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Revisão Bibliográfica
Otite Média Serosa e o impacto na aprendizagem e aquisição
de linguagem
Trabalho Final de Mestrado Integrado em Medicina
Autor: Frederica Josefa de Nóbrega Passos Teixeira
Orientador: Professor Dr. Augusto Cassul
Clínica Universitária de Otorrinolaringologia
Director: Professor Doutor Óscar Dias
2015/2016
Dos fracos não reza a história.
À minha mãe.
Índice
Abstract: ...................................................................................................................... 7
Introdução: .................................................................................................................. 9
Discussão: ................................................................................................................... 11
I. Mecanismos de perda auditiva provocados pela presença de fluido ............... 11
II. Alterações corticais ...................................................................................... 13
III. Percepção da linguagem ............................................................................... 14
IV. Influência do meio ........................................................................................ 18
V. Diagnóstico ................................................................................................... 19
VI. Opinião dos pediatras: .................................................................................. 19
VII. Intervenção ................................................................................................... 20
Conclusão: ................................................................................................................... 22
Bibliografia: ................................................................................................................ 23
7
Abstract:
Objetivo: O objetivo deste trabalho foi compilar artigos que explicitassem qual o
impacto das otites médias sobre a perda auditiva associada e a aquisição da linguagem
em crianças na idade escolar.
Fontes dos dados: Foram selecionados artigos catalogados na base PubMed com os
filtros otite média, linguagem, processamento central, audição e criança. Todos os
artigos utilizados foram publicados entre o ano 2000 e 2015.
Síntese dos dados: A revisão de literatura demonstrou que a perda auditiva observada
nas otites médias está associada a uma perda leve e flutuante, com discrepância
central dos dados entre ambos os ouvidos por uma perda auditiva de condução, que
atrasa a passagem do som pelo ouvido médio, afectando a audição binaural. A perda
condutiva persistente traduz-se centralmente mesmo após a perda periférica ter
resolvido. Dados acerca dos três primeiros anos de vida sublinham que estes são
críticos para o desenvolvimento da linguagem e que, crianças com otites médias nesse
período, têm maior risco de apresentar distúrbios na aquisição da linguagem, no
comportamento e, futuramente, no aproveitamento escolar.
Conclusões: As principais consequências das otites médias e da perda auditiva sobre
a linguagem nessas crianças são erros fonéticos e de articulação da fala, bem como
dificuldade para compreensão da leitura e discriminação do som em ambientes
ruidosos, como as salas de aula. Os achados sublinham a necessidade para intervenção
precoce e sensibilização para a potencial capacidade auditiva reduzido, mesmo após
resolução do processo no ouvido médio.
9
Introdução:
O primeiro relatório relacionando problemas linguísticos e auditivos com o
Ouvido Médio foi de Holm e Kunze em 1969, no entanto ainda não foi atingido um
consenso relativamente a este assunto.
A otite média com efusão (OME), é descrita como uma inflamação da mucosa do
ouvido médio associada a coleção de fluido sem história de infecção aguda que
envolva febre ou dor aguda1. Existem factores de risco para a mesma, nomeadamente
a frequência da creche, idade inferior a 3 anos, existência de uma disfunção tubária,
síndromes, malformações craniofaciais e alterações no sistema imunitário.
Em alguns destes casos, as propriedades mecânicas do ouvido médio encontram-se
alteradas pela presença de fluido numa cavidade normalmente preenchida por ar 2,
provocando assim uma disrupção nas propriedades mecânico-acústicas que influencia
a perda auditiva de conducção (CHL)3, pode variar entre 0 a 40 dB HL
4 5.
Esta privação auditiva inconstante possui um papel relevante nos atrasos linguísticos,
visto que o funcionamento preciso do sistema auditivo é um pré-requisito para a
aquisição e aperfeiçoamento das representações fonológicas, sendo esta a primeira
componente para a aquisição de linguagem e o seu período crítico decorrente antes do
primeiro ano de vida. Durante este primeiro ano, os estímulos induzem alterações
fisiológicas permanentes no sistema nervoso auditivo central 6 7.
