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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA
RENATA DE MORAIS MACHADO
LUTO NA CONTEMPORANEIDADE:
discursos, prescrições e expertises
Rio de Janeiro
2017
RENATA DE MORAIS MACHADO
LUTO NA CONTEMPORANEIDADE:
discursos, prescrições e expertises
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Saúde Coletiva.
Orientador: Profª. Drª. Rachel Aisengart Menezes
Rio de Janeiro
2017
M149
Machado, Renata de Morais.
Luto na contemporaneidade: discursos, prescrições e expertises /
Renata de Morais Machado. – Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de
Estudos em Saúde Coletiva, 2017.
110 f.; 30 cm.
Orientadora: Rachel Aisengart Menezes
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro /
Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-Graduação
em Saúde Coletiva 2017.
Referências: f. 100-105.
1. Morte. 2. Luto. 3. Emoções. I. Menezes, Rachel Aisengart. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde
Coletiva. III. Título.
CDD 155.937
FOLHA DE APROVAÇÃO
RENATA DE MORAIS MACHADO
LUTO NA CONTEMPORANEIDADE:
discursos, prescrições e expertises
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Saúde Coletiva.
Aprovada em: __________________
__________________________________________________________
Profa. Dra. Rachel Aisengart Menezes (Orientadora)
PPGSC/IESC/UFRJ
__________________________________________________________
Profa. Dra. Neide Emy Kurokawa e Silva
PPGSC/IESC/UFRJ
__________________________________________________________
Profa. Dra. Cláudia Carneiro da Cunha
IP/UERJ
__________________________________________________________
Profa. Dra. Fernanda de Carvalho Vecchi Alzuguir
IESC/UFRJ
AGRADECIMENTOS
À CAPES pelo financiamento de minha formação acadêmica.
À minha orientadora, Profa. Rachel Aisengart Menezes, pela competência, dedicação,
generosidade e estímulo ao longo desses dois anos de pesquisa e crescimento pessoal.
Às professoras da Banca Examinadora, Cláudia Carneiro da Cunha, Fernanda Vecchi Alzuguir
e Neide Emy Kurokawa e Silva, pela disponibilidade e colaborações valiosas.
Às psicólogas e colaboradoras Mayla Cosmo, Cecilia Rezende e Erika Pallottino, que tanto me
ensinaram sobre um tema tão pesado e apaixonante.
A Roberto Unger, pela contribuição e dedicação inigualável a esta pesquisa.
Às funcionárias da secretaria de pós-graduação, Fátima e Nadja, pela atenção e paciência que
tornam os meios burocráticos mais humanos.
Aos colegas Priscila Cassemiro, Carolina Peres, Angela Speroni, Amanda Vargas, Cassiano
Dezotti, Polyana Loureiro, Nathalia Ramos, Priscylla Knopp-Riani e Daniel Azevedo pela
amizade e companheirismo nesses dois anos de trajetória.
À Cecilia Athias pelo incentivo, companheirismo, paciência e afeto inestimáveis.
À minha mãe, Andrea e minha irmã, Fernanda, pelo apoio e comemoração a cada etapa
conquistada.
Aos amigos Diego, Henrique, João Pedro, Renata, Marianna, Guilherme, Aryane, Iraman, pela
torcida e compreensão pela ausência na reta final.
Por mais que a gente se prepare para perder, e
eu me prepare há muitos anos, a morte é um
buraco (…). Percebo que envelhecer e perder
é andar por aí com o corpo esburacado pelos
olhares que a gente já não tem. Passamos a
ser carregadores de ausências.
Eliane Brum
RESUMO
MACHADO, Renata de Morais. Luto na contemporaneidade: discursos, prescrições e
expertises. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde
Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
A análise das formulações acerca dos processos saúde-doença, morte e luto evidencia
transformações social e culturais, ocorridas em determinado contexto histórico. Com o
processo de secularização, ocorreu uma perda de sentido do sofrimento associado à
transcendência, nas sociedades ocidentais. A ênfase no presente, a busca contínua de prazer e o
exercício do livre-arbítrio se tornam referências centrais. Neste contexto, movimentos sociais e
da classe médica afirmam o direito do doente a não sofrer. O sofrimento, se não evitado, deve
ter a menor duração e intensidade possível. É neste sentido que as propostas de atenção sobre o
luto se inserem. Pelo fato de o luto constituir um processo em que o sofrimento é inerente, ele
deve ser compreendido, cuidado e, na medida do possível, elaborado, amenizado ou, até,
evitado. Manuais destinados a profissionais de saúde abordam o tema sugerindo a superação
do luto independente da perspectiva teórica adotada. É delimitada uma duração, referente ao
que seria uma vivência normal ou patológica do luto, assim como são elaboradas prescrições,
sejam elas preventivas ou curativas. Manuais e livros-texto, nacionais e internacionais, com
caráter prescritivo, destinados a profissionais de saúde, configuram-se como objeto de análise
nesta pesquisa, uma vez que tais formulações refletem o contexto sociocultural. Na gestão
contemporânea do processo de morrer, profissionais de saúde buscam promover uma aceitação
social da morte e preparação para o luto, para todos os atores sociais envolvidos nos cuidados
no final da vida. O conceito de ‘luto antecipatório’ é cunhado por profissionais da área ‘psi’,
em referência ao luto vivido quando a morte é iminente. Este conceito se insere nas práticas
profissionais, de modo a garantir uma vivência considerada normal, evitando um “luto
patológico”. A proliferação de pesquisas e de propostas terapêuticas sobre o luto evidencia-se
pela recente publicação de manuais específicos sobre o tema a partir do século XXI. Afinal, o
que o luto representa na cultura ocidental contemporânea, de modo a se encontrar cercado da
atenção dos profissionais de saúde que objetivam sua superação? Frente ao risco de o processo
de luto se tornar patológico, os saberes ‘psi’ não promoveriam um controle e/ou
autorregulação das emoções no sentido de uma normatização deste evento? A partir da análise
documental de manuais e livros-texto direcionados para profissionais de saúde, esta pesquisa
objetiva apreender e analisar as teorias acerca do luto na contemporaneidade, que
fundamentam as prescrições terapêuticas a ele referidas. Na medida em que saberes e práticas
institucionais são reconfigurados, com uma oferta de modelos de elaboração de perdas, com
possibilidade de “experts da conduta humana”, novas subjetividades e (in)sensibilidades são
produzidas socialmente.
Palavras-chave: Vida/morte. Pesar. Emoções. Superação.
ABSTRACT
MACHADO, Renata de Morais. Luto na contemporaneidade: discursos, prescrições e
expertises. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde
Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
The analysis of the statements regarding the processes of illness and health, death and grief
indicates social and cultural transformations which took place in a particular historical context.
Along with the process of secularization, there was a loss of the meaning of suffering
associated to transcendence in eastern societies. The emphasis on the present, the ceaseless
search for pleasure and the use of free will become central ideas. In this context, social and
medical movements affirm the ill’s right of not suffering. The suffering, unless avoided, must
have the smallest intensity and duration as possible. It is in this direction which are inserted the
proposals of attention to grief. Since the grief holds inherent suffering it should be understood,
taken care of and, as far as possible, elaborated, softened or even avoided. Manuals addressed
to health professionals approach the theme suggesting the overcoming of the grief regardless
the theoretical perspective. A duration is settled according to what would be a normal or
pathological experience of grief, as well as prescriptions, being them preventive or healing.
