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OS PROFESSORES INICIANTES E SUAS DIFICULDADES DIDÁTICAS NO
EXERCÍCIO DA DOCÊNCIA NAS SÉRIES INICIAIS
Fernanda Oliveira Costa Gomes
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RESUMO
O presente artigo relata alguns dados de pesquisa sobre dificuldades de professores que
atuam nas séries iniciais do ensino fundamental, especificamente as dificuldades
didáticas. As dificuldades enfrentadas pelos professores constituem um tema que vem
sendo discutido há vários anos, no Brasil e no exterior, sobretudo focalizando os
iniciantes, relatadas às vezes como choque de realidade. Entretanto, a maior parte das
pesquisas envolvendo professores utiliza entrevistas e questionários como
procedimentos. Embora esses procedimentos tragam dados importantes, e também
foram aqui utilizados, a partir dos referenciais que orientam a pesquisa, percebeu-se que
a observação em sala de aula poderia trazer dados que não seriam possíveis de obter
somente pelos relatos dos professores, o que de fato aconteceu. O procedimento de
observação em sala de aula de professora de 1º ano como base fundamental dos dados
permitiu reproduzir, em cenas, a atuação possibilitando visualizar as dificuldades que os
professores estão enfrentando, no início da carreira, para ensinar seus alunos. São
apresentados alguns dados relativos a aspectos desconhecidos pela professora que não
apresentou certas disposições para a ação didática considerada neste trabalho como o
núcleo do trabalho docente, compondo um quadro resultante de falhas em sua formação,
segundo a interpretação com o conceito de habitus.
Palavras chave: Ensino fundamental I, Professores alfabetizadores iniciantes,
Dificuldades da profissão docente, Didática.
INTRODUÇÃO
As dificuldades da profissão docente são objetos de estudo há muitos anos.
Becker (1997) localizou um estudo de mestrado de Miriam Wagenschein, defendido em
1950 na Universidade de Chicago, que tinha por título “Reality Shock” expressão
divulgada posteriormente por Veeman (1984). Esse trabalho do autor foi disseminado e
nele identificava que dentre as dificuldades citadas pelos professores estavam: a
disciplina em sala de aula; a motivação dos estudantes; a avaliação dos trabalhos dos
estudantes; a relação com os pais; a organização do trabalho da aula; os materiais e
suprimentos insuficientes; a carga de trabalho pesada. Tais dificuldades resultavam em
outras, tais como: insuficiente tempo de preparo, planejamento de aulas e do dia escolar;
uso efetivo de diferentes procedimentos de ensino; determinação do nível de
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
EdUECE- Livro 103907
aprendizagem dos estudantes; conhecimento da matéria; carga de trabalho clerical;
equipamento escolar inadequado; lidar com alunos lentos; lidar com estudantes
diferentes; uso efetivo de livros de texto e guias curriculares; falta de tempo vago;
classes de tamanho grande entre outras.
No Brasil, nessa mesma época, Feldens, Ott e Moraes (1983) divulgavam um
estudo denunciando os problemas enfrentados pelos professores, os quais vão na mesma
direção embora não fosse um estudo com principiantes: ter alunos que cometem erros
de pontuação; ter alunos que apresentam dificuldades na ortografia; trabalhar com
alunos que têm dificuldade de aprender e que foram mal preparados nas séries
anteriores, que esquecem rapidamente o que aprenderam, ter alunos pobres que
apresentam pouco rendimento, entre outros aspectos. Trinta anos se passaram, e os
problemas identificados por Veeman (1984) e pelas brasileiras (1983), sobretudo no que
se refere ao trabalho de sala de aula, parecem permanecer no trabalho dos professores
atuantes na atualidade como também demonstram outros estudos realizados por Pizzo
(2004) que buscou saber como as professoras enfrentam as situações difíceis no início
da profissão; Silva (2009) que estudou professores iniciantes e o ensino da Matemática
Baldoino (2008) com o ensino de Ciências e a revisão de estudos realizada por Papi e
Martins (2012).
Partindo de um interesse pessoal, pois sou uma professora iniciante, realizei
uma pesquisa tendo como tema as dificuldades dos professores em início de carreira.
Este artigo relata apenas uma parte dos resultados obtidos na pesquisa que teve como
foco as dificuldades didáticas.
A intenção foi realizar um estudo sobre as dificuldades que os professores
enfrentam para ensinar seus alunos. Considerando que o núcleo central do trabalho do
professor é fazer com que seus alunos aprendam, optou-se por uma imersão em sala de
aula para tentar compreender parcelas da realidade do cotidiano de uma sala de aula, de
uma escola pública paulista regida por uma professora iniciante.
