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Universidade de Braslia
Instituto de Cincias Humanas
Departamento de Servio Social
Tas Leite Flores
Proteo social, Sade e trabalho:
O Auxlio-doena e a incapacidade laborativa devida
dependncia do lcool
Braslia (DF), maro de 2008.
Tas Leite Flores
Proteo social, Sade e trabalho:
O Auxlio-doena e a incapacidade laborativa devida
dependncia do lcool
Monografia apresentada ao Departamento de Servio Social para obteno do diploma de graduao em Servio Social.
Orientadora: Prof. Dr. Ivanete Boschetti.
Braslia (DF), maro de 2008.
2
Este trabalho de monografia foi aprovado pela seguinte banca examinadora:
Professora Dr. Ivanete Boschetti
Departamento de Servio Social/ IH
Universidade de Braslia
Orientadora
Mt. Cludia Regina Meron de Vargas
Assistente Social orientadora de estgio curricular supervisionado
Hospital Universitrio de Braslia
1 membro
Prof. Dr. Marlene Teixeira Rodrigues
Departamento de Servio Social/ IH
Universidade de Braslia
2 membro
3
Agradecimentos
A Deus,
Por esta vitria e ter me sustentado, inclusive, nos momentos mais difceis dessa jornada.
A minha famlia: meus pais e irmos,
Que lutaram ao meu lado com fora e compreenso.
Chefia, Isabel Cristina, e colegas do PAA/HUB,
Pelo companheirismo, incentivo na construo da pesquisa e crescimento profissional,
Aos clientes do PAA/HUB.
Por terem me inspirado e motivado a realizar o percurso deste estudo. Sem vocs, este
trabalho no se concretizaria.
Aos amigos da juventude de Nova Vida,
Pelas palavras de apoio e nimo.
s minhas amigas do curso de Servio Social,
Pela cumplicidade, amizade e desafios compartilhados.
Aos colegas do GESST/SER da Universidade de Braslia,
Pelo companheirismo, leituras compartilhadas e trabalhos desenvolvidos.
Aos Professores do Departamento de Servio Social,
Pelos aprendizados, desafios e reflexes construdas nestes quatro anos de graduao.
Aos funcionrios do Departamento de Servio Social,
pela cooperao nos assuntos administrativos.
Prof. Marlene Teixeira Rodrigues,
pela disponibilidade em participar desta banca de defesa.
Assistente Social Cludia Regina Meron de Vargas,
Pelo exemplo profissional, sugestes e valiosa orientao na construo do percurso dessa
pesquisa.
Prof. Ivanete Boschetti,
Por me mostrar os caminhos da pesquisa cientfica e pela confiana em mim depositada.
4
Resumo
Este trabalho analisa o benefcio auxlio-doena como um mecanismo de proteo
social no contexto de incapacidade laborativa devida sndrome de dependncia do lcool
(SDA). A pesquisa situa o benefcio na legislao previdenciria e o analisa a partir da
concepo de Seguridade Social consagrada na Constituio de 1988. Foram realizadas
entrevistas semi-estruturadas com oito segurados do RGPS em tratamento no PAA/HUB. O
estudo contrasta os aspectos legais implementao do auxlio-doena no contexto do
tratamento especializado em sade. Objetivou-se caracterizar a qualidade do acesso ao direito
previdencirio e a relao entre lcool e trabalho que fundamenta sua concesso. Os
resultados mostram que prevalece uma ausncia de articulao institucional entre o INSS, as
instituies de trabalho e os servios de sade. Aponta desafios para a concretizao do
trabalho como um fator de proteo e aes de preveno e promoo da sade nos ambientes
de trabalho.
Palavras-chave: seguridade social, auxlio-doena, trabalho, direito social, sndrome de
dependncia do lcool.
5
Lista de Siglas
CAPs Caixas de Aposentadoria e Penses
CAT Comunicao de Acidente de Trabalho
Cebrid - Centro Brasileiro de Informaes sobre Drogas Psicotrpicas
CETA - Centro de Estudos e Tratamento em Alcoolismo
CF Constituio Federal
CID - Cdigo Internacional de Doenas
CLT - Consolidao das Leis do Trabalho
CNAE - Classificao Nacional de Atividades Econmicas
DRT Delegacia Regional do Trabalho
DSM - Manual Diagnstico e Estatstico dos Transtornos Mentais
FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Servio
Funabem - Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor
GESST/ SER - Grupo de Pesquisas em Seguridade Social e Trabalho
HUB Hospital Universitrio de Braslia
IAPs Institutos de Aposentadoria e Penses
Inamps Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia Social
INPS - Instituto Nacional de Previdncia Social
INSS - Instituto Nacional de Seguro Social
LBA - Legio Brasileira de Assistncia
Lops - Lei Orgnica da Previdncia Social
LOS Lei Orgnica da Sade
MPAS - Ministrio da Previdncia e Assistncia Social
MTE Ministrio do Trabalho e Emprego
OMS Organizao Mundial da Sade
PAA - Programa de Atendimento ao Alcoolismo
PBPS - Plano de Benefcios da Previdncia Social
PIS - Programa de Integrao Social
PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios
RPS - Regulamento da Previdncia Social
SAT - Seguro Acidentes de Trabalho
Sinpas - Sistema Nacional de Previdncia e Assistncia Social
SUS Sistema nico de Sade
UnB Universidade de Braslia
6
Sumrio
7
Introduo 08
1 A Previdncia Social e construo dos direitos sociais no Brasil 12
1.1 O conceito de Seguro Social e a noo de direito social 12
1.2 A origem do auxlio-doena na previdncia social e a insustentabilidade da lgica do seguro social 16
1.3 A Seguridade Social na CF de 1988, as relaes de trabalho e o auxlio-doena.
24
2 Ampliando a compreenso do auxlio-doena como direito social: as interfaces entre sade e previdncia 28
2.1 Fundamentao legal do auxlio-doena, direito ao trabalho e direito ao tratamento 33
2.2 Particularidades do auxlio-doena acidentrio 40
3 O consumo indevido do lcool como um problema de Sade Pblica 46
3.1 Sade Mental e Trabalho: uma abordagem sobre a sndrome de dependncia do lcool 51
3.2 O auxlio-doena no contexto de incapacidade devida sndrome de dependncia do lcool 56
4. Apresentao do Programa de Atendimento ao Alcoolismo (PAA)/HUB 61
4. 1 Metodologia do trabalho de campo 63
4. 2 Resultados encontrados 66
4.2.1 A relao lcool e trabalho como fundamento para a concesso do auxlio-doena 68
4.2.2 Dificuldades do acesso ao auxlio-doena: a posio do empregador e estratgias do trabalhador 74
4.2.3 A concepo do auxlio-doena como direito para os segurados: a relevncia do tratamento especializado 77
4.2.4 O auxlio-doena no contexto de promoo da sade: aposentadorias, retorno ao trabalho e readaptao profissional 80
5 Consideraes finais 85
6 Referncias bibliogrficas 86
Anexo 92
Introduo
A seguridade social brasileira uma importante conquista social consagrada na
Constituio Federal (CF) de 1988. Integra as polticas pblicas de sade, previdncia e
assistncia social. Os benefcios e servios oferecidos pela previdncia garantem uma
proteo social aos trabalhadores e s suas famlias nos momentos de no insero no
mercado de trabalho, como desemprego, velhice, invalidez e doenas, contribuindo para
regular as relaes de trabalho (SALVADOR; BOSCHETTI, 2003).
Segundo o art. 201, I, da CF, obrigao da previdncia a cobertura das doenas que
acometam aos trabalhadores. Tal obrigao mostra-se relevante, particularmente, quando se
reconhece a complexidade da dinmica entre sade e trabalho. As transformaes no mundo
do trabalho e nos processos produtivos exigem maior qualificao dos trabalhadores e
acarretam maiores desgastes mentais. Nesse sentido, o direito sade se torna indispensvel e
inegocivel.
No Regime Geral da Previdncia Social (RGPS), a proteo da sade dos
trabalhadores envolve, dentre outros, um seguro de sade, o benefcio auxlio-doena,
(doravante denominado AD ou benefcio), dividido nos tipos previdencirio e acidentrio.
Trata-se de renda mensal garantida ao segurado que se encontrar mais de quinze dias
incapacitado para o trabalho e enquanto persistir a incapacidade laborativa, avaliada pela
percia mdica do INSS. As doenas podem ser ou no relacionadas ao trabalho. O tipo
previdencirio cobre as doenas comuns e garantido a todos os segurados. J o acidentrio,
cobre os acidentes de trabalho e as doenas a ele equiparadas. Essa distino tem implicaes
previdencirias e legais.
Dentre as doenas cobertas pelo auxlio-doena, est a sndrome de dependncia do
lcool (SDA), popularmente conhecida como alcoolismo. um grave problema de sade
pblica, atingindo a populao como um todo e aos trabalhadores em particular. As suas
conseqncias clnicas, psquicas e sociais podem incapacitar para o trabalho. A tendncia
previdenciria de reconhec-la como doena incapacitante e o conseqente acesso dos
segurados ao tratamento um fato novo. At o momento, os seus efeitos tm se dado como
AD previdencirio. A possibilidade de ser reconhecida como AD acidentrio ainda
incipiente, e situa-se na complexa relao lcool e trabalho.
8
O objetivo deste trabalho analisar, em um contexto de tratamento de sade
especializado em dependncia de lcool e outras substncias psicoativas, o benefcio AD
previdencirio como um mecanismo de proteo social no contexto da sade do trabalhador.
A anlise da concretizao do AD no mbito das empresas, Previdncia e servios de
sade se justifica por poder contribuir para o fortalecimento do suporte social e da
conseqente melhoria da qualidade de vida dos segurados em tratamento. Em outras palavras,
avali-lo como um direito social.
Tais reflexes, situadas no campo da Seguridade Social, derivam do percurso
acadmico e da atinente experincia de estgio vivenciada pela pesquisadora, durante o curso
de Servio Social na Universidade de Braslia (UNB). Ao nvel terico, nos anos de 2005 a
2007, trabalhos no Grupo de Pesquisas em Seguridade Social e Trabalho (GESST/ SER)
subsidiaram a reflexo sobre os direitos sociais. Em nvel prtico, nos anos de 2006 e 20071,
estgio supervisionado no Programa de Atendimento ao Alcoolismo (PAA) do Hospital
Universitrio de Braslia (HUB) possibilitou a prtica profissional no campo da dependncia
qumica e a delimitao e efetivao do trabalho de campo.
