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Falando da sombra da vida, através da palavra salva do esquecimento por Cecília Meireles, Solombra evoca os nossos instintos mais secretos através da palavra dos nossos autores. Participam desta edição temos a poesia do compadre Akira Yamasaki, Karin K. Carteri, Zélia Guardiano, Bah Bee Paiva, Luiz Gonzanga Leite Fonseca, Thereza Rocque da Motta e Jeanne Callegari. Nosso personagem do mês é o poeta Adonis… Entrevistamos a atriz-autora-personagem-mulher-poeta-amiga-amante Lorenna Mesquita, que no palco “emprestou-se” a Florbela Espanca, poeta portuguesa – num monólogo de fazer sangrar a pele do público. E na nossa coluna Drops, se multiplicam nossos autores: Ana Farrah Baunilha, Aden Leonardo, Joakim Antonio, Emerson Braga, Thais Barbeiro, Tatiana Kielberman, Marcelo Moro, Dália Ester, Hugo Ribas, Belisa Parente, Ana Claudia Marques e Mariana Gouveia.
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ABRIL PLURAL
POR R$ 100,00
habitare
Dade Amorim
"Há muito tempo estão conosco os móveis livros e tantas coisas roçando nossas vidas sob o desgaste do teto que reflete a luz da manhã no jardim. Há quanto tempo nos protegemos de sol e chuva e dos ventos do estio por trás das mesmas janelas de cortinas claras que nos defendem da rua a resguardar a sala cor de sépia. Há tanto contornamos a curva das escadas sabendo cores e penumbras e paisagens do quarto mais acima e conversamos sobre coisas sem lugar ou utilidade que vez ou outra esquecemos como corpos mortos numa prateleira até que se tornem de novo uma pequena surpresa e toquem nossos lábios com uma espécie branda de sorriso. E o que são os anos para nós que a cada dia lemos os jornais na rede da varanda e ainda reconhecemos os lugares das coisas que há muito se extinguiram?"
Teatro de Sombras
03
CARTA AO LEITOR | Tamiris Sakamoto
Este texto, rascunho sobre um ano implacável,
não estava programado para existir. Haja vista que
consigo facilmente descrevê-lo com poucas e cer-
teiras palavras desconexas, como bem lhe cabe o
adjetivo, sem questionamentos quanto a sua pleni-
tude. Sendo assim, não vi o porquê de relatar
algo apaticamente intenso. Não existem razões que
expliquem os meus não abraços, não beijos, não
sorrisos. Muito menos que descrevam a
fragrância de um ano que teve cheiro de café e
solidão. Subjetivo. Estático. Todavia, é inquietude
que precisa se expressar.
Meu desconforto talvez venha por eu ainda
estar perdida de mim mesma. Ou, pelo meu
próprio desconforto com a existência. A pergunta
que paira e acolhe todas as palavras escritas durante
2014, porventura, seja: e o que foi a vida? Pois
bem, não me arrisco a responder, já que mesmo
embriagada, tenha sido lúcida demais. Às vezes,
claustrofóbica.
ÍMPAR. SOBRE 14 E NOVO.
* não estava nos planos escrever uma
despedida para 14 e Novo, nem meus
achismos sobre Dois Mil e
CRISE... Daí li "KADOSH" (Hilda Hilst) e
mudei de ideia.
04
Poderia desenhar o ano que passou com as
mesmas palavras que fiz Dois Mil e Doce, e este
rascunho ainda seria amargo. Acre. Agridoce.
Digo isso pois disputaram-me acirradamente.
Intensidade. Contudo, apenas. Dois Mil e Doce é
o quebra-cabeça que demorou 365 dias para se
completar. Todas as peças fizeram sentido. Os
tons deixados foram arte, ainda que contrastados.
Em contrapartida, 14 e Novo caso juntado, não
assume forma. Sem coesão e coerência. No limite,
diria que se por um lado conseguiu fechar alguns
jogos em aberto, por outro deu-me quebra-
cabeças novos que, talvez, necessitem mais do
que dias para serem montados. Minha recusa em
escrever isto quiçá seja reflexo da incapacidade
que o incompleto me coloca. Ainda que, amiúde,
escreva sobre o inacabado.
14 e Novo abre portas para Dois Mil e
Crise. O que foi par, terminou ímpar e consolidou
um gosto forte de tarja preta nas bocas, na minha
própria.
Tamiris Sakamoto. 21. Ex-estudante de Química
que quer saber Computação. Feminista. Socialista.
Nas horas vagas se faz escritora. Às vezes, delirante;
outras tantas, mantem os dois pés no chão. Ah, ela é
essa garota bem ao meu lado. Lunática!
ADONIS
[PERSONAGEM]
06
Personagem | Adonis
A poesia de Adonis — nome escolhido pelo
poeta sírio Ali Ahamed Said Esber — chegou
às minhas mãos através de uma amiga, que me
presenteou com o livro, lançado no Brasil pela
Companhia das Letras, com tradução de Michel Sleiman...
Adonis, na mitologia grega, era um jovem de grande bele-
za, que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de
Chipre manteve com a sua filha Mirra e conquistou o amor
de duas deusas, Afrodite e Perséfone fazendo surgir o mito
do ciclo anual da vegetação... combinação perfeita para o
homem-poeto-sirio que parece, tal qual o mito grego,
renascer após tenebroso inverno.
07
Personagem | Adonis
Eu não tenho por hábito folhear um livro de poesias
— de uma só vez — como faço com romances... leio como
quem degusta uma chávena de chá. Bem lentamente e, em
pequenos goles. Por isso, levei meses para "consumir" a
poesia desse homem, que tem, em si, uma história bastante
peculiar.
No entanto, eu o li, muito antes de sabê-la... levando-
me para dentro seus versos — "me amam o caminho, a
casa | e na casa uma jarra vermelha | amada pela água"
— com o prazer de ler a poesia e a realidade que a escrita
inventa ao fino toque do lápis...
Dias depois — com a leitura finalizada — vim saber
que o poeta Adonis, foi se exilar na França, após se exilar
no Líbano, pois, sua poesia incomodou o nacionalismo
árabe pós-Segunda Guerra Mundial... ao levantar-se
enquanto voz-estridente, contra a islamização da literatura
árabe.
Infelizmente, o livro [poemas] de Adonis chegou aos
meus olhos através de uma tradução e, como não falo ára-
be, não dispunha de outra opção. Como existem diferenças
em todas as línguas, tenho consciência de que não li exata-
mente a poesia de Adonis, que é apontado como sendo o
melhor poeta contemporâneo da língua árabe.
Discordei — naturalmente — de alguns versos, ao re-
trucar com as paredes de meu quarto, que talvez, o sentido
fosse outro... e o significado final — consequentemente —
também.
08
Personagem | Adonis
Encontrei, contudo, algum alento na internet, ao
pesquisá-lo e, me deparar com versos em francês. Em
seguida, encontrei uma excelente crítica, escrita por Luís
Dolhnikoff, que ralhava ferozmente contra o prefácio do
livro, escrito por Hatoum — premiado escritor brasileiro
— o qual não tinha lido até então. Dolhikoff também voci-
ferou contra o estilo do poeta Adonis, comparando-o de
maneira rude a outros poetas, como Ginsberg e, o meu
favorito Eliot, que escreveu "the waste land".
Eu não comparo poesias, nem seus tempos e espa-
ços... para mim, o poema é faca afiada a cortar enquanto
há carne. Aprecio essa metáfora que uso para dizer "gostei
ou não da poesia" que chegou aos meus olhos. Outro dia,
disse a um poeta, ‘sua poesia não me fez sangrar —
reescreva!’ E foi como insultá-lo.
Eliot, Borges, Ginsberg, Mário, Dickinson fazem is-
so comigo e Adonis, mesmo não tendo o “melhor corte”,
riscou minha pele.
Lembrando, sobretudo, que Adonis vem de uma
realidade limitada pela religião e pelos excessos de uma
cultura que não avança. Um mundo onde liberdade depen-
de de um deus-profeta-homem contra o qual ninguém ousa
levantar a voz.
Eis, então, que um poeta ousa questionar tal realida-
de e leva isso para a sua poesia. Ousa ser moderno, contrá-
rio, homem, artista... ousa ser, existir, num lugar onde não
se curvar ao sol é ser sentenciado à pena de morte… e que
se cumpra o enforcamento em nome de uma divindade
opaca, para qual todos se curvam às seis da tarde... por
que somos frágeis demais para recusar os rituais por nós
mesmos inventados.
07
"Nasci e nasceu comigo o deus do amor
— que fará o amor quando eu me for?"
“Você já viu a mulher
como carrega o corpo do outono?
Primeiro ela mistura o rosto e a cal-çada
depois tece um vestido com os fios
da chuva
as pessoas
na cinza da rua
são brasa apagada”
Adonis trad. Michel Sleiman
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Personagem | Adonis
Despertarei ruas e noite e juntos passaremos pelas árvores. Os ramos serão malas verdes e o sonho, travesseiro no intervalo das viagens. A manhã persiste e estranha imprime seu rosto em meu segredo. (...) O espaço é fornalha e os ventos, velha a tecer contos, e os sacres, cortejo a abrir o céu. Como um amante, audacioso, juvenil, de paixão audaz, ergue o Alandalus profundo ergue-o para o Mundo — esse novo santuário. Todo espaço em seu nome é livro. Todo vento em seu nome é hino.
Adonis trad. Michel Sleiman
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12
Porque sempre me disseram que pra ser uma pessoa
produtiva é necessário ter disciplina. "Disciplina", dis-ci-
pli-na — palavra horrível, claustrofóbica, mal me cabe na
boca só em dizê-la, engasga, dá falta de ar. Gosto de
rotina, de ter uma motivação pra levantar da cama, mas
crio a minha própria, desprendida da numeralidade do
tempo, das luas e das coisas 'cotidanadas', o hábito
internalizado com cara de ritual, a mecanização triste dos
gestos repetidos; compreendo o dia com a noção de tarde
e cedo , escuro e claro, não planejo as linhas pra amanhã,
mas acredito no sol e no caminho dele, trajeto natural que
orienta a ordem cronológica da humanidade.
Não formei família no tempo dito propício, continuo
existindo pra sacudir os espaços onde entro, praticar a
sociabilidade, a interação humanóide, que sem querer
acaba sendo quase sempre um acontecimento de mudar
vida. Minha realização nessa Terra é escrever, isso me
basta pra ser feliz. mas há que se criar o tempo, otimizar
os dias pra poder criar.
Não consigo achar normal um mecanismo movido
por engrenagens regendo a inventada contagem da
existência majoritária da humanidade, a sequência
padronizada, lógica, controladora. Funciona, claro. Tem
toda sua utilidade funcional, tão presente na vida das
pessoas que, quase imperceptível, torna-se um verdadeiro
opressor silencioso, a comandar vidas com os avisos de:
— já é tarde. — não vai dar tempo; tic tac tic tac —
causador de ansiedades, marcador inexorável.
