamente
124 BEVERNAGE, Berber, History, Memory, and State-sponsored Violence: time and justice. 1a ed. Nova Iorque e Oxford: Routledge, 2012, p. 5. Tradução minha, no original: “What does it actually mean for something or someone to be ‘past’ and how do things, person, or events become past?”
46
buscada – sustenta uma das proposições centrais deste trabalho. Ao invés de ser um quadro analítico neutro, argumento que a história pode ser performativa. Com isso eu quero dizer que a linguagem histórica é utilizada não somente para descrever a realidade (o chamado uso ‘constatativo’ da linguagem) como também pode produzir efeitos sócio-políticos substanciais e que, em certa medida, pode tornar realidade situações que ela meramente pretende descrever (o chamado uso ‘performativo’ da linguagem). 125
Esta é a ideia norteadora desta pesquisa. A operação de historicizar, em si, é performativa e
traz consigo consequências. Determinar o que é passado e o que é presente, definir o que está
na história ou não, tudo isso pode ser operacionalizado para atingir certos objetivos e produzir
significados distintos.
Em artigo de 2014 intitulado Transitional justice and historiography: challenges,
dilemmas and possibilities, Bevernage passa a usar o termo historicization para designar o ato
de colocar qualquer coisa no passado, o dotando de caráter histórico. Para o autor, uma das 126
características do processo de justiça de transição é a determinação simbólica do que é
passado, ou a regulação da distância temporal. A tarefa da “historicização” é uma tarefa do 127
historiador profissional, mas, analisando os contextos pós conflitos, Bevernage aponta que as
diversas instituições envolvidas na justiça de transição também fazem parte do que ele chama
de ‘politics of time’. No caso das Comissões da Verdade, ele argumenta que: “[...] essas 128
comissões não deveriam ser consideradas mecanismos que meramente refletem sobre o
passado retrospectivamente, mas sim que ativamente constituem e regulam as categorias de
passado e presente”. Ou seja, o poder de historicizar não constitui uma prerrogativa 129
exclusiva dos historiadores, como fica claro no voto da ADPF 153.
Isso não significa afirmar que outros atores que se utilizam da história e de suas
ferramentas estejam produzindo história, entendida como disciplina acadêmica. Significa que
eles, ao usarem a história, convocam, mobilizam ou reconstroem memórias sobre o passado,
125 Ibid., p. 15. Tradução minha, no original: “This understanding – that the distancing of past and present does not simply result from the passing of time but is something that must be actively pursued – underpins one of the central propositions of this work. Instead of being a neutral analytical frame, I will argue, history can be performative. By this I mean that historical language is not only used to describe reality (the so-called ‘constative’ use of language) but it can can also produce substantial socio-political effect and that, to some extent, it can bring into being the state of affairs it pretends merely to describe (the so-called ‘performative’ use of language).” 126 BEVERNAGE, Berber. Transitional Justice and Historiography: Challenges, Dilemmas and Possibilities. Macquarie Law Journal, Sydney: Macquarie University, v. 13, 7-24, 2014. 127 BEVERNAGE, 2012, p. 8. 128 BEVERNAGE, 2014, p. 8. 129 Ibid. , p. 18. Tradução minha, no original: “I have argued that these commissions should not be considered as mechanisms that merely reflect on the past retrospectively, but rather as actively constituting and regulating the categories of past and present.”
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exprimindo tendências da sociedade em que vivem. Além disso, levando em consideração o
conceito de performatividade , essa utilização do argumento histórico e das ferramentas de
historicização podem sim produzir novos significados históricos , trazendo consigo
consequências para as relações entre passado e presente.
Certos argumentos de natureza jurídica também cumprem o papel de temporalizar a
anistia na discussão da ADPF 153, como é o caso das discussões sobre as leis-medida, o
caráter constituinte da Emenda Constitucional n. 26 de 1985, a prescrição e o princípio da
irretroatividade penal. Desta forma, irei me ater a essas questões jurídicas na medida em que
elas dizem respeito ao tempo, matéria do historiador. É evidente que não irei debater a
validade desses argumentos no âmbito do Direito, mesmo porque essa perspectiva não
contribuiria para a compreensão da relação entre tempo e história. O que é relevante para a
pesquisa são as consequências destes debates jurídicos na construção de temporalidades.
Seguindo a lógica estabelecida de que o voto do ministro relator Eros Grau foi um
voto emblemático da decisão vencedora, apesar das nuances entre aqueles que votaram com
ele, neste capítulo irei me apoiar principalmente nas palavras de Grau e incluirei trechos dos
votos dos demais ministros quando e onde haja uma intersecção.
Entretanto, antes de mergulhar na análise dos votos, faço uma breve digressão para
refletir sobre os paradigmas interpretativos que guiaram esse capítulo. As ideias expostas nas
cartas do filósofo e antropólogo Bruno Latour foram a fundação estrutural que me permitiu
uma nova leitura da fonte; uma leitura com outro olhar. Latour escreveu seis cartas sobre as
humanidades científicas para uma suposta aluna alemã, explicando o curso sobre o mesmo
assunto que ele ministrou na Sciences Po de Paris. Logo no início da primeira carta, Latour
chega a uma contradição aparentemente insuperável: por um lado, o senso comum sobre o
isolamento e a autonomia das ciências em relação ao mundo político; por outro lado, a
multiplicação de evidências das relações entre ambos os mundos. Como conciliar esses
opostos? Latour responde: “Não se pode fazer nada: torna-se necessário aceitar os dois
argumentos simultaneamente .” Nesse momento ele pede a seus alunos que tenham 130
paciência, desacelerem: “diante de uma contradição a princípio insuperável, não mergulhar
nela de cabeça, mas sim tomá-la como um objeto”. Latour incita os seus alunos a “aprender 131
a transformar o que habitualmente serve de explicação naquilo que, ao contrário, deve ser
130 LATOUR, Bruno. Cogitamus: Seis cartas sobre as humanidades científicas. 1a ed. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 16. 131 Ibid. , 16-17.
48
explicado”. Não sou aluna de Latour, mas transformei os seus conselhos em ferramentas 132
para esta pesquisa. Assim, optei por me concentrar sempre no processo de construção dos
argumentos dos ministros e não na forma final que eles tomam, abraçando a contradição onde
ela surge.
A problematização da utilização de argumentos históricos em um documento de
natureza jurídica não se trata exclusivamente de uma questão de subjetividade ou
objetividade, como alguns podem supor. A história e as práticas de historicização, quando
instrumentalizadas, criam possibilidades de usos e de temporalização que por sua vez
constroem significados múltiplos, diferentes e mesmo assim possíveis. Tratar do uso da
história apenas como uma questão de (falta de) objetividade reduz a potencialidade de sua
performatividade. Como veremos neste capítulo, a história pode tanto conter a anistia no
passado quanto reafirmar sua importância no presente, ao mesmo tempo e com objetivos
similares.
Ao sustentar esta dupla possibilidade, Grau formula um conjunto de argumentos, entre
os quais se destacam, as leis-medida, o suposto acordo que persiste, a escolha de exemplos
jurisprudenciais e a periodização da transição para a democracia. Além disso, incluo no final
desse capítulo alguns argumentos técnico-jurídicos usados por outros ministros que também
são relevantes para as discussão sobre o tempo e a anistia.
Operacionalização da história e consequências temporais
A lei-medida: anistia encerrada no passado
Um dos grandes argumentos do ministro relator Eros Grau diz respeito à interpretação
da Lei da Anistia de 1979 como uma lei-medida. Esse argumento é a base sobre a qual Eros
Grau constrói todo o seu voto, ele é a premissa que justifica a análise optada pelo relator.
Conforme observado no capítulo anterior, o ministro Eros Grau inicia o seu voto com
“primeiras considerações” sobre a interpretação legal. Para Grau, “todo e qualquer texto
normativo é obscuro até o momento da interpretação”. O ministro faz a distinção entre a 133
dimensão textual e a dimensão normativa da lei. As leis “enquanto textos, enunciados,
disposições, não dizem nada: elas dizem o que os intérpretes dizem o que elas dizem”. É o 134
132 Ibid. , p. 17. 133 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 4. 134 Ibid. , p. 5.
49
ato de interpretar que transforma o texto em norma, que insere o direito na realidade. Desta
forma, A interpretação do direito tem caráter constitutivo – não meramente declaratório, pois – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso. 135
A interpretação ou aplicação da lei “se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o
enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não no contexto da redação do
texto.” É o juiz que transforma o texto em norma pelo ato de interpretar. Com isso, é o juiz 136
que atualiza o passado (texto) em presente (norma). A norma é sempre construída no presente,
levando em consideração o contexto do presente.
Até a quinta página do voto do relator, há a possibilidade de uma reinterpretação da
Lei da Anistia conforme o contexto atual; ou seja, possibilidade de rever uma decisão do
passado à luz das inquietações do tempo presente. Porém, logo na quinta página, no parágrafo
11, Grau acende o sinal amarelo. Apesar de ter afirmado no parágrafo anterior a relação entre
a interpretação e o tempo presente, ele escreve: Observo apenas, quanto a este primeiro ponto, aspecto ao qual adiante retornarei. É que – como a interpretação consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas – cumpre definirmos qual a realidade, qual o momento da realidade a ser tomado pelo intérprete da Lei n.6.683/79. 137
Essa ponto fica em aberto até página 19, quando Grau retoma a questão na seção “A
interpretação do direito e as leis-medida”. No início deste meu voto detive-me em digressão a respeito da interpretação do direito. Torno a ela, mas não me olhem assim. Não pretendo promover aqui, como diria nosso José Paulo Sepúlveda Pertence, um seminário jurídico. Desejo somente relembrar o quanto anteriormente observei: a interpretação do direito tem caráter constitutivo – não meramente declaratório, pois – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso. Interpretamos sempre os textos e a realidade. Daí – o que venho reiteradamente afirmando – que o direito é um dinamismo, donde a sua força, o seu fascínio, a sua beleza. É do presente, da vida real, que se tomam as forças que lhe conferem vida. E a realidade social é o presente; o presente é vida – e vida é movimento. Assim o significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Essa afirmação aplica-se exclusivamente, contudo, à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas que chamamos de leis-medida. 138
135 Ibid. , p. 4. 136 Ibid. , p. 5. 137 Ibid. 138 Ibid. , p. 19.
50
Apaga-se o sinal amarelo; acende-se o vermelho. Na definição de Grau: “As
leis-medida ( Massnahmegesetze) disciplinam diretamente determinados interesses,
mostrando-se imediatas e concretas. Consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo
especial.” As leis-medida trazem em si mesmas o resultado pretendido. Para Grau, 139
diferentemente de outras leis, as leis-medida não são leis no sentido material, apenas no
sentido formal; são leis não-norma. Assim, elas não dependem da interpretação do juiz –
levando em consideração o contexto presente – para serem materializadas ou inseridas na
realidade atual. A lei-medida se exaure em si mesmo.
Por isso, segundo o exposto no final do capítulo anterior, as leis-medida devem ser
interpretadas à luz do momento histórico no qual ela foi editada. É a realidade histórico-social
da migração da ditadura para a democracia política que há de ser considerada na análise da
Lei n. 6.683 de 1979. O relator reafirma esse vínculo com o passado ao escrever: A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política naquele momento – o momento da transição conciliada de 1979 – assumida. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. Para quem não viveu as jornadas que a antecederam ou, não as tendo vivido, não conhece a História, para quem é assim a Lei n. 6.683 é como se não fosse, como se não houvesse sido.
Nesse momento fica claro a relação temporal da lei da anistia com o passado. O que proíbe a
lei-medida de ser reinterpretada de acordo com os preceitos do tempo presente é exatamente a
sua inserção absoluta no passado.
A discussão normativa sobre as leis-medida é uma das ferramentas utilizadas para
situar a Lei da Anistia dentro de uma temporalidade específica: encerrada no passado. Por sua
vez, este caráter temporal será utilizado para defender a não-revisão da lei. Penetrando a
superfície jurídica do debate das leis-medida, podemos chegar à discussão subjacente e
invisível sobre o tempo. Além disso, a ênfase no contexto de 1979 traz consigo outro
consequência: a reafirmação do caráter irreversível do tempo histórico.
A irreversibilidade do tempo histórico
Para explorar a relação entre a irreversibilidade do tempo histórico em contrapartida à
reversibilidade do tempo jurídico, retomo o diálogo com as ideias de Berber Bevernage. Uma
das questões centrais de History, Memory, and State-Sponsored Violence é explorar as
139 Ibid. , p. 20.
51
relações entre o “tempo da história” e o “tempo da justiça” no contexto da justiça de transição,
onde há tanto uma necessidade de esquecimento (para a reconciliação) quanto de memória
(para a justiça). Bevernage concorda com o diagnóstico de François Hartog de que vivemos
em um contexto de modernidade fragilizada, onde a articulação entre passado, presente e
futuro está sendo ameaçada pela inconfortável presença do passado e, portanto, a separação
entre o passado e o presente – fundamental para a história acadêmica moderna – está cada vez
mais débil. Observando o surgimento das comissões da verdade a partir da década de 1980, o
autor interpreta a ênfase na “verdade” (como alternativa à “justiça”) como uma virada para a
história e uma tentativa de invocar a noção de irreversibilidade do tempo. O 140
restabelecimento da irreversibilidade do tempo também tem como consequência a restauração
da separação entre passado e presente. A virada para história seria uma tentativa de atenuar a
incômoda força da memória: A história, então, é introduzida no campo da justiça de transição não apesar de uma memória já abundante e sim por causa desta memória. Políticas de transição são muitas vezes interpretadas como a busca pelo equilíbrio entre memória excessiva e esquecimento excessivo, mas a minha tese é de que o atual campo de justiça de transição é uma arena para duas formas conflitantes de lembrar que são movidas por características temporais opostas. 141
A utilização do argumento histórico como forma de reafirmar a irreversibilidade do
tempo é uma estratégia que permeia os votos dos ministros, apesar de não ser explicitamente
definida como tal. Para a ministra Ellen Gracie: “Não é possível viver retroativamente a
história, nem se deve desvirtuá-la para que assuma contornos que nos pareçam mais
palatáveis.” Ao dizer que não é possível viver retroativamente a história, a ministra reafirma 142
o sentido unidirecional e irreversível do tempo histórico.
