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REALIDADE E SEPARAÇÃO: AÇÕES ARTÍSTICAS PARA DESFOCAR O REAL1
REALITY AND SEPARATION: ARTISTIC ACTIONS TO DEFOCUS THE REAL
Pablo Gobira / UEMG Adeilson William “Froiid” da Silva / UEMG
Antônio Mozelli / UEMG RESUMO A partir de pesquisas desenvolvidas no Laboratório de Poéticas Fronteiriças (grupo de pesquisa CNPq/UEMG – http://labfront.tk), este artigo busca trazer a reflexão e problematização das noções de realidade e separação através de uma pesquisa e desenvolvimento de trabalho poético. Os resultados que apresentaremos aqui surgem do contexto de pesquisas, desenvolvimento e inovação no campo das relações entre arte, ciência e tecnologia. Como forma de encontrar respostas para as possibilidades de compreender - e até mesmo multiplicar - as realidades foi elaborado um experimento que buscou vislumbrar de modo verossímil na cidade de Belo Horizonte (Minas Gerais/Brasil) a existência de iniciativa que, a princípio, seria inexistente: o artista Froiid, um dos membros da equipe do projeto do LabFront, acompanhou e discutiu uma narrativa sobre a separação de um território (Minas Gerais) do restante do Brasil (2015-2018). Neste trabalho traremos sucintamente o que é essa narrativa da emancipação e apresentaremos o exercício artístico desenvolvido no LabFront que permite divisar em uma instalação interativa em realidade virtual imersiva (2018) parte dessa construção “irreal/real”. PALAVRAS-CHAVE Realidades diversas; separação; realidade virtual; arte, ciência e tecnologia; arte digital. ABSTRACT This paper, based on researches developed by the Laboratory of Front Poetics (research group CNPq/UEMG - http://labfront.tk), seeks to bring the reflection and problematization of the notions of reality and separation through the research and development of a poetic work. The results we present here arise from the context of research, development and innovation in the field of relations between art, science and technology. As a way of finding answers to the possibilities of understanding - and even multiplying - realities, an experiment was developed that sought to obtain a credible prospect in the city of Belo Horizonte (Minas Gerais/Brazil) the existence of an initiative that, at first, would not exist: the artist Froiid, one of the members of the LabFront's project team, followed and discussed a narrative about the separation of a territory (Minas Gerais) from the rest of Brazil (2015-2018). In this work, we will briefly present what this narrative of emancipation is and we will present the artistic exercise developed by the LabFront that allows seeing through an interactive virtual reality installation (2018) part of this "unreal/real" construction. KEYWORDS Diverse realities; separation; virtual reality; art, science and technology; digital art.
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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INTRODUÇÃO
Este trabalho advém de pesquisas e projetos realizados pelo grupo de pesquisa
Laboratório de Poéticas Fronteiriças (LabFront) que atua a partir da Escola Guignard
e do PPGArtes (Programa de Pós-Graduação em Artes), na Universidade do Estado
de Minas Gerais (UEMG). A pesquisa poética que aqui será exposta é vinculada às
pesquisas já desenvolvidas e que estão em desenvolvimento no grupo.2
Vinculados aos projetos – e como resultado deles – também existem ações
extensionistas que são frutos de seus resultados. O experimento poético (instalação
interativa em realidade virtual imersiva Emancipação mineira) que aqui será
apresentado se vincula ao grupo tanto como uma pesquisa poética quanto resultado
de pesquisas com objetos mais amplos em desenvolvimento.
As propostas do grupo visam problematizar as diversas realidades (realidade virtual,
realidade diminuída, realidade aumentada e realidade social, e também a mescla
destas realidades conhecida como realidade mista) que se integram ao mundo e
permitem-nos produzir formas críticas de interagir/interferir nele. Este trabalho
propõe arregimentar e compor conceitos dentro dessa esfera de relação entre as
realidades apontadas e a realidade socialmente construída (BERGER, LUCKMANN,
2004) na criação de uma obra poética tecnológica em realidade virtual imersiva.
