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7/26/2019 O Tempo Das Tribos
1/124
COLEO ENSAIO TEORIA
Dirigida por Luiz Felipe Bata Neves
O Jogo e a Constituio do Suje ito na Dialtica Social (Circe Vital
Brasil
Memrias do Social (Henri Pierre Jeudy
Comportamento e Contracontrole Social crnica do behaviorism o radical
de Skinner (Celso
Pereira
de
S
s Mscaras de Deus e a Totalidade Totalitria (Luiz Felipe Bata
Neves)
ichel affesoli
O
empo
das
ribos
O declnio do
individualismo
nas sociedades
de
massa
Apresentao de Luiz Felipe Bata Neves
Traduo de
Maria de Lourdes Menezes
Reviso tcnica de
mo Vogel
OR NS
UNIVERSITRIA
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
2/124
2
1
edio - 1998
opyright
Michel Maffesoli
Traduzido de:
LI Tempstks Trtbus
Capa:
Ampersa d Comunicao Grfica
CIP-Bnosil. Catalogao-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores
de
Livros, RJ
Ml62t Maffesoli, Michel,
1944-
2 ed
O
tempo
dos tribos: o decfinio
do
individualismo nas sociedades de
masso/
Michel Maffesoli;
apresentao de Luiz Felipe ata Neves; 1Illduo
de
Maria
de
Lourdes Menezes; reviso
tcnica de
Amo
Vogel.- 2 ed.- Rio
de
Janeiro: Forense Univ=itria, 1998.
(Ensaio teoria)
Traduo de:
Le
temps des tribus: le dcfin
de
l individualisme dans les socits
de
masse
Inclui bibliografia
ISBN
85-21 -m26-9
I. Grupos sociais. 2 Sociologia
I.
Titulo.
D.
Srie.
CDD305
CDU323 .3
Proibida a reproduo total
ou
parcial,
bem como
a reproduo de apostilas a
pOIIir
deste
livro,
de
qualquer forma u por qualquer
meio
eletrnico ou
mecnico.
inclusive atravs de
processos xerogrficos
de fotocpia e
de
gravaio, sem permisso expresso
do
Editor Lei n 5.988 de 14.12.
73).
Reservados os direitos de propriedade desta edio pela
EDITOR FORENSE UNIVERSITRI
Rio de Janeiro:
Rua do Rosrio, 100-20041-002- Tels: 509-3148/509-7395
So Paulo:
Largo de So Francisco, 20-01005-010- Tels: 3104-2005/3104-0396
Impresso
no
Brasil
Printedin
rmil
Para
Raphaele
Sarah-Marie
Emmanuelle
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
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I
_
#
PREFCIO
SEGUNDA
EDIO
Tribos e Ps-modemidade
J
mencionei anteriormente
que o
que
melhor poderia
carac
terizar
a
ps-modernidade
era o vnculo que estava
sendo
estabe
lecido
entre
a tica e a esttica.
O que
pretendia dizer
com isso
que eu via o novo vnculo social ethos) surgindo a partir da emoo
compartilhada ou do sentimento coletivo. Portanto, em vez de
ver
a
uma
frivolidade qualquer disposio
de
alguns, vanguarda,
bomia artstica,
talvez estivssemos
mais
inspirados se
desco
brssemos nesta coletivizao dos sentimentos
um
dos fatores
essenciais da vida social que est
em
vias de re)nascer
nas
sociedades
contemporneas.
No nos esqueamos que tal perspectiva se
insere, h
muito
tempo,
na
tradio intelectual francesa: os
surrealistas,
certa
mente, mas tambm G. Bataille e, mais recentemente, Michel
Foucault.
Em cada um
desses
casos, com nuanas
de
real
impor
tncia, o
destaque
dado
a uma perspectiva global, holstica, que
integra a vivncia , a paixo e o sentimento comum. Reconhecemos
l
uma
mudana
importante
de paradigma: em vez de dominar o
mundo, em
vez
de
querer
transform-lo
ou mud-lo- trs atitudes
prometeanas - ns nos dedicamos a
nos unirmos
a ele atravs da
contemplao . A prevalncia da
esttica,
a
perspectiva
ecolgi
ca, a no-atividade poltica, as diferentes formas do souci de soi e
os diversos cultos do corpo so, na realidade, no importa o que
possam parecer,
formas
desta contemplao .
Em
cada um
de todos
esses
casos, ser a
ambientao
do
tempo e do lugar
que
ir determinar a
atividade,
a criao: quer
seja a crao
maiscula
das
obras
de
cultura,
ou a criao
microscpica
da
vida do cotidiano.
Mas,
no nos esqueamos, o
1
Cf ux
Creux des Apparences
(1990), trad. portugus Ed. Vozes, 1996.
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
4/124
que
va de soi
faz comunidade.
nesse
sentido que o que eu chamei
de orgiasmo
matricial.
verdade, so
momentos
em
que
obcecados pelo fazer , o aspecto
racional
das coisas, o
ativismo
social ns vamos minorizar esta abordagem
ambiental .
Da
em
d i n t ~
tudo
o que no podemos
contar,
que no conseguimos
medir,'
tudo
o que de ordem do evanescente e do
imaterial
considerado
como
quantidade
desprezvel.
(So muito
diferentes
as pocas em
que
renascem a preocu
pao com o estar juntos e a estranha
presso
que nos impulsiona
para
o outro)
Historicamente,
o barroco da quantidade, e em
nossos dias os diversos agrupamentos
de
vida
corrente repetem
a
mesma coisa. Trata-se
a
de
um
verdadeiro uso dos
prazeres
sobre
o qual Michel Foucault
soube
to bem mostrar a
importn
cia societal.
Assim, vemos
que
o
ambiente tem uma
funo: a
de
criar um corpo coletivo, de
modelar um ethos.
E o
que
nos
ensina
a histria da arte
no
deixa
de encontrar repercusso
em outras
situaes
mais
profanas, onde se exprime
uma
ligao
menos importante. Quanto a isso, basta
pensar
nas
reumoes
musicais, esportivas ou
de consumo para medir esta
funo
con
tempornea.
Mudana
de
cultura,
no se
dir mais o
Stimmung
de
uma
paisagem, ou
de
uma catedral, mas
se falar de
feeling
de
uma
relao, do sentimento
induzido por
um lugar, _de o ~ t r ~ s
categorias no
menos
vaporosas
para
descrever um
suacwms
mo amoroso, profissional
ou
cotidiano
de conseqncias
no
desprezveis dentro da criao , ~ sua aceitao a mais extensa
de
um
perodo
predeterminado.
E
assim que
podemos
compreen
der
e analisar
esse
fenmeno
espantoso que
a
moda, que
nasce
da
necessidade de se
singularizar, mas
que no pode
existir
a no
ser secretando a
imitao
mais banal. A moda, no trajar, na
ideologia ou no linguajar etc.,
traduz
bem esta inflao do senti
mento
(G.
Simmel)
suscitada
pela
atmosfera
ambiente.
O indivduo
no
, ou
no
mais, mestre de si. C que
quer dizer
que ele
no seja ator. Ele
o , na
verdade,
mas a maneira
daquele
que
recita um texto escrito por outra pessoa. Ele pode
acrescentar a entonao, com mais ou menos calor,
e v ~ ~ t u a ~ m e n -
te
introduzir uma rplica, no entanto, ele continua
pnswneiro de
' Cf. O Uso dos Prazeres Michel Foucault,
Paris,
1984.
uma forma que
ele
no
pode,
em
nenhuma
hiptese,
modificar
por
vontade
prpria.
Nesses
tempos
em
que
de bom-tom falar
sobre
individualismo,
quando difcil questionar esse pensamento con
vencional,
no
intil lembrar a evidncia emprica da
imitao
furiosa,
desse
instinto animal que nos
impulsiona
em geral a
fazer como os outros . Simmel via nisto
um
fenme no sociolgico
dos
mais instrutivos:
o indivduo
se sente
conduzido pelo
ambi
ente
palpitante das
massas
como
que por
uma fora
exterior,
indiferente ao seu ser ou sua vontade individuais. Mesmo
que,
contudo, esta massa
seja
constituda
exclusivamente de tais indi
vduos 3.
Ao elaborar a sua tica da simpatia, M. Scheler se dedica a
mostrar que
ela no
nem
essencialmente,
nem
exclusivamente
social.
Ela seria uma
forma englobante, matricial, de certo modo.
esta hiptese que eu formularei por
minha
vez. Seguindo a
comparao
das histrias humanas,
depois de terem
sido
minori
zadas,
esta
forma
estaria novamente
presente.
Ela
privilegiaria
a
funo emocional
e os
mecanismos
de identificao e de
partici
pao que vm a seguir. O que ele ch:;tma de teoria de identifica
o da simpatia permite explicar
as
situaes de fuso, esses
momentos
de
xtase que podem ser
regulares,
mas
que
podem
igualmente caracterizar o clima de uma poca.
4
Esta teoria
da
identificao, esta
sada
esttica
de si
est
em
perfeita
congruncia
com o desenvolvimento da
imagem,
com
aquele do espetculo (do espetculo stricto sensu nas paradas
polticas) e,
naturalmente,
com
aquele
das
multides esportivas,
das multides de turistas ou simplesmente com as
multides
de
desocupados.
Em
todos
esses
casos,
assistimos
superao
do
principium
individuationis
que era o nome de ouro de toda
organizao e teorizao sociais.
Ser
mesmo
necessrio, como sugereM. Scheler, uma grada
o
entre
fuso , r ~ p r o d u o e participao afetivas. Seria
melhor,
a meu
ver,
e apenas a
ttulo heurstico, estabelecer
uma
nebulosa afetual de
uma
tendncia orgistica ou dionisaca. As
exploses orgisticas, os cultos
da
possesso, as situaes fusio
nais
sempre existiram. Mas, s vezes, eles
tomam
um
ar
endmico
.J Simmel, George, Sociologie et .1f:pistmologie
Paris,
1981,
p.
116.