A HORA DA ESCRITA
Drops | Por Ana Farrah
13
Entendo a necessidade de medir a vivência dos dias,
da semana, do bolo de 30 dias que é o mês, da duração de
um ano, pra dar-se conta que passou a década, e outra, e
outras mais... Se não fossem as delimitações de tempo e
espaço não haveriam sonhos utópicos de liberdade. Vai
que o povo todo resolve aderir à prática do 'nadismo'...
seria lindo e caótico, apesar da ideia parecer super
setentista e woodstokiana, uma vida sem a percepção
consciente de início e fim do passar dos dias
provavelmente tornaria impossível organizar-se para
dedicar um 'pedaço' desse não-tempo para o "momento de
escrever".
Acredito na escrita em momentos, em surtos de
inspiração, aquele insight que brilha sem hora marcada no
relógio, sem precedentes, aquela ideia genial na
madrugada, no pulo da queda de um sonho maluco.
Levanto e anoto. Depois de acordar é café e rememorar o
que estivar anotado. O segredo é ter o bloco de notas
aberto. Porque pra escrever há que se ter os instrumentos
— mais que o tempo em si — à mão, sempre. Caneta é
arma, é ferramenta. A ideia nunca espera. Não confie na
memória... Já perdi centenas de ideias geniais pra um
poema por puro esquecimento. Tem que registrar.
Dedicar tempo é fundamental. Se você tiver as ideias
concatenadas, mesmo que rabiscadas num rascunho, isso
será o esboço pro teu trabalho funcionar. Então serás um
escritor (ou aí que se começa a considerar que tens um
trabalho à fazer). Há que se organizar essa miscelânea de
ideias, em determinado momento, que, aí sim, deve ter
horário marcado na agenda, pra virar compromisso. E que
esse compromisso seja teu próprio chefe, teu empregador,
seja você mesmo a comandar essa empresa fabricante de
ideias transfrindo isso como expressão artística na escrita.
isso é trabalho. E a melhor hora é você quem faz. Faça sua
hora. Escreva, leia, crie, pire. Depois pára, respira e espere
digerir. Então tu senta e vai, deixa fluir. Saberás que
AQUELA será a tua melhor hora pra escrever. E funciona,
acredite.
14
Perdi a chave de casa. Entro pelos fundos revirando
minha bolsa. Minha mão passeia por objetos que tocados
parecem desconhecidos. Penso se estivesse naqueles pro-
gramas em que vendam os olhos e deveria adivinhar o que
é, com o tato. Carrego aos ombros e não sei o que tenho, o
que possuo realmente?
Passei rápido pela cozinha, subi as escadas.
Não, não encontro minha chave. Em teatral atitude
despejo todo conteúdo na cama. Claro isso é um buraco
negro que se esqueceu de desativar ao meu toque. Todas
as coisas inúteis durante o dia vão para este lugar. Ser
algo, ser engolido, brincam de existir.
Penso em mim e você.
Sou isso também. Uma chave perdida num universo
curvilíneo e inexplicável. Enquanto ninguém vê, sou algo
de voar sem gravidade. Quando existo realmente desco-
necto a magia e nada sou.
Sou uma chave perdida.
Meus cacarecos esparramaram na colcha. Fizeram
barulhos de trecos. Um brinco apenas. Uma caneta, papéis
que nunca precisei verificar. Recibos que nem lembro que
gastei. Olhe! Ontem! Foi ontem que te encontrei. Há algo
de simultâneo ao caos no efeito do tempo. Não pode ter
sido ontem.
Uma poeira colorida, pontas de lápis de cor. Sim,
ontem entreguei um poema e colori com flores, depois nos
beijamos. Na pressa nem percebi, o grafite verde quebrou
logo no fundo. Riscou o pano de cetim. Ter você deixa
muitas marcas.
A UTILIDADE DA BAGUNÇA
Drops | Por Aden Leonardo
Como vou poder entrar em casa agora? Sempre pelos
fundos? Como ter segurança se não possuo o segredo de
afastar o mal com duas ou uma volta? O infortúnio? Onde
encontro possível cópia? Se descrevê-la faz-se um molde?
_ Era uma chave, moço. Acompanhava algo de superação
- foi quando escalei uma montanha enorme. A segunda
mais alta do país, comprei de lembrança, veja que não fun-
ciona - Tem corcovas que entram delicadamente e destran-
ca a porta. Logo em seguida tranca. Preciso dessa chave.
Preciso organizar-me. Bem sei. Pensamentos. Vida.
Grito dentro da minha blusa com dezesseis anos.
Me confundo o que sou.
E se não for nada disso? E essa pressão no peito perturba-
dora? E esse líquido azul que escorre? Em toda bagunça
concentra bactérias. O que vocês estão fazendo comigo,
vermes? Ei, me solte! Alguém faça alguma coisa!
Agarro-me à mala vermelha, que está no chão com as rou-
pas da última viagem. Estou morta. A falta de gravidade
não me deixa cair no chão para fazer meu show. Não com-
preendo: a gravidade zero não permite chorar? Minha voz
não sai. Com o vácuo som não existe, meus gritos voltam
para dentro, ah, este líquido azul já escorre da minha boca,
é o meu vômito de última vida...
Malditos! Sempre confundiram minha cabeça! Existiam
em mim, eu apenas manifestava vocês.
Eu não deixei tudo no chão com tanta gravidade, nem
incomodava tanto assim, eram obviedades, entendem?
Minha voz errou, pensei ser o som um líquido mágico, a-
zul, lindo, brilhante, tudo.
Não, não coloquei meus gritos na mala não, na mala iam
as roupas... em infinitos vexames viscerais.
Ou será que guardei todos os gritos, onde mesmo? Será
que eu os colocava na mala? Meu Deus... Era isso, enrola-
va minhas roupas nos gritos e quando vesti de gente fiquei
desesperada... Sim perdi minha chave.
Definitivamente. Preciso cópias de mim.
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Drops | Por Joakim Antonio
Abro a gaveta e retiro uma folha de sulfite amarrota-
da, com uma escrita corrida, repleta de erros futuros. Den-
tro desta mesma gaveta, mora uma árvore de letras, regada
por textos escritos à mão e frutificando prosa, ou poesia, a
cada novo olhar. Penso se um dia irei parar com esse hábi-
to, pois há muito escrevo como a maioria, deixando os
textos numa nuvem digital, um éter obscuro e efêmero, de
onde as letras, por diversos motivos, podem nunca mais
retornar.
Mesmo assim, independente do local escolhido, os
textos ficam maturando e esperando novos desfechos, uma
troca de palavras entre o novo e o antigo eu, descartando
palavras escritas com ira e mágoa desmedida, mas nunca
as de alegria, pois o amor contido neles, nunca se dissol-
verá. Além do que, qualquer texto pode macular a folha
branca, mas só os perfeitos conseguem tirar seu véu de in-
visibilidade e tornar-se algo mais.
Confesso que andei questionando esse processo e
qual a real validade de deixar textos para depois,
afinal tudo é tão fast-food, gerando uma pressão invisível
para escrever, uma urgência, não por bem querer às letras,
mas devido à tão apregoada falta de tempo e ante o ilusó-
rio apocalipse da inteligência, que muitos dizem já ter
começado. Então talvez não devesse guardar nada e sair
por aí, destilando o que me vaza pelos dedos, preenchendo
tudo que vier a tocar.
APRENDA A DEIXAR
PARA DEPOIS
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17
Mas ao olhar novamente para a folha em minhas
mãos, me vejo perdido no texto de outro, revendo vírgu-
las, procurando sinônimos e questionando ideias, passando
a trabalhar com uma terceira pessoa e somando ao texto,
situações vividas num tempo verbal post-scriptum, no qual
me perco no emaranhado de letras, não como da primeira
vez, num arroubo quase mediúnico, mas analisando cada
passagem, deixando um invisível fio de Ariadne, que me
guiará até o processo final.
De repente entro num processo caótico, me jogando
num abismo paradoxal, onde enquanto acho que revejo,
crio e, quando certo de criar, apenas reinsiro palavras,
dentre elas, algumas que jurei para sempre apagar. Num
desses momentos paro e questiono minha sanidade, pois
vejo claramente o texto esperando, como se fosse um
filho, orientações do caminho que deve trilhar. Então me
acalmo e com um bom pai, o ajudo a se reordenar e cres-
cer, sempre com a esperança de que eu tenha feito o meu
melhor.
Nesse momento, alguns textos mais se agitam querendo se
desfolhar, uns precisando de voo solo e outros de somar-
se, quiçá num livro, havendo também aqueles necessitan-
do serem exorcizados, estes sim, sem novas vírgulas que
lhe parem, para dar chance ao novo vingar. Mas todos
eles, mesmo que por um breve momento, ganharam bem
mais, encorpando-se, por poder descansar e maturar.
No final, pego uma xícara de café quente, me sento
confortavelmente, para novamente me questionar se vale a
pena deixar textos para outro momento. Então olho para a
folha e a tela do computador, vendo um filho nascido e
seu desenvolvimento, aceitando a escolha feita, entre
deixar estar e evoluir para algo mais. E chego conclusão
de que, como tudo na vida, cada texto pede um novo olhar
e o tempo certo, para poder desabrochar.
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Drops | Por Tatian Kielberman
A FRATURA EXPOSTA
A MINHA SOMBRA
Outro dia, pensando acerca do que motiva a escrita
de cada um de nós, algumas lembranças me guiaram até
os tempos do curso de psicologia, quando o professor de
‘teorias da personalidade’ buscava explicar como o ser
humano busca diferentes maneiras de lidar com cada uma
de suas vivências.
Segundo ele — embasado à época em teorias psica-
nalíticas — certos fatos marcantes do cotidiano necessi-
tam ser experenciados em suas profundezas, de modo que
se esgotem e o indivíduo possa, a partir de então, elaborá-
los com maior facilidade. Assim, uma vez passado o im-
pacto traumático dos acontecimentos, provavelmente se
tornaria, também, mais fácil pensar e falar sobre eles.
Recordei também um diálogo que tive há dias com
uma amiga escritora-psicanalista — conhecedora da teoria
e da prática em sua imensidão —, em que falávamos sobre
os simbolismos que os fatores do ambiente agregam às
nossas vidas. Ela me fez lembrar de que a teoria psicanalí-
tica tende a tratar os dramas e os infortúnios do homem
como algo externo, indireto... é mais ou menos como ser
atingido por um raio.
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E, nesse sentido, para ela, a escrita inserida no con-
texto psicanalítico é tratada como sendo um objeto de se-
gurança, uma vez que o indivíduo se aconchega em algo
familiar que o leva a escrever, sentindo-se confortável pa-
ra expor-se. Não é à toa que observamos tantos escritores
solitários e que, nesse meio, a depressão seja um objeto
tão comum.
Voltando ao ponto inicial de minha reflexão — as
motivações da escrita —, penso que necessitamos, sim,
lidar com certos conflitos ao longo da vida, seja conforme
o olhar das teorias psicanalíticas ou de suas variações.
Porém, quando se trata de expor sentimentos e falar do
que vai no coração, alguns escritores o fazem ainda
melhor quando sua fratura pessoal ainda está exposta...
porque, na verdade, ela nunca será elaborada por comple-
to.
Finalizo com outro afago dessa mesma amiga escri-
tora-psicanalista, que — sem sombra de dúvidas — permi-
tiu o entrelace de diversos conceitos anteriormente soltos
em meu pensamento...