A PESQUISA
A base teórica da pesquisa foram os autores Michael Huberman, Pierre
Bourdieu e Alda Marin. Dos estudos de Huberman (1992) foram utilizados os conceitos
de choque da realidade e descoberta. De acordo com esse autor, ambos os conceitos
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permitem compreender situações que podem se apresentar na fase inicial da carreira
docente. O período inicial da carreira é o momento de descoberta da profissão. Segundo
esse autor, a fase de descoberta é o momento em que o professor se sente parte de grupo
profissional, se vê numa situação de responsabilidade. É essa fase da descoberta que faz
com que o professor suporte o choque da realidade. A definição desse autor para o
choque da realidade consiste na afirmação de que, ao iniciar a carreira, o professor pode
perceber um distanciamento entre o ideal e o real, ou seja, as dificuldades encontradas
no exercício da docência podem ser tão frustrantes que o professor sofre um choque ao
perceber que a realidade da sua profissão é muito mais difícil do que era esperado. Esse
choque pode causar um grande desconforto no professor iniciante, podendo até mesmo
levá-lo a desistir da profissão. Portanto, os estudos do Huberman foram de grande
importância para compreender as fases vividas pelos os sujeitos participantes da
pesquisa e suas dificuldades no exercício da profissão docente.
Os conceitos de habitus e capital cultural escolar, forjados por Bourdieu (1983,
2001), foram utilizados para identificar quais eram as disposições que influenciariam a
conduta dos sujeitos participantes da pesquisa. Esse autor afirma em vários de seus
escritos, que todos os agentes apresentam disposições que conformam o habitus
revelador do percurso anterior da vida social e escolar. Tais configurações atuam de
modo a que cada agente tenha certos modos de perceber, atuar e sentir na vida como um
todo e em cada situação particular. Assim, certamente todos temos certas disposições
que também marcam a função docente enquanto outras não são mobilizados para a vida
escolar. Concebeu-se, assim, que neste estudo poderia se ter a tentativa de verificar se
havia, na ação e nos depoimentos dos professores, a presença de disposições que
interferissem na tomada de decisões na vida profissional, seja para desistência ou
resistência diante das dificuldades, para saber como se portariam na situação de sala de
aula. Já o conceito de capital cultural escolar foi utilizado para identificar parcelas do
cabedal de informações dos professores para a situação de ensino nas séries iniciais da
escolarização, pois para ensinar seus alunos é necessário que os professores tenham
domínio sobre os conteúdos e aspectos didáticos para que o ensino e a aprendizagem
sejam efetivados.
Quanto à área de Didática optou-se por utilizar alguns conceitos de Marin. Entre
eles alguns foram mais relevantes. O mais central para este estudo foi a idéia de que os
temas da Didática compõem o núcleo do trabalho docente representado por
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procedimentos didáticos, unidades didáticas, livro didático, ciclo docente, recursos
didáticos e a aula que devem ser operados de modo articulado (2005). Como parte do
campo pedagógico, trata-se de responder à pergunta “como fazer” ainda em articulação
com o que, para que e por que fazer o trabalho com os alunos nas situações didáticas
(MARIN, 2012).
A partir da leitura e análise da bibliografia e selecionado o referencial teórico de
base foi estipulada a questão central que norteou a investigação: quais são as
dificuldades enfrentadas pelos professores iniciantes das séries iniciais do ensino
fundamental no que se refere aos aspectos didáticos? Partindo desse questionamento
surgiram algumas questões secundárias, que consistem nas seguintes perguntas: que
dificuldades os professores enfrentam com os procedimentos para ensinar? Que
dificuldades enfrentam para planejar seu dia escolar? Que dificuldades enfrentam para
selecionar e usar materiais? Que dificuldades enfrentam para elaborar atividades para os
alunos? Que dificuldades enfrentam para avaliar seu próprio trabalho?
A pesquisa teve, então, como objetivo identificar quais eram as dificuldades
dos professores iniciantes no exercício do trabalho docente em sala de aula nas séries
iniciais do ensino fundamental.
Para buscar respostas para essas perguntas foram elaborados quatro
instrumentos de pesquisa, sendo eles: a entrevista, o questionário com escala, o
questionário on line e a observação em sala de aula de 1º ano nos meses de maio e junho
de 2013. A priori o questionário on line não seria utilizado, mas, diante das dificuldades
em encontrar sujeitos que aceitassem participar da pesquisa, esse instrumento foi útil,
pois possibilitou que os sujeitos participantes respondessem ao questionário no horário e
no dia que lhes fossem mais oportunos.