Manuals and textbooks, national and international, of prescriptive manner addressed to health
professionals are the object of analysis of this research, since they reflect the social and
cultural context. In the contemporary management of the dying process, health professionals
seek death’s social acceptance and also the preparation for the process of grief for all the social
actors involved in the care of the ending of life. The concept of “anticipatory grief” is coined
by professionals of the ‘psy’ disciplines referring to the grief which is experienced when death
is imminent. This concept is inserted in professional practices so as to ensure a normal
experience avoiding a “pathological grief”. The upcoming publishing of specific manuals
about the theme reveals the proliferation of researches and therapeutic proposals as of the
twenty-first century. Afterall, what does grief represent in the eastern contemporary culture in
order to be surrounded of the health professionals’ attention which aims to its overcoming?
Facing the risk of the grief process becoming pathological, wouldn’t the ‘psy’ disciplines
promote a control and/or a self-regulation of emotions in the sense of standardizing this event?
From the documental analysis of manuals and textbooks addressed to health professionals, this
research aims to seize and analyze the theories regarding grief in contemporaneity which found
the therapeutic prescriptions referred to it. As far as studies and institutional practices are
rebuilt with an offer of models of elaboration of losses and with the possibility of “experts of
the human relations”, new personhoods and (in)sensibilities are socially produced.
Keywords: Monograph. Life/death. Grief. Emotions. Overcoming.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AHP Academy of Hospice Physicians
ANCP Academia Nacional de Cuidados Paliativos
BVS Biblioteca Virtual em Saúde
CID Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com
a Saúde
CTI Centro de Tratamento Intensivo
DeCS Descritores em Ciências da Saúde
DSM Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais
DSM-IV Manual de Diagnóstico e Estatística 4ª. Edição
DSM-V Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais 5ª. edição
FFGT Family Focused Grief Therapy
FTPC “Fora de possibilidades terapêuticas de cura”
IAHPC International Association for Hospice and Palliative Care
IHIC International Hospice Institute and College
INCA Instituto Nacional do Câncer
PUC-Rio Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
SBGG Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia
SECPAL Sociedade Espanhola de Cuidados Paliativos
TEPT Transtorno de Estresse Pós-Traumático
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UTI Unidade de Tratamento Intensivo
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10
2 CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA ............................................................ 16
2.1 GESTÃO CONTEMPORÂNEA DO PROCESSO DO MORRER ................................. 16
2.2 O LUTO NA CONTEMPORANEIDADE ..................................................................... 26
3 OBJETIVOS ................................................................................................................... 30
3.1 OBJETIVO GERAL ...................................................................................................... 30
3.2 OBJETIVOS SECUNDÁRIOS ...................................................................................... 30
4 METODOLOGIA ........................................................................................................... 31
4.1 ESCOLHA DA METODOLOGIA ................................................................................. 31
4.2 ANÁLISE DOCUMENTAL .......................................................................................... 31
4.3 BUSCA E SELEÇÃO DE ARTIGOS ............................................................................ 33
5 DESCRIÇÃO DO MATERIAL...................................................................................... 35
5.1 LUTO: DEFINIÇÃO E REFERENCIAIS TEÓRICOS .................................................. 45
5.2 LUTO: FATORES DE RISCO E INTERVENÇÕES PROFISSIONAIS ........................ 61
6 O LUTO NA SOCIEDADE OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA ............................... 72
6.1 SECULARIZAÇÃO, PSICOLOGIZAÇÃO E PSIQUIATRIZAÇÃO ............................ 72
6.2 SOFRIMENTO COMO RISCO: UMA SOCIEDADE DO DESEMPENHO .................. 86
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 93
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 99
ANEXOS .......................................................................................................................... 105
10
1 INTRODUÇÃO
A inspiração para esta pesquisa surgiu a partir de minha experiência profissional e
acadêmica. Ainda durante o processo de formação em Psicologia na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), meus interesses se direcionaram para as áreas de pesquisa e da clínica,
quando, pela primeira vez, me deparei com os conflitos e dilemas associados à passagem da
teoria à prática. Dois anos após a conclusão da graduação, em 2013, ingressei em um curso de
especialização em Psicologia da Saúde na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio), quando tive a oportunidade de estagiar como psicóloga em um Centro de Terapia
Intensiva (CTI) de um hospital privado da cidade do Rio de Janeiro. Neste contexto, a maioria
dos pacientes que acompanhava era acometida por doenças crônicas degenerativas1. Eram
doentes que conviviam ou começavam a conviver com alguma limitação física em decorrência
de doença crônica e que, devido a um agravamento, encontravam-se internados, para
restabelecimento de um equilíbrio, ou para receber cuidados ao fim da vida em ambiente
hospitalar.
Nos atendimentos aos enfermos e seus familiares identifiquei minhas dificuldades em me
posicionar como profissional supostamente detentora de um saber especializado sobre os
processos saúde-doença, o morrer e o luto. Afinal, com qual finalidade são formulados saberes
que delimitam um tempo e uma forma de expressão de sentimentos considerados ‘normais’,
em relação ao sofrimento decorrente da perda de um familiar? Até que ponto deveria aplicar
propostas diretivas, nos diferentes e particulares casos por mim acompanhados? A bibliografia
referenciada na especialização em Psicologia da Saúde indica, por exemplo, concepções de
pacientes com comportamentos considerados problemáticos, sugestões de manejo (BOTEGA,
2012) e meios de mensurar a dor (STRAUB, 2014). O trabalho do psicólogo que objetiva uma
resolução deste tipo de situação atende aos interesses dos enfermos e/ou da instituição
hospitalar?
A análise das formulações científicas acerca dos processos saúde-doença, morte e luto
evidencia as transformações culturais ocorridas em determinado contexto. Na sociedade
1 Segundo Burlá e Azevedo (2013, p. 1728), entende-se por doenças crônico-degenerativas “aquelas de curso
evolutivo e incapacitante, que não são passíveis de cura, porém podem ser controladas (...). As doenças crônico-
degenerativas podem acometer pessoas de todas as faixas etárias, porém o envelhecimento é o maior fator de
risco para sua ocorrência, aliado à comorbidade”.
11
ocidental contemporânea, marcada por seu caráter hedonista, os significados de sofrimento – e
os sentimentos articulados a essa categoria – são transformados (MENEZES; VENTURA,
2013, p. 224). A partir do processo de secularização da sociedade, a ênfase no sofrimento
vivido em vida, como garantia de salvação no juízo final, perde sentido. O sofrimento deixa de
ter o sentido de via de acesso à vida eterna, não mais cumprindo uma “função social2”. Nesse
processo, o foco não mais incide sobre a transcendência, mas recai sobre a existência terrena.