Nesta linha de raciocínio, vários clínicos e investigadores referem que a OME
poderá representar uma forma comum na privação de desenvolvimento auditivo pela
qualidade degradada do sinal auditivo apresentado ao SNC em desenvolvimento, visto
que o período essencial à capacitação de percepção do discurso com elaboração de
fonemas e silabação decorre entre os 0 e os 2 anos, coincidindo com o período de
maior incidência da Otite Média (OM) 8.
Mais especificamente, a mielinização das vias acústicas centrais pré-talâmicas ocorre
durante o primeiro ano de vida, enquanto que a mielinização pós-talâmica é muito
mais lenta e ocorre durante os primeiros cinco anos. Em termos corticais, o córtex
auditivo primário demonstra um pico de crescimento sináptico durante os primeiros
dois anos de vida ou seja, as alterações da plasticidade auditiva ocorrem mais
notavelmente neste período9.
10
Num contexto mais prático, verifica-se também que as crianças com perda
auditiva entre 1 e 3 anos têm menor percepção dos sons da fala que contenham
consoantes mudas e incorrem frequentemente em erros fonéticos na pronúncia 10
.
O marcado interesse na prevenção, no tratamento médico-cirúrgico e sequelas
neurobiológicas da OM surgem de dados estatísticos que indicam que 90% das
crianças têm pelo menos um episódio de OM antes de completarem cinco anos 11
,
tornando-a a causa mais comum e reversível de CHL 12
13
e subsequentes
consequências.
O objectivo deste trabalho é apresentar uma compilação da literatura mais
recente sobre a perda auditiva nas otites médias e o seu impacto na aquisição da
linguagem e aprendizagem das crianças.
Métodos:
Para a elaboração desta Revisão Sistemática foi feita uma selecção de artigos
científicos na base de dados do pubMed e Google Académico que abordassem a
importância da relação da otite serosa na aquisição de linguagem, processamento
auditivo e aprendizagem, entre os anos 2000 e 2015. As palavras-chave foram: Otite
Média com Efusão, perda auditiva, alterações da linguagem, aprendizagem,
processamento central.
Siglas:
OME otite média com efusão; OM otite média; CHL perda auditiva condutiva; Vmec
volume de ar no ouvido médio; ABR respostas auditivas do tronco cerebral ; LLR
respostas latentes tardias ; TPF teste de padrão de frequência ; GIN gaps-in-noise ;
SNC sistema nervoso central; MLD nível diferencial de mascaramento; SPiN
percepção da fala entre ruído;
11
Discussão:
A partir da literatura consultada, é referido que até 60% das crianças com OM
podem apresentar alterações no limiar de detecção de som, secundário à redução da
eficácia de condução pelo preenchimento da cavidade do ouvido médio por líquido ao
invés de ar 4. Em termos funcionais, uma perda auditiva próxima dos 40dB significa
que para sinais linguísticos a um nível normal de conversação, informação relativa a
consoantes pode tornar-se inaudível, resultando numa percepção de um sinal
degradado e disrupção de pistas cruciais como início da voz e informação
morfofonológica.
I. Mecanismos de perda auditiva provocados pela presença de fluido
O tipo de alteração auditiva varia de acordo com a quantidade e localização de
fluido presente no ouvido médio, tendo repercussões na mobilidade da cadeia
ossicular. Deste modo, Ravicz et al.3 avaliou a velocidade de movimentação da
bigorna, um dos ossículos do ouvido médio, que por sua vez é influenciada pela
quantidade de membrana timpânica (TM) em contacto com o líquido e percentagem
do ouvido médio cujo volume é preenchido por ar.
Contacto com membrana Timpânica
Considerando duas medições, quando aproximadamente 50% da TM estava coberta
verificou-se uma diminuição de 7-12dB na gama de 1kHz e relativamente a um
contacto de 100% pelo fluido com a TM a diminuição foi de 22-30dB na gama de
1kHz (Fig1). O que nos indica que o contacto com porções diferentes da TM tem
impacto sobre a transmissão de som em frequências mais altas.
Fig 1. Alterações na velocidade da
bigorna (ΔVu) à medida que o fluido
do ouvido médio contacta com a
Membrana Timpânica expressas em
dB.