A obra de arte poética é um desdobramento de uma proposta artística realizada pelo
artista Froiid, membro do Laboratório de Poéticas Fronteiriças. O artista criou um
universo paralelo à realidade socialmente construída reunindo elementos políticos e
sociais. Criou e perseguiu, em Belo Horizonte (Minas Gerais), um discurso sobre o
interesse e possibilidade de um grupo de citadinos emanciparem/separarem o
território mineiro do Brasil no contexto atual. A partir de elementos de investigação
poética, o artista projeta e empreende um conjunto de ações no meio urbano
conduzindo uma experiência artística que acompanha essa narrativa visual e
audiovisual. No grupo de pesquisa LabFront, o coordenador formou uma equipe
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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para discutir a ampliação desse trabalho para o campo das relações entre arte e
tecnologia. Como resultado do trabalho poético gerou-se a instalação interativa em
realidade virtual imersiva Emancipação Mineira (2018).
Este trabalho, portanto, apresentará em suas seções o processo de formação dessa
poética tecnológica a partir das implicações conceituais que ela levanta. Sobretudo
demonstrando as possibilidades de gerar um debate político, estético, social
utilizando não apenas a realidade social como linguagem, mas através do uso da
realidade virtual como meio poético. Para apresentar essa discussão e realização
poética este artigo está assim organizado: a próxima seção do trabalho traz a ideia
de realidade a partir da dimensão tecnológica e social, bem como apresenta a noção
de separação que produz o regime estético que permite a criação verossímil do
experimento poético que desfocará o que se acredita ser real. Na segunda seção
aprofundamos a proposta poética e discorremos sobre as etapas de sua produção
para, então, apresentar as nossas considerações finais.
A REALIDADE E A SEPARAÇÃO
A mistura entre as diversas realidades, contando com aquelas promovidas e
potencializadas pelas novas mídias, vêm sendo discutida há décadas no campo das
relações entre arte, ciência e tecnologia. Ela é apresentada pelo artista e teórico Roy
Ascott (1934-) em suas pesquisas que envolvem telemática, elaborando a junção
das realidades apontadas por ele como: validada, virtual e vegetal. No trecho a
seguir Ascott afirma:
Neste ponto eu introduzi a idéia das Três Realidades Virtuais – VR: Realidade Validada, Virtual e Vegetal. Uma proposta em que o mundo “seco” da virtualidade computacional e o mundo “molhado” dos sistemas biológicos estão convergindo para produzir um novo substrato para o trabalho criativo – mídia-úmida consistindo em bits, átomos, neurônios e genes. Há também uma certa convergência destas três realidades virtuais. Realidade Virtual (tecnologia digital interativa), que é telemática e imersiva; Realidade Validada (tecnologia mecânica reativa), que é prosaica e newtoniana; Realidade Vegetal (tecnologia de plantas psicoativas), que é enteogênica e espiritual. (ASCOTT, 2018, p. 2)
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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Apesar desse texto ter sido publicado recentemente em português (2018), as ideias
de Ascott ecoam nas reflexões do campo desde a década de 1960, possibilitando
ver hoje, já às portas de mais uma década do século XXI, a concretização de suas
proposições que lidam com a transposição da visão comum de uma realidade
estática, una, para a composição de uma multiplicidade. Essa multiplicidade é
atravessada por elementos materiais, do universo das coisas, assim como da
percepção, da cognição que é objeto e sujeito da realidade cujo modo de apreender
está em mutação.
Nessa citação acima vemos como a mescla das realidades possibilita novas
experiências, potencializando o modo de entender e até mesmo multiplicar
realidades, buscando novas formas e relações com os espaços, criando novas
narrativas que, segundo Ascott, vêm se convergindo. Assim, no pensamento de
Ascott, se converge realidade validada, vegetal e virtual.
Trazemos para o diálogo outro importante trabalho de autor que se detém sobre as
transformações da realidade vivida, sobretudo da perspectiva dos seres biológicos
humanos, e temos que a realidade é “um domínio de coisas, e, nesse sentido, aquilo
que pode ser distinguido é real.” (MATURANA, 2014, p. 187) Humberto Maturana
(1928-) nos mostra uma realidade que é constituída por um processo de
“coisificação” na linguagem humana, mas que permite ser transmutada a medida
que essa convenção humana busca a compreensão objetiva desse “domínio de
coisas”. Ele percebe que nesse domínio adentram outras técnicas de ver, observar
e, possivelmente, experimentar (ver, ouvir, interagir etc.). Em ambas as dimensões a
realidade é vista como um fenômeno apreensível, perceptivo e construído com base
em partes e interações.