Trata-se então de uma exaltação na preeminência do tempo presente, com uma busca de prazer
– intenso e imediato. Nesse processo de secularização, ocorre uma ênfase na legitimação da
vontade (livre arbítrio) do indivíduo. Deste modo, o sofrimento, se não evitado, deve ter a
menor duração e intensidade possível, a fim de manter ao máximo uma funcionalidade
‘normal’ e adequada daquele indivíduo. É neste contexto que se afirma a defesa pelo direito do
doente a não sofrer, por parte da classe médica e da sociedade em geral. É neste sentido que as
propostas de construção de uma “boa morte” e um cuidado sobre o luto3estão inseridas. Pelo
fato de o luto constituir um processo em que o sofrimento é inerente, ele deve ser
compreendido, cuidado e, na medida do possível, elaborado e amenizado ou, até, evitado.
Na gestão contemporânea4 do processo do morrer, profissionais de saúde buscam uma
preparação para o luto na proximidade de uma perda, e aceitação da morte, por todos os atores
sociais envolvidos. Nesta elaboração, de acordo com os pressupostos teóricos formulados
acerca do processo de morrer, os sujeitos poderiam absorver a realidade da perda
gradualmente, resolver questões sociais, legais e afetivas relativas ao doente e produzir
transformações nas configurações familiares. Viver-se-ia a experiência de um “luto
antecipatório”, termo cunhado pelos profissionais para se referir ao luto vivido enquanto a
morte ainda não ocorreu, mas é iminente. A atenção ao “luto antecipatório” se insere nas
2A ideia de “função social” do sofrimento está associada à noção vinculada ao dolorismo cristão, em que o
sofrimento em vida era justificado como meio de acesso ao Paraíso. A partir da secularização da sociedade, esta
“função social” perde sentido – o sofrimento deve ser evitado e a vida terrena passa a ser caracterizada pela
busca contínua do prazer. Esta e outras ideias associadas à noção de secularização da sociedade serão abordadas
com mais detalhes mais adiante nesta dissertação. 3A partir do advento da Psicanálise, o luto passa a ser objeto de reflexão e atenção. Freud (2006, p. 249) define
luto como “a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente
querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante”. O luto, portanto, seria uma reação
intrapsíquica normal subsequente a uma perda, opondo-se à melancolia, que se refere a uma disposição
patológica. 4Por gestão contemporânea do processo de morrer entende-se os saberes e práticas característicos do século XXI
referentes a este evento, influenciados pela ideologia dos Cuidados Paliativos e pelo esforço de “humanização”
do morrer. Este processo e os conceitos a ele relacionados serão descritos com mais detalhes adiante nesta
dissertação.
12
práticas profissionais, de modo a garantir uma vivência de luto considerada normal, evitando o
desenvolvimento na direção de um “luto patológico”. A partir da noção presente na sociedade
ocidental contemporânea de que, quando não evitado, o sofrimento deve ser o menor possível,
são formulados saberes e práticas sobre o que seria um luto ‘normal’ e um luto ‘patológico’.
Esta pesquisa parte da constatação da elaboração do que seria um luto normal, no
Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais, o DSM, elaborado pela
Associação Americana de Psiquiatria, evidenciando uma construção teórica em torno da
experiência subjetiva do luto. O DSM-IV, formulado e publicado em 2000, se refere ao luto
como diagnóstico diferencial do Episódio Depressivo Maior5, princípio organizador para
classificação de transtornos do humor. Por compartilhar características com este episódio de
alteração de humor, o Manual (2002, p. 252) explicita que, “se os sintomas começaram dentro
do período de dois meses após a perda de um ente querido, e não persistirem para além desses
dois meses, são geralmente considerados como resultante do luto”. Assim, destaca a duração e
expressão do luto ‘normal’, ainda que admitindo variações culturais. Caso os sintomas
permaneçam dois meses após a perda, deve ser considerada a caracterização de um Episódio
Depressivo Maior.
No DSM-V publicado em 2013, o luto permanece como diagnóstico diferencial do
Episódio Depressivo Maior, porém a duração normal considerada é de doze meses. Além desta
distinção, observa-se nesta edição a formulação do Transtorno do Luto Complexo Persistente,
inserido no tópico “Condições para estudos posteriores”. Apesar de ainda não ser categorizado
como diagnóstico oficial, o Manual propõe o conceito de luto patológico, que se distingue do
normal pelo tempo de vivência: patológico é o luto que persiste com severidade para além dos
12 meses que sucedem o falecimento.
O luto é posto em discurso a partir do momento em que os saberes psi (seja a Psicologia
ou a Psiquiatria, num segundo momento) buscam enquadrá-lo em definições, sinais, sintomas e
intervenções cabíveis. Guias e manuais – internacionais e nacionais – são organizados, por
autores ou instituições especializadas, para orientar profissionais no acompanhamento a
5A característica essencial para a atribuição deste diagnóstico é apresentar humor depressivo ou perda de
interesse por um período de, pelo menos, duas semanas. Além disso, o sujeito deve apresentar pelo menos quatro
sintomas adicionais de uma lista apresentada no Manual, que inclui alterações comportamentais (apetite e sono,
por exemplo) e emocionais, como sentimento de desvalorização pessoal.
13
pessoas enlutadas. Estas obras contêm afirmativas sobre o que esperar do processo do luto6,
quais sentimentos, sensações físicas, cognições e comportamentos, e como intervir. Estas
produções acadêmicas indicam que, com auxílio de intervenção profissional, os familiares
podem se preparar para a perda e, em seguida, para sua superação.
A partir da aproximação com este objeto de pesquisa, chamou atenção a expressiva
oferta de cursos de especialização7 e grupos de discussão sobre o luto
8. A divulgação em sites
evidencia a ideia de que falar sobre a experiência da perda, seja com profissionais
especializados, ou em grupo de pessoas que vivenciaram situações semelhantes, propiciaria
uma possibilidade de uma trajetória saudável no processo de luto. Deste modo, para uma
elaboração passível de qualificação no espectro da normalidade, seria necessário um
compartilhamento da experiência íntima do sofrimento em ambiente público e, ao mesmo
tempo, controlado9. A troca de experiências torna o tema público, que começa a ilustrar
produções culturais, como filmes, e a literatura, como no caso do livro bestseller “O ano do
pensamento mágico” de Joan Didion, além de produções dirigidas a profissionais.