Essa pesquisa compreende que as polticas sociais so dinmicas e na tensa relao
entre Estado e sociedade que elas se conformam. O eixo de anlise da construo histrica
do benefcio AD como direito social no contexto especfico de incapacidade para o trabalho
devido ao consumo de lcool. Esta anlise foi integrada anlise documental da legislao
sobre o AD.
Identificados os aspectos legais, estes foram equiparados implementao do
benefcio no contexto especfico de segurados que se encontram em tratamento especializado
de sade. Esta etapa composta por um estudo de caso de carter investigativo e exploratrio.
A metodologia consistiu na realizao de oito entrevistas semi-estruturadas com segurados do
RGPS em tratamento no PAA/HUB cuja anlise das mesmas foi complementada pela dos
registros de pronturios. A escolha deste grupo foi motivada pelo contato com a demanda de
pacientes afastados do trabalho e recebendo o AD. Parte-se do pressuposto de que o
tratamento especializado propicia a reduo dos danos associados ao consumo do lcool e/ou
de outras substncias psicoativas, contribuindo para a melhor qualidade de vida dos sujeitos.
Objetivou-se, a partir da viso dos prprios trabalhadores, caracterizar a qualidade do
acesso ao AD e a relao entre lcool e trabalho que fundamenta sua concesso. As questes
1 O PAA um servio inserido no Sistema nico de Sade (SUS). O objetivo do programa contribuir para melhorar a qualidade de vida das pessoas que consomem lcool e outras substncias psicoativas ao nvel do uso, abuso ou dependncia.
9
norteadoras foram: o reconhecimento da SDA como doena, a compreenso do trabalho como
fator de risco ou de proteo, a dinmica dos atores envolvidos na implementao do AD, as
possibilidades e limites do acesso ao tratamento e da reintegrao ao trabalho.
Quanto estrutura, este trabalho foi dividido em quatro captulos. O primeiro, situa o
desenvolvimento do AD na poltica previdenciria. Aponta-se que, no Brasil, o acesso aos
direitos sociais esteve condicionado a prvias contribuies financeiras, em uma sociedade
marcada pela no expanso do sistema salarial. Assim, at 1988, entende-se que no havia o
direito legtimo sade e nem um sistema de seguridade social. Com a promulgao da CF
de 1988, instituiu-se o conceito de seguridade social. Os princpios constitucionais2 buscaram
ultrapassar a lgica contributiva previdenciria, restritiva de direitos. Contudo, foram
incorporados desigualmente.
Segundo Boschetti (2004), conjugaram-se direitos derivados do trabalho (previdncia)
a direitos seletivos (assistncia) e universais (sade), podendo-se afirmar que ainda no houve
a concretizao da seguridade social no Brasil. O AD, embora situado na poltica de
previdncia social, deveria estabelecer interfaces com a poltica de sade. Ainda permanece
como um direito derivado do trabalho e subordinado lgica contributiva, enquanto os outros
direitos na poltica de sade incorporaram o princpio da universalizao. nesse sentido que
este trabalho busca ampliar a compreenso sobre o AD. Enquanto um benefcio
previdencirio, deveria ser incorporado aos novos direitos constitucionais de proteo social.
O segundo, analisa os princpios orientadores e a regulamentao do AD na legislao
previdenciria e identifica importantes desafios para a articulao das polticas de sade e
previdncia.
O terceiro, problematiza a relao entre o trabalho e a dependncia do lcool e aponta
a sade como um conceito construdo na dinmica das relaes sociais. Discute-se o
reconhecimento da SDA como doena e a implicao deste fato na poltica de previdncia
social, particularmente na concesso do AD previdencirio e acidentrio. Com isso, pde-se
analisar a concretizao do AD como um direito social.
O quarto, apresenta o estudo de caso, a metodologia da pesquisa e os resultados. Faz-
se uma anlise temtica das entrevistas sob a perspectiva da concretizao do AD como um
direito social. Retoma-se a anlise legal e as discusses tericas atinentes para compreender
2 Alguns desses princpios so: universalidade na cobertura, uniformidade e equivalncia dos benefcios, seletividade e distributividade nos benefcios, eqidade no custeio, diversidade das bases de financiamento e carter democrtico e descentralizado da administrao (C.F., artigo 194). BOSCHETTI, I. Seguridade Social e projeto tico-poltico do Servio Social: que direitos para qual cidadania? In: Servio Social: formao e projeto poltico. So Paulo: Cortez Editora, ano XXIV, n 79, set. de 2004.
10
os impactos do AD sobre as relaes de trabalho. A anlise das entrevistas aponta
especificidades na relao sade e trabalho que fundamentam e orientam a concesso do
benefcio.
O eixo de anlise das entrevistas buscou considerar tanto o papel do trabalho como
determinante para a SDA, quanto s estratgias construdas pelos trabalhadores contra as
situaes nocivas sua sade (LIMA, 2001 apud ASSUNO, 2001). Aps se demonstrar a
complexidade do tema, enfatiza-se o potencial dos tratamentos especializados de sade para a
materializao dos direitos sociais relacionados ao trabalho: o retorno ou a continuidade da
proteo social por meio das aposentadorias.
Por fim, apresentam-se as concluses e as consideraes finais.
11
1 A Previdncia Social e a construo dos direitos sociais no Brasil
O AD um seguro-sade pblico garantido a todos os trabalhadores segurados pela
previdncia social. Situa-se como uma interveno estatal conformada nas relaes entre a
sociedade e o Estado, condicionada a variantes histricas, polticas e econmicas. Este
benefcio se insere na conquista da proteo do risco social caracterizado pela incapacidade
por doenas. Diante da centralidade da previdncia na conformao dos direitos sociais no
Brasil, importa compreender como o AD se situou dentro desta poltica, a fim de
problematizar a sua cobertura aos trabalhadores.
Desde o seu incio, a previdncia social condicionou o acesso aos direitos sociais, e em
particular, o direito sade. Apesar do aumento das relaes formais de trabalho, no houve a
generalizao da sociedade salarial, o que restringiu o alcance da previdncia social no Brasil.
Nem o crescimento econmico ou a industrializao contriburam para a reduo das
desigualdades sociais. Foi neste processo que se institucionalizou o AD como um seguro
pblico de sade.
A seguir, identificam-se as transformaes histricas que moldaram a poltica de
previdncia social. Esta foi construda a partir do conceito de seguro social, o qual orientou a
institucionalizao do AD e dos demais benefcios situados no mbito da previdncia social.
Busca-se apresentar alguns pontos que fundamentem uma problematizao do lugar do
benefcio AD na proteo social dos trabalhadores.
1.1 O conceito de Seguro Social e a noo de direito social
Na histria do capitalismo, marcada pelo conflito entre capital e trabalho, a luta dos
trabalhadores por melhores condies de vida contribuiu para a construo de um padro
especfico de regulao do trabalho. Ao final do sculo XIX, o aumento da reivindicao dos
trabalhadores e o surgimento da questo social implicaram na interveno do Estado sobre a
economia de mercado. As polticas sociais, portanto, foram a resposta construda a partir da
luta de classes para as contradies geradas pela expanso do capital.
12
Os sistemas de proteo social, em toda a Europa, foram organizados em torno de duas
concepes de proteo social: o modelo bismarckiano e o modelo de seguridade social
beveridgiana3 que, no sculo XX, corresponderam ambos difundida designao de Estado de
Bem-Estar Social ou Welfare State (SALVADOR; BOSCHETTI, 2003). Contudo, estes
sistemas s se consolidaram no ps-Segunda Guerra (1945), correspondendo, at o incio da
dcada de 70, a um processo de expanso da cidadania e dos direitos sociais (BEHRING,
2004).
Foi a partir do seguro social, situado no modelo bismarckiano, que se consolidaram as
polticas de previdncia e sade no Brasil. Importa conhecer suas razes histricas devido aos
reflexos ainda persistentes nas polticas sociais atuais, e em particular, no AD.
Segundo Boschetti (2003; 2006) e Giovanella (1999), o seguro social surgiu no final
do sculo XIX, na Alemanha, durante a Revoluo Industrial, quando a propriedade privada
tornou-se um dos principais elementos de conflito na relao capital e trabalho. Destituda dos
meios de produo, como forma de sobrevivncia, a emergente classe de trabalhadores
assalariados era obrigada a vender a sua fora de trabalho no mercado.
Sem nenhuma regulao estatal, os trabalhadores eram submetidos a excessivas
jornadas, sob precrias condies, tornando-os propcios a doenas, invalidez e mesmo
morte. Era a pr-histria da sade do trabalhador, em que viver era apenas no morrer
(DEJOURS, 1987 apud SOUZA, 1992). Apoiados nos avanos da social-democracia, essas
circunstncias mobilizaram politicamente os trabalhadores, contra o crescente processo de
explorao e acumulao do capital.
A criao de fundos de cotizao foi uma das formas encontradas pelos trabalhadores
para proteger minimamente a sade e garantir a sustentao de um projeto poltico. Estes,
posteriormente, foram institudos pelo governo alemo como caixas de poupana e
previdncia, constituindo-se tambm em estratgia de desmobilizao poltica. A necessidade
de maior controle do Estado sobre a classe assalariada emergente fez desses fundos a
principal estratgia, instituindo-se o seguro social (GIOVANELLA, 1999).
Assim posto, o seguro social consistiu em contribuies compulsrias dos
trabalhadores assalariados, em troca de proteo social nos momentos de ausncia do
3 De acordo com Boschetti (2003), o modelo bismarckiano identificado como sistemas de seguros sociais semelhantes aos seguros privados. O acesso e o valor dos benefcios so condicionados a prvias contribuies. O financiamento e a gesto provm da participao dos empregados, empregadores, que so os contribuintes. J o modelo beveridgiano equivale a um modelo assistencial. Os direitos so universais e destinados a todos os cidados de forma incondicional ou com a submisso dos mesmos a determinadas condies (teste de meios). Garante mnimos sociais a todos que necessitarem. O financiamento vem sobretudo de impostos fiscais.