'Scheler,
M.,
Nature
et Forme de la
Sympathie Paris, Payot,
1928, p. 113 e seg. e p. 149-1 52.
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
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e se tornam preeminentes na conscincia coletiva. Sobre alguns
assuntos ns
vibramos em
unssono. Halbwachs
fala
sobre isso
como
interferncia
coletiva .
5
Esta
nebulosa
afetual nos permite
compreender
a forma
especfica que toma a sociabilidade em nossos dias: o vaivm
de
nossas tribos. De fato, diferentemente do que prevaleceu nos anos
70, se
trata
menos de se agregar a um grupo, a uma famlia ou a
uma comunidade
do que o
ir
e vir
de um grupo
a
outro.
o
que
pode
dar
a
impresso de uma atomizao,
e o
que
pode fazer
falar
erroneamente em narcisismo.
De
fato, contraria
mente estabilidade induzida pelo
tribalismo
clssico, o
neotri
balismo
caracterizado
pela fluidez, as
reunies pontuais
e a
disperso. assim
que
podemos
descrever
o
espetculo
das ruas
das megalpoles
modernas.
O
adepto
do
jogging
o punk o
look
retr
o
bom
moo
elegante,
os
apresentadores de
televiso
nos
convidam
a
uma viagem incessante.
Atravs
de sedimentaes
sucessivas, se forma um ambiente
esttico. E no
interior desses
ambientes que regularmente
podem
ocorrer
estas
condensaes
instantneas , frgeis, mas
que naquele momento so
objeto
de
um grande
investimento
emocional.
esse aspecto seqencia l que
permite falar de
superao
do princpio de individualizao.
Eis a
constatao
que O
Tempo
das
Tribos pretende
propor.
Como podemos ver, trata-se
de
uma
proposta importante
cujas
conseqncias,
epistemolgicas e sociais,
ainda devem ser
explo-
radas. Mas a
compreenso
que as cincias
humanas
sabero
ter
desta proposta que lhes permitir, ou no, responder aos inme
ros desafios
lanados
pela ps-modernidade
neste
fim de sculo.
O
Autor
5
Halbwachs,
Maurice,
a
Mmoire Collective
Paris PUF,
1968,
p.
28.
APRESENTAO
uiz
elipe
Bata Neva
A publicao de um novo livro de Michel Maffesoll no
Brasil suscita algumas reflexes sobre
sua
obra e. . . sobre ns
prprios. Quais os efeitos que o trabalho de Michel Maffesoli
pode acarretar ; o que ele revela de ns enquanto povo ; o
que exibe, por contraste, de nossas maneiras intelectuais de
fazer cinc;a ?
Fico, nesta Apresentao, especialmente voltado
para
os
efeitos que o tempo
das
tribos pode ter
p r
a teoria social
tal
como (por muitos) praticada entre ns.
Minha primeira observao sobre a crtica
a.
prt1ca)
maffesoliniana. ao carter normativo e judicativo que as cin-
cias sociais tendem a assumir. Julgamentos de valor que,
fin -
listas, se voltam para a implantao do Futuro e que, por
ndole, menosprezam o presente
(a
vida) e o conjuntural. Como
se a Histria, que tanto louvam, se desse fora do presente e
.
da
conjuntura; e como se essa Deusa precisasse de arautos.
Arautos que,
r v s t i ~ o s
do
manto do Saber (e de seu Poderes) ,
no querem falar apenas em seus prprios nomes, mas que
teimam em falar em nome do Povo,
da
Justia, da MDral.
No lugar dessa paixo pelo ventriloquismo dos Demiurgos
Cientistas, to conhecida quanto pouco estudada entre ns,
M.
Maffesoli prope
uma
outra: a paixo pelo social t l como
ele tal como ele se d e no como deveria
er.
Esse respeito
pelo objeto (vivido e) analisado no sinnimo de apologia
pelo estabelecido ou elogio
da
iniqidade. o
movimento
est
patente
em
todo o esforo de compreenso feito; apenas ele
escapa aos teleologismos e aos moralismos.
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
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Esta escrita sobre o social de M. Maffesoli permite um
(doloroso) confronto com o tesismo quE se abateu sobre o pais,
nosso
pais
intelectual . Podemos, com este e outros de seus
livros, ver at que ponto a criatividade cientfica entre ns
continua fortemente manietada. E no por nenhuma fora auto
ritria e externa academia, mas s:m pelos compromissos
internos que
acabaram
por
se
estabelecer
to
rigidamente
entre
desempenho intelectual e tradicionalismo terico. Perdemos
muito da capacidade de errar, de avanar conhecimentos no
estabelecidos (pelo estabelecimento universi trio ) , de
arriscar, de lanar conhecimentos no acabados . Perdemos
a capacidade de
ensaiar
- palavra, alis, cheia de sentidos. No
que a teoria social
no
Brasil no tivesse conhecido o ensaio;
pelo contrrio, ela foi fundada por ele, com Gilberto Freyre,
Srgio
Buarque
de Hollanda, Caio Prado Jr. O magnfico ensaiS
mo brasileiro destes fundadores tem que ser recuperado em
sua
ousadia,
em sua
erudio,
em sua
elegncia de estilo -
no com o sentido de venerao passadista, mas pela fertilidade
que pode trazer, pelo antdoto que pode representar sensa
boria e platitude.
A ousadia intelectual, aqui, em M. Maffesoli, no - como
os appa ratchik poderiam esperar -
no
, repetimos, sinnimo
de inconseqncia ou falta de conhecimento terico. O
que
vemos uma constante re-apropr iao. . . dos c l ~ s
c o s
Man,
Weber, Durkheim -
t o
que no falta a nenhum dos cursos
de
Metodologia de nossas universidades. . . - esto citados
e so vistos de forma inteligente e inovadora, concorde-se
ou
no com
as
posies de Maffe::oli quanto a eles. A.ss
1
m sendo,
a seriedade do trabalho no se confunde com a sisudez dos que
querem nos convencer
pela
mesmice e pela invocao ecto
plsmica de figuras
institucionalmente
entronizadas.
Ao lado de uma (re-)visita aos clssicos, o
trabalho
que
se segue
apresenta vantagens substantivas
adicionais. Per
mite
ao
leitor brasileiro tomar (ou rever)
contato
com
autores
pertencentes a
outras
tradies intelectuais,
m u ~ t o
pouco vistos
na prpria
Europa
(e, portanto, aqui. . . ) por muito tempo.
Como Simmel,
Schutz
e tantos
autores de linhagens
fenomeno
lgicas rigorosamente desconhecidas pelos -controladores/produ
tores de bibliografias do j-consagrado . . . Some-se a essas
qualidades a de apresentar - o que j
uma
saudvel tradi
o de Maffesoli - recentes teses universitrias de colegas
seus de diversos pases, alm de artigos e livros publicados em
pases com que, infelizmente, temos pouco contato em cincia
social (como a Itlia) .
O 'tema' principal do livro o das armas grupais que
surgem nas
sociedades contemporneas. O grupalismo -
sur
presa
de muitos - ou o neotribalismo recente das sociedades
complexas, , na verdade, uma tela para
onde
converge uma
rica discusso conceitual
suscitada por
Maffesoli. Discusso que
toca fundo temas recorrentes nas discusses acadmicas
no
Brasil, como o que distingue e confronta as noes de indiv
duo
e sociedade . Aqui, como
em
diversos
outros
momentos,
a soluo terica proposta inovadora e uma srie de revises
conceituais lanada mesa dos debates. Srie que
passa
pelo
prpr:o o n e ~ t o de Histria;
por
uma viso holstlca no tot -
l itria pelo re-exame da
importncia
do poltico e do econmico;
por uma re-considerao das diferenas
entre
os conceitos de
cultura
e civilizao ;
por
uma
nova
valorizao do fluido.
do simples, do polimorfo, do cambiante, do parcial; por uma
fascinante proposio relativa ao papel
da
afetividade, da pro
ximidade, do calor
humano
na
constituio social;
por
uma
srie de
chibatadas
dirigidas ao institucional, ao burguesismc
e ao produtivismo; pela s;gnlficao corajosa atribuida aos
aspectos culturais das sociedades humanas; pela reiterada dife
rena constatada entre noes
habitualmente
fundidas, como
as de poder e potncia - ou de algumas mal-vistas , como
a
de forma .
Toda essa srie de exemplos - meramente indicat
1
vo:s d
riqueza do livro que apresentamos - no deve, obviamente
ser tomada como signo de
pertencimento
a mais uma mod::;
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
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vind d
Europa . So, pelo contrrio, um convite
leitura
elegante, instigante,
que
o
tempo
d s
tri os
pode proporcionar.
O fato de haver - ou no - coincidncia de posies importa
pouco; o que conta
o exerccio de inteligncia que pode ser
feito e o prazer que se pode usufruir destas ousadas pginas
maffesolin anas to prximas - pela errncia, coragem e des
temor - daquilo que Freud um dia, falando amorosamente de
um "selvagem" texto seu, chamou de "fantasia cientffica".
SUMRIO
Maneira de Introduo .
. . . . 1
Captulo I A Comunidade
Emocional
(Argumentos
de
uma
pesquisa) . . . . . . . 13
1. A
Aura esttica
.
2. A experincia tica .
3. O costume . . . . .
Captulo
A
Potncia Subterrnea
1. Aspectos do vitalismo . . .
2. O
divino
social . . . . . . .
3. A auto-referncia
popular
Captulo
-
A Socialidade
contra
o
Social
1. Para alm do polti co . . .
2.
Um
familialismo natural
Captulo
IV
- O Tribalismo
1. A nebulosa afetual
2. O estar-junto
toa
3. O modelo religioso
4. A
socialidade
eletiva .
5. A lei do segredo
6.
Massas
e estilos de vida
Captulo V O Policulturalismo
1. Da triplicidade . . . . .
2.
Presena
e
afastamento
13
. 22
. 30
. 45
. 45
. 56
. 67
. 79
. 79
. 91
101
101
111
115
121
128
136
143
143
146
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8/124
3. O
politesmo
popular
ou
a
diversidade
do deus
4. O
equilbrio
orgnico .
