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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
RODRIGO THOMAZ
A densidade da palavra: um encontro entre linguagem teológica e poesia
SÃO PAULO 2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
RODRIGO THOMAZ
A densidade da palavra: um encontro entre linguagem teológica e poesia
Dissertação apresentada junto à Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, para obtenção do
título de Mestre em Teologia Sistemática, sob a
orientação do Prof. Dr. Pe. Antônio Manzatto.
SÃO PAULO 2015
Às minhas sobrinhas, Beatriz e Gabriela.
AGRADECIMENTOS
A Deus, autor da poesia mais bela e fonte de toda teologia.
À minha família, onde experimento a ternura e o amor de Deus, no amparo das palavras
gestuais. Meus pais, Pedro e Maria Rosária, minha irmã Luana e seu esposo Giovanni e
minhas sobrinhas Beatriz e Gabriela, com seu carinho e alegria que me fazem ver a beleza da
vida a cada sorriso.
A Dom Odilo Pedro Cardeal Scherer, Arcebispo Metropolitano de São Paulo, por me permitir
desenvolver este estudo.
À Arquidiocese de São Paulo, e de maneira particular à Região Episcopal Belém, Dom Edmar
Perón e ao presbitério desta região, onde posso partilhar minha vida com tão preciosos irmãos
e amigos.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Pe. Antônio Manzatto, pela sua preciosa colaboração na
elaboração deste estudo, colocando-se sempre a disposição e com serenidade me orientando.
Agradeço por ter me apresentado a relação entre teologia e literatura, abrindo assim uma nova
possibilidade de pensar a fé na sua relação com história humana. Meu respeito e admiração.
Meus sinceros agradecimentos aos professores da PUC-SP, que com grande empenho
colaboraram na minha formação teológica.
Agradeço aos funcionários e colaboradores da PUC-SP, em especial às funcionárias da
biblioteca, que com presteza sempre estiveram à disposição.
Agradeço aos meus irmãos e irmãs da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, onde tenho o
privilégio de ser um servidor, vivendo o ministério presbiteral, na alegria de partilhar a
Palavra da Vida e repartir o Pão. Obrigado por testemunharem a cada dia o amor de Deus, em
gestos tão simples, mas tão densos.
Aos meus queridos amigos Gisele Helena da Paixão e Francis Wilian Santos que com
generosidade e paciência colaboraram na revisão deste trabalho.
SUMÁRIO
Introdução 6
CAPÍTULO I: ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA LINGUAGEM TEOLÓGICA 10
1. A linguagem como constitutivo humano 10
1.1. Funções da linguagem 13
1.2. O universo simbólico humano 14
2. A linguagem teológica 17
2.1. Deus se Revela ofertando-se 18
2.1.2. História como mediação hermenêutica da Revelação 20
2.1.3. A encarnação do Verbo divino como evento da Palavra 21
2.2. Elementos da linguagem teológica 23
2.2.1. Analogia, a linguagem própria para falar de Deus 25
2.2.1.1. Tomas de Aquino sobre a analogia 26
2.2.1.2. As três vias da analogia: afirmação, negação e eminência 28
2.3. A linguagem teológica não esgota o mistério de Deus 30
2.3.1. A inabarcabilidade do mistério 31
2.4. Performatividade da linguagem teológica 33
3. Imaginação e metáfora 35
CAPÍTULO II: A PALAVRA POÉTICA NO PENSAMENTO DE KARL RAHNER 41
1. A poesia e o cristianismo 41
2. O homem como ser de horizonte infinito 42
2.1. A graça antecipa a palavra 44
2.2. A poesia prepara o coração para a escuta da palavra da fé 47
2.2.1. Capacidade para ouvir as palavras do mistério. 47
2.2.2. Capacidade para ouvir as palavras que tocam o coração 48
2.2.3. Capacidade para ouvir as palavras que unem 48
2.2.4. O mistério inefável presente em cada palavra 49
3. O homem como ser referido ao Mistério Absoluto 49
3.1. A Palavra humana e o Verbo Divino 51
4. O sacerdote e o poeta: ministros da palavra 51
5. A densidade da palavra poética 55
5.1. Palavras primordiais 56
6. A missão do autor como atividade de relevância cristã e a existência humana 57
CAPÍTULO III: O DIÁLOGO ENTRE TEOLOGIA E LITERATURA 60
1. Um caminho a percorrer 60
2. A relevância da teologia 61
2.1. Fontes da teologia 62
2.2. Revelação e história 65
3. A relevância da literatura 66
3.1. A poesia como forma de pertencer ao mundo 68
3.2. Prosa e poesia 72
3.3. O ritmo no poema 73
3.4. O autor 73
3.5. O texto como realidade aberta 74
4. A relação entre teologia e literatura 76
4.1. Métodos de aproximação entre teologia e literatura 79
4.1.2. Leitura teológica dos textos literários 79
4.1.3. Método de correspondência 80
4.1.4. Teopoética 81
4.1.5. Dimensão antropológica da aproximação entre teologia e literatura 83
5. Adélia Prado e a poética do cotidiano 84
5.1. Vocação poética 84
5.2. Mística e poesia 86
5.3. O mundo sacramental adeliano 87
5.4. O cotitiano, lugar da poesia. 89
Conclusão 93
Bibliografia 97
6
INTRODUÇÃO
O homem é efetivamente um ser capaz de comunicação e de diversas formas e sinais
estabelece comunicação, no entanto, ela se dá de maneira singular através da linguagem,
como característica fundamentalmente humana e que o distingue dos outros animais. Através
da linguagem, que se dá dentro de um processo dinâmico, não como coisa pronta, mas num
“esforço da mente humana no sentido de usar sons para expressar pensamentos”1, é que o
homem se estabelece como ser no mundo, não apenas capaz de descrever coisas ou nomear
objetos, mas o lança para a abertura e revelação do ser, como numa epifania2, capaz de dizer
de si mesmo e de se comunicar. Esta é uma “faculdade que faz do homem um homem. Esta
característica é o perfil próprio do seu ser. O homem não seria homem se não lhe fosse
concedida a capacidade de falar3”.
Na esteira desta definição do ser humano como capaz de comunicação, em especial
pela linguagem, também se sublinha o homem como ser capaz de transcendência. Sua
percepção de si e do mundo não se encerram numa definição rasa e precisa, nem tampouco o
aprisiona num mundo que lhe é familiar e confortável, mas o lança para uma dimensão de
transcendência, onde a cada olhar questionador sobre sua realidade ele é impulsionado sempre
para mais longe, abrindo caminho para uma compreensão de sua dimensão existencial como
ser de horizonte infinito4.
A abertura do homem à transcendência, não o coloca apenas diante de si mesmo e do
mundo que o cerca, mas faz com que ele experimente a si mesmo como mistério, mas também
o impulsiona para a confrontação com Aquele mistério absoluto e original que é Deus, como
experiência fundamental que compõe seu existencial permanente5.
Em se tratando de mistério que toca a realidade humana em sua relação com Deus, a
teologia tem grande relevância, já que se volta para a contemplação da ação divina na história
humana, onde se entrelaçam imanência e transcendência, fundamentalmente expressos no
1 CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 200. 2 Cf. MONDIN, Battista. O homem, quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. São Paulo: Paulus, 1980. p. 140. 3 HEIDEGGER, M. In Cammino verso illinguaggio, Mursia, Milão, 197. p. 27, apud Mondin, Battista. O homem, quem é ele? p. 140. 4 Cf. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulus, 1989. p. 46. 5 Cf. Ibidem. p. 69.
7
Verbo Divino como o “auto-expressar-se imanente de Deus, na sua eterna plenitude”6. Neste
sentido, a história humana é permeada do expressar-se-para-fora de Deus como ação
salvadora, a qual introduz o homem no seu mistério incompreensível7.
A teologia como ciência que penetra no mistério divino, tem no terreno da vida
humana seu campo de atuação, perscrutando a história para escutar as ressonâncias da Palavra
de Deus e encontrar os elementos que compõe sistematicamente seu pensamento. Neste
intento, a teologia sabe do seu limite ao procurar conceitos e expressões capazes de evocar os
mistérios divinos e adequar a palavra ao objeto, já que este (Deus) é mistério inefável, do qual
só podemos saber por Revelação, pois ele mesmo se expressa a si como num movimento de
saída, deixando-Se encontrar, no entanto, sem ser abarcado em sua totalidade.
Como ciência a serviço da fé, a teologia precisa ser inteligível e se expressar de
maneira a comunicar efetivamente seus conteúdos, de forma a atualizá-los nos diversos
tempos, lugares e culturas, para que a Revelação esteja sempre dinamizada com a realidade
humana e seja compreensível, promovendo sempre um encontro de amor entre Deus e o seu
povo. Com isso, é fundamental que tenha uma atenção especial neste intento, o cuidado com a
linguagem, como forma de acesso aos conteúdos da fé. É neste sentido que procuramos
indicar a relevância do diálogo da teologia com as diversas ciências, e também com outras
formas de expressão, como sublinhado neste estudo a relação entre teologia e literatura.
A literatura, como linguagem densa de simbologias que coloca o homem em cena,
primeiramente deve ser considerada em sua particularidade como expressão artística, com
valor em si mesma. No entanto, é também um importante instrumento para a compreensão do
universo humano, pois, tem seus alicerces na antropologia, onde o homem é compreendido
em suas diversas formas de ser, como construtor de sua história, num universo onde realidade
e imaginação não são antagônicas, mas se somam numa existência aberta, capaz de alcançar
impossíveis, criar personagens e narrar fatos não acontecidos.
Neste estudo que procura relacionar literatura e teologia, tem destaque a linguagem
poética como forma privilegiada de expressão, onde a linguagem “celebra a si mesma”8e é a
“forma mais adequada para falar do mistério e da experiência religiosa, exatamente por seu
uso de metáforas9”. Também a linguagem poética é um forma de apreensão da realidade e
6 Idem. Teologia e Antropologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1969. 7 Cf. Ibidem. p. 78. 8 RICOEUR, Paul. Entre filosofia e teologia II: Nomear Deus. In Nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Loyola, 1996. 9 MANZATTO, Antônio. Teologia e literatura. Reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994. p. 78.
8
como afirma Ricoeur, constitui modalidades de enraizamento e pertencimento10 ao mundo,
numa relação que “não se esgotam em descrições de objetos”11. Neste sentido, também a
teologia não pretende apenas descrever e elucidar ideias sobre Deus, mas sobretudo ser
palavra capaz de gerar performatividade da fé, numa dinâmica onde a Palavra de Deus não
seja compreendida apenas como Palavra que Deus falou, mas sobretudo Palavra de Deus
falante e atuante na construção da história humana como história da salvação.
Assim, este estudo tem como objetivo contemplar na relação da palavra teológica e
poética a capacidade de expressão do divino, que no seu Verbo encarnado manifestou-se
performaticamente, atuando na história humana, e dela se utilizando para expressar-se, pois
quando dizemos que Deus fala aos homens e que tem uma “Palavra” e que se revelou, não
estamos exatamente pensando em palavras a partir de uma composição gramatical, mas,
sobretudo que se utilizou das categorias humanas, símbolos, imagens, suas diversas culturas,
etc.
Este trabalho é composto de três capítulos, que tem como eixo a linguagem como
expressão do mistério inefável de Deus. O ponto de partida é a reflexão sobre a linguagem
teológica, perpassando por alguns elementos que a constitui, alicerçado no fato de que só se
pode dizer algo sobre Deus porque primeiramente ele se revelou. Desta maneira, a teologia e
sua expressividade, estão a serviço da palavra de Deus, no intento de elucidar seu conteúdo,
sem a pretensão de esgotá-lo.
No segundo capítulo, abordaremos a teologia de Karl Rahner, e mais especificamente
sua reflexão sobre a palavra poética, como instrumento que caracteriza a relação teologia-
poesia, sendo esta última capaz de lançar-se ao mais profundo da existência humana, onde se
encontra Deus, e “dar corpo” ao mistério infinito por meio de suas expressões metafóricas.
Rahner apresenta a palavra poética como palavra densa, que carrega em si não apenas uma
informação, mas, sobretudo, expressa aquilo que a palavra comum é incapaz, o mistério
absoluto, do qual o homem está impregnado.
Por fim, no terceiro capítulo, procuraremos apresentar alguns elementos que compõe
a poesia e apontar alguns caminhos e possibilidades onde se verificam o encontro entre poesia
e teologia como linguagem do mistério.
A relação entre teologia e literatura, embora sistematicamente não tenha sido
estabelecida desde os inícios do pensamento teológico, enquanto elemento constitutivo de
aproximação dá fé no chão da vida humana, pertence à gênese da fé, já que essa enquanto 10 RICOEUR, P. Entre filosofia e teologia. p. 187. 11Ibidem.
9
dom é oferta de Deus à humanidade inserida na história, e construtora de sentido. Nesta
mesma história o Verbo de Deus é pronunciado e com ela se relaciona, revestindo-a de
sacralidade.
Neste sentido, procuraremos neste trabalho uma aproximação da linguagem teológica
com a linguagem da poesia, na busca por um pensamento teológico poético capaz de exprimir
o inexprimível, apoiado na densidade da palavra poética, como um balbuciar daquela
realidade da qual o homem está impregnado.
10
CAPÍTULO I
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA LINGUAGEM TEOLÓGICA
Um dos problemas mais penetrantes da teologia contemporânea é a da linguagem. O
que significa a linguagem teológica? Qual sua referência? Qual sua lógica? Pode tal
linguagem comunicar algo as pessoas de nosso tempo?12
1.A linguagem como constitutivo humano.
Comumente, numa tentativa de definir o homem, logo se afirma que ele é um ser
racional, distinguido dos outros seres viventes e predicando sua capacidade de consciência de
si e do mundo, como fatores determinantes de humanidade. No entanto, uma característica
importante que identifica o homem na categoria de ser racional é sua capacidade de se
comunicar pela linguagem, que não se encerra na expressão verbal, podendo ser manifesta de
muitas formas, como por exemplo, pelos gestos corporais, roupas, objetos, adornos, etc.
Contudo, deve-se destacar a forma de comunicação pela palavra, como capacidade que
“confere consistência ao ser humano. consolida lhe a identidade, configura lhe a
personalidade. O homem encarna-se na expressão”13.
Um dos primeiros questionamentos acerca da capacidade humana de produzir palavras
para a comunicação é sobre a sua gênesis. A pergunta sobre quem vem primeiro, o
pensamento ou a palavra, é importante, pois coloca o falante diante do processo de criação das
expressões que procuram descrever e explicar as realidades. Dizer da possibilidade da pré-
existência da palavra, seria o mesmo que coloca-la num processo vazio e de fechamento, pois
ao não se relacionar com o processo de conhecimento, seria simplesmente uma expressão
denominativa que se adequaria ao conhecido. O contrário também seria inadequado, já que
não se pode conceber um pensamento mudo, sem palavras. Portanto, podemos dizer que ao se
tratar do início da palavra, “o que conhece gera a palavra como fruto e testemunho do seu
conhecimento”14.
12MACQUARRIE, John. God-Talk.El AnalisisdelLenguage y la logica de la teologia. Salamanca: EdicionesSígueme, 1974. p. 9. 13 ARDUINI, Juvenal. Destinação antropológica. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. p. 17 14 ULRICH, Ferdinand. O homem e a palavra. MisteriumSalutis. Compêndio de Dogmática histórico-salvífico. A história salvífica antes de Cristo. n.3,v.2. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972.
11
Esta forma de conhecimento, pautada por certa simbiose entre palavra e pensamento,
confere ao homem a possibilidade de abertura para o mundo, haja vista que, mais do que
multiplicar os conceitos a cerca desta ou daquela realidade, a busca do homem é sempre pela
plenitude15, ultrapassar a si mesmo, ir além do conceito fechado sobre a realidade circundante
e somente o processo criativo do conhecimento, onde palavra e pensamento caminham numa
constante atualização da forma de conceber o real, alinhando o homem à sua destinação para
o encontro com o mundo.
Na sua obra “Destinação antropológica”, Juvenal Arduini afirma que a linguagem é o
fator revelador do homem e que em sua capacidade linguística “o ser humano está sendo pro-
nunciado, desdobrado em forma de anúncio, transformado em mensagem. Está sendo pro-
posto, posto à frente de si mesmo”16.Esta capacidade retira o homem da indigência de si e o
coloca diante da possibilidade de encarar a si mesmo e descrever a si e o universo em que está
inserido.
Arduini, ao se referir à linguagem como elemento que constitui o ser humano, afirma
que esta potência lingüística não é apenas capacidade de se expressar ou descrever
fenômenos, mas também e sobretudo é uma forma de ser. Daí que ele afirma que a linguagem
é fator “antropogenético” pois está naquilo que há de mais essencial da existência humana.
Afirma:
O dizer profundo ontologiza o homem. Mais do que sinal, a palavra é síntese da
existência humana. Com o homem chega a linguagem. Mas também com a
linguagem chega o homem. Percorrer a linguagem de um povo é percorrer-lhe a
história genética. A história não é apenas documentário cultural. É, sobretudo, tecido
antropogenético.17
Ao tratar da auto-referência ao qual o ser humano está inserido, o filósofo Gerhard
Arlt aponta para perspectiva de avanço no caminho da pergunta sobre o ser humano, pois
“toda auto interpretação (grifo do autor), reage sobre o pensar e o fazer”18, iniciando um
caminho importante de mudança, que tem como lugar fundamental, o distanciamento de 15 “No ato do conhecimento, o homem não busca um aumento quantitativo de conceitos, um saber comensurável (qual soma de conhecimentos), mas busca a plenitude viva, que pelo conhecimento ultrapassa a si própria, de sua existência, busca o conhecimento de sua liberdade. Mediante a palavra gerada pelo pensamento, o homem penetra no âmago do ser-ele-mesmo que lhe foi confiado, fiel na aceitação de si mesmo, sem que possa (ao crescer na imanência consciente) esquecer a origem e o instrumento desta comunicação”.Cf. Ibidem. p. 92. 16ARDUINI,Juvenal. Destinação antropológica.p.16. 17 Ibidem. p. 18. 18 ARLT, Gerhard. Antropologia Filosófica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. p. 9.
12
si.Afirma que “o ser humano não é dado como coisa, senão que é posto sob sua própria
responsabilidade a partir do momento em que adentra o mundo dos símbolos e sinais
linguísticos”19.
Neste sentido, a linguagem é um instrumento humano capaz de interpretar a realidade,
dando significado às coisas, descrever processos, resolver problemas, etc. O humano “é capaz
de se libertar das fronteiras físicas para ingressar no universo simbólico-expressivo traduzido
em formas de linguagem”20.
Battista Mondin ressalta a importância da linguagem, apontando para sua capacidade,
mesmo que apenas no nível linguístico, de resolução de problemas referentes à realidade e
questões filosóficas:
Não só a palavra nos permite falar de tudo, mas também achar a explicação de tudo:
dos problemas do subconsciente, aos da estrutura da sociedade, dos problemas do
conhecimento do ser, dos problemas da arte aos da cultura, da política, da história,
da religião, etc21.
Na esteira da reflexão sobre a importância da linguagem, Mondin procura definir o seu
significado, como um sistema de signos que se destinam à comunicação. No tocante aos
signos, ele os distingue em três grupos fundamentais: os signos naturais e artificiais, os não
linguísticos e os irônicos e convencionais.
Os signos naturais podem são aqueles que nos fazem supor o que indicam, como por
exemplo, a fumaça como signo indicativo do fogo. Já os signos artificiais são aqueles
construídos dentro de uma cultura. Uma pomba branca nos remete à paz.
Os signos não linguísticos são aqueles expressados por sinais, bem como os de
trânsito, por exemplo. Diferentemente dos signoslinguísticos, eles não se utilizam da palavra
escrita nem da falada, para se expressar.
Por fim, Mondin faz a distinção entre signos irônicos, que são aqueles “semelhantes
àquilo que denotam (por exemplo, os quadros, o som onomatopaico, a escrita hieroglífica,
etc.)”22, e os símbolos convencionais, que tem as palavras como sua maior expressão.
19 Ibidem. 20 Ibidem. 21 MONDIN, Battista. O homem, quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. p. 138. 22 Ibidem, p. 141.
13
1.1. Funções da linguagem.
Ao tratar da linguagem como constitutivo humano, não basta dizer que o homem fala,
como fazendo parte de sua natureza, sem que se aponte a função desta mesma linguagem. No
processo dialógico, três elementos são fundamentais, e sem eles não há possibilidade de
linguagem: o sujeito que fala, o objeto de quem se fala e o interlocutor a quem se fala.
Conforme apresenta Mondin, esses três elementos que constituem a linguagem dependem das
suas funções, que também são três: representativa ou descritiva, expressiva, existencial ou
emotiva e comunicativa ou intersubjetiva. A essas três funções é acrescentada uma quarta, a
ontológica, por influência especial do filosofo e autor de Ser e Tempo, Martin Heidegger.
Defendida como absoluta pela corrente filosófica neopositivista, somente a linguagem
descritiva é dotada de sentido, pois assume a função de descrever a realidade tal como ela é,
negando assim a possibilidade da metafísica como forma hermenêutica do mundo, já que a
esta não se pode aplicar o critério empirista, onde só é possível conhecer a partir da
experiência sensível. Também a verdade só pode ser expressa a partir de uma linguagem
descritiva, já que, como nos esclarece o critério da ciência, uma proposição só é verdadeira se
corresponde objetivamente e de forma clara e precisa ao objeto. Contudo, para ser
reconhecida como verdadeira,
[...] qualquer outra linguagem adquire valor maior ou menor na medida em que se
conforma com a linguagem científica. A razão da excelência desta última está na
simplicidade de seu critério de significação, que é a verificação experimental23.
Esta teoria foi refutada por muitos pensadores, já que limitar a linguagem apenas a
uma forma, significa desprezar outras importantes possibilidades, tais como a linguagem
comum, a poesia, a linguagem artística, a ética, etc. Neste sentido, cabe-nos contemplar as
outras funções da linguagem que, como vimos, não é apenas a de descrever objetos, numa
rigorosa adequação científica.
Ao se tratar de linguagem, certamente a sua função que mais nos é comum é a da
comunicação, Pois é através da linguagem que nos comunicamos, expressamos desejos,
sentimentos, comandos. É preciso também ressaltar que, se tratando de comunicação, não
apenas devemos nos ater a forma da linguagem falada, já que existem outros meios de se
23 Idem, A linguagem teológica. Como falar de Deus hoje? São Paulo: Edições Paulinas, 1979. p. 41.
14
comunicar, através de sinais sonoros, gestos, indumentárias e objetos. No entanto, não se pode
deixar de destacar a forma de comunicação pela palavra, que inclusive tem a capacidade de
substituir as outras formas acima citadas24.
A comunicabilidade que nos vem pela palavra supera a forma descritiva, porque não
apenas faz referência a um objeto estático, mas estabelece relação entre “eus”, que através do
signo da palavra como mediadora, “transforma a nossa presença puramente física e passiva –
simples justaposição no espaço – em presença ativa que nos empenha reciprocamente”25.
Comunicar é também revelar, é se dar ao outro e deixar que o outro também se
ofereça, é tornar-se presente. Gadamer em Verdade e Método afirma que a linguagem que
discorre do processo comunicativo carrega sua própria verdade,“desvela e deixa aparecer
algo”26que neste intercâmbio se torna presente.
1.2. O universo simbólico humano.
Acima acentuamos o homem como um ser que se envolve com a realidade circundante
através da expressão, sobretudo pela linguagem, como elemento que sobressai às
características humanas. No entanto, a linguagem é um dos elementos que compõe o universo
simbólico humano, capaz de romper as fronteiras de um determinismo biológico e alargar a
compreensão a cerca do homem, aumentando não apenas quantitativamente os elementos que
compõe sua existência, mas sobretudo, qualitativamente, pois na dimensão simbólica, “o
homem descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente”27,
ampliando sua forma de vivência, que o realoca em uma “nova dimensão da realidade”28.
A partir desse argumento, a cerca da capacidade humana em alargar sua forma de
relacionamento com o mundo físico, abre-se diante dele uma gama de possibilidades que vão
além do confronto imediato com a realidade com a qual ele se depara, encerrando sua
experiência nos fatos nus e crus. Cassirer afirma que:
24 ZURKER, Hans. Formas de linguagem da fé. In: Dicionário de conceitos fundamentais em Teologia. São Paulo: Paulinas, 1993. p. 321. 25 MONDIN, Battista. O homem, que é ele? Elementos de antropologia filosófica. p. 148. 26 GADAMER, Hans George. Verdad y metodo. Fundamentos de una hermenéutica. 3.ed. Salamanca: EdicionesSígueme, 1988. p. 461. 27 CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. p. 47. 28 Ibidem. p. 48.
15
Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um universo
simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse universo. São os
variados fios que tecem a rede simbólica, o emaranhado da experiência humana.29
No campo dos sinais e símbolos como constitutivos essencialmente humanos, sabemos
que os símbolos, diferentemente dos sinais, quetambém são produzidos pelos animais, são
elementos estritamente humanos, pois a eles são atribuídos significados, que tem a força de
retirar o homem do “bruto” da existência e elevá-lo ao universo simbólico da cultura.
O símbolo também é como que um elo que conecta o ser humano com o que está ao
seu redor, já que este vive num constante sentimento de desajuste e de necessidade de
encontrar um lar, um lugar onde se fixar, dado sua liberdade e autonomia como constitutivo
de sua forma de ser que, diferentemente dos animais, determinados pelos instintos, vive numa
“compulsão simbólica” 30, como possibilidade de ancorar no seu próprio lar. O símbolo tem a
potência de juntar partes desunidas e dispersas,
[...] reúne, ordena, integra e orienta comportamentos coletivos desde a pré-história
até a nossa pós-história; o símbolo como ato poiético é o mediador que introduz luz
nas trevas, lei no informe e sentido no sem-sentido.31
No tocante a fé, os símbolos tem enorme importância, sobretudo, porque não se pode
pensar numa fé desencarnada da realidade na qual o homem está inserido. Aliás, visitando às
Sagradas Escrituras, podemos claramente perceber que a Revelação de Deus dirige-se a
pessoas concretas, inseridas em determinada realidade sócio-econômico-cultural e, utilizando
dos elementos conhecidos destes, inclusive de sua forma de linguagem. “A revelação e a fé se
dão necessariamente encarnadas na expressividade humana. A revelação divina emprega
como mediação a linguagem humana”32.
O mundo criado é o mediador para a Revelação divina, é onde se encontram os
elementos que constituem os símbolos, que possibilitam a comunicação. O ato dacriação de
29 Ibidem. 30 Expressão utilizada por Mardones. O autor defende a tese de que o homem é um ser marcado pelo descomedimento, pois não possui o instinto como determinação e quietação. O homem se torna compulsivo pelo simbólico, pois está numa constante busca pelo seu lar, lugar de fixação, e como não o encontra, ele cria um universo simbólico que o dota de sentido e o faz aquietar-se na sua existência. Cf. MARDONES, José Maria. A vida do símbolo: a dimensão simbólica da religião. São Paulo: Paulinas, 2006. 31 Ibidem. p. 72. 32 RUBIO, Alfonso García. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da revelação cristãs. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 484.
16
Deus já é linguagem e, em sua “transcendência, cria e fala”33. Assim considerado, sem a
mediação simbólica das coisas criadas, não seria possível o estabelecimento da comunicação
entre Deus e o homem, sobretudo porque, na fé cristã é afirmada:
[...] a dualidade de dimensões básicas do ser humano na unidade do único ser
pessoal. O espiritual e o corpóreo não são partes em oposição mútua no ser humano,
mas dimensões que atingem todo o seu ser e seu agir, o homem integralmente
considerado34.