12
Percentagem de ar residual
A velocidade de transmissão foi oposta aquando aumento ou diminuição do volume
de ar presente no ouvido médio (Vmec). Demonstrou-se que, quando a janela do
ouvido médio estava aberta, havia um aumento da mobilização na ordem dos 800Hz e
que quando se reduzia para 70% do seu volume habitual isto traduzia-se numa
diminuição da transmissão, para baixas frequências (Fig2). Estes resultados mostram
que, nestas frequências, a Velocidade de movimentação da Bigorna depende somente
do volume de ar residual.
É pertinente salientar que, enquanto a presença de efusão no ouvido médio irá
provavelmente traduzir-se num timpanograma anormal, a qualidade do sinal aferente
que é transmitido ao SNC pode encontrar-se comprometido 2, daí a pertinência da
realização de audiometria como elemento integrante da avaliação de uma OME.
Fig2. Alterações na velocidade da
bigorna (ΔVu) mediante redução do
volume de ar no ouvido (Vmec)
13
II. Alterações corticais
Maruthy e Mannarukrishnaiah nas suas investigações verificaram que as
respostas auditivas do tronco cerebral (ABR) em crianças com história precoce de
OM mostravam sinais de imaturidade na integridade neuronal. 14
Ou seja, aos três
anos de idade estas crianças tinham um aumento no tempo de latência nas ABR. No
entanto, curiosamente, as respostas latentes tardias (LLR) a nível cortical estavam
encurtadas, possivelmente refletindo um mecanismo compensatório resultante da
plasticidade neuronal. Um outro estudo demonstrou que crianças com uma perda
auditiva flutuante têm imaturidade na organização neuronal para discriminação de
pequenos traços fonéticos que surgem entre consoantes, são mais sensíveis à
intensidade do som e que possuem mecanismos adaptativos centrais que levam a que
seja desenvolvida uma utilização mais eficaz da frequência no processamento do
conteúdo auditivo6.
Quando avaliadas relativamente à habilidade de ordenação temporal, com recurso ao
Teste de Padrão de Frequência (TPF), e habilidade de resolução temporal, utilizando o
teste de Gaps-in-noise (GIN), as crianças com OME nos primeiros anos de vida,
recorrentes na idade pré-escolar e escolar, apresentaram desempenhos inferiores para
habilidades auditivas de ordenação e resolução temporal quando comparadas às
crianças sem história da mesma afecção. No entanto é importante referir que
verificou-se uma melhoria nos seus scores em função do aumento da idade, estando
possivelmente relacionado com processos de reestruturação e organização neuronal 15
.
Um outro estudo suporta esta hipótese, acrescentando que é necessário um certo
“limiar de OME” para afectar a resolução Temporal 16
.
Porém, é claro que o efeito combinado de CHL e perda da fidelidade temporal e
“pistas” binaurais desorganizadas pode deteriorar a qualidade dos sinais aferentes
transmitidos às áreas corticais que representam e formulam as nossas percepções do
mundo auditivo2.
14
III. Percepção da linguagem
Estudos prévios demonstram que existe correlação entre episódios de OM que
ocorrem durante a infância e alterações auditivas perceptivas com impacto sobre
défices de linguagem 8.
O som é traduzido na cóclea em impulsos neurais que são transmitidos fielmente ao
tronco cerebral, que se encontra especialmente adaptado para lidar com atividade
temporalmente sensível. Isto assegura que os sinais provenientes dos dois ouvidos
atingem o SNC com a sua relação temporal intacta, permitindo ulterior processamento
integrativo que consistirá a base da distinção binaural 5.
Audição binaural
Quando se ouve um som, cada um dos ouvidos recebe informação diferente e
isso é o que representa a audição binaural. Esta característica é fundamental para a
atribuição de profundidade e tridimensionalidade aos sons percepcionados. É também
de extrema importância na distinção dos fonemas característicos da língua materna de
cada indivíduo, capacidade esta que se aperfeiçoa nos primeiros anos de vida 17
.