Parto aqui do princípio de que os saberes “psi”10
e a biomedicina11
objetivam responder
questões estabelecidas em dado contexto histórico, social e cultural. Uma vez formuladas, tais
construções científicas acarretam transformações da e na sociedade, bem como nas
subjetividades, de modo a gerar novas demandas sociais. Quais seriam os constructos teóricos
e prescritivos referentes ao luto na sociedade ocidental contemporânea? O quê esses discursos
e prescrições produzem, em termos de mudanças nas subjetividades? Qualquer vivência de
luto deve contar com acompanhamento profissional? Quais situações e/ou ‘sintomas’ de luto
6Para maiores informações ver capítulo da Genezini (2012), no Manual de Cuidados Paliativos, da Academia
Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). 7Como exemplo, ver site “Instituto Entrelaços” (http://www.institutoentrelacos.com) ou Anexo A. 8Como exemplo, ver site “Mãe sem nome” (http://www.maessemnome.com.br) ou Anexo B. 9Para exemplos de depoimentos sobre o benefício de compartilhar sobre o luto ver links
(https://estilo.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2015/08/25/anne-ficou-nove-anos-de-luto-e-precisou-
de-tratamento-especial-para-superar.htm e http://vamosfalarsobreoluto.com.br/2016/07/21/251-dias-sem-voce/)
ou Anexo C e Anexo D. 10 Os saberes “psi” englobam a Psiquiatria, a Psicologia e a Psicanálise, sendo os dois primeiros “profissões oficialmente reconhecidas e controladas pelo Estado, que exigem um diploma específico para seu exercício”
(RUSSO, 2002, p. 8), enquanto a Psicanálise é um ofício “extra-oficial”, transmitida de forma artesanal por
“iniciados”. 11Segundo Camargo Jr. (2003, p. 101), Biomedicina é uma racionalidade médica vinculada ao conhecimento
produzido no campo da Biologia, composto por cinco elementos teóricos fundamentais: morfologia, fisiologia,
sistema de diagnósticos, sistema de intervenções terapêuticas e uma doutrina médica. Esta racionalidade pode ser
delineada em três proposições: caráter generalizante (discursos com validade universal), caráter mecanicista
(modelos tendem a naturalizar máquinas produzidas pela tecnologia humana) e caráter analítico (o
funcionamento do todo é necessariamente dado pela soma das partes).
14
seriam patológicos? Esta pesquisa tem a finalidade de apreender e analisar as formulações
teóricas referentes à proposta de intervenção em torno do luto na contemporaneidade. A partir
de análise socioantropológica sobre o luto objetivo apreender como ele passa a constituir
objeto de um saber específico, a partir da divulgação de ideais do processo do morrer, com
base no ideário paliativista. A análise faz-se necessária, uma vez que tais prescrições
terapêuticas acerca do luto, que orientam profissionais de saúde, desencadeiam novos
discursos, novas categorias profissionais e novas propostas de intervenção, por estes “experts
da conduta humana12
”.
Este estudo se insere no campo de investigações da Saúde Coletiva, especificamente na
área de Ciências Humanas e Sociais. A perspectiva teórica desta pesquisa baseia-se na
Antropologia da Saúde e na Antropologia das Emoções, que constitui um eixo de discussão
acerca da gestão das emoções dos sujeitos enlutados, a partir da construção de teorias e
práticas sobre o luto proporcionadas pelos saberes ‘psi’.
Com o objetivo de desenvolver o exame do campo criado e legitimado de discursos e de
construções de sensibilidades acerca do luto, esta dissertação está organizada em cinco
capítulos, além das considerações finais. O primeiro se refere às transformações do processo
do morrer nas sociedades ocidentais contemporâneas, influenciado pelas tecnologias
biomédicas e pela recente expansão e valorização da ideologia dos Cuidados Paliativos. A
partir deste cenário apresento a hipótese de que a evidência das características da “boa morte”
na cultura ocidental contemporânea provoca transformações na gestão do processo de luto. O
segundo capítulo contém os objetivos que nortearam esta pesquisa. O terceiro capítulo destina-
se à explicitação da metodologia empregada: análise documental. Neste capítulo apresento a
justificativa da escolha por esta metodologia, seu embasamento teórico e o processo de seleção
de artigos realizado em um momento prévio à entrada no campo. No quarto capítulo apresento
os dados coletados no campo de pesquisa: as construções teóricas e as práticas sobre o luto,
legitimadas pelos saberes ‘psi’. Explicito e justifico a escolha de cada manual selecionado e,
então, exponho o campo do saber ‘psi’ sobre o luto, a partir das principais construções que o
constituem: as definições de tipos de luto, os principais modelos teóricos que norteiam as
12Por “experts da conduta humana” entendo, em concordância com Rose (2011), as ciências humanas – e, neste
caso, os saberes ‘psi’ especificamente – não apenas como um campo de teorias e explicações abstratas, mas
como “parte da história dos modos pelos quais os seres humanos têm regulado os outros e a si mesmos à luz de
certos jogos de verdade” (p. 25). Neste sentido, considera-se que a história dos saberes ‘psi’ está intrinsecamente
vinculada à história do governo, no sentido foucaultiano. Esta questão será desenvolvida no quinto capítulo.
15
práticas contemporâneas em torno do luto, a construção teórica que classifica o luto como um
risco ao indivíduo, e as propostas de intervenções profissionais. No quinto capítulo é
desenvolvida uma análise do luto na contemporaneidade, enquanto efeito e consequência dos
processos de secularização, psicologização e psiquiatrização da sociedade ocidental
contemporânea, e sua consequente categorização como potencial situação de risco de ordem
física, emocional e social. Por fim, as considerações finais contêm reflexões sobre os processos
sociais que desencadearam a forma de gestão do luto na cultura ocidental contemporânea,
produzindo novas sensibilidades e expertises.
16
2 CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA
2.1 GESTÃO CONTEMPORÂNEA DO PROCESSO DO MORRER
A morte não é apenas um fato biológico, mas um fenômeno que sofre alterações, de
acordo com o momento histórico e o contexto sociocultural (MENEZES, 2004, p. 24). Este
tema, que integrava os primeiros estudos etnológicos, recebeu maior atenção como objeto de
estudo das ciências sociais no início do século XX, ganhando força a partir da década de 1960.
Pesquisas realizadas (ARIÈS, 2012; ELIAS, 2001; ADAM; HERZLICH, 2001; MENEZES,
2004) por sociólogos, antropólogos e historiadores apontam significativas mudanças nas
práticas e representações relativas à morte e ao morrer.
O modo como os indivíduos lidam com o processo de morrer está inserido no campo
simbólico da vida humana. Seus elementos contêm significados que refletem as formas como
os grupos e as culturas vivem e relacionam-se, suas crenças e valores, relações com os corpos
e os cuidados referentes a eles. Philippe Ariès (2012) formula a ideia de diferentes modelos de
morte, de acordo com as atitudes sociais frente a este evento, em momentos históricos
distintos. Este autor distingue o modelo de morte “tradicional” e o modelo de morte
“moderna”. No modelo de morte “moderna”, os cuidados aos doentes são institucionalizados e
rotinizados, pela instituição e saber biomédicos – assim, a morte ocorre apesar dos
investimentos médicos – com um processo de ocultamento e exclusão social de quem está em
processo do morrer. Este modelo foi formulado em contraste ao modelo denominado
“tradicional”, característico dos séculos anteriores ao XIX, quando a morte era ritualizada,
comunitária e, portanto, socialmente aceita.
Na constituição da sociedade ocidental moderna, em um longo processo histórico, os
hospitais tornaram-se centro de referência na assistência à saúde, à doença e à morte. Em “O
nascimento do hospital”, Foucault (2014) aborda como o hospital passou a se configurar como
instituição terapêutica, deslocando os cuidados dos doentes e a atenção ao processo de morte,
dos religiosos para os médicos. No final do século XVIII, a construção da racionalidade
anatomoclínica – que inaugura a medicina ocidental moderna – e a introdução de mecanismos
disciplinares foram responsáveis pela estruturação de um saber, com suas propostas de
intervenção curativa, que conduziram à organização do hospital da forma como é atualmente
conhecido. Menezes (2004) afirma que a consolidação da instituição hospitalar – medicamente
17
administrada e controlada – iniciou um processo de ‘medicalização do social’, em que “[a]
medicina, seu saber e sua instituição tornam-se referências centrais no que se refere à saúde,
vida, sofrimento e morte” (p. 28).