Essa absoluta identificação da lei da anistia com o contexto de sua promulgação
também acaba produzindo a ideia de que o que a OAB quer que seja julgado é o passado, os
fatos históricos do passado. “Não há como julgar o passado com os olhos apenas de hoje,
desconhecendo o que se fez, se ajustou e se comprometeu, produzindo efeitos alguns dos
140 BEVERNAGE, 2012, p. 11-15. 141 BEVERNAGE, 2012 p. 15. Tradução minha, no original: History, then, is introduced in the field of transnational justice not despite an already overabundant memory but because of it. Transnational politics are often interpreted as a search for a proper balance between too much memory and too much forgetting, but it is my thesis that the current field of transnational justice is an arena for two conflicting ways of remembering that are driven by contrary temporal features. 142 BRASIL, 2010, Voto da ministra Ellen Gracie, p. 3.
52
quais exauridos no tempo”, disse Cármen Lúcia. A história se torna argumento para 143
reafirmar a impossibilidade de revisão.
Acordo que persiste no presente
Na página 27 de seu voto o ministro Eros Grau trata especificamente da
“Interpretação e revisão da lei da anistia”. Nesta seção do voto, Grau afirma, citando um
trecho do Comentários à Constituição Brasileira de Carlos Maximiliano publicado em 1948
, que qualquer possibilidade de revisão da lei é competência exclusiva do Poder Legislativo. 144
Curiosamente, a mesma citação faz referência à competência do poder judiciário para
“interpretar o decreto da anistia, verificando e traduzindo o sentido do texto, determinando o
alcance da providência quanto aos fatos a que se aplica e às pessoas a que aproveita”. Ou 145
seja, cabe ao legislativo rever e ao judiciário interpretar. Grau não comenta esse trecho da
citação, possivelmente porque a questão da interpretação da lei da anistia já havia sido
determinada anteriormente ao enquadrá-la no mundo das leis-medida. Mesmo cabendo ao
judiciário interpretar, qualquer interpretação, sendo a lei da anistia uma lei medida, está
restrita ao contexto histórico da promulgação da lei.
Logo no parágrafo seguinte, Grau escreve: A Arguente questiona, na inicial, a existência de um acordo para permitir a transição do regime militar ao Estado de Direito: “[Q]uem foram as partes nesse acordo?” – indaga. Não há porém dúvida alguma quanto a tanto. Leio entre aspas o que diz o ex-Ministro da Justiça, Tarso Genro: “Houve, sim, um acordo político feito pela classe política”. E mais diz ele, diz que esse acordo, como outros não impõe cláusulas pétreas. Que o seja, mas é certo que ao Poder Judiciário não incumbe revê-lo. Dado que esse acordo resultou em um texto de lei, quem poderia revê-lo seria exclusivamente o Poder Legislativo. 146
A lei é o produto do acordo, mas onde termina uma e começa o outro não está tão claro nessa
fala do relator. Na frase “é certo que ao Poder Judiciário não incumbe revê-lo”, revê-lo faz
143 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 19. 144 Carlos Maximiliano foi um reconhecido constitucionalista e personagem público na política brasileira durante a primeira metade do século XX. Foi Ministro da Justiça entre 1914 e 1918, ano em que publicou a primeira edição de Comentários à Constituição, e nomeado ao STF por Getúlio Vargas em 1936. Os seus Comentários foram escritos com base na Constituição Federal de 1891, mas lhe garantiram um reconhecimento que sobreviveu às sucessivas substituições da Carta Magna e a obra continua a ser citada, por múltiplos ministros do STF, mesmo sob vigência da Constituição de 1988. Cf. ABÁSOLO, Ezequiel. Os “Comentários à Constituição” de Carlos Maximiliano Pereira dos Santos e a repercussão da cultura jurídica argentina no Brasil durante a primeira metade do século XX. Cadernos do Programa de Pós-Graduação Direito/UFRGS, Porto Alegre: UFRGS, v. X, n. 3, 2015, p. 45-47. 145 MAXIMILIANO, Carlos, 1948, apud BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 28. 146 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 28.
53
referência ao acordo, não à lei. A frase seguinte é mais ambígua, pois insere o objeto do
“texto de lei”. De qualquer forma, rever a lei está intimamente ligado a rever o acordo. E o
que isso significa, para nós, historiadores, interessados em técnicas de historicização e
temporalidades?
Se a revisão da lei, no tempo presente, está conectada à revisão do acordo, então por
conseguinte tal acordo ainda está vigente, junto com a lei. O acordo persiste, ele não se
encerra em 1979. O acordo, na visão de Grau, teve como consequência uma transição pacífica
e conciliada, “suave”, além de ter permitido a redemocratização do país. Para Grau, a
promulgação da lei da anistia é considerada “o fim do regime de exceção”, como será
discutido adiante. “Sem ela, não teria sido aberta a porta do Colégio Eleitoral para a eleição
do ‘Dr. Tancredo’, como diziam os que pisavam o chão da História”, segue o ministro. O 147
acordo, como pré-condição para a redemocratização, continua vivo e necessário em 2010. É
por isso que Grau acusa aqueles que negam a existência de um acordo de quererem
reconstruir a história, conforme esse trecho do voto já citado no primeiro capítulo: Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). [...] Para como que menosprezá-la, diz-se que o acordo que resultou na anistia foi encetado pela elite política. Mas quem haveria de compor esse acordo, em nome dos subversivos? O que se deseja agora, em uma tentativa, mais do que reescrever, de reconstruir a História? Que a transição tivesse sido feita, um dia, posteriormente ao momento daquele acordo, com sangue e lágrimas, com violência? Todos desejavam que fosse sem violência, estávamos fartos de violência. 148
Nesse trecho as múltiplas temporalidades se encontram. O texto da lei de 1979, o seu contexto
histórico, as múltiplas e divergentes interpretações (históricas) deste contexto no presente e a
demanda de uma reinterpretação (legal) do texto da lei em 2010; todos esses momentos
convivem juntos na argumentação.
A lei-medida , resultante de um acordo, ancora-se num passado irreversível mas que
continua produzindo efeitos na realidade atual. Por um lado, a lei da anistia não pode ser
revista porque ela está vinculada ao passado e deve ser interpretada no contexto de 1979,
levando em consideração as lutas e acordos políticos daquele tempo. Por outro, e como
147 Ibid. , p. 11. 148 Ibid. , p. 27.
54
consequência, ela também não pode ser revista porque revê-la significaria rever o acordo no
tempo presente, acordo esse que parece ser condição subjacente para a própria existência do
presente (compreendido como regime democrático).
Essas discussões tanto sobre a lei-medida quanto sobre o acordo nos levam a uma das
hipóteses deste trabalho: ao longo dos votos os ministros descrevem anistias distintas, com
temporalidades distintas, que convivem simultaneamente. A lei de anistia no voto do relator
está tanto encerrada no passado quanto viva no presente, ao mesmo tempo . Essas distintas
temporalidades são traduzidas em distintas concepções da anistia: a anistia possível e a anistia
fundamental. Apesar de terem características temporais contraditórias, ambas convivem no
voto do relator, como veremos a seguir.
Anistia possível e anistia fundamental
Nos votos dos ministros existe uma anistia possível , uma anistia que em 1979 não era
dada, não tinha um caráter inevitável. Pelo contrário, ela foi conquistada, mas foi possível na
medida em que houve um acordo inevitável na negociação política que incluiu a anistia aos
torturadores e excluiu a anistia aos crimes de sangue. E também existe uma anistia 149
fundamental, considerada peça chave no processo de abertura, essencial para o
reestabelecimento da democracia. Esse aspecto fundamental da anistia é utilizado para
justificar as deficiências da lei possível.
A ideia de anistia possível é reforçada pelo uso de citações dos atores que
participaram do contexto de sua aprovação, particularmente trechos do depoimento de Dalmo
Dallari e do parecer de Sepúlveda Pertence. Apesar desses trechos já terem sido citados no
capítulo anterior, retomo algumas partes aqui. Grau cita Dallari em 2006, relembrando 1979: Nós sabíamos que seria inevitável aceitar limitações e admitir que criminosos participantes do governo ou protegidos por ele escapassem da punição que mereciam por justiça, mas considerávamos conveniente aceitar essa distorção [...]. 150
As palavras de Sepúlveda Pertence, poderosas por terem sido escritas em agosto de 1979, no
calor do debate sobre a lei, reafirmam o sentimento de que houve um acordo explícito,
público e que contou com a consciência das partes envolvidas:
149 Apesar da anistia aprovada ter sido restrita, um ano depois da sua promulgação, no final de 1980, não havia mais presos políticos no Brasil. Os presos que não foram anistiados pela Lei n. 6.683 foram beneficiados por indultos, pelas reformulação da Lei de Segurança Nacional ou pela redução de penas, e alguns cumpriram sua pena por completo e foram soltos. Cf. GRECO, 2003. 150 DALLARI, Dalmo, 2006, apud BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 11.
55
Nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro da nossa História poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável como passo adiante no caminho da democracia. 151
Grau ainda utiliza outra citação de Pertence sobre o assunto, desta vez de uma
entrevista de 2010, onde o ex-ministro afirma que o alcance da anistia aos torturadores era o
“significado inequívoco do dispositivo” e que “sem alimentar esperanças vãs de que pudesse
ele ser eliminado pelo Congresso, [o parecer de 1979] concentrava a impugnação ao projeto
governamental no § 2o do art. 1o, que excluía da anistia os já condenados [...]”. É 152
interessante ressaltar que Grau não inclui considerações pessoais após estas citações; ele as
utiliza como afirmações, sem tecer quaisquer comentários ou analisá-las.
A ministra Cármen Lúcia, também em referência ao parecer de Sepúlveda Pertence,
faz a seguinte observação: Faça-se justiça a este grande brasileiro: os pecados do projeto por ele analisado – para se usar um vocábulo por ele aproveitado – são deixados patentes em seu parecer, a realçar que a anistia proporcionada não era irrestrita. Bem ao contrário, restringiu-se, pelo que sequer era o que aquela entidade, menos ainda a sociedade brasileira, gostaria de ter obtido. 153
A construção de uma ideia de anistia possível é também a afirmação de que ela não era a
ideal. Cármen Lúcia afirma que “não era com gosto de festa que se recebia o projeto; era com
críticas ácidas” mas com a responsabilidade de “aplainar o caminho para o advento do Estado
de Direito”. Em seguida, a ministra afirma que essa não foi a primeira anistia decretada em 154
fins de períodos ditatoriais no Brasil, Nem foi a mais justa ou ampla, geral ou irrestrita como pretendiam os brasileiros a anistia concedida. Foi a que conciliou para não se deixar de avançar e que, na época, frutificou com consequências graves, porque, tecnicamente, não se teria a conexão de crimes, efetivamente, como pretendido pela Arguente e pelos amici curiae. 155
Enquanto a anistia possível está encapsulada nos acontecimentos de 1979, sendo
desenhada e definida no embate entre os movimentos pró-anistia e as negociações políticas no
congresso, a anistia fundamental tem uma duração mais longa. Ela é fundacional para a
democracia e portanto ela continua existindo como pré-condição para a convivência pacífica
da sociedade brasileira. O acordo persiste, continua sendo necessário para garantir a
151 SEPÚLVEDA PERTENCE, J.P., 1979, apud BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 24. 152 SEPÚLVEDA PERTENCE, J.P., 2010, apud BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 25. 153 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 5. 154 Ibid. , p. 17. 155 Ibid.
56
reconciliação e a unidade da sociedade. Essa ideia aparece nitidamente no encerramento do 156
voto de Gilmar Mendes, onde ele termina também sua argumentação sobre a EC n. 26/85: Devemos refletir, então, sobre a própria legitimidade constitucional de qualquer ato tendente a revisar ou restringir a anistia incorporada à EC no 26/85. Parece certo que estamos, dessa forma, diante de uma hipótese na qual estão em jogo os próprios fundamentos de nossa ordem constitucional. Enfim, a EC no 26/85 incorporou a anistia como um dos fundamentos da nova ordem constitucional que se construía à época, fato que torna praticamente impensável qualquer modificação de seus contornos originais que não repercuta nas próprias bases de nossa Constituição e, portanto, de toda a vida político institucional pós-1988. 157
A ênfase nos objetivos da anistia em 1979 (a “reconciliação” e “pacificação” nacional,
a redemocratização e o estabelecimento de um Estado de Direito) é necessária pois justifica a
relevância continuada da anistia no presente. Essa ideia também aparece nos votos de Cármen
Lúcia, Ellen Gracie, Celso de Mello e Eros Grau. Ao realçar as finalidades da lei se confirma
o seu caráter fundamental. Nas palavras de Cármen Lúcia: Nenhuma dúvida me acomete quanto a não conexão técnico-formal dos crimes de tortura com qualquer crime outro, menos ainda de natureza política. [...] Mas não vejo como, para efeitos específica e exclusivamente jurídico-penais, nós, juízes, reinterpretarmos, trinta e um ano após e dotarmos de efeitos retroativos esta nova interpretação, da lei que permitiu o que foi verdadeiro armistício de 1979 para que a guerra estabelecida pelos então donos do poder com os cidadãos pudesse cessar. 158
A referência ao “verdadeiro armistício” que cessou uma “guerra” exemplifica o caráter
estruturante da anistia de 1979 em relação à democracia. Em outro trecho de seu voto, a
ministra diz: Repito: tomar-se a interpretação da Lei n. 6683/79 decotada do momento e das consequências históricas nas quais se deu seria mais fácil, mas seria preciso, para tanto, desconhecer o passado e determinar-se para o futuro sem qualquer apego ao quanto antes decidido, o que poderia chegar, em um momento, a se poder questionar tudo o que foi feito, incluída aí, o processo de criação da Constituição de 1988, que não se deu como queria, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil, um Congresso Constituinte, senão uma Assembléia legítima e exclusiva. Não se obteve o que se queria, mas o que se conseguiu é o que nos permite, agora, viver uma experiência democrática. 159
156 Em um artigo sobre o debate público sobre a Lei da Anistia em tempos da Comissão Nacional da Verdade em 2010, Cristina Buarque de Hollanda e Fernando Perlatto demonstram que as ideias de “reconciliação” e “pacificação” continuam vivas, tanto na imprensa quanto no próprio trabalho da Comissão. Cf. HOLLANDA, Cristina Buarque de; PERLATTO, Fernando. Entre a reconciliação e a justiça: a Lei da Anistia diante das Comissões da Verdade. In: ARAÚJO, Maria Paula; PINTO, António Costa (Orgs.). Democratização, memória e justiça de transição nos países lusófonos. 1a ed. Rio de Janeiro: Autografia; Recife: EDUPE, 2017. 322 p. 157 BRASIL, 2010, Voto do ministro Gilmar Mendes, p. 50. 158 BRASIL, 2010, Voto da ministra Cármen Lúcia, p. 19. 159 Ibid. , p. 20.
