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Projeto de pesquisa
Pesquisadora: Ángela FACUNDO NAVIA
Estágio Pós-doutoral, Fundação Casa de Rui Barbosa
Título: Refúgio, reassentamento ou “residência e livre trânsito”?
Colombianos diante das opções de proteção e circulação.
2
Refúgio, reassentamento ou “residência e livre trânsito”?
Colombianos diante das opções de proteção e circulação.
Resumo
O presente projeto de estágio pós-doutoral é um desdobramento de uma pesquisa de
doutorado que resultou na tese intitulada “Êxodos e refúgios: colombianos refugiados no
Sul e Sudeste do Brasil”. O projeto busca aprofundar a indagação da figura contemporânea
do refúgio no Brasil, por meio da análise das dinâmicas e das relações tecidas no universo
institucional do refúgio na cidade do Rio de Janeiro entre um amplo leque de autoridades e
agentes envolvidos com o refúgio e alguns nacionais colombianos, sendo um dos principais
grupos de solicitantes de refúgio no país. Notadamente busca explorar as possíveis mudanças
nessas dinâmicas e relações a partir das opções de circulação e trânsito que se abriram para
nacionais colombianos com a entrada em vigor, entre a Colômbia e o Brasil, do Acordo de
Residência e Livre Trânsito dos países membros do Mercosul.
Introdução e construção teórica do problema
A pesquisa em curso busca aprofundar alguns aspectos que apresentaram novas
perguntas de grande relevância para continuar a reflexão sobre a figura contemporânea do
refúgio no Brasil. Reflexão que envolve não apenas a faceta normativa do refúgio e o que
ela diz sobre os ideais e as concepções de cidadania de uma sociedade, mas a faceta
simbólica que abrange o status de refugiado, diante de outros modos de classificação dos
trânsitos e êxodos originados em eventos ou contextos que colocam em risco a vida das
pessoas. Movimentos que desafiam as classificações jurídico-administrativas que deles são
feitas, as definições sociais e políticas da soberania e do humanitário, e, inclusive, a ordem
nacional das coisas, utilizando a expressão de Liisa Malkki (1995:8).
A tese de doutorado que deu origem ao atual projeto de pesquisa foi o resultado de
uma investigação sobre a figura contemporânea do refúgio no Brasil, analisada por meio dos
processos de refúgio e de reassentamento de alguns nacionais colombianos. A tese
interrogou as diferentes categorias de refúgio e seu processo de produção no contexto de
algumas cidades de três estados brasileiros (Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo),
3
assim como o substrato moral das relações que são tecidas e produzidas no mundo
institucional do refúgio entre pessoas administradas, diferentes agentes de governo,
funcionários de organizações não governamentais, delegados de agências internacionais e
“agentes de integração” nas comunidades locais. Tudo isso, examinando também de que
forma o processo existencial do exílio –no sentido proposto por Said (2001)– afeta e é
afetado pelo processo jurídico-administrativo por meio do qual algumas pessoas, cujas vidas
têm sido marcadas pelo êxodo, tornam-se refugiadas.
Para isso me detive em diferentes lugares e encontros administrativos do universo
institucional brasileiro do refúgio. Os espaços de gestão nos quais foi baseada a pesquisa
fazem parte de duas formas diferenciadas de refúgio geridas pelo governo brasileiro
conjuntamente com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados –Acnur.
Trata-se do Refugio por elegibilidade e do programa de Reassentamento Solidário. Os dois
têm como base comum o marco legislativo internacional de proteção aos refugiados,
estabelecido em acordos e convenções regulados pela ONU, mas seu caráter, definição e
implementação comportam significativas diferencias, como será explicado mais tarde.