13
trabalho. Enfatize-se tambm a importncia da luta dos trabalhadores para que os fundos de
cotizao fossem utilizados para compensar financeiramente os operrios nos momentos de
riscos. A reivindicao trabalhista exigiu compensaes monetrias pelos agravos sade e
desgastes da fora de trabalho (SOUZA, 1991).
Sob o corporativismo estatal, o seguro social se firma como cobertura dos riscos
sociais. O modelo de proteo social baseada no seguro social se expandiu pela Europa no
sculo XX e tambm fundamentou as polticas sociais no Brasil. Boschetti (2006) ressalta trs
elementos da anlise de Castel (1995) sobre a constituio do seguro social na Frana: a
noo de propriedade, a noo de coletivo e a noo de Direito.
O seguro social no somente uma nova forma de regulao das relaes entre Estado e
sociedade. um patrimnio social que se diferencia dos outros servios pblicos por ser
apropriado de forma pessoal pelos trabalhadores, garantindo a reproduo da fora de
trabalho. Por no questionar a propriedade privada, o seguro social altera a noo de
propriedade. A proteo previdenciria instaura o que Castel chamou de propriedade social,
pois permitiu aos trabalhadores adquirir uma segurana que no deriva da propriedade
privada, mas da participao no mundo do trabalho assalariado:
A reformulao da questo social consiste no em abolir esta oposio proprietrio-no proprietrio, mas [em] redefini-la, ou seja, [em] justapor propriedade privada um outro tipo de propriedade, a propriedade social de modo que se tornou possvel ficar fora do acesso propriedade privada sem estar em situao de insegurana social. (CASTEL, 1995 apud BOSCHETTI, 2006, p. 76).
Caracterizando-se por contribuies compulsrias dos trabalhadores, o seguro social
dependeu da insero no mundo do trabalho. As contribuies individuais garantem
compensaes financeiras com retorno imediato e futuro de cobertura dos danos sociais.
Dessa forma, aumenta-se a expectativa de segurana social. Tal reduo da insegurana social
deriva da interveno do Estado nas definies polticas dos riscos a serem cobertos,
instaurando-se uma concepo de justia social (BOSCHETTI, 2006, GIOVANELLA, 1999).
J a noo de coletivo relaciona-se construo de novas relaes sociais. Todos os
trabalhadores financiam o sistema, que assegura os direitos na medida da participao de cada
um no mercado de trabalho. Preservam-se as diferenas individuais dentro de uma lgica
coletiva, em que: a contribuio de cada um permite a proteo de todos e cria relaes de
interdependncia e de solidariedade (BOSCHETTI, 2006, p. 73). O seguro social se
fundamenta na especializao da diviso do trabalho no capitalismo, a qual consolidou uma
14
nova solidariedade nacional. Castel evidencia como as idias de Durkheim legitimam essa
solidariedade:
(...) ele compreendeu que a sociedade industrial inaugurou um modo de relaes especificamente novo entre os sujeitos sociais, que no podia mais ser fundado em protees de proximidade garantidas pela sociabilidade primria (...) Era preciso retomar sob novas bases a questo das relaes sociais na moderna sociedade ameaada por uma desafiliao de massa. A solidariedade orgnica inaugura o novo regime de existncia que deve prevalecer nas sociedades industriais (CASTEL, 1995 apud BOSCHETTI, 2006, p. 73).
Estas questes se relacionam noo de Direito em Castel. o Estado de Direito que
materializa a segurana social. A instituio do seguro social consagrou a concepo de
direitos derivados do trabalho assalariado. Tal concepo norteou a construo das polticas
sociais, ganhando legitimidade nos processos de industrializao e acumulao do capital: o
que garante o benefcio no uma relao clientelista ou de tutela, mas sim o fato de o
indivduo estar inscrito em uma ordem jurdica universalista associada ao direito do trabalho
(BOSCHETTI, 2006, p. 78). Desta forma, o assalariamento na sociedade se tornou uma etapa
fundamental para a generalizao da lgica do seguro nas polticas sociais. neste sentido
que a previdncia social assume estreita relao com o desenvolvimento do trabalho
assalariado nas sociedades. Segundo Giovanella (1999), os seguintes princpios orientam a
relao jurdica entre a definio dos riscos e a cobertura dos danos:
Segundo o princpio da equivalncia, os benefcios so vinculados a contribuies prvias, e so conformadas diversas instituies dirigidas a grupos distintos de trabalhadores. O principio da subsidiaridade serve para enfatizar que o Estado somente interferir quando a capacidade da famlia estiver exaurida. O princpio da solidariedade torna as contribuies proporcionais renda e os benefcios de acordo s necessidades, produzindo redistribuio (GIOVANELLA, 1999, p.3).
Segundo Esping-Andersen (1991), o welfare state no intervm apenas sobre as
desigualdades, mas tem uma funo de regulao social na sociedade. Nos pases que
efetivaram a proteo social baseada no seguro social (Alemanha, Frana e Itlia), o autor
critica a consolidao de divises entre os assalariados e a aplicao dos programas em
termos de classes e status, reproduzindo desigualdades e privilgios decorrentes do trabalho.
Este sistema se sustentou no corporativismo estatal, e foi dessa forma que substituiu a
proviso de benefcios supridos pelo mercado, com efeitos sobre a emancipao do
trabalhador (desmercadorizao). Devido estratificao social e ao princpio da
subsidiaridade, que garantia to somente a prestao de servios quando a famlia tinha sua
15
capacidade de sustento exaurida, o autor argumenta que so poucos os impactos em termos de
redistribuio (benefcios de acordo s necessidades). A lgica do seguro social no foi
suficiente para consolidar o princpio da redistributividade.
Admite-se, contudo, que, por meio do seguro social, garante-se a proteo dos riscos. Se
um risco se concretiza, o segurado tem o dano coberto pelo seguro, desde que pague a sua
contribuio (SANTOS, 2007). Quando h o reconhecimento das doenas como riscos
sociais, os benefcios so regidos no s pelos princpios de equivalncia e solidariedade,
fundamentados em prvias contribuies. Alm da capacidade de contribuio financeira, os
trabalhadores acessam os benefcios de acordo com as necessidades de sade o que produz
redistribuio (GIOVANELLA, 1999). Segundo estudos comparativos de Esping-Andersen
(1991), a garantia dos direitos sociais ultrapassa o seguro social. A depender das relaes
econmicas e polticas, a desmercadorizao e os princpios da universalizao foram
estendidos de forma diferenciada em vrios pases, consolidando atuaes estatais, ao lado de
atuaes do mercado.
O autor enfatiza que o modelo social-democrata buscou no somente as igualdades
mnimas, mas uma igualdade de direitos, desfrutados igualmente pelas classes sociais. Assim
considerado, o direito sade no se restringe aos princpios regentes do seguro social. Traz o
conceito de cidadania social, referente tambm s lutas polticas dos trabalhadores:
Quando os direitos sociais adquirem o status legal e prtico de direitos de propriedade, quando so inviolveis, e quando so assegurados com base na cidadania em vez de terem base no desempenho, implicam uma desmercadorizao do status dos indivduos vis--vis o mercado. Mas o conceito de cidadania social tambm envolve estratificao social: o status de cidado vai competir com a posio de classe das pessoas, e pode mesmo substitu-lo (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 101).
1.2 A origem do auxlio-doena na previdncia social e a insustentabilidade da lgica do
seguro social
Segundo Boschetti (2006, p. 2), no h como compreender a Seguridade Social
dissociada das transformaes das relaes de trabalho: (...) a organizao do complexo
previdencirio-assistencial em uma sociedade com frgil estabilidade salarial limita a
abrangncia dos direitos da seguridade social e deixa um contingente enorme da populao s
margens desse sistema de proteo.
16
Nas primeiras intervenes estatais sobre as relaes trabalhistas, o Estado, no Brasil,
ocupou papel to somente regulamentador. Com efeito, em um contexto de emergncia do
movimento operrio e de crise das oligarquias rurais, o nico protagonista financeiro foi o
setor privado. Ao fim de uma demorada discusso, em 1919, foi aprovada a lei sobre
acidentes de trabalho de forma restrita: o trabalhador acidentado era obrigado a abrir processo
judicial para comprovar a responsabilidade do empregador, no pertencendo ao mesmo a
responsabilidade pelos riscos do trabalho (BOSCHETTI, 2006).
Ressalta-se que no Decreto-Lei n. 3.724 de 1919, a noo do acidente de trabalho
caracterizou-se pela reduo da capacidade parcial ou total, de forma temporria, e a
indenizao correspondia metade do salrio, at o mximo de um ano. No havia ainda o
princpio da equivalncia do benefcio, que determinasse valor proporcional s contribuies.
No tocante responsabilidade das empresas em cobrir as situaes de riscos sociais, a
autora destaca a Lei Eloy Chaves (1923) como o primeiro tipo de regulao do trabalho. Tal
modelo de proteo social se concretizou por meio das Caixas de Aposentadoria e Penses
(CAPs). Seguindo a lgica do seguro social, as CAPs consistiram em contratos compulsrios
custeadas pelas contribuies dos empregadores e dos trabalhadores. Enfatiza-se que at
ento, permaneceu uma atuao restrita do Estado.
A autora aponta que uma regulao significativa do trabalho se efetivou somente no
Governo Vargas (1930), quando o Estado passou a atuar na gesto e no financiamento das
CAPs. Estas passaram a coexistir com os Institutos de Aposentadoria e Penses (IAPs) a
partir de 1933. Os IAPs foram organizados por setor econmico e consolidaram o sistema
tripartite, com a participao da contribuio pblica na proteo social.
Este projeto, baseado no modelo bismarckiano, sustentou o sistema de proteo social
at os anos 1980. No houve a expanso do segmento salarial, excluindo-se do acesso aos
direitos previdencirios, a populao que no participava diretamente do projeto de
industrializao. Para os trabalhadores excludos da proteo social firmada nas CAPs e IAPs,
configurou-se a chamada gesto filantrpica da pobreza, em que pouco se firmava a
responsabilidade pblica, ento reduzida ao mundo do trabalho. Para esta, a proteo sade,
a partir de 1930, se limitava ao combate a endemias e servios preventivos de doenas
transmissveis (CARDOSO; JACCOUND, 2005).