Captulo VI
Da
Proxemia . .
1
2
3
4
Notas
A comunidade de destino
enius oei
. . . .
Tribos e redes . .
A Rede
das
redes .
152
159
169
169
179
193
203
209
A
MANEIRA
DE
INTRODUO
1.
Algumas precaues quanto ao uso
Ambincia, eis
um
termo que freqentemente reaparecer
no .decorrer deste livro; pois talvez seja til explicar, em
poucas palavras, que foi ele que presidiu
sua elaborao.
Eu tinha
comeado uma obra precedente colocando-me sob
a patronagem de Savonarola. Hoje invocarei a de Maquiavel,
fazendo referncia ao que ele chama de "o pensamento
da
praa
pbl ca". Para aqueles que lem, para os que sabem ler, segue
-se uma reflexo de flego que, atravs das noes de potncia,
de socialidade, de quotidiano, de imaginrio, pretenda
estar
atenta
ao que constitui, em profundidade, a vida corrente de
nossas sociedades, neste momento em que
se
conclui a era
Moderna. As balizas agora colocadas permitem rumar com fir
meza, na direo
da
cUltura que deve ser entendida no sentido
forte do termo, e que
est
prevalecendo sobre o processo eco
nmico-poltico. A tnica colocada nos diversos rituais, na vida
comum,
na
duplicidade, no jogo das aparncias,
na
sensibHi
dade coletiva, no destino, em suma,
na
temtica dionisaca,
ainda que possa ter provocado sorrisos, no deixa de ser utili
zada de diversas maneiras, em inmeras anlises contempor
neas. Isso normal. A histria do pensamento demonstra muito
bem que, ao lado dos mimetismos intelectuais ou das autolegiti
maes a
priori
existem legitimidades que se constroem com o
uso. Algumas geram um saber capitalizado, outras, no sentido
etimolgico do termo, "inventam", isto
fazem ressaltar o
que est presente mas que temos alguma dificuldade em dis
cernir.
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
9/124
0 TEMPO
DAS
TRI OS
Entretanto, no se
trata
de ser triunfalista. Este d i ~ c e r n i
mento no coisa fcil. A sensatez que impera em nossas disci
plinas, , certamente, expresso de
uma
prudncia necessria,
porm, muitas vezes mortfera. interessante notar, alm di :SO,
que ele combina muito bem com a desenvoltura a mais pre
tenciosa. Ser que existe
uma
grande diferena entre o que
M.
Weber chamou a "pequena engrenagem de
um
pensamento
tecnocrtico e o "no-me-importismo" que resgata, com lucro,
o que ele (ou outros) semearam h muito tempo? De fato,
um vale bem o outro, e o incensamento comum de ambos por
parte de um pblico beato merece ateno. Ser necessrio,
ento, como fazem alguns, vilipendiar
uma
poca pouco vigo
rosa e um tanto ignara? Eu no ~ e r i a to leviano. natural
que alguns tomem os bobos da corte por jornalistas apressa
dos. Afinal de contas isto tambm faz parte do dado social.
.Mas podemos, igualmente, imaginar que alguns tenham outras
ambies, como por exemplo,
d i r i g i r - ~ e
a
eS'Ses
happy
t w
que
desejam pensar por
si
mesmos e que encontram
em
tal livrp,
ou qual anlise, uma ajuda,
um
trampolim que lhes permita
epifanizar seu prprio pensamento. Ingenuidade, pretenso? O
tempo ser o tuiz. E apenas alguns espritos avisados sabero
antecip-lo,
um
pouco.
Espero ter feito compreender que a ambio desta obra
dirigir-se misteriosamente, sem falsa simplicidade nem compli
cao i n t ~ l
comunidade de espritos que, fora das igrejinhas,
das associaes e dos sistemas, pretende pensar
esta
homme-
rie , de que falava o sbio Montaigne, e que tambm o seu
destino. Espritos livres, certamente, pois, ver-se- que, nas de
rivas que vm a seguir, ser necessrio
ter
o pleno domnio
dos prprios movimentos
para
a aventurosa navegao do pen
samento. Freischwebende Intelligentzia. Talvez essa seja uma
perspectiva inquietante mas que no deixa de ser interessante
para os que conferem a esta aventura a importncia que lhe
devida. Em resumo, no tenho nenhuma vontade de fazer um
desses livros que, como dizia G. Bataille, "prendem com facili
dade aqueles que os
lem...
(desses livros que)
agradam
o
A
MANEIRA
DE
INTRODUO
J
mais das vezes aos espritos vagos e impotentes que querem
fugir e dormir"' (Oeuvres Completes, t. VIII, p. 583).
til informar que no se trata, no caso, de
um
estado
d'alma, mas de esclarecimentos
de
bastante valia, pois a tradi
cional compartimentao disciplinar
no
~ r respeitada, o que,
naturalmente, no favorece a seguridade intelectual que ela
costuma trazer comigo.
o prprio objeto abordado que exige
esta transgresso.
Na
verdade, agora aceita-se cada vez mais
que a existncia social, da qual nos ocupamos, se presta com
muita dificuldade ao recorte conceitual. Deixemos isso para os
burocratas do saber, que acreditam fazer cincia, presidindo
repartio classificada daquilo que, supostamente, cabe a cada
um. Que a partilha seja feita em funo das classes, das cate
gorias scio-proflssionais, das opinies polticas ou de outras
determinaes a priori tanto faz. Para usar
um
termo meio
brbaro, que nos esforaremos continuamente
para
ex-plicitar,
esclarecer, o que tentaremos
manter
uma
perspectiva "holls
tica": noo que, numa constante reversibilidade, une a globa
lidade (social e natural com os diversos elementos meio e
pessoas) que a constituem. Isso, no rastro da temtica que
reivindico, volta a reunir os dois extremos da cadeia,
0
de
uma
ontologia exis tenc ial e o da mais simples das trivialidades.
1
A prime;ra,
tal
como
um
raio lazer, iluminando as diversas ma
nifestaes da segunda.
evidente que, na perspectiva
da
diviso, que ainda tem
um papel dominante, esse procedlmento inquietante, e se
tender a preferir as abordagens monogrficas, ou del berada
mente tericas. Vou desconsiderar, entretanto, as delicias
inte
lectuais de cada uma dessas atitudes, confiando no fato de
que certas comideraes "inatuais" podem ser perfeitamente
adequadas ao seu tempo. Para o que nos ocupa agora, vou citar
Lvi-Strauss que demonstrou, com a repercusso conhecida,
que no
era
o caso de exacerbar a separao clssica entre
magia e cincia, e que, pela
sua
enfatizao dos "dados sens
veis, a primeira no
tinha
sido, de modo algum, intil para o
desenvolvimento desta ltima.
2
Por
minha parte
tentarei levar
at as ltimas conseqncias a lgica dessa comparao, ou,
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
10/124
O TEMPo
D S
TRIBOS
pelo menos, aplic-la a outros tipos de polaridades prximas.
Darei explicaes mais detalhadas, a respeito, no captulo
final
Entretanto, quer me parecer que existe a um paradoxo fecundo,
e, seguramente, dos mais teis para observar as configuraes
sociais, apoiadas cada
vez
mais na sinergia, daquilo que, at
agora, se tinha tendncia a separar.
A antinomia
do
pensamento erudito e do bom senso parece
bvia E naturalmente para o primeiro o ltimo , antes de
tudo, doente. Quando
no
classicado de "falsa conscincia",
o bom senso , no mnimo, dbil. O desprezo pelas anima
candida
a pedra de toque da
atitude
intelectual. J falei a
respeito desse fenmeno. Gostaria, agora, de
mostrar
que isto
no
deixa de ter conseqncias para explicar a incapacidade
de compreender o que, na falta de melhor denominao, cha
maremos a vida. Referir-se vida
em
geral algo que no se
faz sem risco. Isso pode conduzir, em particular, a
um
devaneio
sem horizontes, mas, na medida em que podemos lastrear esta
perspectivao com os "dados sensveis", evocados acima, no
deixaremos de alcanar a margem dessa existncia concreta,
to estranha s elucubraes desencarnadas.
Ao
mesmo tempo,
importante preservar a possibilidade
da
navegao de longo
curw. 1: assim que se "inventam" novas terras. E isto, a cate
goria geral o permite. Eis a em questo o problema da siner
gia: propor
uma
sociOlogia vadia que no seja ao mesmo tempo
uma
sociologia s m objeto
O movimento reversvel que vai
do
formismo empatia
pode, tambm,
mostrar
o deslocamento' de importncia
~
est ocorrendo, de uma ordem social essencialmente
mecanista
para uma
estrutura
complexa a dominante
orgnica
Assisti
mos
substituio da Histria linear pelo mito redundante.
Trata-se de um retorno do vitalismo do qual pretendemos
mostrar as diversas modulaes. Os diferentes termos evocados,
entretanto, encadeiam-se uns aos outros. A organicidade remete
ao impulso vital ou vida universal to c.ara a Bergson. No
esqueamos, no
entanto,
que ele propunha
uma
intuio
direta
(lar
conta dela. M. Scheler e G. Simmel partilhavam igual-
A MANEffiA DI : Nl'llODUO
5
mente
esta viso
da
unidade
da
vida.
3
Voltarei freqentemente
a essa perspectiva pois, alm de
permitir
a compreenso do
panvitalismo oriental, que se encontra
na prtica
de muitos
pequenos grupos contemporneos,
ela
esclarece tambm a
emoo e a dimenso "afetual" que os estruturam ~ n q u n t o t ~ i s
Vemos, ento, o interesse do
alerta
enunciado acima.
o
fato de o dinamismo social no
estar
mais
trilhando
os ca
minhos da Modernidade, no significa que esse dinamismo no
exista mais. dentro dela. E, ao seguir o trajeto antropolgico,
que apontei, a melhor maneira de dizer a mesma coisa de
monstrar que
uma
vida quase animal percorre, em profundi
dade, as diversas manifestaes da socialidade. Dai a insistncia
na "reliana",
na
religiosidade que
uma
parte essencial do
tribalismo de que vamos nos ocupar.