Contudo, a ênfase colocada durante a pesquisa nos dois estados (Rio Grande do Sul
e São Paulo), onde são desenvolvidas ambas as formas de refúgio (refúgio espontâneo e
reassentamento), não me permitiu aprofundar o estudo na cidade de Rio de Janeiro, apesar
de se tratar de uma das principais cidades receptoras de populações refugiadas, bem como
no seu universo institucional. Nesta cidade, o universo institucional do refúgio inclui a
Cáritas arquidiocesana (em qualidade de ONG conveniada com o Acnur e com o Ministério
da Justiça através do Conare); a Delemig da Polícia Federal como espaço de passagem
obrigatório no processo de ativação do refúgio; e uma rede mais abrangente de “sociedade
civil” que envolve não apenas organizações da igreja católica, mas professores
universitários, advogados e comissões da OAB, associações de migrantes de diversa índole,
comitês para refugiados e diversos profissionais que atuam nos programas de atendimento:
professore/as de português, psicólogo/as, assistentes sociais, voluntários etc. Trata-se de
espaços e pessoas que, agindo juntas, configuram um lugar social particular para o refúgio e
para os refugiados dentro da cidade.
4
O segundo aspecto, que apareceu durante o desenvolvimento da pesquisa de campo
e que merece maior atenção e discussão, foi a importante mudança que trouxe a entrada em
vigor entre a Colômbia e o Brasil do Acordo de Residência e Livre Trânsito dos países
membros do Mercosul1. Os colombianos, segundo os relatórios do Acnur e do Conare,
constituem o segundo maior grupo de refugiados, depois dos angolanos2, porém a maior
parte desses refugiados colombianos tem chegado ao país por meio do programa de
Reassentamento Solidário e não pelas vias tradicionais do refúgio. Considerando essas
informações, me pergunto se com a vigência do Acordo do Mercosul os colombianos em
situação de êxodo continuariam optando pela solicitação de um pedido de refúgio ou se
prefeririam serem amparados nessa nova opção de circulação que oferece o Acordo. Meu
intuito é indagar quais elementos são acionados na construção das opiniões e negociações
das pessoas ao optarem por uma ou outra forma de permanência no território brasileiro.
Pretendo analisar também a opinião dos agentes desse mundo institucional do refúgio no Rio
de Janeiro a respeito das mudanças nas escolhas dos refugiados colombianos, engendradas
com a vigência do acordo e seus desdobramentos administrativos e políticos.
Nesse sentido, as duas questões elencadas – a necessidade de aprofundar o estudo na
cidade do Rio de Janeiro e a proposta de analisar como as pessoas optam e como suas opções
são interpretadas – estão associadas e constituem o cerne desta proposta: Na medida em que
o estado e a cidade do Rio de Janeiro não têm implementado o programa de Reassentamento
Solidário, continuariam sendo lugares privilegiados de entrada e estada de refugiados
colombianos? O Acordo do Mercosul teria modificado a quantidade de pessoas colombianas
consideradas como refugiadas no estado? Que diferenças burocráticas e existenciais
marcariam cada uma das experiências das pessoas que ativam um pedido de refúgio ou que
ativam o Acordo do Mercosul? Quais seriam as considerações tanto práticas quanto
1 Doravante referido no texto como “Acordo do Mercosul” para facilitar a leitura. 2 Os dados fornecidos pelo Conare a respeito da quantidade de refugiados no Brasil nem sempre apresentam
informações exatas, analisei este aspecto na minha tese de doutorado (Facundo, 2014:33). Atualmente
desenvolve-se um estudo para “traçar o perfil dos refugiados no Brasil”, cujo responsável é o IPEA (Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada) e cujos resultados, segundo o site do Ministério da Justiça, deveriam ficar
prontos em 2014. Mesmo com imprecisão nos dados, os relatórios e números apresentados coincidem ao
afirmar que os colombianos constituem o segundo maior grupo de refugiados depois dos angolanos. Essa
relação tem começado a mudar com a entrada em vigor da cláusula de cessação para refugiados de Angola e
da Libéria em 2012. De fato alguns jornais noticiaram em abril de 2014 que os colombianos já seriam o
primeiro grupo de refugiados no Brasil com 1.154 pessoas reconhecidas. Ver:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/04/brasil-tem-hoje-52-mil-refugiados-de-79-nacionalidades-
diferentes.html
5
simbólicas levadas em conta pelas pessoas no momento em que optam por uma das duas
entradas? E, quais são as respostas, posicionamentos e diferenças dos distintos agentes do
universo institucional carioca sobre esse novo panorama de opções?