Surgiram direitos previdencirios que se afastavam da lgica do seguro social e
sofriam expanso gradual, embora no se constitussem em direitos legtimos de sade e
assistncia social. Associada no expanso salarial, a centralidade da lgica do seguro social
configurou uma proteo social restrita e limitada: Todo o sistema de aposentadorias e penses,
17
consubstanciado em um complexo mecanismo de transferncias monetrias, deriva de direitos que se
fundam no exerccio pretrito do trabalho, mais especificamente do emprego assalariado legal, de
acordo com a experincia dos modelos chamados bismarkianos ou meritocrtico-contributivos
(CARDOSO; JACCOUND, 2005, p. 189).
neste contexto que foram construdos direitos previdencirios de proteo sade,
sobretudo o atendimento mdico-hospitalar e o AD, garantidos somente aos cidados cobertos
pelo sistema previdencirio. Alm disso, as dificuldades de participao dos trabalhadores na
gesto dos IAPs e a baixa participao estatal no financiamento comprometeram a expanso e
o desenvolvimento dos benefcios e o reconhecimento da sade como direito social
(BOSCHETTI, 2006).
De fato, a autora aponta que nas constituies federais anteriores de 1988, h
impreciso na conformao dos direitos. Embora garantidos pelos IAPs, os servios mdicos,
por no constiturem repasses monetrios aos contribuintes, no eram considerados como
direitos previdencirios. Tais constituies limitavam ao mnimo as despesas com a sade,
sendo insuficiente a regulamentao dos servios e benefcios que visavam proteo da
sade dos trabalhadores. Pelo Decreto n 20465/1931, a assistncia mdica prestada pelas
Caixas era limitada aos seus contribuintes e condicionada contribuio direta. Por se tratar
de servios que no se constituam em repasse de benefcios em espcie, assistncia mdica
no detinha o carter de seguro social. Por isso, a autora aponta a falta de reconhecimento das
doenas como risco social antes da CF de 1988.
A partir de 1933, coube aos IAPs a progressiva regulamentao da assistncia mdica
como direito social, semelhana das aposentadorias e penses. A partir da CF de 1934,
houve a instituio progressiva dos benefcios assistenciais, designados sob a categoria de
auxlios, e os acidentes de trabalho, embora ainda cobertos pela iniciativa privada, foram
equiparados aos riscos sociais habitualmente cobertos pela previdncia: envelhecimento,
maternidade e morte. Contudo, ali permaneceu a impreciso do reconhecimento da sade
como direito. Diante disso, ficou ao cargo dos institutos a iniciativa de estabelecerem direitos
definidos como proteo sade. neste contexto que o atendimento mdico-hospitalar e o
AD se constituram como direitos de proteo sade (BOSCHETTI, 2006).
A expanso dos direitos dependia de mecanismo extraconstitucionais, bem como da
organizao poltica e da capacidade financeira de cada IAP. O IAPC e o IAPB, embora
abrangessem um nmero insignificante de trabalhadores, foram os primeiros a cobrir
praticamente todas as situaes de risco social (BOSCHETTI, 2006).
18
Segundo Oliveira e Teixeira (1985), citados por Boschetti (2006), foi o IAPC
(comercirios), em 1934, que utilizou pela primeira vez o termo seguro-sade, equiparando
o perodo de adoecimento aos outros riscos sociais e elevando os servios mdicos ao status
de direitos. Por meio de uma contribuio complementar, determinou a integrao deste
seguro assistncia mdico-hospitalar. Tanto o seguro-sade quanto a assistncia mdica
descrita, decorreram da lgica contributiva. No mesmo ano, no IAPB (bancrios), dentre
outros auxlios, surgiu o seguro-sade designado como auxlio-doena (AD). Dessa forma, a
cobertura das doenas caracterizou-se como indenizao diante da reduo da capacidade para
o trabalho, orientada pelo mesmo critrio na cobertura dos acidentes de trabalho,
correspondendo metade do salrio e com durao mxima de um ano.
O perodo de 1937 a 1945, caracterizado pela ditadura Vargas, continuou a imbricao
entre previdncia e assistncia, caracterizando uma expanso desigual dos benefcios, restritos
a determinadas categorias profissionais.
Entre 1945 e 1960, h o retorno da democracia no Brasil. neste perodo que se
difunde o modelo beveridgiano de proteo social e a expresso seguridade social no
mbito da previdncia. Gradualmente, o sistema de proteo social sob a lgica do seguro
abrangeu outras categorias profissionais (CAPs e IAPs). Surgem propostas de reformas da
previdncia, sustentadas na expanso da assistncia mdica para vrios institutos
(BOSCHETTI, 2006).
Dessa forma, a ampliao e extenso dos benefcios assistenciais aos segurados e
dependentes pautava-se pelas contradies no reconhecimento da sade como um direito
social. Afastava-se tambm do princpio da subsidiariedade, passando, o Estado, a interferir,
independente da capacidade da famlia. Evidenciavam-se as limitaes da lgica do seguro
social na sociedade brasileira. Tais avanos, entretanto, so relativos. A previdncia no se
generalizou para todos os trabalhadores, e muito menos, para toda a populao. A partir de
1960, o financiamento ficou sem a participao do Estado, voltando ao sistema bipartite: no
houve, portanto, nem universalizao, nem uniformizao dos benefcios, nem unificao
institucional (BOSCHETTI, 2006, p. 43).
A promulgao da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT) em 1943 refora a
associao entre proteo social e trabalho assalariado. Inseriu-se no conjunto de
regulamentaes e legislaes do trabalho pelo Estado, em que as questes sociais se
remetiam sempre regulao do mundo do trabalho. 4
4 Alm da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), outras intervenes importantes do Estado sobre o mercado de trabalho so: a criao do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio em 1931 e a instituio do
19
Na CF de 1946, predominaram os direitos sociais claramente associados ao trabalho.
neste contexto que a assistncia mdica e sanitria foram institucionalmente garantidas. Essa
constituio separou o seguro contra acidente de trabalho, do seguro contra os outros riscos
sociais (maternidade, doena, velhice, invalidez e morte) vinculados previdncia. Essa
separao legal se manteve at 1967 (BOSCHETTI, 2006, p. 45). Dessa forma, equiparava-
se, ao nvel constitucional, os acidentes de trabalho aos demais riscos sociais. Demonstra-se a
ausncia de cobertura do Estado das doenas decorrentes de acidentes de trabalho,
distinguindo-as das doenas comuns.
A partir de 1953, intensifica-se a interveno pblica. Os CAPs foram unificados em
um nico instituto pblico e o auxlio-sade (equivalente ao AD) se estendeu a outros IAPs,
de forma paralela expanso dos servios mdicos, designados, no mbito dos institutos, pela
como assistncia mdica e hospitalar (BOSCHETTI, 2006). A assistncia tambm se referia a
outras intervenes: fora do mbito de cobertura dos IAPs, nenhuma outra ao de peso no
campo da prestao de servios de sade, alimentao ou habitao foi desenvolvida na esfera
pblica at meados da dcada de 1960 (CARDOSO; JACCOUD, 2005, p.200). 5
Em 1960, foi promulgada a Lei Orgnica da Previdncia Social (LOPS), marco
histrico do fortalecimento de determinado princpio de justia, pautado no vnculo
contributivo (CARDOSO; JACCOUD, 2005). H o abandono do termo seguro e a
distino de trs tipos de benefcios: aposentadorias e penses, auxlios e assistncias, estas
ltimas, correspondentes aos benefcios no monetrios.
nela que se definiu expressamente o seguro pblico de sade designado como
auxlio-doena e os critrios de sua concesso. Enquanto a assistncia mdica foi garantida
aos segurados e seus dependentes, o AD restringiu-se aos segurados. A restrio na expanso
do AD, dentre outros benefcios, se deu tanto pelo reforo da lgica do seguro social, quanto
pelo sistema bipartite, que se manteve at a CF de 1988.
Segundo Vianna (2007), a delimitao dos prazos para a concesso do AD foi
estabelecida no Decreto-Lei n. 6.905/1944 e regulamentada na LOPS, dividindo as
responsabilidades entre as empresas e os institutos de seguro social. A empresa pagava o
salrio integral do trabalhador nos primeiros quinze dias, e a previdncia social, a partir do
salrio mnimo em 1940. CARDOSO, J.; JACCOUND, L. Polticas Sociais no Brasil: Organizao, Abrangncia e Tenses da Ao Estatal. In: JACCOUD, L. (org). Questo social e polticas sociais no Brasil contemporneo. Braslia: IPEA, 2005.
5 As principais instituies de assistncia social foram a Legio Brasileira de Assistncia Social (LBA) e a Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), que se consolidaram a partir da promulgao da Lei Orgnica da Previdncia Social (LOPS), em 1960. Ibid. p. 200.
20
dcimo sexto dia de afastamento. Este critrio permaneceu na CF de 1988 ao lado da
incorporao do princpio da equivalncia de benefcios, alterando os valores do AD.
Em 1967, todas as instituies previdencirias foram unificadas no Instituto Nacional
de Previdncia Social (INPS), concretizando o princpio da unificao institucional. Por meio
da Lei n. 5.316/1967, todos os benefcios passaram a serem prestados mensalmente e
consolidou-se, na concesso do AD, a diviso de responsabilidades entre o INPS as empresas.
O valor deste benefcio correspondeu ao salrio integral do trabalhador: o valor mensal era
igual ao salrio-de-contribuio devido ao empregado no dia do acidente, deduzida a
contribuio previdenciria, no podendo ser inferior ao seu salrio-de-benefcio, com a
mesma deduo (art. 6, I).
A outra mudana provocada pela unificao institucional se refere ao seguro acidente
de trabalho, que deixou de ser gerido exclusivamente pela iniciativa privada, sendo integrado
ao INPS. Buscou-se garantir uma efetiva cobertura aos segurados que, at ento, no tinham o
seguro por estarem em segmentos menos estruturados no mercado de trabalho. Ampliou-se a
cobertura dos acidentes de trabalho, pois o AD constituiu-se em um direito previdencirio
para os trabalhadores acidentados. 6
O INPS destinava-se aos contribuintes para a previdncia; a LBA, s aes de
assistncia social aos pobres, a Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem)
atendia aos jovens infratores, e o Instituto Nacional de Assistncia Mdica da Previdncia
Social (Inamps) buscou universalizar a assistncia mdica a todos os cidados. Esta
orientao se deu no sentido de compreender os servios mdicos dissociados da lgica do
seguro social.