57
Aqui, o aspecto fundamental da anistia é enfatizado para afirmar que qualquer reinterpretação
da lei no presente teria consequências além do instituto da anistia em si, colocaria em risco
“tudo o que foi feito” durante a transição e que nos “permite” viver em uma democracia. A
insistência no passado é a afirmação da possibilidade do presente, uma defesa deste presente.
A análise do contexto da promulgação da lei permite os ministros destacar os objetivos da
anistia, que por sua vez são utilizados para justificar a sua necessidade no presente. É também
o fato da lei ter atingido a sua finalidade de “pacificação” e “reconciliação” que a torna
fundamental.
Utilização de ferramentas de historicização
Além da operacionalização da história como argumento persuasivo, nos interessam
também as práticas de historicização colocadas em marcha por Eros Grau e os outros
ministros. Uma das ferramentas de historicização e de regulação temporal é a periodização. O
ministro relator periodiza de duas formas distintas em seu voto. Uma delas é na escolha da
jurisprudência. Grau organiza uma longa história de legislações e decisões relevantes para o
caso em questão. Citar a jurisprudência relevante para um caso é uma ferramenta fundamental
da argumentação jurídica e por si só não é uma prática de historicização. Porém, optar por
determinada jurisprudência pode ser uma forma de inserir a discussão dentro de um marco
temporal específico. No caso em questão, a escolha da jurisprudência reflete também a
escolha de certas referências temporais (as do passado) sobre outras (as do presente);
determina um diálogo com um determinado tempo. A periodização aparece mais claramente
em outro momento: quando os ministros descrevem o período de transição para a democracia.
Jurisprudência e historicização
Grau organiza exemplos jurisprudenciais em três listas distintas. A primeira lista diz
respeito aos crimes conexos. A OAB argumenta em sua petição que a interpretação vigente da
Lei da Anistia seria inconstitucional por considerar crimes comuns como crimes conexos.
Nesse sentido, Grau reúne cinco exemplos de legislação que fazem alusão à crimes conexos,
dos seguintes anos: dois exemplos de 1916, 1930, 1934 e 1945. “Outrossim, a expressão
anistia ampla e irrestrita terá surgido no artigo 1o do decreto-legislativo 22, de 23 de maio de
1956 [...]” , adiciona o ministro. Ele conclui a argumentação sobre o tema dizendo que: 160
160 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 15.
58
Essa expressão, crimes conexos a crimes políticos, conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. Sempre há de ter sido assim. A chamada Lei da anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. 161
Na seção seguinte do voto, “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, Grau
organiza uma segunda lista, com a seguinte justificativa: “Importa em especial considerarmos,
no entanto, em relação ao caráter amplo das anistias concedidas entre nós, os julgados que
passo a rememorar, inicialmente os atinentes ao caráter amplo das anistias.” Ao todo, são 162
listado onze exemplos de recursos criminais e habeas corpus, dos seguintes anos: 1900, 1942,
1957 (dois exemplos), 1958, 1979 (quatro exemplos), 1982 e 2004. Após destacar esses
exemplos de “interpretação ampla e generosa” das distintas anistias ao longo da história, Grau
encerra a sessão com o seguinte comentário: “Há momentos históricos em que o caráter de um
povo se manifesta com plena nitidez. Talvez o nosso, cordial, se desnude na sucessão das
frequentes anistias concedidas entre nós.” A ministra Ellen Gracie elogia o voto do relator 163
ao ressaltar: “A importante digressão jurisprudencial feita pelo eminente relator demonstra
que outro não foi ao longo da História o entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto
ao instituto da anistia e sua bilateralidade.” 164
A terceira – e mais extensa – lista é um registro de trinta e cinco atos de anistia
decretados no período republicano, de 1891 até 1985. Após citar exemplos tão longínquos 165
como a anistia da oposição ao governo do Marechal Deodoro no Pará e a anistia decretada
após Revolta da Vacina, Grau pergunta: “Como deveríamos interpretar esses textos?
Tomando-se a realidade político-social do nosso tempo, nos dias de hoje, ou aquelas no bojo
das quais cada qual dessas anistias foi concedida?” Em seguida ele esmiúça o sentido de 166
crimes conexos nas anistias de 1916, 1930 e 1945, para demonstrar que o sentido da expressão
deve ser interpretado de acordo com “a realidade histórico-social do momento da anistia de
161 Ibid. 162 Ibid. , p. 17. 163 Ibid. , p. 19. 164 BRASIL, 2010, Voto da ministra Ellen Gracie, p. 2. 165 Lista completa elaborada por Eros Grau na página 21 do seu voto, parágrafo 37: Decreto n. 8/1891; Decreto n. 83/1982; Decreto n. 174/1893; Decreto n. 175/1893; Decreto n. 176/1893; Decreto n. 305/1895; Decreto n. 310/1895; Decreto n. 406/1896; Lei n. 533/1898; Decreto n. 1373/1905; Decreto n. 1599/1906; Decreto n. 2280/1910; Decreto n. 2687/1912; Decreto n. 2740/1913; Decreto n. 3102/1916; Decreto n. 3163/1916; Decreto n. 3178/1916; Decreto n. 3492/1916; Decreto n. 19395/1930; Decreto n. 20249/1931; Decreto n. 20265/1931; Decreto n. 24297/1934; Decreto-Lei n. 7474/1945; Decreto-Lei n. 7769/1945; Decreto-Lei n. 7943/1945; Decreto Legislativo n. 18/1951; Lei n. 1346/1951; Decreto Legislativo n. 63/1951; Decreto Legislativo n. 70/1955; Decreto Legislativo n. 16/1956; Decreto Legislativo n. 22/1956; Decreto Legislativo n. 27/1956; Decreto Legislativo n. 18/1961; Lei n. 6683/1979; Lei n. 7417/1985. 166 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 21.
59
que se trata”. Ou seja, ao demonstrar que a realidade desses momentos históricos em 167
particular se difere da nossa realidade atual, ele tenta nos convencer de que não faz sentido
interpretar leis da anistia com as lentes do presente.
Desta forma, a lei de 1979 (enquanto norma legal), os seus elementos (a alusão a
crimes conexos) e a sua interpretação (no que diz respeito à amplitude) são inseridos pelo
ministro em uma longa tradição legislativa e normativa. A anistia de 1979 passa a ser mais
uma dentre muitas outras anistias; um ponto em uma linha do tempo que se estende da
fundação da república, atravessa o presente e segue futuro adentro. A ênfase está situada na
continuidade e na repetição, não na eventualidade ou excepcionalidade.
Há ainda outra consequência desta periodização. Ao inserir a lei dentro de uma longa
tradição que remonta à virada do século XIX, Grau está removendo-a do tempo presente. Mas
é dentro da discussão sobre justiça de transição da primeira década do século XXI que se
insere a ADPF 153, mesmo se o ministro deixa de dialogar com os debates atuais. Ao
defender que não faz sentido interpretar a anistia de 1916, de 1930 ou de 1945 com os
parâmetros da atualidade, Grau ignora uma particularidade central da anistia de 1979, a única
que está sob análise na ADPF em questão: as consequências desta anistia, em particular, ainda
estão sendo sentidas e discutidas em 2010. Nesse sentido, a Lei 6.683/1979 difere das outras
anistias nessa longa tradição pois a sua reversibilidade ainda teria efeitos palpáveis no tempo
presente; é no presente que os pressupostos da transição estão sendo debatidos pelos
militantes, familiares de vítimas, acadêmicos, etc. A interpretação das leis-medida agrava esta
construção temporal ao inserir qualquer discussão sobre a Lei da Anistia no âmbito do debate
de 1979, afastando-a completamente do debate de 2010. Nas palavras de Grau: “É da anistia
de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão
qual foi na época conquistada.” 168
O exemplo do ministro Ricardo Lewandowski, que diferiu de Grau em seu voto e
julgou parcialmente procedente a ação, serve como um útil contraponto na escolha da
jurisprudência analisada. Lewandowski também dedica uma seção do seu voto ao tema, “Dos
crimes políticos e crimes conexos na jurisprudência do STF”. Porém, sua escolha é
completamente distinta da do relator. Os casos citados pelo ministro são de 1997, 2003 e
2009. Desta forma, nota-se a escolha por inserir o julgamento no debate jurisprudencial atual.
167 Ibid. , p. 22. 168 Ibid.
60
A jurisprudência, nesse voto, acaba trazendo a discussão sobre a anistia para o presente; não é
utilizada como ferramenta para inseri-la em uma tradição que remonta ao – e a prende no –
passado.
Periodização da transição
Há outra periodização em jogo no voto de Eros Grau: a periodização da “transição
conciliada”, que também aparece nos votos dos ministros Cármen Lúcia, Celso de Mello,
Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Tanto Grau, Celso de Mello, Mendes e
Lewandowski se detém em uma minuciosa análise que inclui datas e eventos específicos da
transição. Uma das características dessa periodização, em todos os casos, é o seu caráter
teleológico. A história é vista sob uma ótica progressista onde o futuro democrático é
colocado como objetivo do processo histórico. Além disso, é curioso notar que o ministro
Lewandowski, apesar de discordar com o relator em sua análise de mérito, se apoia em um
quadro fático-histórico bastante parecido.
Apesar das referências ao contexto histórico da lei entremearem todo o voto do relator,
o parágrafo 21, logo no início do voto, é especialmente significante por ser exclusivamente
voltado aos fatos históricos em torno da promulgação Lei da Anistia. Nesse parágrafo, Grau
se dedica a uma descrição detalhada do que ele considera “o momento talvez mais importante
da luta pela redemocratização do país, o da batalha da anistia, autêntica batalha”. 169
Transcrevo o início do parágrafo inteiro, começando pela segunda frase, que segue a
afirmação antecedente sobre a importância da luta pela anistia: Toda a gente que conhece a nossa História sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da Lei n. 6.683/79. A procura dos sujeitos da História conduz à incompreensão da História. É expressiva de uma visão abstrata, uma visão intimista da História, que não se reduz a uma estática coleção de fatos desligados uns dos outros. Os homens não podem fazê-la senão nos limites materiais da realidade. Para que a possam fazer, a História, hão de estar em condições de fazê-la. Está lá, n’O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” 170
Considero esse trecho uma espécie de prólogo explicativo que nos permite observar como o
Eros Grau compreende a história. A citação de Marx deixa claro a ênfase nas estruturas e nos
processos, não nos sujeitos e acontecimentos, o que é elucidativo para melhor analisarmos a
forma como Grau reflete sobre a história da transição.
169 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 10. 170 Ibid.
61
Logo após essa introdução teórica, Grau continua com a análise do período em
questão: A inflexão do regime [= a ruptura da aliança entre os militares e a burguesia] deu-se com a crise do petróleo de 1974, mas a formidável luta pela anistia – luta que, com o respaldo da opinião pública internacional, uniu os “culpados de sempre” a todos os que eram capazes de sentir e pensar as liberdades e a democracia e revelou figuras notáveis como a do bravo senador Teotonio Vilela; luta encetada inicialmente por oito mulheres reunidas em torno de Terezinha Zerbini, do que resultou o CBD [sic] (Comitê Brasileiro pela Anistia); pelos autênticos do MDB, pela própria OAB, pela ABI (à frente Barbosa Lima Sobrinho), pelo IAB, pelos sindicatos e confederações de trabalhadores e até por alguns dos que apoiaram o movimento militar, como general Peri Bevilácqua, ex-ministro do STM [e foram tantos os que assinaram manifestos em favor do movimento militar!] – a formidável luta pela anistia é expressiva da página mais vibrante de resistência e atividade democrática da nossa História. Nos estertores do regime viam-se de um lado os exilados, que criaram comitês pró-anistia em quase todos os países que lhes deram refúgio, a Igreja (à frente da CNBB) e presos políticos em greve de fome que a votação da anistia [desqualificada pela inicial] salvou da morte certa – pois não recuariam da greve e já muitos estavam debilitados, como os jornais da época fartamente documentam – de outro os que, em represália ao acordo que os democratas esboçavam com a ditadura, em torno da lei, responderam com atos terroristas contra a própria OAB, com o sacrifício de dona Lydia [sic]; na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, com a mutilação do secretário do combativo vereador Antonio Carlos; com duas bombas na casa do então deputado do chamado grupo autêntico do MDB Marcello Cerqueira, um dos negociadores dos termos da anistia; com atentados contra bancas de jornal, contra O Pasquim, contra a Tribuna de Imprensa e tantos mais. Reduzir a nada essa luta, inclusive nas ruas, as passeatas reprimidas duramente pelas Polícias Militares, os comícios e atos públicos, reduzir a nada essa luta é tripudiar sobre os que, com desassombro e coragem, com desassombro e coragem [sic] lutaram pela anistia, marco do fim do regime de exceção. Sem ela não teria sido aberta a porta do Colégio Eleitoral para a eleição do “Dr. Tancredo”, como diziam os que pisavam no chão da História. Essas jornadas, inesquecíveis, foram heróicas. Não se as pode desprezar. A mim causaria espanto se a brava OAB sob a direção de Raimundo Faoro e de Eduardo Seabra Fagundes, denodadamente empenhada nessa luta, agora a desprezasse, em autêntico venire contra factum proprium. 171
Antes de oferecer uma análise da periodização, cito um outro trecho do voto de Grau,
na penúltima seção, onde o ministro discute a Emenda Constitucional n. 26 de 1985. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura a nova ordem constitucional. Consubstancia a ruptura da ordem constitucional que decairá plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988. Consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. 172
Com base nessas citações, é possível esboçar uma linha do tempo que surge do voto de Eros
Grau e que nos demonstra como o ministro periodiza o fim da ditadura militar.