Não havendo oposição entre espiritual e corporal, e afirmando sua indivisível unidade,
consideramos o grande valor dos símbolos para a expressão da fé, e no tocante a Revelação
divina, acentuamos sua capacidade de expressar realidades profundas do humano, sendo este,
um terreno de valoroso potencial. Adolphe Gesché aborda a questão deste potencial humano,
criado criador, não criado apenas para “realizar um ditado”35, mas potencialmentecriativo,
pois o contrário, ele seria apenas uma coisa.
Deus confiou o ser humano a si mesmo e, embora não seja ele causa de si, ele não é
como as plantas e os animais, cuja gênesis e destino já são potencialmente dados e toda
existência não é mais senão para realizar aquilo que se é, sem que haja reflexão ou
intervenção de um logos capaz de transformar e modificar o curso do que é dado. Há uma
liberdade inventiva no homem, que “não tira nada da criação divina, como em Prometeu. Ao
contrário, fazendo-se inventivo, ele dá continuidade à sua intensão” 36.
Não se pode reduzir o ser humano a um fluxo natural de vida, instintivo, atemático,
mas é fundamental encontrá-lo em constante processo de confecção da sua própria história, o
que se percebe de maneira evidente na sua dimensão simbólica, pois aí é que encontramos
expressos seus sentimentos, desejos, emoções e também elucubrações acerca do sentido da
vida e da história, bem como expressões que tentam alcançar o Absoluto, o Criador. Afirma
Gesché:
A criação do homem é o estabelecimento, sem resquícios e sem retorno, de um ser
que, segundo a própria vontade de Deus, é chamado – é o seu ato de nascimento
para o ser – a se construir no direito e no dever de invenção e de responsabilidade.
Trata-se de um dever de essência e de um dever de existência. Como o homem, a
33 FISICHELLA, Rino. Lenguaje. In Diccionário de Teologia fundamental. 3.ed. Madrid: San Pablo, 1990. p. 821 34 RUBIO, Alfonso Garcia. Unidade na pluralidade. p. 485. 35 GESCHÉ, Adolphe. O ser humano. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 73. 36 Ibidem, p. 75.
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esse respeito, a criação espera seu verdadeiro sentido. Criar é suscitar algo de
inteiramente outro, totalmente novo, e que só terá significado, para o seu próprio
criador, nessa autonomia dada e reconhecida. 37
Não se pode conceber o humano fora do seu tempo-espaço simbólico, pois tudo que o
cerca, inclusive, como afirma Rubio, aquilo que o próprio homem é, “espírito-na-
corporeidade”, já tem natureza simbólica, e, portanto,aponta para o fato de “que o homem só
possa viver com plenitude uma realidade quando a expressa” 38. Na esteira deste pensamento
é que iniciamos nossa reflexão a cerca da linguagem teológica, como expressão humana
performativa, pois “a expressão religiosa em si mesma já tem uma eficácia própria, realiza
uma ação, impulsiona um compromisso”39. Sendo assim, compreendemos que a linguagem
teológica, não se refere apenas a uma forma de expressar a investigação científica de uma
realidade, mas a própria linguagem é mediação para se chegar ao conteúdo.
2. A Linguagem teológica.
Ao começarmos a tratar sobre a linguagem teológica, cabe-nos apresentar os
pressupostos da ciência teológica, cujo objeto, embora não seja demonstrável como em outras
ciências, pode ser conhecido “à luz de uma ciência superior”40, e o que chamamos de ciência
de Deus, só nos é possível alcançá-la porque Deus mesmo se revelou. Contudo, esta revelação
de Deus não o define, já que o que é definível é também manipulável.Neste sentido, nos
ensina Tomas de Aquino a cerca da teologia:
Nesta doutrina, utilizamos, em vez de uma definição para tratar do que se refere a
Deus, os efeitos que Ele produz na ordem da natureza ou da graça. Assim como em
certas ciências filosóficas se demonstram verdades relativas a uma causa a partir de
seus efeitos, assumindo o efeito em lugar da definição dessa causa41.
Esta afirmação de que a palavra da teologia sobre Deus só é possível, porque Deus, no
seu mistério revelou-se aos homens, deve ser compreendida a partir da liberdade de Deus em
querer revelar-se e assim, não se trata de pensar a teologia como um esforço intelectual para
alcançar a divindade em sua transcendência, de maneira a manipular seu objeto, mas uma
escuta amorosa do Deus que fala e revela seu mistério atuando na história humana. Explica
Latourelle que “em seu princípio, a teologia é sobrenatural. Com efeito, há em toda teologia,
37 Idem, O cosmo. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 53. 38 RUBIO, Alfonso Garcia. Unidade na pluralidade. p. 487. 39Ibdem, p. 493. 40 AQUINO, Tomas. Suma Teológica. 1. q. 1. a. 6. 41Ibdem. 1. q.1. a. 7.
18
duplo dom de Deus: o dom da palavra de Deus e o dom da fé para aderir a esta palavra com
certeza absoluta”42. Assim podemos dizer que não pode haver teologia sem que antes haja
uma escuta atenciosa e acolhimento Daquele que, “no seu imenso amor, fala aos homens
como à amigos e conversa com eles para os convidar e admitir a participarem da sua
comunhão”43.
2.1. Deus se Revela ofertando-se.
No tocante aRevelação, faz-se necessário, primeiramente discorrer sobre dois
princípios fundamentais que nos situam acerca de sua estrutura44. O primeiro é da ordem da
graça, compreendida como experiência antropológica da Revelação, onde se afirma uma
“abertura transcendental da liberdade humana ao próprio ser”45.O segundo princípio é a
afirmação histórica da revelação, o que indica seu caráter particular e objetivo, diferentemente
do primeiro princípio, que é de natureza antropológica universal.
No que se refere a característica subjetiva e universal da Revelação, podemos entender
como abertura transcendental da existência humana, que ao buscar conhecer, realizar, desejar,
etc., na verdade, abre-se para uma experiência do ser, do absoluto e definitivo. Esta abertura
transcendental, ou autotranscendência, é inerente a todo ser humano, por isso, apontado por
Haight como universal, pois, embora não se possa afirmá-la apenas como experiência
subjetiva, o que resultaria em conceitos apenas abstratos, sem ressonância na realidade
humana, não se pode negar que é também uma experiência pessoal, de um encontro com o
Deus que “abre-se ao homem numa confidência de amor e convida a um comércio de
amizade”46.
42 LATOURELLE, R. Teologia, ciência e salvação. São Paulo: Edições Paulinas, 1971.p. 38. 43Constituição Dogmática Dei Verbum. n. 2. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997. 44 Estes dois princípios são apresentados por Roger Haight em “Dinâmica da Teologia”. O autor procura apontar um breve histórico a cerca da teologia da Revelação, no tocante aos possíveis reducionismos, que por um lado procura afirmar a Revelação como experiência humana puramente subjetiva, na visão de uma teologia liberal, e por outro lado de uma afirmação historicista onde a Revelação acontece somente a partir de eventos particulares, negando a possibilidade de haver uma experiência religiosa universal. Desta problemática resultam dois princípios fundamentais para a compreensão da Revelação, onde se afirma a abertura humana à transcendência, o que podemos chamar de universal, já que não limita a Revelação a apenas um grupo ou povo, mas a todo humano, chamado a salvação universal. O segundo princípio diz respeito a mediação necessária da história, pois a Revelação, pra ser concreta, não pode abdicar desta característica. Estes princípios são inseparáveis e compõe, na concepção moderna da teologia, a dinâmica da Revelação. Cf. HAIGHT, Roger. Dinâmica da Teologia. São Paulo: Paulinas, 2004. 45 Ibidem. p. 77. 46 LATOURELLE, René. Teologia, ciência da salvação. p. 12.
19
Karl Rahner chama esta forma de Revelação de “autocomunicação de Deus”, que é
Ele mesmo a ofertar o seu próprio ser e “que tem em mira conhecer e possuir a Deus na visão
imediata e no amor”47. Importante sublinhar que Rahner fala do “possuir Deus no amor”, ou
seja, não se trata apenas de uma autocomunicação divina em vista da revelação de conteúdos,
mas de uma proximidade afetiva, de uma comunhão filial. Ao doar-se, Deus é o próprio
dom48e oferece ao homem a participação na sua própria natureza49.
Segundo Rahner, esta autocomunicação de Deus deve ser pensada em duas
modalidades: a da situação antecedente da oferta, onde contemplamos a disposição de Deus
para se comunicar ao homem, e a da tomada de posição do homem, em relação a essa oferta,
ou seja, sua liberdade em acolher ou não esta autocomunicação divina. Importante sublinhar,
que a autocomunicação de Deus é a afirmação do desejo divino em estreitar laços com a
realidade humana, fazendo-se presente, pois Deus é aqueleque “se doa a si mesmo em sua
própria realidade”50,e isso ocorre sem que “deixe de ser realidade infinita e mistério absoluto
e sem que o homem deixe de ser o ente finito e distinto de Deus que é”51.
Mesmo autocomunicando-se, Deus permanece sendo mistério absoluto e santo, fora do
domínio humano, e embora esta experiência de proximidade seja para o homem o cume de
sua existência fundamental, pois propicia a ele o encontro com aquele Aonde e Donde de sua
transcendência, não o credencia a uma compreensão de Deus, que continua a ser o
[...] inominado e indizível, que jamais pode ser compreendido, nem sequer por sua
autocomunicação na graça e na visão beatífica imediata, que jamais se torna sujeito
ao homem, que jamais pode entrar em uma classificação dentro de um sistema
humano quer de conhecimento, quer de liberdade52.
Antes de ser algo objetivo, temático e conceitual, é assim chamada por Rahner, de
experiência transcendental, “porque faz parte das estruturas necessárias e insuprimíveis do
próprio sujeito que conhece, e porque consiste precisamente na ultrapassagem de determinado
grupo de possíveis objetos e categorias”53.
47 RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: Introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulus, 1989. p. 147. 48 Cf. Ibidem. p. 150. 49 Cf. Ibidem. p. 150. 50Ibdem, p. 149. 51Ibdem. p. 149. 52Ibdem. p. 149. 53Ibdem. p. 33.
20
2.1.2.História como mediação hermenêutica da Revelação.
Não podemos falar de uma revelação de Deus sem compreendê-la em coexistência na
história humana, tampouco podemos pensar que a experiência transcendental do homem
aconteça numa realidade fora da história, e embora tenhamos a tendência de separar essas
duas dimensões, colocando-as quase sempre em oposição, é fundamental compreender que
fora do histórico, a Revelação não comunicaria nenhum sentido para a humanidade. Neste
sentido, Queiruga, analogamente chama a história de parteira54 da Revelação, pois diz que o
que é revelado não está fora, mas presente na humanidade e no mundo, e que é desvelado no
devir histórico. Podemos dizer, que Deus é sempre oferta generosa aos homens e ao mundo, e
que é no processo histórico que experimentamos esta presença e a interpretamos mediados
pelos conceitos humanos, e aqui como é nosso foco, pela linguagem.
Anular o histórico no processo da Revelação pode trazer consequências perigosas à fé,
pois, aí está a raiz de muitos fundamentalismos bíblicos e teológicos, que procuram afirmar
somente a intangibilidade de Deus, e que os textos sagrados foram ditados literais do divino
ou mesmo tornar a Revelação um bloco de escrituras dissociadas dos fatos que envolvem a
realidade humana e que devem ser apenas observadas sem nenhuma reflexão, tornando-a
estéril e num estado de letargia.
Embora a afirmação histórica da revelação seja fundamental, já que sópodemos
reconhecer a atuação de Deus no tempo, Latourelle destaca uma preocupação importante, para
que não se pense numa teologia apenas debruçada na história da salvação, sem que se ocupe
também em debruçar-se sobre o mistério íntimo de Deus. Para isso, ele afirma que a teologia
é “discurso sobre Deus, mas sobre Deus conhecido através de uma economia” e que “uma
teologia atenta à história da salvação não se opõe a uma teologia centrada em Deus” 55.
54 “Por isso, uma vez acontecido, o que foi revelado torna-se para nós sempre familiar: no fundo, ‘já o sabíamos’. Para expressar esse caráter, fundamental e definidor, há tempos recorro à categoria socrática da ‘maiêutica’: a revelação não traz nada ‘de fora’; pelo contrário, atua como parteira daquilo que já está aí: a presença viva de Deus em nós, na história e no mundo.” Cf.QUEIRUGA, Andrés Torres. Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus: por uma nova imagem de Deus. São Paulo: Paulinas, 2000. 55 LATOURELLE, René. Teologia, ciência da salvação. p. 37.
21
A afirmação da história como lugar da Revelação, nos permite dizer que ela é o “lugar
da mediação da verdade”56, pois se utiliza da comunicação intermediada pela linguagem
humana para advir ao tempo e espaço, não se esgotando na capacidade humana de apreensão
e interpretação, mas mantendo-se na sua transcendência. De fato, para se comunicar com os
homens, a verdade precisa se utilizar da linguagem dos homens, caso contrário, não
poderíamos falar em uma Revelação, mas num retraimento, fechamento. Deus se expressa na
imanência dos sinais humanos e no Verbo encarnado vem ao tempo e se utiliza do horizonte
mundano para se comunicar.
Quanto ao advento da verdade no tempo, é importante sublinhar que, embora se
relacione com o que é precário, ela não perde sua consistência ontológica, ou seja, não se
confunde com a história, mas a utiliza como sua mediação hermenêutica, “a verdade em si se
faz verdade por nós, sem perder a sua transcendência; ela se dá no horizonte de sentido, faz-se
inteligível e significativa, não ao preço de sua superioridade, mas justamente graças a ela e à
sua manutenção”57.
2.1.3. A encarnação do Verbo divino como o evento da Palavra.
A afirmação histórica também se apoia no fato de que a Revelação não aconteceu de
uma vez, mas faz parte de um processo gradual, cuja culminância se dá na encarnação do
Verbo.
A afirmação cristã sobre a Revelação divina não é um dizer sobre o fim do mistério,
nem mesmo sobre uma descoberta que diz tudo sobre o que antes estava escondido, mas é um
dizer que convida a contemplação, daquilo que se mostra, sem se deixar abarcar por completo.
Este movimento rumo ao mistério não o esgota, mas suscita sempre mais o desejo de
conhecê-lo, e tudo o que podemos dizer sobre ele ainda é um simples “balbuciar e dizer de
maneira muito indireta”58. Mesmo assim, a palavra dita sobre o mistério, embora sua pobreza
e incapacidade de explica-lo, não deve ser entendida apenas como uma pretensão humana
infundada, mas um dizer que introduz o humano no mistério do amor de Deus, que embora
incompreensível à razão, é realidade pela qual leva o homem a um encontro pessoal com
Aquele sobre o qual se tentou dizer.
56 FORTE, Bruno. Teologia em dialogo. Para quem quer e para quem não quer saber nada disso. São Paulo: Edições Loyola, 2002.p. 38. 57Ibdem, Nos caminhos do Uno: Metafísica e teologia. São Paulo: Paulinas, 2005.p. 222. 58 RAHNER, Karl. La gracia como libertad. 2. ed. Barcelona: Herder, 1972. p. 26.
22
O autor do Livro os Hebreus situa o evento da encarnação desta forma:“Muitas vezes e
de modos diversos falou Deus, outrora aos Pais pelos profetas, agora, nesses dias que são os
últimos, falou-nos por meio do Filho...” (Hb 1,1).
A afirmação da encarnação do Verbo divino (cf. Jo 1,14) é para o cristianismo o
diálogo mais sublime entre Deus e os homens, pois “tendo vindo do Pai por amor aos seres
humanos, Jesus vive o êxodo de si até o gesto supremo, o abandono da Cruz”59, e sua
existência “na carne é totalmente uma existência acolhida e dada”60, é oferecimento livre
Daquele que amou a humanidade até o fim (cf. Jo 13,1). Em Cristo reconhecemos a “Palavra
que saiu do silêncio, Aquele que é em pessoa o êxodo de Deus de si mesmo por nosso amor, o
Filho eterno que se fez carne e abre o acesso ao mistério abissal da Trindade”61.
A teologia fala do Deus vivo, que embora transcendente, faz-se humano com os
humanos, na pessoa de Jesus Cristo, “tornando-se semelhante aos homens e reconhecido em
seu aspecto como um homem” (Fl2, 7b). “Ele é a imagem do Deus invisível” (Cl 1, 15a) e a
“expressão de sua substância”(Hb 1,3). A teologia portanto, fala do Deus que quis morar
entre os homens e com eles se relacionar, é um Deus pessoal, próximo, que entra na história
humana para ser a Palavra plena sobre Deus e sobre os homens62.
Em contemplação a este movimento de descida do Logosque se encarna, é acentuado
por K. Barth como o centro da fé cristã, que não vê oposição entre palavra e ação, doutrina e
vida, mas que para o cristianismo são duas realidades que devem ser entendidas em profunda
comunhão. Acerca disso diz: “Deus fala, Deus age, Deus ocupa o centro de tudo: a verdade se
traduz em ato, o ato se manifesta com a força da verdade. A Palavra é ação, uma ação tal que
é, ela mesma Palavra, Revelação”63.
A entrada do Eterno na história já é acontecimento salvador e não pode ser colocado
ao lado de outros eventos históricos, mas deve ser sublinhado como o acontecimento por
excelência, pois marca profundamente a história humana, que também se torna história divina,
visto que ao entrar no tempo, Deus, sem prejuízo de sua divindade, se faz histórico. Este
movimento dialético, onde Deus se apresenta à história tornando-se histórico e ao mesmo
59 FORTE, Bruno. A essência do cristianismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. p. 57. 60Ibdem. p. 57. 61Ibdem. p. 49. 62 Cf. Hb1, 1-4; DV 4. 63 BARTH, Karl. Esboço de uma Dogmática. São Paulo: Fonte Editorial, 2006. p. 92.
23
tempo mantendo- se mistério, sem mudança ontológica, é considerada por Karl Rahner como
o autêntico da história da Salvação e revelação. Afirma ele:
Essa historicidade da história da salvação a partir de Deus e não só a partir do
homem – de uma história que é realmente a verdadeira e uma história do próprio
Deus, na qual a imutável intangibilidade de Deus se manifesta precisamente em seu
poder de entrar no tempo e na história, fundados por ele, o eterno – essa história vem
a ser experimentada e aparece com a maior clareza no dogma fundamental do
cristianismo que afirma a encarnação do Logos eterno em Jesus Cristo64.
O evento da Encarnação é também evento de um novo começo, pois ao se Revelar no
Filho, o Pai Criador inicia uma nova criação, a partir de um relacionamento também novo,
“não a partir do nada; pelo contrário, Deus adentra a criação” e se encontra com a criatura “e
se torna um com ela”65.
2.2. Elementos da linguagem teológica.
Ao se tratar da linguagem do mistério, no âmbito da fé cristã, é basilar compreendê-la
a partir de seu pressuposto fundamental: só se pode falar de Deus no seu mistério, porque Ele
se comunicou com a humanidade e se revelou, mediado pelo símbolo da linguagem humana.
O que sabemos não é fruto de especulações meramente humanas, mas tem origem na
revelação divina.
Assim posto, nos deparamos com uma particularidade da linguagem teológica: ela não
se perfila à linguagem comum, corriqueira, nem tampouco se resume numa linguagem
científica, que pretenda abarcar todo seu objeto, afim de esclarecê-lo e torná-lo conhecido
linguisticamente. Diferentemente, a linguagem teológica se ocupa do mistério, e por mais que
procure adequar termos e conceitos, sua palavra sempre distará da realidade à qual se pretende
conhecer. No entanto, mesmo consciente desta distância, a teologia procura exprimir seu
objeto por meio da palavra, já que não se pode ter acesso a uma realidade sem o intermédio da
linguagem, e esta embora se baseie nas experiências humanas, nos seres criados e na história,
a realidade ao qual se debruça, vai além desses elementos e não se encerra neles.
Como forma de falar do mistério, a linguagem simbólica é a que melhor expressa o
objeto da teologia, já que embora não se possa abarcar toda sua realidade, o símbolo expressa
de forma “mais sugestiva que argumentativa, mais aberta que fechada, mais próxima da
64 RAHNER, Karl, Curso fundamental da fé. p. 175. 65BARTH, Karl. Esboço de uma Dogmática p. 136.
24
encruzilhada que da mão única. O símbolo capta o mistério profundo da realidade, o lado
escondido que o conceito deixa escapar.”66Isso, porque o símbolo tem o poder de adentrar no
mais profundo das realidades, sobretudo no campo da teologia, onde o mistério não pode ser
captado conceitualmente, mas é experimentado no mais íntimo do ser humano.
Na corrente desta reflexão, Yves Congar67 reflete sobre algumas diferenças
importantes entre a linguagem dos espirituais e a dos teólogos. Afirma que os espirituais usam
termos inexatos para exprimir aquilo que experimentam enquanto realidade transcendente, e
pautam sua linguagem por termos como “inexprimível”, “incompreensível”, indizível”,
“inominado”, seguindo uma linguagem apofática, que tende a se calar diante do mistério
divino. É também frequente o uso de paradoxos, semelhante ao que lemos no Evangelho de
João, onde Jesus afirma que “quem perde, ganha” (cf. Jo 12, 25.), referindo-se ao “prêmio”
daqueles que são capazes de gastar a própria vida por causa do Evangelho.
Outro elemento é o da negação, dizem não serem nada ou que nada são as criaturas, o
que indica que “não entendem formular um enunciado metafísico sobre o ser ou o não-ser das
coisas, sobre a ontologia “ôntica” das coisas, mas exprimir uma atitude espiritual vivida.”68É
o sentir-se insignificante diante da grandeza divina, reconhecendo o fato de que
Deus é aquilo que é, isto é, quer dar, quer dar-se, não a quem se eleva
orgulhosamente diante dele, forte de sua própria riqueza ou suficiência, mas ao
pobre, a quem se conhece e se confessa doente, cego, desprovido de justiça e de
virtude69.
A teologia, por sua vezprocura, fundamentada nessas experiências, dar um passo rumo
a inteligibilidade do mistério, embora consciente de sua insuficiência. Não elimina de sua
racionalidade os elementos da teologia inefável, estes continuam a compor seu horizonte de
conhecimento, contudo, avança para a tentativa de objetivar em termos positivos aquelas
realidades da experiência subjetiva. Importante ressaltar, que os conceitos positivos em
teologia não correspondem aos das ciências empíricas, já que seu objeto não pode ser
apreendido de maneira objetiva.A forma de expressar o conhecimento gerado por essas
realidades experimentadas pelos espirituais, passa pelo simbólico e pelo analógico.
66 LIBANIO, J.B. e MURAD, A. Introdução à teologia. Perfil, enfoques, tarefas. 8.ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 81. 67 CONGAR, Yves M.J. Situação e tarefas atuais da teologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1969. 68Ibdem. p. 170. 69Ibdem. p. 171.
25
2.2.1. Analogia, a linguagem própria para falar de Deus.
Ao se tratar de linguagem teológica, a primeira afirmação que se faz é de sua
inadequação70, pois tudo aquilo que se fala acerca do mistério divino, é sempre insuficiente e
não é capaz de alcançar toda sua realidade, até porque também existe uma inadequação entre
a realidade do mistério e o pensamento. Sendo assim, como todo pensamento, para ser
expresso precisa de uma linguagem, expressar em conceitos a realidade do mistério torna-se
uma árdua tarefa. Contudo, dado o fato de que se pode fazer a experiência do mistério através
da fé, o que é experiencial, é de certa maneira pensável, e assim, para que o pensamento seja
perfeito, é basilar que ele possa ser expresso por uma linguagem. Portanto, sendo possível ao
pensamento, e embora não assimilado em sua totalidade, o mistério pode ser expresso através
de uma linguagem, e esta, por se tratar de ummistério impenetrável, encontra na linguagem
analógica uma possibilidade adequada de expressão.
Nossa capacidade de elaboração dos conceitos analógicos sobre Deus é fundamentada
na experiência que fazemos com o divino, ou como diz Rahner, com o Aonde de nossa
transcendência. Para o teólogo alemão, esta relação original que estabelecemos com o Aonde
de nossa transcendência é precisamente o ponto de partida de nosso conhecimento, que
embora seja possível constituir algum conceito categorial sobre Deus, mergulhamos
inevitavelmente na incompreensibilidade. Aqui então se funda a analogia, que não pode ser
entendida como um conceito intermediário entre a compreensão e a incompreensão, mas sua
gênese reside na experiência que fazemos do mistério santo, e que de alguma forma pode ser
expresso por conceitos categoriais.
Rahner ainda afirma que nós mesmos podemos nos entender como seres análogos, já
que
[...] estamos fundados no mistério santo, que sempre se nos escapa ao mesmo tempo
que se nos constitui por seu apresentar-se a nós e seu reenviar-nos às realidades
concretas, singulares e categoriais no âmbito de nossa experiência, que por sua vez,
em sentido contrário, constituem a mediação e o ponto de partida para o nosso
conhecimento de Deus71.
70 Cf. BARTH, Karl, Fé em busca de compreensão. São Paulo: Fonte Editorial, 2006. p. 36. 71 RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. p. 93.
26
Contudo, em teologia, a linguagem analógica “designa a distância entre o
conhecimento que o homem tem de Deus e o próprio Deus”72, ou seja, por mais que se
procure conceituar as realidades divinas, sempre haverá um abismo entre o que se diz e a
realidade em si, e somente atravésdo uso de conceitos análogos é que se pode, ainda que
imprecisamente, falar sobre Deus. Ainda, “sem a assunção da analogia, a linguagem teológica
poderá ser rica em formulações expressivas que poderão contentar o filósofo ou o cientista,
porém desgraçadamente não expressarão o conteúdo da revelação”73.
2.2.1.1. Tomas de Aquino sobre analogia.
Há homogeneidade entre Deus e as criaturas74, já que o Criador é a “medida
primordial de todos os entes”75, mesmo assim, embora possamos atribuir o mesmo nome às
criaturas e a Deus, a razão que norteia não pode ser a mesma, o que nas criaturas corresponde
a uma qualidade, a Deus corresponde a sua essência. Todas as afirmações que fazemos de
Deus e das criaturas embora usemos de um mesmo conceito, este sempre deverá ser usado de
maneira equivoca, ou seja, o conceito é aplicado em diferentes graus sobre essas duas
realidades.
Sobre isso, Tomas explica a partir do conceito de causa e efeito, onde diz que na
causa, ou seja, em Deus, tudo aquilo que se afirma está de maneira una e simples, mas nos
efeitos que se encontram nas criaturas, sempre é dividido e múltiplo. Diz ele: “as perfeições
de todas as coisas que estão divididas e multiformes nas criaturas preexistem em Deus
unificadas.”76
Por exemplo, quanto ao que se afirma que Deus é sábio. A sabedoria em Deus não é
um atributo, uma qualidade que pode perceber em Deus, mas uma realidade essencial. A
bondade em Deus é simples e una, pois essa realidade que é atributo presente nas criaturas,
em Deus é essencial. Assim,quando falamos da sabedoria que se verifica nas criaturas, a
reconhecemos como qualidade em determinado grau, multiplicada nas diversas criaturas.
Tudo aquilo que dizemos sobre Deus e sobre as criaturas nunca são afirmações
unívocas, pertencentes a uma mesma razão ou intensidade, mas sempre uma afirmação
72 BOULNOIS, Olivier. Analogia. In Dicionário Crítico de teologia. São Paulo: Paulinas: Edições Loyola, 2004. p. 120. 73 FISICHELLA. Rino. Lenguaje. In Diccionario de Teologia fundamental. p. 829. 74 Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. q. 13. a. 5. p. 293. 75 Ibidem. 76 Ibidem. p. 294.