Tendo como base investigação em animais, concluiu-se que a OME, particularmente
unilateral ou assimétrica, pode comprometer a capacidade binaural em crianças, tanto
durante como após o episódio de OME, sendo necessário até dois anos para recuperar
totalmente de uma OME grave 5.
A capacidade de atribuir profundidade a um determinado estímulo e de os
distinguir permite também selecionar qual dos estímulos pretendemos prestar atenção.
Isto é crucial no dia-a-dia, com a multiplicidade de estímulos auditivos a que somos
expostos em ambientes públicos. Neste universo e nesta faixa etária, torna-se
indispensável numa sala de aula com barulho de fundo e um professor a quem
precisamos de prestar atenção. Laboratorialmente, conseguimos avaliar e categorizar
esta vertente através do nível diferencial de mascaramento (MLD). !
Um estudo de 2009 relacionou os incidentes de OM com a capacidade de
percepção da fala entre ruído (SPiN). Este teste consiste na capacidade de as crianças
compreenderem uma frase corretamente sob ruído de fundo, quanto mais negativo o
score, mais baixo o som do discurso relativamente ao ruído de fundo. Verificou-se
portanto que a OM tem um impacto negativo nos scores de SPiN, necessitando estas
15
crianças de um limiar mais elevado no volume do discurso para serem capazes de o
percepcionar na totalidade 8. Este tipo de conclusões alerta-nos para a limitação
escolar, factor de desigualdade e obstáculo que uma OM pode representar para uma
criança no seu período de aprendizagem das bases e ferramentas futuras. Semelhante
a outros estudos, também concluíram que esta deterioração não é permanente,
descrevendo que com o tempo há atenuação da disfuncionalidade, não se
manifestando no entanto relativamente às consequências futuras de um início escolar
deficiente.
Identificação de fonemas
Capacidades de processamento auditivo, como compreender um discurso em
ambientes barulhentos, são mais complexas que tarefas de detecção simples e, como
tal, representam uma maior exigência para as vias auditivas do SNC.
Em crianças com episódios frequentes de OM, Zumach et al. 17
verificou que a
identificação e discriminação dos sons da fala estavam significativamente afectados
aos 7 anos de idade, após historial nos primeiros dois anos de vida . Com este estudo
concluem que este resultado não advém da OME per se mas da gravidade da perda
auditiva resultante da mesma, uma vez que, episódios frequentes, conduzem a uma
flutuação constante da qualidade do estímulo auditivo, impedindo a consolidação dos
sons, sílabas ou palavras. Concluem também que esta afecção não está tão relacionada
com o número de episódios de OM, mas sim com o nível de audição, sendo que
crianças com perda auditiva mais grave tinham um pior desempenho nos testes (Fig3).
Fig.3: média dos scores de discriminação a
estímulos para perdas auditivas <4dB e >4dB17
16
Um outro estudo mais recente testou a capacidade auditiva das crianças, num
teste que requer que a criança repita frases-alvo ouvidas sob um discurso de fundo,
com e sem historial de OM e em quatro vertentes diferentes. Uma que incluía pistas
vocais e espaciais (DV90), somente pistas vocais (DV0), sem pistas vocais ou
espaciais (SV0) e somente pistas espaciais (SV90). Verificaram que para os casos
SV0 e DV0 os resultados obtidos eram os mesmos. Contrariamente, nos testes DV90
e SV90, as crianças com historial de OM tiveram piores prestações 4 (Fig4).
Corroborando, assim, a hipótese que num ambiente com ruído de fundo ou
competição de interlocutores em que haja a necessidade de processamento
tridimensional do som, crianças com antecedentes de OM além de terem mais
dificuldade, não têm a mesma qualidade de desempenho.
Outra conclusão deste estudo anterior é que, à medida que a duração da disfunção
do ouvido médio aumenta, ocorre declínio na capacidade de correta interpretação
vocal e espacial 4 (Fig5), apoiada por um outro estudo que infere que crianças com
elevada prevalência têm médias de MLD de 6dB, 40% inferiores às com prevalências
menores18
.}
Fig 4: Comparação dos
scores nos Testes de
frases em barulho
espacializado dos grupos
de OM e Controlo. Os
asteriscos denotam uma
diferença significativa
(p<0.001) entre grupos.