Para buscarmos um pouco mais de clareza a partir desses modos de compreender a
realidade, podemos ensaiar que estamos próximos a uma ideia de “composição de
realidade”, já que ela não é um domínio “puro” - no qual vivemos porque nos foi
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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dado viver daquele modo -, mas algo que é percebido e conhecido, passível de
transformação.
A ideia de realidade construída socialmente, em Peter Berger (1929-2017) e Thomas
Luckmann (1927-2016), nos permite entender a realidade a partir de outro conceito,
o de realidade social (BERGER, LUCKMANN, 2004). Existir em sociedade permite
que se construa um domínio de coisas compartilhadas de modo perceptivo e que
possibilitam – caso se consiga e/ou deseje – serem transformadas de modo mais
fluido ou menos fluido. Com o avanço tecnológico ao menos parece haver a
mudança na percepção. Podemos não transformar de modo imediato a realidade
social, mas se intervem com cada vez mais velocidade na dimensão virtual da
realidade, utilizando, inclusive, meios como as técnicas de: virtualização
(modelagem 3D de objetos, por exemplo), aumento da realidade (inserção de
objetos), diminuição da realidade (retirada de objetos), mescla desses e de outros
modos (como os com características holográficas, por exemplo). Mas no final há de
fato uma intervenção na realidade social composta por uma condição econômica e
política?
A separação
Com a aceleração dos processos de globalização da economia mundial durante e
após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) os fluxos de movimentação dos povos
não apenas Europeus, mas dos vários extremos do mundo aumentaram. Enquanto
ocorria o desenvolvimento tecnológico das indústrias (comuns ou da cultura), vimos
o crescimento das guerras contra o colonizador, resistência a regimes totalitários,
quedas de regimes autoritários construíram um cenário de vivências do século XX
que se encaminharam para uma outra realidade após a queda do Muro de Berlim e
ao fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Ao final do século XX
tivemos um momento de maior abertura das fronteiras para a circulação da
mercadoria pelo mundo e de mais um meio dela circular e ser produzida: a internet.
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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As ideias de realidade passam a se encaminhar para o que agora temos: uma
realidade social de conexão gerida por momentos variados e sobrepostos da
circulação. A circulação é: da mercadoria, dos produtores de mercadoria, das
empresas globais, dos imigrantes, dos refugiados, e dependente do grau de debate
simbólico a que os povos do mundo está sujeito (e/ou interessado).
Estamos diante de um mundo múltiplo que caminha para a construção de múltiplas
possibilidades de se reconstituir a realidade, inclusive a partir de novas fundações
de estados nacionais em movimentos de separação, tais como: Afrikaners, na África
do Sul; Cabília, na Argélia; Cabinda, na Angola; Bakassi, em Camarões dentre
vários outros que poderiam ser mencionados, mas aqui ficamos apenas com alguns
cujos nomes começam entre as letras “a” e “c”, isso no vasto e diverso Continente
Africano. Nessa ideia está a noção de separação/emancipação que, de modo que
não entremos na Teoria do Direito Internacional, aqui será compreendida como a
representação da ação de um Estado que se desvencilha do domínio de um outro.
Obviamente, aqui, não pretendemos nos aprofundar nas minúcias conceituais nem
nas Teorias do Direito Internacional quanto às diferenças entre separação e
emancipação, muito menos em específico sobre a teoria dos Estados e Estados
Nacionais. Gostaríamos apenas de mostrar que se o mundo atual se apresenta a
partir dessas múltiplas possibilidades de composição de realidades sociais (e de
realidades sociais particulares), temos que ver o que as uniriam com base na
dimensão proposta tanto por Humberto Maturana quanto por Roy Ascott.
Com Maturana poderíamos pensar em uma união pela intenção coercitiva da
objetificação no domínio das coisas a qual está em um universo convencionado que
os seres humanos (biológicos) compartilham. Em Ascott há uma dimensão material
que nos levou a uma condição tecnológica peculiar das realidades virtual, validada e
vegetal. Diferente das duas primeiras que foram construídas pela sociedade, de
certo modo, como realidades sintéticas (a virtual e a validada), esta última (a
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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vegetal) deixou de ser uma realidade acessada apenas de modo autóctone para ser
usufruída de maneira ampla a partir do desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
A realidade vegetal também “espalha” seus modos constitutivos pelo mundo do
domínio das coisas que pode agora acessar a realidade por esse viés vegetal.