171 Ibid. , p. 10-11. 172Ibid. , p. 33.
62
Figura 1: A transição de acordo com Eros Grau
Nessa periodização, a democracia é vista como telos do desenvolvimento histórico e
os acontecimentos são lidos a partir desta perspectiva. Nesse quadro, a luta pela anistia é
inserida no contexto do fim da ditadura militar, do que se convencionou chamar (dentro e fora
da disciplina histórica) de transição, nome que reforça a leitura teleológica da história. Grau
situa os movimentos pró-anistia “nos estertores do regime”, nos últimos suspiros de um
regime moribundo, agonizante, fadado à morte. Para o ministro, o processo de fim da 173
ditadura começa em 1974 com crise do petróleo. Em 1979 a promulgação da anistia marca o
fim do regime de exceção e em 1985 a Emenda Constitucional n. 26 marca a ruptura com a
ordem constitucional vigente.
Já o ministro Celso de Mello começa a sua periodização em 1964. A primeira linha de
seu voto já diz respeito ao contexto histórico: Aqueles que, há 46 anos, em 1964, golpearam as instituições, derrubaram um governo legitimamente escolhido pelo voto popular e, em assim procedendo, interromperam, arbitrariamente, o processo constitucional no Brasil devem saber, onde quer que hoje se encontrem, que essa nódoa destaca, “ad perpetuam rei memoriam”, a sua responsabilidade histórica na inauguração e na sustentação de um nefando regime autoritário que institucionalizou, a partir de 1968, com fundamento no AI-5 – verdadeiro codinome do arbítrio ilimitado – um sistema político que tornou viáveis práticas brutais que vieram a ser rejeitadas pela consciência ético-jurídica do Povo brasileiro e das nações civilizadas. 174
Como se pode notar, o regime militar aparece como “nódoa” que interrompeu um processo
constitucional no país. O ministro enfatiza a “ruptura da ordem jurídica plasmada no texto
173 A palavra estertor significa o ruído da respiração do moribundo ou a agonia que antecede a morte. 174 BRASIL, 2010, Voto do ministro Celso de Mello, p. 1.
63
constitucional de 1946” com o golpe de 1964, bem como a importância dos atos 175
institucionais na construção de um regime de exceção, para então valorizar “a luta pela
reconstrução da ordem jurídico democrática”. No voto de Celso de Mello, a promulgação 176
da Emenda Constitucional n. 11 de 1978, que revoga os atos institucionais, é destacada “no
contexto político que assinalou o início do processo de redemocratização”: 177
A norma constitucional referida traduziu, no momento histórico em que foi editada, um ponto de inflexão no processo revolucionário, operando, de modo virtualmente absoluto, a neutralização dos poderes excepcionais de que o Presidente da República se achava então investido, para restabelecer, em bases compatíveis com as exigências da sociedade civil, um sistema político e jurídico que guardasse fidelidade ao modelo do Estado democrático de Direito. 178
Diferentemente do voto de Grau, não há uma análise estrutural econômica do período. A
reconstrução do contexto histórico de Celso de Mello ressalta os aspectos legais e jurídicos do
regime militar e da transição.
Já Gilmar Mendes escolhe enfatizar os aspectos políticos da transição do regime,
ressaltando a atuação daqueles “que optaram pelas vias institucionais para lutar pela
democracia” , as lideranças políticas que “fazendo das palavras as suas armas, travaram, por 179
meio do diálogo, o combate na árdua luta parlamentar.” Contrário ao relator Eros Grau, 180
Mendes situa o fim do regime de exceção em 1985, com a aprovação da EC n. 26. Além 181
disso, o ministro é o que mais enfatiza as incertezas da luta política e da transição. Para
Mendes, a luta foi marcada tanto por vitórias quanto por derrotas, que preenchiam de
incertezas o caminho para a redemocratização: Uma abertura conquistada por meio do embate político e marcada por vitórias, como a das eleições de 1974, em que o MDB conquista 59% dos votos para o Senado, 48% para a Câmara dos Deputados, e a prefeitura da maioria das grandes cidades; marcada, também, por duros golpes, como quando, em abril de 1977, foi editado o “Pacote de Abril” – composto por uma emenda constitucional e seis decretos-leis –, que, entre outras medidas, fechava temporariamente o Congresso Nacional, determinava que um terço dos senadores não mais seria eleito por voto direto, mas, sim, indicado pelo presidente da República, estabelecia a manutenção de eleições indiretas para governador e a diminuição da representação dos estados mais populosos no Congresso Nacional. Enfim, uma abertura marcada por uma árdua luta política para que o AI-5 finalmente chegasse ao fim, dando início à redemocratização do país. 182
175 Ibid. , p. 2. 176 Ibid. , p. 9. 177 Ibid. 178 Ibid. , p. 10. 179 BRASIL, 2010, Voto do ministro Gilmar Mendes, p. 26. 180 Ibid. , p. 27. 181 Ibid. 182 Ibid. , p. 26-27.
64
Curiosamente, é Ricardo Lewandowski, que votou a favor da reinterpretação da
anistia, que mais se aproxima do relator ao periodizar a transição. O ministro também ressalta
a “crise do petróleo” (situando-a em 1973, não 1974) e suas consequências econômicas como
o início da “perda de sustentação do regime”. O ministro continua: 183
A recessão econômica que se instalou no País a partir de 1974, caracterizada, sobretudo, pelo aumento dos índices de inflação e desemprego, exacerbou a insatisfação popular e deflagrou inúmeros protestos, ao longo dos anos seguintes, de operários, estudantes, religiosos, intelectuais e profissionais liberais, inclusive de setores que até então emprestavam sustentação ao regime, todos exigindo a volta do Estado de Direito. 184
Essa análise se assemelha muito à de Grau, inclusive na ênfase da ruptura da aliança entre
setores da sociedade civil e militares. Porém, o diagnóstico é distinto. Enquanto Grau e outros
sublinham o aspecto pactual e negociado da transição, Lewandowski rejeita a existência de
um acordo e afirma que a crescente insatisfação popular pressionou o regime a promover
mudanças controladas. O crescimento da insatisfação popular e o acirramento das dissidências dentro do próprio sistema de poder, na realidade, refletiam uma séria crise de legitimidade. As pressões e tensões daí recorrentes atingiram níveis tais que passaram a ameaçar a própria sobrevivência do regime, convencendo os seus próceres de que era chegada a hora de promover mudanças no modelo político-institucional, embora de forma controlada. Essa foi a origem da denominada “abertura lenta e gradual”, iniciada pelo General Ernesto Geisel, que culminou na convocação da Assembléia Constituinte, precedida da edição da Lei 6.683/1979. 185
O que essas escolhas significam para a nossa análise? A periodização, bem como a
mobilização de argumentos históricos, situa a anistia em uma determinada temporalidade.
Nesse caso, a ênfase na luta pela anistia reafirma os aspectos de uma anistia possível , que não
foi ideal pois estava situada no campo de batalha das negociações políticas. De certa forma, a
afirmação do caráter possível da anistia contraria os aspectos teleológicos da narrativa
histórica dos ministros, porém ambas visões da história convivem nos votos. A periodização
da transição é oferecida como tentativa de explicar a motivação do legislador, a natureza da
lei e os seus objetivos; explicação esta necessária para justificar uma lei-medida que está
intimamente ligada ao seu contexto histórico e cuja compreensão só é possível sob a lógica do
passado.
Ao mesmo tempo, a periodização de Grau também situa a anistia no presente, como
anistia fundamental e fundacional. A anistia, ao ser reafirmada na EC n.26, não só está na
183 BRASIL, 2010, Voto do ministro Ricardo Lewandowski, p. 9. 184 Ibid. , p. 10. 185 Ibid. , p. 11.
65
origem da democracia mas, principalmente, ela está inserida na ordem vigente. Ou seja, ela é
atual, ela perdura. Para Grau, a ordem vigente nasce na EC n. 26, que reafirma a anistia em
seu artigo 4o. Assim, a anistia aparece no momento fundacional da ordem constitucional que
rege o país desde 1988 até os dias de hoje.
Nesse segundo ponto, novamente não nos deteremos no debate jurídico sobre onde
efetivamente começa a nova ordem constitucional e a relevância da Emenda Constitucional n.
26 (ponto este muito debatido pelos ministros durante o julgamento da ADPF 153, conforme
explicitado no capítulo 1), mas sim como esse argumento aparentemente estritamente jurídico
traz também consequências temporais e portanto é relevante para o campo da história.
Retomo trecho supracitado do voto de Eros Grau: Eis o que se deu: a anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Não que a anistia que aproveita a todos já não seja mais a da lei de 1979, porém a do artigo 4o, §1o da EC 26/85. Mas estão todos como que [re]anistiados pela emenda, que abrange inclusive os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Por isso não tem sentido questionar se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não reconhecida pela Constituição de 1988. Pois a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A norma prevalece, mas o texto – o mesmo texto – foi substituído por outro. O texto da lei ordinária de 1979 resultou substituído pelo texto da emenda constitucional.
A emenda constitucional produzida pelo Poder Constituinte originário constitucionaliza-a, a anistia. 186
No parágrafo seguinte, afirma que a EC inaugura a nova ordem constitucional, para em
seguida dizer: “Daí que a reafirmação da anistia da lei de 1979 já não pertence à ordem
decaída. Está integrada na nova ordem. Compõe-se na origem da nova norma fundamental.” 187
O ministro Gilmar Mendes priorizou uma argumentação de caráter teórico-jurídico
sobre a EC, mas concorda com a avaliação de Grau e afirma que “trata-se de um ato político
que rompe com a Constituição anterior e, por isso, não pode dela fazer parte, formal ou
materialmente. Ela traz as novas bases para a construção de outra ordem constitucional.” A 188
lei da anistia se torna assim parte do sistema jurídico vigente.
O tempo da justiça
Alguns aspectos do próprio Direito – como a prescrição, por exemplo – também tem
relação com o tempo. Como esse trabalho se debruça sobre como os ministros fabricam o
186 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 32-33. 187 Ibid. , 33. 188 BRASIL, 2010, Voto do ministro Gilmar Mendes, p. 40.
66
tempo da anistia usando a história, vale a pena uma breve análise de como alguns argumentos
jurídicos também trazem consequências temporais.
Os ministros Celso de Mello e Cezar Peluso, apesar de não fazerem menção às
leis-medida em seus votos, trazem outro argumento que tem consequências parecidas para a
compreensão temporal da anistia. Para ambos, a própria natureza de uma lei de anistia faz
com que ela se exaure em si mesma, atingindo o seu fim e portanto se extinguindo no próprio
ato de sua promulgação. Nas palavras de Celso de Mello: Isso significa, portanto, que, mantida íntegra a Lei de Anistia de 1979, produziu ela “ministério juris”, todos os efeitos que lhe eram inerentes, de tal modo que, ainda que considerada incompatível com a Constituição superveniente, já teria irradiado (e esgotado) toda a sua carga eficacial desde o instante mesmo em que veio a lume. 189
O ministro faz relação entre essa característica da anistia e o princípio da irretroatividade
penal: É tão intensa a intangibilidade de uma lei de anistia, desde que validamente elaborada (como foi a Lei no 6.683/79), que, uma vez editada (e exaurindo, no instante mesmo do início de sua vigência, o seu conteúdo eficacial), os efeitos jurídicos que dela emanam não podem ser suprimidos por legislação superveniente, sob pena de a nova lei incidir na proibição constitucional que veda, de modo absoluto, a aplicação retroativa de leis gravosas. 190
Já de acordo com Cezar Peluso, [...] o argumento de que não teria sido a norma recebida pela nova ordem constitucional não significa que não tivesse ela operado dentro da velha ordem, consumando e exaurindo, portanto, na vigência da Constituição anterior, toda a sua eficácia sobre os fatos. Não haveria agora nenhum efeito jurídico pendente por declarar ou atuar. 191
Para ambos os ministros, não se trata de discutir os efeitos da lei no presente, mas sim afirmar
que a anistia “atua por força do só contato da lei com o fato” , apagando os delitos e portanto 192
extinguindo a possibilidade de punibilidade. De acordo com esse argumento, não há mais o
que punir, pois tudo o que seria passível de punição foi extinto no ato de promulgação da lei.
Gilmar Mendes exprime a mesma opinião ao citar o jurista Bruno Aníbal para dizer que no
ato da anistia “o próprio crime cessou de existir e nada pode ser admitido, do ponto de vista
penal, que venha recordá-lo”. 193
Conforme demonstrado no trecho do voto de Celso de Mello, essa linha de
argumentação está ligada ao princípio de impossibilidade de retroatividade penal. Como
189 BRASIL, 2010, Voto do ministro Celso de Mello, p. 40. 190 Ibid. , p. 29. 191 BRASIL, 2010, Voto do ministro Cezar Peluso, p. 9. 192 Ibid. , p. 10. 193 ANÍBAL, Bruno, apud BRASIL, 2010, Voto do ministro Gilmar Mendes, p. 36.