Ao longo do século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, foi
desenvolvida uma prática médica padronizada e tecnologizada. Novas técnicas e tecnologias
médicas, como a reanimação, alimentação e respiração artificiais, viabilizaram a possibilidade
de prolongamento do tempo de vida. Esta medicina tecnologizada tem sua expressão máxima
nos Centros ou Unidades de Tratamento Intensivo. Este setor hospitalar surgiu entre 1946 e
1948, nos Estados Unidos, no tratamento de doentes (em sua maioria crianças) com
poliomielite e com o uso dos respiradores artificiais, para a manutenção de suas vidas. No final
da década de 60 do século XX, pesquisadores ingleses e americanos demonstraram que
pacientes graves têm problemas fisiopatológicos comuns, demandando uma série de cuidados
e tecnologias específicas para suprir funções corporais deficientes. Deste modo, foi necessário
o desenvolvimento de equipamentos e terapêuticas e sua devida organização para concretizar
esta unidade de tratamento13
. A UTI tem o objetivo de concentrar os doentes mais graves, o
equipamento técnico mais caro e sofisticado e a equipe com conhecimento e experiência
específica para manipular tais doentes e aparelhos tecnológicos (MENEZES, 2006, p. 30).
Com o emprego de tecnologia médica para a manutenção da vida, especialmente com o
advento do respirador artificial, a morte deixa de ser um fato pontual, transformando-se em um
processo prolongado, vivido em etapas. Tanto o processo do morrer como o próprio conceito
de morte sofrem transformações com o uso de técnicas de manutenção da vida. O fenômeno da
morte torna-se mais complexo, pois com o uso do respirador artificial a referência deixa de ser
a parada cardiorrespiratória, e passa a ser o funcionamento cerebral – é construído o conceito e
diagnóstico de morte cerebral.
Com a mudança do cenário da morte, antes vivida na comunidade, para os hospitais, este
fenômeno torna-se alvo da ação e da eficácia técnica da medicina. Assim, torna-se
inconveniente morrer em casa. A morte é monitorizada e controlada, para que possa ser
13A UTI foi idealizada por Florence Nightingale, enfermeira italiana que exerceu sua carreira na Inglaterra. No
século XIX, durante a Guerra da Crimeia, preocupada com a alta taxa de mortalidade, Florence se baseia no
modelo biomédico para organizar os soldados de acordo com a gravidade de cada caso. Seu esforço resultou em
significativos resultados, estabelecendo diretrizes para a enfermagem moderna e para a organização da UTI.
Disponível em: http://www.florence-nightingale.co.uk/resources/biography/?v=19d3326f3137. Último acesso
em:18 de fevereiro de 2017.
18
evitada ao máximo. Na medida em que os cuidados são rotinizados, a assistência se caracteriza
como impessoal, mecânica e asséptica. É neste sentido que se orientam as críticas ao modelo
de “morte moderna”, julgando-o como um processo de desumanização, assujeitamento ou
objetificação do doente (MENEZES, 2004, p. 32).
Na década de 1970, com o crescimento de uma população com doenças crônicas
degenerativas, movimentos sociais de caráter antimédico criticam a situação de “perda de
autonomia” dos pacientes devido aos excessos de poder médico, com práticas racionalizadas e
automatizadas que objetivam a sobrevivência, acima de qualquer custo. Nos Estados Unidos,
emerge um discurso pelos direitos dos doentes, com propostas que abrangem desde o direito de
“morrer bem”, com “dignidade”, até reivindicações pela regulamentação da eutanásia.
Evidencia-se então a inserção do tema da saúde no conjunto dos direitos humanos.
Na Inglaterra, a filosofia hospice14
, criada por Cicely Saunders, enfermeira, assistente
social e médica inglesa, postula uma assistência baseada na preservação da autonomia do
doente, no controle dos sintomas e respeito aos desejos dos enfermos. Nos Estados Unidos, a
partir de críticas aos excessos de poder médico, o movimento inicial pelos Cuidados Paliativos
teve origem em organizações populares, dirigidas por voluntários e enfermeiras, com caráter
antimédico (MENEZES, 2004, p. 54). Com a adesão da classe médica ao movimento,
configura-se um novo campo de saber, com novos conhecimentos e competências técnicas,
que fornecem aos Cuidados Paliativos legitimidade social.
A ideologia dos Cuidados Paliativos propõe um novo modo de prática em relação à
morte, com uma assistência ativa e integral aos pacientes cuja doença não responde mais ao
tratamento curativo. Entende-se que, neste estágio, o paciente categorizado como “fora de
possibilidades terapêuticas de cura” (FPTC) pode ter seu sofrimento associado a diversas
origens, referentes à sua “totalidade” ‘bio-psico-social-espiritual’. É sob este prisma que as
intervenções dos paliativistas devem atuar para garantir um processo de morrer capaz de
produzir uma “boa morte”, com “qualidade de vida”. As intervenções profissionais não se
direcionariam mais à manutenção e prolongamento da vida a todo custo, mas aos desejos e
vontades do enfermo, oferecendo conforto e autonomia. Para tanto, é necessário envolvimento
de uma equipe multiprofissional, alinhada no mesmo propósito, composta por médicos,
enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais e outras categorias
14St. Christopher Hospice, fundado em 1967 em Londres, foi o primeiro hospice inaugurado e reconhecido como
instituição de assistência, ensino e pesquisa no cuidado de “pacientes terminais” e seus familiares.
19
profissionais, criadas na implantação dos Cuidados Paliativos enquanto novo campo de saber
específico, como, por exemplo, assistente espiritual, “midwifes for the dying15
”, entre outras.
A morte é colocada em discurso, tanto no meio profissional como na sociedade em geral. O
pressuposto central dos Cuidados Paliativos é que, permitindo “autonomia” e “independência”
do paciente, seria possível garantir “qualidade de vida” até o final de sua vida. Para atingir este
objetivo, os paliativistas têm como referência o conceito de “dor total”, cunhado por Saunders,
que é um tipo de dor complexo, abrangendo aspectos físicos, mentais, sociais e espirituais.
Para que o suporte ao doente seja pleno é preciso, portanto, uma atenção e ação de uma equipe
interdisciplinar e multiprofissional. Diante da proposta paliativista de cuidado sobre a
totalidade do indivíduo, Menezes (2003, p. 141), formula a hipótese de que o modelo de
“morte contemporânea” consiste em uma busca de acesso a uma totalidade perdida na
fragmentação da identidade individual, no modelo de morte moderna.
De acordo com o ideário paliativista, a meta da assistência é propiciar a produção de uma
“boa morte”, a partir da expressão dos desejos do doente. Para tanto, é fundamental que ele
efetue escolhas terapêuticas e referentes ao final de sua vida, a partir das informações sobre as
possibilidades terapêuticas, transmitidas pela equipe de saúde. Para que seja possível tomar
decisões é preciso uma “comunicação franca” entre todos os atores sociais envolvidos no
processo do morrer. Este aspecto contrapor-se-ia ao modelo curativo da “morte moderna”, uma
vez que, explicitados os limites da medicina e os desejos do paciente, passou a ser possível que
este efetue escolhas e tome decisões quanto ao seu último período de vida.