...“eu, particularmente, acredito que a escrita é experi-
mentar velhos sabores, os da infância, que são insubstituí-
veis, tanto quanto inesquecíveis. A realidade não nos
permite superar tais aromas, mas o imaginário não
apenas transcreve, como nos permite, aliado à criativida-
de, reviver milhares de vezes, como se tivesse acontecido
há pouco, porque escrever e ler são atribuições de símbo-
los, como beber uma xícara de café. Sempre nos leva para
dentro, para o conforto da primeira vez.”
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Drops | Por Thais Barbeiro
A ARTE DE FICCIONAR
A REALIDADE
“Esta é a minha vida.
Este jogo conjunto.
Subimos todos juntos,
Em um navio que parte,
para longe, bem longe,
Para descobrir uma terra,
legendária e intacta...
Eu queria viver isso todos os dias,
até a minha morte.”
Ariane Mnouchkine
Senhoras e senhores — eu os convido a conhecer
o meu palco, onde deixo o meu grito e exponho a minha
necessidade. Sou uma artista e minhas veias pulsam emo-
ções muitas, de outros, de ninguém. Minhas, suas... como
saber?
Eu alcanço o meu público sempre que as cortinas se
abrem… através da palavra, do gesto, do olhar. Um único
movimento meu, basta para transmutar a realidade, fazen-
do catapultar um novo estado de consciência.
É a minha maneira de abandonar a realidade dos
homens… e te levar comigo para um estado de conforto,
tão gostoso como um abraço. Uma viagem para além das
coisa reais como as sabemos-conhecemos.
21
Quando eu piso no palco, sou outro eu… o eu artis-
ta! O eu personagem. Por alguns segundos, mergulho
nesse universo novo, onde tudo acontece através do
meu imaginário, que é essa aranha a urdir sua fina teia,
que fisga fortemente todo aquele, que se deixa tocar por
essa nova realidade, que começa a acontecer muito tempo
antes desse encontro entre platéia e palco acontecer
Primeiro o ator se dedica as experimentações, encon-
trando em seu corpo os muitos sintomas das emoções, que
nem sempre são suas: leituras-pesquisas-movimentos-
novos-pausas-reflexões-respirações… e a cada novo
ensaio, o ator a tudo experimenta, provando de uma nova
maturidade.
O ator-pessoa se deixa pelo caminho e vai se trans-
formando em outra coisa,tão naturalmente, que é inegável
que, em alguns casos, uma nova substancia nasce.
E o que o público colhe é justamente essa
espécie de reinvenção de si mesmo. Teatro é transe.
Ritmo. Um corpo que baila virtuosamente no ar. Tudo
gira. Tudo acontece. O ator e o palco são uma mesma coi-
sa. Vitrine… e a melhor parte? É nos dar conta de que não
somos nada-ninguém porque dependemos do nosso públi-
co, que chega sendo uma coisa e vai embora sendo ou-
tra… mas, para a satisfação do artista, leva consigo esse
eco mundano-profano-vestido-esculpido-trabalhado que
não deixa nada no lugar — tudo muda — inclusive a es-
sência!
E quando os aplausos surgem no ar, é como um des-
pertador a nos devolver o próprio corpo. A realidade e a
ficção se tornam unas e a magia está completa.
Obrigada pela visita. Voltem sempre!
22
Drops | Por Marcelo Moro
A MORTE NOSSA DE CADA DIA
E se morre hoje, por isso não pode morrer amanhã,
veja o perigo da frase motivo-moralista “não deixe para
amanhã o que se pode fazer hoje” .
Tantos morrem de morte morrida, e tantos outros de
morte matada, mas absolutamente ninguém de morte
planejada. Explico: uma vez planejada a morte considere-
se desde hoje morto.
A morte que mais me doeu, sem dúvida, até o
momento foi a morte inesperada do meu pai, de repente,
como se diz por aqui, caiu da vida para eternidade, eterno
em cada programa esportivo que ouço, em cada gol do Rio
Branco EC, em cada volta do jabuti no quintal, em cada
marchinha sacana de carnaval quase sempre com a letra
adulterada por ele mesmo.
Também acho que não há morte que não doa, sempre
alguém vai sentir mais ou menos que outros mas o vazio
vem é como faltasse aquela peça perdida do quebra-
cabeças de 5000 peças, que vai se tornar mais importante
que as outras 4999 que já estão encaixadas no fabuloso
desenho.
Drops | Por Marcelo Moro
23
Engraçada então é nossa contagem de tempo, sempre
dizemos: um dia a mais — um dia mais para que cara-
pálida, é sempre um dia a menos, pois a vida por mais
divertida que seja é morte a prestação, abatida dia após
dia.
É fato em todas as civilizações que a morte é inven-
cível, e não enganável , é um ente, uma potestade eterna e
antiga, não mais velha que os seres porque para existir era
importante que existisse vida, mas é temida, e celebrada,
esperada e quase sempre desesperadamente indesejável.
Existem aqueles que a tiram para dançar, desafiam
para jogos e ela soberana e justa, honrada e um cálice de
lealdade não vence os desafios se não for sua hora exata
de vencer, nem um segundo a mais e nem um menos, não
se morre de véspera assim como não se morre atrasado.
Mas o dia a dia está aí, desafios, riscos, abusos por
prazer, sejam todos bem vindos a morte nossa de cada
dia .
24
Drops | Por Lunna Guedes
VOCÊ É SEU PRÓPRIO AUTOR
U ma das coisas mais difíceis na vida de um
escritor... é saber pontuar suas histórias, atribu-
indo ritmo a sua narrativa. Não é mesmo fácil
e talvez seja uma das mais ingratas tarefas,
sendo apenas superada pelo desafio da folha em branco...
quando é preciso escolher a melhor das frases para lançar
o leitor no abismo, colocando-o em queda permanente.
Uma história começa a existir — primeiro — dentro
dessa caverna, que são os escritores. É tudo muito secreto,
silencioso. A trama vai sendo — lentamente — urdida em
malabarismos particulares. Nesse momento, o silêncio se
acaba e começam os barulhos — alguns insuportáveis.
Mas até se sentar diante da tela para escrever, o escri-
tor irá organizar milhares de pensamentos, traçar centenas
de anotações e pesquisar milhares de informações.
E na hora em que finalmente os dedos se mostram
prontos para dedilhar o teclado nessa construção insana,
cada um tem seu próprio ritual — estranhos, esquisitos,
surpreendentes e até mesmo inacreditáveis...
Mas o ato de se sentar para escrever, não significa
que o autor alcançou seu objetivo maior. Geralmente, o
primeiro escrito, é apenas uma promessa-que-não-se-
cumpre. Alguns autores preferem abandonar o texto
primeiro... optando por voltar a ele num tempo futuro,
quando a maturidade de seus pensamentos, talvez, venha
lhe permitir outro olhar.
25
Que uma história precisa ter começo, meio e fim,
todos nós estamos cansados de saber, mas a estrutura lite-
rária vai muito além disso... é preciso pontuar os objeti-
vos, determinar as pausas e arquitetar cuidadosamente
esse roteiro onde absolutamente nada escape.
Eu tenho alguma preferência — confesso — por
histórias divididas em capítulos... justamente por facilitar
as interrupções da leitura em determinado momento.
Como leio em coletivos, ao descer em determinado ponto,
posso caminhar por todo o universo para o qual fui traga-
da. Alguns de meus livros favoritos, contudo, não dispu-
nham desse artifício, e eu sempre me perguntei: "por que
razão o infeliz do autor não dividiu a trama em capítu-
los?"
Mal sabia eu o quão difícil é organizar uma história
em pequenas divisões precisas, desenvolvendo argumen-
tos que sirvam fios condutores para o leitor, sem que esse
se sinta diante de uma rua sem saída. Cada capítulo, deve
ser para o leitor, uma espécie de cruzamento, de onde ob-
serva os caminhos sem saber para qual direção ir, mas
avista na figura de um transeunte qualquer, alguém a
quem pedir orientações e ao indagá-lo, a única resposta
possível para a pergunta feita pelo leitor — sabe onde fica
a rua desse capítulo? — deve ser inevitavelmente: no capí-
tulo seguinte.
O fim de um capítulo tem essa responsabilidade,
afinal, se trata do caminho que conduzirá o leitor ao que
ele tanto deseja: o final... da trama! Mas antes de chegar a
esse ponto, ele tem que ser, cuidadosamente, conduzido...
É mais ou menos como em um jogo de xadrez, antes de
derrubar o rei, dizemos Xeque e todo o resto — sabemos
— se orienta naturalmente...
26
Drops | Por Dália Èster
A PELE QUE EU VISTO
É A FOLHA E PAPEL
ONDE ESCREVO
Encomendaram-me um gozo.
E eu, o tipo que não sabe nem interpretar o gozo
espontâneo, aceitei. Por revolta. Era prostituição dos
meus líquidos internos, esses que encharcam as pala-
vras quando escrevo, uma a uma, e de repente, toda
hora me vejo grávida de alguma imundície pessoal.
Não vai ser nenhum texto bonito sobre como eu me
coloco na escrita. Nenhum texto bonito pode ser a
meu respeito, onde tudo é uma carne estraçalhada,
pedaços expostos e pendurados e eu andando como se
nada estivesse acontecendo. E o leitor... de tudo, o que
eu mais odeio. Combinação satânica de que se cada
um tem sua própria pele rasgada e pendurada, andare-
mos então todos brincando de ciranda, e o diabo coor-
denando, todos nus e psicotizados, mascarados no
entanto pela música infantil, um ninar macabro, ao
fundo, nossos rostos marcados pela dor, pelo choro, os
olhos inchados. Então cada um enfia a mão no outro,
por dentro. Todos abutres poetizados. A mão apertan-
do o escrito, a primeira vez do toque, a exposição dia-
bólica cifrada, os dedos entrando um a um em mim,
desconhecidos a espremerem meu feto, e eu gritando:
tirem a mão de mim, monstros. Na verdade era tudo
muito excitante. E eu nunca podia ser tocada a menos
que uma mão se enfiasse sem convite em mim, porque
Drops | Por Dália Èster
27
eu estupidamente me abria no escrito, desejava ser
violada, tudo aqui dentro era uma paz assustadora,
uma paz de quem está distante de tudo, vivendo uma
realidade metafórica demais para que caísse em cima
do corpo e fizesse sentir que eu estava viva. Todos os
rostos eram iguais aos meus. O inferno era um quarto
cheio de espelhos. Olhando-os todos descobri que não
podia ser uma vagabunda: gozava na hora errada,
sempre. Não podia fingir orgasmos porque quando
eram fingidos, eu me enchia de tesão, me sentia tão
mais mulher e tão mais ardida por estar nessa bolha de
queimadura gigante, acabava sempre achando todo o
fingimento excitante, estranhamente, ele se tornava o
meu gozo mais sincero e intenso. Sendo que no cotidi-
ano de minha vida não poética me faltava sempre um
passo a mais para o derretimento, eu endurecia como
uma vela que não era mais necessária, cuja cera escor-
reu, mas não o bastante para ser consumida. Deus
sabe o quanto eu queria ser consumida, se tivesse que
vender minha pele a algum incendiário, eu o faria. A
luz do mundo sempre me irritou. Ela era a razão da
inutilidade do meu fogo. Por isso sempre retorno à
ciranda. Coloco fogo em cada papel, transformo-o em
mim mesma, e jogo nos outros, esperando que desfi-
gurem a cara. É em vão. Eles me olham, a pele enru-
gada, o olhar seco, um coração em chamas, e dizem:
bonito seu escrito. Nessa hora, sei que são monstros.