São esses dois aspectos interconectados que este projeto pretende privilegiar, dentro
dos múltiplos possíveis desdobramentos da pesquisa de doutorado, por considerar que neles
convergem grandes questões sobre o refúgio como uma figura social, política, legal e moral.
Em outras palavras, o refúgio como figura de proteção, pode ser considerado como um
mecanismo de reconhecimento público de alguns tipos de sofrimento ou, notadamente, de
um “fundado temor de perseguição”. Nesse sentido, para as pessoas o reconhecimento do
status de refugiadas não é apenas uma forma de permanência no território brasileiro, mas
uma forma de reconhecimento moral e social da sua historia de banimento (DAS, 1997:564).
Mas, o refúgio também é uma forma de administração desses êxodos originados em
determinados tipos de expulsões, deste modo ele também é um filtro que distingue e
classifica as pessoas que buscam atravessar as fronteiras ou que transitam pelo território
nacional. Além disso, as pessoas refugiadas oficialmente reconhecidas são também fixadas
em lugares administrativos e submetidas a exercícios de tutela (SOUZA LIMA, 2012) que
limitam suas possibilidades de mobilidade no planeta, ainda que permitam sua estada em um
território determinado.
Por essa via descrita, percebo como nas perguntas também convergem grandes e
caras questões a respeito da conformação dos ideais de nação. A proteção humanitária que
em princípio deveria estar representada na figura do refúgio é também um movimento de
reafirmação da fronteira de uma unidade pensada como nacional (BUTLER & SPIVAK,
2007). A seleção de algumas pessoas como refugiadas é também um movimento que
estabelece quais indivíduos poderiam ou não ganhar uma nova pertença à nação e quais
deveriam continuar sendo pensados como imigrantes, com permissões e membrecias
provisórias, demarcando assim os próprios limites da razão humanitária (FASSIN, 2010:11).
Considero que indagar sobre as diferenças e as possibilidades de permanência de
colombianos em êxodo no Rio de Janeiro não só exige um diálogo entre diferentes
disciplinas que se ocupam do assunto (Relações Internacionais, Direito, Antropologia etc.),
mas permite complementar o debate mais abrangente que comecei na pesquisa doutoral
6
sobre as fronteiras externas e internas da “nação brasileira” (SEYFERTH, 2000; 2008;
SAYAD, 1991) em um contexto de expectativa de crescentes fluxos migratórios e de
modificações da legislação migratória que têm envolvido e apelado à participação de amplos
setores sociais nos debates a respeito.
Objetivos
Analisar como a entrada em vigência do Acordo de Residência e Livre Trânsito dos
países membros do Mercosul para nacionais colombianos altera as dinâmicas da recepção
de refugiados colombianos espontâneos na cidade do Rio de Janeiro. Considerando que nem
a cidade nem o estado de Rio de Janeiro tem desenvolvido o programa de reassentamento
Solidário de refugiados. Tudo isso, avaliando de que maneira as mudanças nas opções
migratórias transformam as concepções e as negociações que definem o valor moral, social,
legal e administrativo da figura do refúgio.
Os objetivos específicos do projeto são: 1) Descrever o universo institucional do
refúgio do estado e da cidade do Rio de Janeiro, identificando atores, posições, espaços,
tensões e diferenças entre os agentes e as pessoas que o conformam, 2) Identificar os critérios
levados em consideração por alguns colombianos em êxodo para ativar um pedido de refúgio
ou uma solicitação de visto por meio do Acordo do Mercosul, 3) Indagar as opiniões e
observar as práticas de diversos agentes do mundo institucional do refúgio na cidade de Rio
de Janeiro sobre as atuais condições migratórias dos colombianos em êxodo e 4) Comparar
a dinâmica e as ações empreendidas no estado do Rio do Janeiro para o atendimento de
refugiados colombianos com as dinâmicas e as ações dos estados brasileiros onde é
desenvolvido o programa de Reassentamento Solidário, com base nos achados da pesquisa
doutoral que deu origem a o presente projeto.