Enquanto direito previdencirio, o AD foi constitudo dentro de uma relao jurdica
exclusiva da previdncia social. O objetivo a cobertura dos riscos (doenas), compreendidas
como um evento futuro e incerto gerador de danos. Nesse sentido, a concesso do AD adquire
um carter de indenizao, sendo os riscos definidos em lei.
No mbito do MPAS esboava-se um modelo brasileiro de seguridade social: a
reunio da sade (assistncia mdica e auxlio-doena), da previdncia (aposentadorias,
penses e outros auxlios) e da assistncia social (assistncia geral para pessoas pobres) em
6 Segundo Teixeira (1990) apud Boschetti (2006), alm do seguro contra acidentes de trabalho, houve a criao: do Fundo de Garantia por Tempo de Servio (FGTS) em 1966; do Programa de Integrao Social (PIS) em 1970; do Ministrio do Trabalho e da Previdncia Social para a gesto do INPS. A criao do Ministrio da Previdncia e Assistncia Social (MPAS), em 1974, pode ser compreendida como estratgia de legitimao do governo autoritrio, diante do desgaste do regime. A extenso dos direitos sociais na lgica do seguro social se associa utilizao dos direitos sociais como compensao da ausncia dos direitos civis e polticos.
21
um mesmo ministrio foi o primeiro esboo de um sistema de proteo social mais amplo
(BOSCHETTI, 2006, p. 55). 7 Contudo:
O governo no instituiu novas bases de financiamento para sustentar a universalizao da assistncia mdica, que continuou sendo financiada pelas contribuies de empregados e empregadores. As contribuies sobre os salrios foram a base predominante de financiamento da previdncia, da sade e da assistncia social no Brasil, tendo permanecido assim at a promulgao da Constituio de 1988. (BOSCHETTI, 2006, p. 58)
Em 1975, a criao do Ministrio da Sade (MS) e do Ministrio da Previdncia e
Assistncia Social (MPAS) caracterizou uma dicotomia na oferta dos servios de sade,
relacionada aos setores pblico e privados. No mbito do MS, os servios estatais de sade
pblica foram orientados pelo modelo de higienizao da sociedade e contavam com pfios
recursos financeiros e responsabilizao do Estado (COHN, 2005). Dessa forma, as aes
coletivas se restringiram s medidas preventivas do ministrio. J no mbito do MPAS,
estavam a ateno mdica individualizada e o atendimento hospitalar, destinado
prioritariamente aos segurados. 8 Este modelo de proteo social vigente exclua os
trabalhadores desempregados e aqueles inseridos em outras relaes de trabalho, como os
autnomos, empregados domsticos e trabalhadores rurais, incorporados na previdncia social
somente a partir dos anos 70 (BOSCHETTI, 2006). Entre 1964 a 1974, metade dos
trabalhadores brasileiros estavam excludos do direito sade, por estarem no mercado
informal de trabalho (COHN, 2006).
Na ditadura militar, a relao entre Estado e sociedade foi marcada pelo autoritarismo
e pela supresso dos canais de comunicao. No houve a abertura poltica necessria para o
questionamento da lgica contributiva e construo de uma poltica de sade (COHN, 200).
Dessa forma, o cerceamento das liberdades polticas e civis, associado concentrao de
renda e s desigualdades sociais, provocaram reaes dos movimentos sociais. Estes se
intensificaram na dcada de 70, quando o modelo mdico-assistencial privatista hegemnico
entra em uma grave crise fiscal, associada crise do estado autoritrio (BOSCHETTI, 2006;
PUSTAI, 2004).
7 Segundo Boschetti (2006), ligado ao MPAS, estavam instituies de assistncia social geridas por instituies privadas, com novas fontes de financiamento estatal. Esboava-se a seguridade social, por meio da criao do Sistema Nacional de Previdncia e Assistncia Social (Sinpas), em 1977.
8 Em 1974, h a expanso dos servios mdicos aos no-contribuintes em casos de urgncia, porm as mortes por omisso e as presses sociais levaram o Inamps a atender a toda a populao.
22
Esta correlao de foras entre Estado e sociedade foi atravessada pelo projeto
neoliberal, que apregoa ser o mercado o locus privilegiado das polticas sociais. Questiona-se
a sua sustentao no Brasil, tendo em vista o mercado de trabalho marcado por relaes
informais e fortes desigualdades no acesso aos direitos sociais. Na dcada de 80, as lutas
sociais avanaram em contraposio ao neoliberalismo, visando o resgate dos direitos
suprimidos na ditadura militar. Este processo desembocou na promulgao da CF de 1988, e
no conceito de Seguridade Social ali estabelecido, pautada em uma nova concepo de
direitos sociais. Estes, associados aos direitos polticos e civis, colocava a possibilidade das
polticas sociais se chocarem com a lgica do capital em direo cidadania (COUTINHO,
1997).
Na previdncia social, as lutas sociais buscaram enfrentar as contradies geradas nos
aspectos referentes ao financiamento, expanso e cobertura dos benefcios, e modos de
organizao e gesto. As reivindicaes foram no sentido de flexibilidade do vnculo
contributivo, para ampliar principalmente o acesso da populao aos servios de sade. Estes
seriam regidos por uma nova concepo de cidadania, que ultrapassasse a lgica contributiva.
Na dcada de 80, a luta pela ampliao da sade foi apoiada no Movimento pela
Reforma Sanitria, que se afirma a bandeira da unificao das diversas redes de prestao de
servios de sade, a universalizao da sade e seu reconhecimento como direito social
universal (CARDOSO; JACCOUND, 2005). 9
A consolidao do Sistema Nacional de Sade desafiava as foras polticas que
colocavam a sade sob a tica do mercado, tornando-se relevantes os aspectos referentes ao
financiamento das polticas sociais na Nova Repblica (PUSTAI, 2004). Este processo
desembocou na construo do Sistema nico de Sade (SUS), na CF de 1988. Na assistncia
sade, os servios mdicos implementados pela previdncia social foram reestruturados e
integrados na poltica de sade. A sade se tornou um direito do cidado brasileiro,
independente de prvias contribuies. As propostas associadas ao modelo beveridgiano,
reformularam, inclusive, o prprio sistema de previdncia social, questionando-se a justia
social baseada na lgica de proteo ao trabalho assalariado. 10
9 So colocadas as bases de construo do Sistema nico de Sade (SUS), e so elas: as Aes Integradas de Sade (AIS) e os Sistemas Unificados e Descentralizados de Sade (SUDS).
10 O modelo beveridgiano considerado como um modelo assistencial que apregoa serem os direitos universais, e busca garantir os mnimos sociais a todos os cidados. Alguns dos seus princpios so a unificao institucional, a uniformizao, a equivalncia e a universalizao dos benefcios. BOSCHETTI, I. Assistncia social no Brasil: um direito entre originalidade e conservadorismo. Braslia: KACO, 2003.
23
1.3 A Seguridade Social na CF de 1988, as relaes de trabalho e o auxlio-doena
Telles (1999), com base em Hannah Arendt e Lefort, discute os direitos como uma
categoria que no se limita ao campo jurdico e institucional, mas que se expressa na
alteridade e no debate. Sem o conflito, no h como as desigualdades e injustias sociais
serem explicitadas. Trata-se de uma nova concepo dos direitos:
Da Lefort dizer que a existncia de um espao publico atravessado por essa conscincia do direito a ter direitos que lhe constitutiva, que faz toda a diferena entre uma forma democrtica de sociedade e os regimes totalitrios. (TELLES, 1999, p. 71)
At a dcada de 80, ignorou-se a garantia de proteo social pblica s populaes no
incorporadas ao trabalho assalariado. As discusses sobre a pobreza no suscitaram um debate
sobre a justia e a igualdade social.
Com a promulgao da CF de 1988, h uma redefinio da questo social e a inscrio
jurdica de novos direitos, construdos na experincia dos movimentos sociais e dos embates
polticos, instaurando a tica da cidadania. Nesta tica, a populao desprovida de direitos
composta por cidados que devem reivindicar e lutar por seus direitos. Para a concretizao
da cidadania, os debates sobre os direitos sociais devem ser suscitados a partir das questes da
desigualdade e da excluso social (TELLES, 1999).
Diante do crescimento progressivo da informalidade do trabalho, parcela expressiva da
populao no usufrua os direitos da previdncia. Esta uma questo central que tem
redirecionado a ao social estatal a uma nova concepo de justia, a cidadania
(BOSCHETTI, 2006). neste contexto de (des) proteo social e desemprego estrutural que
foi promulgada a Seguridade Social, em 1988. nessa perspectiva que o conceito de
Seguridade Social na CF de 1988 importante conquista social, sendo um desafio a sua
concretizao. Esta implica, sobretudo, no questionamento da lgica contributiva e na
ampliao dos princpios constitucionais.
O conceito de Seguridade Social compreendido como um conjunto articulado de
polticas sociais, sob a responsabilidade pblica e com a participao da sociedade. Segundo o
art.194: A seguridade social compreende um conjunto integrado de aes de iniciativa dos
poderes pblicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos sade,
previdncia e assistncia social. A integrao dessas polticas incorporou novos princpios
para alm do seguro social. Os princpios da universalidade da cobertura, da uniformidade e
24
equivalncia dos benefcios, da irredutibilidade dos valores dos benefcios, da diversidade das
bases de financiamento, e do carter democrtico e descentralizado deveriam orientar a
articulao daquelas trs polticas sociais.
Mas estes princpios constitucionais foram incorporados de forma diversa, e at
mesmo de forma contraditria. A seguridade social brasileira justape direitos derivados do
trabalho (previdncia), direitos de carter universal (sade) e direitos seletivos (assistncia
social), questionando-se a concretizao da seguridade social no Brasil (BOSCHETTI, 2004).