Que sou a única humana. Que no inferno ninguém vai
preso por omissão de socorro. Ao contrário, são
dementes aplaudindo cada vez que me suicido, meu
dna no sangue dos poemas, e eu sempre penso que
pelo menos eles têm braços, enfiam a mão descarada-
mente em mim, enquanto a cabeça olha o diabo e
concorda que não está acontecendo nada aqui, apenas
poesia.
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Drops | Por Emerson Braga
CARTA A CECÍLIA MEIRELES
08 de novembro de 1964
Hospital dos Servidores do Estado
Rio de Janeiro – RJ
Caríssima cosedora de incertezas;
Não, não percas teu valioso tempo à procura do no-
me ou endereço do remetente desse escrito. Trata-se de u-
ma carta anônima, depositada sobre os lençóis enquanto
descansavas de teus ais. Revelar-te minha identidade feri-
ria o propósito primeiro do documento. A correspondên-
cia, enfim, chegou às mãos de sua célebre destinatária.
Por hora, é o que importa.
Nunca concluí de maneira satisfatória se
deveria referir-me a ti por poetisa ou poeta. Questiono-me
com alguma frequência ― apesar de não obter êxito al-
gum em minhas divagações ― se, como ente universal, o
criador de poesia deveria transcender questões de gênero
e chamar-se simplesmente poeta. A feminilidade é carac-
terística tão viva em teu trabalho que não te enxergo sim-
plesmente poeta, mas poetisa. Todavia, como alguns mau-
soléus parnasianos ainda associam o feminino da palavra
poeta à criação literária desprovida de excelência, prefiro
dirigir-me a ti com alguma intimidade, haja vista que
ignoro a denominação que melhor definiria tua verve
artística. Posso chamar-te Cecília? Afinal, somos compa-
nheiras de uma vida inteira, apesar de jamais termos sido
formalmente apresentadas. Ainda não.
29
Cecília, cometeste um terrível pecado. Magoaste a
vaidade dos deuses e estes planeiam uma vingança
contra ti. Invadiste domínios herméticos, desbravaste
segredos que não poderiam ser desvelados diante do
leviano olhar humano. O que retendias com tamanho atre-
vimento? Prometeu roubou o fogo dos deuses e entregou-o
aos homens. Vê o que, por toda a eternidade, foi feito
dele!
Ainda não atinas para meu intento, pois bem?
Refiro-me aos poemas inominados, presentes em tua
obra Solombra. Sabes por que não conseguiste batizar
cada bloco de estrofes? Porque aqueles versos alexandri-
nos não são desse mundo, meu bem. Tua ousadia maculou
a cortina de luz e sombra que divide as realidades das
quais somos cativas.
Lançaste teu olhar muito além de zonas fronteiriças.
Ignoraste que o futuro sempre é adiado porque aos
homens compete apenas viver o presente ou relembrar o
passado. O que pretendias com tua determinação em ad-
quirir conhecimentos vedados aos mortais? O eterno só
diz respeito ao eterno, curiosa mulher. Ao idear sobre o
fugaz e o que não tem fim, transformaste tua angústia em
trapaça. Não é natural a clarividência humana acerca do
que, por todo o sempre, deveria permanecer invisível.
Há perguntas que somente existem a fim de que teus
semelhantes possam deslocar-se através do tempo, e não
para que sejam respondidas. Ao homem cabe só o instan-
te, é isso. Mentes limitadas inflamariam facilmente mesmo
que diante do mais breve vislumbre da eternidade. E
delas, não restaria sequer o pó do qual germinaram.
Aproximaste-te do fogo que forjou a humanidade. Todavi-
a, és tu feita de outro metal, leve e magnético. Talvez por
isso tua natureza atraia tudo que existe unicamente no
nada e que deveria permanecer ininteligível. Estranha-me
que tenhas mantido a sanidade, mesmo após descrever em
uma única e ligeira palavra o que há de efêmero e perpé-
tuo na história do tempo.
30
Drops | Por Emerson Braga
Disseste na epígrafe de teu livro que o termo
solombra surgira-te de um choque violento entre as
luzes do Céu e as trevas da Terra. O ruído que advém de
tal embate não deveria ser percebido por tua sensibilida-
de, Cecília. Tal som foi concebido para regalo
daqueles que não têm ouvidos, olhos ou boca. Por que,
desde antes, não ocultaste sob a pedra fundamental de
tua acuidade esse desejo tolo de ter ciência do que é
intangível?
Ao invés de ignorá-la, transformaste a palavra que
deveria ter permanecido incógnita em um cancioneiro.
Pior! Ofereceste-a para apreciação desses pobres vasos
de barro, que nada sabem das mãos do oleiro. Os poemas
presentes em tua obra balizam um caminho que não pode
ser percorrido em vida por nenhum homem, mulher!
Obsequiaste indivíduos ordinários com um mapa para as
mais virentes estrelas de nosso obscuro universo. O que
procuras na face de Eros, Psiquê? Por que insistes em
desbravar o mistério que deveria amansar-te a inquietu-
de?
Caminham por entre trevas aqueles que leem teus
reveladores versos e, quanto mais adentram a escuridão
dos misticismos e enigmas, mais se aproximam da vedada
claridão que não lhes pertence. Cecília, caso teus leitores
teimem em voltar-se para dentro, enxergarão o que na
verdade há fora, e isso não pode ser, jamais! O que será
da noite se as crianças perderem o ingênito medo do
escuro, senhora? É necessário que o interior desses
mamulengos permaneça ambíguo, desconhecido. Por que
não povoaste teus versos apenas de sombras? Qual o
propósito daqueles ― mesmo que raros ― lampejos de
luminosidade?
31
Temo por ti, pelo que te aguarda após teu passamen-
to. Esquece-te das tantas vezes que foste ferida
pelos homens, Cecília. Nada se compara à fúria de
deuses molestados em sua fatuidade, desejosos de
permanecer um mistério.
Não há meios humanos ou etéreos para desfazer tal
engodo. Em teus versos, luz e sombra tornaram-se tais
quais irmãs siamesas, inseparáveis, intrinsicamente
dependentes uma da outra. Teu ardil foi de uma sabedoria
astuciosa: Escreveste poemas na escuridão e, quando os
deuses perceberam que Solombra projetava sobre a Terra
a mesma luz que se encandeia nas mais altas esferas, tua
pertinácia já havia tornado-se irremediável farol.
Pelo resto do dia, procura pensar em tua defesa,
Cecília. Em breve serás julgada por teu profano ato.
Descansa, pois o definitivo clarão aproxima-se na mesma
andadura que as trevas avançam sobre tua teimosa cons-
tância.
Amanhã ao entardecer, sob o lusco-fusco, entre tre-
vas e luzes, virei buscar-te. Perceberás de imediato minha
presença, apesar de eu não ter rosto. Diferente daqueles
com quem dividiste tua passagem por esse mundo, eu não
sou. Chegou aquela que não é, talvez digas tu em um
último sussurro carregado de revelação.
Deixa que essas criaturas vulgares permaneçam na
contemporaneidade dos fatos, que sigam desmaiadas sob
coisas cotidianas, Cecília. Para que haveriam de saber
aquilo que pertence ao para sempre e ao nunca mais?
Não temas. Permite que o futuro alimente-se de
todas as instâncias, que ele torne-se presente e, depois,
passado. Amanhã caminharemos pela atemporalidade dos
seres e das coisas e então te contarei minha história, antes
que, invejosos ― feito o abutre de Prometeu ―, devorem
os deuses carne e ossos de tua faminta existência.
Pequena Lágrima Atenta
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Drops | Por Ana Claudia Marques
O que é realidade?
— Eis a pergunta que tomou conta de mim desde que come-
cei a delinear este artigo porque nós, escritores, temos o
péssimo hábito de inventar realidades; mas de onde vem essa
estranha necessidade?
Penso eu e hão de concordar, este é um hábito ancestral.
Deve ser uma inveja do poder criador que atribuímos aos
deuses — “se eles podem, eu também posso” — deve ter
pensado o primeiro inventor de histórias — “e vou fazer me-
lhor do que o original!”
Antes de Guttemberg ou dos papiros, já haviam histórias
sendo passadas adiante oralmente, de geração em geração. O
ser humano não entendia a sua própria realidade, e para
explicá-la, tentar decifrá-la e aplacar seus próprios medos,
inventou outras. Assim nasceram lendas sobre a criação deste
mundo; sobre moradas de deuses no Olimpo, em Asgard, ou
os Vedas, com todo seu panteão de deuses, e suas histórias; o
Xintoísmo, para os japoneses.
Obviamente todas as outras religiões: do antigo Egito, a
Judaica, e depois a Cristã, a Islâmica — falavam e falam de
outras realidades que eu só posso considerar como sen-
do “ficcionais”. Gerações e mais gerações se pautaram — e
se deixam pautar — por “realidades” inventadas, tentando
alcançá-las, e serem dignos de a elas pertencerem!
A ARTE DE FICCIONAR
A REALIDADE
33
Sinceramente, é invejável não só a capacidade destes primei-
ros contadores de histórias, que tem um público cativo até
hoje; tanto quanto o é a capacidade do ser humano de trans-
portar-se e acreditar em algo que não vê, não toca e não chei-
ra!
Nós, humanos do século XXI, não somos tão diferentes de
nossos ancestrais. Me arrisco a dizer que nosso cérebro conti-
nua no mesmo estado de evolução, precisando sempre de uma
realidade paralela para poder suportar a vida nua e crua. Ainda
há aqueles que matam em nome de suas realidades — vide
todas as brigas religiosas, ideológicas ou partidárias que
presenciamos diariamente, com espanto e horror. Quer um ca-
so de amor mais longo com a ficção do que a destas pessoas?
Podemos nos achar mais evoluídos, mas temos fãs clube para
Harry Potters, Sociedades do Anel, Nárnias, Heróis Marvel,
príncipes e princesas, vampiros etc, e nos rendemos a estas re-
alidades convincentes, sonhando e vivendo com elas.
O bom ficcionista nos encanta com uma realidade absurda-
mente verossímil, pois cria leis que a regem, convencendo
nosso cérebro de uma realidade que pode ser absurda ou pró-
xima ou distante, somos para lá transportados através das pá-
ginas de um livro, das cenas de um filme, novela ou através
das palavras de um bom contador de histórias.
Somos convencidos através da emoção que preservamos
dentro de nós, a salvo! Vemos com os olhos da imaginação e
nos deixamos conduzir, com os olhos da realidade bem fecha-
dos.
A arte de ficcionar a realidade, portanto, passa pelos cinco
sentidos. A nossa realidade só existe baseada neles. Portanto,
ao escrevermos, contarmos uma história, não podemos esque-
cer de temperá-la com sentido e sentimentos. Não há Terra
Média que sobreviva à falta de romance entre elfos e reis, ou
ideais a serem alcançados por heróis improváveis ou previa-
mente designados porque é exatamente isso que buscamos em
nossa realidade comum.