27
equivoca, acentuando em Deus a eminência do conceito, ou seja, em Deus todas as afirmações
não pertencem a mesma razão quando as fazemos para as criaturas. O argumento da
eminência é proposto de maneira tríplice, “a saber, de universalidade, de plenitude, de
unidade. Em Deus toda perfeição é livre de qualquer imperfeição”77.
Tomas embora confirme a equivocidade dos nomes que se atribuem a Deus e às
criaturas, faz uma ressalva quanto à distância entre os graus destas afirmações. Não pode
haver completa equivocidade dos nomes78, de forma a negar alguns atributos essenciais de
Deus presente nas criaturas. Assim também, negar completamente o que se verifica nas
criaturas a Deus, pois pode conduzir a anulação da possibilidade de conhecê-Lo. Deste modo,
diz ele:
Só podemos nomear Deus a partir das criaturas, como já foi explicado. Assim, tudo
o que é atribuído a Deus e à criatura é dito segundo a ordem existente da criatura
para com Deus como a seu princípio e à sua causa; em quem preexistem em grau
excelente todas as perfeições79.
Ao dizer propriamente da analogia, Tomas utiliza o argumento da proporcionalidade,
superando os conceitos de univocidade e equivocidade, que podem ou atribuir de maneira
inexata um mesmo termo a Deus e à criatura, de maneira a equiparar as realidades e cair num
antropomorfismo, ou ainda de negar qualquer semelhança, embora em graus diferentes, entre
as criaturas e Deus, negando a relação de causa e efeito. Neste sentido, Tomas usa o exemplo
do termo sadio80 com relação ao remédio e a urina. Esses dois elementos dizem respeito a
saúde, embora o primeiro diz respeito a causa e o segundo ao sinal, um e outro tem relação
com o animal de forma a indicar, na multiplicidade das formas, sua saúde. Assim também
com relação ao termo sadio que pode ser atribuído tanto ao animal quanto ao remédio, este,
causador de saúde presente no animal. Portanto, aqui podemos perceber que para nomear
Deus e seus atributos, recorremos à criatura como portadora das realidades divinas, embora
em grau distinto e imperfeito, mas em relação com Ele.
Ao tratar sobre a linguagem metafórica presente nas Sagradas Escrituras, o doutor
angélico afirma sua capacidade de comunicar as verdades da fé a todas as pessoas, inclusive
as mais simples, apoiando-se no fato de que o próprio Jesus usava desta forma de linguagem,
77 MONDIN, Battista. A linguagem teológica. p. 200. 78 Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. q.13. a. 5. p. 295. 79 Ibidem. p. 295. 80 Ibidem. p. 295.
28
falando dos mistérios do Reino de Deus através de parábolas. Também afirma a importância
da metáfora como linguagem que fala diretamente aos sentidos humanos, onde se origina o
conhecimento.81 Ademais, as imagens corpóreas, embora sejam utilizadas nas Sagradas
Escrituras como forma de apresentar o mistério, este continua velado, não deixa de ser
inefável. Isso porque, tudo o que conseguimos falar de Deus, mais se aproxima do que Ele
não é, do que é, e assim, nos damos conta de sua eminência, e tudo o que tentamos pensar
sobre ele não pode alcançar sua verdade, pois sempre se encontra acima de qualquer
compreensão humana.
2.2.1.2. As três vias da analogia: afirmação, negação e eminência.
Estas afirmações de Tomas nos abre caminho para discorrer sobre as três vias da
analogia, a saber, via da afirmação, via da negação e via da eminência.
A via da afirmação compreende aquelas proposições que usamos para predicar algo
sobre Deus.
As origens de nossas ideias e afirmações sobre Deus passam inevitavelmente pelas
criaturas, como vimos acima, já que não podemos conhecer nada que não seja apreendido
pelos sentidos. Desta forma, essas afirmações partem de concepções “puras, abstraídas
transcendentalmente das criaturas"82, ou seja, porquanto se apoia no que conhecemos das
criaturas, o que se afirma sobre Deus é sempre de forma eminente. Assim, quando afirmamos
que Deus é sábio, embora constatasse primeiramente a sabedoria como predicado humano,
dizemos, que, com base na analogia de atribuição de Tomas, Deus é por excelência o Sábio e
a causa da sabedoria humana. O que pertence à realidade divina de forma eminente é
atribuído ao humano de forma imperfeita, porém, é a partir dessa realidade limitada que se
predica algo de Deus.
Neste momento, faz-se necessário uma distinção importante quanto ao alcance da
linguagem analógica. Não se pode pretender que a realidade significada seja de modo
completo expresso pela forma de significar. Uma coisa é o predicado daquilo que se refere a
Deus, outra é a forma como se predica. Por exemplo, contemplamos a sabedoria humana e
afirmamos que embora de maneira imperfeita, esse atributo humano tem Deus como sua
causa, ou seja, a plena sabedoria só se encontra nele, ou melhor, ele mesmo é a sabedoria. No
81 Cf. Ibdem. p. 152. 82 BOFF, Clodovis. Teoria do método teológico. 5.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p. 340.
29
entanto, quando se predica a sabedoria de Deus não podemos dizer com exata clareza a forma
como esse atributo se dá em Deus. Sabemos que Deus é sábio, sabemos que o humano
também é sábio, mas embora saibamos como a sabedoria se manifesta no humano, nada
sabemos como isso se dá em Deus, isso porque Deus transborda todo nosso entendimento.
Paralelamente à via afirmativa encontra-se a via negativa. Embora pareça essa
afirmação contraditória, essas duas vias estão em relação, já que quando afirmamos algo sobre
Deus, sempre se faz as ressalvas necessárias excluindo de sua realidade o modo como se
encontra nas criaturas.
Esta via indica aquilo que se nega sobre a realidade divina. Deus é incorpóreo,
infinito, não gerado. Segundo Tomás, esta é a via própria para o conhecimento de Deus, pois
tudo aquilo que podemos falar dele, denota mais nossa ignorância do que nosso
conhecimento. Esta via nos aponta para a inefabilidade divina. Nada do que dizemos de Deus
condiz com sua natureza, inclusive quando dizemos que Deus é o Ser por excelência. Só
entendemos o que é ser a partir do ser das criaturas e ao negar que Deus compartilha do
mesmo ser, nos resta apenas constatar nossa ignorância e total desconhecimento de Deus, e
por conseguinte, toda a linguagem sobre Ele é sempre imprecisa. Porém, mesmo sem alcançar
a realidade mais original sobre Deus, como diz Agostinho ao refletir sobre o mistério da
Trindade, onde palavra alguma é capaz de explicar, ele afirma que para não se calar, mesmo
que de forma imprecisa, é preciso dizer83.
A terceira via da linguagem analógica é a da eminência. Ela faz referência ao
reconhecimento do mistério inefável de Deus, e se expressa a partir de superlativos,
indicando, como vimos na via afirmativa, que tudo o que afirmamos sobre Deus e que de
algum modo conhecemos primeiramente nas criaturas, devem ser predicadas de forma
eminente a Deus. Ao dizer que Deus é sábio, não dizemos que sua sabedoria se compara a
sabedoria humana, mas que ele é o Sábio por excelência. Constatamos que existe bondade nas
criaturas, mas Deus é boníssimo, pois sua bondade não existe no mesmo grau que nas
criaturas.
Importante ressaltar que esta via não pretende expressar o que pertence exatamente a
essência divina, mas indica que os atributos que se verificam primeiramente nas criaturas e
83 AGOSTINHO. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1994. p. 203.
30
que reconhecemos em Deus sua causa, nele sempre se abrem ao infinito, não apenas um
aumento superpotente.
2.3. A linguagem teológica não esgota o mistério de Deus.
“A inesgotabilidade do mistério revelado se reflete inevitavelmente nas
fragmentariedades das formulações que o explicam. Portanto, nenhuma linguagem teológica
pode apresentar a pretensão de esgotar o mistério”84.
Quando refletindo sobre a insensatez humana em ambicionar de alguma maneira o
conhecimento da essência de Deus, São João Crisóstomo afirma que esse intento é o “cúmulo
da loucura”85 e como forma pedagógica ele diz preferir apresentar o testemunho dos profetas,
que não souberam evidenciar a essência divina e nem mesmo descrever a extensão de sua
sabedoria, porém diante desta imensidão, recuam, tomados de grande êxtase, admiração e
temor86. Afirma ainda que Aquele que é o inexprimível, inconcebível, invisível e
incompreensível,
[...] ultrapassa a força da linguagem humana e escapa ao alcance da inteligência de
qualquer mortal; não podem os Anjos investiga-lo, nem os Serafins contemplá-lo,
nem os Querubins compreendê-lo; é invisível aos Principados, às Potestades, às
Virtudes e a todas as criaturas sem exceção; somente o Filho e o Espírito o
conhecem87.
Cita o apóstolo Paulo, que afirma que Deus habita numa “luz inacessível”(1Tm 6, 16),
e sublinha o fato de que, ao se tratar de Deus, ser inacessível é muito mais do que afirmar que
o fundo do mar, por causa de sua imensidão é inacessível, pois o termo aplicado à Deus,
significa que “desde o início se furta a qualquer investigação, sequer permite aproximação”88.
Embora Crisóstomo não se utilize da palavra mistério, o conceito da inacessibilidade de Deus
é uma realidade capaz de expressar sua compreensão, já que embora se possa contemplar seus
rastros na criação, nenhuma razão humana pode chegar realmente dizer com certeza sua
realidade.
84 FISICHELLA, Rino. Lenguaje, in Diccionario de teologia fundamental. p. 829. 85 CRISÓSTOMO, João. Da incompreensibilidade de Deus; Da providência de Deus; Cartas a Olímpia. São Paulo: Paulus, 2007.p. 25. 86 Ibidem. 87 Ibidem. p. 53. 88 Ibidem. p. 55.
31
2.3.1. A inabarcabilidade do mistério.
O homem é um ser de transcendência, inclinado ao absoluto, referenciado ao mistério
“que se desvela e vela ao mesmo tempo”89. Esta referência ao mistério é afirmado por Rahner
como uma abertura humana ao infinito, num questionar constante sobre si e da realidade
circundante, e mesmo que chegue a algumas respostas, elas se tornam meras etapas que o
impulsiona para novas perguntas, sem que haja um repouso no definitivo.
O horizonte humano sempre se alarga a medida dos questionamentos que surgem, e
nunca é abarcado pela capacidade de conhecimento e apreensão, pois está sempre exposto à
infinitude e embora possa negar essa realidade, reduzindo sua existência ao objetivável,
envolto por uma questão de “ultimidade”, onde todas as suas atitudes encerram um processo
e, destituindo de sentido de sua existência, esta sempre será uma postura ingênua, marcada
por fuga e ignorância acerca de sua transcendentalidade.
O mistério é realidade comunicada mediante a graça divina, que fundamenta-se na
revelação de Deus, e que embora seja realidade revelada, não é evidente, pois continua a ser
objeto de fé. Conforme a teologia bíblica, o revelar de Deus se dá na sua ação em nós,
atuando na história humana, para realizar sua obra salvífica, como comunicação da verdade,
contudo, só se pode contemplar essa ação divina através da capacidade para ouvir a revelação
de Deus.
De fato, é preciso compreender o significado deste “ouvir Deus”, o que não se trata de
comunicaçãode algumas informações que Ele diz sobre si mesmo, mas ouvir a sua
comunicação da salvação, endereçada a pessoa humana, cujo fundamento se encontra no
Verbo encarnado, que é “a auto manifestação de Deus em sua auto alienação”90, e onde o
homem é introduzido neste mistério inesgotável.
Para situar melhor este tema é importante frisar a doutrina antropológica rahneriana na
qual afirma que o homem é o ouvinte da Palavra, pois está potencialmente aberto para ouvir a
mensagem cristã que “age no sentido de situar o homem perante a verdade real e profunda do
seu ser, verdade a que permanece inevitavelmente preso, ainda que tal prisão seja, em última
análise, a infinita amplidão do incompreensível mistério de Deus”91. Aquele que se reveste de
89 RAHNER. Karl. Curso fundamental da fé. p. 57. 90 Idem, Escritos de Teologia IV. Madrid: TaurusEdiciones, 1967. p. 152. 91 Idem. Curso fundamental da fé. p. 37.
32
realidade mistérica só o é para “uma faculdade cognoscitiva determinada e finita”92, ou seja,
Deus não é mistério para Si mesmo, mas absolutamente esclarecido sobre Si.
O dizer de Deus, seu Verbo encarnado, é expressão do seu amor infinito, que diz
amando, na dinâmica do livre dom, que é decisão absoluta de Deus em ir ao encontro do
humano, e no seu Cristo, congregar toda a humanidade no seu mistério divino. Neste sentido
Rahner explica:
Se este Deus segue sendo o mistério insuprimível, o homem é eternamente o
mistério expressado fora de Deus que, por toda a eternidade, participa do mistério de
seu fundamento e que, mesmo quando toda a provisoriedade tenha passado, tem de
ser aceito –como mistério insondável- no amor que nesta aceitação amante leva sua
própria bem aventurança93.
Assim, quando falamos da realidade mistérica do homem, fundamentado na sua
abertura ao mistério absoluto do Verbo encarnado, que não pode ser reduzido a uma forma de
manifestação de Deus, mas sua manifestação por excelência situa o homem frente a sua
realidade mais sublime.
Quanto à incompreensibilidade do mistério, Rahner a afirma, apoiado no fato de que
nenhuma ciência humana é capaz de abarcá-lo, nem tampouco criar uma fórmula capaz de
aprisioná-lo, e tudo o que se possa dizer sobre ele, sempre acentua sua inabarcabilidade.
Contudo, o mistério é inteligível por si mesmo e nenhuma formula científica tem o poder de
atingir sua mais original e profunda realidade. O que podemos mesmo assim, é dizer, ainda
que balbuciando e de maneira indireta, pois é realidade que compõe nossa existência. Desta
forma, o crente se lança sempre a dizer algo sobre o mistério que o transpassa, como tentativa
de expressar o fundamento de toda realidade, “de onde o amor é experimentado como algo
inefável, de onde consciente e tranquilamente se deseja entrar a morte no meio da existência,
onde a alegria não tem nome”94.
Certamente, o que dizemos sobre Deus, ainda que sempre insuficiente e balbuciante,
nos introduz no seu mistério, ao menos de forma a nos lançar insistentemente em inúmeras
dúvidas e perguntas, que nos impulsionam a uma experiência pessoal com o mistério
92 Idem. Escritos de Teologia IV. p. 69. 93 Ibidem. p. 153. 94 Idem. La gracia como libertad. p. 27.
33
inesgotável que é o próprio Deus. A resposta às muitas perguntas não, se dá por uma fórmula
científica, mas através do acolhimento do mistério, repousado no amor salvador de Deus.
Na esteira desta reflexão, Rahner trabalha o conhecimento transcendental de Deus
como experiência do mistério, resposta humana ao que se afirma sobre o fato de que, a
experiência encontra espaço para sua efetivação no conhecimento que Deus tem de nós, ou
seja, porque somos conhecidos por Deus, é que se abre a possibilidade de conhecê-lo. Este
conhecimento é de fato a essência da própria transcendência a que o homem é capaz. Esta
abertura é realizada pelo mistério e é fundada nele, e dele é dependente. A transcendência está
direcionada para o conhecimento de Deus, e tem nele sua gênese, de forma a indicar que não é
pela própria força que o homem a conquista, mas pelo fato de o mistério desvelar-se.
Embora falamos do mistério no singular, indicando Aquele que é o mistério absoluto
de Deus, também é fundamental que apontemos que este mistério pode ser contemplado em
mistérios ou proposições misteriosas que procuram discorrer sobre o mistério impenetrável.
Estas proposições são as disposições da teologia em dizer algo sobre Deus em palavras, que,
embora não alcancem a totalidade do mistério divino, apontam para uma forma conceitual de
compreensão. Sobre isto diz Rahner, que no intento de exprimir a realidade divina numa
pluralidade de proposições, “a razão da natureza misteriosa de tais proposições múltiplas
sobre Deus seria efetivamente a mesma, a saber, a divindade essencialmente misteriosa de
Deus”95.
Neste sentido, fica claro que as proposições misteriosas que se referem ao mistério,
nos direcionam ao fato de que o mistério somente o é para nossa razão, cuja capacidade
intelectiva sempre se apresenta insuficiente frente à inefabilidade divina e nos indica que a
forma mais coerente de acesso ao mistério é pela fé, pois a razão na sua realidade mais
original tende a demonstração e a penetrabilidade.
2.4. Performatividade da linguagem teológica.
A linguagem teológica enquanto linguagem do mistério é determinada e tem sua fonte
na Revelação divina, pelo fato de que se temos algo a dizer sobre Deus, é porque antes Ele
nos falou. A teologia se debruça sobre o conteúdo desta Revelação, e se esforça em tornar
inteligível, através de uma pluralidade de conceitos, aquilo que foi recebido da autorevelação
gratuita de Deus. Contudo, a linguagem teológica mais do que ser informativa, ela é
95 Idem. O dogma repensado. São Paulo: Paulinas, 1970. p. 172.
34
performativa, pois advém e projeta não apenas para um conhecimento de Deus, mas para
comunhão com Ele.
A contemplação do mistério é o repouso simples sobre o que se conhece de forma
atemática, sem a exigência da complexidade do raciocínio, nem tampouco da conceituação e
demonstração científica. Assim como, diante de uma obra de arte, mais do que procurar
conhecer a intensão do artista ou compreender o seu significado, a contemplação da beleza
tem como forma de expressão o silêncio, pois diz sem dizer, envolve e cala. Também a
linguagem teológica nasce da contemplação da Palavra que cala no coração humano e o
envolve. Essa Palavra é geradora de vida, impulsiona o espírito humano à transcendência e
encaminha para a proclamação confiante: “eu creio”.
Fundada na contemplação do mistério, a performatividade da linguagem teológica
introduz o sujeito crente na dinâmica que a palavra da fé produz, gerando compromisso e
comunhão com o objeto da fé, objetivada na realidade indissolúvel entre o falar e o ser,
próprios da teologia.
Não se pode conceber o dizer teológico descomprometido da tomada de posição do
crente, que ao dizer “eu creio”, implica sua existência numa nova forma de atitude. Isso é
bastante claro nas Sagradas Escrituras que ao narrar os eventosde fé, explora a transformação
da história de pessoas e povos num processo de conversão.
A Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina indica a “obediência
da fé”, conceito paulino, para dizer desta performance que é conduzida pelo Espírito como o
pedagogo e aquele que “aperfeiçoa sem cessar a fé mediante seus dons”96. As muitas
experiências de fé presentes nas Sagradas Escrituras não encerram seu dinamismo na letra do
texto, mas indicam novos caminhos para o crente, que ao interpretar as Escrituras, não o faz
numa pura atitude racional, mas deixa-se ser tocado pela vida comunicada proveniente do
espírito do texto97.
Esta performance não é particularidade humana, como aquele que responde à Deus
pela fé, mas, tem como o primeiro neste processo de envolvimento o próprio Deus, como
narrado nas Sagradas Escrituras, onde Sua palavra criadora faz existir e estabelece vínculo.
96 DV 4. 97 Cf. Bento XVI. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini. Brasília: Edições CNBB, 2013. n. 38.
35
Aliás, dizer que Deus é o Criador é evidenciar o fato de que Ele cria num “ato livre”98e
embora a criação não acrescente nada a Deus, podemos assim dizer que Ele é, de certa forma,
afetado por ela já que é “puro dom e gesto do qual ele, ontologicamente, não tem nenhuma
necessidade e que ele oferece tão-só e precisamente em plena superabundância”99.
Quanto ao ato de doar, diz Gesché:
O segredo último de um dom é que ele constitui o outro na capacidade de, por sua
vez, pôr-se como sujeito capaz de doar. Não seria igualmente grande, por parte de
Deus, receber tanto quanto doar? Receber doando? Longe de nossas distinções
maniqueístas, doar não seria ao mesmo tempo receber? Essa seria a força da
gratuidade100.
Isso para dizer da auto implicação de Deus ao criar, sendo afetado por sua criação,
mesmo que em nada prejudicado ou diminuído, mas em profunda relação, sobretudo pelo fato
de que ao criar se pode dizer da kenosis divina, pois sem necessidade de um outro, Deus cria
como ato de sua absoluta gratuidade. Importante aqui sublinhar a imutabilidade de Deus, onde
ser afetado pela criação não significa que haja uma mudança ontológica. A este respeito
Gesché direciona a reflexão para o Verbo encarnado por quem é comunicada vida,
movimento e ser (Cf. At 17,28) e pelo qual a criação se “tornou filial”101no gesto de confiança
do Pai no Filho a quem tudo submeteu (Hb2,8).
A criação é a linguagem de Deus e a forma como se comunica, expressão da
inseparabilidade entre palavra e ato como performance divina, que tem sua plena
expressividade em Jesus Cristo, como a Palavra por excelência do Pai, que por “palavras e
obras, sinais e milagres, e sobretudo com sua morte e ressurreição”102comunica sua vontade
salvífica.
3. Imaginação e metáfora.
O pensamento humano é um mar imensurável de possibilidades, ideias e imagens,
onde o que parece impossível e improvável recebe contornos de realidade, pelo menos na
mente, que é capaz de criar imagens, contar histórias e explicar o que a razão logica não é
capaz. Há uma vida criativa que se agita no ser humano capaz de criar o inédito e de abrir um
98 GESCHÉ, Adolphe. O Cosmo. p. 33. 99 Ibidem. p. 33. 100 Ibidem. p. 35. 101 Ibidem. p. 144. 102 DV 4.
36
leque de novos caminhos, desviando do cru da realidade onde a razão é organizadora
implacável, tantas vezes impossibilitada de inventar, criar um novo que possa desbravar
mares nunca antes navegados. É claro que não se trata aqui de colocar como opostas a razão e
a imaginação, pelo contrário, queremos afirmar que existe suporte recíproco e necessidade de
equilíbrio,pois a supremacia de uma sobre a outra pode criar um universo de limitações um
tanto perigoso.
O racionalismo radical pode ignorar elementos humanos que somente a sensibilidade,
o figurativo e o imaginário podem chegar. Assim, também é importante frisar que o
imaginário sem o suporte da razão, pode conduzir a uma alienação “que nos instala num
mundo descoisificado, em ruptura total com o real, mundo esquizofrênico e patológico,
alienado e alienante, mistificante, que instala o real no irreal, nas fantasmagorias”.103
O imaginário é aquele lugar onde o ser humano dá vida a tudo aquilo que não passa
pelo critério do conceito e da demonstração, mas que está presente como realidade latente,
composta de sentimentos, emoções, desejos, percepções e experiências inominadas. É na
imaginação, que esse mundo que habita o humano toma contornos e reveste de novos sentidos
o ambiente que tantas vezes se encerra sob o crivo da razão e do possível.
Imaginar é alçar voos, derrubar muros que cerceiam o espírito humano de chegar à
outra margem, é força elementar “com a qual nosso corpo e nosso espírito vibram em
uníssono e entregam-nos as chaves de nossa busca de sentido”104.
O imaginário encontra na literatura um espaço criativo de manifestação, onde se pode
ler a vida e o ser humano na sua forma mais original, chegando até mesmo onde os
argumentos científicos não conseguem, descrevendo o ser humano e a realidade que o cerca
de maneira profunda. Gesché diz que o “recurso à ficção, libera o campo de abordagem do ser
humano graças a um desenrolar do imaginário”105, abrindo um leque de possibilidades em que
a restrição não tem espaço, onde a partir da narrativa literária o ser humano se encontra com o
que há de mais íntimo nele, e que por vezes se encontra cerceada sob os critérios da razão
lógica.
O imaginário é o lugar da liberdade, que não tem nenhuma obrigação de ser aprovada
pela lógica nem mesmo pela realidade, já que tudo pode ser pensado, imagens podem ser 103 GESCHÉ, Adolphe. O sentido. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 140. 104 Ibidem. p. 141. 105 Ibidem. p. 142.
37
construídas mentalmente, palavras podem ser criadas para descrever coisas, pessoas e
situações, sem o menor constrangimento. A literatura tem sua raiz neste mar de
possibilidades, alimentada por elucubrações às vezes insensatas, mas carregada de desejo de
descobertas e de novos sentidos para a existência, deste ser humano em conflito e incessante
procura de si106.
Na esteira desta afirmação sobre a literatura como o lugar de manifestação do
imaginário, podemos acrescentar a poesia como gênero literário que permite a ‘licença
poética’ da alma, não se furtando a uma linguagem descritiva ou explicativa, próprias das
ciências, mas avançando à alma humana e à sua capacidade paradoxal de compreender a si
e ao mundo.
Paul Ricoeuré um importante expoente deste pensamento que afirma a importância
de não apenas considerar de ‘primeira grandeza’ a linguagem descritiva ou científica,
como capaz de dizer algo sobre o mundo ou sobre o ser humano. Compreende a literatura
como a “nossa maneira múltipla de pertencer ao mundo”107e de se relacionar com ele108
sem que nos confinemos a uma postura descritiva de “objetos manipuláveis” ou mesmo
nos reduzamos a uma postura que apenas analisa as coisas a partir do critério da adequação
e verificação, que por vezes cega o ser humano para a modalidade de enraizamento e de
pertencimento da qual a poesia é capaz.
Ricoeur também defende a tese de que não se pode reduzir a poesia numa mera
expressão emocional da subjetividade. De fato, não se pode pretender que o discurso
literário aumente o conhecimento sobre os objetos à semelhança do discurso científico, no
entanto também não se pode negar que a literatura, e de maneira mais específica a poética,
com sua forma de ver o mundo, não possa colaborar para uma compreensão mais
abrangente dos objetos e de sua verdade, que não deve se encerrar apenas no método de
adequação empírica. Sobre isto afirma Ricoeur:
O discurso poético também está no sujeito do mundo, mas não dos objetos
manipuláveis de nosso ambiente cotidiano. Ele se refere às nossas maneiras
106 Cf. Ibidem. p. 149. 107 RICOEUR, Paul. Nas fronteiras da filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 187. 108 Cf. Ibidem p. 188.
38
múltiplas de pertencer ao mundo antes que nos opuséssemos as coisas a título de
‘objetos’ dando de frente para um sujeito109.
Neste sentido, o filósofo francês refuta a ideia de que a linguagem é apenas uma
forma emocional de expressão, afirmando que “o que chamamos de ‘emoções’, na esteira
da linguagem poética, são precisamente modalidades de nossa relação com o mundo que
não se esgotam em descrições de objetos”110.Desta forma, conseguimos alargar as
fronteiras da compreensão do universo do conhecimento humano, que se encontra imerso
numa forma variável de pensar e apreender as coisas.
Ademais, surge-nos uma pergunta importante. Qual o lugar da imaginação no fazer
teológico?
Em primeiro lugar é importante ressaltar que a linguagem teológica não é apenas uma
linguagem racional e que “a linguagem técnica não é a única linguagem válida para a teologia
contemporânea”111. Em nada esta afirmação pretende desqualificar a cientificidade da
teologia e sua expressividade, mas pretende abrir caminhos para que a teologia não se curve
apenas a uma linguagem que passe pelos critérios de verificação, nem tampouco de
adequação palavra-objeto, mas que contenha elementos de imaginação e emoção, não
reduzindo é claro, ao sentimentalismo ou a uma imaginação alienante que certamente
levariam prejuízo ao pensamento teológico. Importante também dizer que, sem considerar o
humano em todas as suas dimensões, que incluem o imaginativo e sentimental, corremos o
risco de tornar a teologia estéril, pois ela não se resume a comunicar informações, nem
tampouco falar apenas ao intelecto humano112, mas é também uma de suas tarefas, chamar à
conversão e ser proclamação profética113, que fala aos humanos reais e inteiros.