Com a CF de 1988, as prestaes de substituio de renda (benefcios) responsveis
pela cobertura dos riscos sociais dividiram-se entre a assistncia e a previdncia. A assistncia
social ganhou arcabouo jurdico prprio e foi reconhecida como direito. Embora reconhecida
como direito obrigatrio, ainda um direito subjetivo, especfico e condicional, pois o acesso
a ele depende de dois critrios - baixa renda e incapacidade para o trabalho: sua articulao
com as demais polticas torna-se obrigatria e indispensvel, sendo condicionada, mas
tambm condicionando as polticas sociais governamentais (BOSCHETTI, 2003, p. 77).
Na previdncia, os benefcios so definidos como sistema de direitos objetivos,
concedidos a partir de critrios precisos, e uma vez acordados, so reconhecidos como direito
adquirido. decorrente do exerccio de um trabalho assalariado ou de uma contribuio
como trabalhador autnomo (SALVADOR; BOSCHETTI, 2003, p. 105). A previdncia
incorporou os princpios constitucionais, expandindo a sua cobertura e possibilitando o acesso
a todos os trabalhadores. A proteo social no se restringe ao trabalho assalariado, mas
orientada pela proteo das demais formas de trabalho (quais os autnomos, empregados
domsticos e empresrios). 11
O MPS, por meio do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), tem a funo de
garantir o direito previdncia social. O INSS, substituto do INPS, resultado histrico da
construo da proteo social entre a sociedade e o Estado, ator central. a autarquia federal
responsvel pela gesto e concesso dos benefcios. Ressalta-se que o novo nome do instituto
abrange a seguridade social, desafio mais amplo.
A sade foi a poltica que incorporou de forma mais completa os princpios
constitucionais. Regida pelo princpio da universalidade, no incorpora nenhum critrio de
11 Em relao aos autnomos, A partir da Lei 9.876, de 26.11.1999, o INSS tomou algumas iniciativas para incentivar os trabalhadores sem carteira de trabalho assinada a se filiarem ao instituto como contribuintes individuais. BOSCHETTI. I.; SALVADOR, E. (Des) regulamentao dos direitos previdencirios e (des) estruturao do mercado de trabalho. In: DAL ROSSO, S.; FERREIRA, M. A regulao social do trabalho. Braslia: Paralelo 15, 2003. p. 112.
25
seletividade, tendo por base a cidadania. 12 Compreendida como um direito incondicional de
cidadania social, garantida a todos os trabalhadores, inclusive aos segurados da previdncia
social. Por isso, se defende a expanso da sade como um direito estratgico universalizao
dos direitos sociais.
Entretanto, a partir de 1990, iniciou-se o processo de abertura dos mercados e de
integrao comercial multilateral, intensificando os processos de flexibilizao e precarizao
das relaes de trabalho. As transformaes no mundo do trabalho alteraram a oferta de
trabalho no mercado, j comprometida pela no instituio de uma sociedade salarial no
Brasil. 13 O desemprego estrutural e a precariedade da insero dos trabalhadores no mercado
de trabalho ainda deixam grande parte da populao margem da proteo social pblica.
neste contexto que grande parte dos trabalhadores ainda se encontra excluda da
proteo social da Seguridade Social. Com efeito, os trabalhadores pobres economicamente
ativos encontram-se excludos de uma proteo social associada a valores monetrios, por no
cumprirem as condies de contribuio na previdncia, e por no atingirem os critrios de
renda e incapacidade que orientam a assistncia.
Os dados a seguir ilustram esta realidade: de cada 100 empregos gerados entre 1980 e
1999, cerca de 99 foram sem registro em carteira profissional, e apenas um tinha esse
registro.14 Segundo a PNAD/1998, dentre o contingente de trabalhadores ocupados no setor
privado, o nmero de no-contribuintes correspondeu a 38,6 milhes, contra 26,7 milhes de
contribuintes (BOSCHETTI, 2003). Em 2001, j havia 40,6 milhes de no-contribuintes,
correspondendo a 57,7% dos 70,5 milhes de trabalhadores com mais de dez anos de idade
ocupados no setor privado. Dos no-contribuintes, 20,4 milhes no possua rendimentos ou
recebia menos de um salrio mnimo (BOSCHETTI, 2004).
Nesse sentido, questiona-se a capacidade de contribuio dos trabalhadores para a
previdncia social, pois esta depende de relaes estveis de trabalho. Segundo a
PNAD/1999, havia 16 milhes de trabalhadores autnomos, representando 25% da populao
economicamente ativa (PEA), mas apenas um quarto deles conseguia contribuir para a
previdncia social (SALVADOR; BOSCHETTI, 2003).
Seguindo orientaes neoliberais, a Emenda Constitucional (EC) n. 20/1998 alterou
condutas, visando conter os gastos da previdncia social. Provocou mudanas que, em longo
12 CARDOSO, J. e JACCOUND, L. op. cit. 13 Esta expresso se refere insuficincia de crescimento do emprego assalariado formal no Brasil
advinda da industrializao brasileira. BOSCHETTI. I.; SALVADOR, E. op. cit. 14 POCHMANN (1999) apud SALVADOR, E.; BOSCHETTI, I. op. cit. p. 99
26
prazo, induzem a uma maior permanncia dos trabalhadores no mercado e dificultam o acesso
aos benefcios e aposentadorias, contribuindo para a desregulamentao do mercado de
trabalho. De forma contraditria realidade de trabalho, as reformas na previdncia social em
1998 reforaram a lgica do seguro e reduziram os valores e as condies de acesso aos
benefcios, privilegiando os indivduos mais bem-sucedidos no mercado (SALVADOR;
BOSCHETTI, 2003).
O propagado dficit da Previdncia Social decorre da no concretizao do princpio
constitucional de diversidade de bases de financiamento da Seguridade Social, agravado pelos
ajustes fiscais e econmicos estabelecidos no neoliberalismo (BOSCHETTI, 2004). A CF de
1988 previu o Oramento da Seguridade Social, que no se concretizou. O seu financiamento,
na dcada de 90, vem sendo ameaado pela instituio da desvinculao dos recursos da
Unio (DRU), que, em benefcio do ajuste fiscal, retira recursos das polticas sociais.
Deste modo, a reduo do financiamento das polticas sociais e a incorporao
desigual e parcial dos princpios constitucionais situam a Seguridade Social entre o seguro e a
assistncia, entre os modelos bismarckiano e o beveridgiano (que propunha a universalizao
da cobertura dos direitos sociais) (BOSCHETTI, 2007).
nesse sentido que se questiona a lgica contributiva e o primado do trabalho para a
concretizao dos direitos sociais. Refora-se tal questionamento diante do projeto neoliberal
a partir da dcada de 1990, que tende a reduzir ainda mais a expanso do assalariamento.
Problematiza-se a concretizao da seguridade social, sobretudo quando se considera a
precarizao das condies de trabalho e a flexibilidade das relaes de trabalho. Estas
situaes fragilizam a situao salarial e, em conseqncia, restringem a capacidade
contributiva previdenciria e comprometem a reproduo da fora de trabalho.
27
2. Ampliando a compreenso do auxlio-doena como direito social: as
interfaces entre sade e previdncia
A promulgao da CF em 1988 ampliou a noo de risco. No seguro social, o risco
um dano que gera um prejuzo a ser recuperado por uma indenizao. Na seguridade social, a
proteo social no deriva, necessariamente, de um dano. As polticas de sade, assistncia e
previdncia, pensadas de maneira integrada, buscam a proteo da sade como um conceito
ampliado. Segundo o art. 195: Os planos de previdncia social, mediante contribuio,
atendero, nos termos da lei, a cobertura dos eventos de doena, invalidez, morte, includos os
resultantes de acidentes do trabalho, velhice e recluso. E segundo o art. 196: A sade
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas que
visem reduo do risco de doena e de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s
aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao.
Giovanella (1999) afirma que um seguro social que vise a cobertura das doenas
orientado pela avaliao das necessidades, a qual guia as demais intervenes em sade
pblica. O acesso ao AD imbricado ao acesso a tratamentos, inclusive em nveis mais
especializados, na poltica de sade.
Embora o auxlio-doena seja um direito previdencirio, deve ser articulado aos
demais direitos sociais envolvidos na cobertura das doenas. Esta ultrapassa a indenizao
monetria e se situa no mbito do direito a tratamentos de sade e de reintegrao ao trabalho.
nesse sentido que o benefcio AD constitui-se em importante mecanismo de proteo social
ao trabalhador segurado.
Na CF de 1988, com exceo do AD, todos os servios de sade se desvincularam da
previdncia social. No regida pela lgica contributiva, a proposta de sade preconizada no
SUS no se identifica com servios comprados no mercado. Pelo princpio da universalidade,
todos os cidados podem ter acesso aos servios de sade pblicos, ressaltando-se que a
participao do setor privado complementar atuao pblica.
luz do conceito de Seguridade Social, o AD no se constitui somente como um
direito previdencirio, mas tambm como um seguro pblico de sade. Embora o modelo
beveridgiano predomine no sistema pblico de sade, ainda incorpora o modelo
bismarckiano, pois o benefcio regido seletivamente, pelas regras da previdncia social.
28
Dessa forma, a restrio do AD limita o princpio da universalidade na sade (BOSCHETTI,
2003).
Considerando, ento, o AD como um seguro-sade inscrito na poltica de previdncia
social, h incorporao parcial dos princpios constitucionais. Enquanto um seguro social, o
AD garantido a todos os segurados da previdncia social, cobrindo os riscos de doenas,
definidos em lei. J a cobertura das doenas prevista na poltica de sade se refere
universalidade do atendimento, incluindo as etapas de preveno, proteo propriamente dita
e recuperao (SANTOS, 2007). Entretanto, o fato do AD ser regido pela lgica contributiva
compromete a cobertura das doenas na Seguridade Social. O assalariamento formal-legal
continua sendo a principal porta de entrada dos trabalhadores no acesso aos direitos
previdencirios.15 Esta questo, como visto adiante, vlida, sobretudo, para a concesso do
AD acidentrio.
nesse sentido que se argumenta em favor de maior integrao das polticas na
seguridade social, e em particular, entre a sade e a previdncia. Nesse sentido, o AD, mesmo
regido pelo seguro social, estabelece interfaces com os servios de sade, regidos pelo
princpio da universalidade. A concesso deste benefcio envolve a dimenso de proteo
social sade do trabalhador, a qual ultrapassa as aes institucionais no mbito da
previdncia social. No SUS, a sade regida por uma relao de cidadania que ultrapassou a
cidadania do vnculo ocupacional, guiando-se pelo princpio da universalizao dos direitos
sociais.