67
discutido no capítulo anterior, a constituição não permite uma revisão criminal a não ser que
esta seja em benefício do réu. Pensando em termos temporais, essa irretroatividade significa
que a reversibilidade jurídica não se aplica nesses casos; as demandas do presente não podem
ser extendidas para o passado se as consequências forem negativas para os envolvidos. Por
outro lado, conforme demonstrado ao longo desta análise, o passado parece poder se estender
ao presente.
Além disso, a concepção de que a anistia não é um meio e sim um fim está atrelada a
visão da anistia como o apagamento do passado. Em seu curto voto de quatro páginas, o
ministro Marco Aurélio afirma que “anistia é o apagamento do passado em termos de glosa e
responsabilidade de quem haja claudicado na arte de proceder”. Celso de Mello cita Rui 194
Barbosa, dizendo: A soberania se reveste de uma transcendência quase divina quando pronuncia, sobre as desordens e as loucuras das revoluções, esse verbo de esquecimento, cujo influxo apaga todas as culpas, elimina todos os agravos, e reabilita de todas as manchas. Não é o perdão, que resgata das penas; é a reconciliação, que extingue os delitos, atalha os ressentimentos e olvida as queixas. 195
A ideia de anistia como esquecimento e apagamento de certos elementos do passado
aparentemente parece ser um contraponto à lei-medida de Grau, intimamente ligada à história
dos fatos que a cercam. De um lado, a anistia necessita ser compreendida em contexto de sua
promulgação, somando-se ao texto da lei uma interpretação histórica. Do outro lado, a anistia
é o esquecimento da história (ou parte dela, de seus conflitos e crimes). Esta anistia aparece
como uma interdição ao passado; um parênteses que circunde certos eventos e os remove da
possibilidade de retornarem no presente. Essa interdição ou apagamento é meramente penal
(as pessoas seguem lembrando e revisitando o passado), mas as suas consequências operam
no plano da “reconciliação” nacional. Ao mesmo tempo que precisamos trazer o passado para
a discussão do presente para entender os objetivos da anistia, os crimes cometidos neste
passado foram extintos e apagados, de forma que não pode haver consequências penais no
presente. A ambiguidade não é incoerente, pois em ambos os casos a ênfase dos argumentos
recai sobre a importância da anistia para uma reconstrução social pacífica, seu caráter
fundamental.
De acordo com Bevernage, o tempo da justiça difere do tempo da história pela sua
reversibilidade: nos tribunais é possível reparar um ato do passado por uma sentença ou
194 BRASIL, 2010, Voto do ministro Marco Aurélio, p. 2. 195 BARBOSA, Rui, apud BRASIL, 2010, Voto do ministro Celso de Mello, p. 30.
68
punição. Nesse caso específico da ADPF 153, a decisão de que a Arguição é procedente e 196
que um dispositivo da Lei da Anistia é inconstitucional abriria a possibilidade da
responsabilização penal dos agentes de Estado que atuaram na repressão. Não se pode
“reescrever a história”, mas há a oportunidade de reverter uma decisão do passado e punir os
torturadores e reformar as estruturas institucionais que se utilizavam da violência como
prática sistemática. Porém, mesmo no mundo do direito há a consciência da fragilidade da
justiça diante do incessante correr do tempo, expressa no conceito de prescrição. O tempo
extingue a punibilidade dos crimes. O direito de punir do Estado não é eterno; ele é limitado
pelo tempo. A prescrição é a forma jurídica de reafirmar o caráter irreversível do tempo sobre
o poder do juiz.
A suposta prescrição dos crimes cometidos durante o regime militar foi argumento
muito utilizado pelos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso. Marco Aurélio
e Cezar Peluso chegaram a questionar a utilidade do julgamento tendo em vista a prescrição
dos crimes em questão. Se por um lado esses mesmos ministros insistem que a anistia se
exaure em si mesmo ao apagar os crimes, por outro lado afirmam que mesmo se não se
exaurisse , tais crimes estariam prescritos. Em ambos os cenários a punibilidade é extinta: seja
pela natureza do ato da anistia ou pelo tempo.
Entre passado e presente, uma reinterpretação impossível?
Tanto o movimento de colocar a lei no passado quanto o de a trazer para o presente
trazem consigo a mesma consequência: a impossibilidade de revisão. Quando a anistia
possível está sendo analisada, os ministros estão impedidos de reinterpretá-la pois ela só pode
ser analisada a partir das lentes do passado, não a partir das questões do presente. Quando a
anistia está no presente, adequada à ordem vigente, o seu caráter fundamental é revestido de
sacralidade, o que não permite que a toquemos. A ênfase no suposto acordo transparece uma
visão particular da Lei da Anistia: a lei é a expressão, em um dado momento histórico, de uma
cultura de conciliação. Esta cultura, mais ampla que o momento da lei, não pode ser revista,
pois na opinião de alguns ministros ela é fundamental e fundacional na construção do Estado
brasileiro.
Na sacralidade da anistia fundamental há ainda outra relação entre o presente e o
passado: uma relação de dívida. O presente (democrático) se torna o resultado do sacrifício do
196 BEVERNAGE, 2012, p. 2.
69
passado (das lutas por uma anistia possível). A ideia de dívida está muito clara no voto do
ministro Gilmar Mendes, que declara: “Talvez o Brasil seja devedor – seguindo um pouco as
considerações de José Paulo [Sepúlveda Pertence] – das pessoas que travaram a luta, pela via
pacífica, e que acreditaram, inclusive, na via parlamentar.” 197
Além disso, ao compararmos as duas formas de periodização no voto do ministro
relator, percebemos algumas distinções. Quando Eros Grau esmiúça a história da anistia de
1979 em particular, o que surge é uma descrição detalhada dos acontecimentos históricos
daquele contexto. Uma história viva, em movimento, com alusões às lutas, sacrifícios e
batalhas. É uma história com vítimas, mártires e heróis. É uma narrativa histórica que, apesar
de teleológica, inclui certo grau de imprevisibilidade e incerteza. Essa história, da Lei n.
6.683/79, contrasta fortemente com a história das anistias no Brasil em geral. Para periodizar
a longa tradição de anistias no Brasil o ministro recorre a listas de datas. É uma história sem
sujeitos, sem acontecimentos particulares, sem análise de conjunturas; uma história que
enfatiza a repetição e a continuidade. Mas, ambas as estratégias são utilizadas para justificar a
impossibilidade de uma reinterpretação da lei que leve em consideração as motivações do
presente. Ambas recorrem à história como estratégia de reafirmação da irreversibilidade do
tempo.
A irreversibilidade do tempo, de acordo com Bevernage, seria também uma afirmação
da separação entre passado e presente, uma reação ao “passado que não passa”. Porém, como
podemos observar nos votos em questão, muitas vezes as ferramentas utilizadas para tal,
incluindo o apelo à história e às técnicas de historicização, acabam insistindo na persistência
do passado no presente. Nesse caso, a afirmação da irreversibilidade do tempo histórico e a
delimitação do que é “passado” serve menos para separá-lo do presente e mais para reafirmar
que o presente não pode ser projetado no passado. Aos ministros, interessa a
unidirecionalidade do tempo histórico, além de sua irreversibilidade. O que pertence ao
passado pode pertencer também ao presente (as continuidades não são negadas, mesmo
quando as rupturas são reafirmadas), mas a recíproca não é verdadeira: as preocupações do
presente não cabem no passado.
197 BRASIL, 2010, Voto do ministro Gilmar Mendes, p. 38.
70
Capítulo III: Tecendo fios entre o passado, o presente e a história
A análise do capítulo anterior demonstrou como os ministros do STF utilizam a
história para colocar a anistia no passado e no presente, às vezes simultaneamente, para
justificar a impossibilidade de reinterpretação da Lei n. 6.683/79. Um dos argumentos mais
fortes foi o da valorização do pacto em torno da lei; a ideia de que o acordo em torno da
anistia é estruturante para o processo de redemocratização e por isso não pode ser revisto.
Além deste argumento ser um argumento político e passível de questionamento no
plano de sua veracidade histórica, cabe ressaltar que, ao enaltecer o pacto de 1979, os
ministros deixam de comentar que o próprio sentido da lei da anistia já foi revisto e ampliado
inúmeras vezes. A própria Emenda Constitucional n. 26/85 que confirmou a anistia já
ampliava o seu escopo ao incluir o direito de servidores civis e militares afastados serem
promovidos ao cargo que teriam se tivessem permanecido em serviço. Esse direito havia sido
explicitamente negado no Art. 3 o da lei de 1979.
Para a cientista política Glenda Mezarobba, autora do livro Um acerto de contas com o
futuro: a anistia e suas consequências: um estudo de caso brasileiro, a anistia é “um processo
político que começou em 1979 e vem sendo redefinido desde então.” De acordo com 198
Mezarobba, a Lei dos Desaparecidos (Lei n. 9.140) promulgada em 1995 e a Lei n. 10.559 de
2002, que estabelece a Comissão da Anistia e a reparação econômica às vítimas da ditadura,
são parte do processo da anistia e representam a sucessiva ampliação de seus limites. “Parece
incontestável que os limites jurídicos da Lei da Anistia há muito foram excedidos”, escreve a
autora, e prossegue: Senão, vejamos em dois exemplos: a legislação inicial explicitava, em seu artigo de número 11, que nenhum outro direito além daqueles nela expressos seriam gerados. Isso compreendia inclusive direitos relativos a salários, indenizações, promoções ou ressarcimentos. O limite começou a ceder com as promoções previstas na emenda constitucional de número 26 e ruiu de vez com a promulgação da Lei 10.559, que expressamente revoga o artigo dois, o parágrafo cinco do artigo três, e os artigos quatro e cinco da Lei da Anistia. Na questão dos sumiços de pessoas envolvidas ‘em atividades políticas’, a Lei da Anistia estabelecia apenas a possibilidade de concessão de uma declaração de ausência, mas com a aprovação da Lei dos Desaparecidos essas vítimas do regime militar passaram a ter direito a atestados de óbito, e seus familiares puderam receber indenizações de um Estado que admitiu não apenas sua responsabilidade pelas mortes, mas, em um visível momento de expansão das fronteiras legais originais, reconheceu o aspecto civil de sua obrigação jurídica decorrente dos excessos. 199
198 MEZAROBBA, 2006, p. 18. 199 Ibid. , p. 151.
71
Desta forma, percebemos que os ministros do STF sacralizam o acordo da anistia que
permitiu a “pacificação” e a “reconciliação” da sociedade sem levar em conta as diversas
mudanças às quais a lei já foi submetida.
Além disso, alguns ministros, incluindo o relator, citam a impossibilidade do poder
judiciário revisar ou revogar uma lei por tal atribuição pertencer exclusivamente ao
legislativo. Também nesse ponto há predileção por iluminar apenas parte da verdade: é fato
que ao legislativo cabe rever as leis, porém a ADPF 153 solicita ao STF uma nova
interpretação da lei em questão, não uma revisão do texto ou a revogação da norma. Há uma
explícita confusão entre interpretação e revisão que persiste ao longo dos votos; expressão da
determinação do tribunal de não criar subsídios (jurídicos e/ou argumentativos) que possam
ser utilizados em prol da modificação da lei.
Outro argumento utilizado para justificar a impossibilidade de nova interpretação foi a
Emenda Constitucional n.26 de 1985, uma vez que ela seria fundadora da nova ordem
constitucional e portanto, ao reafirmar a anistia, automaticamente a constitucionalizaria. Neste
sentido, uma vez que a Lei 6.683 estaria reintegrada à nova ordem via EC 26, não caberia
questionar se ela é compatível ou não com os preceitos fundamentais. Os ministros Cármen
Lúcia, Ricardo Lewandowski e Ayres Britto rejeitam essa argumentação, mas atacam o
argumento apenas sob a perspectiva da natureza da EC. Para os três, a emenda que convocou
a constituinte não integra a ordem constitucional vigente.
Porém, outra crítica também é possível: a Emenda Constitucional reafirma a anistia
em seu Art. 4o, mas não reproduz a definição de crimes conexos contidos no Art. 1o, § 1º da
Lei n. 6.683 de 1979 (exatamente o trecho da norma que está sob análise na ADPF 153). A
Lei da Anistia define nela mesma o significado dos ‘crimes conexos’ que ela abrange. Já a EC
n. 26, em seu Art. 4o, § 1º diz que “É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes
políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis
[...]” sem incluir a definição de crimes conexos contida na lei. Se é exatamente essa definição
“ sui generis” e “autêntica” que previne uma nova interpretação da lei, de acordo com a
maioria dos ministros, então a ausência desta definição poderia permitir uma nova
interpretação? Essa pergunta não foi formulada pelos ministros do STF. 200
Ainda outra confusão surge da identificação da anistia com o contexto histórico da sua
promulgação. Conforme apontado nos capítulos anteriores, uma das estratégias empregada
200 Questão levantada por Gabriel Machado em: MACHADO, 2012, p. 253-255.
72
pelos ministros é associar a lei ao seu passado. Essa estratégia – deliberada e construída –
permite aos juízes negarem a possibilidade de reinterpretação da norma sob o argumento de
que não é possível mudar o passado ou reescrever a história. Cria-se um falso diagnóstico:
rever a lei significaria rever a história. Segundo a pergunta do relator Eros Grau: “O que se
deseja agora, em uma tentativa, mais do que reescrever, de reconstruir a História?” A 201
argumentação de que não se pode mudar os fatos passados (contida na reafirmação da
irreversibilidade do tempo histórico) é absolutamente verdadeira, mas desvia a atenção do que
deveria ser o cerne do debate: a reinterpretação de uma norma legal à luz da Constituição de
1988. Diferentemente da ideia de reescrever a história, a possibilidade de reinterpretação
contida na ADPF existe e é prevista na legislação vigente.