O modelo de morte “contemporânea” valoriza, portanto, o morrer com “autonomia” e
“dignidade” – categorias relacionadas aos sujeitos e suas vontades – valores importantes na
cultura individualista, em que a vida de um sujeito é considerada única e singular. A morte não
é mais ocultada, pelo contrário, ela deve ser anunciada para que o paciente, a partir da
consciência de sua proximidade, possa tomar decisões. No modelo da “morte contemporânea”
o foco se desloca da doença, como na “morte moderna”, para a pessoa do doente, o que está
15“Parteiras para o moribundo”, como a expressão foi traduzida para o português, refere-se a uma nova categoria
profissional relacionada ao processo de morte, de acordo com os moldes do ideário da “morte natural”. Este
modelo, que teve início na Inglaterra na década de 1990 e começa a ser mencionado no Brasil, foi inspirado no
movimento do parto natural e da “humanização” do parto. Os ideários propõem que, da mesma forma que
haveria uma preparação para o parto com exercícios corporais, rituais e retorno à natureza, o mesmo deveria ser
feito em relação ao morrer, para que este momento seja vivido com menos ansiedade e, até, com a possibilidade
de êxtase. As “parteiras para o moribundo” têm a função de acompanhar e atender o morredor em suas
necessidades físicas, emocionais e espirituais, para que este momento possa ser vivido “naturalmente”, como
parte do ciclo da vida (MENEZES, 2003, p. 113).
20
associado à proposição de um tratamento e assistência “humanizados”. Neste sentido, a “boa
morte” é aquela que acontece à maneira do paciente, na busca por uma “morte digna”.
O trabalho possibilitado pelo anúncio da proximidade da morte, em contraposição ao modelo
de “morte moderna”, representa, de certa forma, um resgate do modelo da “morte tradicional”,
que perdurou da Idade Média até o século XX, com a institucionalização do hospital. Assim
como no modelo tradicional, o ideário paliativista propõe que a morte aconteça, sempre que
possível, na residência do doente cercado por seus familiares, que cumpririam ritualmente os
desejos do paciente, visibilizando a morte na cena social.
Conforme apontado por Menezes (2004), a proposta da “qualidade de vida”, até a última
etapa da vida, objetiva dar a “oportunidade” de um último trabalho sobre si e sua identidade
pessoal, condição valorizada na cultura individualista. Segundo Rose (2011, p. 136), por meio
da confissão de seus sentimentos e desejos, o indivíduo constrói sua identidade, afirmando
uma verdade própria. É neste sentido que este processo da “boa morte” representa a
possibilidade de um trabalho sobre si para o doente e, também, para os que o cercam, pois o
processo não se resumiria à reflexão, exigiria também uma expressão e compartilhamento de
sentimentos e desejos.
Desta forma, contrapondo-se à temida imagem da “morte moderna” do doente internado
em um leito de hospital, no ideário do modelo da “morte contemporânea”, o doente, seus
familiares e a equipe de profissionais de saúde mobilizariam esforços no sentido de produzir
uma “boa morte”. A construção deste processo, embora se baseie nas vontades do doente, está
associada à ideia de uma estetização da morte como um fenômeno aceito socialmente, calmo,
harmonioso, pacífico, e que configure uma cena bela.
A proposta de construção de uma “boa morte” está alinhada a valores característicos da
sociedade ocidental moderna16
, como a autonomia e o hedonismo. Deste modo, uma vez
informado sobre as possibilidades terapêuticas, ninguém melhor do que o doente para tomar
decisões acerca dos investimentos a serem feitos para viver bem, e não apenas sobreviver. A
“boa morte” seria então construída no encontro da maximização da extensão da vida17
,
16Segundo Duarte (2005), algumas dimensões da sociedade ocidental contemporânea se referem ao
“’individualismo ético’ (subjetivismo, culto do eu, privilégio da escolha, ênfase na adesão ou na
responsabilidade pessoal), do ‘hedonismo’ (privilégio da satisfação pessoal, desqualificação da dimensão moral
do sofrimento, afirmação do self etc.) e do ‘naturalismo’ (fisicalismo, cientificismo etc.)” (p. 143). 17De acordo com Duarte (1999), o “hedonismo moderno” opera com uma estratégia qualitativa, com uma busca
de intensidade sempre maior, ao contrário do “hedonismo tradicional” que opera com um consumo quantitativo.
21
enquanto esta possibilitar qualidade de vida, entendida como a busca por prazer e a perda de
sentido transcendente do sofrimento.
De acordo com o modelo dos Cuidados Paliativos, a produção efetiva de uma “boa
morte” depende da aceitação social do processo do morrer. Elizabeth Kübler-Ross, psiquiatra
suíça radicada nos Estados Unidos, se tornou referência mundial na assistência a doentes
terminais, a partir de suas pesquisas, quando escutou pacientes com câncer avançado, em
estágio terminal, e seus familiares. A partir do acompanhamento e das entrevistas com os
doentes, Kübler-Ross postulou a existência de repetidos padrões de respostas emocionais
adaptativas, frente à noticia da proximidade da morte pela equipe médica. Esta pesquisa
resultou no primeiro livro publicado pela autora, em 1969, intitulado “Sobre a morte e o
morrer”. Nele, Kübler-Ross apresenta o modelo de cinco etapas que considerou que o enfermo
vivencia a partir do conhecimento do avanço da doença na direção da morte. Os estágios são:
negação, raiva, negociação, depressão e, por fim, aceitação. As etapas não indicam um
percurso necessariamente vivenciado pelo doente, mas um modelo de compreensão deste
processo subjetivo. A teoria de Kübler-Ross representa uma inovação no tema, pois sugere
uma modificação nas representações do morrer como um fenômeno da vida humana que deve
ser vivido e elaborado, passível de receber intervenções de profissionais capacitados com
conhecimentos específicos (MENEZES, 2004, p. 59). Para alcançar uma “boa morte”, o
doente, seus familiares e equipe de saúde devem aceder à quinta etapa, de aceitação, como
última fase de elaboração do morrer.
Apesar da atribuição de responsabilidade ao modelo dos Cuidados Paliativos, pela
construção de um discurso crítico em relação aos excessos de intervenções médicas, o modelo
da “boa morte” se baseia em diferentes níveis de intervenção. As ações dos profissionais de
saúde são direcionadas ao controle e alívio da dor e demais sintomas, por meio do uso de
medicamentos e bloqueios neurais. Os procedimentos não se restringem à dimensão corporal,
mas à “totalidade” do doente, se estendendo aos aspectos psicológicos, sociais e espirituais, a
partir do conceito de “dor total”, cunhado por Saunders. Neste sentido, são formuladas
intervenções que estimulam uma elaboração psicológica em torno dos sentidos da própria vida,
uma expressão de sentimentos dos pacientes e de seus familiares, com enunciação para
Duarte afirma que as diversas estratégias de maximização da vida e otimização do corpo presentes nas
especialidades médicas e de saúde só puderam surgir em função da sistemática exploração do corpo como sede
de intensificação do prazer.