Segundo Pustai (2004), o movimento sanitrio colocou a sade como um bem
individual e social, fundado em uma nova lgica de solidariedade social. Amplia-se o
conceito de sade, em que esta construda de forma dinmica e permanente nas vrias
dimenses da vida em sociedade. Dessa forma, a VIII Conferncia Nacional de Sade trouxe
a seguinte conceituao:
Em sentido mais abrangente, a sade resultante das condies de alimentao, habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho (grifo nosso), transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e o acesso aos servios de sade. assim, o resultado das formas de organizao social da produo, as quais podem gerar grandes desigualdades nos nveis de vida (PUSTAI, 2004, p. 71).
No relatrio final desta conferncia, o direito sade ficou definido como:
A garantia, pelo Estado, de condies dignas de vida e de acesso universal e igualitrio s aes e servios de promoo, proteo e recuperao da sade, em todos os seus nveis, a todos os habitantes do territrio nacional,
15 CARDOSO, J. e JACCOUND, L. op. cit.
29
levando ao desenvolvimento pleno do ser humano em sua individualidade (BRASIL/MS, 1986 apud CZERESNIA, 2003, p. 46).
Por meio da preveno, inserida no contexto mais amplo de promoo da sade, h
uma reestruturao nas aes epidemiolgicas e preventivas. A promoo da sade no
envolve somente a interveno sobre determinadas doenas, mas implica na melhoria da
qualidade de vida e do bem-estar coletivo. Nessa perspectiva, as aes de sade focalizadas
nas evidncias epidemiolgicas que evitavam o surgimento de doenas especficas, so
redefinidas no SUS. Neste, as intervenes enfatizam a transformao das condies de vida
e de trabalho que conformam a estrutura subjacente aos problemas de sade, demandando
uma abordagem intersetorial (TERRIS, 1990, apud CZERESNIA, 2003).
Esta questo remete ao princpio da integralidade, diretriz orientadora das aes no
SUS. No h mais separao entre as aes preventivas, antes executadas pelo MS, e as
curativas, associadas ao MP. Segundo Pustai (2004, p. 72), a preveno, no contexto de
promoo da sade, uma ao integrada que deve ter a capacidade de promover a sade no
cotidiano das pessoas, fazer diagnsticos e tratamentos precoces para reduzir danos e iniciar
rapidamente a reabilitao e readaptao ao convvio social. Estes so pontos centrais para
uma anlise do AD como um seguro pblico de sade.
Segundo Castro e Cardoso (2005), o agravamento da crise fiscal do Estado e os
objetivos macroeconmicos de estabilizao financeira implicaram em reformas,
caracterizadas pelo projeto neoliberal. Os reflexos se deram, sobretudo, na limitao da
seguridade social e em particular, no acesso sade. As conseqncias se do sobre a
universalidade do SUS, fragilizando a proteo social ao trabalhador.
Sob a orientao dos princpios neoliberais, a sade foi atingida pelo processo de
privatizao, havendo reduo dos direitos. A poltica de sade destinou-se pobreza
extrema, e limitaram as possibilidades preventivas e redistributivas das polticas sociais,
prevalecendo o trinmio: privatizao, focalizao e descentralizao (BEHRING;
BOSCHETTI, 2006), com reduo de direitos.
Conforme Cardoso e Jaccoud (2005), quanto ao financiamento, dados da Organizao
Mundial da Sade (OMS) /2000 demonstram que menos da metade dos gastos realizados com
sade no Brasil (48%) esto disposio dos rgos responsveis por realizar a
universalizao do acesso sade. A inadequada vinculao fiscal para a poltica de sade
favorece os argumentos neoliberais, que compreendem a sade como mercadoria. No projeto
30
neoliberal, os gastos sociais do Estado foram apontados como causas centrais da crise
econmica iniciada na dcada de 80.
Com a privatizao, a sade constitui-se em servio gerador de lucros. Os lucros so
destinados a setores do capital nacional que, na concorrncia com as empresas estrangeiras,
perderam espao no processo de globalizao. Estas so questes sincronizadas com as
mudanas no mundo do trabalho e com as propostas de mudanas na interveno social do
Estado (BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
Segundo os autores:
Na sade, pode-se afirmar que h consenso entre os analistas desta poltica de que um dos maiores problemas se refere qualidade, em sentido amplo, dos servios ofertados. Este problema est refletido, principalmente, na baixa capacidade de resoluo dos servios bsicos e na dificuldade de acesso a consultas e exames especializados. (...) Neste contexto de reduzida participao do gasto pblico em sade, cabe lembrar o crescimento verificado no sistema privado de sade suplementar, organizado via planos e seguros de sade (grifo nosso), cuja ampliao da adeso representa em boa parte uma procura pela garantia de maior presteza no acesso aos servios de sade (CARDOSO; JACCOUD, 2005, p. 239).
O AD no deixa de se relacionar a esta questo, visto que seu acesso no universal e
sim condicionado prvia contribuio. A cobertura das doenas, no sistema privado de
sade, vem crescendo sob a lgica do seguro social, a qual orienta o AD, compreendido como
um seguro-sade pblico. Baseada na lgica do seguro, a sade se reduz compreenso de
um servio comprado no mercado, dependendo, por isso, do poder aquisitivo do cidado e de
sua capacidade individual em acessar aos servios de sade privados. Nesse sentido, postula-
se que a privatizao da sade envolve o acesso da populao s prestaes monetrias
caracterizadas pelos seguros-sade. Esta questo insere-se nas diferenas de qualidade entre
os servios prestados nos setores pblico e privado e na tendncia de privatizao dos
programas de previdncia e sade.
Sob a perspectiva de concretizao da seguridade social e da efetivao da sade como
um direito social retoma-se a necessidade desta ser financiada coletivamente (sob a
responsabilidade do Estado) e compreendida como um conjunto de aes integradas
desenvolvidas pelas polticas sociais.
A poltica de sade, por meio do campo da sade do trabalhador, estabelece interfaces
com a previdncia social. A Sade do Trabalhador definida como um conjunto de polticas
intersetoriais de Sade Pblica, que tem por objeto de interveno as complexas relaes
entre o trabalho e a sade. Conceitua o trabalho a partir da diversidade de suas manifestaes
no contexto laboral, estabelecendo interfaces com vrias reas, dentre elas, a Seguridade
31
Social. uma rea em implementao no SUS, estratgica para a concretizao do conceito
de seguridade social promulgado na CF de 1988 (DIAS, 2001).
Na sade do trabalhador, defende-se a ampliao da cobertura previdenciria, ao
evidenciar a importncia da proteo advinda dos benefcios previdencirios aos
trabalhadores inscritos nas relaes formais e informais de trabalho. Permite colocar os
direitos previdencirios ao lado de aes de promoo da sade do trabalhador, com nfase
nas transformaes das condies de trabalho e nos agravos sua sade registradas nas bases
de dados do INSS. Este um ponto de partida para situar o AD como uma das intervenes
no campo da proteo social da sade dos trabalhadores. Esta envolve direitos: ao tratamento,
de recuperao da sade, de reabilitao profissional e de retorno ao trabalho.
A OMS postulou o estabelecimento de bases diagnsticas segundo a Classificao
Internacional de Doenas (CID). A CID-10 um instrumento importante para, dentre outras
finalidades, a concesso dos benefcios previdencirios devido incapacidade por doenas e
por acidentes de trabalho.
Enfatiza que a proteo e promoo da sade e da segurana no trabalho se do
mediante a preveno e o controle dos fatores de risco presentes nos ambientes de trabalho. O
Brasil signatrio da Conveno n. 155/1981 da OIT, comprometendo-se com a construo
de uma poltica nacional em termos de segurana e do meio ambiente de trabalho. Ainda em
fase de implementao, uma das aes a Poltica Nacional de Sade do Trabalhador. A
definio das aes a serem executadas no campo da sade do trabalhador uma das
atribuies do SUS. Sua conceituao, definida no art 6, III, da Lei Orgnica da Sade
(LOS), envolve aes de vigilncia epidemiolgica e sanitria, bem com as de promoo e
proteo da sua sade. Estes procedimentos so regulamentados nas Portarias/MS n.
3.120/1998 e n. 3.908/1998, dentre outros instrumentos legais.
O campo da sade do trabalhador valoriza a cobertura da previdncia social, que
abriga, dentre outros, o Seguro Acidente de Trabalho (SAT). O SAT no garantido a todos
os contribuintes inseridos no RGPS e cobre apenas 23 milhes de trabalhadores segurados
pelo RGPS, correspondendo a 30% da PEA. Apenas os empregados registrados e os
segurados especiais so cobertos por ele.16 At o momento, as estatsticas relacionadas aos
acidentes de trabalho s se referem populao coberta pelo SAT. As notificaes so feitas
por meio da Comunicao de Acidentes de Trabalho (CAT). Diante da restrio da sua
16 Esto excludos da cobertura do SAT os trabalhadores autnomos, domsticos, funcionrios pblicos estatutrios, subempregados, muitos trabalhadores rurais, dentre outros. DIAS, E (Org.). Doenas relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os servios de sade. Braslia: Ministrio da Sade do Brasil, 2001. (Srie A. Normas e manuais tcnicos, n.114). p. 21.
32
cobertura e dos nveis de subnotificao, o MS questiona a representatividade dos dados
estatsticos dos acidentes de trabalho. Esta questo constitui-se em um entrave na Poltica
Nacional da Sade do Trabalhador (DIAS, 2001).
Desta maneira, novas abordagens entre a relao sade/doena e o trabalho alteraram
os procedimentos na previdncia social. Um procedimento relevante a instituio da Lista
de Doenas Relacionadas ao Trabalho, pela Portaria/MS n. 1.339/1999 (BRASIL, 1999). 17
Por meio dela, e possvel estabelecer um nexo causal entre trabalho e vrios tipos de doenas,
inclusive os psicopatolgicos. Esta lista elaborada pelo MS, MTE e MPS a cada trs anos,
sendo adotada intersetorialmente por estes ministrios para caracterizar os acidentes de
trabalho. Na previdncia social, constitui o Anexo II do Decreto n. 3.048/1999 (DIAS, 2001).