Podemos considerar que esses meios de se “espalhar” pelo mundo, como sementes
pelo chão em momento pré-plantação, é estimulada em momento pós-digital que
criou meios para que se espalhasse as condições de realidades (em ASCOTT,
2018) das quais tratamos. Esse processo de produção de realidades diversas; esse
modo de produzir que produz a si mesmo e o que se percebe no mundo pode ser
chamado de “sociedade da separação”.
Para Guy Debord (1931-1994), no seu livro A sociedade do espetáculo (DEBORD,
1997), a sociedade é espetacular (o espetáculo) é separação. Separação é, nessa
fase da sociedade da produção na economia política, conforme vemos através das
teses do autor, a dimensão de alienação do ser humano de sua força produtiva
própria. Essa separação, para Guy Debord, feita primordialmente na unidade
produtiva (onde se une na produção o produtor e o processo de produção separado
dele, adquirido por quem deterá a propriedade pelo produto gerado) se alastra pela
sociedade como parte de sua genética. Essa dimensão de separação cria uma
realidade que permite que se desdobre os modos de separação, antes apenas
restritos ao universo da produção (conforme apontado) ou ao da arte (como na
apresentação do espetáculo em que o ator não é ele enquanto interpreta), pois
agora se configura uma sociedade da produção/da estética (desse processo de
produção) fundados na separação, conforme se vê em Guy Debord.
Essa constituição da realidade, próxima da dimensão estética da arte, permite que
se veja a realidade de modo maleável, moldável, elástica e plástica.3 Percebemos
que a realidade se torna o modo como observamos e agimos enquanto seres
humanos. Dessa forma, percebemos que a narrativa que se vive é conduzida em um
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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processo intencional de produção dessa realidade múltipla, mas subjugada a uma
centralidade de seu processo produtivo: produzir-se é o seu centro e produção é
separação.
É a partir dessa configuração que o trabalho poético desenvolvido foi proposto,
abrindo as possibilidades de rever realidades e construir novas realidades sobre as
convenções sociais que se constroem dentro de uma dimensão de separação. O
curioso é que tanto a proposta do artista Froiid, quanto a instalação interativa em
realidade virtual imersiva cujo processo poético será descrito a frente, são erigidas
na compreensão da realidade diversa e da separação. Estávamos cientes de que,
justamente pela diversidade da realidade e separação, seríamos capazes de compor
uma poética com esse mote (a separação de um povo) e com uma composição (a
narrativa sobre um movimento utópico; e uma instalação em realidade virtual) que se
separa da realidade ao mesmo tempo que a coloca em cheque e com ela debate.
É importante salientar que apesar de todos os autores mencionados nesta seção
serem aproximados a partir de nosso enfoque na realidade, compreendemos que
cada um tem um modo de desenvolvimento teórico próprio. Ainda assim é curioso
que estejamos tratando de autores que foram (e alguns ainda são) produtivos nesse
debate sobre a realidade em campos diversos e em períodos tão próximos, como:
Berger e Luckmann, com a publicação do seu livro em 1966; Roy Ascott, desde os
anos 1960; Humberto Maturana, cujo texto citado acima é de 1978, mas produz
desde os 1950; ou mesmo Guy Debord cujo livro é de 1967 e desenvolve reflexões
contemporâneas aos outros autores. Ainda que com trilhas diferentes (e até modos
e conclusões opostas) em suas teorias, foi possível trazer suas reflexões para
revelar que há em nossa proposta um estudo sobre a realidade que subsidia o
trabalho que será relatado na próxima seção.
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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DESFOCANDO O REAL
A partir do ano 2015, o artista Froiid começa uma ação na cidade de Belo Horizonte
(Minas Gerais, Brasil). Nessa ação propunha inaugurar um novo território a partir do
movimento pela emancipação do Estado de Minas Gerais do resto do país.