Sem
qualquer
contedo doutrinai, podemos falar, de
uma
verdadei ra sacralizao das relaes sociais, que o pos tivista
Durkheim chamou,
sua
maneira, o "divino social".
assim
que, por minha parte, compreendo a Potncia da socialidade
que atravs da a}?steno, do silncio, e da astcia se ope ao
Poder do econmico-poltico. Encerrarei este primeiro alerta
com uma elucidao tirada da kabala. Para esta as "potncias"
(Zefirot) CDnstituem a divindade. Segundo G. Scholem essas
potncias so os elementos primordiais em que toda realidade
se apia. Por conseguinte "a vida se espalha no exterior e vivi
fica a criao, permanecendo, ao
m e s ~ o
tempo, no fnterior,
de maneira profunda, e o ritmo fecreto do seu movimento do
seu pulso, a lei da dinmica da natureza". 4 Este peqdeno
~ p l o g o permite resumir o que me parece ser o papel
da
socia
hdade: para aqum e para alm das formas institudas, que
sempre existem e que, s vezes, so dominantes, existe uma
centralidade subterrnea
informal
que s ~ e g u r a perdurncia
da vida em sociedade.
para esta realidade que convm vol
tarmos os nossos olhares. No estamos habituados a ela, nossos
instrumentos de anlise e ~ t o um pouco antiquados, mas in
meros indcios, que
tento
formalizar neste livro, nos
apontam
que este o CDntinente que nos convm explorar. Este
um
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
11/124
6
O
TEMPO
DAS TRIBOS
empreendimento para as prxim.as dcadas. Sabemos, que
sempre
post
festum que se comea a reconheer a q U J l ~ .que .
E
n e c e s ~ r i o , ainda, que sejamos suficientemen.te luc1dos, _e
sem excessivas prevenes intelectuais, para que este prazo nao
seja longo demais.
2.
Quomodo
Na verdade necessrio harmonizar, tanto
quanto
posshel,
nossas maneiras de pensar e os objetos (re)nascentes de que
queremos nos aprox:mar. Ser preciso, a esse respeito, falar
de revoluo coperniciana? Talvez. De qualquer modo
neces
srio
armar-se de uma boa dose de relativismo ainda
que
seja
apenas para
nos
tomarmos
receptivos para um novo estado
de coisas.
6
Num primeiro momento, e no contra-p de uma
atitude
multo
difundida
na
Modern;dade, talvez seja
neCf ...ssftrio
ser
deliberadamente intil; no devemos permitir qualquer inter
ferncia com a prtica,
recusar
a participao num con}leci
mento instrumental. Lembro, a propsito, o exemplo, curiosa
mente esquecido, dos fundadores da sociologia, que,
na
palavra
desse bom hi:::toriador da disciplina que R. Nisbet, nunca
deixaram de ser artistas . E bom
no
esquecer, tambm, que
as idias, que podm v'r a se estruturar como teorias, surgem.
antes de tud-o, do domnio da imaginao, da vis-o, d l. intui
o .
6
o conselho oportuno, pois foi dessa maneira que,
na
virada do sculo p a ~ s a d o , os pensadores referidos, hoje autores
cann
cos,
puderam
propor pertinentes e variadas anlises do
social. Ainda que pela fora das circunstncias, quer dizer,
quando nos confrontamos com qualquer (re)novao social,
necessrio praticar um certo laisser-aUer terico, sem que
para tanto seja precim abdicar do engenho ou favorecer a
preguia e fatuidade intelectual. Na tradio compreensiva,
que fao
minha,
procedemos sempre atravs de verdades apro
ximativas. Isto
ainda
mais
importante
quando se
trata
da
vida quotidiana.
A,
mais
do que
em
qualquer
outra
parte,
no
A
M NEIR
DE
lJmtOJ)UO
7
temos
por
que nos preocupar com o que possa ser a verdade
ltima. No caso, a verdade relativa, tributria da situao.
Trata-:e de um situacion ismo complexo, pois o observador
est, ao mesmo tempo, ainda que parcialmente, integrado em
tal ou
qual
das situaes descritas por ele. Competncia e ape
tncia caminham lado a lado. A hermenutica supe
ser
quem
descreve
da mesma
substnc'a
que aquilo que descreve.
Ela
requer uma
certa
comunidade de perspectiva .
Os
etnlogos
e os antroplogos can aram-sw de insis tir nesse fenmeno.
Creio que hora de aceit-lo tambm
para
as realid'ades que.
nos so prximas.
Mas como tudo aquilo
que
est nascendo frgil, incerto,
cheio de imperfeles, nossa aborlagem tem
as
mesmas quali
dades. Da a
aparncia de
frivolidade. Um
terreno
movedio
neces ita de um tratamento adequado e no vergonha fazer
surf sobre as ondas
da
socialidade. , inclusive,
uma
questo
de
prudncia que
no
deixa de se
mostrar
e f i c a ~ .
Desse ponto
de v:sta, a utiliza&o da metfora perfeitamente r e l e v ~ n t e
Alm do fato de ter ela os seus tt.;;_los de nobreza e de
utilizada
na
produo intelectual de todos os
p e r o d ~ s
de
efer
v e s c ~ c i a ela permite tambm essas cristalizaes especficas
que sao
as
verdades aproximativas e momentneas. Disseram de
Beethoven que ele encontrava
na
rua os temas de suas mais
belas p ~ s s a g e n s o resultado no desprezvel.
Por que
no
escrever1amos nos as nossas partituras a partir do mesmo cho?
. . Assim c o ~ o . a p e r s ~ n a e
suas
mscaras, na
teatralidade
quo
tidiana,
a
s o ~ 1 a l l d a d e
e
estruturalmente
ardilosa, inapreensvel,
dai a confusao dos universitrios, dos polticos, dos jornal;stas
que a descobrem
alhures, quando acreditam
t-la apreendido
Nu
ma cornda desvairada, os mais h o n e ~ t o s vo subrepticia-
mente, mudar de teoria, e produzir um outro s;stema, explica
tivo e completo, para aprend-la de novo. No seria melhor
como
d'
. h ,
, eu IZia a pouco, estar nela e praticar tambm a
a tucia? A d b
o mves e a ord -la de frente, positivando
ou
criti-
cando um dado social fugidio, utilizar uma
ttica
de matizes
e _atacar de vis.
a prtica
da
teologia apoftica:
de
D e ~
nao
se fala s - t -
nao
por
ev1
aoes. Desse modo, ao invs
de
querer,
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
12/124
8
0 TEMPO DAS TRIBos
de maneira ilusria, apreender firmemente um obJeto, explic-lo
e esgot-lo, contentar-se em descrever os seus contamos,
seus movimentos,
suas
hesitaes, seus xitos e seus diversos
sobressaltos. Mas como tudo tem a ver com tudo, e ~ s astcia,
tambm, poder ser aplicada aos diversos
instrumentos
que
tradicionalmente utilizamos em nossas disciplinas. Tanto
para
reter
o que eles
tm
de til,
quanto para
ultrapassar
sua
rigi
dez.
A
e3Se respeito gostaria de fazer como este outro
outsider;
que Goffman. Ele foi um dos que inventou conceitos, mesmo
que
tenha
preferido, s vezes,
utilizar
palavras antigas,
dan-
do-lhes um novo sentido ou fazendo-as entrar
em
combinaes
originais que rompem com o p e ~ o dos neologismos .
8
Preferir
os minir.::onceitos
ou
as noes s certezas estabelecidas,
mesmo que isso possa chocar, parece-me o penhor de
uma
atitude mental que pretende permanecer o mais perto possvel
dos solavancos que ~ o prprios dos caminhos de
toda
vida
social.
3. Ouverture
Eis ai, em grandes pinceladas, e quadro geral em que vo
se mover as diversas consideraes sociolgicas que seguem. A
ambincia de
uma
poca, e por conseguinte, a ambincia de
uma pesquisa, que desenrola ao longo de muitos anos. Os
seus resultados parciais foram regularmente testados com
diversos colegas, com jovens pesquisadores,
na
Frana e em
numerosas universidades no estrangeiro. E ela
se
apia
num
paradoxo essencial:
O vaivm constante que s estabelece
entre
a mas-
sificao crescente e o desenvolvimento dos
microgrupos
que chamarei tribos''.
Trata-se d tenso fundadora que
me
parece caracterizar
a socialidade deste fim de sculo. A massa, ou o povo, diferen
temente
de proletariado ou de outras classes, no se apiam
numa
lgica
da
identidade. Sem um fim preciso, elas
no
so
os sujeitos de uma histria em marcha. A metfora da tribo,
A MANEIRA DE INTRODUO
9
por sua vez, permite dar conta do processo de desindivlduali
zao, da
saturao
da funo que
lhe
inerente, e da valori
zao do papel que
cada
pessoa persona) chamada a repre
sentar
dentro
dela. Claro est que, como as massas
em
permanente agitao,
as
tribos, que nelas se cristalizam
tam-
pouco so estveis. As pessoas que compem e s ~ s tribos ~ d e m
evoluir de uma para a outra.
Podemos dar conta do deslocamento que est ocorrend:> e
da tenso que ele suscita atravs do seguinte esquema:
Social
Estrutura mecnica
(Modernidade)
organizao econmico-pol.
1
Indivduos
(funo)
1
grupos
contratuais
versus)
Socialidade
Estrutura complexa ou
orgnica
(Ps-Modernidade)
massas
t
1
Pessoas
(papel)
1
tribos afetuais
(domnios culturais, produtivo, cultuai, sexual, ideolgico)
li: em funo dessa dupla hiptese (deslocamento e tenso)
que, ao
meu
feitio, farei intervir diversas leituras tericas ou
pesquisas empricas que me parecem teis nossa reflexo
*
. ExisU
um
aspecto exotrico e
um
aspecto esotrico em qualquer
Procedimento. O
aparato
crtico a sua expresso.