Os dados coletados por meio desses instrumentos foram analisados a partir de
quatro conjuntos de informação passíveis de organização, também, das leituras feitas
sobre as pesquisas e produção de vários autores: idealização do trabalho docente, a
frustração profissional, a realização profissional e o desconhecimento sobre o trabalho
docente
Considerando os quatro conjuntos, as informações coletadas foram lidas e
relidas a fim de identificar as idealizações dos professores sobre a profissão, as
frustrações e realizações profissionais, assim como os desconhecimentos sobre o
trabalho docente.
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Os quatro instrumentos utilizados na pesquisa foram de grande valia, mas foi a
observação em sala de aula que possibilitou a visualização das dificuldades de um
professor iniciante. Os dados obtidos por meio da observação foram organizados em
formas de cenas, um procedimento bem interessante, pois ao ler as cenas o leitor
consegue perceber a dinâmica da sala de aula, e consequentemente a angústia e as
dificuldades da professora iniciante no exercício da sua função.
Participaram dessa pesquisa 4 professores do ensino fundamental I, sendo uma
professora da rede estadual de ensino e três professores da rede municipal da cidade de
São Paulo todos eles aqui com nomes fictícios. São eles Andressa, André, Regina e
Sheila. Desses professores, dois são professores iniciantes e dois são professores
experientes.
Andressa participou da pesquisa aceitando a presença da pesquisadora em sua
sala de aula, também respondeu ao questionário com escala e concedeu uma entrevista.
Essa professora estava em seu primeiro ano como professora do 1º ano do ensino
fundamental I, na rede estadual de ensino, na cidade de São Paulo. Já o professor
participou da pesquisa respondendo ao questionário on line. Esse professor trabalha no
ensino fundamental I na rede municipal da capital paulista, há dois anos e meio. Regina
e Sheila são professoras experientes. Regina trabalha como professora há 30 anos e
Sheila trabalha como professora há 19 anos. Embora Regina e Sheila sejam
consideradas experientes elas relataram que enfrentaram dificuldades no início da
docência e diante das dificuldades em encontrar professores que aceitassem participar
da pesquisa foi considerado que seria válido o relato das professoras experientes, mas
sempre rememorando as dificuldades do início da carreira.
OS RESULTADOS
Neste item serão apresentados os resultados referentes à observação em sala de
aula de Andressa, juntamente com os relatos dela. Essa professora é formada em
Pedagogia e é especialista em Alfabetização e Letramento.
De acordo com os relatos dessa professora foi possível perceber que ela viveu
as fases do choque da realidade e a fase da descoberta, pois, segundo ela, estar na sala
de aula como professora era uma grande realização. Além disso, como será possível
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verificar adiante, ela também descobre, em pequena parte, que não sabe tudo o que
precisa para seu trabalho, embora se refira apenas ao seu curso de especialização.
Embora haja muitos dados a respeito dos quatro conjuntos, neste texto estão
apenas os relativos ao desconhecimento do trabalho do professor, foco deste evento, ou
seja, as dificuldades didáticas dos professores.
Os desconhecimentos sobre a profissão docente
Inicialmente será apresentada a reprodução de uma das cenas da pesquisa
exemplificadora de seu trabalho na sala de aula acompanhada de análises e alguns
outros dados sintetizados sobre o mesmo foco.
Esta cena se presta a apontar vários aspectos dos desconhecimentos na área da
Didática apresentados pela professora, embora não sejam só nesta área. Assim, estão
focalizados, neste texto, o planejamento como parte do ciclo docente, a aula, alguns
procedimentos em relação aos alunos e parte de uma unidade didática presente nos
materiais distribuídos pela Secretaria da Educação.
A professora inicia a aula trabalhando a apostila “Ler e Escrever” fornecida pela Secretaria da
Educação.
“Pessoal. Abram a apostila na página 48.” (Professora Andressa)
As crianças começam a procurar a página 48.
“Como é o número 48 professora?” (aluno)
Algumas crianças não conhecem o número, e por esse motivo a professora escreve o número na lousa
para facilitar a busca das crianças. Enquanto as crianças procuram a página, a professora chama a
atenção de uma das crianças que estava conversando e continua tentando explicar o conteúdo do
projeto. A professora pergunta para a classe:
“Quem sabe me dizer o que é um projeto?”(Professora Andressa)
“É o ler e escrever” (aluno referindo-se ao livro do projeto Ler e Escrever).
A professora precisa chamar a atenção da classe, novamente. Em seguida, chama a atenção de um dos
meninos que estava olhando o meu caderno. Mas, a maior parte dos alunos estava conversando e
passeando pela sala.