SRT (limiar de recepção
de discurso)
Fig5: DV90 z score em função da
duração da disfunção do ouvido médio
17
Estas alterações na percepção binaural e discurso em condições tridimensionais
normalizam com os anos. Possivelmente, o processamento binaural e integração dos
estímulos auditivos é uma capacidade adquirida com atraso do desenvolvimento nas
crianças com OM por um período de tempo relacionado com a duração de doença e
suas consequências.
Existem mesmo estudos que sugerem que a relação entre OME e capacidades
linguísticas da criança é negligenciável19
, outros que sublinham que a relação entre a
perda auditiva e a OM verificada nos primeiros anos de vida não se aplica tardiamente
na idade escolar 2
20
21. Referindo até que as mesmas crianças que demonstraram
scores baixos de linguagem expressiva em idades mais novas alcançaram os seus
pares posteriormente na idade escolar 21
. O que nos leva a indagar se, apesar de em
termos auditivos e linguísticos haver uma recuperação para a normalidade, a
informação perdida e erroneamente percepcionada durante os primeiros anos de vida
é restabelecida ou se apenas se encontram mecanismos adaptativos capazes de
colmatar falhas básicas na percepção do discurso. No entanto devemos sublinhar que
os estudos que não encontram alterações na percepção do discurso a longo prazo
recorrem a estímulos mononaurais, e não informação binaural em que a criança tem
de fazer uma interpretação tridimensional, aspecto chave onde se verificaram as
disparidades. Este torna-se um argumento de relevo visto que são os primeiros a
demonstrar alterações na audição funcional e trata-se de um estudo mais recente 4 que
os restantes, indicando que estudos mais precisos deverão ser feitos nesta área a
longo-prazo.
18
IV. Influência do meio
Quando falamos de factores de risco para desenvolvimento de OM, verificamos
que um deles se refere aos meios ambientais “sobrepopulados” como as creches ou
núcleos familiares mais pobres, com mais membros na mesma casa. Havendo mesmo
estudos frisando que OME surge mais frequentemente entre crianças de famílias de
baixo-rendimento19
(Fig6).
Deste modo, torna-se pertinente averiguar a sua influência na componente linguística,
condicionada pela OME, como temos vindo a hipotetizar. Vários estudos
demonstraram que, crianças que vivem em núcleos familiares de classe social mais
baixa têm um desenvolvimento cognitivo e performance escolar inferiores
comparativamente aos de classe social mais elevada22
.
Em 2011 foi encontrada uma relação estatística relevante, indicando uma maior
prevalência de OME em ambientes rurais pobres comparativamente a urbanos 12
.
O que nos leva a inferir que um meio familiar/escolar que prime pela estimulação
auditivo-cognitiva é benéfico para estas crianças, sem excluir os efeitos da terapêutica
médica e médico-cirúrgica.
Um outro estudo pertinente, realizado com Furões, demonstrou que um treino
perceptivo intensivo pode restaurar a precisão de localização sonora após privação
auditiva unilateral e que esta plasticidade depende crucialmente da função de
conexões cortico-coliculares descendentes, frisando a importância de circuitos
auditivos centrais na expressão de ambliaudia 23
Fig6: Performance dos estudantes com distúrbio de processamento auditivo central. CG
grupo controlo; EGI estudantes com historial OM em escolas públicas; EGII
estudantes com historial OM em escolas privadas.
n, número; SD, desvio padrão; DD, dígitos dicotónicos; RE, orelha direita; LE, orelha esquerda; GIN gaps-
in-noise; PPS pitch pattern sequence test; PSI/SSI inteligibilidade de discurso pediátrico / identificação
sintética de frases com mensagem competitiva ipsilateral 22
19
V. Diagnóstico
O diagnóstico em crianças é difícil e inerente à realização eficaz da otosopia
nesta faixa etária, não só pelas dimensões do canal auditivo externo mas também pela
parca colaboração do paciente, presença de cerúmen e dificuldade de sua remoção. É
característico da OME ter um quadro sintomático leve e como tal muitas vezes evolui
silenciosamente, ao contrário do observado na otite média aguda.