Como definido no início desse trabalho, uma Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental é um mecanismo pelo qual o STF é instado a decidir se determinada lei
desrespeita a Constituição Federal de 1988. Gabriel Ducatti Lino Machado observa que no
caso da ADPF 153 os ministros pouco se detiveram na própria constituição, que é o parâmetro
de uma ação deste tipo. Nas palavras de Machado: [O]s ministros, de maneira geral, elevaram a principal o que seria acessório – a investigação do conteúdo da lei – e relegaram a acessório o que seria principal – a confrontação do conteúdo amplo da lei com disposições da Constituição Federal de 1988. Ativeram-se ao objeto de prova e esqueceram-se do objeto de disputa – a compatibilidade ou incompatibilidade do conteúdo amplo da lei com a Constituição Federal de 1988. O voto do relator é emblemático. O ministro Eros Grau pode ter feito interessantes comentários sobre a interpretação de textos normativos, a diferença entre texto normativo e norma e sobre as leis-medida, tudo isso para concluir pela interpretação da Lei da Anistia “a partir da realidade no momento em que foi conquistada” e, assim, por uma ampla anistia. Ainda que se considere correta essa manifestação do ministro, ao dar demasiada atenção à investigação do conteúdo da lei, dá atenção de menos à interpretação da Constituição; ao tentar esgotar a questão da investigação do conteúdo da lei, deixa de tentar esgotar as questões constitucionais atinentes ao conteúdo amplo da lei. Como se a questão central não fosse a constitucionalidade dessa anistia ampla, como se descobrir o conteúdo da lei fosse um fim em si mesmo. Desloca-se o ponto nevrálgico: da confrontação do conteúdo amplo da lei com a Constituição para a investigação do que conteúdo da lei. A interpretação ampla da Lei 6.683/79, ainda que tomada como definitiva, é apenas o ponto de partida, não o ponto de chegada. 202
A crítica de Machado, apesar de formulada a partir da disciplina do direito, também está
relacionada com a análise empreendida aqui sobre os diferentes tempos da anistia nos votos
dos ministros. O parâmetro orientador do juiz em uma ADPF deveria ser a constituição
201 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 27. 202 MACHADO, 2012, p. 235.
73
vigente, ou seja, o contexto legal do presente. Porém, como apontado no capítulo anterior,
muitas vezes ao longo da sessão os parâmetros utilizados foram os do passado.
Nesse ponto, é interessante notar que o que torna a lei atual para os ministros do STF
são seus aspectos de continuidade – seu vínculo à instauração da nova ordem constitucional
via EC 26/85, sua origem no acordo que permitiu a construção pacífica de uma sociedade
democrática e que persiste, – e não a sua ligação com os debates do tempo presente, os
debates da justiça de transição. Um dos pré-requisitos para a instauração de uma ADPF,
discutido pela própria OAB em sua petição, é a existência de relevante “controvérsia
constitucional”. Na justificativa da presente ação, os arguentes citam o “recente debate
público acerca da extensão da Lei n. 6.683/79” para afirmar que “é notória a controvérsia
constitucional”. Para corroborar essa afirmação, a OAB inclui trechos de seis links de 203
notícias, todos de 2008, que descrevem opiniões divergentes sobre a possibilidade de
reinterpretação da lei, na esteira do seminário sobre o tema organizado pela Comissão da
Anistia em julho daquele ano. Para a OAB: “A controvérsia pública sobre o âmbito da
aplicação da citada lei tem envolvido, notadamente, o Ministério da Justiça e o Ministério da
Defesa, o que demonstra, por si só, a relevância política da questão em debate.” Essas 204
discussões atuais citadas na petição não aparecem nos votos dos ministros, nem daqueles que
votaram contra o relator; as únicas menções à controvérsia surgem nas preliminares, na
ocasião de avaliação técnica do cabimento da ação. Retomando as palavras de Machado: Nada impede que se julgue um ato passado com base em parâmetros presentes. Se a anistia ampla de ontem era tida, ontem, como aceitável pela OAB, hoje a OAB pode ter a anistia ampla de ontem como inaceitável. Pode-se, então, analisar a compatibilidade da ampla anistia com a ordem constitucional válida em 1979 ou com a ordem constitucional hoje válida. 205
Ao invés disso podemos observar vários ministros questionando a posição da OAB de
hoje tendo em vista a posição da OAB de 1979. Para o ministro Eros Grau: “A mim causaria
espanto se a brava OAB sob a direção de Raimundo Faoro e de Eduardo Seabra Fagundes,
denodadamente empenhada nessa luta, agora a desprezasse, em autêntico venire contra
factum proprium. O então presidente da corte, ministro Cezar Peluso, também expressa 206
bem essa posição nas suas observações finais: E não consigo entender como a mesma Ordem dos Advogados, que, sob a batuta dos grandes Presidentes Faoro e Seabra Fagundes, com base no irrespondível parecer do
203 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, 2008. 204 Ibid. 205 MACHADO, 2012, p. 236. 206 BRASIL, 2010, Voto do ministro Eros Grau, p. 11.
74
então Conselheiro Sepúlveda Pertence, teve participação decisiva na aprovação dessa lei, trinta anos depois reveja o seu próprio juízo sobre o alcance da norma que concorreu para editar, refaça o seu pensamento como se tivesse, após trinta anos, acordado tardiamente, recobrando consciência de que a velha norma não se compatibiliza com a ordem constitucional ora vigente! 207
O ministro parece até ignorar o fato de que a ordem constitucional de 1979 não é a ordem
constitucional do momento da ação. Ora, entre a OAB de ontem e a OAB de hoje, apenas a
entidade de 2010 poderia declarar a norma de 1979 incompatível com a ordem vigente, pois
apenas a OAB do presente vive na ordem constitucional que é a o parâmetro da ADPF.
A análise de como os ministros do Supremo Tribunal Federal usam ferramentas de
historicização – ferramentas estas normalmente associadas ao métier do historiador, embora,
paradoxalmente, nenhum historiador seja citado ou referido – é uma janela pela qual podemos
tecer algumas observações sobre a relação entre história (compreendida aqui como
historiografia) e a prática jurídica. De acordo com Ricoeur, “A comparação entre o papel do
historiador e do juiz constitui, em muitos aspectos, um locus classicus”, uma vez que ambos
pretendem ocupar uma posição de imparcialidade na busca pela verdade. Para o historiador, 208
não julgar é a condição para compreender e ser imparcial; para o juiz, é necessário
compreender direito, sendo imparcial, para poder julgar bem. Que assim seja – ocupemos o
locus classicus !
Em primeiro lugar, é necessário estabelecer algumas diretrizes para a discussão. No
escopo desta análise, o que está em jogo são os usos do argumento histórico e práticas de
historicização por nove ministros do STF no caso concreto da ADPF 153. Isso não significa
dizer que os magistrados produzem a história, apesar de suas sentenças poderem ser
analisadas como fontes de significado histórico. Tampouco é uma discussão sobre a
participação de historiadores em processos jurídicos, como acontece nas comissões da
verdade ou em certos tribunais internacionais. Dessa forma, a discussão aqui é direcionada
aos usos da história por juízes, não tanto sobre a relação entre a figura do juiz e aquela do
historiador, relação discutida por Carlo Ginzburg no livro Il giudice e lo storico . Por último, 209
conforme observado na introdução, a ADPF 153 não é um julgamento no sentido clássico;
207 BRASIL, 2010, Voto do ministro Cezar Peluso, p. 10-11. 208 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 331. 209 Ainda sem tradução para o português. Foi utilizada a versão publicada em inglês, The Judge and the Historian. Cf. GINZBURG, Carlo. The Judge and the Historian. Nova Iorque; Londres: Verso, 1999, 211 p.
75
ninguém está sendo julgado. Diferentemente de outros tribunais no âmbito da justiça de
transição, este não é um julgamento penal, não há réu nem testemunhas. O objeto da arguição
é a interpretação da norma legal, não eventos históricos ou seus atores.
Além da busca pela verdade, a imparcialidade e a questão da prova, outro elemento
fundamental tanto para o direito quanto para a história é a questão do tempo. Como discutido
na introdução, o tempo é parte fundamental do processo jurídico. No caso da ADPF 153,
basta observarmos a prevalência dos conceitos de irretroatividade penal, prescrição e as
discussões sobre quando determinadas jurisdições internacionais passam a valer. Para Paul
Ricoeur, a maior diferença entre a abordagem jurídica e abordagem histórica diz respeito ao
caráter definitivo da sentença judicial. Pode-se apelar do resultado de uma sentença ou 210
levá-la a outra instância, mas, uma vez esgotado os recursos legais, o que foi julgado não será
julgado novamente. Por outro lado, a escrita histórica está sempre em aberto, aquilo que foi
dito por um historiador pode ser revisto por outro, em um processo de “reescrita perpétua”. 211
Dessa forma, uma avaliação histórica é sempre provisória. Inclusive, aquilo que o juiz encerra
pode ser reaberto posteriormente por um historiador. 212
As práticas da justiça de transição, tal como tribunais penais internacionais e
comissões da verdade, aportaram certas mudanças sociais, culturais e políticas que tiveram
consequências também em como nos relacionamos com o passado. Um exemplo disso é a
construção de um arcabouço legal (a partir de 1968, culminando no estatuto do Tribunal Penal
Internacional em 2002) que define que crimes contra a humanidade são imprescritíveis.
Antoon de Baets argumenta que apesar de inicialmente voltado para a punição de
perpetradores, a imprescritibilidade também trouxe consequências para as vítimas: desde
2005, a construção do Direito à Verdade dentro do sistema das Nações Unidas mantêm que as
vítimas de violações de direitos humanos e seus familiares tem o direito imprescritível de
saber a verdade. Essas mudanças desafiam as observações de Ricoeur e nos mostram que as 213
mudanças nas categorias que organizam as experiências temporais, por um lado, e os
processos de justiça de transição, por outro, se estimulam mutuamente.
210 RICOEUR, 2007, p. 319. 211 Ibid., p. 320. 212 Ibid., p. 321. 213 Para uma discussão aprofundada sobre os conceitos de imprescritibilidade legal, injustiças e crimes históricos (historical injustices e historical crimes no original) e imprescritibilidade histórica, ver: DE BAETS, Antoon. Historical Imprescriptibility. Storia della Storiografia, Pisa; Roma: Fabrizio Serra Editore, v. 59-60, n. 1-2, 128-149, 2011.
76
Nessa linha, Enzo Traverso observou como o século XX trouxe novas consequências
para relação entre história e justiça. O autor nota uma crescente tendência a uma leitura
judicial da história e da “judicialização da memória”. As violências do século passado e as
formas de tentar governar esse passado através da via jurídica levaram a historiografia a
trabalhar com categorias analíticas do Direito, inclusive reduzindo a atuação dos atores da
história aos papéis de executores, vítimas e testemunhas. Traverso interpreta os tribunais 214
que surgiram após a Segunda Guerra Mundial como consequência de uma exigência de
‘moralizar a história’. Desta forma, os julgamentos não se restringiram à justiça e à punição
dos culpados, mas se tornaram em si mesmos atos simbólicos de reparação para as vítimas e
seus descendentes. Para o historiador, “Não se trata de identificar justiça com memória, mas
sim que frequentemente fazer justiça significa também fazer justiça à memória”. Assim, 215
Enzo Traverso adverte que o historiador não deve negar essa relação mas assumi-la, pensando
inclusive em suas contradições. Isso seria: [...] o reconhecimento do caráter instável e provisório da verdade histórica que, além do estabelecimento dos fatos, contém sua parte de juízo, indissociável de uma interpretação do passado como problema aberto e não como inventário fechado e definitivamente encerrado. 216
Beber Bevernage é um dos filósofos da história que tem se dedicado a pensar a relação
entre história e justiça no contexto da justiça de transição e a partir de uma perspectiva do
tempo. Como vimos no capítulo anterior, de acordo com Bevernage o conflito entre o tempo
da justiça e o tempo da história pode ser interpretado como o antagonismo entre as respectivas
ênfases na presença ou na ausência, na reversibilidade ou irreversibilidade dos
acontecimentos. O tempo da história é irreversível, caminha linearmente em um sentido
único. Já o tempo da justiça é reversível na medida em que um crime pode ser reparado por
uma sentença ou punição. Nesse caso específico da ADPF 153, isto fica em evidência: a
potencial decisão de que a Arguição é procedente e que um dispositivo da Lei da Anistia é
inconstitucional abriria a possibilidade da responsabilização penal dos agentes de Estado que
atuaram na repressão por crimes cometidos no passado. Para podermos compreender essas
ideias de forma mais completa, se faz necessário entender com quem Bevernage está
214 TRAVERSO, Enzo. El pasado, instrucciones de uso. 1a ed. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2011, p. 70. 215 Ibid., p. 75. Tradução minha, no original: “No se trata de identificar justicia con memoria, sino que a menudo hacer justicia significa también hacer justicia a la memoria.” 216 Ibid. Tradução minha, no original: “[...] es el reconocimiento del carácter inestable y provisorio de la verdad histórica que, más allá del establecimiento de los hechos, contiene su parte de juicio, indisociable de una interpretación del pasado como problema abierto antes que como inventario clausurado y definitivamente archivado.”
77
dialogando. Qual é o mapa da vizinhança intelectual na qual ele, como acadêmico, está
inserido?
Com esse objetivo em mente, a partir daqui irei seguir alguns fios teóricos que
integram o novelo desta história. Espero que com isso possa estabelecer algumas conexões
entre este trabalho e um panorama mais amplo de discussões sobre a história e a disciplina
histórica.
Fio primeiro: o tempo e a história
Como podemos observar, a discussão sobre a relação entre justiça e história, no
contexto de justiça de transição, nos abre uma porta para discutir as relações temporais dentro
da própria disciplina da história. Se o tempo histórico (coletivo e singular) tradicionalmente
foi associado às ideias de modernismo e progresso , mudanças recentes – teóricas, 217
filosóficas, políticas e sociais – tem colocado essa ligação em xeque e alimentado novos
questionamentos sobre o caráter do tempo histórico. Como resultado, observamos uma
crescente preocupação com o status ontológico do passado e da relação entre passado,
presente e futuro, impulsionando renovado questionamento crítico sobre a natureza do tempo
histórico na historiografia e na teoria da história.