22
subsequente realização de seus desejos, resolução de pendências legais, sociais e afetivas,
planejamento em relação ao período final da própria vida e os rituais após a morte. As medidas
também estimulam um equilíbrio “espiritual”, passível de ser alcançado por técnicas que
seguem o modelo da Nova Era, como mentalizações, visualizações, meditação, uso de mantras,
aromaterapia, cromoterapia e, mais recentemente, até ingestão de substâncias psicoativas,
como a psilocibina (POLLAN, 2015).
Para a produção de uma “boa morte”, o ideário dos Cuidados Paliativos recomenda um
cuidado personalizado e integral para controlar o sofrimento, por meio de uso limitado da
tecnologia médica. Contudo, segundo Juan Pedro Alonso (2013, p. 2545), a proposta de um
cuidado mais “humanizado” ocorre por intermédio de habilidades e saberes técnicos
específicos, mediante um avanço profissional sobre áreas tidas como da intimidade das
pessoas. Portanto, trata-se de uma expansão da esfera do controle médico para além das áreas
às quais a atenção médica se centrava, passando a englobar também aspectos psicológicos,
sociais e espirituais.
A fim de proporcionar uma “morte digna”, mediante um processo único e singular
daquele indivíduo, os profissionais de saúde devem solicitar e registrar informações relevantes
acerca do paciente. Constrói-se um conhecimento íntimo sobre ele, objetivando detectar
possíveis problemas ou vulnerabilidades em sua experiência ou de seus familiares para que, a
partir de uma intervenção mediada pelos profissionais envolvidos, tais aspectos possam ser
elaborados para viabilizar uma “boa morte”. Deste modo, os Cuidados Paliativos aconteceriam
na confluência de aspectos caracterizados por competência (linguagem, conhecimento e
habilidades da medicina) e aspectos do cuidado (compaixão e empatia). Esta integração
compõe um saber técnico e discurso específicos sobre a morte e o morrer.
Novos espaços de intervenção profissional são construídos e legitimados, medicalizando
a experiência do morrer em sentido mais amplo, em comparação com o modelo da “morte
moderna”. Os defensores da “boa morte” postulam que a proposta paliativista se afasta dos
excessos do modelo de “morte moderna”, tido como medicalizado, tecnologizado, frio e
“desumano”. No entanto, a produção das ciências sociais que investiga o modelo de “morte
contemporânea” apresenta dois debates críticos: a rotinização e crescente medicalização das
unidades paliativas (CLARK; SEYMOUR, 1999, p. 104; MENEZES, 2004, p. 66). Uma vez
que a biomedicina e os saberes “psi” possuem status de autoridades enquanto saberes
científicos nas sociedades ocidentais contemporâneas, poderia a construção teórica e prática
23
acerca do processo de morrer apontar para uma consequente normatização deste evento? Deste
modo, tais normas e práticas científicas acerca deste evento transformariam subjetividades e
demandas dos indivíduos de um determinado contexto social, histórico e cultural.
De acordo com Peter Conrad (2007, p. 4), medicalização é o processo pelo qual
fenômenos ‘não-médicos’ são definidos e tratados sob a esfera da medicina. Assim, cada vez
mais a medicina atua sobre eventos da vida, afirmando-se como autoridade sobre
comportamentos e cuidados corporais. É neste sentido que o processo do morrer se torna
objeto de intervenção do saber e práticas médicas. A produção de uma “boa morte” está
associada ao fluxo da vida daquele indivíduo único e singular, uma vez que medicalização e
individualização são processos intrinsecamente vinculados e articulados (MENEZES;
GOMES, 2011, p. 103).
A formulação do conceito de uma “boa morte” abre espaço para a expressão dos desejos
e temores do indivíduo doente. Ao posicioná-lo no centro deste processo, possibilita que ele
tome decisões sobre sua trajetória, inclusive na negociação acerca de intervenções médicas.
Tais escolhas não são isentas da influência de valores socialmente compartilhados e
normatizados.
Ainda de acordo com Alonso (2013, p. 2547), a ampliação das esferas de atuação
profissional pode dar lugar a intervenções normativas sobre a experiência de morrer, ao
abordar sentimentos, relações e dinâmicas familiares. A “humanização” dos cuidados no
processo do morrer não significa, portanto, uma “desmedicalização”, mas a afirmação de uma
nova especialização profissional, dotada de habilidades técnicas e discursos específicos. Para
Kellehear (2016, p. 393), o modelo de “boa morte” também pode produzir uma “morte
indigna”18
na medida em que se mantém uma relação de dependência dos serviços
especializados dos profissionais de saúde paliativistas e pela perspectiva de uma identidade em
desaparecimento – o status social de indivíduo saudável e autônomo é substituído pelo status
de indivíduo doente e dependente.
18Segundo Kellehear (2016, p. 401) a ideia de “morte indigna” está associada à noção de “estigma” de Erving
Goffman, em que uma pessoa estigmatizada é excluída da aceitação social plena, introjetando a vergonha
oriunda da característica estigmatizada. Assim, a ‘morte indigna’ tem as seguintes características: erosão da
consciência do morrer (os sintomas da morte não são reconhecidos como tal, mas como condições relacionadas
ao envelhecimento ou à doença), erosão do apoio ao morrer (devido à falta de reconhecimento da identidade de
pessoa morrendo há escassez de apoio no processo de morrer) e o estigma, uma vez que os indivíduos não são
vistos como pessoas morrentes, mas socialmente estigmatizadas devido à falta de autonomia (KELLEHEAR,
2016, p. 385).
24
A proposta da constituição do processo de morrer como um trabalho sobre si se dá com o
auxílio de técnicas e intervenções da ação de profissionais especializados, orientados por um
modelo considerado ideal. Cabe então questionar que transformações sociais esta nova
especialização profissional produz, a partir da difusão de novos saberes e propostas de
intervenção, na busca por uma “boa morte” ideal.
O modelo de “morte contemporânea”, assim como o modelo da “morte moderna”, deve
ser entendido como “tipo ideal”, no sentido weberiano19
. A ideia de um modelo de “morte
contemporânea” não sugere a evidência de um único modelo de “boa morte”, em determinada
cultura. Entretanto, pode ser entendido como uma norma, servindo como norteador das
intervenções e expectativas dos atores sociais envolvidos.
A normatização de um evento, mediante sua apropriação por um saber técnico
especializado categoriza, nos termos de Nikolas Rose (1988, p. 35), o “governo”, em que, por
meio de uma ação calculada sobre os indivíduos, busca-se a realização de fins sociais e
políticos. Para governar os sujeitos é preciso primeiro conhecê-los. No caso dos fenômenos da
vida humana, como a morte e o morrer, são os saberes “psi” que fornecem os conceitos pelos
quais a subjetividade e intersubjetividade podem ser calculáveis. Desta forma, os indivíduos
são objetos de intervenção externa, mas também sujeitos de uma ação sobre si próprios, em
nome de suas capacidades subjetivas. A expertise da subjetividade20
trabalha, portanto, por
intermédio da persuasão inerente às suas verdades, fornecendo aos indivíduos a ilusão de
permanecerem livres a agir conforme suas escolhas, desejos e condutas. Estaria então o
modelo de morte “contemporânea”, a partir de suas prescrições biomédicas, representando
uma forma de normatização sobre as condutas sociais frente a este fenômeno?