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
13/124
10
0
TEMPO
DAS
TRm OS
Como
j
disse, no se trata de fazer discriminaes, e alm das
obras
sociolgicas, filosficas
ou
antropolgicas, o romance, a
poesia
ou
o caso quotidiano
tero
nela sua parte. O essenc al
fazer sobressair
algumas formas
talvez 'irreais", mas
que
possam permitir a compreenso,
no
sentido forte do termo, desta
multiplicidade de situaes, de experincias, de aes lgicas e
no-lgicas
que constituem
a socialidade.
Entre as formas
analisadas, est,
evidentemente, a do tri-
balismo que se encontra no
centro
do trabalho.
Ela
p r e c e d i ~ a
pelas noes de comunidade emocional,
de
potncia e
de
socia
lidade que a
fundamentam.
E seguida pelas de policultura
lismo e de proxemia
que
so
suas
conseqncias. Proponho,
in fine.
e a quem
interessar
possa, um
mtodo
terico
que
Firva de bssola
atravs
da selva
induzida
pelo tribali.smo.
Existe,
certamente,
alguma
monotonia nos assuntos
abordados,
e tambm certa
redundncia,
em funo do objeto estudado.
Como as imagens obsessivas" que existem em toda obra lite
rria,
potica, cinematogrfica etc., cada poca repete, de
ma
neira aguda,
mltiplas variaes
em
torno de alguns
temas
notrios.
Por
isso
em
cada uma das formas
abordadas
encon
tramcs
as mesmas preocupaes. Apenas o
ngulo
de aborda
gem
muda. Espero, asrim, dar conta do aspecto p o l i c r o m : i ~ o
do todo social.
Num
ataque notvel
contra
a parafernalla
causal, G
Durand
fala
da teoria
do recital", que seria a
ma
neira mais adequada
de
traduzir
a redundncia do relato m
tico de
suas
reduplicaes e
das variantes
que
ele difunde.
9
s t ~ teoria convm, perfeitamente,
ao
conhecimento
ordinrio
que
elaboramos e
que
se
contenta em
assinalar
e
re-citar
a
eflorescncia e a miscelnea
repetitiva
de um vitalismo que, de
maneira
cclica,
luta contra
a
angstia da
morte, repetindo
sempre
a
mesma
coisa.
Mas essa teoria do recital, um
tanto
arrumadinha, no
feita para aqueles que
acreditam
ser possvel esclarecer com
;
Para
no tornar pesado
o corpo
do texto, este
aparato que ap:> a
as
minhas
consideraes, foi remetido
ao
fim do l
1
vro. Alm da ilustra
o
que
essas referncias
pretendem
fornecer,
podem tambm permi
tir a
cada um
avanar
em suas prprias
pesquisas.
(Nota
do
Autor)
A
MANEIRA
E
INTRonuAo
11
ela a ao dos homens,
muito
menos para aqueles que, confun
dindo o
erudito
e o poltico, pensam
que
p o s ~ v e l us-la como
instrumento.
Ela antes uma forma
de
quietismo
que
se con
tenta
em
re-conhecer aquilo que , aquilo
que
ocorre. De certa
forma, uma valorlzao do primus vivere . Como disse antes,
seguramente para
os
h ppy
few
que
estas pginas esto
reservadas. Re-conhecer a nobreza
das
m a ~ s a s
e
das
tribos exige
uma certa
aristocracia
de esprito. Mas quero esclarecer
que
essa aristocracia
no
apangio de uma camada
social, de um
grupo profissional e menos
ainda
dos especialistas. Debates,
colquios,
entrevistas me ensinaram
que podemos
encontr-la
equitativamente distribuda entre
numerosos
estudantes, traba
lhadores
s o ~ i a i s
executivos,
jornalistas, sem
esquecer, logica
m ~ n t e
aqueles
que
so simplesmente
homens de cultura.
a
estes que me dirijo e digo que
este
livro
se pretende
uma simples
iniciao
para
penetrar
naquilo
que
.
Se
ele
fico, isto ,
se leva
s ltimas
conseqncias
uma certa
lgica, ele
no
inventa
seno
o que ex;ste, e isso,
certamente, lhe
veda propor
qualquer
soluo
ainda que
para o
futuro. Em
contrapartida,
tentando colocar questes
supostamente
essenciais, prope um
debate
que no se presta s tergiversaes, s aprovaes me
docres, sem falar,
naturalmente,
dos silncios dissimulados.
pocas efervescentes necessitam de impertinncias confir
matrias. Espero ter c o l a b o ~ a d o com algumas.
Da
mesma
forma
os perodos em que as utopias se banalizam, se realizam, e em
que
pululam
os
devaneios. Algum disse
que
esses
momentos
sonham
os seguintes?
Sonham
sim,
mas
menos
enquanto
pro
jees do
que
enquanto fices feitas, de
migalhas
esparsas, de
construes inacabadas, de
tentativas mais ou
menos bem suce
didas. Na verdade
preciso fazer uma
nova interpretao
desses
SOnhos
quotidianos. Essa
a ambio deste livro. Sociologia
SOnhadora
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
14/124
C PiTULO
A
COMUNID DE EMOCION L
rgumentos
de
uma
Pesquisa
1 ura esttica
Ainda que isto assuma uma forma aguda, ser necessrio
voltar, regularmente, ao problema o individualismo, que mais
no seja porque ele obsessiona alis, com uma certa pertinncia,
toda a reflexo contemp-ornea. Como tal,
ou
sob uma forma
derivada, quando se fala o narcisismo, ele est no cerne de
numerosos livros, artigos, teses, que o abordam do ponto de vista
psicolgico, claro,
mas
tambm histrico, sociolgico
ou
poli
tico. de certa forma
um trajeto
obrigatrio para quem pre
tende contribuir com seu tijolo para a edificao de um saber
sobre a Modernidade. Isso, certamente,
no
intil. Mas cria
problemas quando esse individualismo se torna, por fora das
circunstncias, o ssamo explicativo de numerosos artigos jor
nalsticos, de discursos polticos
ou
de proposies moral;stas.
Todos eles, sem dar a mnima importncia
prudncia
ou
aos
matizes eruditos, difundem um
conjunto e pensamentos con
vencionais, e um tanto catastrofistas, sobre o ensimesmamento,
sobre o fim dos grandes ideais coletivos ou, compreendido
no
seu
sentido mais amplo, sobre o fim o espao pblico. A partir
da temos
um
confronto com uma espcie de doxa, que talvez
no dure muito tempo, mas que amplamente admitida e que
pode vir a
mascarar
ou denegar as novas formas sociais elabo
radas hoje em dia, j que estas podem apresentar algumas
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
15/124
14
expresses bastante visiveis e outras perfeitamente subterrA.neaa.
O aspecto espetacular das primeiras serve, alm disso, para si
tu-las sob a rubrica das extravagncias inconseqentes que
aparecem regularmente nos perodos conturbados. O que esti
mula a propenso preguia que todo doxa possui.
No tenho a inteno de abordar frontalmente o problema
do individualismo. Vou falar dele, regularmente,
a contrario.
Sendo o essenc al apontar, descrever e analisar as configura
es mciais que parecem ultrapass-lo. A saber, a massa inde
finida, o povo sem ident idade ou o tribalismo enquanto nebulosa
de pequenas entidades locais. Trata-se,
claro, de metforas
que pretendem acentuar, sobretudo, o aspecto confusional da
socialidade. Sempre a figura emblemtica de Dionsio. A titulo
de fico. proponho fazer "como se" a categoria, que nos servlu
durante mais de dois sculos para analisar a sociedade, esti
vesse completamente saturada. Costuma dizer-se que,
muitas
veZs
a realidade supera a fico. Tentemos, pois,
estar
altura
daquela. Talvez seja necessrio mostrar, como o fizeram certos
romancista
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
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16
0
TEMPO
D S amos
Essa anlise pode ser aplicada aos nosss propsitos: h
momentos em que o "divino" mcial toma corp3 atravs de umh
emoo coletiva que se reconhece em ,;al_ q u ~ l : i ~ l f i ~ ~ o .
O
ro
letariado
0
burgus podiam ser suJeitos h1stncos que
p ~ t
t
tinham
uma tarefa a realizar.
Tal
ou qual geno e?nco,
ar_ s-
tico ou poltico podia articular uma mensagem, CUJO _conteudo
indicasse a direo a seguir. Uns e
outros
p e r m a n e c 1 ~ m
enti-
dades abstratas e inacessveis, que propunham um f'm a ser
realizado. Em contrapartida, o tipo mtico tem uma s l m ~ l e s
funo de agregao. Ele um
puro continente .
Expnme
0
gnio coletivo
num
momento determinado. ~ i s a
d i f ~ r e n ? a
que se pode estabelecer
entre
os perodos abstrat Vos, rac1onats,
e os perodos "empticos".(Aqueles se apiam no principio de
individuao, de
~ e p a r a o
estes, pelo contrrio, so dominados
pela indiferenciao, pelo "perder-se" em um
s u j e ~ t o
coletivo,
o
que
chamarei
de
neotribalismo)
Inmeros exemplos da nossa vida quotidiana podem ilus
trar
a ambincia ~ m o c i o n a l que emana do desenvolvimento
tribal. Alm disso, podemos notar que esses exemplos no es
pantam
mais, j fazem parte da paisagem
urbana.
(As diversas
aparncias punk , kik , paninari , que
exprimem
muito
bem a uniformidade e a conformidade dos grupos. so como
outras
tantas pontuaes do espetculo permanente que as me
galpoles contemporneas oferecem. A
tendncia
orientali-
z o
da existncia, que se observa nas cidades ocidentais.
apresenta
semelhanas com a anlise que fez Augustln Berque
das relaes de
simpatia
entre o eu e o outro, no Japo.
Fragilidade da distino,
s
vezea mesmo indistino entre o
eu
e
0
outro, entre o sujeito e o objeto, eis algo que se presta
reflexo. A idia
da
extensibilidade do eu
( um
ego relativo e
extensvel") pode E:er
uma
alavanca
metodolgica das mais per
tinentes para a compreenso do mundo contemporneo.
