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Psicologia analitica
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OS ORIXÁS REVISITAM O MOITARÁ
IRACI GALIÁS
Quando nosso Moitará nasceu, ele chegou chegando. Com muito
movimento, novidade, criatividade. Foi comemorado, festejado.
Ao lado de reconhecidos nomes, recebeu as bênçãos de nossas
nações indígenas, um verdadeiro mergulho em sua cultura,
importante componente da nossa.
Aliás, Moitará vem à luz com essa tarefa/missão: estudar e nos
ensinar os símbolos de nossa tão rica e eclética cultura
brasileira.
Ele começa sua vida em um ponto buscado entre Rio e São
Paulo, Itatiaia, com os indígenas.
Mas, bem criança ainda vem para Campos do Jordão. Lembro-
me de quando, buscando hotéis para hospedá-lo, viemos
conhecer o Orotur, que passava por uma reforma. Era um hotel
“chic”. Só foi possível porque os proprietários, conhecidos,
fizeram um preço especial. Moitará de dinheiro era pobre.
Orotur estava, assim, novinho em folha, quando chegou
Moitará. E ele veio numa das melhores companhias possíveis: os
Orixás.
Assim, os Orixás chegam inaugurando a nova casa do Moitará,
com uma intensidade absolutamente inesquecível por todos que
tivemos o prazer e honra de dele participar. Desde os
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preparativos, com histórias incríveis vividas, nosso amigo José
Guilherme sempre presente. É impossível não sentir saudades.
Nossos filhos, ainda pequenos, coloriam os corredores e jardins
como também faziam malandragens complicadas. Mas, mestre
Didi com seus Orixás nos diziam: os erês são abençoados e
trazem coisas boas, devem ser respeitados. Ensinavam-nos assim
a respeitar o novo, mesmo quando esse novo vem de forma
complicante e inusitada.
Os Orixás, então, povoaram nosso imaginário, nossas vivências,
nossos afetos, nossos pensamentos.
Os Orixás, então, abençoaram nosso Moitará, ainda erê e cheio
de vida. Exu abriu-lhe muito bem o caminho.
Moitará cresceu, cheio de realizações e sucessos. Moitará
adolesceu, cheio de conquistas. O adolescer implica em
turbulência, movimentos exogâmicos, há que se sair de casa,
buscar novas coisas, outras companhias.
Houve uma época até que não se realizam os Moitarás habituais
por alguns anos, somente os “Moitarinhos”- reuniões interinas
da SBPA, para discutirmos nossas dificuldades e propósitos.
Depois voltaram a acontecer, sempre intensos.
Pareceu-me muito interessante tentarmos simbolicamente
compreender que momento será este em que Moitará recebe a
revisita tão importante dos Orixás?
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Moitará tornou-se adulto, seus fundadores senescemos, o tempo
continua seu trabalho incessante.
Tempo, tempo, tempo, tempo... como canta Caetano,
homenageando o orixá TEMPO. O tempo dos Orixás, o sagrado
tempo dos Orixás.
Tempo de fecundar, tempo de gestar, tempo de nascer. Tempo
da infância, tempo de Erê, tempo de adolescer, tempo de
amadurecer, tempo de individuar.
Vivemos uma cultura do tempo da pressa e do apressamento.
Vivemos a ilusão do controle, a onipotência do controle do
tempo, a mania do movimento, o apressamento da produção e
conseqüentemente necessidade de descartar, mesmo o não
descartável, mesmo o que não seria bom descartar.
Vivemos a crescente velocidade da informação, a gula voraz e
insaciável pela novidade, por um lado tão enriquecedora, por
outro tão negligenciadora de riquezas importantes, somente
atingidas sem pressa, sem apressamento, com o tempo da espera,
com o tempo da reflexão, com o tempo da meditação, com o
tempo da maturação, da contemplação.
Muitas vezes nossas instituições se esquecem desse tempo, do
tempo das marés, que leva as coisas e depois trás de volta muitas
delas. Que as aproxima e as distancia, para novamente
aproximá-las.
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O que nos diriam hoje, nessa revisita, os Orixás de nossos
movimentos institucionais? O que diriam ao nosso, já não erê, e
tão querido Moitará? Quais seriam suas apreciações e
“conselhos”, se por ele fossem consultados?