Baseado nos constantes e contrastantes grupos separatistas internacionais, como o
Brexit (grupo que pede a separação do Reino Unido do restante da União Europeia),
e grupos nacionais, como o “São Paulo Livre” e “O Sul é o meu país”, que
apareceram com propostas e referendos em praças públicas, o artista pesquisou, de
forma ostensiva, quais outros grupos vinham se fortalecendo, criando movimentos
semelhantes, na conjuntura construída no início do século XXI. Com os resultados
dessa pesquisa o artista decidiu criar o seu próprio movimento emancipador
constituindo suas bases a partir de alguns pressupostos.
O território idealizado, agora batizado de Narnia (uma referência direta ao mundo
fantástico, habitado por criaturas místicas criado pelo escritor irlandês C. S. Lewis),
foi proposto como um campo ficcional, intangível, não limitado apenas a uma
localidade, mas itinerante e vivo, como as proposições utópicas/distópicas das
vanguardas artísticas e antiartísticas da segunda metade do século XX (como a New
Babylon, de Constant Nieuwenhuys; e as ações dos artistas e arquitetos do
Superstudio, Archizoom Associati e Archigram e outros de diversas partes da
Europa como Yona Friedman, Iannis Xenakis, Cedric Price dentre outros – ver:
NIEUWENHUYS, 1974 e CHOAY, 2015).
Para a reivindicação dessa emancipação, o artista valeu-se de estratégias diversas.
Como o contexto desse início de século está permitindo não somente a
multiplicidade da realidade, mas a mistura dos discursos, inclusive os divergentes, o
artista – muitas vezes de modo obscuro – misturou ideais conservadores, como os
atribuídos popularmente à “direita”, aos ideais progressistas “esquerdistas” sem
distinção alguma, propondo proseliticamente a emancipação como bandeira política.
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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Para isso, apropriou taticamente de materiais e recursos estéticos. As técnicas de
gravuras das artes plásticas foram utilizadas para criar cartazes, camisas e outros
materiais de propaganda; técnicas de edição visual e audiovisual foram usadas para
editar fotografias e criar vídeos; técnicas de construção narrativas foram utilizadas
para a criação de roteiros interpretados por atores em diversos momentos etc..
A emancipação tornou-se o meio de conceber um território sem nome, uma utopia,
que busca propor uma reflexão sobre a relação entre a cidade, o Estado e as
ideologias que promovem a sua manutenção e funcionamento enquanto máquina
produtiva, aclarando o meio urbano como cenário de um jogo de disputas territoriais
de estéticas totalitárias.
A Narnia belorizontina se propôs a ser uma parábola do atual momento sociopolítico.
Consciente de que Minas Gerais é uma região de importante simbolismo na
construção da identidade nacional, e também devido a sua participação em
correntes emancipatórias do século XVIII (como a Inconfidência Mineira), o artista
acaba por evidenciar que tal momento sociopolítico do Brasil se desenha desde o
período colonial.
A Emancipação mineira
Após tomar conhecimento da proposta, o coordenador do Laboratório de Poéticas
Fronteiriças propôs ao artista que montássemos uma equipe formada por Pablo
Gobira, Froiid e Antônio Mozelli. O objetivo seria dar continuidade às possibilidades
de produção do trabalho poético explorando a relação com as tecnologias digitais. A
criação da instalação em realidade virtual imersiva surge como proposta de ampliar
a realidade inexistente relacionada ao cenário da ação desenvolvida pelo artista na
cidade de Belo Horizonte. O desenvolvimento aconteceu em 2 etapas: a primeira
possibilitou elaborar o conceito e tratou da dimensão estética da instalação; e a
segunda referiu-se à realização técnica e programação do aplicativo que permite ao
interator usufruir do trabalho.
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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Como a proposta da instalação aconteceu antes mesmo do fim da ação do artista,
foi possível que a primeira etapa da criação da instalação acontecesse
concomitantemente com a criação e tratamento das fotos e vídeos (Figura 1)
realizados na cidade de Belo Horizonte e servem como base para amparar a
construção utópica da realidade da “Narnia” belorizontina.