Justificativa e contexto do projeto
A existência legal do atual marco normativo do Refúgio por Elegibilidade remonta-
se ao ano 1951, quando foi aprovada a declaração conhecida no campo do refúgio como A
Convenção de Genebra. Juntamente com a Convenção de 1951, que finalmente passou a
7
vigorar em 19543, outra ferramenta internacional é importante para entender os mecanismos
atuais de “proteção aos refugiados”. Trata-se do “Protocolo de 1967”, relativo ao “Estatuto
dos Refugiados”, por meio do qual foram eliminadas as restrições temporais e geográficas
que tinham sido estabelecidas na Convenção de 1951. Até então, o refúgio como categoria
jurídica era pensado como uma ferramenta para o atendimento das pessoas perseguidas antes
do 1º de janeiro de 1951, no contexto europeu de guerra e pós-guerra.
As autoridades do governo brasileiro ratificaram a Convenção de 1951 em novembro
de 1960 e, 12 anos depois, em abril de 1972, aderiram ao Protocolo de 1967, levantando as
restrições em matéria geográfica e temporal. As políticas migratórias brasileiras durante o
pós-guerra, abordadas por Seyferth (1997; 2011), apontaram uma preferência nacional pela
eleição de certos grupos migratórios, através do estabelecimento de filtros para a recepção,
inclusive no caso daqueles cuja migração se enquadrava na legislação internacional sobre
refugiados e apátridas. Sem desconhecer a importância desse histórico, o projeto se
concentra, porém, nas políticas contemporâneas de refúgio que, no Brasil, estão definidas
pela Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, e pela posterior implementação de outros
programas de proteção.
Mediante essa lei – e graças a uma ampla mobilização de diferentes setores sociais
envolvidos com os assuntos migratórios – mais de 20 anos depois de haver aderido à
Convenção de 1951 e ao Protocolo de 1967, o Estado brasileiro definiu e regulamentou os
mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951. Dessa maneira,
estabeleceu-se um marco jurídico-administrativo segundo o qual:
Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
I. Devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de
nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II. Não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência
habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no
inciso anterior;
III. Devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu
país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. (Lei nº 9.474, de 22 de julho de
1997, Título I, Capítulo I, Secção I, Artigo 1º).
3 A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados abre sua apresentação com a seguinte informação: “Adotada
em Genebra, Suíça, no dia 28 de julho de 1951, pela Conferência de Plenipotenciários sobre o Estatuto dos
Refugiados e dos Apátridas (Nações Unidas), convocada pela Assembleia Geral em sua resolução 429 (V), de
14 de dezembro de 1950. Entra a vigorar: 22 de abril de 1954, de conformidade com o artigo 43, Série Tratados
das Nações Unidas, Nº 2545, Vol. 189, p. 137”.
8
Esse último inciso (inciso terceiro) que foi incluso na lei brasileira de refúgio e que
faz alusão a uma situação de “grave e generalizada violação dos direitos humanos”, obedece
à adoção dos princípios formulados em 1969 pela Organização Para a União Africana (Atual
União Africana) e sua inclusão na “Declaração de Cartagena”4. Esta Declaração foi o
resultado, em forma de conclusões e recomendações, do “Colóquio sobre proteção
internacional dos refugiados na América Central, México e Panamá”, realizado na cidade
colombiana de Cartagena de Índias em 1984. Esse instrumento, discutido e reformulado na
América Latina na década de 1980, se mostra muito sugestivo na história do campo do
refúgio, pois marca um momento importante na discussão sobre o tema perante o panorama
regional de conflitos armados, reemergência de exércitos para estatais e ditaduras ativas ou
recém-terminadas que exigiram a reconfiguração dos marcos de ação a propósito dos
deslocamentos maciços de pessoas e das novas ordenações nacionais e continentais de
violência de desterro.
Para aquela época, a Declaração de Cartagena foi apresentada como uma resposta à
situação centro-americana na qual o número de pessoas com necessidade de proteção
aumentava por conta da situação sociopolítica da região. Tratava-se de pessoas não
necessariamente perseguidas a título individual, mas que eram obrigadas a fugir de seus
locais habituais de moradia como consequência dos conflitos armados. Posteriormente, essa
causa para o refúgio foi frequentemente ativada para avaliar a situação de deslocamento
maciço na Colômbia, não somente nos processos de reconhecimento jurídico-administrativo
de pessoas como refugiados internos (deslocados), mas também no seu reconhecimento
como refugiados em outros países.