Segundo Pierre Fatumbi Verger cada Orixá funciona como um
“arquétipo”, ou seja tem suas características próprias. Como
entre nós há vários iniciados, talvez o filho de cada Orixá
pudesse nos dizer o que seu Orixá nos diria.
Pensando sobre esses aspectos, centrei-me no Orixá Tempo.
Estes são alguns dos dados que encontrei: (Wikipédia, a
enciclopédia livre)
Iroko ou Tempo é um Orixá muito antigo e foi a primeira árvore
plantada e pela qual todos os restantes Orixás descem à Terra.
Toda criação está em seus desígnios. É ele, implacável e
inexorável que acompanha e cobra o cumprimento do Karma de
cada um de nós. Ele tem um dito “O tempo dá, o Tempo tira, o
Tempo passa e a folha vira” - referido às modificações das coisas
com o passar do tempo.
Ele é também a permanência dentro da impermanência.
Iroko está ligado à longevidade, à durabilidade das coisas e ao
passar do tempo.
Ele é o protetor dos pobres e possibilita a fertilização das
mulheres quando pouco férteis. Mas exige coisas em troca-
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frutas, animais ou até mesmo o filho gerado. Seus símbolos são a
lança e a grelha.
Iroko é invocado em questões difíceis, como o desaparecimento
de pessoas, problemas de saúde, inclusive a mental.
Seus filhos, raros, são altivos e generosos, atentos a tudo o que
ocorre à sua volta, têm grande senso de justiça, são muito
amigos, podendo ter brigas fortes, porém reconciliam-se com
facilidade. Gostam de comer, beber, dançar, cozinhar.
Apaixonam-se com facilidade, não são bons para guardar
segredos, são muito protegidos por seu Orixá.
Iroko cobra o que se lhe promete, em várias histórias,
aprisionando a mãe que não cumpre a interdição sexual três dias
anteriores às oferendas como também transformando em
pássaro a mãe que não lhe dá o filho prometido. Perdoa a
ambas, após o arrependimento.
E, na versão de Orlando O. Espiu, o mito (ou appataki) “Iroko e
Ara-Kolé” (urubu –de –cabeça-vermelha) enfatiza elementos
como pureza de intenção. Arrependimento do coração e
humildade diante de Deus. Eis o resumo desse appataki:
“Céu e terra, irmãos, brigaram. Terra se dizia sólida e que dizia
o céu era de fumaça, sem corpo. Brigam por poder. O céu se
afasta e castiga a terra por sua arrogância e orgulho. Iroko, a
samaúna, preocupa-se porque tinha suas raízes fincadas na
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Terra e seus galhos se estendiam na intimidade do céu. O
sensível coração de Iroko se amedronta ao compreender que a
grande harmonia se perdera e que as criaturas terrestres
sofreriam.
A feiúra veio, veio o tempo dos sofrimentos. Iroko chorou,
enlutou profundamente pelo que se perdia. Sua tristeza viajou
com o vento, penetrou no homem, nos animais e em tudo o que
vivia. O sol começou a devorar a vida. Iroko propunha que
rogassem por sua mãe , a Terra que ofendeu o Céu, mas
ninguém entendia, porque ninguém entendia o que era
“ofender”. A Terra estava secando.
Depois de várias tentativas Iroko pede a Ara-Kolé, que diz:
“Vou levar as súplicas ao Céu e estou certo de que só eu posso
chegar à outra margem”. Todos olharam com desprezo aquele
pássaro feio, repulsivo, sombrio. Ele tenta e cai. Todos perdem a
esperança.
Mas Ara-Kolé tenta novamente e consegue , com serenidade. Ele
pede perdão e o Céu perdoa a Terra.
Então volta a chuva e graças a Iroko novamente as criaturas se
salvam do dilúvio. A Terra bebeu água, saciou sua sede e tudo
ficou verde novamente.
Nunca se voltou à felicidade de antes, mas voltou a vida. E todos
sabem como tem sido a vida desde então “.