A professora segue com a aula explicando que um projeto consiste em planejar algo. Neste caso o
projeto desenvolvido, em sala, seria sobre brincadeiras. E a professora explica que o projeto seria
construído em 4 etapas, sendo que a primeira etapa é a apresentação do projeto.
Neste momento um dos meninos interrompe e pede para sair. Outro aluno diz que o colega pegou seu
apontador. Algumas crianças se atentam na explicação da professora, mas a maioria não cessa de
conversar.
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A professora se dirige ao aluno que havia pedido autorização para sair e diz que aquele não é o
momento de sair. Em seguida a professora repreende o aluno que pegou o apontador do colega.
Retomando a aula a professora diz que, na semana seguinte, a turma toda irá brincar de coelhinho sai
da toca.
“Alguém conhece esta brincadeira?”(Professora Andressa)
Um dos meninos se habilita a explicar a brincadeira, mas o barulho da sala o interrompe e professora
pede silêncio para ouvir o menino.
Após a explanação do aluno, a professora continua a explicar o projeto, quando novamente é
interrompida por um menino que pergunta:
“Professora. Já está na hora do lanche?”(aluno)
“Não, ainda não”. (Professora Andressa)
Professora continua a explicar:
“Voltando ao assunto, pessoal. No livro, Ler e Escrever está dizendo que, vocês deverão perguntar
para os seus pais se eles conhecem alguma brincadeira.” (Professora Andressa)
Neste momento, o sinal toca anunciando a hora do recreio, as crianças começam a ficar inquietas e a
professora fala:
“Calma. Sem correr.” (Professora Andressa)
As crianças saem para o recreio.
Em primeiro lugar há que apontar a inadequação da atuação inicial, pois a
professora não considerou o fato de serem crianças de 1º ano, portanto com 6 anos de
idade, fato que indica a necessidade de análise das condições que apresentam para a
atividade de aprendizagem de modo mais detalhado do que se fez até os anos anteriores
à nova legislação.Embora esse não seja necessariamente um tema da Didática,tal
ausência sobre essas noções induziu ao erro no encaminhamento do início da aula, qual
seja, indicar às crianças a página 48, numeral que boa parte desconhecia, o qual, por sua
vez, compunha parte do conteúdo que ela deveria ensinar.
Na sequência é possível apontar que há outra grande dificuldade da professora
em controlar as crianças na sala de aula de acordo com os padrões tradicionais sempre
esperados: que as crianças fiquem quietas e permaneçam sentadas conforme já
detectado em muitas pesquisas (MONTEIRO, 2002; OLIVEIRA, 2002).
Assim,verifica-se que as crianças brincam,passeiam pela sala, conversam e fazem ações
que não compõem a proposta da professora. Ou seja,a professora desconhece como
manejar a sala de aula,conforme ela mesma se manifesta na entrevista:
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“Eu pensei que eu estava preparada para aplicar tudo o que eu havia
aprendido da pós-graduação. O curso que eu fiz falava muito do letramento, da
oralidade, desta troca com o aluno, mas por conta da indisciplina você não consegue.”
E o alunado “vira” indisciplinado, sem que os conhecimentos de Psicologia,
eventualmente estudados, sejam acionados para se converterem em uma ação didática
mais adequada. E essa dificuldade se manifestou muitas vezes ao longo da observação.
No entanto,quando respondido o questionário com escala aparece uma forte contradição
conforme se verifica no Quadro 1.
Quadro 1- Resposta ao questionário com escala
ANDRESSA
Suficiente X É bom X Me deixa segura X Me deixa satisfeita X Insuficiente É ruim Me deixa insegura Me deixa insatisfeita
Fonte: construído pela autora a partir do questionário com escala.
Esse dado do Quadro 1 permite apontar outra dificuldade da professora, isto é,
sobre a análise de sua própria conduta e sua percepção. Se ela tivesse essa percepção
teria, no mínimo, que responder que fica insatisfeita diante da entrevista dada, assim
como poderia ter escrito o número 48 na lousa antes de as crianças reclamarem. No
entanto, ela se refere a essa relação como algo que a deixa satisfeita, a relação é boa, é
suficiente e a deixa segura.
Nessa cena, ainda, a professora fala sobre o projeto que seria realizado com os
alunos do 1º ano. Primeiramente, ela tenta explicar o que é um projeto, em seguida
anuncia que na semana seguinte as crianças iriam brincar de “coelhinho sai da toca” e
por fim, fala da atividade contida na apostila que consiste em perguntar aos pais se eles
conhecem alguma brincadeira. As três intervenções da professora não fazem relação
entre si. São frase soltas e desconexas, consequentemente de difícil compreensão para as
crianças. É interessante atentar-se também pelo fato de que, ao tentar explicar o que é
um projeto, a professora faz uma explicação e utiliza uma linguagem parecida com a
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
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que os professores universitários fazem para os seus alunos nos cursos de licenciatura, o
que não é o caso daqueles alunos.