Precisamente, foram as impactantes dimensões do drama do deslocamento forçado
na Colômbia que lhe serviram de base à proposta de alguns governos da região – entre eles,
o brasileiro – para implementar, conjuntamente com o Acnur, o segundo programa de
proteção referido no projeto. Trata-se do Programa de Reassentamento Solidário que, na
sua versão latino-americana, é incorporado por meio da “Declaração e Plano de Ação do
4 Segundo a mencionada declaração: “[…] A definição do conceito de refugiado recomendada para sua
utilização na região é aquela que, além de conter os elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967,
considere também como refugiados às pessoas que hajam fugido de seus países porque sua vida, seguridade
ou liberdade hajam sido ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos,
violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstancias que hajam perturbado gravemente a ordem
pública” (Terceira conclusão da Declaração de Cartagena).
9
México para fortalecer a proteção internacional dos refugiados na América Latina”5. Nesses
instrumentos, salienta-se a situação dos refugiados colombianos como o cenário mais
problemático da região para esse momento, e foi proposta a opção do reassentamento como
uma das três soluções duradouras, depois das prioritárias: “repatriação voluntária” e
“integração local no primeiro país de origem”. Basicamente, trata-se de oferecer às pessoas,
previamente reconhecidas como refugiadas por algum Estado nacional e sem integração
exitosa nele, a possibilidade de se estabelecer em outro país.
Ao longo do texto da Declaração e Plano de Ação do México, é realizado um
constante elogio e um reiterado chamado à “solidariedade internacional” e à
“responsabilidade compartilhada” nos casos de “crises humanitárias”. Em outros
documentos internacionais sobre refúgio6, esse chamado havia sido feito em termos de
procurar a cessação das causas que originavam o deslocamento forçado dentro dos países
expulsores. Porém, nesse caso, o chamado à solidariedade foi enunciado como a necessidade
de adiantar ações conjuntas para atender a crise originada pelos refugiados colombianos nos
países fronteiriços, invocando mais o espírito de uma das conclusões feitas na Declaração
de Cartagena, segundo a qual se deve:
Ratificar a natureza pacífica, apolítica e exclusivamente humanitária da concessão de asilo
ou do reconhecimento da condição de refugiado e sublinhar a importância do princípio
internacionalmente aceite segundo o qual nada poderá ser interpretado como um ato
inamistoso contra o país de origem dos refugiados (Declaração de Cartagena, III, conclusão
quarta).
Esses princípios expressados em termos de comportamento humanitário e caráter
apolítico da concessão de refúgio, nos quais é privilegiada a ajuda solidária para com os
países vizinhos dos países expulsores, serão importantes elementos na orientação do
programa de Reassentamento Solidário no Brasil. O foco dessa orientação não está nos
problemas que originam o êxodo das populações, mas assume-se que as populações em
êxodo são o problema que tem de ser resolvido.
5 Essa declaração é adotada pelo Acnur e alguns países signatários, durante a reunião comemorativa do
vigésimo aniversário da Declaração de Cartagena, realizada em Ciudade de México, os dias 15 e 16 de
novembro de 2004. 6 Ver, por exemplo, a Declaração de San José Sobre Refugiados e Pessoas Deslocadas, que em sua oitava
conclusão diz: “Reiterar la responsabilidad de los Estados de erradicar, con apoyo de la Comunidad
Internacional, las causas que originan el éxodo forzado de personas y, de esa manera, limitar la extensión de la
condición de refugiado, más allá de lo necesario”.