Figura 1: Imagens estereográficas da instalação. Fonte: Acervo dos artistas
O labirinto
Como a equipe do LabFront percebeu haver um labirinto na narrativa da
emancipação, optou-se por essa forma como modo de trazer o interator para uma
representação do conflito enfrentado por aqueles que tiveram contato com as ações
do artista na cidade. Os indivíduos e movimentos sociais da cidade que tiveram
contato com a ideia de um movimento emancipatório mineiro acabavam até mesmo
sem entender as demandas devido aos discursos desencontrados. Porém, isso não
significou falta de credibilidade à proposta, havendo inclusive, adesão e moções de
apoio. Muitos também não percebiam as incongruências expressas em panfletos e
cartazes, alguns destes trazendo representações não apenas mineiras, mas
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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nacionais. A criação de um labirinto (Figura 2) em que o interator pudesse percorrer
essa proposta, aqui já nomeada como Emancipação mineira, se relaciona com a
ideia ilusória e desorientadora dos possíveis caminhos a se percorrer resultantes da
realidade inexistente em Belo Horizonte.
Figura 2: Modelagem tridimensional do labirinto com software Blender 3D. Fonte: Acervo dos artistas.
O labirinto, como símbolo bastante explorado na literatura e na arte, remete à
mitologia grega que influenciou e influencia a concepção de formas, espaços e
construções em diversas culturas ao redor do mundo. A própria Internet pode ser
vista como um labirinto repleto de caminhos e informações que transitam de forma
desnorteadas por espaços e tempos diversos. Os mecanismos de busca conduzem
o usuário da internet a percorrer caminhos a fim de encontrar uma resposta através
de tentativas e erros. É necessário percorrer caminhos não lineares a cada vez que
se busca algo na internet, o que resulta em complexas trilhas com possíveis
resultados.
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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A instalação pretende, através de espaço labiríntico tridimensional, possibilitar que o
interator percorra caminhos imagináveis e explore as imagens (produzidas com
técnicas das artes plásticas), vídeos e áudios realizados na cidade de Belo
Horizonte. Tudo isso se dá em ambiente virtual com pouca iluminação, com sons se
atravessando, trazendo a dimensão obscura que toda a poética promove.
O desenvolvimento técnico da instalação
A segunda etapa é referente a modelagem e programação algorítmica da instalação.
O espaço tridimensional labiríntico foi modelado através do software Blender 3D.
Texturas de pedra e efeitos de iluminação criados com a intenção de tornar o
espaço apertado e com pouca luz do ponto de vista do interator imerso na realidade
virtual através de headset estereoscópico (Figura 3).
Figura 3: Imagens estereográficas da instalação. Fonte: Acervo dos artistas.
Após modelado, o labirinto foi exportado para o IDE Unity 3D, um software (game
engine) de desenvolvimento de jogos digitais e aplicações multimídia (Figura 4).
Nele foi possível programar em linguagem C#: os elementos visuais, como as fotos e
áudios; os elementos aleatórios que se fragmentam de forma generativa no céu da
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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instalação; e a condição de estereografia que permite o efeito de imersão através da
ilusão dos sentidos de visão do interator.
Figura 4: Programação da instalação com software Unity 3D. Fonte: Acervo dos artistas.
Foram utilizados o framework Google Cardboard em conjunto com o celular
Samsung S8 com sistema operacional Android Nougat para a criação do aplicativo
Emancipação Mineira. O aplicativo pode ser utilizado em smartphones com Android
Nougat ou superior. O trabalho poético já foi mostrado na exposição EmMeio#10,
em Brasília/DF, no Museu Nacional, durante o 17º Encontro Internacional de Arte e
Tecnologia, em 2018.4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Propusemos trazer, neste artigo, conceitos da esfera de relação entre a realidade e
arte tecnológica procurando problematizar a realidade socialmente construída
(BERGER, LUCKMANN, 2014). Para isso, os autores trouxeram uma experiência
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
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poética chamada Emancipação mineira para ser desenvolvida. Essa experiência se
fundamenta em outro trabalho poético, uma ação poética que ocorreu entre 2015 e
2018 na cidade de Belo Horizonte (Minas Gerais, Brasil) e que foi conduzida pelo
artista Froiid. Em ambas as propostas esteve em jogo a questão da realidade a partir
da ideia de realidade e irrealidade, realidades diversas e realidade e separação.