INTERFERENCIA
em uma folha EM BRANCO
...frágil, bastante frágil, penso eu, o
argumento das pessoas que defendem o uso
da palavra poetisa simplesmente porque
existe na língua portuguesa, como se a
língua fosse uma lei sagrada ou irrevogável
e não o movimento das dinâmicas sociais-
culturais-políticas-econômicas-sexuais-( ...).
Mas, mais quebradiço ainda é o argumento
de que o uso de poeta masculiniza a poeta.
Ora ora ora ora ora ora ora ora ora ora essas
mesmas pessoas não importam nem um
pepino em masculinizar a mulher usando o
corretíssimo (gramaticalmente) termo
Homem; as mães usando o corretíssimo
(gramaticalmente) Pais e todos os
intragáveis genêricos masculinos neutros
universais que invisibilizam o feminino…
Carla Carbatti
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Capa | Solombra
[...] Tenho pena de ver uma palavra que morre.
Me dá logo vontade de pô-la viva de novo.
Solombra, meu novo livro, é uma palavra que
encontrei por acaso e que é o nome antigo
de sombra. Era o título que eu buscava
e a palavra viveu de novo.
Cecília Meireles
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Capa | Solombra
N o espaço-mundo do homem, a linguagem é,
sem dúvida alguma, o seu diferencial, pois é
através dela que se pode pontuar, objetivar,
esclarecer, notificar — acredita-se que, sem
nenhum traço de ambiguidade. O diálogo é a forma mais
coerente de expressão e, quando impresso, trata-se de
um combinado de frases perfeitas, com palavras escolhi-
das com imenso cuidado.
O homem fala... se expressa.
O homem se faz entender.
Contudo, nesse mesmo espaço-mundo, existe o
silêncio, no qual a palavra não pode penetrar. E, as
expressões — todas — esbarram na quietude dos olhos,
esses mesmos que às vezes se fecham... sendo, em
alguns casos, por todo o sempre.
37
A linguagem finda... pois o silêncio é seu limite
determinante. Estranhamente, algum autor maquiavé-
lico escolheu denominar essa façanha da Natureza com
a mais cruel palavra do dicionário dos humanos: morte.
Em busca de elementos de sobrevivência, o
homem elegeu o inimigo do silêncio para salvar-se: a
palavra. Surgia, assim, a literatura, sobre a qual
Blanchot nos orienta em seus estudos, quase como
quem oferece uma tábua salva-vidas: “a linguagem
literária não é acabada, nem inacabada: ela é” —
levando-nos a uma inevitável conclusão: somos —
falíveis.
Diante da morte, o homem sucumbe… É uma luta inglória. Não há como sobreviver,
mesmo tendo, em seu íntimo, o grito encardido da exis-
tência. O último sopro. A última tentativa. A última pa-
lavra. Adeus. Morrer significa pontuar de vez a sua e-
xistência. Morrer significa não mais existir. Ser esque-
cido. Abandonado.
Tantas interpretações possíveis, mas apenas uma
sincera e verdadeira — definitiva… a morte não é uma
questão para os que se vão e sim para os que aqui
ficam, porque o homem determinou a morte como sen-
do uma foice a ceifar sua existência. Dando um derra-
deiro fim à luz de seus olhos, à chama que arde em seu
peito.
Mas a morte, para os homens da arte, é mera
semântica… o escuro é o lugar úmido e aquecido, no
qual se encontra alento para o sofrimento da carne e es-
paço para os delírios da alma. É na luz onde tudo se
dissipa e a morte, para eles, é uma vírgula cravada em
seus passos firmes.
Capa | Solombra
Existir é qualquer coisa breve, momentânea.
Vive-se apenas enquanto se cria e a existência finda
quando a premissa se esgota. Um livro. Uma tela. A
vida é expirar… apropriar-se. A vida é o instante em
que tudo se orienta dentro e, do lado de fora… é mor-
te, fim. Nunca mais.
Morre-se milhares de vezes…
Durante a noite, quando o sono atinge os sonhos
e esses se esparramam pelos cantos de seu corpo, em
estado de repouso pleno. Volta-se à vida, essa falsa luz
anunciada pelas letras que o homem compõe como
sendo verdades... sendo, de todas, sua maior mentira.
Como saber se o sol é de fato luz, e não trevas, ou
como assegurar que a vida é de fato sopro, começo, e
não fim… morte?
38
39
Quero uma solidão, quero um silêncio,
Numa noite de abismo e a alma inconsútil,
para esquecer que vivo — liberta-me
das paredes, de tudo que aprisiona;
atravessar demoras, vencer tempos
pululantes de enredos e tropeços,
quebrar limites, extinguir murmúrios,
deixar cair as frívolas colunas
de alegorias vagamente erguidas.
Ser tua sombra, tua sombra, apenas
e estar vendo e sonhando à tua sombra
a existência do amor ressuscitada.
Falar contigo pelo deserto.
— Cecília Meireles in; Solombra —
“ “
40
Frente e Verso,
sobre poesia e poética
Carlos Felipe Moisés
O contato com a poesia implica opera-
ções extremamente complexas, que me
põem em relação com um número
surpreendente de graus e níveis de
realidade. Ler um poema (com as devi-
das adaptações, valerá também para
escrever um poema) significa acionar
mecanismos de percepção que, de for-
ma mais ou menos elaborada, captam
os vários estratos do texto — o visual,
o sonoro, o semântico, o sintático —,
os quais adere, por associação ou ana-
logia, uma quantidade de referências
de ordem psicoafetiva, biográfica,
histórica, geográfica etc., que todo
poema, por elementar que seja,
contém.
42
origamis Akira Yamasaki
quando sinos cobram em alto e claro som pelo troco da desdita do pássaro indagante quando o peso infame das dores indignas dobra o corpo e o mar do pássaro incitante quando baixam marés e os choros regressam do muro da garganta do pássaro intrigante quando bolha de sabão o entendimento degenera e se dissolve nos olhos do pássaro instigante origamis de grous azuis na maca de emergência adormecem nas mãos do pássaro inquietante
43
— F I M —
Zélia Guardiano
Não há ponte
Entre vida e morte
De sorte que
Se salta no infinito:
Frêmito esquisito
Pulo macabro
Do alto do telhado
Da cumeeira
Da existência
Em que se queda
Para sempre
Num abismo:
Vertigem
Vórtice voraz
Que começa aqui
E vai acabar
No nunca mais
44
a cantiga da morte Karin k. carteri
a canção que a Morte entoa é blasfema, inconcebível
fala do prazer da dor e da extrema agonia de morrer nos braços
da Negra Dama
ela nos abraça no escuro ela nos embala sem pressa
Nos mostra o silêncio Nos engana— e conforta
Dama Negra— mentirosa, ardilosa e vil. sempre pontual
canta sua canção de notas cruéis e anuncia nossa hora próxima
— nossa hora vizinha!
ela nos acaricia no berço nos observa na praça
nos acompanha no carro e nos espera— sedenta
45
a canção que a Morte canta é Infinita
fala de ganhos e perdas tem estrofes repetidas
em um interminável refrão!
ela nos sorri na estrada nos beija na testa
nos espera— faminta Nos engana e conforta
a canção que a Morte sussurra será a última em nossos ouvidos!
46
Escuto
Jeanne Callegari
nada se ouve.
o telefone não toca, as chaves
não tilintam na porta
que não se abre.
ninguém pisa duro no chão
para desgosto da senhora
que mora embaixo.
ela deve estar contente, agora.
das caixas de som não sai
ruído ou balada
hip hop ou lamento
tantos discos garimpados
compositores raros
nenhum toca, agora.
naquela manhã, o telefone tocou pela primeira vez –
o alt-country que sempre me acordava
mas era de manhã, e eu
sonolenta, resmunguei
deixei que tocasse
47
quando o telefone tocou pela segunda vez,
estava no banho. não quis molhar o tapete, o chão
e se escorregasse?
o telefone tocou pela terceira vez. eu me precipitava
pelas escadas
atrasada, como de regra.
aonde ia, tão apressada?
não voltei para atender.
o telefone vibrou na bolsa.
dessa vez respondi.
é como dizem: certas notícias correm rápido.
da janela, disseram. vigésimo andar.
desde então as gentes me olham, enternecidas.
recebo muitos abraços.
dizem que você faria de toda maneira
48
se não naquele dia,
em outro
em breve.
dizem que já estava decidido.
e eu me pergunto: o que o teria movido
naqueles últimos instants
uma despedida?
odiava bilhetes. não deixou nenhum
dramáticas, você dizia
– das pessoas que deixavam bilhetes.
você sempre disse
que gostaria de ir em silêncio
sem alvoroço
que não houvesse choros ou censuras
que a morte era de cada um para escolher
o momento.
eu cobria os ouvidos.
49
só depois — agora —
quietude.
como você queria.
escuto:
nada toca
você não entra com estrépito pela porta
não assovia desafinado
ou dança catira para incomodar a vizinha
silêncio. de ruído apenas
o som dos telefonemas
daqueles três telefonemas
que soaram
ressoaram
e eu não atendi.
50
A morte é uma puta Bah Bee Paiva Esses sonhos em linha reta Embaralhados pelos meus passos tortos Me fazem enxergar um futuro Na palma da mão, Na borda do copo, No fundo do seu olho Esse discurso engasgado Enquanto me arrasto Por essas ruas, com seus discos embaixo do braço Parece estar sempre prestes a me matar Saltar de pontes, Jogar-me na frente de carros, Flertar com a morte, Cobiçar seu riso sacana, Eu nunca me tornarei Alguém diferente disso.
51
Soneto Póstumo Luiz Gonzaga Leite Fonseca
Morri, digo-lhes: estou feliz Aqui de cima nestes vastos céus azuis,
Vejo meu túmulo e meu nome sobre a cruz, Provisoriamente escrito a giz.
Em meu caixão solitária flor-de-lis, Adorna o meu cadáver em osso e pus,
E meu espírito envolto em áurea luz, estável, abre a boca e assim diz:
Desculpem-me, mas perdi o entusiasmo, Foi o desencanto, a rotina, este marasmo,
A falta de amor que me mataram,
Mas no mundo é viver e morrer, não tem dilema, Mas deixo-me aqui, em forma de um poema,
Aos póstumos que me amarão e aos poucos que me amaram.
52
Primeira hora Thereza Christina Rocque da Motta
Verás como verter palavras.
Escolherás as horas
e beberás toda vez
a morte
em pequenos goles.
Não, não terás dúvidas.
Mais uma vez estarás só,
tu e tua estatura, como quem
aprende a altura para saltá-la.
O verso de tuas mãos te dói,
o alentado peso de tuas cicatrizes.
És quem soubeste ser.
Procura teu longo espelho.
Nada restará de ti,
então, começa agora
a descartar teu peso.
A HORA QUE PASSA
“ “
53
Ame doidamente alguém, mas nunca
abdique nem uma só das suas graças,
nem uma só das suas ideias que lhe
fazem vincar a fronte às vezes com
uma pequenina ruga de capricho e
insolência, que fica tão bem às
mulheres bonitas; não ajoelhe nunca,
porque está nisso o nosso grande mal,
o nosso profundíssimo erro; nós
invertemos muitas vezes os papéis,
e em proveito deles, e
depois as consequências são muitas
vezes as paixões que devastam uma
vida inteira por criaturas que se
dignam dar, por último, como humilde
mortalha, um olhar de compaixão!