Apesar do tempo ser considerado a matéria do historiador desde as origens da
disciplina, essa questão vem ganhando maior espaço dentro da teoria e da filosofia da história
a partir da década de 1990, na esteira de alguns estudos no final dos anos 1970 e 1980. Lynn
Hunt, em um livro publicado em 2008 sobre tempo e história, aponta para os trabalhos de
Reinhart Koselleck, Krzysztof Pomian e Paul Ricoeur como pioneiros dessa discussão.
Porém, ela também observa que esses estudos tiveram pouca repercussão no meio acadêmico
até a virada do século. Vários autores situam Koselleck como ponto de partida dessa nova 218
produção, citando o renovado interesse em seus trabalhos. A partir dos anos ‘90 e ‘00, Lucian
Hölscher (aluno de Koselleck), François Hartog, Peter Fritzsche e Berber Bevernage (dentre
outros), passaram a tomar as relações entre passado, presente e futuro como ponto central de
217 Cf. LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber. Introduction. In: LORENZ, Chris; BEVERNAGE, Berber (Eds.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2013, 7-35; LORENZ, Chris. ‘The Times They Are a-Changin’. On Time, Space and Periodization in History. In: CARRETERO, M. et al. (Eds.). Palgrave Handbook of Research in Historical Culture and Education. Londres: Palgrave Macmillan UK, 2017, 109-131. 218 HUNT, Lynn. Measuring Time, Making History. Budapest; Nova Iorque: Central European University Press, 2008, p. 16. (Sem tradução para o português.)
78
suas investigações. Ademais, historiadores da história cultural começaram a observar o tempo
como objeto de estudo: além da publicação do livro de Lynn Hunt (baseado em uma
conferência sobre a relação entre tempo e história), Peter Burke também se dedicou à “história
cultural do tempo”. Autores como Eelco Runia e Hans Ulrich Gumbrecht trouxeram os 219
conceitos de ‘presença’ e ‘experiência histórica’ para o debate. Teóricos do pós-colonialismo
e antropólogos, tal como Dipesh Chakrabarty, também colaboraram para o crescente interesse
nesse tema ao questionar as ligações entre tempo e espaço e tecer críticas à predominância de
uma visão ocidental do tempo na historiografia. 220
Voltando à Bevernage, o autor parte do diagnóstico de François Hartog de que
estamos vivendo um regime de historicidade – definido como a articulação entre passado,
presente e futuro – dominando pelo presente, um momento de presentismo. Partindo da
discussão feita por Hartog em Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do
tempo , publicado originalmente em Paris em 2003, Bevernage concorda com o historiador
francês ao assinalar que regime moderno de historicidade está em crise.
O livro de Hartog, por sua vez, está em diálogo direto com os escritos de Koselleck
sobre a construção do conceito moderno de história, decorrente do abandono da visão de uma
história que se repete e o surgimento de uma visão teleológica da história onde o tempo é
homogêneo, singular, linear e progressivo. No regime moderno de historicidade definido por
Koselleck e retomado por Hartog, a dimensão ética da história não mais coincide com o
passado e é lançado para o futuro. Onde Koselleck termina, Hartog continua: desde os
arredores de 1989 (com a derrocada do regime soviético e a expansão da sociedade de
219 Em 2013 Peter Burke publicou o livro A Cultural History of Time: 1500-2000 pela Yale University Press, ainda sem tradução para o português. 220 Para um panorama dessa historiografia, ver: LORENZ; BEVERNAGE, 2013 e HUNT, 2008. Parte dessa retomada do tempo como objeto central de investigação é decorrente da virada lingüística e suas consequências para a história. A partir da década de 1970, mudanças na historiografia, como a ampliação das fontes consideradas históricas, trouxeram para o centro da teoria da história a ideia de “produção de significado histórico”, o que por sua vez pressupõe um olhar crítico para as práticas linguísticas e para os materiais de produção deste significado. A ideia de “representação histórica” ganhou valor enquanto os problemas da ideologia e da função política da historiografia, os problemas epistemológicos da objetividade e da verdade e as questões metodológicas da técnica interpretativa passaram a ser estudados em relação à escrita histórica e suas formas. O reconhecimento de que a nossa relação com o passado é moldada pelas nossas formas (presentes) de representação trouxe inevitáveis consequências para as relações entre passado, presente e futuro. Nas teorias de Hayden White, Dominick LaCapra e Frank R. Ankersmit (dentre outros), a narrativa histórica é consequência da linguagem, o que surge como uma ameaça às concepções modernas da história que viam no passado um objeto estável e permanente e que sustentavam a possibilidade de conferir ao curso histórico unidade e continuidade. Para o filósofo da história Davide Bondì, o pano de fundo do narrativismo é a persistente assimetria entre o conhecimento e a experiência histórica. Cf. BONDÌ, Davide. Filosofia e storiografia nel dibattito anglo-americano sulla svolta linguistica. Florença: Firenze University Press, 2013. 223 p.
79
consumo) o regime moderno de historicidade encontra-se ameaçado. A orientação temporal
para o futuro está sendo substituída pelo presentismo, definido como o limite da ruptura entre
o campo da experiência (o passado) e o horizonte da expectativa (o futuro, usando os termos
de Koselleck). Vivemos uma experiência de presente hipertrofiado, cujos sintomas incluem a
obsessão com a memória e com a conservação do patrimônio. Na análise de Hartog, é a
diminuição da importância do futuro e o alargamento do presente que ocupam maior
destaque.
Apesar de coincidir com Hartog no diagnóstico, Bevernage e outros teóricos
contemporâneos, tal como Chris Lorenz , enfatizam outro aspecto do presentismo pouco 221
abordado em sua formulação original: a continuidade do passado no presente. Lorenz sugere
que a análise de Hartog sobre o presentismo é insuficiente, pois subestima a presença do
passado traumático. O autor acredita que o colapso do futuro está diretamente relacionado ao
retorno do passado. Mas não é qualquer passado que retorna; no contexto de justiça de 222
transição, são as experiências de violência intensa (muitas vezes denominadas de
‘traumáticas’ pela historiografia) que insistem em permanecer. Desta forma, Lorenz propõe a
ideia de um presentismo catastrófico. 223
Esta relação do presente com um passado traumático é visível no caso da ditadura
brasileira, tanto no campo da historiografia quanto na própria experiência social do tempo. A
historiografia da ditadura por muito tempo enfatizou os aspectos violentos do regime militar,
deixando de lado análises sobre o cotidiano e sobre as relações de consentimento entre partes
da sociedade e o regime autoritário. Ainda são pioneiros os estudos que se dedicam a essa
perspectiva, questionando o trauma ou a violência como paradigma central para compreender
o período. Ao mesmo tempo, os ativistas e militantes da justiça de transição, organizados 224
em grupos da sociedade civil, reclamam por políticas de memória frente a um “passado que
não passa”. Que passado seria este? O passado da prisão, da tortura, do exílio. Foi esta
representação traumática do passado que dominou boa parte do discurso público, da demanda
221 Professor de filosofia da história na VU University Amsterdam. 222 LORENZ, Chris. Unstuck in time. Or: the sudden presence of the past. In: TILMANS, Karine; VAN VREE, Frank; WINTER, Jay (Eds.). Performing the Past: Memory, History, and Identity in Modern Europe. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2010, p. 89. 223 Ibid. , p. 70. 224 Cf. CORDEIRO, Janaina M. A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015; MAGALHÃES, Lívia G. Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina. 1. ed. Rio de Janeiro: Lamparina/Faperj, 2014.
80
por políticas de reparação e da memória sobre a ditadura até pouco tempo. Mais 225
recentemente, outro passado – o do patriotismo e das lembranças saudosistas do crescimento
econômico – vem sendo discutido mais abertamente (e até comemorado) por setores da
sociedade civil. Desta forma, o vínculo do presente com o passado traumático – protagonista
de uma incômoda memória que muitas vezes impede um olhar para o futuro – vem sendo
redesenhado com a introdução de outras relações com o passado, tanto na historiografia
quanto nas experiências políticas e sociais.
Fio segundo: história do tempo presente
Mudanças no regime de historicidade e novas formas de se relacionar com o passado
por sua vez também estão relacionadas à mudanças na produção historiográfica. Isso nos leva
ao segundo fio do novelo do qual esse trabalho faz parte: a história do tempo presente. Essa
história desafia a separação entre passado e presente que está na origem da profissionalização
da disciplina uma vez que as fronteiras temporais da história do tempo presente são instáveis e
provisórias. A própria ascensão deste campo também está intimamente ligada à virada
linguística e à subsequente valorização do sujeito na narrativa histórica – os mesmos fatores
determinantes para ascensão dos estudos sobre tempo e presença. 226
Em primeiro lugar, é preciso antes lembrar que a história recente ou atual, como
disciplina, não é uma prática nova. A novidade é a importância que esse campo ganhou nos
últimos séculos. A história do tempo presente é hoje uma disciplina institucionalizada na
academia, empurrando para a margem a desconfiança que antes a cercara e afirmando a sua
legitimidade. Desde a década de 1980 surgiram diversos institutos e publicações voltadas
225 Alguns autores, como Marcos Napolitano, consideram que a ‘memória hegemônica’ sobre a ditadura foi a memória dos ‘vencidos’ e não a dos ‘vencedores’, por ter sido uma memória desfavorável ao regime e, principalmente, às Forças Armadas. Cf. NAPOLITANO, Marcos. Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro. Antíteses, Londrina: Universidade Estadual de Londrina, v. 8, n. 15, 9-44, nov. 2015. 226 Marina Franco e Florencia Levín, em um artigo sobre as razões que explicam o vigor da história contemporânea nos dias de hoje, escrevem que o questionamento do verdadeiro e do real a partir do narrativismo permitiu repensar a importância dos sujeitos enquanto atores sociais, o que implicou no estabelecimento de novas áreas da história (história cultural e micro história), bem como na redescoberta da legitimidade do subjetivo, expresso por via da crescente utilização do testemunho na história do tempo presente. No livro Tempo Passado, Beatriz Sarlo fala na “virada subjetiva” na história. Da assimetria entre conhecimento e experiência, bem como da valorização do subjetivo e do sujeito, surgem os estudos sobre a memória, o trauma, e outros aspectos da experiência histórica. Cf. FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. “El pasado cercano en clave historiográfica”. In: FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia (Orgs.). Historia reciente. Perspectivas y desafíos para un campo en construcción. Buenos Aires: Paidós, 2007.
81
exclusivamente para o tema e com isso também uma maior preocupação metodológica. A
própria temporalização do campo é objeto de debate: o que é atual ou presente dessa história?
Onde ela começa e termina? Hoje parece haver um consenso de que o caráter atual da história
não é cronológico, mas sim é definido pelas diferentes formas de coexistência entre as
experiências do passado e do presente, pela dimensão temporal presencial.
Uma das maiores preocupações dos historiadores de história contemporânea é a
questão do distanciamento, que por sua vez está ligado à ideia de objetividade.
Distanciamento (ou a falta de) e as suas repercussões para produção historiográfica estão no
cerne das discussões sobre a legitimidade da história do tempo presente. O papel da memória
nos estudos de história recente também é muito debatido. Essas questões centrais vem
acompanhada de outras, talvez menos fundamentais para definição do campo mas não menos
relevantes para esse trabalho. Tanto Henry Rousso, renomado defensor e pensador da história
do tempo presente, quanto as historiadoras argentinas Marina Franco e Florencia Levín, ao
esboçar características definidoras dessa área da história, apontam para a demanda social por
uma história atual e a influência da esfera pública nesse tipo de fazer histórico, em um 227
contexto onde narrativa histórica convive com a presença dos atores que viveram os eventos
narrados.
Em uma palestra sobre a escrita da história contemporânea organizada na
Universidade de Harvard em 2012, Rousso explora o “lugar estranho” do historiador desse
campo. O historiador do tempo presente está cercado de aparente paradoxos. Por um lado,
como qualquer outro historiador, o seu trabalho é o de representar o passado no presente, por
meio da escrita histórica. Por outro lado, o historiador da história recente fala do seu objeto no
passado apesar dele muitas vezes ainda estar presente, principalmente em se tratando de
eventos traumáticos. Nesse sentido, ele ajuda o presente a se tornar passado, através do
processo de historicização. É exatamente este ponto que nos permite voltar à discussão 228
inicial deste capítulo sobre a relação entre história e justiça.
História, justiça e o papel do historiador
Iniciamos este breve percurso teórico a partir de algumas ideias sobre a relação entre
história e justiça. Observamos como o contexto da justiça de transição traz consigo
227 Cf. ROUSSO, 2013; FRANCO; LEVÍN, 2007. 228 ROUSSO, 2013, p. 11.
82
consequências temporais tanto para nossas experiências sociais quanto para o campo da
história. Essas mudanças e estes processos são conectados e interligados, sendo difícil
estabelecer relações claras de causa e efeito. Puxamos a ponta de dois fios que estão
emaranhados na história contada aqui: os estudos sobre o tempo na história, na linhagem de
Bevernage, e a história do tempo presente.
À medida em que puxamos esses fios, percebemos que ambas searas da historiografia
trazem seus desafios. Nesse cenário, a opção de abordar o tema da pesquisa a partir do
conceito de historicização é uma escolha que responde, por um lado, às inquietudes sobre o
papel do historiador do tempo presente e, por outro, permite dialogar com produção teórica
sobre a própria natureza do tempo histórico. Sendo assim, considero que a perspectiva do que
Bevernage chama de ‘politics of time ’ constrói um terreno fértil de diálogo entre esses dois
campos da historiografia. Retomo algumas ideias em torno das relações entre história e justiça
para reforçar este argumento.