Um olhar atencioso para as Sagradas Escrituras evidencia bem o que tentamos dizer
acima, sobretudo no que tange a questão do lugar da imaginação na teologia. Pensemos do
que seria da Bíblia sem a imaginação e sua capacidade criativa de dar nomes, criar expressões
e imagens para dar sentido às experiências humanas cultivadas na fé. Já nos primeiros
capítulos do primeiro livro do Pentateuco constatamos a solicitação da imaginação no
processo de formulação do texto da criação, cujo sentido, é afirmar Deus como criador. Ao
109Ibidem. p.187. 110 Ibidem, p. 188 111 MANZATTO, Antônio. Teologia e Literatura. p. 84. 112 Ibidem. p. 84-85. 113 Cf. Ibidem. p. 85.
39
criar o homem Deus o modela no barro e insufla em suas narinas o hálito divino como
transmissão de vitalidade, e deste homem, retira uma costela e dela faz a mulher. (cf. Gn2, 4-
25)
Jardim, árvore do conhecimento do bem e do mal, serpente que fala, torre construída
para chegar até o céu, dilúvio, mar que se abre, entre outras imagens, são frutos da
imaginação do hagiógrafo, que se utiliza destes elementos para comunicar um sentido de fé.
Também no Segundo Testamento contemplamos esses elementos do imaginário que
perpassam nas narrativas sobre Jesus de Nazaré e de maneira especial, através de suas
parábolas, que “se dirige sempre a uma verdade única e precisa”114 e convida àquele que ouve
(lê) a “formar um juízo e a partir do qual se dá a passagem à aplicação”115.
Sobre a linguagem imaginativa da Bíblia, Paul Ricoeur afirma sua “total coerência
interna” e unidade,onde se podem perceber as correspondências de um texto ao outro, e por se
tratar de uma linguagem metafórica, tem na poesia uma forma aproximativa de expressão. Diz
ele:
É somente pelo canal da poesia que podemos nos aproximar mais da linguagem
querigmática da Bíblia, quando esta proclama, num modo metafórico ‘O Senhor é
meu rochedo, minha fortaleza...’, ‘sou o caminho, a verdade e a vida ‘isto é o meu
corpo’, etc116.
O real aqui não éo evidente verificável, mas se expressa pelo sentido que convida a
experimentar, pois o aparente das palavras revela o misterioso, aquilo que está por traz do véu
das expressões metafóricas. É assim que se compreende as Sagradas Escrituras na sua
estrutura narrativa, onde a palavra é mais que um instrumento de informação, mas é palavra
falante117, que conduz o leitor a integrar as narrativas bíblicas à sua própria narrativa118,
configurando à sua história o texto sagrado. Nas palavras de Paul Ricoeur, esta interação do
texto sagrado e o leitor caracteriza uma exterioridade para o que narra o texto, já que ele “não
visa nenhum exterior, ele só tem a nós mesmos como exterior, nós mesmos que, recebendo o
texto, nos assimilamos a ele e fazemos do Livro um Espelho”119.
114 DUPONT, Jacques. Por que parábolas: O método parabólico de Jesus. Petrópolis, RJ: Vozes, 1980. p. 10. 115 Ibidem. 116 RICOEUR, Paul. Amor e justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 49. 117 Cf. MANZATTO, Antônio. Teologia e literatura. p. 85. 118 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O sentido. p. 153. 119 RICOEUR, Paul. Amor e justiça. p. 53.
40
A liturgia cristã e os sacramentos, apontaGesché, são lugares privilegiados onde este
entrelaçamento acontece, sobretudo a partir do significado a que convidam o crente a
experimentar, através dos “símbolos reais de realidades transcendentes”120e sob o véu das
narrativas, metáforas e símbolos presentes na liturgia, o crente adentra ao mistério celebrado.
Explica:
Há, pois, sem, evidentemente, perder-se aí, de reconhecer que a fé cristã, por meio
de seus recitativos e seus gestos litúrgicos, e a teologia, por meio das representações,
às quais recorre como a metáfora sempre vivas, têm o direito de propor-se ao ser
humano como tendo um lugar entre esses discursos do imaginário, discurso que,
como vimos, eram lugar privilegiado da compreensão que o ser humano adquire de
si mesmo121.
A imaginação como o lugar da manifestação dos sentidos tem nas metáforas seus
ícones, que procuram de alguma maneira “objetivar” as realidades que não são explicáveis
sob o conceito das coisas demonstráveis, sem que sejam menos reais que as empíricas, pois
revelam experiências transcendentes através de elementos e imagens conhecidos, como na
doutrina dos sacramentos, onde os sinais sensíveis revelam o que só pela fé se pode ver.
120 GESCHÉ, Adolphe. O sentido. p. 153. 121 Ibidem. p. 154.
41
CAPÍTULO II
A PALAVRA POÉTICA NO PENSAMENTO DE KARL RAHNER
“Existem palavras para a cabeça, instrumentos com que
dominar as coisas. Porém há também as que brotam do
coração rendido e adorante ante o mistério que nos
avassala”122.
Karl Rahner
1. A poesia e o cristianismo.
O ponto de partida da reflexão de Rahner a cerca da palavra poética e o cristianismo
não é outro senão a reflexão teológica sobre o homem, haja vista que ele não é poeta, mas
teólogo. A questão que se coloca é como deveria ser este homem se aspira ser cristão? Para
onde ele dirige seu olhar, e como poderá ter como resultado a poesia? E ainda, existe algo que
ele possa preparar em si que resultaria em uma capacidade de recepção poética? Ou ainda, a
poesia, mesmo que isso não seja claro ao poeta, é evocadora de uma realidade sacra, que
permeia o coração humano?
Por ser a religião da Palavra encarnada, de uma Sagrada Escritura e da fé que “entra”
pelos ouvidos, aqueles do corpo, mas também os da alma, o cristianismo indubitavelmente
tem uma profunda relação com a palavra, como lugar de epifania e revelação.
Rahner presta preciosa colaboração nesta reflexão, apontando alguns caminhos que
nos ajudam a compreender a importância da palavra, e aqui de forma especial, da palavra
poética, como expressão que retira o homem do palavrório do cotidiano, tantas vezes
maculado pelo superficial. A palavra poética é expressão do mais intimo do homem, pois fala
de sua existência mais profunda, é o desvelamento do seu ser. É também a forma da palavra
divina, já que essa se expressa poeticamente a cerca de Deus e do homem, enraizada no
concreto, mas não fadada ao fatalismo, que retira o sentido da existência e esvazia a beleza do
viver.
A linguagem poética é precisamente a linguagem do mistério, como expressão daquela
realidade inefável da qual não se pode adequar precisamente em linguagem científica, nem
tampouco aprisionar numa fórmula lógica e direta, mas é como um balbuciar uma realidade
122 RAHNER, Karl. Escritos de Teología IV. Madrid: TaurusEdiciones, 1967. p. 333.
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da qual estamos impregnados, mas não alcançamos sua totalidade. Para isso, Rahner afirma a
necessidade da graça, como preparação do coração para primeiramente acolher esta palavra, e
depois proclamá-la como forma de tornar o mistério silencioso presente. Acaso esta
sensibilidade tivesse se esvaído do coração humano, afirma Rahner, o homem não mais
poderia perceber a palavra de Deus nas palavras humanas. Neste sentido, pergunta se um
homem poderia ser insensível por completo à palavra poética e mesmo assim ser cristão.
Ademais, Rahner diz que o poeta é aquele capaz de tornar presente o que a palavra
sinaliza, pois este está “grávido” de palavras originais, que ao serem proclamadas tornam-se
como sacramentos de realidades misteriosas, profundas e existenciais. Essas “proto-palavras”
ou “palavras primordiais”123, evocam aquilo que significam, como palavras sacramentais, que
não se reduzem às funções informativa ou descritiva, mas torna presente aquilo que proclama.
2. O homem como ser de horizonte infinito.
O homem é um ser de transcendência. Esta afirmação é resultado da constatação de
que, ao menos enquanto questionamento, o homem está aberto a um horizonte mais amplo do
que se tem noção. As perguntas a que se submete refletem o horizonte infinito de sua
potencialidade, pois, mesmo pensando-se finito, logo se dá conta de que este finito se abre a
novas perguntas, que se abrem em novos horizontes de possibilidades. Sua capacidade
questionadora não se encerra nas respostas a que se pode dar, mas abre a novas e intrigantes
perguntas.
Embora se tente pré-fixar alguns limites, aquilo que se parece esgotado ou que já lhe
tornou familiar e dominado pelo determinismo conceitual, é relativizado e a novidade sê-lhe
apresenta como fator de provisoriedade da resposta às questões, fazendo surgir sempre novas
perguntas e novas respostas, e dessa forma, o conhecimento é sempre gradual e aberto, e
nunca absoluto e fechado.
Quanto a isso, Rahner diz:
O homem percebe-se como possibilidade infinita porque, na prática e teoria,
necessariamente coloca em questão todo resultado obtido, sempre volta a colocar
esse resultado contra o horizonte mais amplo que imprevisivelmente se abre à sua
frente [...]. O homem não é a infinitude não-questionada, dada sem
problematizações, da realidade. Ele é a pergunta que se levanta perante ele, vazia,
123 A partir daqui, preferimos usar o termo “palavras primordiais”.
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mas de forma real e inevitável, e que ele nunca pode superar nem dar resposta
adequadamente124.
O “estar perante si” como possibilidade de o homem experimentar-se, o faz consciente
de si, “como produto do que lhe é radicalmente estranho”125, e embora nesta autoanálise ele
possa dizer algo sobre si, e perscrutar os sistemas que o constitui, mesmo assim ele chega a
um determinado momento em que tudo aquilo que sabe de si ainda não o explica, sobretudo
pelo fato de que é consciente de que não é apenas a “soma dos componentes analisáveis de
sua realidade”126. Ao adentrar nos questionamentos acerca deste seu horizonte ilimitado, o
homem já faz a experiência de transcender, pois reconhece que apenas uma análise finita não
alcançará tudo aquilo que ele é.
Também nesta análise Rahner afirma que o homem é sujeito, mas distingue esta
afirmação daquelas outras que a antropologia, com seus sistemas e análises empíricas podem
chegar. O homem não é sujeito apenas porque se distingue dos outros homens e das coisas e
até mesmo das realidades que o cercam e estruturam o seu ser, passiveis de verificação pelas
ciências antropológicas e que fazem parte de sua existência mesma, mas é sujeito porque é
capaz de tomar-se a si mesmo, de questionar seus próprios questionamentos, ultrapassando-se.
Rahner diz que “essa subjetividade é dado existencial irredutível que acompanha toda
sua existência particular como sua condição apriorística”127, ou seja, é um saber atemático não
sujeitado ao que é finito e nem mesmo onde o homem pode delimitar ou apontar “o lugar”
onde isso acontece, distinguindo de outros elementos que o compõe, nem tampouco é possível
dizer acerca da origem dessa realidade, como se ela fosse a soma de fatores existenciais no
homem ou produto de alguma conquista, mas é caracterizada fundamentalmente pela
afirmação de que o homem é sujeito e pessoa, e que “ele é o ser que está sempre entregue à
responsabilidade por si mesmo”128.
Contudo, não se pode conceber esta abertura do homem ao horizonte infinito a partir
do nada, nem tampouco limitar sua transcendência aos questionamentos que ele é capaz de
fazer a cerca de si e do mundo. Ele também não é o criador desta sua abertura ao infinito, nem
124 RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. p. 46. 125 Ibidem, p. 43. 126 Ibidem. 127 Ibidem, p. 45. 128 Ibidem.
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mesmo o sujeito absoluto que estabeleceu essa sua realidade, mas é portador de algo que ele
recebe de um Outro, que na Sua liberdade, dá o ser ao homem.
A este movimento de total liberdade do ser puro e simples, em que o homem, ser
finito e contingente faz a experiência transcendental, Rahner chama de graça.
2.1. A graça antecipa a palavra.
O tema da graça é fundamental para conhecer a teologia rahneriana e aprofundar o
aspecto antropológico visto acima. Ao fundamentar sua teologia numa “virada
antropológica”, em que o olhar se volta para pessoa humana, sem que deixe de ser teocêntrica,
o teólogo alemão se volta para aquilo que constitui o homem, mais do que apenas sistemas
verificáveis pelas diversas ciências humanas, mas sobretudo para aquilo que o constitui
pessoa e sujeito: Deus se comunica a si mesmo ao homem.
Esta autocomunicação divina constitui o existencial permanente do homem, que
recebe de Deus não uma comunicação de informações a cerca das coisas sagradas ou daquelas
realidades invisíveis aos olhos, mas a salvação, como experiência que se funda no fato de que
o Absoluto quis vincular a humanidade a Ele. A cerca disso, o teólogoVorgrimler, um dos
colaboradores de Rahner, explica que “uma teologia que pergunta pela salvação do ser
humano, e que busca os caminhos através dos quais a salvação atinge os seres humanos, é
uma teologia ‘antropocêntrica’, porém, nem por isso perdeu seu caráter teocêntrico”129.
Ao se autocomunicar, Deus estabelece relação com o homem e é este o evento que
fundamenta sua abertura ao infinito, que não se pauta, afirma Rahner, com
[...] a soma de uma série de progressos, cada um com caráter finito, mas ultrapassa
tudo quanto se possa conceber de finito, pois o homem está em relação com o
próprio Deus. Este mistério inefável que denominamos - Deus – não é o horizonte
sempre longínquo de nossas experiências transcendentes e da vivência de nossa
finidade; é o próprio Infinito fazendo irrupção no coração do homem que, sendo tão
finito, pode pela graça entrar em contato com o indizível Infinito130.
No texto “La palabrapoetica y elcristiano”, Rahner reconhece o atrevimento em querer
falar sobre poesia, não sendo ele poeta, mas situa sua reflexão, que não pretende ser uma
dissertação sobre análise literário-poético, mas uma reflexão teológica sobre o homem, visto
129 VORGRIMLER, Herbert. Karl Rahner: experiência de Deus em sua vida e em seu pensamento. São Paulo: Paulinas, 2006.p. 213. 130 RAHNER, Karl. O homem e a graça. São Paulo: Paulinas, 1960. p. 223.
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que a poesia fala sobre o humano e para o humano, capaz de penetrar no seu mais íntimo e
revelar aquilo que a palavra científica não é capaz de demonstrar.
Embora assuma sua condição de não-poéta, o teólogo da chamada “virada
antropológica”, reconhece que “em todos os campos do mundo, por muito diverso que sejam,
deve madurar o plantio do único Deus”131, e então se lança neste fecundo terreno poético,
onde o homem é capaz de lançar-se ao mais profundo de sua existência, evocando aquilo que
não é obra de suas próprias mãos, e nem mesmo pode ser abarcado pela sua razão.
A fecundidade para o plantio poético-teológico é obra da graça divina, como força que
“antecipa a palavra e prepara os corações”132 para que a palavra poética possa transparecer,
como fruto precioso da autocomunicação divina, onde, mais do que uma simples inspiração
ou força sobrenatural, consiste na comunicação própria de Deus em seu próprio ser, “ponto
alto da subjetividade da parte do que comunica e do que recebe a comunicação”133.
Rahner aborda o tema da palavra poética indicando sua importância como pressuposto
para o ato de ouvir a palavra da fé, pois é capaz de gerar a abertura necessária para que o
homem esteja “capacitado, exercitado e agraciado para ouvir uma palavra”134que não apenas
o informe sobre alguém ou um fato, mas que seja capaz de adentrar ao mais profundo do
humano, ao seu mistério infinito e de tornar presente o mistério silencioso de Deus em meio a
finitude da palavra humana e, embora no cerco limitado da palavra humana, a palavra poética
é “corporeidade do mistério infinito”135.
Nesta mesma perspectiva, Rahner afirma que o ouvir e dizer poéticos são expressões
próprias que brotam da intimidade do coração humano e que sem esta capacidade o homem
“já não poderia perceber a palavra de Deus na palavra humana,”136pois o poético é realidade
que alcança os abismos mais profundos do existir humano, e que “ao dizer, funda o que
evoca”, trazendo presente o mistério eterno, sem esgotá-lo ou aprisioná-lo em uma fórmula,
mas de maneira indireta, expressar com palavras aquele que “está em todas as partes
misteriosamente presente, ali de onde o fundamento de toda a realidade nos olha
silenciosamente[...], de onde o amor é experimentado como algo inefável”137.
131 Idem, La palabrapoetica y elcristiano. in Escritos de Teología IV. Madrid: TaurusEdiciones, 1962. p. 453. 132 Ibidem. p. 454. 133 Idem, Curso fundamental da fé. p. 147. 134 Ibidem, La palavra poética y el Cristiano. p. 460. 135 Ibidem. 136 Ibidem, 461. 137 Idem, La gracia como libertad. p. 27.
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Esta palavra é aquela que brota do “coração rendido e adorante ante o mistério que nos
avassala”138 e mesmo que haja homens insensíveis para a palavra poética, se se faz atento
para ouvir a Palavra de Deus, como realmente ela é e a acolhe no mais íntimo do seu coração,
de alguma maneira, mesmo que indiretamente, não está totalmente fechado a esta
experiência, pois a Palavra de Deus carrega em si o ser mais íntimo da palavra poética.
O teólogo italiano Antonio Spadaro, no seu estudo sobre a poesia no pensamento de
Karl Rahner, no capítulo em que se dedica a refletir o tema da leitura e escrita na existência
cristã afirma, fundamentado no pensamento do teólogo alemão, que o oferecimento da graça é
realidade inteiramente gratuita de Deus, independente da atitude humana, um “compromisso
irrevogável”139 em favor da pessoa, que mesmo inconsciente desta oferta ou até negando-a,
será sempre realidade presente na sua existência, localizada no fundo do coração humano,
rendido e inquieto frente à finitude, que parece sempre ser alargada, onde os limites parecem
ser sempre superados, numa atitude de constante recolocação frente a si mesmo e ao mundo.
Mesmo tentando silenciar esta graça, o ser humano faz sua “experiência em fuga”, no
sentido de que ser chamado à graça (o que não configura no pensamento de Rahner apenas
aqueles que aderiram à fé cristã pelo batismo e pertencem a “Igreja visível”), é um
“existencial permanente do ser humano”.140 Neste sentido, cabe afirmar que a palavra poética
tem suas raízes nas profundezas da realidade humana, que experimenta o inefável, aquela
realidade da qual não se pode conceituar, onde o intelecto não pode penetrar, senão para
afirmar o status de mistério. Esta experiência, mesmo conceituada de maneira avessa ao
cristianismo, anonimamente, para usar uma expressão rahneriana, configura uma experiência
permeada pela graça divina.
Rahner considera que a palavra poética é expressão que torna presente o sem-nome,
aquele que não pode ser aprisionado pelo conceito, mas que mesmo assim se desvela em
palavras nem sempre compreendidas puramente com a razão e a lógica semântica, mas que
expressa uma experiência fundante, que é o ouvir a Palavra.
Saber ouvir a Palavra, o mistério silencioso de Deus, que fala no íntimo do coração,
não é obra humana, ou esforço de interiorização, mas sim obra da graça divina, que como
vimos, nas palavras do próprio Rahner, “se antecipa à palavra, prepara os corações para essa
138 Idem, Sacerdote y poeta. in Escritos de Teología III. Madrid: TaurusEdiciones,1961. p. 333. 139 SPADARO, Antonio. La graziadella parola. Karl Rahner e la poesia. Milano: Editoriale Jaca Book Spa, 2006. p. 65. 140 Ibidem.
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palavra”141. O ouvinte da Palavra é o sujeito para o qual se dirige a mensagem do
cristianismo, e que está situado perante si mesmo e perante o mundo, num horizonte infinito
que se amplia a medida de seus questionamentos. A mensagem do cristianismo “age no
sentido de situar o homem perante a verdade real e profunda do seu ser”142, apontando para
aquela realidade misteriosa do sem-nome, o qual envolve toda sua existência.
2.2. A poesia prepara o coração para a escuta da palavra da fé.
Ao iniciar a reflexão sobre a importância da palavra poética, Rahner situa o motivo
pelo qual não pretende tratar da poesia ao lado de outras expressões artísticas e fundamenta
seu pensamento no fato de que o cristianismo é a religião da “palavra revelada e da fé ouvida
e de uma Sagrada Escritura”143, que a constitui numa relação estreita com a palavra,
sobretudo com a Palavra feito carne, o “corpo do mistério infinito”144e encontra na palavra
poética sua expressão mais próxima, como palavra que brota do coração humano “rendido e
adorante, ante o mistério que nos avassala”145.
São apresentados quatro pressupostos fundamentais para a escuta da palavra da fé,
presente na palavra evangélica, fruto da graça de Deus que antecipa sua manifestação.
2.2.1. Capacidade para ouvir as palavras do mistério.
Primeiramente é preciso ter ouvidos atentos às palavras “mediante as quais o mistério
silencioso se torna presente”146. Isso significa ser capaz de ouvir aquelas palavras, que não
apenas esclarecem sobre algo que podemos dominar conceitualmente ou que sejam
instrumentos através dos quais podemos apreender um objeto denominado. Esta palavra traz
presente o inapreensível, aquele mistério que não se pode abarcar, “o não disposto que
silenciosamente dispõe o não perceptível, o abismo em que nos fundamos, a claríssima
escuridão que abarca toda claridade do nosso cotidiano”147, Deus, o mistério permanente, que
se expressa no horizonte da humana palavra, sem que essa o defina ou desvele totalmente.
Embora possa haver humanos de coração endurecido para ouvir as palavras que
expressam o mistério silencioso e inabarcável de Deus nas palavras temporais humanas, não
restam alternativas senão tê-las como absurdas e simplesmente ignorá-las ou escutá-las com o
141RAHNER,Karl. Sacerdote y poeta.p. 454. 142 Idem, Curso fundamental da fé. p. 37. 143 Idem. La palabrapoetica y el Cristiano. p.453. 144 Idem. 459. 145 Idem, Sacerdote y poeta. p. 333. 146 Idem. La palabrapoetica y el Cristiano. p. 454. 147 Idem.
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coração sensível e capaz de se esforçar para compreender que tais palavras se lançam no
desafio de procurar dizer o inefável.
Saber ouvir as palavras do mistério é uma necessidade do cristianismo, pois consciente
de que se trata Daquele sobre o qual nenhuma palavra é capaz de dizer absolutamente, apenas
o exercício contínuo do coração, que se renova sempre numa postura arguta de que tudo o que
se diz é dito sobre a incompreensibilidade infinita de Deus enquanto mistério, que é amor que
emudece e fascina, e ao mesmo tempo, inequivocamente, se faz presente.
2.2.2.Capacidade para ouvir as palavras que tocam o coração.
Ser capaz de ouvir as palavras que tocam o coração humano é o segundo pressuposto
para ouvir a mensagem cristã. O coração é o lugar simbólico da unidade do todo humano,
destinatário da salvação. Isso não significa que tais palavras sejam sentimentais, desprovidas
de qualquer razão, nem tampouco que sejam palavras inalcançáveis pelo intelecto. Essas
palavras são aquelas que falam da mais profunda interioridade humana.
Rahner diz que essas palavras são em certo sentido “sacras e até sacramentais” e que
carregam consigo “aquilo que significam e se aprofundam criadoramente no centro original
do homem”148. A estas palavras do coração, Rahner chama de “palavras primordiais”, que são
aquelas que escapam de toda definição e que brotam do coração contemplativo.
Não é sem esforço ou naturalmente que o homem escuta esta palavra primordial, mas
é preciso que se aprenda, numa “dura disciplina e com veneração do coração que exige a
palavra ‘certeira’, a palavra que o acerta verdadeiramente e lhe atravessa, para que ferido de
morte e absorvido de bem-aventurança caia, como de um cálice, no abismo eterno do mistério
de Deus”149. É próprio da poesia ser a palavra “certeira”, que transpassa o coração humano,
brotando do seu lugar mais íntimo, carregando mais do que conceitos, mas, intensa de vida e
de experiência existencial, onde as palavras que atingem apenas a razão se veem como que
limitadas ao informativo, enquanto as palavras primordiais se equacionam ao nível da
performatividade.
2.2.3.Capacidade para ouvir as palavras que unem.
O terceiro pressuposto para ser capaz de ouvir a mensagem do cristianismo é a
capacidade de ouvir palavras que unem.
148 Idem. p. 457. 149 Idem.
49
Palavras são formas de distinção, pois ao nomear este ou aquele objeto, de alguma
maneira os tornam distintos, separando-os por meio dos conceitos, que dizem com certa
clareza o que o objeto é e o que não é, e os colocam ao lado de tantos outros, sinalizando as
diferenças. A palavra poética, como capacidade que prepara o humano para ouvir a
mensagem do evangelho, é aquela que transcende toda e qualquer forma de conceitos
distintivos, mas são “evocadoras de mistério”150, capaz de unir, reconciliar e retirar o ser
humano da solidão, e unir tudo aquilo que o toca, pois fala conhecendo o seu intimo e sua dor,
são familiares pois não só falam sobre o homem, mas à ele daquilo que lhe é familiar.
Saber ouvir as palavras autênticas, que penetram no interior do homem, é pressuposto
para ouvir a palavra evangélica, pois esta se move em torno do mistério de amor, que,
superada toda forma sentimentalista de concepção, é “a verdadeira substância da realidade
que quer se manifestar no todo, o mistério que quer descer ao coração do homem como
julgamento e salvação”151. Rahner diz que, quando os ouvidos estão fechados para ouvir as
palavras autênticas, e se perdem nas palavras que dispersam e cansam, num palavrório tantas
vezes desconexo com as realidades humanas mais profundas, pode levar o coração a morte,
pois, no fundo, o coração humano é lugar de escuta primordial de Deus, que é o verdadeiro
mistério do amor que une e vitaliza.
2.2.4.O mistério inefável presente em cada palavra.
Finalmente, Rahner apresenta o quarto pressuposto para ouvir a mensagem do
cristianismo, dizendo que é preciso perceber “o mistério inefável em meio a cada palavra”152,
onde misteriosamente pode se manifestar a palavra eterna, “na sarça da palavra humana”153.
Saber ouvir a Palavra feito carne, a mais autêntica manifestação do mistério do amor
divino, encarnado na realidade humana, é obra da “graça da fé”154, pois desprovido dessa
benevolência divina, bem como insensível e fechado para tal manifestação do mistério
inefável, o ser humano não seria capaz de reconhecer na humana, palavra a Palavra eterna.
3. O homem como ser referido ao Mistério Absoluto.
O evento da encarnação do Verbo divino é o mistério central da fé cristã, que permeia
a teologia, como realidade inesgotável, e a partir da qual, é confirmado o fato de que toda
150 Idem. p. 458. 151 Idem. 152 Idem. 153 Idem. p. 459. 154 Idem.
50
teologia que se fundamenta nesta verdade da fé é também antropologia, pois no Verbo o
homem se conhece verdadeiramente. Frente a isso, a forma como se vê a humanidade não se
encerra mais àquela fadada a uma simples existência cujo fundamento se atribui a um
emaranhado de sistemas verificáveis pelas diversas ciências. Já podemos aqui afirmar: o
homem é mais do que se pode dizer dele.
A existência transcendental do homem, o estabelece em proximidade com Deus, pois
sua composição não se encerra no biológico e psíquico, mas compreende também uma
realidade que lhe dá um “status” de pessoa e indivíduo, livre e aberto para uma realidade que,
embora experimentado no chão da história, supera e transcende à categoria de mistério.