10
Para a época da promulgação do Plano de Ação do México, o Brasil já tinha assinado
(em 1999) um acordo com o Acnur para o reassentamento de refugiados. De fato, a Lei nº
9.474/97, no artigo 46, já previa o reassentamento e, além disso, já se haviam tido duas
experiências a respeito. No ano 2002, chegou o primeiro grupo a ser reassentado, composto
por 23 refugiados afegãos provenientes da Índia e do Irã e, em setembro de 2003, chegaram
16 refugiados colombianos provenientes da Costa Rica e do Equador (MOREIRA, 2012;
SAMPAIO, 2006). Contudo, foi na reunião onde se originou o Plano de Ação do México,
que o governo brasileiro propôs estabelecer em seu território “um programa de
reassentamento regional para refugiados latino-americanos, marcado pelos princípios de
solidariedade internacional e responsabilidade compartilhada” (Plano de Ação do México,
Capítulo 3, N° 3). Desde então, o programa de Reassentamento Solidário no Brasil estaria
basicamente orientado para a recepção de refugiados colombianos e a única exceção até o
momento é o reassentamento de um grupo de refugiados de origem palestina que chegou em
2007 (HAMID, 2012).
Com a promulgação da Lei nº 9.474/97, e como parte dos mecanismos para
implementar no Brasil o Estatuto dos Refugiados, foi criado o Comitê Nacional para os
Refugiados (Conare). Esse Comitê foi definido como um “órgão de deliberação coletiva no
âmbito do Ministério da Justiça” e é o encarregado de “analisar o pedido e declarar o
reconhecimento da condição de refugiado” (ACNUR & IMDH, 2012:13). No caso do
refúgio por elegibilidade, foi estabelecido um convênio com as Cáritas arquidiocesanas de
São Paulo e do Rio de Janeiro para seu gerenciamento. No caso do programa de
Reassentamento Solidário, outras ONGs estabeleceram convênios com o Acnur e com o
Ministério da Justiça para serem implementadoras e administradoras do programa. Na cidade
de Porto Alegre, encontra-se a Associação Antônio Vieira (Asav) e em Guarulhos o Centro
de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH). Somente esses estados (Rio Grande do Sul e São
Paulo) têm programas ativos de reassentamento e são as duas ONGs mencionadas as
encarregadas de acompanhar e assessorar o processo de “integração” dos refugiados nas
comunidades locais7.
7 Outros estados brasileiros fizeram parte do programa de Reassentamento Solidário, mas foi desativado depois
das primeiras experiências. Segundo as informações de um membro do Conare, em Caxias do Sul, foram
reassentadas três famílias, uma em Pernambuco e perto de 30 em Rio Grande do Norte. Esse assunto será
abordado detalhadamente na segunda parte da tese.
11
Além da manutenção permanente dessas formas de refúgio, os agentes
governamentais, os delegados para Brasil de agências internacionais e a chamada
“Sociedade Civil organizada”, vinculada aos assuntos relativos à migração, tem participado
e organizado nos últimos anos diversas atividades a respeito da migração e do refúgio,
liderando, por exemplo, no ano 2010, uma reunião comemorativa do 60º aniversário do
Acnur da qual resultou a “Declaração de Brasília”. Esse documento é apresentado pelo
Acnur e pelas autoridades do governo brasileiro como uma contribuição regional na
ratificação dos mecanismos de proteção aos refugiados e apátridas.
Atualmente, adiantam-se preparativos para a comemoração em 2014 dos 30 anos da
“Declaração de Cartagena” e desenvolvem-se as etapas prévias da Conferência Nacional
sobre Migrações e Refúgio (Comigrar). Tal Conferência é uma iniciativa governamental que
procura produzir insumos para a formulação da “Política e o Plano Nacional de Migrações
e Refúgio”, com o objetivo de modificar o “Estatuto do Estrangeiro” (Lei nº 6.815, de 19 de
agosto 1980), formulado durante a época da ditadura militar e que, ainda hoje, regula a
política migratória brasileira. Essas atividades somadas a outras iniciativas mais pontuais –
como a criação ou reativação de comitês estaduais para refugiados, a assinatura de alguns
acordos de cooperação técnica para produzir números sobre o refúgio e outros variados
encontros de discussão e processos de formação sobre o tema – apontam para um interesse
manifesto nessa questão, tanto por parte do governo quanto da chamada “sociedade civil
organizada”. Essa profusão de atividades e suas características evidenciam também um
espaço social em franca movimentação e transformação.