3
No
vale a
pena
lembrar a fascinao que o
Japo
exerce
hoje
em
dia nem mesmo fazer referncia
sua pedormatividade
eco-
nmica
ou t e c n o l g ~ c a para
sublinhar o fato de que, se a dis-
tino
, talvez,
uma
noo
que
se aplica
Modernidade,
por
A COI\' UNIDADE
EMOCIONAL
17
outro
lado ela
totalmente
inadequada para descrever as
formas de agregao social
que
vm
luz.
Estas
tm contornos
indefinidos. O sexo, a aparncia, os modos de vida, at mesmo
a ideologia so
cada
vez mais qual ficados em termos ( trans .. ",
meta ") que ultrapassam a lgica identitria e/ou binria.
Em
resumo, e dando a esses termos a sua acepo mais estrita,
pode-se
dizer'
que
assistimos
tendencialmente
substitu
1
o
de um um social racionalizado por uma socialidade com domi-
nante emptica.
Essa vai exprim
1
r-se numa suce"so de ambincias, de sen
timentos, de emoes.
interessante notar, por exemplo, que
aquilo a que se refere a noo de
Stimmung
(atmosfera)
prpria do
romantismo
alemo, serve cada vez mais, ora
para
descrever
as
relaes que imperam no interior dos microgrupos
soc;ais, ora
para
especificar como esses
gru JOs
se situam nos
seus contornos espaciais (ecologia, habitat, bairro). Da mesma
forma, a utlUzao
constante
do
termo
ingls
rteelinff'
no
quadro das relaes interpessoais merece ateno. Servir de
critrio
para medir
a qualidade das trocas, para decidir sobre
o seu prosseguimento ou sobre seu
grau
de aprofundamento.
Ora,
c e
nos referimos a um modelo d organizao racional,
o que existe de mais instvel do que o sentimento?
De fato, parece necessrio mudar .as nossas
maneiras
de
avaliar os
reagrupamentos
sociais. Deste ponto de vista pode
mos utilizar, vantajosamente, a anlife scio-histrica que M.
Weber faz da comunidade emocional" Gemeinde). Ele escla
rece que se trata de
uma
"categoria",
quer
dizer, algo que nunca
existiu de verdade,
mas que
pode servir como revelador de situa
es presentes. As grandes caractersticas atribudas a essas
comunidades emocionais so: o aspecto efmero, a "composio
camb:ante", a inscrio local,
a
ausncia de
uma
organizao"
e a
estrutura
quotidiana
V e r a U t i i g l ~ c h u n g ) .
Weber mostra
tambm como, sob ttulos diferentes_ esses reagrupamentos
encontram-se em todas as religies, e, geralmente,
parte dof
enrijecimentos instituconais.
4
A eterna histria do ovo e dr
galinha.
difcil estabelecer
uma
anterioridade,
mas
ressalta
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
17/124
18
O TEMPO
DAS
TtUBos
de sua anlise que a ligao entre a emoo partilhada e
a-
comunalizao aberta que suscita essa multiplicidade de
grupos, que chegam a constituir
uma
forma de lao c i a l ,
no
fim das contas, bem slido. Trata-se de uma modulaao perma
nente, que,
tal
como fio conduto:, percor:e ~ d o o corpo social.
Permannc a e instabilidade serao os dms polos em torno dos
quais se articular o emocional.
J :
conveniente esclarecer, desde o inicio, que a emoo da
qual se trata no pode ser assimilada a um " p a t ~ o ~ ' _qualquer.
Parece-me equivocado interpretar os valores dioms1acos, aos
quais esta temtica remete, como sendo manifestaes Wmas
do ativismo coletivo prprio
d-o
burguesismo. Primeiro foi
marcha
comum
para
o esprito, depois o dominio orquestrado
da natureza e d-o d e s e n v o l v ~ m e n t o tecnolgico, finalmente, a
instrumenho coordenada dos afetos sociais. Esta perspectiva
e x c e ~ s i v m e n t e teleolgica ou dialtica. Certamente algumas
realizaes, como este paradigma
q u ~
o
lub
Mditerranne
militam neste sentido. Mas nossa anlise deve estar
atenta
ao
fatJ de que aquilo que predomina, maciamente, na atitude
grupal, o dispndio, o acaso, a desindividualizao, o que no
permite ver na comunidade emocional uma etapa nova da pa
ttica e linear marcha histrica da humanidade. Vrias con
versas com o filsofo italiano Mario Perniola chamaram minha
ateno para este ponto.
5
E prolongando seus trabalhos, sob
um ponto de vista sociolgico, direi que a esttica do "ns"
um
misto de indiferena e de energia pontual. Paradoxalmente
encontra-se
a
um
singular desprezo por toda atitude projetiva
e uma inegvel intensidade
na
prpria ao. isso que caracte
riza a p o t n c ~ impessoal
da
proxemia.
, A sua maneira, Durkheim no deixou de sublinhar e ~ s e
fato. E se, como de hbito, permanece prudente,
nem
por isso
deixa de falar da natureza social dos sentimentos" e enfatizar
sua eficcia. "Indignamo-nos em comum" escreve, e sua des
crio remete
proximidade do bairro e sua misteriosa "fora
de atrao" que faz com que alguma coisa tome corpo. neste
quadro que se exprime a paixo, que as crenas comuns so
A COMUNIDADE EMOCIONAL
lf'
elaboradas, ou, simplesmente, que
:e
procura a companhia
"daqueles que pensam e que
sentem
como ns . ) Estas notas,
bastante banais, dir-se-ia, podem apl;car-se a mltiplos objetos.
Elas sublinham, principalmente, o aspecto imupervel do subs
trato quqtidiano. Ele
ser:e de
matriz, a partir da qual se cris
talizam todas
as
representaes. Trocas de sentimentos dis.
cusses de botequim, crenas populares,
v i ~ e s
de mundo e
outras
t ~ g a r e l i c e s
sem consistncia
que
constituem a solidez
da comunidade do destino. Pois, ao contrrio do que,
at
hoje,
era
de bom tom admWr, podemos concordar que a razo
tem
muito pouco a ver com a elaborao e a divulgao das opinies.
A difuso destas, tanto entre os primeiros cristos quanto entre
os socialishs do sculo. XIX, se deve muito mais a.as m e c ~ m s -
mos de contg
1
o do sentimento,
ou
da emoo, vividos em
comum. Seja no quadro das redes das pequenas clulas con
viviais ou pela tica do cabar, ao gosto das freqentadores,
a emoo coletiva algo encarnado, algo que joga com o con
junto das facetas daquilo que o sbio Montaigne chamou
l'hommerie : esse mito de grandezas e de infmias, de idias
generosas e de pensamentos mesqu;nhos, de idealis ll{) e de
arra
1
gamento mundano, em Euma, o homem.
Podemos deduzir que isso que assegura uma (forma de
solidariedade, de continuidade atravs
das
hist6rias humanas)
Falei acima em comunidade de destino. Esta pode, s vezes,
exprimir-se atravs do quadro de
um
projeto racional
e/ou
po
ltico.
s
vezes, pode tomar, ao contrrio, o caminho mais
delicado e menos definido
da
sensibilidade coletiva. Neste caso
a tnica recai sobre o aspecto confus onal do pequeno grupo.
Este, concatenando-se com outros grupos, assegura a perdu
rncia da espcie.
No
primeiro caso, produz-se o que Halbwachs
chama de "viso de fora" que a histria; no segundo caso,
pelo contrrio, se elabora, "vista de dentro", uma memria co
letiva
Prosseguindo com o paradoxo, esta memria coletiva; por
um
lado, est ligada ao espao prximo, por
outro
lado,
trans-
cende o prprio grupo e o
situa numa
"linhagem" que se pode
compreender, seja
stricto
sensu, seja numa. perspectiva imagi-
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
18/124
20
0 TEMPO
DAS
TRIBOS
nria.
e
toda maneira, sob qualquer denominao que se lhe
d ( emoo, sentimento, mitologia, ideologia) a sensibilidade
coletiva, ultrapassando a atomizao individual, suscita as con
dies de possibiPdade
para uma
espcie de
aura
que vai
particularizar
tal
ou qual poca: como a aura teolgica na I d ~ d e
Mdia, a aura poltica no sculo XVIII, ou a aura progressts:a
no sculo XIX.
possvel que se assista agora,
elaboraao
de
um
3
aura
esttica
onde
se
reencontraro, em propores
d i v e r s a ~ os
elementos que remetem pulso comunitria,
propenso mstica ou perspectiva ecolgica. O que quer que
possa parecer, existe uma ligao slida entre esses diversos
termos. Cada um, sua maneira, d -conta da organicidade das
coisas, deste glutinum mundi que faz com que apeE ar da (ou
por causa da) diversidade
um
conjunto constitua um corpo.
Essa solidariedade orgnica se expressa de mil. maneiras
e, certamente, neste sentido que devemos interpretar o res
surgiment do ocultismo, dos cultos sincretistas e, mais parti
cularmente, a importncia conferida ao espiritualismo ou
astrologia. ~ t a ltima, em particular, no pode mais ser con
siderada um assunto de mocinhas sonhadoras. E algumas pes
quisas em curso fazem ressaltar
sua
dupla inscrio cultural
e natural. A propsito, Gilbert
Durand
demonstra muito bem
que a astrologia, centrada no indivduo, de origem recente,
e que a astrologia clssica teve como objetivo primeiro o s-
tino
do grupo, da
cidade terrestre .
8
A astrologia se inscreve
numa
perspectiva ecolgica representada pelas casas que
predispem cada um a viver
num
ambiente
natural
e social.
sem entrar a fundo nessa questo, podemos enfatizar que ela
participa
da
aura esttica
aistheSiSQ
que se apia na unio,
ainda que pontilhada do macrocosmo e dos microcofmos, e dos
microcosmos entre si. O que se pode e x t r a ~ r desse exemplo, bem
como dos que lhe so prximos, que servem de reveladores
d.a clima holista que
sustenta
o ressurgimento do ~ o l i d a r i s m o
ou da organicidade de todas as coisas.