Um princípio básico da comunicação é o de que a forma como se explica um
conteúdo se altera de acordo com o público que está diante de si. Numa aula, em que se
tem o objetivo de iniciar um projeto, a professora poderia explicar que durante um
determinado tempo o tema “brincadeiras” seria estudado e, na sequência, a professora
poderia explicar que durante a execução do projeto seriam realizadas brincadeiras;
poderia explicar que por se tratar de um projeto que tem como tema as brincadeiras, a
primeira brincadeira realizada seria a do “coelhinho sai da toca” e que, além das
atividades em salas e das atividades lúdicas as crianças, iriam fazer uma pesquisa com
os familiares a fim de aprenderem novas brincadeiras, que seriam vivenciadas na escola
com todos os colegas da turma. Entretanto, as explicações da professora foram
fragmentadas e supunha a condição de leitura que as crianças não tinham. As crianças
não compreenderam claramente o que estava acontecendo. Não compreenderam a
proposta do projeto.
Outro item revelador do despreparo da professora se refere ao planejamento
das ações para as aulas, pois diante da pergunta do aluno sobre a hora do lanche ela deu
uma resposta negativa. Na sequência retomou a explicação e, em seguida, após uma
frase dita, soou a sineta anunciando a hora do recreio.Tal situação demonstra, de um
lado, a percepção da criança de necessidade de uma parada. De outro lado, a
incapacidade da professora de entender tal sinal e, também de não verificar se, de fato,
não estava na hora de uma parada, que se delineou em seguida. O controle do tempo
ficou prejudicado nessa parte da cena relatada e a sequência das atividades também,
pois poderia ter parado e preparado as crianças para saírem com calma sem que elas
ficassem inquietas.
Algumas considerações
Apesar de ser apenas uma cena, há que se ter presente a sua representatividade
de muitas outras que foram observadas e registradas, não sendo possível apresentá-las
todas neste texto. Esta cena cumpre a função, neste trabalho, de evidenciar parte do
despreparo da professora para o exercício da função docente naquilo que é o mais
central de seu trabalho: a ação didática, o ensino para levar à aprendizagem.
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Como professora iniciante certamente teria algumas dificuldades, porém não
tantas e tão sérias. Nesse momento de sua vida profissional ela, de fato, cumpria a
função de manter as crianças circunscritas à sala.
Não se estabeleceu, para essa professora um conjunto de condições para agir, ou
seja, não adquiriu algumas disposições fundamentais específicas para a docência
compondo o seu habitus com as demais disposições adquiridas na sua vida social. Uma
dessas disposições, por exemplo, é a de ser capaz de perceber as contradições em seus
depoimentos e outra é a de saber como se dirigir a outras pessoas de modo que elas
compreendam. Do mesmo modo pode-se dizer que as ações que ela realizou nessa cena
exemplificadora, demonstram condição de não incorporação de parte do capital cultural
escolar específico necessário para a docência, ou seja, os conhecimentos da área da
Didática, foco central deste texto, embora se possa dizer que há indícios de que outros
conhecimentos da área pedagógica também não tenham sido adquiridos. Ela possui o
capital cultural institucionalizado representado pelos dois diplomas, porém não atua em
acordo com o mesmo, não demonstra possuir o capital cultural incorporado que estaria
representado pelos diplomas, ou seja, não demonstrou condutas compatíveis com o
esperado.
Alguns conhecimentos parecem ser desnecessários na rede em que atua visto que
eles estão todos dispostos e disponíveis para os professores e para as crianças em
material didático padronizado, como é o caso de precisar selecionar conteúdos.
Ter domínio sobre a Didática para utilizá-la a fim de alcançar o objetivo de
ensinar seus alunos não se remete a simplesmente conhecer atividades e, sim, ter o
conhecimento global sobre seu trabalho para organizar todas as ações em sala de aula a
fim de fazer com que seus alunos se apropriem do conhecimento. Isso significa que ter
conhecimento sobre os aspectos didáticos que envolvem o ensino e seus agentes na sala
de aula, e fora dela, consiste em desde ter o domínio da sala de aula até conseguir
utilizar os demais conhecimentos sobre Psicologia, Sociologia, História e de todos os
componentes curriculares a serem ensinados, para fazer com que as crianças aprendam.
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