Rahner explica que o mistério que é o homem, a partir de Deus, não é uma realidade
provisória, potencialmente a ser eliminada quando descoberta, nem tampouco o não sabido
que poderá ser desvendado, mas é a “peculiaridade que caracteriza Deus e a nós a partir
dele”155, ou seja, o mistério que o homem experimenta em Deus e em si é o que lhe é mais
devido e que o constitui como pessoa. Neste ponto é que nos é permitido refletir sobre o
verdadeiro significado de “natureza”, dado o fato de que o Verbo Eterno assumiu a natureza
humana, o evento central da fé cristã.
É fundamental que se tenha claro que toda tentativa de compreensão acerca do que
seja o homem, quando eliminada a possibilidade metafísica, gira em torno do definível. Não é
que não se possa definir nada sobre o homem, há aspectos que podem ser delimitados pelo
conceito, até certa medida, e as diversas ciências sobre o homem fazem isto, mas há de se
convir que, embora se possam delimitar alguns aspectos, há também uma realidade que não
pode ser abarcada, que esbarra no limite da capacidade científica de descrever os processos e
analisar os objetos.
Contudo, sem eliminar a possibilidade de uma recusa de sua capacidade de
transcendência, o homem é caracterizado por uma “potência de obediência” que torna
possível “estar-referido ao Mistério infinito da plenitude”156, e que na visão de Rahner, dá a
possibilidade de entender o que significa natureza humana. Ele diz:
O homem é, pois, em sua essência, em sua própria natureza, o mistério, não porque
seja em si a plenitude infinita, que é inexaurível, do Mistério para o qual tende, mas
155 Idem, Teologia e antropologia. São Paulo: Edições Paulinas, 1969. p. 67. 156 Ibidem.
51
antes porque ele, em sua essência autêntica, em seu fundo originário, em sua
natureza é a referência - pobre, mas chegada a si mesma a essa plenitude157.
Constitui a natureza humana sua referência ao Absoluto, o “para-onde” de sua
existência, dado previamente à aceitação ou não desta realidade, que fundamenta o seu ser no
existir enquanto mistério referido Àquele Mistério Absoluto. Neste sentido, enquanto
mistério, existe algo de impenetrável no humano, aquilo que não se pode dominar. Rahner diz
que é o “indomável horizonte dominador de toda compreensão que faz compreender a outra
realidade enquanto se cala como existente incompreensível”158.
3.1. A Palavra humana e o Verbo Divino.
Rahner diz que, se queremos de fato ser cristãos e não meros metafísicos, que até
compreendem o horizonte infinito do homem, mas não aponta para a verdadeira origem deste
fato, precisamos confessar que a Palavra Eterna se fez carne. Este evento da fé cristã é
fundamental para a afirmação de que a palavra humana foi “preenchida de graça e de
verdade”159e que “Deus disse a sua mesma palavra eterna na carne do Senhor”160.
O mistério da Encarnação do Senhor permite dizer que a Palavra Eterna entra na
circunscrita realidade da palavra humana, e essa, agraciada por esta realidade, é alimentada na
fonte eterna da Palavra que tudo pode dizer e ser, e se torna mais do que mera expressão
indicativa ou descritiva, mas na palavra humana se pode perceber a própria Palavra.
A palavra humana, agraciada pela encarnação do Verbo, é portadora de uma realidade
que não se encerra no seu limite próprio, mas ergue sua tenda no ambiente ilimitado do Logos
de Deus que assume a imanência do dizer ilustrativo e alarga as fronteiras de suas
possibilidades, dando força encarnatória ao dizer humano, que se torna preenchido daquilo
que proclama, e que alcançará a “sua plenitude essencial na palavra sacramental”161. Para
isso, Rahner afirma que é preciso estar aberto ao mistério do Logos encarnado, que preenche
de graça a palavra humana, onde “arde a chama do amor eterno”162.
4. O sacerdote e o poeta: ministros da palavra.
Impregnado daquele silêncio profundo, gerador de palavras originais, rendido às
realidades que porta e que nenhum conceito é capaz de definir, o poeta não é alguém que
157 Idem, Curso fundamental da fé. p. 259. 158 Idem, Teologia e antropologia. p. 67. 159 Idem, La palabrapoetica y el Cristiano. p. 459. 160 Ibidem. 161 Ibidem. 162 Ibidem.
52
simplesmente trabalha com rimas aleatórias que projetam sons com alguma beleza, ou
mesmo alguém que expõe sentimentos em frases bem articuladas.
O poeta, segundo Rahner é alguém para o qual foram confiadas as palavras
originais e que tem o “destino e o dom de dizer palavras impregnadas, de sorte que as
coisas, como redimidas e nomeadas essencialmente, se adentram na luz dos que a
escutam”.163Impregnado, o verdadeiro poeta também é aquele que proclama palavras não
simplesmente como sons bem articulados em frases rítmicas, mas é capaz comunicar a
realidade sobre a qual se refere. Neste sentido, o poeta ao dizer as palavras originais que
estão silenciosamente presentes no mais profundo do seu coração, “as fazem belas, porque
a autêntica beleza é a manifestação pura da realidade, e esta acontece sobretudo na
palavra”164. Neste sentido, não se pode deixar de fazer uma relação com o Verbo divino,
como manifestação real daquilo que enquanto Palavra é anunciado, não encerrado num
puro som ou expressão, mas o que é proclamado se faz presente.
As artes em geral, de alguma forma “anunciam com sua limitação a ilimitação
divina”, contudo, há de se sublinhar aquilo que somente a palavra primordial é capaz de
expressar, dado o fato de que ela se compreende sempre num movimento de ascensão ao
infinito “sobre todo o representável”, e assim, constitui a redenção da “última prisão das
realidades não ditas: o silêncio de sua referência a Deus”. Assim, o poeta impregnado desta
palavra capaz de trazer à luz humana as realidades ditas, se torna como que um
administrador do sacramento da palavra. Desta forma, aquele que verdadeiramente escuta
esta palavra “escuta o silêncio”, porque a palavra poética é um “lugar de evocação e
ressonância deste mistério”165e é “capaz de libertar a coisa do tal silêncio tornando-se
sacramento primordial da transcendência”166.
Rahner aproxima a vocação do sacerdote à do poeta e, salvaguardando as
diferenças, ele afirma que os dois tem em comum o ministério do sacramento que é a
palavra.
Ao sacerdote foi confiada a Palavra de Deus, da qual ele foi constituído ministro e
administrador por excelência. As palavras que pronuncia são endereçadas ao mais
profundo do humano, como uma centelha divina que penetra seu ser para ali se fazer 163 RAHNER, Karl. Sacerdote y poeta. p. 338. 164 Ibidem. 165 SPADARO, Antonio. La graziadella parola. p. 36. 166 Ibidem. p. 36.
53
presente, como única possibilidade, fora da visão beatífica de Deus, de “outorgar ao
homem a presença de Deus como Deus”167.
A palavra da qual o sacerdote é ministro não é aquela que se soma a tantas outras,
num palavrório vazio, mas por causa de sua origem (Deus disse) é que se pode afirmar que
esta palavra “é a corporeidade de sua graça”168, como palavra da fé, primeiramente
pronunciada por Deus no seu Cristo, e também por seus mensageiros, apresentado aqui
como os sacerdotes, ministros desta palavra, que a acolheram como obra do amor livre.
O sacerdote pronuncia as palavras que brotam do seu interior mais profundo, porém
sabe que estas palavras não tem origem em si, mas em Deus, no seu “inalcançável
afastamento”169 que é “esta sublimidade e inefabilidade inexpressável em mera
criatura”170. Como ministro de Deus, o sacerdote recebe dele uma palavra eficaz, a palavra
primordial, que “somente ele pode realmente expressar em sua densidade absoluta”171, e
esta por ser kerigmática, a medida em que é pronunciada, torna presente aquilo que
significa.
Ao sacerdote é confiada a palavra de Deus, porém deve-se sublinhar aquelas
palavras da consagração, onde todas as outras são senão “declarações e variantes”172, dado
ao fato de que “ali está presente aquele mesmo de quem se fala, está todo presente: céu e
terra, divindade e humanidade, corpo e sangue, alma e espirito, morte e vida, igreja e
indivíduo, passado e eterno porvir”173. Todas as outras palavras são como que um eco
destas palavras onde o Verbo eterno de Deus se faz presente, como a mais genuína e fontal
palavra operante de Deus.
Embora impregnado da palavra de Deus, capaz de operar aquilo que anuncia, o
sacerdote, diferentemente do poeta, mesmo que assuma uma postura de indiferença com
essa palavra e não se deixe mais tocar por ela, mesmo quando seus atos não alcançam o
que sua boca afirma, continua a anunciá-la e o que realiza continua a ser a obra santa de
Deus, pois sacramentalmente participa por toda sua vida da vida de Cristo, do qual foi
constituído ministro. Mesmo que indiferente e incrédulo, ao dizer “Isto é meu corpo, isto é
167 RAHNER. Karl. Sacerdote y poeta. p. 340. 168 Ibidem. p. 341. 169 Ibidem. p. 346. 170 Ibidem. 171 SPADARO, Antonio. La graziadella parola. p. 60. 172RAHNER, Karl. Sacerdote y poeta. p. 343 173 Ibidem.
54
o meu sangue”, o sacerdote, pela graça sacramental a ele confiada, realiza o que
proclama,suas palavras não são informativas, ele não fala sobre um acontecimento do
passado, como que um narrador de fatos antigos, mas traz presente e celebra o mistério da
oblação do Filho de Deus. Assim, as palavras proclamadas pelo sacerdote não correm o
risco de caírem na banalidade, nem mesmo de deixar de ser realmente a Palavra de Deus,
pois, “fundada em Cristo sua própria personalidade, diz o que ele disse, a saber, a si
mesmo como nossa oferenda”174.
Contudo, mesmo não diminuindo em nada a dignidade e a sacramentalidade
daquilo que proclama, quando as palavras não correspondem ao que vive, o sacerdote
deixa de ser poeta, pois o verdadeiro poeta é aquele que é capaz de dizer palavras que
“ascende do coração para a boca”175 como expressão vital daquilo com que se envolve e se
volta. Ele pode dizer a Verdade de Deus, porém essa verdade pode não se transformar em
sua verdade.
O sacerdote, quando voltado para a palavra que proclama, deixando-se envolver
pela graça da qual a palavra esta impregnada, também é poeta. Já o poeta, embora não se
torne sacerdote porque proclama palavras primordiais, é ministro da palavra porquanto
proclama aquelas palavras do coração rendido, permeado de saudade, densa de sentido,
cuja definição extrapola a razão, e consciente ou não, o poeta diz daquela realidade
misteriosa inominada, cuja origem está além de si.
O poeta é inquieto e sedento de plenitude, as palavras que proclamarevelam o seu
ser mais íntimo, suas dores mais profundas, e mesmo suas palavras mais brandas e doces,
podem revelar saudades e dores por vezes impronunciáveis. “Sua palavra está, pois,
invocando outra palavra: a que dá resposta, a palavra operante que sacia as saudades, a
palavra de Deus”176.
Mesmo indiferente ou arredio à realidade da fé, o poeta é um insatisfeito com
ânsias de eternidade. Há inúmeras perguntas que o cerca e que carecem de respostas,
aquelas mesmas apontadas por Rahner como, em última instância, só se chega a resposta
na palavra de Deus.
174 Ibidem. p. 344. 175RAHNER, Karl. Sacerdote y poeta. p. 345. 176 Ibidem. p. 354.
55
O ouvinte da Palavra é propriamente o título de um capítulo da conhecida obra de
Rahner chamada de “Curso fundamental da fé”, onde o autor, ressaltando o caráter
antropológico da teologia, inicia a primeira seção do seu estudo sobre a fé a partir daquele
que é o destinatário da Palavra de Deus, acentuando o fato de que o homem é perpassado
por ela e que esta Palavra,
[...]age no sentido de situar o homem perante a verdade real e profunda do seu ser,
verdade a que permanece inevitavelmente preso, ainda que tal prisão seja, em
última análise, a infinita amplidão do incompreensível mistério de Deus177.
Para que a Palavra de Deus aja afim de “prender o destinatário, é fundamental que
este esteja exercitado, preparado para este enlace, onde a palavra proclamada não esclarece
apenas o Ser divino, mas sobretudo é a corporeidade do seu mistério infinito178. Esta
palavra é a palavra poética, como fidedigna forma de expressão da Palavra divina, pois esta
“leva em seu ser mais íntimo a palavra poética”179.
Introduzindo sua reflexão sobre a palavra poética, o teólogo da “virada
antropológica”, justifica o seu ponto de partida, que não é exatamente a poesia, mas a
reflexão teológica sobre o homem, cuja abertura à Palavra revelada não seria possível sem
a graça divina que se “antecipa a palavra, prepara o coração para a palavra”180,e neste
sentido, a palavra da fé, que é palavra que não fala somente ao intelecto, mas fala
diretamente ao coração do homem, como “de coração para coração”181, fala ao homem
inteiro, não é apenas palavra técnica ou descritiva, mas palavra que fala do mistério, diz
sobre o indizível, sobre o inefável. Aqui, a palavra poética, como palavra do coração (não
apenas mero sentimentalismo), que emana do mistério humano, é expressão privilegiada da
palavra divina.
5. A Densidade da palavra poética.
Clareando esta relação entre a palavra poética e a palavra da fé, Rahner afirma que:
[...] o dizer e ouvir poéticos pertencem tão intimamente a essência do homem que,
sem esta capacidade essencial do coração teria desaparecido verdadeiramente por
177RAHNER, Karl. Curso Fundamental da fé.p. 37. 178 Cf. Idem, La palabra poética y elcristiano. p. 460. 179 Ibidem, p. 462. 180 Ibidem, p. 454. 181 Ibidem, p. 457.
56
completo, o homem já não poderia perceber a palavra de Deus na palavra humana 182.
Rahner ao tratar da realidade da palavra, a retira de uma compreensão simplista,
que a compreende apenas exteriorização sonora do pensamento, porém afirma,
fundamentando-se na doutrina escolástica sobre a unidade substancial de corpo e alma, que
a palavra é um “pensamento encarnado”183. Neste sentido, ele também afirma que não
apenas podemos entender que a palavra é a forma corporificada do pensamento, como se
este antecedesse a palavra, mas que esta, a palavra, é
[...] a corporeidade em que primeiramente existe, esculpindo, aquilo que agora
pensamos e experimentamos. Melhor: a palavra é o pensamento corpóreo (não só a
corporeidade do pensamento), e por isso mesmo é mais que o pensamento e
originalmente anterior a ele, como o homem, um e total, supera e antecede a alma e
ao corpo, individualmente considerados184.
5.1. Palavras primordiais.
Ao considerar a importância da palavra, distinguindo suas muitas possibilidades, de
unir, explicar, aclarar, obscurecer, etc, o teólogo alemão aponta pra aquilo que ele chama
de protopalavras ou palavras originais, que são aquelas que brotam do coração permeado
por um mistério insondável, ao qual não se podem especular definições claras e objetivas,
já que estas não correspondem simplesmente a conceitos sobre coisas, ou meros signos
para descrever objetos, mas, “revela um fragmento de realidade, pela qual se nos abre,
misteriosa, a porta que conduz a insondável profundidade da autêntica realidade”185.
Assinalando as importantes peculiaridades das protopalavras, há de se destacar o
fato de que estas estão em profunda relação com aquele que as dizem, isso porque as
protopalavras trazem à tona a realidade enunciada, que o que diz possui o dito, mas o que
foi dito, de alguma forma, também possui o que diz e “por ela se insere o conhecido na
órbita existencial daquele que conhece, e este ingresso traz uma plenitude de realidade do
próprio conhecido”186. Neste sentido, Rahner aponta para o fato de que, o objeto existe
porque é conhecido, não que o que não é conhecido deixa de existir, mas porque quando é
182 Ibidem, p. 461. 183 RAHNER, Karl. Sacerdote y poeta. p. 332. 184 Ibidem. p. 332 185 Ibidem, p. 335 186 Ibidem, p. 336.
57
conhecido, o objeto alcança sua plenitude de ser, assim como os homens, conhecidos por
Deus, encontram a plenitude de sua existência.
Segundo Rahner, a palavra é o “sacramento universal pelo qual as coisas se
comunicam ao homem”187, com isso compreende-se a densidade da palavra da revelação
cristã, que não traz apenas informações sobre as realidades divinas, mas traz em si aquilo
que significa, torna presente no ouvinte sua realidade mais profunda, e fala diretamente ao
coração, não apenas à mente, e por ser palavra original, portadora de realidade, torna
possível a intimidade com o Verbo encarnado, Palavra Eterna pronunciada para a
humanidade.
6. A missão do autor como atividade de relevância cristã e a existência humana.
No texto sobre a missão do escritor e a existência humana, Rahner sublinha a
importância do autor como uma “atividade humana de relevância cristã”188e isso não implica
em dizer que não haja autores que não sejam confessamente cristãos ou que possam rechaçar
esta condição, mas a afirmação rahneriana se fundamenta no fato de que todo autor,
consciente ou não, está impulsionado pela graça divina, mesmo que não seja batizado ou que
não pertença socialmente a Igreja visível, ou até mesmo que não queira reconhecer esta
condição, há um chamado permanente da graça de Cristo que permeia sua existência.
Rahner distingue a existência humana em duas realidades, que explicam a forma como
ele compreende o chamado à graça, sendo essa uma característica do existencial permanente
do homem, diferentemente das circunstancialidades casuais, que passam pela adesão ou não,
por exemplo, à profissão de fé.
A afirmação de que todos os homens são chamados à graça de Cristo, como realidade
que pertence ao seu existencial permanente, não depende de aprovação ou não, já que
pertence a liberdade de Deus para amá-lo, mesmo em meio a sua recusa ou desconhecimento.
Nenhum homem poderá impedir o amor de Deus e nem mesmo sua absoluta oferta de si sem
reservas, pois pertence ao “compromisso irrevogável de Deus em seu favor”189.
Ser ou não batizado, assim como, pertencer ou não à Igreja, pertence à realidade das
circunstancias casuais, onde, embora haja a oferta divina e o chamado à graça, depende da
187 Ibidem, p. 337. 188 Idem. La missiondel escritor y laexistencia humana. In Escritos de Teología VII. Madrid: TaurusEdiciones, 1967. p. 416. 189 SPADARO, Antonio. La graziadella parola. p. 65.
58
aceitação humana ou não. Porquanto seja permanente a oferta e o chamado como existencial
humano, há também liberdade de adesão. Quanto ao existencial permanente do homem,
Rahner diz que se verifica no fato de que:
[...] as dimensões de sua existência estão sempre abertas ao infinito, de que tudo é
penetrado e capturado por uma transcendência de si mesmo prevista anteriormente a
livre decisão mediante a graça presente ao menos enquanto chamado, possibilidade e
convite, de que toda existência humana se apoie unicamente no abismo do mistério
que é o amor absoluto190.
Enquanto chamado à graça, nenhum homem pode evitar ser cristão, pois esta é uma
realidade e o seu existencial permanente. Contudo, o esquivo desta realidade não o isenta de
sua condição cristã, mas o torna um cristão anônimo, “que nega a si mesmo”191 ou rechaça
essa sua condição pela indiferença, descrença ou mesmo ignorância.
O autor, quando fala do homem, superando os limites das ciências da natureza e
abrindo as perspectivas de compreensão de si e de sua realidade, quando se utiliza de
abstrações, analogias e metáforas para perscrutar o mais íntimo humano e sua unidade,
mesmo que não alcance sua totalidade, dado a complexidade deste intento, este se transforma
em um autor cristão.
Quando um autor pretende ter, ou ao menos se lança neste intento e de alguma
maneira procura expressar ou refletir sobre o conjunto da existência humana, ele “fala como
cristão”192, e isso pode ser apenas como um cristão anônimo, sem nenhuma referencia a fé
cristã, ou até mesmo sem pretensão religiosa, mas se tratando da existência humana, não se
pode “passar realmente por alto a Cristo”193.
Um autor pode ser cristão de diversas formas.
Sob o prisma da possibilidade de o autor ser cristão, Rahner apresenta a tese de que
essa realidade pode se dar de diversas formas, desapegado da teoria de que um autor, pra ser
cristão precisa confessadamente se apresentar assim.
Um autor quando reconhece sua capacidade e escreve de acordo com sua circunscrição
intelectual e, modestamente, disserta sobre temas do cotidiano, contribuindo para uma visão
190 RAHNER, Karl. La missiondel escritor y laexistencia humana. p. 417 191 Ibidem. p. 418. 192 Ibidem. p. 421. 193 Ibidem.
59
plural da realidade e do mundo criado “cuja unidade última está escondida como mistério”194,
e não procura pretensiosamente dar uma última palavra sobre a existência, reconhecendo sua
contribuição, mas também seu limite, se expressa como cristão, mesmo sem referência
explícita a Deus. Desta mesma forma, quando um autor não se apressa em responder a todas
as questões existenciais, apresentando soluções para todos os questionamentos humanos, e até
mesmo afirmando sua insolubilidade, rechaçando o caráter misterioso da vida e tomando
consciência de sua finitude frente ao mistério sobre o qual algumas perguntas permanecerão
em aberto, sua postura é cristã, porque trata daquele dialogo da humanidade que não cessará
nunca. Sobre isso Rahner afirma:
Quem não está disposto a suportar isto na vida e nas criações literárias, não
experimenta na vida outra coisa que um precipitado e contínuo ‘corte’
transversal em que nada encontra a plenitude madura de seu ser: nem a
pergunta nem a resposta. Porém, de onde se suporta humilde e
obedientemente a pergunta com plena abertura se tem ali mesmo a resposta,
mesmo que todavia oculta, mesmo que todavia sepultada no silêncio, da
mesma forma que na cruz e no sepulcro da Sexta-feira Santa se conquisto já
antes da Páscoa, o triunfo da vida195.
Outros escritores, sem que tenham feito uma reflexão teológica ou cristã, expressam
em seus escritos realidades próprias da fé cristã, sem que essas estejam explicitamente
presentes em suas obras, mas que são capazes de tratarem destas realidades e comunicarem
aos leitores elementos desta mesma fé, de maneira atraente e de fácil assimilação, que às
vezes os escritos confessionais não conseguem. Rahner ainda afirma a importância de “educar
nossos ouvidos”196 para compreender onde, anonimamente, se apresentam os conteúdos da fé
cristã em escritos que não se apresentam assim, ou ao menos não são conscientemente
cristãos, mas que perscruta a alma humana numa viagem não somente a um universo
desconhecido a ser descoberto, mas se convence do mistério que permeia toda existência, e se
rende à contemplação desta realidade.
194 Ibidem. p. 426. 195 Ibidem. p. 427. 196 Ibidem. p. 428.
60
CAPÍTULO III
O DIÁLOGO ENTRE TEOLOGIA E LITERATURA
A poesia, a teologia, a história, e grande parte do que falamos todos os dias
sobre o mundo em termos de nossa preocupação prática, são exemplos de
modos de discursos em que se aproxima, em graus diferentes, para uma
expressão mais completa da existência, entendida tanto como eu e como
mundo197.
1. Um caminho a percorrer.
Ao se tratar de teologia e literatura, é certo que estamos entrando em campos vastos e
com pesquisas já bem fundamentadas e caminhos bem traçados. Também com relação ao
diálogo dessas duas epistemologias, não pretendemos inaugurar nenhuma reflexão, mas é
importante sublinhar os caminhos já percorridos e reflexões preciosas que já vem sendo
feitas, sobretudo no Brasil, com a obra de Manzatto198, que abre este caminho a partir da
reflexão sobre o encontro de teologia e literatura a partir dos romances de Jorge Amado, e
tantos outros que se encontram neste certame, no desafio de uma teologia contextualizada,
capaz de se entrelaçar com a vida humana, nos percalços da história, cultivando
conhecimento encarnado que fala de Deus no entrelace da vida dos homens.
Para que todo diálogo possa ser efetivo, é imprescindível a abertura para afetar e ser
afetado por aquilo que cada um dos interlocutores oferecem como elemento para o debate.
Assim, é verdade que depois de se propor ao diálogo, tanto teologia quanto literatura não
serão mais as mesmas, no sentido do que essa dinâmica acrescenta, no entanto também é
verdade, como diz Alex, que vale a fórmula de Calcedônia, “unidade sem confusão”, onde
“teologia continua seguindo como teologia, como a literatura se mantém literatura”199.
Seguiremos apresentando alguns elementos importantes sobre a teologia e literatura,
como formas distintas de conhecimentos, e em seguida procuraremos estabelecer alguns
elementos metodológicos relevantes para o diálogo, baseados nas obras de teólogos que já de
maneira árdua se dedicam a esse intento. 197 MACQUARRIE, John. God-Talk. El AnalisisdelLenguage y la logica de la teologia. p. 84. 198 MANZATTO, Antônio. Teologia e literatura. Reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994. 199 VILLAS BOAS, Alex. Teologia e poesia. A busca de sentido em meio às paixões em Carlos Drummond de Andrade como possibilidade de um pensamento poético teológico. Sorocaba, SP: Crearte, 2011. p. 13.
61
2. A relevância da teologia.
É natural da fé o desejo pela razão, portanto não se sustenta apenas numa crença
irracional, nem tampouco numa oposição à razão, mas intima o crente ao conhecimento. No
seu conhecido axioma “fides quaerensintellectum”, Santo Anselmo não apenas procura
estabelecer uma relação entre fé e razão, mas afirma ser da natureza da fé o desejo pela razão,
não para racionalizar a fé, o que poderia torná-la infértil e esvaziaria seu caráter de graça e
mistério, nem tampouco para provar sua existência, já que a busca pelas razões da fé exige
primeiramente a convicção de que esta seja realidade presente, pois “exatamente porque nós
possuímos a certeza da fé, devemos buscar a fideiratio”200, e toda investigação racional não é
outra coisa senão uma forma de alimentar a alegria de conhecer201, “e pôr-se a procura
daquilo que ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer”202. É neste sentido que
encontramos a possibilidade da teologia, como ciência que se dedica a compreender as razões
da fé, estabelecendo o papel da razão, não como capaz de dar um juízo sobre a fé, mas “saber
encontrar um sentido, descobrir razões que a todos permitam alcançar algum entendimento
dos conteúdos da fé”203. Embasado na teologia anselmiana Barth afirma:
Para Anselmo, assim como para toda a igreja primitiva (incluindo a
ortodoxia da reforma protestante) o credere em si nunca foi um tendere in
Deum ilógico, irracional e, em relação ao conhecimento, totalmente
deficiente, apesar da contínua ênfase em seu caráter distinto como
obediência e experiência. Visto que fé é fé em Deus, e portanto, realmente fé
no que é certo, ela é a própria ação da vontade – devida a Deus, ordenada
por Deus e conectada à ‘experiência’ de salvação204.
Embora a fé e a racionalidade humana sejam modalidades distintas de resposta às
realidades humanas, não há oposição entre elas, aliás, para a fé, abandonar o desejo de dar
razões a si é não considerar sua própria natureza, elas são “como que as duas asas pelas quais
o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”205. Há necessidade do equilíbrio
entre essas duas realidades, para que não hajam desvios quanto suas autênticas formas de
apreensão do mundo. A razão como única forma de compreensão da realidade pode figurar-se
200 BARTH, Karl. Fé em busca de compreensão. Fides quaerensintellectum. 3.ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2006. 201Ibidem. p. 26. 202 JOÃO PAULO II. Fides etRatio. Carta Encíclica. São Paulo: Paulinas, 1998. p. 59. 203 Ibidem. 204 BARTH, Karl. Fé em busca de compreensão. p. 30. 205 JOÃO PAULO II. Fides etRatio. p. 5.