Aspectos diagnósticos desta patologia passam por ausência de resposta no
exame de emissões otoacústicas evocadas, timpanometria tipo B, e otoscopia com
características de OME (perda do reflexo de luz, espessamento, coloração âmbar-ouro,
nível hidroaéreo, horizontalização do cabo do martelo e bolsas de retração) 24
.
Caso não se proceda a uma intervenção médica precoce, a OM pode provocar
perdas auditivas devido à acumulação de fluido no ouvido médio, por dissipação da
energia do som e dificultando a transmissão das vibrações sonoras pela cadeia ossicular 25
.
Assim, apesar de haver consenso acerca dos métodos diagnósticos e tratamento na OM,
verifica-se menos consenso no que diz respeito à urgência do seu tratamento 2.
VI. Opinião dos pediatras:
Sonnenschein et al. 26
realizou um inquérito a um grupo de pediatras de modo
a analisar a sua opinião acerca deste tema, visto que são uns dos primeiros
profissionais a ter contacto com estas crianças e subsequentemente representarem a
unidade sinalizadora para outras áreas técnicas e sensibilizadora dos pais. Concluíram
que estes não concordam necessariamente que a otite média, sintomática ou
assintomática, tem um impacto no desenvolvimento da fala-linguagem-audição, que
requeira referenciamento para testes audiológicos ou que crianças com otite de
repetição deveriam ser examinadas pela otorrinolaringologia ou acompanhadas
audiometricamente durante os dois anos seguintes.
Paralelamente, os Pediatras são a favor de informar os pais acerca da possível perda
de audição, visto que acreditam que estes são capazes de mitigar o impacto da otite no
desenvolvimento linguístico, e são sensíveis à necessidade de educação contínua de
modo a estarem capacitados a identificar possíveis atrasos da fala/linguagem.
A referência de posições contraditórias leva-nos a concluir que este tema não
deverá ser tão banalizado e que orientações deverão ser futuramente elaboradas.
20
VII. Intervenção
Relativamente à história natural da OME, 75% das OMEs detectadas resolvem
espontaneamente num período de até seis meses (caso hajam episódios prévios a taxa
decresce para 50%). A guideline da Academia Americana de Pediatria recomenda
atitude conservadora sem recurso a antibióticos em crianças com OME não
complicada, no entanto para crianças com perda auditiva permanente, anomalias
craniofaciais ou atrasos de linguagem subjacentes devem receber antibioterapia assim
que possível 27
.
Antibioterapia aumenta a resolução a curto-prazo em 15%, mas com pouca
relevância em termos de recidiva, a cirurgia de adenoidectomia com inserção de tubos
transtimpânicos reduzem a prevalência em 115 dias por crianças-ano (representando
uma redução de 67% do risco), enfatizando, a adenoidectomia reduz a prevalência de
OME até 38% em crianças com inserções prévias de tubos e reduz a necessidade de
reinserção em 50% 19
. Isto torna-se claramente pertinente se tivermos em conta os
dados da Fig5.
Tendo em conta que perda auditiva ligeira a moderada ocorre tipicamente
quando uma criança tem OME e crianças com perda auditiva sensorineural ligeira a
moderada estão em risco de dificuldades linguísticas e de aprendizagem tardiamente,
é importante determinar a dimensão da perda auditiva. Neste seguimento, a audição
destas crianças deverá ser examinada diretamente recorrendo a audiometria de modo a
obter uma estimativa válida do limiar auditivo 19
.
Existe também informação correlacionando esta clínica com scores de sintaxe,
fonética e fonologia, sustentando a necessidade de intervenção em crianças com
necessidade de suporte linguístico de base9 e não só em crianças cuja única
comorbilidade advém da OME e suas consequências.
Como vemos, os dados apresentados na literatura representam um alerta não
só aos pais, mas também a pediatras, otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos e até
educadores. É importante questionar e avaliar o progresso da criança na aquisição de
linguagem e até mesmo indagar junto dos professores acerca do desempenho escolar,
uma vez que muitas destas crianças precisarão de acompanhamento e estimulação
tanto pedagógicos como fonoaudiológicos concomitantemente com o tratamento
médico padrão10
, principalmente em crianças com outras comorbilidades que
representem por si limitações no desenvolvimento linguístico 9.