Após propor a discussão sobre a realidade e a reflexão sobre ela através do relato
do desenvolvimento tanto da “Narnia” belorizontina, ação poética de Froiid, quanto
da Emancipação mineira, realizada por equipe do Laboratório de Poéticas
Fronteiriças, cumprimos o nosso objetivo de relatar a criação desse experimento
poético e seu desdobramento em arte tecnológica. Isso foi possível, especialmente,
na última seção deste artigo, quando apresentamos o conceito e desenvolvimento
da instalação interativa em realidade virtual imersiva chamada Emancipação
mineira.
Notas
1 Agradecemos à FAPEMIG, ao CNPq e à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UEMG pelo apoio aos projetos do Laboratório de Poéticas Fronteiriças dos quais este trabalho resulta. 2 As pesquisas em desenvolvimento, relacionadas a este artigo, são: “Olhar aprisionado: pesquisa e desenvolvimento de interfaces interativas em realidades diversas” (CNPq, FAPEMIG, 2016-2019); e “Literacia digital da arte digital: a arte produzindo novas realidades na educação básica” (CNPq, 2018-2021). 3 É importante salientar que não se afirma haver uma dimensão artística na teoria de Guy Debord, apenas se demonstra, através dela, que há uma penetração/mistura do universo da arte na economia política, permitindo que elementos estéticos sejam reconhecidos e explorados em toda parte, sobretudo na realidade cotidiana. 4 A instalação também foi exposta durante a exposição “Linhas sensíveis”, realizada em comemoração dos 75 anos da Escola Guignard (julho/agosto de 2019), da Universidade do Estado de Minas Gerais, na galeria da instituição.
Referências
ASCOTT, Roy. Além das Mídias Interativas: das cibernéticas às tecnoéticas. Tradução Cleomar Rocha e Júlio César dos Santos. Revista Z Cultural – Revista do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, Rio de Janeiro, vol. 7, 2, 2018.
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2004.
CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades. São Paulo: Perspectiva, 2015.
GOBIRA, Pablo; SILVA, Adeilson William da; MOZELLI, Antônio. Realidade e separação: ações artísticas para desfocar o real, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1551-1566.
1566
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
LEWIS, C. S. Crônicas de Nárnia: o leão, a feiticeira e o guarda-roupa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
GOBIRA, Pablo. Guy Debord, jogo e estratégia: uma teoria crítica da vida. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012.
MATURANA, Humberto. Biologia da linguagem: a epistemologia da realidade. In: MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: UFMG, 2014. p. 147-198.
NIEUWENHUYS, Constant. "New Babylon – A Nomadic City", written for the exhibition catalogue published by the Haags Gemeetenmuseum at Hague, 1974.
Pablo Gobira
Professor doutor da Escola Guignard e do PPGArtes (UEMG). Membro pesquisador e gestor de serviços da Rede Brasileira de Serviços de Preservação Digital do IBICT/MCTI. Coordenador do grupo de pesquisa (CNPq) Laboratório de Poéticas Fronteiriças [http://labfront.tk]. Organizador dos livros “A memória do digital e outras questões das artes e museologia” (2019), “Percursos contemporâneos” (2018), "Configurações do pós-digital" (2017) dentre outros. Atua na curadoria, criação e produção no campo da cultura, artes digitais e ciências e como professor em cursos de fronteira como o Curso de Engenharia de Máquinas Biológicas (UFMG, UFV e UEMG).
Adeilson William “Froiid” da Silva
Graduando no curso de Licenciatura em Artes Plásticas pela Escola Guignard (UEMG), nascido em Belo Horizonte, professor de artes. Atuante desde 2007 em vários coletivos e grupos relacionados a intervenções e arte de rua, participa de exposições coletivas e individuais dentro e fora do país. É integrante do grupo de pesquisa (CNPq) Laboratório de Poéticas Fronteiriças [http://labfront.tk].
Antônio Mozelli
Graduado em Ciência da Computação pela Universidade FUMEC e Bacharel em Artes Plásticas na Escola Guignard (UEMG) e é estudante de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes na UEMG. Atualmente desenvolve pesquisa e trabalhos no campo das artes digitais e explora a utilização de realidade virtual em ambientes de imersão interativa. É integrante do grupo de pesquisa (CNPq) Laboratório de Poéticas Fronteiriças [http://labfront.tk]. Tem também experiência de consultoria em Usabilidade e Arquitetura de Informação.
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