62
num humano fadado ao finito, sem perspectivas metafísicas capaz de lhe oferecer sentido e
ampliar os horizontes numa crença de que a razão absoluta é única forma de conhecimento.
Por outro lado, a fé quando destituída da razão leva a um “fideísmo” perigoso e alienante,
capaz de grandes atrocidades em nome de Deus, numa fé totalmente subjetiva e emocional,
incapaz de transformar a pessoa e a realidade a sua volta, o que torna o ato de crer
simplesmente um mito ou superstição, sem relações concretas com a realidade.
A teologia, no entanto, como ciência da fé, procura estabelecer racionalmente os
elementos que constituem sua forma de compreensão da Revelação, que é fonte do
pensamento teológico e de onde parte a reflexão sobre a fé cristã. Aqui é importante sublinhar
o fato de que, embora se diga que a razão é um elemento fundamental da elaboração
teológica, ela não é o sujeito que busca, mas deve estar aberta para a recepção da palavra que
Deus dirige à humanidade206. Neste sentido, Deus é o sujeito que se revela, e assim “a fé reta
orienta a razão para se abrir à luz que vem de Deus, afim de que ela, guiada pelo amor à
verdade, possa conhecer Deus de forma mais profunda”207.
Importante destacar aqui, quando falamos em fé não estamos tratando apenas de um
elemento da constituição humana universal, mas tratamos especificamente da fé cristã, e, por
conseguinte, da teologia cristã. Neste sentido, é a partir do evento Cristo que se desenvolve a
reflexão teológica sobre Deus, o homem e o mundo.
2.1. Fontes da Teologia.
A fonte da teologia é a Revelação, compreendida a partir de um tripé: Sagradas
Escrituras, Tradição eclesial e Magistério eclesiástico208. Aqui estão os conteúdos da fé e as
definições dogmáticas às quais os crentes professam como conteúdos de sua fé cristã católica.
A Revelação divina é compreendida neste tripé justamente para salvaguardar sua
dinamicidade, ou seja, a Revelação não significa um evento letárgico que recorremos pra
compreender a ação de Deus no passado apenas, mas é Palavra de Deus em relação com o
hoje da história, pois é falante e atuante. Assim, as Sagradas Escrituras e a Tradição,
derivadas da mesma fonte divina209 e o Magistério vivo como serviço à Palavra de Deus210,
atualizando o que a Igreja crê ao longo da história, compõem o depósito da fé.
206 Cf. FRANCISCO. LumenFidei. Carta Encíclica. São Paulo: Paulinas, 2013. 36. 207 Ibidem. 208 Cf. DEI VERBUM. 209 Cf. Ibidem. 9.
63
Outras ciências também são colaboradoras importantes para a reflexão teológica,
como a antropologia, sociologia, psicologia, filosofia, artes, mais especificamente a literatura
como objeto de estudo deste trabalho, e tantas outras mediações humanas que enriquecem a
compreensão da fé. Embora de alguma maneira afetada por diversos outros saberes, a teologia
continua a ser teologia, com sua identidade intocável e sem se tornar submissa as outras
ciências ou até mesmo dependente delas. Também nesta relação entre teologia e outros
saberes, não há da parte da teologia nenhuma tendência em submeter às outras ciências à sua
forma de compreensão da realidade.
Quanto ao método da teologia, entramos num terreno vasto, já que cada teólogo
procura elaborar sua reflexão a partir de questionamentos plurais, utilizando de diversos
horizontes de conhecimento, a partir de apreensões também plurais da realidade.
Embora a multiplicidade metodológica, deve-se ater a uma modalidade que abarque
todas as outras, ou que corresponda de maneira geral às muitas formas de elaboração
teológica. Roger Haight chama este método de correlação211, que se fundamenta na distinção
entre revelação original e revelação dependente.
Revelação original tem sua fonte nas Escrituras como elemento primordial da fé cristã
e correlaciona-se com a revelação dependente que “é a contínua comunicação e recepção da
revelação na comunidade”212, como conteúdo dinâmico porque é constituído pela realidade
“existencial e histórico-social”213. Em suma, este método procura relacionar o auditusfidei, ou
seja, a escuta atenta das fontes da Revelação com a contemporaneidade, procurando responder
às realidades presentes, dinamizando os conteúdos da fé e atualizando sua expressividade e
compreensão, para que a teologia não seja mero fazer histórico, repetindo os conteúdos
definidos no passado, mas seja também profética, capaz de dizer uma palavra relevante para
os homens de hoje.
Haight ao tratar da correlação apresenta quatro atributos concernentes a este método,
que ele diz não ser mais “um método”, mas “o método” em teologia e que inclusive abre
perspectivas para nossa reflexão a cerca da pertinência do pensamento teológico para a
compreensão da realidade, e mais especificamente, na relação com a literatura, como forma
210 Cf. Ibdem. 10. 211 Cf. HAIGHT, Roger. Dinâmica da teologia. São Paulo: Paulinas, 2004. 212 Ibidem. p. 213. 213 Ibidem.
64
plural de apreensão teológica, salvaguardando a pluralidade e o diálogo com as diversas
ciências e realidades temporais, com as quais a teologia compõe sua expressividade.
Primeiramente aponta para a necessidade de o método em teologia ser apologético, e
aqui não apenas no que concerne à demonstração das verdades cristãs, mas sobretudo, porque
a teologia deve abordar as questões referentes a cultura para a qual se dirige, para que seja
inteligível às diversas épocas e povos e assim, “a dimensão apologética de um método de
correlação é necessária à autocompreensão dos cristãos em qualquer época”214. Seguindo este
elemento, um método de correlação deve ser dialógico, ou seja, deve confrontar os símbolos
tradicionais com o mundo experiencial contemporâneo. Citando Paul Tillich, Haight trata do
interprete desse diálogo, o teólogo, que confecciona sua estrutura hermenêutica afetado pela
realidade cultural do seu tempo e assim essas “questões determinam as respostas, mas no
tangente à forma das interpretações teológicas, e não ao conteúdo que é mediado pela
revelação através de seus símbolos fundacionais”215. O questionamento crítico do diálogo é
uma forma de compreensão dos símbolos da fé, e a elaboração de perguntas a partir da
vivência cultural atual serão elementos fundamentais para que o método em teologia avance
para um aprendizado, e não há outro caminho para aprender senão fazer perguntas e procurar
de alguma maneira respondê-las. Em teologia, o diálogo com a realidade cultural atual é uma
forma relevante de aprendizagem da fé, haja vista que a fé que advém da Revelação se dá na
história humana concreta e se realiza plenamente na pessoa de Jesus de Nazaré, Deus e
homem plenamente.
Por fim, o método de correlação em teologia caracteriza, em termos universais o
método teológico, pois dado a dinâmica da história, não se pode pensar num pensamento
teológico único e estático, mas para continuar a falar aos diversos tempos e culturas, a
teologia precisa responder aos novos questionamentos que surgem em cada tempo, onde os
elementos da Revelação se relacionem com a história contemporânea afim de dizer da ação de
Deus e sua pertinência para o homem de hoje. Desta forma, a teologia se compreende sempre
como instrumento capaz de desvelar a atuação de Deus na história humana, elaborando em
termos racionais suas formulações, que para serem compreendidas, não podem estar aquém da
realidade.
214 Ibidem. p. 214. 215 Ibidem. p. 215.
65
O diálogo entre teologia e literatura que é objeto de nossa reflexão neste capítulo, se
apresenta dentro de um processo de contextualização da teologia, como ciência da fé, mas não
de uma fé desencarnada, alienada da história, mas profundamente enraizada nos mais variados
contextos, fundamentada no advento do Verbo divino e no caminho exodal da pessoa
humana216, e desta maneira, “essa estrutura histórica que confere à teologia uma carga
militante, que a leva a dizer-se não só na forma do ensaio científico, mas também na forma do
discernimento pastoral e do testemunho espiritual”217.
2.2. Revelação na história.
Ao se tratar da história como lugar da Revelação, não nos referimos a uma história
apenas do passado, o que resultaria numa Revelação estática, de onde se tira informações
preciosas, mas que não se aplicaria às realidades humanas em diversas épocas. Trata-se aqui
da história humana, que se dá numa dinâmica onde se entrelaçam transcendência e imanência,
graças ao Verbo divino que atua na história de maneira definitiva, e por quem tudo foi criado,
e também por quem tudo é sustentado. A vida efervesce na história, lugar também da
manifestação divina, assumida pelo Verbo como história da salvação. Hans Urs Von
Balthasar ao tratar da história da salvação e do encontro definitivo entre o eterno e o finito,
cita a relação obediencial entre Jesus e sua mãe. O menino Jesus quando crescia
humanamente era obediente a sua mãe, que por sua vez, aos pés da cruz foi “incorporada à
obediência do Filho, que tudo inclui sem resíduos. Na relação de mãe e filho se desenvolve o
encontro mais íntimo e mais concreto entre história divina e humana”218 .
A história, como lugar onde a vida acontece, é composta por realidades ambíguas, por
conhecimentos e desconhecimentos, alegrias e sofrimentos, vida e morte, e tantas outras
realidades que a dinamizam e que por isso também exigem da teologia um olhar apurado, para
perceber a epifania divina costurada nas mais diversas realidades. A teologia como ciência da
fé, estruturada na Revelação de Deus, não pode ser indiferente ao movimento da vida, que
216 FORTE, Bruno. Teologia em diálogo. Para quem quer e para quem não quer saber nada disso. “Assumir a consciência histórica não será, para a teologia, renunciar a memória do Eterno, mas vive-la de modo a que, nela, o advento realmente se manifeste no caminho exodal da pessoa humana. A existência teológica unirá a fidelidade ao mundo presente à fidelidade ao mundo que há de vir: será um dizer o advento com as palavras do êxodo e um preencher o caminho exodal das pessoas com o impacto do advento da Transcendência; um pensar o êxodo humano enquanto determinado pelo advento divino e junto com o advento divino, enquanto mediado pelas palavras e pelos eventos da condição humana.”. p. 40. 217 Ibidem. 218 BALTHASAR, Hans Urs Von. Teologia da história. São Paulo: Novo Século, 2005. p. 47.
66
acontece senão no chão concreto da história humana, como o lugar da Palavra de Deus e do
seu agir.
3. A relevância da literatura.
A literatura é um olhar sobre o mundo, é uma forma de compreensão não científica,
mas não menos real sobre as coisas, pois contempla a realidade de forma a vê-la num
conjunto que une realidade e imaginação, capaz de expressar o universo humano e suas mais
variadas possibilidades. É interessante constatar que a literatura encontra sua razão de existir
na necessidade de expressar um olhar sobre o real, pois o autor não se põe como um apático
frente ao seu mundo e à sua época, mas problematiza utilizando dos recursos da linguagem, os
diversos elementos que compõe a sociedade.
O literato e sociólogo Antônio Candido afirma que a obra literária “corresponde a
certas necessidades de representação do mundo” que deve ser conduzida pela liberdade de
expressão, sem o apego em relatar com precisão os elementos a que se refere, ingressando no
mundo ilusório, que não conduz a uma forma de alienação, mas “se transforma dialeticamente
em algo empenhado, na medida em que suscita uma visão de mundo”219. Ademais, Candido
na obra “Literatura e sociedade” procura estabelecer não um conceito sobre o significado de
literatura, mas como expressão da sociedade, apresenta sua capacidade de interação entre
ficção e real. Baseado no pensamento de Malinowiski, antropólogo polonês do século XIX,
que aponta para a importância de compreender o conjunto das realidades sociais para entender
situações pontuais, quando trata da importância de ler os mitos no seu contexto, para não se
apegar a uma postura puramente utilitarista nem tampouco a uma concepção de que é apenas
fruto do ócio descomprometido e lúdico. Desta forma, Cândido sublinha a importância de
compreender a literatura como expressão que coaduna ficção e real:
A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de
uma estilização formal da linguagem , que propõe um tipo arbitrário de ordem para
as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à
realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à
sua configuração, e implicando em uma atitude de gratuidade220.
Esta gratuidade de que nos fala Cândido deve ser entendida tanto com relação ao
escritor, como construtor de uma visão de mundo, que passa pelas suas experiências com o
219CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 8.ed. São Paulo: T.A. Queiroz; Publifolha, 2000.p. 47. 220 Ibidem. p. 49.
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real, afetado por elementos sociais, psicológicos, emocionais, etc, quanto pelas do leitor, que
não recebe passivamente a obra, mas a envolve no seu “mundo”, pelo fato de a palavra na
literatura ser falante, no sentido de que é provida de movimento e, embora seja ressonância de
diversos contextos e também da criatividade do autor, também a verdadeira literatura
consegue se “desgarrar” do seu chão original e alcançar outros “lugares”:
A grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende da sua relativa
intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da função total que
é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a prendem a um momento
determinado e a um determinado lugar221.
No que se refere a utilidade da literatura Pound afirma que ela “não existe num
vácuo”222 e que os escritores tem “uma função social definida”223, eles estão inseridos em
realidades concretas e tratam de realidades concretas, embora se utilizem de personagens,
metáforas e elementos do imaginário, mas mesmo assim, se articula com fatos da vida
humana e caminha pelo chão da história de povos e culturas, sendo expressão de épocas,
lendo acontecimentos a partir de diversos prismas e refletindo temas importantes, de grande
relevância para a vida humana.
Tamanha é a importância da literatura para a composição de um povo, sua estabilidade
e projeção de futuro, assim, Pound diz que “se a literatura de uma nação entrar em declínio a
nação se atrofia e decai”224 pois perde sua capacidade linguística como a principal forma de
comunicação. Neste sentido, afirma inclusive que um povo que se habitua a uma má
literatura, e, por conseguinte não articula corretamente seu idioma e expressividade
linguística, fica fadado a perder o “pulso de seu país e de si próprio”225. Diz ainda:
O homem lúcido não pode permanecer quieto e resignado enquanto o seu
país deixa que a literatura decaia e que os bons escritores sejam desprezados,
da mesma forma que um bom médico não poderia assistir, quieta e
resignadamente, a que uma criança ignorante contraísse tuberculose
pensando que estivesse simplesmente chupando bala226.
221 Ibidem. p. 53. 222 POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad.: José Paulo Paes e Augusto de Campos. 11 ed. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 36. 223 Ibidem. 224 Ibidem. 225 Ibidem. p. 38. 226 Ibidem. p. 37.
68
A literatura como linguagem densa de significado227, perpassa por épocas, culturas,
sociedades, trata de temas diversos, se interessa por diversos saberes, olha o homem nas suas
várias possibilidades de compreensão e sua realidade circundante, mesmo aquela realidade
corriqueira, a mais comum.
3.1. A Poesia como forma de pertencer ao mundo.
No tocante ao discurso poético, dentro do contexto literário, cabe dizer que embora
seja também expressão dessa relação entre realidade e ficção, e que o poema também exerça
uma função expressiva quanto ao contexto circundante do poeta, que “sente” a realidade, mais
do que procura compreendê-la objetivamente, na poesia a “linguagem celebra a si mesma”228,
não cabendo em um discurso descritivo da realidade nem tampouco “aumenta o conhecimento
dos objetos”229. Embora a criação do poema passe inevitavelmente pela forma de apreensão
do mundo do poeta, e assim, passa também pelas suas emoções e forma de “sentir” o mundo,
não cabe reduzí-lo a um discurso sentimentalista e emocional, sem validade para a
compreensão das coisas e do mundo. O poema coloca em cena a forma do poeta de apreender
o mundo a partir de um universo metafórico, denso de significados, onde a palavra não é mera
marionete que dança nas estrofes do poema, mas “presentificam” um mundo interior capaz de
elevar a compreensão da vida e dar corpo àquelas experiências que o discurso descritivo e
científico não alcançam.
Paul Ricoeur critica esta forma reducionista que considera o discurso poético apenas
emocional, mas enfatiza sua importância como nossa múltipla forma de pertencer ao mundo:
O discurso poético também está no sujeito do mundo, mas não dos objetos
manipuláveis de nosso ambiente cotidiano. Ele se refere às nossas maneiras
múltiplas de pertencer ao mundo antes que nos opuséssemos às coisas a título de
‘objetos’ dando de frente para um ‘sujeito’. Se nos tornamos cegos para essas
modalidades de enraizamento e de pertencimento que precedem a relação de um
sujeito com objetos é porque ratificamos de maneira não crítica um certo conceito de
verdade, definido pela adequação a um real de objetos submetido ao critério da
verificação e da falsificação empíricas230.
227 Cf. Ibidem. 32. 228 RICOEUR, Paul. Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia. Trad.: Nicolás Nymi Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 186. 229 Ibidem. p. 187. 230 Ibidem. p. 188.
69
A poesia transfigura a realidade dando a ela contornos não menos reais, mas celebra
certa transgressão da escrita, onde dizer o que uma coisa é ou responder a questionamentos
não satisfazem o poeta. Na verdade “sair de campos fechados poderá ser uma das
‘reinvindicações’ da poesia, manifestando-se por uma tentativa de ‘revolta da língua’”231.
No primeiro capítulo deste estudo tratamos da imaginação como festa dos sentidos,
onde o ser humano dá vida ao universo latente interior, alçando voos e desbravando mundos
onde a obrigação dos critérios de verificação conceitual não dita as regras, nem tampouco
cerceia a capacidade de interagir com o mundo que o cerca, a partir de óticas diversas.
Bosi fala da imagem como experiência anterior à palavra, pois é a partir dos olhos que
os indivíduos começam a estruturar as formas das coisas e as mantêm arquivadas em sua
memória, que ao ser convocada, mesmo quando a coisa não está mais diante de si, “é um
modo de presença”232 que de alguma forma consegue estabelecer uma relação entre o
indivíduo e a coisa a qual se tem a imagem formada na memória, e esta é uma forma de
manter a existência do objeto em nós.
A palavra é a forma de expressão daquelas realidades que apreendemos a partir da
visão e dos outros sentidos e que ficaram armazenadas na memória. É uma forma privilegiada
de expressão, mas é importante sublinhar que, embora a palavra seja um instrumento eficaz
para descrever aquilo que vimos, ou uma mediação entre nós e o objeto, sua função não se
encerra ai. Quando tratamos da poesia, a palavra alcança status de articuladora de sentidos.
Mais do que mediar expressivamente o objeto e aquele que o vê, a palavra poética evoca e
“presentifica” as realidades das quais se tratam.
O que é uma imagem-no-poema? Já não é evidentemente, um ícone do
objeto que se fixou na retina; nem um fantasma produzido na hora do
devaneio: é uma palavra articulada. A superfície da palavra é uma cadeia
sonora. A matéria verbal se entrelaça com a matéria significada por meio de
uma série de articulações fônicas que compõe um código novo, a
linguagem233.
A composição da imagem no poema é sobretudo a articulação dos significados dados
às experiências e sentimentos, onde a fixidez do discurso dá lugar às metáforas como 231 GRUPO FRANCÊS DE ORIENTAÇAO NOVA. Orientação Michel Cosem. O poder da poesia. Trad.: Maria Helena Arinto. Coimbra: 1980. p. 210. 232 BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 19. 233 Ibidem. p. 29.
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analogias que enriquecem a percepção234 e cria uma nova via para a compreensão da vida e
do mundo.
Se procurarmos definir o que é poesia, num primeiro olhar, poderíamos começar pela
sua forma, como um gênero literário cuja escrita se dá em versos e é caracterizado pela forma
harmoniosa como esses versos se articulam, construindo beleza estética e sonora na
articulação das palavras. Porém, mais do que uma definição capaz de descrever tecnicamente
o significado da poesia, é preciso ter em mente sua articulação interior, e para isso, é
fundamental adentrar à sua fonte, ir até o lugar de onde ela vem, como inspiração que obedece
a uma ordem nobre e sublime.
Jean Lauand numa reflexão sobre a poesia do poeta e músico José Gilberto Gaspar,
trata da problemática que hoje enfrentamos com relação ao fechamento para as coisas
simples, que “parece ter perdido sua força”235, num tempo marcado pelo deslumbramento
com relação às novas tecnologias, que promovem uma “desumanização e
impessoalização”236. Citando Tomás de Aquino e relacionando a poesia com a filosofia, diz
ele ser estas duas formas de apreensão do mundo, consequência da admiração que se dá
sobretudo nas realidades cotidianas mais simples. Tanto o poeta quanto o filósofo são
vocacionados à admiração, que brota do olhar capaz de reparar, muito mais que simplesmente
ver237. Assim ele explica: “na verdade, o poeta não habita um mundo diferente, mas sabe ver -
com os olhos de admiração - o sentido e a beleza que se encerram na mesma realidade de cada
dia”238.
A redescoberta do simples parece ser a raiz da poesia, que se volta ao cotidiano, às
coisas mais comuns da vida e numa atitude de admiração, superando uma postura superficial,
que olha os objetos como mera matéria-prima, numa opacidade incapaz de gerar interesse e
encanto. Não é que a poesia acrescente algum conhecimento sobre os objetos, como fazem os
discursos científicos, mas por ser um discurso subjetivo, ela se refere sujeito e sua múltipla
forma de pertencer ao mundo239.
234 Cf. Ibidem. p. 39. 235 LAUAND, Jean. Filosofia, linguagem, arte e educação: 20 conferências sobre Tomás de Aquino. São Paulo: Factash Editora, 2007. p.241. 236 Ibidem. p. 241. 237 Cf. Ibidem. 243. 238 Ibidem. 239 RICOEUR, Paul. Nas fronteiras da filosofia. p. 187.
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Por ser subjetivo, pode ser que se pense que o discurso poético se baseie apenas em
emoções, e assim, num sentimentalismo traduzido em palavras articuladas em versos. No
entanto, é importante sublinhar que os sentimentos expressos no poema se referem a uma
forma também válida de apreensão da realidade e dos objetos, pois se volta ao sujeito que é
capaz de dar sentido às coisas e são discursos que revelam as modalidades de nossa relação
com o mundo que não se esgotam em descrições de objetos240.
No que se refere aos significados que podemos encontrar na poesia, como modalidade
de pertencimento ao mundo, Pound afirma que a poesia é uma “condensada forma de
expressão verbal”241, pois se estrutura em uma densidade de significados, imagens e sentidos
que vão além da literalidade das palavras, mas alçam voos capazes de “presentificar”
sentimentos e realidades humanas profundas em versos e rimas.
O poeta impregnado de palavras originais242, testemunha a plenitude que o habita
através do poema, que é “sempre menos do que conserva o poeta em sua potencialidade”243,
pois há nele uma “superabundância de vida interior”244que procura expressar-se, sempre
consciente de sua incalculável incapacidade, já que sabe que sua comunicação nunca é
absoluta, pois se trata de realidade artística, revestida de mistério, e inesgotável
expressivamente, pois se assim não fosse, não seria poema, mas uma explicação científica,
capaz de analisar minuciosamente e elucidar o objeto sobre o qual reflete.
O poeta vive à procura de metáforas capazes de aclarar os estados de sua alma,
articulando palavras revestidas de significados diversos, insinuando não o óbvio, mas a
imensidão de sua realidade existencial, que por vezes se apresenta confusa, desarticulada e
misteriosa.
Para dar testemunho de si próprio ou do mundo em que se integra, o Poeta
está pronto a represar, a restringir a torrente de seus sentimentos, a escolher,
entre as vagas e confusas intuições, nascidas umas das outras ou umas após
240 Cf. Ibidem. p. 188. 241 POUND, Ezra. ABC da literatura. p. 40. 242“Os poetas são – repitamos mais uma vez – homens que falam prenhamente palavras originais. Seu falar as fazem belas porque a autêntica beleza é a manifestação pura da realidade, e esta acontece sobretudo na palavra” Cf. RAHNER, Karl. Sacerdote y poeta. p. 338. 243 LISBOA, Henriqueta. Convívio poético. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1955. p. 15. 244 Ibidem.
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as outras, a mais representativa, às vezes a mais estranha de todas, capaz,
entretanto, de perpetuar as outras por meio de sugestão e insinuação245.
3.2. Prosa e poesia.
A prosa e a poesia são duas formas de se criar um texto literário, e ambas buscam
expressar conteúdos, instigar a imaginação e refletir sobre realidades diversas, no entanto, há
distinção entre essas duas formas literárias, que vai além daquela diferença mais comum que
se percebe pela estética onde se tem a prosa como um texto corrido e a poesia em versos.
A prosa se apoia na lógica e na razão, e as palavras, diferentemente da poesia, em
geral são literais e não figuradas, pois é comum a prosa usar das linguagens narrativas e
descritivas para tratar de assuntos diversos, por exemplo, questões sociais, refletir sobre
acontecimentos relevantes e realidades que envolvem a vida humana. Já a poesia se utiliza de
uma linguagem figurada e as palavras dizem mais do que simplesmente o seu sentido literal
pode alcançar, pois trata de realidades internas ao homem, tantas vezes inexprimível
absolutamente por palavras. Isso porque a poesia é carregada de sentimentos, de espanto
advindo dos acontecimentos e da forma como o poeta experimenta a si mesmo e o mundo, é
uma forma de contemplar a realidade, sem que se paute por uma linguagem cientifica, nem
tampouco por expressões minuciosamente lógicas.
Enquanto a prosa determina e afia as palavras para convertê-las em conceitos
da maior energia e precisão possíveis, na poesia o essencial é viver as
palavras em toda a sua virginal plenitude de sentido e plasticidade; a intuição
se eleva sobre a compreensão, a imagem sobre o conceito246.
Na prosa, o compromisso é com uma expressividade capaz de lançar o leitor a uma
reflexão lógica e articulada de assuntos determinados, mesmo que no enlace de certa beleza
estética, porém sua articulação deve resultar na elaboração de um pensamento crítico e lógico.
No entanto a poesia, também bela esteticamente, tem um compromisso com a celebração da
vida interior do poeta, que não articula palavras aleatoriamente, mas se expressa
imageticamente a partir de seu universo simbólico na aventura de dizer o que não pode ser
dito, ou que as palavras não alcançam seu significado completo.
245 Ibidem. 17. 246 PFEIFFER, Johannes. La poesia. Apud, LISBOA, Henriqueta, Convívio poético. p. 30.
73
3.3. O ritmo no poema.
O poema relata as realidades experimentadas superando as formas rígidas de
articulação gramatical, não se apegando a fixidez do discurso descritivo, mas põe ritmo às
palavras, que se articulam harmoniosamente em rimas.
Na música, os sons se articulam entre ritmo e melodia e a beleza está na conjugação
desses elementos de forma a gerar harmonia. Em sentido mais amplo, podemos definir a
música como a articulação de sons e silêncios. A boa música é harmônica e capaz de traduzir
sentimentos e a mensagem pretendida pelo autor. Assim a poesia, também se utiliza do ritmo
para conjugar palavras em rimas e dessa forma dar a elas harmonia, conjugadas com o
silêncio contemplador do processo de feitura da obra. Nas palavras de Bosi, “o ritmo da
linguagem funda-se, em última análise, na alternância”247. Aliás, a harmonia sonora tanto da
música quanto da poesia, é perceptível a partir do sentimento que ela gera no interlocutor. A
música ruim, como a poesia sem ritmo, apenas articulação de palavras, são incapazes de gerar
harmonia interior, em outras palavras, o interlocutor não consegue interagir com a música ou
a poesia, elas não causam o efeito agregador. Nas palavras de Rahner sobre a poesia, esta por
se tratar do mistério infinito e falar ao mais profundo do homem, deve ser palavra que “une
recolhendo”248.
Os versos da poesia são a batuta que marcam seu tempo num compasso harmonioso,
conjugando rimas e alternando silêncios, é o “caminho de volta dentro de um conjunto verbal
em que o ir e o vir demoram o mesmo tempo”249. A articulação rítmica da poesia estabelece o
ambiente agregador, onde o universo do leitor se funde ao universo metafórico das palavras.