Desfa maneira, ao contrrio da conotao que se lhe atribui
freqE:ntemente, a emoo
ou
a sensibilidade devem, de algum
modo, ser consideradas como
um
misto de objetividade e de sub-
COMUNIDADE
EMOCIONAL
21
jetividade. Na minha reflexo sobre
a
questo da proxemia (cf.
cap. VI), propus cham-la de espiritualidade materialista. Ex
presso meio gtica que se confunde com aquilo que A. Berque,
a propsito da eficcia do meio, chama de relao trajetiva
(subjetiva e objetiva). Com efeito, est
na
hora de observar que
a lgica binria da separao que prevaleceu
em
todos os
d.a-
minios no pode mais ser aplicada de maneha estrita. Alma
e corpo, esprito e matria, o imaginrio e a ecouomia, a ideo
logia e a produo - a lista poderia ser muito longa - no
se opem de maneira radical. Na verdade, essas entidades, e as
minsculas situaes concretas que elas representam; se con
jugam
para
produzir
uma
vida quotidiana que, cada
vez
mais,
escapa
taxinomia simplificadora
qual havamos sido habi
tuados por um certo positivismo reducionista. Sua sinergia
produz esta sociedade complexa que, por sua vez, merece uma
anli se complexa. O multidimensional e o i n s ~ p a r v e l , para
retomar
uma
expresso de Morin,
9
nos introduz
numa
espiral
sem fim que trnar obsoleta a tranqila e bastante enjoada
contabilidade dos burocratas do saber.
Em funo de precaues e de elucidaes, podemos atribuir
metfora
da
sensibilidade
ou da
emoo coletiva,
uma
funo
de conhecimento. Trata-se de tima alavanca metodolgica que
nos introduz no cerne
da
organicidade caracterstica das cida
des contemporneas. Dai este aplogo: Imaginai, por um ins
tante, que o Padre Eterno queira levar com ele para o cu uma
casa de Npoles.
Para
seu deslumbramento ele perceberia, pouco
a pouco, que todas as casas de Npoles,
com.a uma
grande
gambiarra, viriam
atrs da
primeira,
uma
aps
outra,
casas,
varais de roupa, canes de mulheres e gritos de crianas.
10
essa a emoo que cimenta
um
conjunto. Este pode ser com-
posto por uma pluralidade de elementos, mas tem sempre uma
ambincia especfica que os torna solidrios
uns
com os outros.
E s ~ a experincia vivida, inicialmente, como tal, e conve
niente que o erudito saiba dar conta disto. Resum;ndo, pode
mos dizer que aquilo que caracteriza a esttica do sentimento
no
de modo
algum
uma
experincia individualista ou inte-
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
19/124
22
TEMPO DAS amos
ror", antes pelo contrrio,
uma outra
coisa que,
na
sua
essncia, abertura para os outros, para o Outro. Essa abertura
conota o espao, o local, a proxemia onde se representa o des
tino comum.
o que permite estabelecer
um
lao estreito entre
a matriz ou aura esttica e a experincia tica.
2.
experincia tica
J
disse, falando de imoralismo tico, que esse termo nada
tem
a ver com um moralismo qualquer, to em voga nos tempos
que correm. Depois voltarei a essa questo. Entretanto,
numa
palavra, quero esclarecer que, a
uma
moral imposta e abstrata
pretendo opor
uma
tica que se origina num grupo determi
nado, que , fundamentalmente, emptica (Einfhlung), pro
xmica. A histria pode dignificar uma moral uma poltica);
o espao, por sua
vez
vai favorecer uma esttica e produzir
uma
t1ca.
Vimos que a comunidade emocional instvel, aberta, o
que pode torn-la, sob muitos aspectos, anmica com relao
moral estabelecida. Ao mesmo tempo ela no deixa de suscitar
um
conformismo estrito entre seus membros. Existe uma "lel do
meio",
qual muito difcil escapar. Conhecemos os aspectos
extremos dela: a mfia, as associaes de ladres. Mas, com
freqncia, esquecemos que no meio dos negcios impera uma
conformidade femelhante.
Da
mesma forma no meio intelectual,
e poderamos multiplicar os exemplos
vontade.
verdade que,
sendo diferenciado o grau de vinculao, nesses diferentes meios,
a fidelidade s regras do grupo, freqentemente no-ditas, est
sujeita a mltiplas variaes.
,
no entanto, difcil ignor-la
por completo. Seja como for, de maneira no normativa,
importante avaliar seus efeitos, Eeu carter marcante e, talvez,
sua
dimenso prospectiva. Com efeito, a partir da doxa indi
vidualista, de que j falei, a persistncia de um ethos de grupo
,
muitas vezes, considerada um arcasmo
em
vias de ext1no.
Mas parece que,
na
verdade, est ocorrendo
uma
evoluo.
Assim,
tanto
no que diz respeito aos pequenos grupos produ-
A COMUNID DE
EMOCION L
23
tivos, dos quais permanece como simbolo a Silicon Valley, at
ao que se chama "grupismo" dentro
da
empresa nipnica, per
cebemos que a tendncia comunitria pode
caminhar
lado a
lado com o desempenho tecnolgico ou econmico. Fazendo o
balano dos diversos estudos a esse respeito, A. Berque
constata
que "o grupismo difere
do
gregarismo no fato de que cada
membro do grupo, conscientemente
ou
no, se esfora, sobre
tudo,
para
servir ao interesse do grupo ao invs de,
s i m o l e ~ -
m e n t e ~ procurar refgio nele".
1
1.
O termo "grupismo",
aluda
que nao seja especialmente eufnico,
tem
o mrito de sublinhar
a fora desse processo de identificao, que possibilita o devota;.
mento graas ao qual se refora aquilo que comum a todos.
Talvez seja prematuro extrapolar o
~ i g n i f l c a d o
de alguns
exemplos ainda
isolados, ou de uma situao particular, como
lil do Japo. Se estes exemplos
no
valem mais, tampouco valem
menos do que os que privilegiam o narcisismo contemporneo.
Que mais no seja, eles se referem
esfera econmica, .fetiche
por excelncia da ideologia dominante, ao menos agora. Vejo
ai
uma ilustrao a mais do holismo que se esboa sob nossos
.olhos. Forando as portas da privacy , o sentimento
ganha
s-
p ~ o
ou em certos pa1ses, refora sua presena no espao p
bhco e produz uma forma de solidariedade que no se pode ma s
ignorar. necessrio notar que alm do desenvolvimento tec
nolg'co, essa wlidar:edade reinvestiu a forma comunitria que
acreditvamos haver ultrapassado.
Podemos nos interrogar sobre a comunidade, sobre a nostal
gia que lhe serve de fundamento, ou sobre as utilizaes polticas
que dela foram feitas. De minha parte, r.epito, trata-se de
uma
"forma" no sentido que dei a este termo,
12
que ela tenha exis
tido ou no, tanto faz. Basta que essa id;a, como um pano de
fundo, permita ressaltar
tal
ou qual realizao social, que pode
ser imperfeita,
at
mesmo pontual, mas que nem por isso deixa
de
exprimir a cristalizao particular de s e n t ; m ~ n t o s comuns.
Nessa perspectiva "formista", a comunidade vai se caracterizar
menos por um projeto (pro-jectum), voltado para o futuro do
que pela efetuao
in
actu
da pulso de estar-junto. Obser-
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
20/124
24
T MPO DAS TRIBos
vando expresses da vida quotidiana, tais como
dar
calor hu
mano, cerrar fileiras, fazer uma corrente pra frente, podemos
pensar que talvez esteja ai o fundamel}.to mais simples
da
tica
comunitria. Alguns psiclogos destacaram que existe uma
ten
dncia gliScromorta
nas
relaes humanas Sem entrar
no
mrito
da questo, parece-me que esta a viscosidade que se
exprime
no estar-junto
comunitrio. Assim sendo, insisto,
para
evitar qualquer desvio moralizante, que, por fora das circuns
tncias, porque existe proximidade (promiscuidade), porque
existe a
partilha
de um mesmo territrio (seja ele real ou sim
blico),
que
vemos nascer a idia comunitria e a tica que
o seu corolrio.
Para invalidar esses termos, dando-lhes
uma
conotao
passadis ta, chegou-se a falar de tica de aldeia ou de bairro.
Podemos
lembrar
ainda, que este ideal
o m u n ~ t r i o
encon
trado tambm na ideologia populista e,
mais
tarde, no anar
quismo,
cuja
bafe
exatamente
o
ajuntamento
proxmico.
Para os anarquistas, em particular os russos Baknin e Herzen,
a comunidade alde (obrotchina ou mir) a
prpria
base do
socialismo em marcha. Complementada pelas associaes de
artesos
(artels), ela prepara uma civilizao fundamentada no
solidarismo. 1s o interesse dessa viso romntica ultrapassa a
habitual
dicotomia
prpria
do burguesismo
da
poca, tanto na
sua verso capitalista, quanto na sua verso marxista. Com
efeito, o devir humano considerado como um todo. isto
que
d obrotchina
seu aspecto prospectivo. Notamos ainda que
esta forma social pde, com razo,
seF comparada
com o fou
rierismo e, em particular, com o falanstrio. F. Venturi, em seu
livro, agora clssico, sobre o populismo russo no sculo XIX,
faz essa aproximao. E, o
que
serve muito
bem
.ao nosso pro
psito, repara
na
ligao que existe
entre
essas formas sociais
e a busca "de uma moralidade diferente". Ele o faz com algu
ma reticncia. Para ele, sobretudo no que concerne ao falans
trio, essa busca faz
parte
do reino das "extravagncias".
14
o
que
o digno historiador italiano no viu, que, para alm
de
sua
aparente
funciDnaEdade, todo
conjunto
social possui
um
A COMUNIDADE EMOCIONAL
25
forte
componente
de ~ e n t i m e n t o s vividos em comum. So esses
que suscitam essa procura de uma moralidade diferente", que
prefiro chamar de
uma
experincia tica.