“O problema” dos refugiados colombianos e as novas opções:
Dentro desse marco geral do refúgio contemporâneo no Brasil, os refugiados
colombianos têm ocupado um lugar de destaque. Não apenas por tratar-se de um dos grupos
nacionais com maior número de solicitantes de refúgio e de refugiados reconhecidos, mas
notadamente pela decisão do governo brasileiro de orientar o programa de Reassentamento
Solidário, quase que exclusivamente, à recepção de refugiados colombianos provenientes do
Equador. O reassentamento, além disso, é constantemente apresentado pelo mundo afora
como o programa bandeira do Brasil em matéria de proteção a refugiados (FACUNDO,
12
2014). Tenho argumentado que a possibilidade de exibir o êxito desse programa radica em
boa medida no fato de que o “problema dos refugiados colombianos” seja em realidade um
“não problema” (FACUNDO, 2014:20). Ou seja, a quantidade de refugiados recebidos não
parece representar um desafio para as comunidades locais, a experiência de reassentamento
de colombianos é avaliada de maneira positiva e tem representado elogios para o governo
brasileiro, os colombianos são apresentados como facilmente “integráveis” na sociedade
brasileira pela sua “proximidade cultural” e os casos não exitosos de integração são avaliados
como exceções dessa norma.
Porém, as cifras de pessoas refugiadas em território brasileiro representam um
percentual muito baixo no nível mundial. Se levarmos em conta a cifra de 10,5 milhões de
refugiados no mundo, que publicou o ACNUR para o período compreendido entre 2011 e
2012 (ACNUR, 2012), o Brasil teria somente o 0,04% do total de refugiados no mundo. Isso
levando em conta que segundo cifras oferecidas pelo Conare, para março de 2013, havia no
Brasil 4.262 refugiados reconhecidos. A relação a respeito dos refugiados colombianos não
é a melhor, pois dos quase quatrocentos mil refugiados colombianos reconhecidos no
mundo, o Brasil teria recebido no período menos de setecentos. Isso quer dizer que o Brasil
teria recebido ao 0,19% dos refugiados colombianos no mundo. Enquanto que o Equador e
a Costa Rica têm recebido, respectivamente, cerca de 55.000 e 17.000; isto indica que
somente o Equador tem reconhecido perto de 15% dos refugiados colombianos, sem contar
aqueles que se encontram em processo de reconhecimento ou que ingressaram no território
sem ativar nenhum dos programas de proteção.
A partir do panorama descrito, parece que a via principal e privilegiada de recepção
de nacionais colombianos em busca de proteção internacional no Brasil se encontra mais no
reassentamento de populações do que no refúgio por elegibilidade. Somando-se a esse
panorama, no ano de 2011 entrou em vigor o Acordo de Residência e Livre Trânsito dos
países membros do Mercosul entre o Brasil e a Colômbia. Depois de alguns percalços8 na
8 Nos últimos meses do ano 2011 foi questionada a reciprocidade por parte do governo da Colômbia na
implementação do acordo de Residência e Livre Trânsito dos países membros do MERCOSUL e o governo
brasileiro decidiu suspender temporariamente a recepção de solicitações de visto de colombianos ativadas por
médio desse mecanismo. Em dezembro do mesmo ano os inconvenientes foram resolvidos e as Delemig
voltaram a recepcionar os documentos para os cidadãos da Colômbia no marco do acordo.
13
sua implementação e, a partir do ano 2012, essa opção de entrada e permanência no território
nacional tem atraído um número também importante de nacionais colombianos.
Algumas das pessoas que conheci no desenvolvimento da minha pesquisa doutoral,
que originalmente tinham vindo ao Brasil com o intuito de fazer um pedido de refúgio, me
explicaram que terminaram optando pela permanecia por meio desse acordo e abandonando
a solicitação de proteção. As razões exprimidas foram, entre outras, os longos prazos de
espera para obter uma resposta definitiva do Conare; os frequentes problemas com a
renovação de documentos como o protocolo de estada e a carteira de trabalho enquanto
aguardavam a resposta do Conare; a sensação ou experiência de que ser refugiado pode ser
uma identidade estigmatizada fazendo deles objeto de preconceitos que dificultavam sua
vida profissional e social; as condições exigidas pelo Acnur e o Conare de não voltarem para
Colômbia sem permissão e as dificuldades de obter documentos de viagem e permissões
para irem para outros países.