3.4. O autor.
Numa obra literária, o autor tem destaque pois é quem “parteja” a obra, transfere para
os seus escritos seu mundo imaginário, deixa interagir com a ficção um universo de
realidades, impressões e desejos, que na obra encontram uma articulação fruitiva, onde
mundos se encontram, onde questões sociais são apresentadas a partir de óticas diversas, o
homem é descrito segundo as aspirações do autor que dá aos personagens traços reais,
imaginativos e até mesmo retrata a si mesmo, como possibilidade de alcançar outras margens,
onde a circunscrição do real não permite. O autor tem a missão de transpor o real para a 247 BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. p. 81. 248 RAHNER, Karl. La palabrapoetica y elcristiano. p. 460. 249 BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. p. 85.
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ficção, de maneira livre, manifestando na sua obra uma hermenêutica do mundo e de
realidades pontuais, exercendo criativamente seu poder de tomar posições, sublinhar
elementos de maior relevância, discordar de regras, apresentar soluções, etc. À sua arte não
deve ser imposta limites, nem tampouco delimitar sua capacidade criativa. O autor tem
responsabilidade por sua obra e “é ele quem escolhe os temas e as formas de composição e, de
um jeito ou de outro, ele continua sempre presente na obra, pois é impossível separar a obra
do homem, a poesia do poeta, o romance do romancista”250. Quanto a isso, Rahner ao tratar
do autor como um vocacionado ao cristianismo, mesmo quando explicitamente não se declara
assim, o que ele chama de “cristão anônimo”, fala da relevância do literato quando este tem a
capacidade de enfrentar a si mesmo, pois a qualidade de um verdadeiro autor se dá quando “se
enfrenta radicalmente com o que ele mesmo é”251.
3.5. O texto como realidade aberta.
Uma obra literária, quando apresentada pelo autor ao público leitor, em geral traz
consigo um enredo finalizado e com o desfecho concluído, no entanto, não se pode pretender
que o final que o autor dá àquela história seja fechado, já que, embora para ele, há uma
conclusão, esta se encontra sempre aberta a novas perspectivas, já que ao ser recebida pelo
leitor, a obra se entrelaça com seu universo, que compõe novos rumos a trama, indo além
daquilo que propõe o autor, pois é capaz de estabelecer diálogo e ressonâncias, elaborando
uma síntese desta dialética que a arte permite.
Umberto Eco diz que a obra quando permite essa fruição de maneira a deixá-la falar e
ser compreendida na multiplicidade de possibilidades, mais do que simplesmente comunicar
uma ideia fixa, “é esteticamente válida” e embora ela seja uma obra acabada, sempre será
aberta pois é “passível de mil interpretações”252.
Eco acentua o fato de que ao considerar uma obra como “aberta”, não significa que a
obra transmita uma “indefinição”, mas que existe uma infinidade de possibilidades de a obra
ser apreendida, inclusive diversamente por uma mesma pessoa, quando lida em tempos
diversos, cercada por realidades específicas. No entanto, embora a gama de possibilidades,
“há somente um feixe de resultados fruitivos rigidamente prefixados e condicionados, de
maneira que a reação interpretativa do leitor não escape jamais ao controle do autor”253.Ainda
afirma que:
250 MANZATTO, Antônio. Teologia e literatura. p. 30. 251 RAHNER, Karl. La misiondel escritor y laexistencia humana. Escritos de Teología VII. p. 416. 252ECO, Umberto. Obra aberta.8.ed. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. 40. 253 Ibidem. p. 43.
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Nesse sentido, o autor produz uma forma acabada em si, desejando que a
forma em questão seja compreendida e fruída tal como a produziu; todavia,
no ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações,
cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade
particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências,
preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se
verifica segundo uma determinada perspectiva individual254.
O autor ao escrever, apresenta o seu universo e a forma de ver o mundo, sublinha os
detalhes que compõe personagens e situações, indica um sentido para aqueles fatos e elabora
um universo simbólico carregado de intenções, no entanto, tudo isso pode parecer que a obra
está pronta, fechada. Do ponto de vista do autor sim, pois ele concluiu a narrativa, dando os
desfechos desejados aos personagens, dando um final a sua história, porém no leitor a história
continua a ser contada, pois entra na dinâmica reflexiva daquele que não lê apenas
passivamente, mas confecciona mentalmente as imagens e histórias propostas pelo autor. A
história continua aberta, pois não para de ser refletida e os seus desfechos alcançam
dimensões diversas, que variam de leitor para leitor, numa gama infinita de possibilidades.
Já Paul Ricoeur, em seu estudo sobre a identidade dinâmica do texto255, trabalha com a
possibilidade de atualização do texto ao ser lido, pois a obra não termina naquilo que ele
chama de “dentro” do texto, mas dinamiza-se no ato da leitura, conduzindo ao seu
acabamento. Para isso, Ricoeur desdobra em três fases esta tese, elencando como que este
processo acontece.
A primeira fase,Ricoeur chama de “interseção” entre o mundo do texto como “o
mundo apresentado pela ficção diante dela mesma” e que lança o leitor para o “lugar” onde
ele encontra o horizonte estabelecido para tomar o impulso reflexivo que poderá levá-lo a
outras dimensões da realidade, transfigurada pelo mundo ficcional presente no texto, e o
mundo do leitor onde “a ação do real se desvela” e onde a “ação se produz no meio de
circunstâncias”256, já que, inserido em realidades determinadas, o leitor chega ao mundo do
texto não como tábula rasa, mas com uma bagagem bastante vasta, o que o lança a reflexões
influenciadas por essas circunstâncias, e é neste sentido que Ricoeur apresenta a segunda fase
da identidade dinâmica do texto, que corresponde a não oposição entre o mundo do texto e o
mundo do autor, mas sim a criação de uma amalgama imaginativa que torna a história narrada
254 Ibidem. 255 RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. Trad.: Paulo Meneses. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 117-221. 256 Ibidem. p. 126.
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atualizada e capaz de ser seguida, pois diz ele que “seguir uma história é representá-la ou re-
atualizá-la pela leitura”257.
Por fim, a identidade dinâmica do texto leva o leitor a uma possível conclusão da obra,
embora o autor já tenha de alguma maneira dado o desfecho, pois a leitura é uma ação
criativa, ancorada na imaginação do leitor que, guiado pela intriga narrada pelo autor, ele é
conduzido a completar a obra, e assim portanto, “o texto como texto é um conjunto de
instruções que o leitor individual ou público cumpre de uma maneira passiva ou criativa.
Contudo, o texto não se torna uma obra a não ser na interação entre o texto e o
destinatário”258.
4. A Relação teologia e literatura.
A literatura como expressão de uma cultura apresenta sua paixão pelo homem como
centro do seu desenvolvimento, cujas vivências são narradas, permeadas de sentidos e
apresentadas nas mais variadas formas, articulando realidade e imaginação. Como não há
balizes cerceadoras da imaginação, a literatura é instrumento que “põe em cena o homem
vivo”259, com todos os sentidos aguçados, prontos para expor seu universo nas mais variadas
formas e situações, atingindo sua grandeza, já que “a literatura é tão grande quanto o
humano”260 e não se limita a compreendê-lo a partir de uma só perspectiva, mas explora todas
as suas possibilidades.
Muitas ciências já se debruçaram sobre a literatura como objeto de compreensão do
humano, podendo se aprofundar em suas investigações e abrir perspectivas a partir de obras
que expõe não apenas o homem e sua cultura em diversas épocas, mas que também apresenta
um humano cheio de sonhos, desejos, com diversas características psicológicas, em
complexos períodos históricos e sociais, que formaram caraterísticas sociais e antropológicas.
Também a filosofia se interessa pela literatura, mesmo que não haja um interesse em
particular pela obra como estrutura de raciocínio filosófico, porém pode utilizá-la como forma
de compreensão da realidade humana em determinadas épocas, como apoio histórico e
sociológico para a elaboração do seu pensamento. Também a teologia se interessa pela
literatura, como “lugar” de compreensão do humano, sobretudo porque, volta-se para a
encarnação do Verbo que é a “automanifestação de Deus na sua auto-alienação”261 e por isso
257 Ibidem. p. 128. 258 Ibidem. 259 MANZATTO, Antônio. Teologia e literatura. p. 63. 260 Ibidem. 261 RAHNER, Karl. Teologia e antropologia. p. 77.
77
também para o homem, pois “se Deus mesmo é homem e continua a sê-lo eternamente, e
portanto, toda teologia é, eternamente, antropologia”262. Neste sentido, Deus é o Mistério
sobre o qual a teologia debruça, mas também sobre o homem que é “eternamente mistério de
Deus expresso no fora-de-Deus que, para sempre, participa do mistério do seu
fundamento”263.
Alex ao apresentar o pensamento de Manzatto acerca da aproximação entre teologia e
literatura sublinha um elemento comum: a paixão pela palavra. Assim vemos na literatura,
que tem na palavra seu potente instrumento para confecção de enredos, e na teologia
quevolta-se para a Palavra encarnada como fundamento de seu pensamento, pois é na pessoa
do Verbo que completa a Revelação e consuma a obra da salvação264. Alex pontua a paixão
como elemento de aproximação e doadora de sentido na teologia e literatura:
A paixão pelo humano da Literatura encontra eco na Teologia pela paixão
por um Deus eu se fez humano em Jesus Cristo. A paixão por Jesus Cristo é
a paixão pelo humano do qual Deus também se revela apaixonado. Para o
apaixonado, a vida tem sentido, ou seja, se para a Literatura e a Teologia é
possível encontrar um sentido à vida, isso se dá ao fato de que ambas estão
marcadas por uma paixão que excede toda a razão meramente analítica. Há
que se repensar a paixão, que caminha para a tragédia na Literatura, em
sinônimo de sofrimento na Teologia Cristã, como uma paixão que seja
caminho e salvação da história humana265.
A paixão é elemento fundamental que dá sentido à vida, como força motivadora que
impulsiona a existência humana, retirando-a da insignificância e desolação, abrindo
perspectivas novas que vão muito além do cerceamento da razão analítica, que impõe limites
e estabelece regras. O Deus apaixonado pelos humanos rompe a lógica que separa
transcendência e imanência, eternidade e história e rebaixa-se tornando semelhante aos
homens (Cf. Fl2, 6-11). Também na literatura, sobretudo nos romances, o humano
apaixonado revela-se e preenche de sentido a existência, à procura de repouso nos braços da
pessoa amada. O sentido maior é o sentir-se vivo, cheio de expectativas, sonhos e esperanças,
numa dinâmica sempre de saída de si. Na literatura e em particular nos romances,
encontramos sempre intenso os sentimentos de amados e amantes, que se voltam um para o
262 Ibidem. p. 78. 263 Ibidem. 264 Cf. DV. 4. 265 VILLAS BOAS, Alex. Teologia e poesia. p. 27.
78
outro a procura de plenitude, de realização da vida. Assim, é o humano inteiro posto em cena,
com todas as suas potencialidades e fragilidades, que não interessa apenas à literatura, mas
também à teologia, que procura compreender nas experiências humanas os desdobramentos
da experiência de Deus.
Por vivermos numa sociedade empirista, carente de sentido, tantas vezes movida por
um mecanismo quase alienada do simbólico, a dureza dos conceitos e a fixidez do
pensamento científico parece ser a única forma credível de interpretação do mundo, do
humano e das coisas. A arte costuma ser vista como mero instrumento de lazer, capaz de
retirar as pessoas da seriedade da vida e introduzí-las no universo lúdico, sem relação com o
concreto, por vezes convidando a uma hermenêutica idealizada e simbólica do real,
distanciando de qualquer reflexão aprofundada dos acontecimentos e do universo humano.
Desta mesma forma, a literatura esbarra no tecnicismo de nosso tempo, por vezes incapaz de
adentrar na dinâmica simbólica humana e ali encontrar sentido para a existência.
Manzatto diz que, num tempo marcado pelo consumismo e pela produtividade266, a
literatura por ser gratuita, pois é arte, não coaduna com este sistema marcado pela utilidade,
que cega o homem e lhe tolhe a capacidade de dar significado a sua existência. Por ser
carregada de sentido a literatura tem sua fonte na experiência humana, que se expressa de
maneira eficaz não apenas através dos conceitos fechados e científicos, mas no imaginário
como lugar da construção simbólica do homem, que se expressa de maneira diversa,
apresentando dimensões psicológicas, culturais, sociológicas, antropológicas, a partir de uma
apreensão lúdica, porém não menos verdadeira.
A literatura é um olhar sobre o mundo, sobre seus valores, suas condições.
Ela é também, mas não formal nem diretamente, um juízo de valores, pois
ela toma posição ante os mitos, coisas e realidades da vida e da sociedade;
ela denuncia ideologias, sofrimentos, hipocrisias, falsos valores, opressão, e
prega novos valores267.
Além do mais, a literatura contribui na construção da identidade de um povo, que se
reconhece nos muitos sentidos expressos numa obra, capaz de humanizar o homem268 tão
afetado pelos “mitos da técnica e do consumo”269que roubam sua capacidade de enxergar a si
266 Cf. MANZATTO, Antônio. Teologiae literatura.p. 36. 267 Ibidem. p. 38. 268 Cf. Ibidem. 269 Ibidem.
79
como ser desejoso em dar significados a sua própria existência, abrindo novas perspectivas e
situando o homem não em apenas alguns aspectos de sua vida, mas projetando para a
compreensão de um mundo mais amplo, pois fala ao homem inteiro.
4.1. Métodos de aproximação entre teologia e literatura.
Dado esta dinamicidade tanto da literatura nas suas diversas formas de expressão e da
teologia que é palavra da fé a cerca da atuação de Deus na história a partir da Revelação, não
se pode pensar em apenas um método para a aproximação destas duas epistemologias, mas é
fundamental adentrar num campo vasto, onde se tem muito a ser explorado.
Várias são as metodologias que procuram propiciar este encontro, contemplando essas
duas epistemologias e estabelecendo relações valiosas, tanto para uma como para a outra,
conservando aquilo que lhes é próprio, porém buscando elementos que possam compor uma
ampliação da compreensão acerca de Deus e do humano. Contudo, pode-se perceber que,
embora a variedade de métodos, todos eles de alguma forma evidenciam uma unidade
antropológica270, como fio condutor desta aproximação.
Seguiremos aqui a reflexão de Manzatto a cerca das possibilidades metodológicas, nos
três blocos271 de possibilidades apresentados, que não pretendem encerrar todo estudo dos
métodos de aproximação dialogal entre teologia e literatura, mas que apresentam um
panorama daquilo que já está sendo produzido por teólogos e teólogas, que se dedicam em
explorar este campo vasto de reflexão, haja visto que por se tratar do universo da literatura,
não se poderia pensar em apenas um método rígido, pois encontramos uma gama de
expressões literárias e ainda, no diálogo com a teologia, que se estabelece a parti da
Revelação de Deus na dinâmica da história, plenamente realizada no Cristo “que é
simultaneamente, o mediado e a plenitude de toda a Revelação”272.
4.1.2. Leitura teológica dos textos literários.
Num primeiro bloco, Manzatto apresenta aqueles métodos de abordagem considerados
“antigos”, pois se trata de fazer uma leitura teológica dos textos literários, tomando os autores
como teólogos, fazendo de suas obras literárias terrenos onde a teologia se manifesta, e com
270 Cf. VILLAS BOAS, Alex. Teologia e poesia. 271 MANZATTO, Antônio. Pequeno panorama de teologia e literatura. In Teologia e arte: expressões de transcendência, caminhos de renovação. Ceci Babtista Mariani, Maria Angela Vilhena (orgs.). São Paulo: Paulinas, 2011. p. 87-98. 272 DV 2.
80
isso, desenvolvendo críticas quando não ortodoxas ou assentindo aos elementos teológicos
presentes no texto, como se devesse ser essa a preocupação do literato, desconsiderando
inclusive sua liberdade de expressar as questões relativas a fé, religião etc, a partir de prismas
diversos, sem que sejam submetidos ao crivo doutrinal. Neste sentido, não se pode reduzir a
literatura à serva da teologia, como se a primeira fosse uma simples forma para a apresentação
do discurso teológico. É certo que a linguagem literária compõe um ambiente menos árido
para a expressão das verdades teológicas, que falam ao intelecto humano, mas que também
devem falar ao coração, pois são expressões da fé que perpassam pela realidade humana, que
preenche de sentido a vida, e que dessa maneira não pode apenas informar, mas devem ser
performáticas, alinhar-se a vida. Também a linguagem literária pode ser um caminho que abre
acesso ao pensamento teológico àqueles que estão fora do ambiente da teologia, porém é
fundamental que essas duas epistemologias sejam independentes e que, embora possam
dialogar, e este é um caminho importante sobretudo para alargar as fronteiras tanto de uma
como de outra, precisam ser fiéis às suas formas de compreensão do mundo, do homem e de
Deus.
4.1.3. Método de correspondência.
O segundo bloco corresponde àqueles métodos derivados do pensamento de Kuschel,
e que Manzatto exemplifica a partir dos estudos de Magalhães273, cuja derivação se encontra
na forma de perceber a correspondência entre elementos presentes na obra teológica e
literária, assumindo analogias e delimitando as diferenças, no método chamado de “analogia
estrutural”. Neste sentido, há um afastamento do pensamento apresentado no bloco anterior,
que acaba por “instrumentalizar” a literatura, reduzindo-a a serva da teologia. Manzatto
afirma que “esse procedimento de associação cria uma correspondência entre tais elementos,
proporcionando-lhes, de um lado, a continuidade de pertença a seus universos próprios, e de
outro, que se relacionem”274.
Quanto ao método da correlação, Magalhães apresenta a base onde se estrutura seu
pensamento, apontando para o pensamento de Paul Tillich e para a doutrina do Concílio
Vaticano II, sobretudo no tocante a dinamicidade da Revelação, que não se resume a uma
normativa “objetiva e autoritária, mas que nasce a partir da experiência dos grupos com o
273 MAGALHÃES, Antônio. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. 2. Ed. São Paulo: Paulinas, 2009. 274 MANZATTO, Antônio. Pequeno panorama de teologia e literatura. p. 93.
81
Deus dentro da história”275. Desta forma, deve-se sublinhar que há uma “relação estreita entre
revelação e situação humana”276, o que abre um caminho importante para o diálogo entre
literatura e teologia, já que a primeira se volta para a vida humana, envolta de nuances
diversas, revelando o humano, suas possibilidades e aspirações.
No trato da literatura e sua relação com a teologia, Magalhães atenta para o perigo de a
literatura ser encarada de maneira apequenada, quando esta é vista apenas como uma forma de
conhecimento do mundo de segunda grandeza, não tendo consistência em sim mesmo, mas
que para ter credibilidade precisa estar ao lado de outras ciências. Compara esta inferioridade
com aquela que costumeiramente fazemos com relação ao corpo e a alma, sendo o primeiro
inferior a segunda. A literatura não pode ser encarada apenas como um instrumento lúdico
que oferece alguns elementos para a percepção do mundo, mas que está presa apenas ao
estético e que não se ocupa verdadeiramente com o ético, numa ingenuidade marcada pela
afirmativa de que a arte se explica somente pela arte, e toda e qualquer compreensão de
mundo através dela seria sempre perigosa, pois se trata apenas de elucubrações artísticas sem
o menor interesse nas questões da realidade humana.
Outro erro possível neste diálogo entre literatura e teologia é submeter a literatura a
uma narrativa religiosa, costurada na barra dos dogmas e instrumentalizada para elucidar
doutrinas. A literatura precisa continuar sendo literatura e não pode tomar a forma de uma
literatura confessional pelo fato de estar em diálogo com a teologia, precisa ter independência,
e conservar os elementos que compõe sua estrutura.
4.1.4. Teopoética.
A teopoética também compõe este bloco e “ora relaciona teologia e literatura, ora
trabalha segundo os princípios da literatura comparada, relacionando e comparando elementos
da literatura e teologia”277. Sobre este tema, Magalhães apresenta um panorama crítico quanto
ao “enclausuramento” de Deus nos conceitos doutrinários e teológicos, que torna o
pensamento sobre a fé estéril e o encaminha para um discurso árido e moralista. Neste
sentido, apresenta o pensamento teopoético como um resgate da dinâmica da revelação de
Deus nas realidades concretas humanas e rejeita a domesticação da experiência de Deus que,
segundo ele, “têm de passar pelos sistemas teológicos e eclesiásticos enclausurados em seu
275 MAGALHÃES, Antônio. Deus no espelho das palavras: p. 174. 276 Ibidem. 277MANZATTO, Antônio. Pequeno panorama de teologia e literatura.p. 94.
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conservadorismo e incapazes de se deixarem abalar pelas contingências da história”278. A
teopoética permite a relativização dos conceitos sobre Deus, salvaguardando inclusive sua
liberdade, pois mesmo depois da obra literária concluída, não há uma “dogmatização” que se
impõe, mas a possibilidade plural de compreensão. Quanto ao Deus apresentado pelos
literatos, afirma:
Na verdade, o Deus apresentado pelos autores da literatura distancia-se do Deus
apresentado pela Igreja, pois, na literatura assume-se a ambiguidade e as
contradições dentro da experiência de fé, enquanto a fala conceitual da teologia
sobre Deus procura justamente superar e dissipar toda e qualquer ambiguidade279.
O não compromisso com um sistema teológico ou doutrinal permite a literatura alçar
voos por universos diversos, perpassando pelas ímpares experiências de fé, podendo alcançar
muitos modelos de expressões religiosas, e, sobretudo, valorizando a versatilidade da
linguagem. Neste aspecto, Magalhães sublinha a teopoética na obra de Rubem Alves, que
mesmo não tendo a intenção de desenvolver seus escritos claramente dentro deste modelo
metodológico, assumiu de maneira crescente um discurso sobre Deus.
Rubem Alves se destaca pelo fato de não considerar os temas teológicos como
submissos a uma racionalização infértil e, para utilizar um termo que já utilizamos no
primeiro capítulo deste estudo, procura estabelecer uma reflexão performática da fé, pois
procura dizer à pessoa na sua realidade concreta, e ao mesmo tempo, esta realidade deve ser
fonte do pensamento sobre Deus, pois traz as marcas da fé. Quanto a isso, diz Magalhães
sobre Rubem Alves:
Teologia, antes de ser da academia, pertence à vida, e esta se entrelaça na teia
simbólica, formando as diversas relações que nos criam, isso porque não existem,
para Rubem Alves, realidades brutas à nossa frente, elas sempre são vistas por meio
de símbolos que as tornam suportáveis para a vida. Nesse sentido, a consciência é
uma extensão do corpo, que apreende o mundo em dimensões sensitivas e
emocionais280.
Magalhães ainda sublinha o fato de que Rubem Alves, embora desenvolva seu
trabalho no campo da teopoética, não se fixa totalmente no método da analogia estrutural de
Kuschel, que identifica na obra literária semelhanças e assume diferenças, numa análise
278 MAGALHÃES, Antônio. Deus no espelho das palavras. p. 173. 279 Ibidem. 280 Ibidem. p. 177.
83
crítica da teologia à literatura, mas procura identificar que “na própria literatura já há teologia
a ser narrada em diálogo com a tradição cristã, sendo necessário assumir o estilo poético
como forma de reconstruir o saber teológico”281, e assim ainda afirma que “poesia não é mero
objeto, mas já apresenta traços essenciais que são pertencentes à própria reflexão
teológica”282.
4.1.5. A Dimensão antropológica da aproximação entre teologia e literatura.
O terceiro bloco de metodologias que procuram aproximar teologia e literatura é
apresentado por Manzatto como aquele que mais se aproxima do desafio estritamente
teológico, que procura nas obras literárias não apenas correspondências e elementos que
compõe sua episteme, como vimos nos blocos anteriores, mas se volta à tarefa árdua de
“pensar os conteúdos da fé a partir do horizonte literário propriamente dito”283, sobretudo
naqueles autores e obras não religiosos e sem intenções teológicas, o que impede uma relação
mais direta com a teologia e convida a uma postura dialogal num ambiente de diferenças.
O fio condutor deste bloco metodológico é a antropologia, que em literatura é uma
forma de expressar o ser humano no mundo, com suas mais variadas dimensões,
contemplando a humanidade mesmo quando trata de narrativas ficcionais, capaz de criar seres
e lugares inexistentes, num universo marcado por imaginações, ou mesmo nos poemas que se
voltam a uma linguagem simbólica, carregada de analogias por vezes incompreensíveis. Aí
reside um humano verdadeiro, que se expressa de formas variadas, e revela uma compreensão
do humano em sua relação com o mundo. Assim também a teologia, “quando bem feita,
desemboca numa antropologia”284, pois se volta para a revelação que se dá plenamente na
pessoa de Jesus de Nazaré, cuja vida é o lugar por excelência para a compreensão de Deus
que “se serve de situações humanas, de características humanas, da história humana, de
categorias humanas”285. Desta forma, portanto, Manzatto explica que “o procedimento em
questão parte da compreensão de que, em teologia, o antropológico é, de certa forma,
determinante e critério de sua verificabilidade, enquanto, em literatura, o antropológico se
exprime em forma de ‘ser no mundo’”286.
281 Ibidem. p. 180. 282 Ibidem. 283 MANZATTO, Antônio. Pequeno panorama de teologia e literatura. p. 95. 284 Idem. Cristologia: Teologia e Antropologia. In Revista de Cultura Teológica, 19, abr-jun/1997. p.7. 285 Ibidem. p.7. 286 Idem. Pequeno panorama de teologia e literatura. p. 95.
84
5. Adélia Prado e a poética do cotidiano.
A aproximação entre teologia e literatura se apresenta como uma possibilidade da
compreensão da fé a partir do universo existencial humano expresso na arte, como lugar de
epifania e de encontro com o Absoluto, que entra no tempo e no espaço humano, não mais
como regente da história, nem apenas fundamento de seu sentido, mas sendo ele mesmo
história287. A vida humana e os elementos que a constitui é também o lugar da manifestação
do Verbo eterno, que quis ser humano com os humanos num gesto de extrema liberdade e
amor “aceitando existir para Deus e para os seres humanos”288. Dado isto, é no caminhar da
história humana que podemos contemplar a ação divina, que se entrelaça na simplicidade do
cotidiano como espaço privilegiado de atuação, lá onde a vida acontece e se desenrola, onde o
simples não é o banal, mas sacralizado por Aquele que permeia o ritmo do tempo. Neste
sentido é que segue a apresentação do pensamento poético de Adélia Prado, como poeta e
mística, que contempla o extraordinário no ordinário, que percebe a presença do Absoluto na
singeleza da brisa, assim como o profeta Elias (Cf. 1Rs 19, 9-18) que se coloca aquém de uma
epifania em terremotos e furacões, mas cobre o rosto diante da simplicidade da brisa suave.
5.1. Vocação poética.
O teólogo Karl Rahner ao tratar da vocação poética no texto “Sacerdote y poeta”,
afirma que o poeta é alguém a quem foi confiado as palavras originais, que carregam em si
consistência, impregnadas de realidade, não apenas capazes de nomear os objetos, mas tornam
presente aquilo que significam, pois “revela um fragmento de realidade pelo qual nos abre,
misteriosamente, a porta que conduz a insondável profundidade da autêntica Realidade”289.