Muitas vezes as nossas mais delicadas
atencoes, as nossas maiores provas de
amor, os nossos cuidados, são como
aquelas perolas que um dia alguem
atirou a uns porcos...
Trecho do monólogo
“Florbela Espanca — a hora passa”
...cheguei à Livraria da Vila — no Shopping
Higienópolis — pouco depois das seis, às portas do monó-
logo "Florbela Espanca — a hora que passa"... ainda em
tempo de orientar-me em uma pequena fila que me
levaria ao anfiteatro, um lugar que acontece entre
livros...
O primeiro contato com a atriz Lorenna Mesquita/
Florbela se deu durante a caminhada até o assento... com
olhar ameno, vestimentas comuns, negras... uma mulher-
atriz-poeta acontecia no canto do palco, sentada em uma
cadeira, colocada ali propositalmente para que público e
personagem se encontrem e se inventem... meu olhar —
confesso — pensou imediatamente em um verso qualquer
de Florbela e sua intensidade... uma das poucas poetas que
parece viver a escrita e nos deixa na condição de leitor,
imerso na condição desconfortável de ler e não a saber,
apenas imaginar uma realidade. Um punhado de perguntas
se orientam em nós de maneira natural... uma vez que a
escrita de Florbela traça aos nossos olhos, uma mulher
insatisfeita com a vida rural da década de vinte e que
cometeu suicídio aos trinta e seis anos, no ano de 1930.
Entrevista | Lorenna Mesquita
A HORA QUE PASSA
54
55
"Se passar do dia dos meus
anos, morrerei de velha".
O monólogo, escrito por Loreena — é resultado de
um processo de pesquisa desenvolvida ao longo de três
anos... além de estudar com afinco a escrita de Florbela
Espanca, a atriz visitou às principais cidades portuguesas
em que a poeta viveu — Vila Viçosa, Évora, Lisboa, Porto
e Matosinhos — visitando as casas, a biblioteca, o túmulo
em destaque no cemitério. O resultado foi um vídeo-diário
de bordo e mais de três horas de espetáculo.
Fernando Pessoa diz que todo poeta é um grande fin-
gidor. E isso vale para os artistas.
Mas eu me permito sentir em cena os sentimentos da-
quele personagem. E no caso de Florbela, procuro estar
viva no palco e passar toda a verdade daquela mulher.
Naquela hora eu não a represento, eu sou ela.
PLURAL — de todas as poesias de Florbela, qual delas
ecoa em sua anatomia de mulher-atriz-escritora?
Lorenna Mesquita — sou apaixonada pelas poesias de
Florbela. Impossível eleger apenas uma. Posso escolher
uma por dia, de acordo com o meu estado de espírito.
Inclusive é assim que muitas vezes seleciono as poesias
que serão publicadas na fanpage que mantenho no
Facebook (Florbela Espanca — Poeta), a única página em
que ela publica (e responde) em primeira pessoa.
Mas se for para escolher algum pensamento que me defina
como pessoa e como artista, não seria um poema e sim
uma frase, um questionamento: "Por que eu não nasci
igual aos outros, sem dúvidas, sem desejos de impossível?
E é isso que me traz sempre desvairada, incompatível com
a vida que toda gente tem".
PLURAL — você visitou (tocou) com os olhos, os pés e
Fotografia. Adriana Elias
56
Entrevista | Loreena Mesquita
PLURAL — É fato que o ator leva algum tempo para se vestir
da personagem no dia da apresentação. Como é o seu processo
de desconstrução da Lorenna e reconstrução de Florbela?
Lorenna Mesquita — Florbela já está entranhada na minha
pele. Normalmente saio de casa com o figurino da peça e vou
ficando introspectiva. Quando entro em cena já sou ela, com a
respiração diferente e me aproprio de toda sua vida. Todos os
seus conflitos, suas angústias, sua força e feminilidade naque-
la hora são meus. O mais difícil é sair da personagem. A cena
final do espetáculo é muito forte emocionalmente e me suga
todas as energias. Depois de cada sessão, promovemos um ba-
te-papo com público e muitas vezes a minha voz ainda está
embargada. Numa das apresentações, senti uma angústia tão
intensa que tive dores no peito por uma semana. Fernando
Pessoa diz que todo poeta é um grande fingidor. E isso vale
para os artistas. Mas eu me permito sentir em cena os senti-
mentos daquele personagem. E no caso de Florbela, procuro
estar viva no palco e passar toda a verdade daquela mulher.
Naquela hora eu não a represento, eu sou ela.
PLURAL — de todas as poesias de Florbela, qual delas ecoa
em sua anatomia de mulher-atriz-escritora?
Lorenna Mesquita — sou apaixonada pelas poesias de Flor-
bela. Impossível eleger apenas uma. Posso escolher uma por
dia, de acordo com o meu estado de espírito. Inclusive é assim
que muitas vezes seleciono as poesias que serão publicadas na
fanpage que mantenho no Facebook (Florbela Espanca —
Poeta), a única página em que ela publica (e responde) em
primeira pessoa.
Mas se for para escolher algum pensamento que me defina
como pessoa e como artista, não seria um poema e sim
uma frase, um questionamento:
"Por que eu não nasci igual aos outros, sem dúvidas, sem
desejos de impossível? E é isso que me traz sempre
desvairada, incompatível com a vida que toda gente
tem".
PLURAL — você visitou (tocou) com os olhos, os pés e
também a alma os mesmos pousos da poeta Florbela ao visitar
uma Portugal moderna-antiga-contemporânea. Como essa
viagem maculou seus pensamentos, sentimentos? Que tipo de
simbiose ocorreu na pessoa-atriz-mulher Lorenna?
Lorenna Mesquita — quando fui a Portugal, em 2013, já estu-
dava Florbela há dois anos. E eu precisava conhecer a terra
em que ela nasceu, respirar o mesmo ar, andar pelas mesmas
ruas e imaginar como aquelas cidades eram na
época em que ela viveu. Conheci lugares em que ela
passou e tentava projetar de que forma ela era influenciada
por aqueles ambientes.
57
E se ela tivesse vivido em outros lugares, como teria sido sua
vida? Quem ela seria? Florbela mesma dizia que, uma pessoa
é formada pela influência de um conjunto de fatores: heredita-
riedade, educação, ambiente e destino. Durante a viagem,
descobri que eu não estava apenas em busca de Florbela Es-
panca. Eu estava em busca de mim mesma. Essa viagem foi i-
nício de uma mudança imensa na minha vida pessoal e profis-
sional.
PLURAL — você vem de outra cidade, esteve em Portugal e
outros tantos lugares e hoje, é certo dizer que vive em São
Paulo, certo? A maioria dos artistas carregam na amálgama um
pouco dos lugares onde estiveram. Conta pra gente o que é
saudade em sua pele hoje?
Lorenna Mesquita — me preencho dos lugares onde vou.
Absorvo sotaques, expressões, cheiros, paladares, cultura. Sou
parte de cada lugar que visito e deixo um pouquinho de mim
também. Desde que fui embora de casa, há dez anos, do que
eu sinto mais saudade é da minha família. Estou longe de
todos e queria muito estar por perto, vivendo a rotina: tomar
café da manhã, passear, conversar ou só ficar do lado em
silêncio. É essa saudade que me habita.
58
Entrevista | Lorenna Mesquita
59
PLURAL — como vê esse impulso à exposição da intimidade,
que fica explicita nas redes sociais, programas de televisão,
nos deixando com a sensação de que estamos o tempo todo di-
ante dos olhares de uma velha senhora em sua janela, figura
folclórica das pequenas cidades?
Lorenna Mesquita — as pessoas estão muito carentes de
atenção. E a carência é resultado da insegurança. Elas que-
rem chamar atenção o tempo todo, pedindo aprovação dos
amigos em forma de "curtidas" nesse mundo virtual. Um mun-
do em que elas vivem mais do que sua própria vida.
Já cansamos de ver as pessoas com o celular na mão atraves-
sando as ruas, esperando um ônibus, dirigindo ou mesmo num
bar com os amigos. Todos estão conectados virtualmente e
desconectados de suas vidas reais.
E chegam ao ponto de perder a noção, contando em praça
pública — como costumo chamar as redes sociais — coisas
que mal falariam para os mais íntimos.
PLURAL — a internet escancarou radicalmente o nosso pior
lado. O preconceito e julgamentos estão a mil nas "vozes" —
geralmente — sem rostos que vociferam ofensas, atirando
pedras para todos os lados. Qual o rótulo que mais te incomo-
da?
Lorenna Mesquita — Me incomodo com qualquer rótulo que
venha repleto de intolerância. Na verdade, só de ser um rótulo
já não é coisa boa. Porque significa que você definiu aquilo ou
alguém e não está aberto a olhar de outra maneira. E na inter-
net é ainda pior. Estar atrás da tela do computador ou do celu-
lar dá uma falsa noção de poder. Tem gente que acha que pode
falar o que quiser, julgar, colocar uma pessoa na fogueira por-
que não concorda com a ideia dela. Não há mais diálogo.
Cada um só quer defender o seu ponto de vista e não escuta o
outro. Há muita intolerância na internet, que também é resul-
tado da postura que a pessoa adota para a sua vida. A internet
só potencializa quem a pessoa é e faz cair a máscara.
PLURAL — Está na moda falar de uma infância onde muito
se brincava e aprendia com brincadeiras de ruas, viagens de
trens... nos conte como foi a sua. Será que você tem alguma
travessura para nos contar?
Lorenna Mesquita — tive uma infância muito feliz. Eu fui uma
verdadeira moleca. Gostava de brincar de bola, de boneca, de
carrinho, esconde-esconde, andar de patins, pular elástico.
Sempre estava rodeada de amigos e gostava de ser a palhaça
da turma. Na escola brincava de chorar e de ter filho (fingia
as dores do parto no intervalo das aulas). Mas nunca fui de
muitas travessuras. Minhas brincadeiras sempre foram muito
saudáveis. Sempre fui muito responsável, talvez por conta da
minha rotina. Meu dia era preenchido com muita atividade.
Após o colégio, eu me dividia entre as aulas de inglês e de
piano (entrei para o conservatório de música aos 4 anos de
idade e só saí aos 15, já formada). E em casa estudava as
lições com a minha avó, que adorava fazer sabatina de mate-
mática e português. E pra mim, isso também era uma grande
brincadeira.
60
Entrevista | Lorenna Mesquita
61
Estou suspensa. O abstrato das nuvens e traços de
Badida, nenhuma tela, nem mesmo um caco vitral. O
rosto que era face evaporou em sons multicoloridos.
Sou uma pata loura brincante, um ganso querendo
afogar-se, cágado querendo tomate, liberdade com asas,
olhos do mistério e da simplicidade. Agora há uma
interrogação estilística rasgada na cara, no que era chita
e seda.
Fui dispensada de viver como os homens; agora os
observo de cima. A saudade por vezes invade. Vivências
e amores passados surgem com uma nostalgia absurda.
O que foi… O que não foi… O que será? A esperança
tem olhos puxados e olhar misterioso.
Enxertos de cobras em peles de gado, uma multi-
dão de livros em estantes ambulantes, tambores sinco-
pados, negrinhos cantando e dançando. Cavalos galo-
pando, cabras em jardins. Nuvens. Nuvens. Nuvens. Va-
lentia em chutes, tocos e panos esganados. Quanta gente
polida, sem vida. Coloco sal no angú, atiço pra ver no
que dá.