Desta maneira, existem nacionais colombianos que, mesmo sentindo e defendendo
que seu êxodo foi originado numa perseguição, optam pela entrada e permanência que o
Acordo do Mercosul oferece, bem como suas maiores opções de mobilidade e de circulação.
Esta situação deixa em aberto a pergunta sobre o que motivaria a decisão das pessoas que
continuam optando por ativar uma solicitação de refúgio e, de maneira mais ampla, quais os
limites e as restrições da figura do refúgio estariam sendo apontados por essa nova opção de
circulação que permite às pessoas se sentirem a salvo, mas não as obriga à permanência
administrada, a solicitar permissões para se movimentar ou a depender da interpretação e do
julgamento de sua história como um caso de “fundado temor de perseguição” para
permanecerem em território brasileiro.
Considero que Rio de Janeiro como estado que, historicamente junto com São Paulo,
Brasília e Amazonas, tem recebido mais solicitações de refúgio do que outros estados
brasileiros (ACNUR, 2013), tendo um número considerável dos colombianos refugiados no
Brasil e não tendo desenvolvido o Programa de Reassentamento Solidário, é um espaço
privilegiado para indagar por essas mudanças. Isto pelas características atuais da recepção
de solicitantes colombianos e pelas discussões, contrastes e limites da figura do refúgio
evidenciados por essas mudanças e pelos trânsitos e dinâmicas concretos dos nacionais
colombianos que chegam à cidade. Tudo isso reforçado no atual marco de discussão
14
promovido pelo processo da Comigrar que, discutindo sobre a imigração, a emigração e o
refúgio, evidencia, mais do que em outros momentos, quais são os debates e desafios em
jogo em matéria de circulação de pessoas, de consolidação de um espaço regional
humanitário latino-americano, no qual existe um simultâneo e contraditório crescimento das
preocupações de segurança nacional, enquanto alguns setores sociais se movimentam no
sentido de ampliar cada vez mais o reconhecimento de direitos e cidadanias sem restrições.
Abordagem metodológica
A abordagem proposta para o desenvolvimento do projeto é fundamentalmente
etnográfica. Num primeiro espaço de pesquisa exploratória se estabelecerão encontros,
conversas, entrevistas com diversos agentes e atores que participam do mundo institucional
do refúgio no Rio de Janeiro. Privilegiando o contato com os agentes da Cáritas, da Delemig,
do Comitê Inter setorial para os refugiados e da rede ampla da sociedade civil que trabalha
com migrantes e refugiados. Nesse primeiro espaço de exploração serão desenvolvidas
entrevistas, conversas e encontros com nacionais colombianos (previamente contatados para
a pesquisa doutoral) que tenham mudado sua condição migratória no sentido proposto neste
texto ou que estejam aconselhando parentes e/ou amigos sobre as melhores opções para sua
entrada e permanência em território brasileiro.
Num segundo espaço de exploração serão acompanhados, descritos e analisados
etnograficamente alguns dos encontros de discussão, no estado do Rio de Janeiro e em outros
estados do país, sobre a questão da migração e do refúgio, notadamente aqueles promovidos
no marco da Comigrar ou que se apresentem como desdobramento de dito processo.
Tentando identificar debates, contradições, desafios e atores envolvidos na definição das
políticas, delimitação de migrações desejáveis e indesejáveis, critérios para a extensão ou
redução dos direitos políticos, sociais e econômicos para os imigrantes etc.
Essas atividades estarão acompanhadas e terão como base uma pesquisa bibliográfica
e documental que me permita não apenas aprofundar nas indagações sobre a figura do
refúgio desde o ponto de vista antropológico, mas identificar pontos de confluência,
contradições ou complementações desde a perspectiva do direito e das relações
internacionais. Buscarei com essa revisão aprofundar também no conhecimento do contexto
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institucional do refúgio no estado e na cidade de Rio de Janeiro, tanto quanto no atual
processo de discussão enquadrado na conferência Comigrar e seus desdobramentos.
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