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Esse mito-appataki lindíssimo enfatiza: o pecado , o castigo e o
paraíso perdido. O mundo depois do pecado. O arrependimento,
o perdão. A sabedoria de Iroko triunfa ensinando a pedir
perdão. A valentia de Ara-kolé, rejeitado por todos, salva. A
harmonia paradisíaca não volta, continua haver sofrimento, mas
a vida volta.
Com a perda da harmonia Iroko faz as vezes de lugar de
encontro da sabedoria e experiências.
O “coração puro” não deixa que haja brigas de poder, ele é
conseqüência da harmania que, ao se desfazer, desfaz-se a
pureza e como conseqüência surgem a dominação e a
propriedade excludente. Em resumo, esses são os frutos do
pecado.
Iroko é o mestre da verdadeira sabedoria, dada sua relação
especial com o Céu e a Terra.
Com o fim do Paraíso chega o luto, pelo desaparecimento da
harmonia.
As criaturas ainda não sabem o que aconteceu, só Iroko sabe,
mas elas estão de luto, tolhidas pela nova realidade.
Assim aparece o mal .
O mundo se protege sob Iroko e acaba sendo por ele ensinado.
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Mas Iroko consegue compartilhar sua sabedoria: ensina o
arrependimento como alternativa ao pecado e a humildade como
caminho ao pedido de perdão e acesso à sabedoria.
Ofender ou pecar não é razoável, destrói a criação, se não
houver o arrependimento e o perdão.
Por isso os que se deixam ensinar por Iroko chegam ao
verdadeiro conhecimento, aprendem a arrepender-se.
O bem, embora agora limitado, é alcançável, mas somente pela
sabedoria e solidária compaixão. O Mal só pode ser limitado
pelas qualidades do Bem.
Iroko é o único, em toda a criação, que nunca deixou de adorar
a Deus e venerar ao mesmo tempo a mãe Terra.
Saber não é suficiente para salvar, nem a valentia é suficiente
para conhecer o que se deve fazer diante do Mal. Iroko sabe
mas não salva. Ara-kolé, o valente, salva, mas é porque Iroko
ensinou o que se deve fazer. Somar ambos é fundamental : mas
não suficiente. Eles têm características em comum: compaixão e
solidariedade, que trazem a sabedoria capaz de operar a
salvação.
Se o pecado é a soberba, somente a humildade pode trazer o
perdão.
O mito mostra que o aprendizado da humildade é o mais difícil
para o mundo.
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A humilhação pode ser uma escola para a humildade.
Esses foram alguns comentários do autor citado.
Bem, são auto evidentes os paralelos desse appataki com nossos
mitos do Paraíso Perdido, necessário para a aquisição da
consciência.
Ara-kolé podemos associar à sombra, que necessita vir à luz
para sua integração.
A necessária separação dos opostos, com a quebra da harmonia
só pode ser transcendida pela intervenção do tempo, porém se
aprendermos com ele alguns valores: o valor do
arrependimento, do reconhecimento da sombra, da humildade e
do perdão, único caminho para verdadeira Alteridade e
Sabedoria.
Também podemos associar ao nosso mito do Dilúvio, quando
Iroko salva todos da inundação.
Ou seja estão presentes elementos do começo e do fim do mundo,
com a perda da harmonia paradisíaca, o fim e o recomeço pela
salvação pós-dilúvio.
“Seus símbolos são a lança e grelha” – associação inevitável com
os símbolos dos arquétipos parentais, do Pai a lança e grelha da
Grande mãe. “Ele é filho da Terra e do Céu”, amando sempre
ambos ao mesmo tempo – o que evidencia a simbólica da
alteridade de Iroko, que busca estabelecer a relação dialética e
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simétrica entre os opostos, que se separaram pós harmonia
paradisíaca, quando os opostos estavam juntos, na pré
separação dos opostos, na criatividade primal, tão importante
para o início, como enfatizou Neumann.
É interessante observar nesse appataki que desde a perda do
paraíso, aparece a alteridade de Iroko, buscando a nova relação
entre os opostos.