Segundo os autores, o banco de dados do INSS constitui-se em importante fonte para a
identificao do perfil dos segurados, particularmente, das morbidades que afetam a sua
sade. Por meio desta lista, pretende-se a construo de um perfil mais prximo da realidade
de morbimortalidade de trabalho no Brasil e combater os nveis de subnotificao de
acidentes de trabalho na previdncia social: visou subsidiar as aes de diagnstico,
tratamento, vigilncia em sade e o estabelecimento da relao da doena com o trabalho e
das condutas decorrentes. Estas so questes com implicaes para a concesso do AD
acidentrio (DIAS, 2001, p. 20).
2. 1 Fundamentao legal do auxlio-doena, direito ao trabalho e ao tratamento
A questo social contempornea envolve dimenses alm do trabalho assalariado. No
que se refere , h a, Caracterizada pela flexibilidade, h uma desregulamentao do capital
na organizao da produo, comprometendo as condies, as relaes de trabalho e o
contedo do prprio trabalho (IAMAMOTO, 2007).
As polticas sociais so relevantes para a garantia dos direitos. Elas alteram a relao
entre Estado e sociedade e so institudas na tensa relao entre acumulao e eqidade.
O AD regido pelo art. 201, I, da CF, que determina ser funo da previdncia social
a cobertura dos eventos de doena, invalidez, morte e idade avanada. um benefcio de
prestao continuada, regulamentado pela Lei 8.213/91, que dispe sobre o Plano de
17 Em cumprimento do art. 6, pargrafo 3, inciso VII, da LOS. DIAS, E (Org.). Ibid..
33
Benefcios da Previdncia Social (PBPS), e pelo Decreto 3.048/99, que aprovou o novo
Regulamento da Previdncia Social (RPS).
Segundo o art. 59 do PBPS:
O auxlio-doena ser devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o perodo de carncia exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para sua atividade habitual por mais de quinze dias consecutivos. No ser devido auxlio-doena ao segurado que se filiar ao Regime Geral de Previdncia Social j portador da doena ou da leso invocada como causa para o benefcio, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progresso ou agravamento dessa doena ou leso. (BRASIL, 1991)
Dessa forma, o AD orienta-se pela centralidade do trabalho, sendo concedido somente
nos casos de problemas de sade que incapacitam para o trabalho. Alm deste critrio,
necessrio cumprir a qualidade de segurado e o perodo de carncia. 18 Na concesso do AD
previdencirio, so exigidos 12 meses de contribuio para manter a qualidade de segurado.
Esta carncia tambm exigida para a concesso da aposentadoria por invalidez. (art.25,
PBPS).
Quando o AD concedido diante da caracterizao de um acidente de qualquer
natureza, no h a exigncia de carncia. Segundo o art. 26 do PBPS:
Independe de carncia a concesso das seguintes prestaes: I - penso por morte, auxlio-recluso, salrio-famlia e auxlio-acidente; II - auxlio-doena e aposentadoria por invalidez nos casos de acidente de qualquer natureza ou causa e de doena profissional ou do trabalho, bem como nos casos de segurado que, aps filiar-se ao Regime Geral de Previdncia Social, for acometido de alguma das doenas e afeces especificadas em lista elaborada pelos Ministrios da Sade e do Trabalho e da Previdncia Social a cada trs anos, de acordo com os critrios de estigma, deformao, mutilao, deficincia, ou outro fator que lhe confira especificidade e gravidade que meream tratamento particularizado. (BRASIL, 1991)
Dessa forma, no exigida a carncia em caso de acidente de qualquer natureza
(relacionado ou no ao trabalho) e diante de doenas graves, especificadas na Portaria do
MPAS/MS n. 2998/01. Ressalta-se que, aqui, a lgica do seguro social pode ser parcialmente
rompida, diferenciando-se as modalidades do AD previdencirio e acidentrio.
Quanto data de incio do benefcio, cabe uma diferenciao entre os trabalhadores
assalariados e demais segurados. Para aqueles, o AD concedido a partir do 16 dia de
18 O art. 24 do PBPS define o perodo de carncia como: o nmero mnimo de contribuies mensais indispensveis para que o beneficirio faa jus ao benefcio, consideradas a partir do transcurso do primeiro dia dos meses de suas competncias. Caso haja a perda da qualidade de segurado, esta readquirida com a contribuio de 1/3 das exigidas para o acesso ao benefcio. Para o trabalhador comprovadamente desempregado ou com pelo menos 10 anos de contribuio, o prazo para manter a qualidade de segurado de 24 meses.
34
afastamento do trabalho. Nos primeiros quinze dias de afastamento consecutivo, obrigao
legal da empresa o pagamento do salrio integral e providenciar os exames mdicos
correspondentes ao abono das faltas deste perodo. Agenda-se a percia mdica
antecipadamente com esclarecimento dos documentos necessrios ao requerimento do
benefcio, comprovando a categoria do segurado e o ltimo dia de afastamento do trabalho.
Para os autnomos, quando requerido at 30 dias aps o incio da incapacidade, concedido a
partir do incio da mesma. Aps este perodo, concedido a partir da data do requerimento na
previdncia social.
Vianna (2007) ressalta que os art. 59 e 60 do PBPS, referentes concesso do AD,
correspondem nica fundamentao legal que obriga o pagamento de salrios pela empresa
nos primeiros quinze dias de afastamento:
Caso o trabalhador no seja acometido por doena que dispensa carncia e no tenha o
perodo de 12 contribuies mensais anteriores ao incio da incapacidade, ficar sem
cobertura do salrio na primeira quinzena de afastamento:
Se a Previdncia Social, cujo objetivo constitucional abrange a cobertura dos eventos de doena e invalidez opta por no conceder proteo aos afastamentos de durao inferior a quinze dias, no deveria ser a empresa a arcar com tal proteo, exceto por sua prpria liberalidade. (VIANNA, 2007, p. 68)
Segundo a autora, o pagamento pela empresa do salrio integral ao trabalhador nos
primeiros quinze dias corresponde interrupo do contrato de trabalho, ou seja, este perodo
de afastamento contado como tempo de servio. Aps este perodo, caracteriza-se a
suspenso do contrato de trabalho, posto que a empresa fica isenta de qualquer obrigao
legal. Enquanto afastado por doena, o contrato de trabalho estar suspenso ou interrompido,
no possuindo eficcia plena. Por tal razo no possvel operar-se a demisso por parte do
obreiro e nem tampouco a dispensa injustificada pelo empregador (VIANNA, 2007, p. 85).
Dessa forma, conserva-se a relao jurdica entre empresa e empregador. O que se
suspende o trabalho; o seu contrato permanece ntegro. Segundo o art. 63 do PBPS e o art.
80 do RPS: O segurado empregado em gozo de auxlio-doena considerado pela empresa
como licenciado (BRASIL, 1999). Do mesmo modo, o art. 476 da CLT assim dispe: Em
caso de seguro-doena ou auxlio-enfermidade, o empregado considerado em licena no
remunerada, durante o prazo desse benefcio (BRASIL, 1943). Estes artigos colocam
tambm que: a empresa que garantir ao segurado licena remunerada ficar obrigada a
pagar-lhe durante o perodo de auxlio-doena a eventual diferena entre o valor deste e a
importncia garantida pela licena (BRASIL, 1991). Esta licena remunerada no decorre da
35
legislao previdenciria ou trabalhista, mas de acordos coletivos de trabalho ou da
liberalidade do empregador.
Desta forma, a proteo social para o AD previdencirio no se limita legislao
previdenciria, mas dependente dos contratos entre representaes sindicais e empresas. A
regulamentao da estabilidade decorrente da conveno coletiva de trabalho regida pelo
art. 7 da CF: So direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, alm de outros que visem
melhoria de sua condio social: (...) XXVI - reconhecimento das convenes e acordos
coletivos de trabalho (BRASIL, 1988).
Vianna (2007) afirma que, devido forma do clculo, comum o AD se tornar
inferior ao salrio da ativa, justamente quando o trabalhador mais precisa, devido aos
cuidados e gastos mdicos. Concorre para isto a diferente relao do empregado com a
empresa nos primeiros quinze dias (rendimento integral) e aps este perodo (valor do
benefcio).
Apesar de no incorporar o fator previdencirio, a Lei n. 9.876/99 implementou
mudanas no clculo dos benefcios, que antes eram baseadas na mdia dos ltimos 36
salrios de contribuio. Dessa forma, h uma reduo do valor mximo, fator agravado pelo
estabelecimento de um teto nominal para os benefcios (SALVADOR; BOSCHETTI, 2003).
Segundo os autores, a reforma da previdncia de 1998 ratificou o disposto no art. 61
da Lei n. 9032/95, alterando os benefcios acidentrios, igualando-os aos outros benefcios da
previdncia em valores. Entretanto, preservou-se a dispensa de carncia para o AD
acidentrio, e as regras e os clculos dos valores do benefcio no incorporaram a aplicao
do FP (fator previdencirio). 19 O AD calculado com base na mdia aritmtica simples dos
80% maiores salrios de contribuio. Sobre este valor, feita uma apurao de 91% do
salrio-de-benefcio, correspondendo renda mensal inicial. 20 Para os segurados inscritos
antes de novembro de 1999, o perodo bsico de clculo inicia-se em julho de 1994, enquanto,
a partir desta data, considera-se todo o perodo contributivo.
Ao contrrio das primeiras regulamentaes legais sobre a concesso do seguro
acidente de trabalho e do AD, que estipulavam o prazo mximo de um ano, no h prazos
19 Frmula especfica criada pela Lei n. 9.876/99, que introduziu critrios atuariais, at ento utilizados somente pela previdncia privada, segundo a qual o valor do beneficio maior quanto maiores a idade e o tempo de contribuio do trabalhador, diminuindo com o crescimento da expectativa de vida da pessoa. SALVADOR, E.; BOSCHETTI, I. op. cit.
20 O clculo do salrio-benefcio estabelecido para cada categoria de beneficio no art. 29 do PBPS. Salrio-de-benefcio a base de clculo da renda mensal inicial. A renda mensal inicial calculada mediante a aplicao de um percentual sobre o valor do salrio
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