As palavras originais do poeta refletem aquela realidade do Verbo divino, que traz em si
aquele que nomeia, como vemos no Evangelho de São João: “O verbo estava com Deus e o
Verbo era Deus”(Jo 1,1). O Verbo divino encarnado e o Ser de Deus estão presentes
inseparavelmente na pessoa de Jesus de Nazaré. Assim, cabe a afirmação da função da
287 “Em Jesus Cristo, o Logos já não é o império das ideias, dos valores e das leis, regendo a história e fundando seu sentido: Ele mesmo é história. Na vida de Cristo, o fático não só coincide com o normativo ‘de fato’, a não ser ‘necessariamente’, porque o ‘fato’ é, às vezes, a manifestação de Deus e protótipo humano de toda autêntica humanidade para Deus. Os fatos não são somente um símbolo fenomênico de uma doutrina que se esconde detrás e que poderia ser subtraída deles (como em parte creu a teologia alexandrina): são o sentido mesmo, se se entendem em sua profundidade e totalidade. A vida histórica do Logos – a que pertencem sua morte, ressurreição e ascensão – é, como tal, o mundo peculiar de ideias que dá norma a toda a História por imediato ou por redução, mas não desde uma altura não histórica, senão desde o centro vivo da história mesma. Cf. BALTHASAR, Hans Urs Von. Teologia da história. p. 22. 288 FORTE, Bruno. A essência do Cristianismo. p. 57. 289 RAHNER, Karl. Sacerdote y poeta.In Escritos de Teología. p. 335.
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palavra na poesia segundo Adélia Prado: “Na poesia a palavra vira a coisa. Aí é que está a
unidade consubstancial”290.
Adélia Prado na esteira da realidade evocativa de sua vocação poética escreve o que
sente291, e traz a tona, no signo das palavras o mundo que pulula dentro de si e que se
corporifica nas tramas dos versos, que “são quase silêncio, mais sugeridos que descritos,
como a renda cujos vazios são o conteúdo do desenho”292.
Adélia é mística, e costura sua alma à “mineiridade”, que segundo ela mesma, afirma
ter um acento maior na Paixão do que na Ressurreição do Senhor293 e que causa ar de
melancolia à sua poesia, que se expressa num contexto de “vale de lágrimas”, como se reza na
oração da Salve Rainha. Neste sentido, questionada sobre o fato de ela ser religiosa, cristã,
não estaria de certa forma vocacionada ao sofrimento e dor, haja vista o acento na Paixão de
Cristo. Sua resposta é não e afirma com destreza estar vocacionada ao real294, cuja
originalidade compõe também dor e sofrimento. A poesia a retira da cegueira e lhe capacita a
olhar para o real como lugar primordial da revelação poética, pois é nas minucias dos fatos e
das coisas que Adélia retira a matéria-prima para suas obras.
Como vocacionada ao real, Adélia reconhece que a poética tem suas raízes na beleza,
A realidade é transparente e o poeta é capaz de enxergar além da imanência das coisas,
pois se eleva acima delas e alcança o sentido para onde elas apontam, e revestindo de novos
significados aquilo que parece se perder na banalidade de um olhar apático. Também a
teologia para ser ciência da fé precisa colocar-se diante da realidade com postura
contemplativa capaz de, na transparência do mundo, enxergar Deus que se revela. Quanto a
isso, Leonardo Boff fala da imanência e transcendência do mundo, como duas dimensões da
realidade que se conjugam para formar aquilo que chamamos de historicidade. A imanência é
a situação dada, são estruturas e conjunturas que compõe o universo em que o ser humano
está imerso, contudo, a transcendência é a ultrapassagem do factual para outra dimensão da
realidade, capaz de tecer sentido ao humano, como único animal em constante construção,
não fadado a o determinismo, mas dinâmico. É nesse sentido que se pode compreender a
290INSTITUTO MOREIRA SALLES. Oráculos de Março. Cadernos de Literatura Brasileira: Adélia Prado. São Paulo, 2000. n. 9.p. 24 291 Cf. PRADO, Adélia. Com licença poética. In Bagagem. 27.ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 9. 292 BETTO, Frei. Adélia nos prados do Senhor. In Cadernos de literatura Brasileira: Adélia Prado. N. 9. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000.p. 122. 293 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Oráculos de Março. p. 22. 294 Ibidem.
86
Revelação de Deus, que “irrompe dentro da história humana”295e só assim pode ter
significado real, capaz de ser Sentido radical e Luz para o ser humano296.
Consciente que sua poesia não é outra coisa senão um “estado de graça”297, o “poeta é
um coitado”298, embora sua obra seja grandiosa, pois tem consistência e revela o real, como
num gesto de tirar o véu e mostrar a beleza escondida nos recônditos das coisas. Adélia
reconhece a nobreza de sua vocação, pois não esconde que quem quer falar não é ela, “é o
Espírito Santo. Ele quer falar e me usa. No caso, eu sou o seu oráculo”299, diz ela, e quando
se percebe grande, como numa prece, pede a Deus que a cure desse mal: “me dá a mão, me
cura de ser grande” 300, pois sabe que sua obra é maior que ela mesma e não se pode
confundir “a boniteza do livro com a sua”301.
5.2. Mística e poesia.
No contexto da fé, mais propriamente da mística, a poesia é a linguagem mais
adequada para sua expressividade, pois por se tratar de linguagem metafórica, melhor se
articula com a realidade de mistério, pois “os conceitos, às vezes, não exprimem muito bem as
verdades que se quer comunicar”302, e embora se trate de experiência subjetiva não abarcada
por conceitos claros e objetivos, “o conhecimento místico tem caráter suprarracional, é de
certo modo intuitivo e simples”303, porém não menos verdadeiro.
É certo também que toda forma de expressão que procura dizer sobre a experiência
mística vai sempre degradá-la, pois enquanto experiência é sempre maior do que qualquer
palavra possa defini-la. O Dicionário Crítico de Teologia aponta este limite e ao tratar do
autor místico o aproxima do poeta:
Tornando-se autor, ele vive uma contradição fundamental, e ele só a resolve, bem ou
mal, denunciando continuamente a inconsistência das palavras, combinando-as em
encadeamentos inabituais e próprios para reter a presença fugidia de que dão
testemunho. Nisso o autor místico é fundamentalmente um poeta, qualquer que seja
o gênero literário de seu texto (...)304.
295 BOFF, Leonardo. Experimentar Deus: a transparência de todas as coisas. Campinas: Verus, 2002. p. 34. 296 Cf. Ibidem. 297 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Oráculos de Março. p. 31. 298 Ibidem. 299 Ibidem. p. 27. 300 PRADO, Adélia. Orfandade. In Bagagem. p. 12. 301INSTITUTO MOREIRA SALLES. Oráculos de Março.p. 36. 302 MANZATTO, Antônio. Teologia e Literatura. p. 78. 303 ANCILLI, Ermano. Mística. In Dicionário de Espiritualidade. V. II. São Paulo: Edições Loyola; Paulinas, 2012. 304 LONGCHMP, Max Huot de. Mística. In Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas: Edições Loyola, 2004.
87
O poeta, como diz Adélia, é alguém em estado de graça por isso não há como separar
o poeta do religioso, mesmo se este não o assuma assim, pelo fato de o poeta captar aquilo
que está por detrás das coisas, que o remete necessariamente a sua fundação, que em última
análise é Deus.
A experiência poética é também uma experiência religiosa, que nasce do jubilo como
forma de união com Deus, numa abertura à transcendência e a linguagem desse júbilo é a
poesia, pois “é realmente metafórica, simbólica, puro jubilo”305. Aqui Adélia se aproxima da
doutrina rahneriana do “cristão anônimo” onde, sem a necessidade de uma “profissão de fé”,
o poeta por tratar de realidades referentes à existência humana só pode ser alguém
“agraciado” e inspirado por Deus para a confecção de sua poesia, pois falam palavras
impregnadas e expressam no limite de suas palavras a “ilimitação divina”306. Também Carlos
Josaphat fala da sacralidade do poeta, em referência a sua qualidade em dar contornos de
beleza e pureza às palavras, carregadas de sentido, no “milagre de seus versos”307. Embora
distintos, conquanto uma diz respeito à existência e a outra a expressividade, essas duas
realidades contemplam um “encontro nas alturas”308, pois superam a aridez do simples existir
e dizer, abrindo-se ao maravilhamento da terceira margem, onde o ser se une à sua Origem e a
palavra evoca, carregada de sentido, mais do que nomeia. Assim, resume Josaphat: “Deus
sentido, Deus saboreado vai ser o Deus falado, o Deus que busca uma palavra viva para
despertar a percepção vivida da sua presença real neste momento da existência e da
história”309.
5.3. O mundo sacramental adeliano.
Nascida na cidade de Divinópolis, a mineira Adélia Prado tem um olhar contemplativo
para o mundo. Vê não apenas com os olhos, aqueles do rosto, mas lança seu olhar para uma
realidade que se desvela a partir de uma atitude de contemplação da realidade, capaz de
perceber a transcendência nas minúcias do cotidiano. Nas palavras dela: “Você da janela
contempla, porque é um não-ver com os olhos, folhas brilhando coroadas de gotas...”310. É
outra dimensão da realidade que se apresenta aos olhos daquela que sabe ver além da coisa,
305 INSTITUTO MOREIRA SALES. Oráculo de Março. p. 22. 306 RAHNER, Karl. La palabrapoetica y elcristiano. In Escritos de Teología IV. p. 338. 307 JOSAPHAT, Carlos. Falar de Deus e com Deus: caminhos e descaminhos das religiões hoje. São Paulo: Paulus, 2004. p. 249. 308 Ibidem. 309 Ibidem. p. 251. 310 PRADO, Adélia. Manuscritos de Felipa. São Paulo: Siciliano, 1999. p. 42.
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que compreende o mundo todo permeado por Deus, onde transcendência e imanência se
conjugam num entrelaçamento sacramental.
Leonardo Boff em sua “minimasacramentalia” explicita esta realidade sacramental
das coisas, que chegou a sua máxima densidade em Jesus Cristo, como Sacramento
Primordial de Deus, seu Verbo encarnado que entra no tempo e revela o rosto do Deus eterno.
Ao desaparecer da vista humana com sua ascensão aos céus, Jesus confia a Igreja a graça de
ser sacramento311, que se “concretiza nas várias situações da vida, e funda a estrutura
sacramental, centrada especialmente nos sete sacramentos”312, mas que no entanto não detém
toda a graça sacramental, que pode também ser experimentada nos elementos do mundo
sensível, que para o teólogo tem a função indicadora e reveladora, pois o mundo detém em si
uma realidade intermediária que reúne tanto transcendência como imanência, que é a
transparência, ou seja, “o trans-cendente se torna presente no in-manente, fazendo que este se
torne trans-parente para a realidade daquele. O trans-cendente irrompendo dentro do in-
manentetrans-figura o in-manente. Torna-o trans-parente”313.
Na função indicadora “o objeto sacramental indica e aponta para Deus presente dentro
dele”314, e o olhar do homem não se encerra no objeto que, permeado por Deus, convida a um
olhar capaz de transcender, enxergar Aquele que está no objeto, que por sua vez, por ser
sacramento, é realidade imanente que transparece e revela a realidade transcendente.
Diferentemente da função indicadora, cujo movimento é do objeto para Deus, a função
reveladora se dá no “movimento que vai de Deus para o objeto sacramental”315. Deus que é
transcendente e por isso “invisível e inagarrável, se torna sacramentalmente visível e
agarrável”316, pois mesmo sem perder seu caráter temporal, físico e precário, o objeto se torna
“veículo e instrumento da comunicação do Mundo divino”317, e revela Deus nas realidades
imanentes que cercam o cotidiano humano que, pela fé, enxerga na profanidade das coisas a
sacralidade que elas indicam. E neste universo que vive Adélia, cuja alma poética a conduz ao
maravilhamento da realidade que se impõe, seja alegria, seja dor. Tudo se torna poesia na
311 Cf. Constituição Dogmática Lumen Gentium. n.1. p. 102. Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997. 312BOFF, Leonardo. Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos: minimasacramentalia. 28. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.p. 15. 313 Ibidem. p. 39. 314 Ibidem. p. 46. 315 Ibidem. p. 47. 316 Ibidem. 317 Ibidem.
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trama do mundo, no entrelaço da transcendência e da imanência, que se impõe aos olhos
daquela que “traz Deus nas dobras do ser.”318, capaz de identificá-Lo “no infinitamente
grande, como no brilho das estrelas, e no infinitamente pequeno, como um toco de vela”.319
5.4. O cotidiano, lugar da poesia.
Em uma entrevista ao filósofo Jean Lauand320, quando questionada sobre a
cotidianidade de sua poesia, Adélia afirmou da importância do real, como o lugar do
maravilhamento, mas também o único espaço que temos, já que não nos é dado nada além do
real exposto no cotidiano. Este é o espaço onde estão os grandes temas, e é daí que ela extrai
sua poesia, na matéria-prima da vida. Explica: “É o real configurado no amor, na morte, nas
mais diversas paixões que nos habitam e nas virtudes também. Então eu não vejo onde é que
eu busco poesia...”321, e ainda, “a transcendência mora, pousa nas coisas... está pousada ou
está encarnada nas coisas”322.
O lugar onde a vida acontece, esse é o lugar de onde a poesia nasce. Existe
concordância com o pensamento de Rahner que diz que o poeta é aquele capaz de desvelar a
realidade do cotidiano, compreendendo-o a partir do mistério que o envolve, assim, o poeta
não pode se abster daquilo que é a fonte de toda poesia, o concreto, pois “a poesia tem que
falar do concreto e não fazer com que os princípios abstratos bailem como marionetes”323.
A experiência de estupor gera um desejo de conhecer, uma ânsia por razões, e é na
busca por essas razões que nasce a poesia, como palavra que analisa aquilo que vê, extraindo
o que está além do que os olhos podem alcançar. Adélia reconhece que há uma ordem no
mundo, que reveste todas as coisas de sentido. É nesta perspectiva que escreve Alex:
A poesia extrai das coisas o sentido e ajuda a dar resposta verdadeira a
vontade de sentido do coração e Deus se manifesta como experiência de
sentido que questiona o absurdo de existir e sendo sinal do Mistério de que
318 BETTO, Frei. Adélia nos prados do Senhor. p. 122. 319 Ibidem. 320LAUAND, Luiz Jean. Conferência de filosofia. Alguns textos I. Disponível em:<http://www.hottopos.com.br/videtur9/renlaoan.htm> 321 Ibidem. 322 Ibidem. 323 RAHNER, Karl. La palabrapoetica y elcristiano. In Escritos IV. p. 464.
90
apesar do absurdo na vida ainda se pode, ou se deve, encontrar um
sentido324.
Adélia sacraliza e reveste de novidade o que, ao olhar do homem moderno parece ser
um mal a ser combatido: a rotina. O tema é explorado no poema “Mural”325 onde a poetisa
mineira não teme em por lado a lado as palavras Deus, amor, aprazível e rotina:
Recolhe do ninho os ovos
a mulher
nem jovem nem velha,
em estado de perfeito uso.
Não vem do sol indeciso
a claridade expandindo-se,
é dela que nasce a luz
de natureza velada,
é seu próprio gosto
em ter uma família,
amar a aprazível rotina.
Ela não sabe que sabe,
a rotina perfeita é Deus:
as galinhas porão seus ovos,
ela porá a sua saia,
a árvore a seu tempo
dará suas folhas rosadas.
A mulher não sabe que reza:
324 VILLAS BOAS, Alex. Teologia e Literatura como Teopatodiceia: Em busca de um pensamento poético teológico. (Doutorado em Teologia) Potifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. p. 361. 325 PRADO, Adélia. Mural. In Oráculos de maio. São Paulo: Siciliano, 1999. p. 39.
91
que nada mude, Senhor326
O ambiente rotineiro é o lugar sagrado de onde nasce a poesia, é o solo que deve ser
pisado com os pés descalços, pois é santo, fazendo aqui uma alusão com a passagem do Livro
do Êxodo, em que Moisés se aproxima da sarça que arde em fogo, mas não é consumida por
ele (cf. Êx3, 1-6). O extraordinário arde no solo ordinário da vida, cuja beleza só encanta o
coração atento, capaz de perceber nas minúcias, grandes manifestações.
Ao afirmar que “a rotina perfeita é Deus”327, Adélia conjuga Deus com a rotina,
retirando desta ultima seu caráter execrável, cujo defeito maior parece ser a falta de novidade.
A rotina, segundo o olhar adeliano, dita o ritmo para a elaboração dos sentidos novos que se
abrem num movimento que não é o do “sempre a mesma coisa”, mas aquele que se renova a
partir da perspectiva que se alarga amparada na contemplação minuciosa da poetisa que vê
brilhar diante de si os ciclos da vida cotidiana: “as galinhas porão seus ovos, ela porá sua saia,
a árvore a seu tempo dará suas flores rosadas”328.
Termina o poema com uma prece: “A mulher não sabe que reza: que nada mude,
Senhor.329”. Em “tempos líquidos”330, pra citar o sociólogo polonês ZygmuntBauman, a ânsia
pela mudança parece ser o fetiche moderno, onde a rotina não se conjuga mais com o
maravilhamento diante da realidade. A admiração parece nascer da novidade, do que se
apresenta sempre diferente, porque ser comum é ser desprovido de beleza, de encanto. Adélia
faz poesia com o comum, o cotidiano não lhe parece enfadonho, pelo contrário, se encanta
porque se põe a “amar a aprazível rotina”331,esta, embebida do encanto pela realidade
simples, capaz de redescobrir um novo sentido naquilo que se apresenta como o “arroz e
feijão” do cotidiano.
O que dizer então do cotidiano de uma dona de casa, mergulhada na rotina dos
afazeres domésticos? Adélia poetisa a imanência mais comum e reveste de significado até
uma cozinha limpa: “Nesta hora da tarde, quando a casa repousa a obra de minhas mãos é esta
cozinha limpa”332. Foi inclusive classificada muitas vezes como uma dona de casa que faz
poesia, pelo fato de tratar de realidades comuns, do cotidiano de uma dona de casa atarefada,
326 Ibidem. 327 Ibidem. 328 Ibidem. 329 Ibidem. 330 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 331 PRADO, Adélia. Mural. In Oráculos de maio. p. 39. 332 PRADO, Adélia. Na terra como nos céus. In Oráculos de maio. p. 101.
92
imersa nos afazeres domésticos. No entanto, ela afirma que é ali, no cotidiano que se
encontram os grandes temas, o real como lugar de epifania. O real não é outra coisa senão a
história no seu curso, onde a vida acontece e onde também nas experiências históricas se faz a
experiência da Revelação de Deus, que entra na história humana e rompe com aquela linha
divisória entre sagrado e profano, pois na encarnação do Verbo, que segundo Adélia é
“máximo de poesia possível”333, a história humana é assumida e resgatada da fatalidade e
recebe do Verbo, pelo qual todas as coisas subsistem (cf. Cl 1, 15-20), a bem aventurança da
salvação, como supressão do tempo cronológico no tempo de Deus.
333 INSTITUTO MOREIRA SALES. Oráculo de Março. p. 24.
93
CONCLUSÃO
O caminho percorrido por esta pesquisa procurou elaborar uma reflexão a partir da
pertinência da poesia como forma de expressão para a compreensão da linguagem teológica e
de sua densidade, como expressão daquela experiência que se dá primeiramente na
fecundidade do silêncio, da palavra que primeiro se escuta interiormente e que depois, dado
os limites da linguagem, é expressa de maneira a traçar alguns contornos do mistério, que se
revela, mas não se esgota.
Assim, cabe sublinhar alguns elementos importantes e projetar esta reflexão não à uma
conclusão propriamente dito, mas à abertura de possibilidades, que tem nesta pesquisa alguns
elementos propedêuticos para a elaboração de novos caminhos e pensamentos que procuram
estabelecer o diálogo entre teologia e literatura, sobretudo no tocante a poesia, como
linguagem metafórica, rica em simbologias, elementos imagéticos e imaginativos, densos de
significados, que não se encerram na expressão, mas transcendem à realidades maiores.
O primeiro elemento a ser sublinhado é o fato de que toda linguagem que pretende
tratar das realidades relativas à fé, especialmente a teológica, esbarra no limite do alcance do
conceito, haja vista que se trata de mistério e a palavra é sempre aproximativa e nunca
abarcadora. Especificamente na linguagem teológica, o falar de Deus se dá a partir da
analogia, como forma própria de expressão daquelas realidades que nenhuma palavra é capaz
de dizer tudo aquilo que pretende significar, mas que a partir de imagens e símbolos encontra
uma forma aproximativa e cognoscível. Deste modo, a teologia reconhece sua insuficiência,
mas também sua importância quanto à aventura de tornar compreensíveis os conteúdos da fé,
sobretudo no que diz respeito à comunicação não apenas de conceitos, mas de elementos
capazes de promover um encontro de fé.
Outro fator importante é que a linguagem teológica tantas vezes mergulhada num
emaranhado de conceitos abstratos e distantes da compreensão dos homens contemporâneos,
acaba por se estabelecer numa aridez infértil, falando apenas a teólogos, não atenta à vocação
de atualizar os conteúdos da fé para sua melhor compreensão e vivência. A teologia está a
serviço da fé e tem suas bases na Revelação de Deus, que em palavras humanas falou aos
homens, para que eles pudessem compreender e se estabelecer de forma a viver uma
experiência performática da fé. Deste modo, podemos dizer que a teologia é ato segundo,
94
sendo precedida por este processo de Revelação, como experiência vital e histórica de Deus,
que assumiu a realidade humana e se utilizou de todos os elementos da vida humana,
inclusive a linguagem, para revelar seu amor infinito, que abrevia distâncias vivendo entre os
humanos, e se constituindo também humano, conduz à fé ao encontro pleno com seu Autor,
que se Revela na pessoa de Jesus de Nazaré.
A palavra tem lugar de destaque no cristianismo, haja vista que é a religião da Palavra
encarnada, de uma fé que chega pelos ouvidos e de uma Sagrada Escritura. Rahner chama o
Verbo encarnado de corpo do mistério absoluto de Deus, e que a partir da encarnação a
palavra humana foi preenchida de graça e de verdade, e neste sentido, a palavra é densa de
significado, pois traz consigo não uma informação, mas torna presente aquilo que significa.
Tem destaque em meio à reflexão sobre a palavra a poesia, não como mera articulação
de sons em rimas, mas como expressão que retira o homem do palavrório vazio e o coloca na
dinâmica da rendição ao mistério, pois a poesia é palavra que tem sua fonte no coração
humano, sede de sua intimidade e lugar também do encontro com Deus. Como palavra do
coração, a poesia é também palavra do mistério, pois se ocupa em dizer o não dito da
experiência subjetiva e evocar aquelas realidades que a palavra técnica não é capaz senão de
nomear, indicar e distinguir. É nesta esteira que Rahner articula a importância da palavra
poética como palavra que prepara o coração para ouvir a Palavra do mistério divino, revelado
em Jesus Cristo, o Verbo encarnado.
A sensibilidade para dizer e ouvir a palavra poética é próprio do humano, que por obra
da graça é capacitado a perceber a Palavra de Deus nas palavras humanas, sobretudo aquelas
que tem sua origem no coração, como lugar de epifania.
Estar exercitado para ouvir as palavras do coração, em especial a palavra poética, e
ser sensível a ela, é pressuposto para também ouvir a palavra do Evangelho e ser cristão pois,
a insensibilidade à poesia retrata também uma incapacidade para ouvir as palavras do
mistério. A cerca deste fato, Rahner trata de um fechamento que impede de ouvir a
possibilidade encarnatória da palavra humana, que de modo especial acontece na poesia,
como sacramento que indicam realidades profundas do humano. O cristão que não se encontra
exercitado a isso não poderá ouvir a Deus que fala em palavras humanas e esse é um
pressuposto do cristianismo, como religião da Palavra.
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Neste sentido é que podemos compor um panorama que possibilita a aproximação
entre a poesia e a linguagem teológica, no caminho de uma linguagem capaz de elucidar a
realidade do mistério divino, mas ao mesmo tempo, sem a pretensão de abarca-lo pelo
conceito, estabelecer uma comunicação eficaz, que fale ao humano e lhe dê sentido.
Importante sublinhar que, tanto a linguagem poética quanto a linguagem teológica não se
adequam a linguagem comum, das conversas do cotidiano e também cada uma delas possuem
características bastante peculiar e distinta.
A teologia como ciência tem uma linguagem técnica que engloba toda uma filosofia
da linguagem, já a poesia, dentro do contexto da literatura, é expressa dentro de um sistema
linguístico carregado de símbolos, analogias e imagens que corroboram seu sentido estético.
A questão que se impõe é qual é a relevância da aproximação da linguagem teológica
com a poesia, haja vista suas distinções, mas também os elementos expostos neste estudo,
capazes de estabelecer uma linguagem que melhor comunique a densidade do mistério, que
tanto teologia, quanto poesia procuram expor, salvo suas devidas distinções.
A linguagem é um elemento importante para a compreensão da fé e a teologia está a
serviço da elaboração de argumentos que esclareçam a pertinência da fé e os horizontes pelos
quais se podem compreender seu alcance, no entanto, quando se utiliza somente uma
linguagem técnica, o teólogo pode correr o risco de não mais falar à comunidade crente e sua
palavra, ao invés de comunicar e elucidar a fé, pode se tornar infértil, num emaranhado de
conceitos inalcançáveis por não teólogos.
Quando tratamos de teologia, nos voltamos primeiramente para seu objeto, que é Deus
revelado. No entanto, a revelação não é um processo etéreo, mas se dá na história humana, a
partir de elementos da vida, na composição da identidade de um povo que se reconhece
pertencente a Deus. Neste sentido, o lugar onde se experimenta a ação divina é primeiramente
nos acontecimentos históricos, como território sagrado onde Deus se dá a conhecer como
próximo e acessível. Este é o ato primeiro, fonte de toda a teologia que, como ato segundo,
procura elaborar conceitualmente o que originalmente se dá na experiência vital. Na esteira
deste pensamento é que compreendemos a relevância da literatura, e de modo mais preciso a
poesia, como expressão existencial, que supera qualquer elaboração conceitual, e por vezes
árida, e se volta aos sentidos humanos, não como um mero sentimentalismo alienado, mas
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como expressão de vida interior que pulula e que encontra nos versos de um poema lugar
apropriado de manifestação.
A linguagem da revelação é aquela que corresponde aos acontecimentos cotidianos de
um povo que percebe a conjugação do imanente com o transcendente, num elã existencial,
não corriqueiro, mas num olhar pautado pela percepção do extraordinário naquilo que é
ordinário. Também a poesia tem origem nos acontecimentos da vida, lidos a partir de um
olhar que alcança não apenas a aparência das coisas, mas se volta para o essencial, pra aquilo
que está por detrás do véu. O poeta, assim como o teólogo, procura entre as palavras
elementos que possam articular ideias que vão além dos meros conceitos e que possam tornar
presente, no corpo das palavras, o mistério inefável, do qual se é afetado.
Contudo, a relação que se procurou estabelecer neste estudo entre teologia e literatura,
e dentro deste contexto a poesia, quer ser um instrumento que possa colaborar para que a
teologia encontre na poesia um caminho para uma expressão menos árida e mais vivencial, já
que ambas tem origem na contemplação admirada do mundo. A teologia está a serviço do
anuncio do Evangelho, como proposta de vida plena para a humanidade, que é salva das
cruezas da vida a partir do olhar da fé, que alcança sentido mesmo na dor e sofrimento, na
paixão de um Deus próximo, voltado para o ser humano e sua realidade, permeando a história
e seus acontecimentos, de sua presença atuante e comprometida em humanizar o humano, que
por vezes se rende ao bruto de uma existência sem sentido e paixão. A aproximação da
linguagem teológica com a poesia pode ser um instrumento eficaz para a elaboração de um
pensamento teológico mais humano, sensível, capaz de comunicar melhor os elementos da fé,
que tem sua origem no coração humano, como símbolo do mais íntimo do homem, lugar do
encontro com Deus, gênese de toda poesia.
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