A reaproximação dos opostos traz tanta chuva que Iroko
novamente salva os vivos, como uma arca de Noé. Interessante a
“solutio alquímica” nesse appataki, chamando nossa atenção
para os riscos da inundação, inundação de todos os elementos
fertilizadores que estavam afastados pela guerra dos opostos. E é
Iroko, Orixá da fertilidade dos inférteis, que tem de, dessa vez,
intervir nessa inundação. Ele lida novamente com os opostos:
seca- inundação, mostrando sua alteridade.
E uma nova ordem é estabelecida: não volta a harmonia
primordial, mas volta a vida. O Bem não é mais o soberano
reinante, pois o Mal já encontrou seu lugar, sempre haverá
brigas. Mas o Mal pode ser limitado pelas características do
Bem.
Novamente os opostos, desta vez tão básicos: o bem e o Mal.
Estes presentes simbolicamente em Iroko mesmo, que não era
nenhum santo, era bem bravo, cobrava o que lhe era prometido,
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castigando severamente os que não cumpriam suas promessas.
Mas, perdoava também, conhecia o valor maior do perdão,
compaixão, reconciliação dos opostos.
E Iroko insiste no valor da humildade, tão necessária , sabemos,
para o reconhecimento da sombra atuada.
A atuação da sombra, tantas vezes caminho único por ela
encontrado para vir à luz, há que ser humildemente reconhecida
para poder ser integrada.
Ara-Kolé não consegue da primeira vez, mas corajosamente
tenta novamente, quando então consegue. Conhecemos a
coragem necessária para encarar nossas atuações sombrias. A
humildade requerida para o reconhecimento da Sombra é às
vezes enorme, até porque a tentativa sombria geralmente é
mesmo repetitiva, por sua fixação, até que consiga chegar a luz,
cumprindo sua natureza simbólica de estruturar nossa
consciência. Mas, a humildade sem a coragem não dá conta da
missão. A díade humildade-coragem, enfatizada nesse appataki,
evidencia as características por nós analistas tão conhecidas
como necessárias ao processo de individuação.
Dessa forma Iroko também simboliza a Sabedoria, que
contempla o todo, ele se preocupa com o todo, mas não pára
somente na preocupação, ele se “ocupa” desse todo.
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Assim, pareceu-me muito interessante como nesse appataki os
elementos simbólicos se agrupam: paraíso harmônico/ separação
dos opostos Terra e Céu/ Seca- aparecimento do mal/
Alteridade de Iroko/ coragem de Ara-Kolé? Reconciliação dos
opostos/ Inundação/ sabedoria de Iroko/ Salvação/ Convivência
do Bem e do mal – um limitando o outro.
Chama-me atenção esse caminho, se assim posso chamar
associativamente, de individuação proposto pelo Orixá Tempo.
Será assim, então que o Tempo trabalha,s era assim que o tempo
ensina? Será assim que o Tempo existe, favorável à vida com V
maiúsculo, que contém vida e morte, em seu sentido mais
amplo?
Então, o que diria Iroko ou o Tempo ao nosso Moitará? Será
que estamos aprendendo com o tempo? Estamos tendo
humildade para acessar à sabedoria? Estamos tendo a coragem
necessária para a integração de nossa Sombra?
Todos esses aspectos, nós os sabemos tão importantes ao
processo de individuação.
Ou talvez simplesmente os Orixás e o Tempo dissessem
“Moitará, cuide de sua individuação”.
Eu gostaria que ouvíssemos agora, prestando atenção à letra, a
linda canção de Caetano que me pareceu conter elementos da
prece de São Francisco de Assis, onde o pedido maior é que um
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possa levar mais o outro em conta. Ou seja é uma oração onde a
fundamental importância do outro para o um já foi descoberta
pelo orador que pede: Oração ao tempo, vamos ouvi-la, antes
que eu diga as palavras finais.
Não sei se esta comissão Moitará sabiamente trouxe de volta o
tema dos Orixás ou se foram os Orixás que trouxeram à
Comissão Moitará a oportunidade da revisita.
Seja como for , à Comissão meus cumprimentos e
agradecimento.
Aos Orixás minha gratidão e reverência.
Oxalá o tempo dos Orixás nos traga a sabedoria necessária para
respeitarmos a individuação do nosso tão querido Moitará.
Obrigada.
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