As pessoas são realmente estranhas. Uma pupila
dilatada na calada da noite é um lobisomem, um bicho
do mato, uma onça pintada. Calma minha senhora, as
pessoas são estranhas, é preciso aprender a amar o tem-
po. O vento forte bate na porta, os astros arrastam, es-
quenta o coração, palpita. Não há ilusão. Observo e
questiono anéis em cordões. Uma meota, um amor vão?
Como é ruim sair daqui, não quero outro mundo, quero
o profundo.
A COSMOLOUCURA
DA NATUREZA HUMANA
Ensaio | Beliza Parente
62
Bloomsbury
— Isso é um bar brasileiro?
— Sim. — respondeu também em inglês a mulher de
jaqueta de couro que fumava na penumbra, do lado de
fora do Guanabara.
Eu devo ter aquiescido com um leve aceno de ca-
beça, dado um meio sorriso e retomado minha caminha-
da de volta ao Astor, onde estava hospedado, quando ela
perguntou:
— Por quê?
— Sou do Brasil. — disse me reaproximando.
— Eu falo português. — ela completa migrando para o
idioma luso com destreza notável para uma inglesa. —
Amanhã vou dançar neste bar. Se quiser vir...
— Claro. Venho, sim.
Curiosa, a forma novidadeira como nos comportamos
em viagens. Eu desejaria sinceramente ser animado na
vida ordinária por uma fração mínima do interesse pelo
mundo que manifesto fora de meu país natal. Naquela
tarde, eu me empolgara com o sistema de aluguel de
bikes do Hyde Park e estendera a pedalada até os jar-
dins de Kensington, vizinhos ao bairro de mesmo nome.
O trânsito de bicicletas de Londres já seria razão sufici-
ente para me fascinar, mas, como se não bastasse, pas-
sei rapidamente a dominar as principais linhas dos len-
dários ônibus vermelhos de dois andares. Neles eu
perambulara de East London a Notting Hill. Aguardava
um desses, que seguisse no sentido centro, quando fui
abordado por uma garota cujo sotaque só não tornava
seu inglês mais macarrônico que o meu. Tratava-se de
Conto | Francisco Ohana Bloomsbury
63
uma francesa recém-chegada à Inglaterra, que pedia in-
formações sobre que condução pegar para ir à parte nor-
te da cidade. E foi isso — precisamente isso — que dei
a ela, informações sobre que condução pegar para ir à
parte norte da cidade, a despeito de sua mochila nas
costas e de seu estilo hipster, que a metros de distância
já haviam despertado meus sentidos. Nos despedimos e,
à medida que a via partir, eu insistia inutilmente em me
convencer de que preferia voltar ao hostel.
Saltei inconformado de ira e autopiedade em algum
ponto de Covent Garden, onde comi uma porcaria qual-
quer no McDonald’s ou Burger King. Rendido pelo
cansaço, eu andava a esmo de volta ao Astor e me dis-
traía com os detalhes pitorescos do trajeto quando me
encontrei nos arredores da Gordon Square. Era noite,
mas a pouca luminosidade não me impediu de enxergar
uma placa identificando a casa em que havia morado o
economista John Maynard Keynes. Reconheço que não
há nada de muito interessante até aí. Mais adiante, no
entanto, outra placa distinguia o número em que vivera
Virginia Woolf. Tomei um susto de quem pressente es-
tar em um lugar interessante e estranhamente familiar.
Eu girava sobre meus calcanhares, olhando para todos
os lados sob a impressão de ser aos poucos insuflado
pelas sugestões do carrossel sexual do Bloomsbury
Group. Se, por um lado, eu me via à sombra de decisões
cruciais no ambiente de incerteza e pressão de um uni-
verso com probabilidades subaditivas, que rodeavam,
por exemplo, a francesa de Kensington, por outro, eu
tinha ganas de gritar — de dar o delicado grito de liber-
dade de uma Mrs. Dalloway. Esses impulsos domina-
vam meus pensamentos quando vi o Guanabara, na Par-
ker Street, umas duas ruas abaixo do British Museum.
Estava disposto a fazer da noite seguinte a redenção de
alguém que não fora a Camdem e sequer havia se inte-
Conto | Francisco Ohana Bloomsbury
64
ressado por entrar num pub. Com os brios postos à pro-
va e mordido, eu iria atrás da mulher da noite anterior.
Ao som de hits amazônicos dos anos noventa, peguei
uma cerveja e sentei num canto para esperar a apresen-
tação de samba e dar uma prospectada no ambiente. Eu
observava de longe uma garota de meias de renda escu-
ras, vestido preto de mangas e cabelos loiros acima dos
ombros. O tédio já se apoderava de todas as minhas si-
napses quando começou o espetáculo circense de horro-
res. A inglesa da véspera, uma asiática e dois capoeiris-
tas começaram então a desenvolver uma série de coreo-
grafias esdrúxulas, que contribuíam inequivocamente
para a consolidação do estereótipo da República de Ba-
nanas. Após o fim do circo de pulgas, a inglesa sumiu
com seu penacho nos bastidores. Restava buscar a garo-
ta das meias escuras, de quem todos se aproximavam
depois do espetáculo de dança, quando a festa esquen-
tou.
Eu já tirava conclusões precipitadas sobre minha perso-
nalidade e meu reduzido prazer de viver quando começa
a tocar uma canção brasileira de qualidade duvidosa,
para dizer o mínimo. A fim de tirar algum proveito da-
quela merda, concluo que é minha deixa, minha grande
chance de triunfar. Convidei-a para dançar.
— Esse não é meu tipo de música. — ela disse.
— Nem o meu.
— Quer sair para um cigarro?
Eu fumaria todos os maços do mundo naquele momento
a fim de ver meu esforço finalmente recompensado.
Sentia os ventos a meu favor, mas tive certeza de que
Deus era brasileiro ao descobrir que Justine era france-
sa. Não por nada; é uma questão de charme. Descemos
Conto | Francisco Ohana Bloomsbury
65
ao mesmo lugar em que encontrara a passista de Sua
Majestade, onde os fumantes inveterados se entreti-
nham em nuvens de risadas. Conversamos longamente.
Ela elogiou meu francês, disse que eu usava constru-
ções gramaticalmente muito sofisticadas. Disse também
que, apesar de morar em Paris, adorava retornar ao sul
da França, onde nascera e praticava caça com seus ca-
chorros. Enquanto ela falava, eu imaginava aquele chu-
chu perseguindo perdizes na relva com catorze beagles
em coleiras e um faisão domesticado no braço esquer-
do. Ela ensaiou comigo o passo básico da valsa, e ainda
posso me lembrar da sensação de abraçar sua cintura,
colocando minha perna direita entre as dela. Trocamos
contatos e ficamos de nos encontrar no dia seguinte
para um café.
Tentei encontrá-la em Londres, sem sucesso. Mas sou
um jogador! Ainda teria quinze dias de viagem, além de
uma última passagem por Paris, antes de retornar ao
Brasil. Tentei encontrá-la, sem sucesso. Sei que pode
soar melancólico, mas, a cada cigarro que uma mulher
acendia em Saint Germain-des-Prés, eu pensava vê-la,
perdendo-me entre falsos sinais de fumaça.
— Um falafel de frango com verdura, por favor. — pedi
em bom francês numa rua do Marais, enquanto acendia
um cigarro imaginário na boca de Justine.
Conto | Francisco Ohana Bloomsbury
66
Não estamos preparados
para o nada que somos
Conto | De Marcus Di Bello
A sensação de enjoo continua. Tento vomitar na
privada. Não consigo. Volto pelo corredor
do AP mandando fumaça pra dentro e tentando lembrar
aquele solo do Barão Vermelho. Porque aqui é assim
que se vive. Você ainda não aprendeu? Tem que se ape-
gar em algo. Esta cidade está condenada. Esta cidade
enlouqueceu. Ela não sabe mais o que quer. Ora Sol for-
te queimando a cabeça, ora céu fechado escuro ranzin-
za. Desde a morte daquele candidato a presidência da
república que o céu não ficava desse jeito, tão fechado
escuro ranzinza. Semana difícil. Semana bem difícil.
Mas a vida seguiu, o sofrimento não acabou, continua-
mos no zero a zero e o juiz é um grande filho da puta.
Da janela do AP vejo o formigueiro de gente lá
embaixo. Desço as escadas do prédio, passo imperceptí-
vel pelo porteiro e sou levado pelo vento até a rua. Não
estamos preparados. Essa é a real. Jogaram algo tão
valioso em nossas mãos que não sabemos nem como
começar direito. Não estamos preparados para a vida.
Não estamos preparados para o nada que somos. Estou
numa esquina movimentada e ninguém se olha. Tenho
vontade de gritar no meio da calçada. Sei que alguém
Conto | De Marcus Di Bello
67
vai me olhar. Alguém precisa olhar. Não é possível que
todos estejam ligados no automático. Muitos olham
para o chão. Poucos olham na horizontal. Raros são os
que olham para o céu. Triste. Não estamos preparados.
"Acorda pra vida!"
O passante nem parou. Seguiu o seu caminho.
Olho para o céu. Crio uma zona de contemplação. Não
sei quanto tempo fico assim. Talvez bastante, talvez al-
guns segundos. Começo a pedir dinheiro na rua. Numa
cidade pequena seria um forasteiro. Nesta cidade sou a-
penas mais um cara pedindo dinheiro na rua. Consigo
uns trocados e peço uma garrafa de cerveja num conhe-
cido bar de esquina.
"Deseja mais alguma coisa?"
"Desejo. Aquela árvore ali."
"Não tenho como trazer."
"Então é isso por enquanto."
Por enquanto é isso. Tudo como tem que ser.
Estou bebendo e pensando na vida. Outros pilotam
aeronaves. Outros se masturbam. Outros gerenciam
empresas. Outros jogam conversa fora. Eu estou beben-
do e pensando na vida. O enjoo passou. Ainda bem.
Finjo um sorriso e olho para o céu. Está tudo bem. Ain-
da bem.
68
Porque era neste azul
que eu me queria todos os dias
Conto | Mariana Gouveia
Ela me deu de presente uma cor.
Azul, azulzinho! Não era esses tons que se mistu-
ram entre tantos e se transforma em azul bebê, azul co-
balto, azul celeste e por aí vai.
Não! Quando ela me deu o presente me disse:
— Tome a cor azul! É tua!
E desse então, eu passei a conviver com a cor. O
céu, quando eu jogava meus olhos para lá, estava ele em
sua cor mais linda que há e nos olhos do bebê da vizi-
nha e nas canções que eu ouvia. No amor que ela me
trazia todas as manhãs.
As cortinas que balançam com o vento — que era
azul, um dia eu vi — as florezinhas miúdas que nasciam
no meu quintal, tinham a cor que era minha e embora
elas abrissem só pela manhã, no resto da tarde, choves-
se ou fizesse sol, havia lá no miolo o resquício da cor.
Fazendo presença no meu lugar.
Mas, um dia, ela se foi. Não sei se com medo da
guerra que meu amor travava em nós, ou se pela insegu-
rança que a paz do meu abraço causava na alegria dela.