21
Conduta precoce
Tendo em conta o número de crianças diagnosticadas com OM, poderá ser útil
para os Pediatrias o recurso a um protocolo informativo no contexto de estudo multi-
disciplinar, prontamente disponível, acerca da maneira como os pais poderão
estimular o desenvolvimento linguístico dos seus filhos26
.
Adicionalmente, a identificação precoce e compreensão de consequências a longo-
prazo da OM suportam a necessidade para intervenção médica decisiva destas
alterações auditivas. Com vista a identificação precoce do tipo e grau de deficiência
auditiva para orientação para a sua reabilitação. O screening auditivo permite a
implementação de estratégias específicas no sentido de melhorar a performance
auditiva e acelerar a recuperação após eventos de OME, utilização de aparelhos
assistivos à audição ou alterações no meio circundante 4 5. A título de exemplo, táticas
auditivas que podem ser utilizadas em crianças com menor severidade clínica são: 28
- Obter total atenção da criança antes de iniciar o discurso
- Reduzir ruídos de fundo competitivos o máximo possível
- Encarar a criança diretamente, de modo que vejam a articulação dos fonemas
- Utilizar um discurso de tom normal, evitando demasiado ênfase ou rapidez
É mencionada em vários estudos a importância do estímulo verbo-acústico nestas
crianças. Tanto que, um estudo de 2013 avaliou a prestação de crianças de uma escola
pública versus privada com historial de OME em testes auditivos e verificaram que, as
da escola privada, tinha prestações mais próximas das do grupo de controlo 25
.
Estudos reforçam que seria importante aumentar a consciencialização dos pais
acerca dos efeitos da perda auditiva flutuante e suas consequências na percepção do
discurso e estratégias compensatórias preventivas da influência do input auditivo
degradado. Sublinham também a importância da identificação das crianças que
necessitarão de intervenção antes que surjam os problemas linguísticos, podendo
prevenir défices tardios6.
22
Conclusão:
Devido à natureza cumulativa do desenvolvimento infantil, até atrasos
perceptuais e linguísticos transitivos irão expectavelmente influenciar realização
académica póstuma2. Ou seja, mesmo que haja restabelecimento da capacidade
binaural já na infância, funções cognitivas, linguísticas e sociais estarão
deleteriamente afetadas devido à ausência de estímulos auditivos corretos.
Existe uma grande discrepância de opiniões, uma das maiores causas advém de a
maioria dos estudos realizados tentar encontrar um elo entre défices auditivos centrais
a um historial de patologia do ouvido médio, quando o factor de risco primário para
deficiências no desenvolvimento cerebral como ambliopia ou ambliauria é se o
estímulo sensorial aferente encontra-se degradado durante o período crítico de
desenvolvimento cerebral ou não2.
O que é deduzível a partir desta revisão sistemática é que, baseando-nos em
estudos cujo alvo é o subgrupo de crianças com historial de OM acompanhado de
limiares auditivos elevados e comprometimento da audição espacial, identificam
consistentemente défices perceptuais e fisiopatológicos capazes de se prolongar anos
após a audição periférica já se encontrar audiometricamente normal.
Análises mais específicas demonstram que enquanto apenas 53% das amostras
constatam ambliaudia como sequela de OM, 89% reportam ambliaudia como
consequência de OM concomitante com CHL 2.
Existem questões que ainda exigem grau de profundidade científica visto que os
estudos consultados foram inconclusivos relativamente às mesmas. Sendo essas:
- Se o SNC normaliza totalmente após restabelecimento da audição
- Durante que período de tempo esse restabelecimento irá se processar
- Aquando diagnóstico de CHL após uma OME, como deverá o médico atuar
durante o follow-up
- Será que os adolescentes terão alterações na percepção de certos fonemas/nível
inferior de prestação académica
- Terá a localização da OME com diminuição auditiva à direita mais impacto que
à esquerda, tendo em conta a dominância cerebral
23
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