Para retomar a oposio clssica, pode-se dizer que a socie
dade est voltada para a histria futura. A comunidade, por
sua vez, esgota
sua
energia
na
prpria criao (ou, eventual
mente,
recreao).*
Isso o
que
permite
estabelecer
um
lao
entre a tica comunitria e a solidar edade. Um dos aspectos
particularmente marcante dessa ligao o desenvolvimento do
ritual. Como sabemos, este no ,
propriamente,
teleolgico, isto
, orientado para um f;m, pelo contr rio, ele ' repetitivo e,
por
isso mesmo, d
segurana. Sua
nica funo
reafirmar
o sen
timento que um dado grupo
tem
de si mesmo. O exemplo das
festas corrobori , mencionado
por Durkheim,
muito esclare
cedor neste sentido. O
ritual
exprime o
retorno
do mesmo. No
caso atravs da multipl:cidade dos gestos rotineiros ou quoti
dianos, o
ritual
lembra
comunidade que
ela
"
um
corpo".
Sem
a necessidade de verbalizar isto, o ritual serve de anamne.se
solid'3.riedade e, como indica L.
V.
Thomas, "implica na m o b ~ l i -
zao
da
comunidade". Como dizia h pouco, a comunidade
"esgota" sua
energia
na sua prpria criao. O ritual, na sua
repet;tividade o indcio
m3.is
seguro desse esgotamento. Mas,
fazendo isto, assegura a perdurncia do grupo. Foi e5 te para
doxo que o antroplogo
da
morte viu muito bem a propsito do
ritual funerrio
que
restaura "o ideal
comunitrio
que reconci
lia(ria) o homem com a morte, e com a vida".
15
Como vou
explicar
adiante,
h
momentos
em
que
a comunidade de des
tino sentida com
maior
acuidade. Nessas ocasies,
por
con
densao progressiva, a ateno se volta para aquilo que une.
Unio de certo modo
pura.
Sem contedo preciso. un:o para
enfrentar
em conjunto,
de maneira q u ~ e
animal,
a presena
da morte. a
presena em
face da
morte.
A histria, a poltica e
a moral
superam-na no drama
(dramein) que evolui
em
funo
dos problemas que se colocam e os resolve, ou tenta faz-lo.
O autor faz
um
jogo de palavras:
cratton;recration,
quer di
zer, criao-re-criao/recreao.
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
21/124
26
0 TEMPO
DAS
TRIBOS
o
Destino, a esttica e a tica, pelo contrrio,
esgotam-na
num
trgico que se apia sobre o instante eterno e faz brotar, graas
a isso, uma solidariedade que lhe prpria.
Viver ma morte quotidiana poder ser o resultado de
um
sentimento
coletivo que
ocupa
um
lugar
privilegiado
na
vida
social. essa sensibilidade comum que favorece um
ethos
cen
trado
na
proximidade. Isso significa, singelamente,
uma
manei
ra
de ser- alternativa, tanto no que diz respeito
produo,
quanto repartio dos bens (econmicos ou simblicos). Em
sua
anlire
das
multides,
por
vezes sumria, mas
sempre
rica
em lampejos de lucidez, G.
e Bon
observa que as regras
dP.ri
vadas da eqidade terica pura no poderiam conduzir as
muWdes". E que, em geral a impresso desempenha neste
processo
um
papel importante.
16
Isto significa
que
a
prpria
justia
est mbordinada experincia prxima, que a
justia
abstrata e terna relativizada pelo
sentimento
(seja ele de dio
ou
de amor) vivido
num
territrio
dado. Numerosos relatos,
quer falem de carnificinas ou de atos de generosidade, ilustram
esta afirmao geral. O comerciante doutrinariamente racista
proteger o rabe da esquina , a.ssim como o pequeno _burgus
~ e c u r i t r i o no denunciar o pequeno vigarista do bairro, e
assim
por
diante. No s a mfia que
tem
a lei
-do
silncio.
Os policiais que fazem investigaes
numa
aldeia, ou
num
bairro,
sabem muilto bem
disso.
Ora,
o
denominador
comum dessas
atitudes (que mereceriam
um
tratamento especfico) a soli
dariedade
oriunda
de
um
sentimento
partilhado.
Ampliando um pouco o territrio, encontramos,
ajudados
pela mdia, reaes similares a nvel da
aldeia
global". No
uma
lei de justia
abstrata
que favorece o desenvolvimento dos
resto
du coeur ,
dos grupos de amigos que se encarregam de
desempregados, ou
outras
manifestaes caritativas.
Podemo >
mesmo dizer que, numa perspectiva linear e
racional
de
justia,
estas manifestaes so
um
pouco anacrnicas, para no dizer
reacionrias. Artesanais e pontuais, elas no se prendem ao
cerne
de
tal
ou
qual problema.
Podem
na verdade
servir
de
.Ubi
e
representar
o
papel
de curativo
numa
perna
de pau.
E devemos ad1mtlr
que
isto funciona e mobiliza as emoes
coletivas. Podemos interrogar-nos sobre o significado, ou sobre
a recuperao poltica, dessas manifestaes. Podemos, igual
mente, e
este
o objetivo dessas notas, sublinhar, pnr
um
lado
que no se spera mais, apenas, do Estado avassalador que se
encarregue de certos problemas, cujos efeitos so visveis c pr
ximos, e por
outro
lado indicar que a sinergia dessas aes, pelo
vis
da
imagem
televisiva, pode
ter
um
resultado no negli
genc vcl.
Num
e noutro caso. aquilo que est
mais
p-erta,
ou
a realidade longnqua, aproximada pela imagem, repercutem
fortemente em
cada
um, constituindo assim,
uma
emao cole
tiva.
Trata-se
de um mecanismo que est longe de ser secun
drio. Reencontra-se aqui a idia
holista
(global) qu2
or:enta
nossas afirmaes: a sensibilidade
comum
que fundamenta os
exemplos dados, vem do fato de se participar de, ou corres
ponder a, no sentido estrito ou talvez mstico destes termos,
um ethos comum.
Para
formular
uma
lei sociolgica, direi,
como
um
Zeitmotiv,
que se privilegia menos aquilo a que
cada
um vai aderir voluntariamente (perspectiva contratual e me
cnica) do que aquilo que
emocionalmente
comum
a todos
(perspectiva sensvel e
orgnica).
Essa a experincia tica que a racionalizao
da
ex1stn
cia
havia
ban;do. isto, tambm, que a renovao
da
ordem
moral traduz de modo bastante equivocado, pois pretende ra
cionalizar e universalizar as reaes ou situaes pontuais,
apresentando-as como novos
a
priori, quando sua fora pravm
do fato de estarem ligadas a
uma
sensibilidade local. E
no
seno a
posteriori
que elas se encadeiam num efeito de estru
tura global. O ideal comunitrio de
bairro ou
aldeia age
mais
J:Or cont:tminao do
imag'nrio
coletivo do que por persuaso
de uma razo social.
Para retomar um
termo que foi empre
gado por
W.
Benjamin em ma reflexo sobre a obra de arte,
direi que estamos
na
presena de
uma aura
especifica, que
num
mov;mento de
feed-back
provm do corpo social e, de re
torno o determina. O que resumirei da seguinte maneira:
a sensibilidade coletiva, originria da forma esttica acaba
por consti'tuir uma
relao tica.
A
COMUNIDADE EMOCIONAL
7/26/2019 O Tempo Das Tribos
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0 T IPo DAS TuBos
S conveniente insistir nesse ponto, mesmo que seja
apenas
para
relativizar os ukasses positivistas que s querem ver no
imag nrio coletivo um
figurante
suprfluo que se pode dis
pensar
em
tempos de crise. Com efeito, podemos dizer que ele
toma as formas mais diversas.
As
vezes se manesta de maneira
macroscpica e informa os
grandes
movimentos de massa, as
diversas cruzadas. revoltas pontuais,
ou
revolues politicas e
econmlcas.
As
vezes, pelo contrr io, ele se crist aliza de
maneira
microscplca e vai
irrigar
em profundidade a vida de uma mul
tiplicidade de grupos sociais. As vezes, finalmente, ocorre uma
continuidade entre este ltimo processo (esotrico) e as mani
festaes g e r a i ~ (exotricas) antes indicadas.
Seja
como for,
trata-se realmente de
uma
aura de rbita mais ou menos
extensa, que serve de matriz a esta realidade, sempre e nova
mente admirvel, que a socialidade.
~ d e s s a perspectiva que devemos apreciar o ethos da comu
n ~ d a d e Aquilo que chamo "aura" evita que nos pronunciemos
sobre a sua existncia ou no-existncia-. Parece que tudo fun
ciona "como se"
ela
existisse. Nesse sentido podemos compre
ender o tipo-ideal da "comunidade emocional"
M.
Weber), a
categoria "orgistico-exttica" (K.
Mannheim),
ou aquilo que
chamei
de forma dionisaca.
Cada
um desses exemplos uma
caricatura, no sentido simples do termo, do
sair
de si, ex-stase
que
est na lgica do ato socialP
Parece
que esse
"xtase"
muito mais eficaz na medida
em
que diz respeito aos pequenos
grupos, e por isso se toma
mais
perceptvel para o observador
social.
S
para dar
conta
desse
conjunto
complexo que proponho
usar,
como metfora, os termos de
"tribo"
ou de "tribalismo".
Sem adorn-los, cada vez,
de
aspas, pretendo insistir
no
aspecto
"coesivo" da partilha
sentimental
de valores, de lugares
ou
de
ideais que esto, ao mesmo tempo, absolutamente circunscritos
(localismo) e que so encontrados, sob diversas modulaes, em
numerosas experincias ~ o c i a i s S esse vaivm
constante
entre
o esttico (espacial) e o dinmico (devir), o anedtico e o
ontolgico, o ordinrio e o antropolgico, que faz
da
anlise da
sensibilld.de coletiva um insrumento de
primeira
ordem. Para
9
ilustrar essa observao epistemolgica darei apenas um exem
plo, o do povo judeu.
Sem poder,
nem
querer fazer dele um anlise especifica, e
contentando-nos com indic-lo como uma d reo de pe"quisa,
podemos
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