Ela se foi e com ela levou a cor, que eu guardava nas
coisas dela para manter sempre em segurança, com
medo de alguém roubar.
Conto | Mariana Gouveia
69
Se foi e deixou apenas o silêncio e o papel de pre-
sente amassado junto com as coisas que iriam pro lixo e
no lugar do azul, o gris invadiu meu quarto, o chão, o
céu e meu lugar. Não havia lugar que eu olhasse que o
cinza e seus variados tons fazia questão de se apresen-
tar.
Mas, onde ele mais se mostrava inquilino, desses
que não sai de jeito nenhum, era no interno de mim.
Dentro, onde antes o azul predominava, o cinza tornou-
se uma cor invasora e teimava em acinzentar tudo que
eu sentia. Foi aí que descobri que a saudade tem cor e
aos poucos vai desbotando seu coração e sufocando
toda palavra com o nome, o pensamento, o cheiro dela e
a falta.
De vez em quando, as ruas pareciam começar a
azular, nas esquinas, entre um riso iluminado quando eu
a via passar. Mas, era apenas um borrado que você erra
e esquece de apagar e que com o tempo, desbota.
Percebi que eu deveria cobrar meu presente, já que ela
havia me dado, e fui, com o papel do presente amassa-
do, ainda com o cheiro dela, reclamar do que seria meu
por direito. Mas, o que vi, foi alguém com a minha cor
no sorriso que trocava com ela, e vi que o azul continu-
ava tão bonito ali, entre a semelhança de tudo que vi
que minha alma se tingiu de outra cor. Hoje sou verme-
lha! E ruborizo tudo que toco, mas é naquele azul que
eu me queria todos os dias.
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Terminal Rodoviário,
a caminho de casa
Conto | Roseli Pedroso
— Maria, tô vexada! — disse a mulher na segunda fila do
ônibus, numa conversa afiada com a amiga, enquanto todos
os demais estavam entretidos com seus telefones celulares
—, cridita que peguei o cachorro filo dumégua na minha
cama com minha melhor amiga? Cão da peste! Affê! Qui tô
putcha da minha vida!
— Severina, mulé de Deus! Diga isso não! Tô passada
cuma notiça dessa! Quandio foi o sucedido?
— Sexta passada! Depois de trabalar um dia inteiro fazen-
do faxina em casa de bacana, chego em casa arriada de can-
saço e o que encontro? O sem vergonha, filo d’ um tinhoso
com a rapariga desdentada no maió desfruti em minha ca-
ma! Safados!!!!! Logo na minha cama novinha que nem
terminei de pagar ainda! Fiz o crediário em 24 meses! O
cochão é do bão cumadi! E o filo dum’égua me leva a outra
pro desfruti na minha cama novinha!
— Qui ce fez?
— Fiz o maió escandalo que toda a vizinhança saiu pra ver.
Vuô pena de galinha véia pra tudo que foi lado. Peguei as
coisa daquele safado e joguei na rua! Joguei tumén aquela
traidora. Aquela que não saia di casa, tomando meu cafezi-
nho, aquela faladora miserave, qui mi apunhalô nas costas.
Aquela que um dia dei guarida quando chego cuma mão na
frente e outra atrás, lá do norte faminta, esquelética, mofa-
da e suja! Disgrama de muíé, ajudei a consegui o primeiro
emprego, dei ropa minha, sapato meu, até calcinha empres-
tei mó de que a disinfeliz nem isso tinha. E agora abocanha
meu home? Tá certo que é um tranquera, mas era meu! Não
Conto | Roseli Pedroso
71
valia o que comia, mas era meu!
— E Severina, e agora? Tá suzinha, tá? O desgramento foi
de vez ou já vortô?
— Quero sabe mais desse traste não! Qui sô muié de uma
palavra só! Ele apareceu, joguei água nele, telefonô queren-
do voltá e desliguei na cara dele!
— Eita qui eu quiria se ansim! Mas me diga uma coisa: jo-
go fora aquele cochão? Sim porque eu num deitaria nele
mais é nunca!
— Tá maluca muié! Tô pagano ainda o crediaro e vô jogar
fora um cochão tão bão? O que fiz foi lava as ropa de cama
bem lavadim, despois quarei no sol, passei bem e tá novo!
A cama é boa, o cochão é bão e já tá prontinho para o
próximo e que o fioti seje mió!
— Tá me dizeno o quê? Ainda qué tê outro? Affê?!...
— Maria qui prigunta muié! Tô viva e tenho um fogo qui
valamedeus! Demorô! Qui venha o próximo e depressa,
viu? Oie, que chegou o nosso onbus.
72
O PODER DA PALAVRA
Ensaio | Loreena Mesquita
Acabo de ver o filme O Menino do Pijama Listra-
do, inspirado no Best-seller de John Boyne sobre um
garoto de oito anos que se torna amigo de um menino
judeu, da mesma idade, preso num campo de concentra-
ção nazista. As duas crianças conseguem conversar e
brincar através do arame farpado que as deveria separar
e nos mostram a pureza das relações humanas, mesmo
no meio da cegueira, da ganância, das mentiras, como
diz Florbela Espanca de “toda essa comédia humana
que me suja e a quem eu não perdôo sujar-me”.
Falar de nazismo não é um assunto que me agrade.
Além de todo sofrimento do povo judeu, questiono co-
mo as pessoas se deixaram manipular daquela maneira?
Como os nazistas conseguiram destilar e propagar tanto
ódio? Mas ainda bem que esse horror passou. Passou
mesmo? Infelizmente ainda há muita manipulação nas
igrejas, na política, nos grupos e redes sociais. As pes-
soas são muito manipuláveis. Pior, gostam de ser mani-
puladas. Querem que um líder as diga como agir e não
questionam. Desde criança escuto que o dom da palavra
é a arma mais poderosa que alguém pode possuir. E ela
pode ser usada para o bem ou para o mal.
Ensaio | Loreena Mesquita
73
Desde cedo também aprendi que o Ser Humano se
distingue dos outros animais justamente pela sua capa-
cidade de raciocínio. Quando pequenos, somos muito
questionadores, temos o olhar apurado e o coração aber-
to para aceitar o novo e o que é diferente de nós. Mas
quando adultos, alguns perdem a capacidade de questio-
nar e aceitam o que lhes apresentam como verdade. Pes-
soas “bem instruídas” clamam pela volta da ditadura.
Líderes religiosos propagam a homofobia. Político afir-
ma que as mulheres têm sim que receber menor salário
que os homens, porque elas engravidam.
O machismo não é exclusivo da sociedade brasi-
leira ou de países do terceiro mundo. Ele também está
presente nos países “desenvolvidos”, na maior potência
econômica mundial. A vencedora do Oscar de melhor
atriz coadjuvante, Patricia Arquette, em seu discurso
pediu pela igualdade salarial entre homens e mulheres
nos Estados Unidos. Sabia que seria ouvida por milhões
de pessoas e aproveitou a oportunidade de chamar aten-
ção para o assunto.
A questão salarial é um dos menores problemas.
Também por causa do machismo impregnado, mulheres
são violentadas sexualmente e moralmente dentro e fora
de casa, inclusive nas universidades. Por causa da into-
lerância, homossexuais apanham nas ruas e precisam
lutar a cada dia por direitos civis básicos. Por causa do
racismo velado, negros sofrem preconceitos por onde
andam, até em salas de aula, desde criança. Há quem
ache isso tudo normal e ainda aceite ter sua opinião gui-
ada e inflamada por “falsos profetas”. A palavra é a
arma usada para deixá-la na ignorância.
Mas também é a palavra a melhor arma para fazê-la
acordar. E foi com o poder da palavra que a modelo Waris
Dirie ganhou as páginas de jornais internacionais ao denun-
ciar a mutilação genital feminina e após relatar ter sido víti-
ma dessa prática abominável que ainda é comum em 28
países da África e em mais outras dezenas de países de fora
do continente que receberam imigrantes. Mais de 150
milhões de mulheres já tiveram o clitóris extirpado (com
caco de vidro e lâminas caseiras, sem anestesia), porque a
cultura e a religião local pregam que mulher não deve sen-
tir prazer.
Outras palavras que ganharam o mundo foram as da
menina paquistanesa Malala que recebeu o Prêmio Nobel
da Paz. Ela lutou pelo direito à educação feminina e, por
isso, foi baleada na cabeça num atentado praticado pelo
Talibã, quando saía da escola. Felizmente sobreviveu. O
mais irônico nos relatos da sua autobiografia, é que o ma-
chismo, a corrupção e a manipulação presentes na socieda-
de paquistanesa não são muito diferentes do que vivemos
no mundo ocidental. Em algumas passagens da leitura,
parece uma narração feita por uma criança brasileira, tama-
nha similaridade.
Ainda bem que existem mais pessoas questionadoras
como Arquette, Waris e Malala. O questionamento leva à
ação e à mudança. Para mudar é preciso estar vazio, livre
de qualquer amarra ou pensamento pré-concebido. Olhar o
outro com os olhos daquelas duas crianças do filme que,
mesmo com a adversidade do arame farpado, conseguiram
construir uma relação baseada no respeito. E respeito é
sinônimo de liberdade.
74
Ensaio | Loreena Mesquita
Ensaio | Loreena Mesquita
75
SOMBRA DE MIM
Ensaio | Hugo Ribas
Não sou metido a escritor, talvez minha arte
seja ou outra... Mas deposito em você, caro papel,
parte de mim. A mais escura, talvez. E escolho essa
parte porque dela nasce o que há de mais autêntico
dentro desse coração cujo solo árido já não pode mais
de puras águas beber. Sei que dessas linhas nada de
muito agradável pode surgir... Aliás, não sou o tipo
agradável, e gosto de ser assim. Admiro a antipatia e me
esforço em desagradar. A amargura faz parte da minha
essência, por isso tenho preferência por cortinas fecha-
das, decoração sóbria em demasia e da quietude. Faço o
que muitos não tem coragem. Ultrapasso a fronteiro do
bom senso, sem medo. Vou me despindo, aos poucos,
de toda luz e de toda cor. Sobra apenas isso. Minhas
mágoas e infelicidades. Rancores encarcerados. Raivas
disfarçadas.
76
O breu de uma alma puramente lúgubre. Sinto
orgulho do que tantos outros sentiriam vergonha.E faço
de lodo, argila. Arranco do solo seco, poeiras em venta-
nia, feito melodia.
Da sombra se faz sol.
Chego até a me enganar…
Utopias de artista que de arte nada tem.
Não, não posso me envergonhar.
Queixo erguido, estou a me olhar. Espelho de
mim. Sombra de mim. Fonte inesgotável de inspiração,
e agora compreendo o porque de tantos caminhos,
bifurcações e indecisões. Encontro no amargor
da irrealização sombria, uma razão. Uma razão apenas.
Escrevo.
E descrevo em ti, amigo papel, o que há de mais
puro em mim: os porões da minha alma.
Chego ao fim e vejo que isso é bom. Cada frase,
cada palavra, cada sílaba. Carregadas e verdade. Isso é
bom. É bom e belo. Ainda que sombrio,efeito luz.Uma
luz negra, a resplandecer e trazer a tona um motivo
para ser feliz, ainda que padeça na penumbra da infeli-
cidade.
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Volume 05 — Ano 03
Revista Plural — São Paulo, 2015
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Junho | 2015
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