No supracitado artigo de 2014 sobre justiça de transição e historiografia, Bevernage
desenha as diferentes relações entre historiadores e mecanismos de justiça de transição. Essas
formas de envolvimento podem ser compreendidas levando em consideração a verdade e a
memória, valores que compõem o mote da justiça de transição.
Em primeiro lugar, os historiadores podem contribuir com esses processos produzindo
verdades históricas. Aqui, a função do historiador é vista como fundamental para desconstruir
mitos. Esse tipo de engajamento levanta uma série de problemas, dentre eles o próprio
questionamento da ideia positivista de que existe uma verdade histórica. A associação do
historiador com a busca da verdade em comissões e órgãos afins também incita uma discussão
sobre os limites de uma historiografia produzida em um contexto oficial ou estatal. Ainda,
esse tipo de relação entre historiografia e justiça nos permite explorar até que ponto a busca
pela verdade na história e a busca política da justiça de transição convergem em seus
objetivos. Por último, nem todos os legados de conflitos podem ser apaziguados com a
verdade. Em outras palavras: nem toda verdade é conciliatória. 229
A segunda forma de envolvimento do historiador com mecanismos transicionais, de
acordo com Bevernage, é na luta contra o esquecimento. A justiça de transição trouxe consigo
a ideia de memória como justiça, conforme apontado por Traverso. Não só isso; a memória
adquire um caráter terapêutico, usado como ferramenta para lidar com traumas tanto
229 BEVERNAGE, 2014, p. 8-13.
83
individuais quanto coletivos. Porém, nem sempre a ideia de que a memória é melhor do que o
esquecimento foi preponderante, mesmo no debate acadêmico. Este é um fenômeno recente, e
as vantagens da memória sobre o esquecimento tampouco são evidentes. Além disso, 230
enquadrar o debate entre as ideias da memória e do esquecimento é simplista e reducionista –
as relações entre lembrar e esquecer são muito mais complexas e os dois processos podem
estar interligados. Como exemplo, Bevernage cita a comissão da verdade e reconciliação da
África do Sul, onde o dever da memória era pré-requisito para o esquecimento penal, a
anistia. Também existem diversas formas de lembrar, e lugares que optaram por políticas de 231
memória em contextos de justiça de transição não são necessariamente países que sofrem com
um déficit de memória. 232
Para Bevernage, são essas duas funções do historiador – de produtor de verdades e
defensor da memória – que costumam ocupar o centro do debate sobre o engajamento da
historiografia com a justiça de transição, tanto pelos seus militantes quanto pelos seus críticos.
O autor defende que apesar da importância das questões levantadas, essa abordagem é restrita
e limitada. Ele aponta uma terceira relação entre história e justiça, a historicização. Nas
palavras de Bevernage: O papel da historiografia e do discurso histórico no campo da justiça de transição não deveria ser meramente relacionado às suas funções tradicionais de representar o passado, de buscar a verdade ou mesmo de gerar significado ou identidade, mas também aos seus conceitos de tempo e à maneira específica em que a história conceitualiza a relação entre presente e passado. 233
Bevernage também cita Rousso, que por sua vez acredita que a função dos historiadores de
colocar o passado em seu lugar concede a eles um papel importante e desejável no espaço
público. Para Rousso, o exercício de separar o passado do presente é emancipado r porque
libera o presente das amarras do passado. 234
Rousso e Bevernage discutem o papel do historiador ativamente envolvido em
processos de justiça de transição, mas essas conclusões podem ser facilmente deslocadas para
o papel do historiador que estuda esses mesmos processos. Conforme afirma Bevernage, as
políticas temporais já estão em jogo na justiça de transição, com ou sem a presença de
230 Ibid. , p. 13-15. 231 Ibid., p.15. 232 Ibid., p.16. 233 Ibid., p. 23. Tradução minha, no original: “The role of historiography and historicising discourse within the field of transitional justice should not merely be related to its traditional functions of representing the past, of searching for truth or even of generating meaning or identity, but also to its concept of time and the specific way in which it conceptualises the relation between present and past.” 234 Ibid., p.16.
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historiadores. As ferramentas de historicização não são exclusividade do profissional, e sim
compartilhadas por uma série de atores sociais envolvidos nos processo transicionais, com
resultados distintos. A ADPF 153 é um excelente exemplo disso. Nesse caso, o ato de apontar
criticamente os usos e abusos do discurso histórico e das formas de historicizar colocam em
evidência os dilemas éticos e políticos envolvidos, bem como as consequências
epistemológicas e práticas desses discursos.
Sendo assim, a decisão de analisar os votos dos ministros a partir desta perspectiva
metodológica e teórica também representa uma reação aos desafios da história do tempo
presente; é uma forma de abordar um tema sensível, polêmico e político do ponto de vista da
historicidade. Ao optar por este caminho, o presente trabalho pode ser alvo de críticas por sua
aparente falta de engajamento político, pois não está diretamente preocupado com os valores
da justiça de transição que ocupam grande parte da produção acadêmica sobre a ditadura
militar: memória e verdade. Tampouco é uma história que se propõe a ‘fazer justiça’. Porém,
ao desnaturalizar a utilização da história na argumentação dos ministros e historicizar um
discurso jurídico, essa pesquisa demonstra que a utilização da história não é neutra. Apontar
para os usos performativos da história nos permite enxergar as suas consequências políticas e
sociais.
Considerando as consequências epistemológicas da justiça de transição discutidas até
aqui, é marcante a falta de problematização do próprio conceito no campo da história. Apesar
da significativa participação de historiadores nos mecanismos e processos da justiça de
transição, como por exemplo na Comissão Nacional da Verdade no Brasil ou na posição de
peritos em tribunais penais em outros países, há pouquíssima participação de acadêmicos da
disciplina na produção de conhecimento crítico sobre a ideia da justiça de transição em si. Na
historiografia brasileira sobre o período pós-ditadura, a justiça de transição aparece como um
conceito pré-estabelecido (definido no parâmetro do direito) e, na maioria dos casos,
contextual. Ou seja, no contexto de uma chamada ‘justiça de transição’, alguns trabalhos
históricos analisam a Lei da Anistia, as políticas de reparação, a Comissão Nacional da
Verdade, etc. Além disso, a justiça de transição também é muito utilizada como um parâmetro
que permite análises comparativas (majoritariamente entre as ditaduras latino americanas e o
caso da África do Sul). Porém, apesar de muito utilizado pela história, os historiadores em sua
maioria não se preocupam em definir o conceito ou, menos ainda, teorizar a respeito de suas
implicações epistemológicas.
85
Acadêmicos de outras área têm ocupado esse espaço, pensando sobre questões como o
desequilíbrio entre o protagonismo local e o internacional, o apagamento das violências
econômicas nesses processos e a necessidade de explicitar o conteúdo político do conceito. 235
Dustin N. Sharp critica uma visão teleológica da justiça de transição que tem como final 236
desejado o modelo de democracia liberal ocidental e economia de mercado. Também da 237
área do direito, Thomas Obel Hansen analisa as suposições temporais da justiça de transição,
utilizando exemplos de ferramentas transicionais utilizadas tanto em democracias bem
estabelecidas quanto durante regimes autoritários. Essas questões evidentemente são 238
relevantes para o historiador e portanto também deveriam ser abordadas desde a disciplina da
história.
Na construção do conhecimento histórico, é imperativo considerar algumas questões a
respeito da justiça de transição. Em primeiro lugar, o termo é descritivo e normativo: supõe
que a justiça seja o ponto de chegada e descreve um modelo a ser seguido. Além disso, o
conceito de “transição” é em si um conceito temporal, e portanto traz implicações diretas para
a escrita da história, principalmente se levarmos em consideração que vários dos mecanismos
da justiça de transição empregam, implícita ou explicitamente, ferramentas de historicização.
Além disso, quando utilizado, o termo “justiça de transição” nos permite observar a sociedade
através de um único problema, o da “memória, verdade e justiça”, deixando de lado outras
estruturas e processos relevantes para a construção de uma compreensão histórica.
Levando em conta esse esboço de problemas, acredito ser necessário um engajamento
crítico por parte dos historiadores que lidam com a justiça de transição, tanto como objeto de
pesquisa quanto como um conceito que define um contexto histórico. Diante dessas questões
e das conclusões estabelecidas a partir da análise dos votos dos ministros do STF na ADPF
235 Cf. BELL, Christine; CAMPBELL, Colm; AOLÁIN, Fionnuala Ní. Transitional justice: (re)conceptualising the field. International Journal of Law in Context, Cambridge: Cambridge University Press, v. 3, n. 2, 81-88, 2007; MUTUA, Makau. What Is the Future of Transitional Justice? International Journal of Transitional Justice, Oxford: Oxford University Press, v. 9, n. 1, 1-9, mar. 2015; SCHNEIDER, Nina; ESPARZA. Whose Transition? Whose Voices?: Latin American Responses to Transitional Justice. In: SCHNEIDER, Nina; ESPARZA (Eds.). Legacies of State Violence and Transitional Justice in Latin America: a Janus-faced paradigm?. USA: Lexington Books, 2015, Introdução. 236 Doutor em direito e professor de Peace Studies na Universidade de San Diego. 237 Cf. SHARP, Dustin N. Emancipating Transitional Justice from the Bonds of the Paradigmatic Transition. International Journal of Transitional Justice, Oxford: Oxford University Press, v. 9, n. 1, 150-169, mar. 2015; SHARP, Dustin N. Investigando as periferias: as preocupações da justiça de transição da quarta geração. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília: Ministério da Justiça, n. 10, 220-259, jul./dez. 2013. 238 HANSEN, Thomas Obel. The time and space of transitional justice. In: LAWTHER, Cheryl; MOFFETT, Luke; JACOBS, Dov. Research Handbook on Transitional Justice. Cheltenham; Northampton: Edward Elgar Publishing, 2017, 34-51. (Research Handbooks in International Law Series)
86
153, é fundamental questionar a noção de que a justiça de transição é uma tecnologia neutra.
Para Franco e Levín, o papel político do historiador não surge do interesse social pelos seus
temas de trabalho, “mas sim é prévio e se origina na intervenção política que significa
produzir e pensar criticamente o passado, em particular o passado mais próximo.” 239
Concordo com a análise das autoras de que todo trabalho de história do tempo presente
carrega consigo uma dimensão política inerente. A opção por uma abordagem historicizante –
que pode parecer para alguns uma opção menos visivelmente engajada – não é uma busca
positivista por uma suposta neutralidade; é uma demonstração de que tal neutralidade não
existe e que as demarcações temporais e construções cronológicas também são políticas.
239 FRANCO; LEVÍN, 2007, p. 13. Tradução minha, no original: “Sin embargo, ese rol no surge del lugar del historiador frente al interés social que generan sus temas de trabajo, sino que es previo y se origina en la intervención política que significa producir y pensar críticamente el pasado, y en particular el más cercano.”
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AGRADECIMENTOS
Ao PPGH/UFF, que me ensinou muito mais do que aprendi em sala de aula. Muito obrigada aos professores com os quais tive o prazer de cruzar durante a minha breve trajetória na instituição. Aos meus colegas de mestrado, notavelmente à Tanara Stuermer, Naira Mota Bezerra, e Luís Gustavo Mandarano, companheiros de viagem. À Monica Grin e Silvia Correia, do PPGHIS/UFRJ, por terem me apresentado ao Berber Bevernage e inadvertidamente mudado o rumo desta dissertação. À Giselle Venancio e Silvia Patuzzi, que participaram da banca de qualificação e me ajudaram a encontrar o vocabulário certo para contar essa história. Vocês são fonte de inspiração e motivação na busca por uma história crítica e de excelência. À Giselle agradeço ainda o privilégio da conversa na defesa da dissertação. À Lucia Grinberg, pela leitura tão atenciosa. Suas críticas são motivação para continuação desta pesquisa. Ao meu orientador, Daniel Aarão Reis. O sucesso dessa empreitada é tanto fruto da sua atenção e generosidade quanto do seu inconformismo e espírito revolucionário. Ao Carlos Roberto Maciel Levy, por insistir sempre nas jabuticabas. Ao meus pais, que me fizeram curiosa. Ao Sylvio, cujo amor alimenta todas as minhas aventuras. Seu carinho, sua paciência e sua felicidade com o meu sucesso são os pilares estruturantes deste trabalho.
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REFERÊNCIAS
Legislação e peças jurídicas:
BRASIL. Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Brasília/DF: 28 de agosto de 1979. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm . Acesso em: 16 jul. 2017. BRASIL. Emenda Constitucional n. 26 de 27 de novembro de 1985. Convoca Assembléia Nacional Constituinte e dá outras providências. Brasília/DF: 27 de novembro de 1985. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc_anterior1988/emc26-85.htm. Acesso em: 10 fev. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 153/DF. Arguente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Arguidos: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília/DF: 29 de abril de 2010. Inteiro teor do acórdão . Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf153.pdf . Acesso em: 16 jul. 2017. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Petição inicial de proposta de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. ADPF n. 153. Brasília/DF: 21 de outubro de 2008. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2644116 . Acesso em: 16 jul. 2017
Livros, artigos, teses e dissertações:
ABÁSALO, Ezequiel. Os “Comentários à Constituição” de Carlos Maximiliano Pereira dos Santos e a repercussão da cultura jurídica argentina no Brasil durante a primeira metade do século XX. Cadernos do Programa de Pós-Graduação Direito/UFRGS, Porto Alegre: UFRGS, v. X, n. 3, 39-52, 2015. ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D.; BELLATO, Sueli A.; ALVARENGA, Roberta V. Justiça de transição no Brasil: O papel da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília: Ministério da Justiça , n. 1, 12-22, jan./jun. 2009.
ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Mutações no conceito da anistia na justiça de transição brasileira: a terceira fase de luta pela anistia. Revista de Direito Brasileira , Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito, v. 3, n. 2, 357-379, 2012.
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