Na medida em que o processo de morrer é elaborado como um trabalho sobre si com o
auxílio da ação de profissionais especializados, é possível elaborar metas e etapas para
alcançar este fim ideal. Esta busca pela objetivação de aspectos subjetivos poderia caracterizar
uma normatização do morrer. Assim, é possível aventar a hipótese de um processo de
19O “tipo ideal” é um recurso metodológico com a finalidade de orientar o pesquisador diante da gama de
fenômenos observáveis na vida social. Consiste em enfatizar determinado traço de realidade, não
correspondendo, de fato, às situações observáveis. Desta forma, é “ideal” em sentido puramente lógico, não
correspondendo à ideia de “deve ser”, de “exemplar” (COHN, 2008, p. 8). 20Segundo Rose (2011), “[p]or expertise entende-se a capacidade que a Psicologia tem de gerar um corpo de
pessoas treinadas e credenciadas alegando possuir competências especiais na administração de pessoas e de
relações interpessoais, e um corpo de técnicas e procedimentos pretendendo tornar possível a gerência racional e
humana dos recursos humanos na indústria, na força militar e na vida social de forma geral” (p. 24).
25
domesticação do final da vida, para garantir uma construção de uma morte pacífica e
controlada pelo aparato biomédico.
A “boa morte” não representa, portanto, um trabalho sobre si isento de influências do
aparato médico, mas um “refinamento e capilarização de suas formas de exercício de controle”
(MENEZES, 2004, p. 214). Assim como a sexualidade, conforme análise de Foucault (2006),
o morrer, enquanto processo da vida, é apropriado como objeto dos saberes científicos. O
desenvolvimento de conhecimentos e técnicas sobre a vida produzem procedimentos de poder
e de saber que objetivam controlar e modificar este evento e seus significados. Deste modo, o
processo de morrer se configuraria como fonte de exercício de biopoder, uma vez que o
domínio sobre ele implicaria em um poder-saber, agente de transformação da vida humana. De
acordo com Menezes (2004),
Assim como o sexo se tornou significante único e significado universal,
possibilitando acesso à identidade individual, o mesmo ocorre com a morte
administrada pela assistência paliativa. Um dispositivo da morte é gestado e gerado,
incitando à produção de um desejo de aceder à morte, de descobri-la, liberá-la,
articulá-la em discurso, formulando-a como a verdade última da vida do doente. (p.
214).
Os dispositivos do biopoder podem ocorrer tanto por intermédio do que é público,
visível e anunciado como pelo que é privado, oculto e silenciado. É neste sentido que a gestão
do processo do morrer, no modelo de “morte contemporânea”, por meio das prescrições de
uma expressão de emoções e de comportamentos considerados adequados, transforma o social,
criando (in)sensibilidades.
De acordo com ideólogos da ‘boa morte’, o processo de morrer deve ser vivido na
intimidade. Cabe indagar a que intimidade está se referindo, pois, certamente, não é
a do paciente, já que este personagem é exposto a uma rede de profissionais. Sua biografia passa a ser tema de investigação e de discussão entre a equipe. A
privatização do morrer é instrumentalizada pela conversão da morte em um
problema psicológico. (MENEZES, 2004, p. 216).
Segundo Sennett (2014), na sociedade ocidental contemporânea os sentimentos são
compreendidos como da ordem do natural, do biológico, enquanto a expressão dos sentimentos
estaria sujeita às regras sociais. Deste modo, os indivíduos seriam dotados de um domínio
interno, entendido como um “sentimento verdadeiro”, e um domínio público, que poderia ser
falso, na medida em que os sentimentos devem ser modulados, para que sua expressão seja
adequada.
26
Esta construção de noção de indivíduo define, nos termos do autor, o declínio do homem
público. Uma vez que a interioridade é valorizada, a expressão das emoções de forma
ritualizada pode ser interpretada como falsa. Por outro lado, é quando a expressão foge do
controle do indivíduo que ela é considerada autêntica, permitindo acesso ao seu domínio
privado. Em uma sociedade intimista (SENNETT, 2014), as motivações e intenções, por serem
reveladoras dos verdadeiros sentimentos, contam mais do que as ações.
É neste sentido que as propostas da construção de uma “boa morte” caminham. O
estímulo ao compartilhamento de emoções no período final da vida objetiva produzir uma
“morte íntima”, conforme denominação criada por Hennezel (2004). Para esta psicóloga, trata-
se de uma última oportunidade de um trabalho sobre si, quando o doente deve compartilhar
suas emoções com os paliativistas, de modo a reescrever a própria biografia, produzindo
sentido para sua vida. Contudo, cabe questionar qual intimidade é possível, no modelo de
“morte contemporânea”. A partir da construção prescritiva sobre a totalidade do doente,
expressões de sentimentos que fogem de um roteiro pré-determinado pelo ideário paliativista,
seja por intensidade ou duração, estariam passíveis de intervenções profissionais, para adequá-
las ao ambiente pacífico e controlado dos Cuidados Paliativos. Tornar público o que era
privado permitiria o governo, nos termos de Rose (1988), sobre a experiência do morrer e do
luto.
2.2 O LUTO NA CONTEMPORANEIDADE
O modo como a morte emerge socialmente – como evento que deve ser evitado ou
regulado, e afastado a qualquer custo, ou que deve ser aceito e vivenciado socialmente –
implica consequências na forma como o luto poderá ocorrer. Em um contexto em que a morte
é entendida como etapa natural da vida, seu entorno ideal, de acordo com os paliativistas, é
caracterizado como um momento calmo e tranquilo.
A partir do momento em que o paciente é diagnosticado como “fora de possibilidades
terapêuticas de cura”, as intervenções paliativistas direcionadas a todos os atores sociais
propõem uma aceitação deste evento. A preparação para a morte ainda em vida possibilita um
processo de luto denominado pelos profissionais de saúde como “luto antecipatório”,
entendido como o conjunto de sentimentos associados à notícia do diagnóstico de uma doença
potencialmente mortal, indicando uma iminente perda concreta ou simbólica para o doente e
27
seus familiares (GENEZINI, 2012, p. 571). Diante desta categoria, é formulada uma
modalidade de assistência específica, dirigida a todos os envolvidos no acompanhamento do
processo do morrer. Desde o final do século XX são criados e proliferam cursos de
especialização para profissionais de saúde – sobretudo psicólogos – em terapia do luto, com
uma produção bibliográfica prescritiva, voltada à prevenção de um “luto patológico”.
A busca de produção de uma morte controlada, em uma cena ordenada, harmoniosa e
pacífica, denota um processo de normatização do luto. O sofrimento acarretado pela situação
de perda, quando não evitado, deve ser vivido de forma calma, tranquila e comedida, a fim de
não interferir na configuração do ambiente construído pelos paliativistas. Especialistas em luto
formulam o que seria uma experiência normal após uma perda.
De acordo com Rose (2011, p. 118), na sociedade ocidental moderna, os saberes ‘psi’
configuram disciplinas científicas de conhecimento positivo dos indivíduos, afirmando uma
verdade sobre os humanos e uma forma de agir sobre eles. De modo geral, a construção desse
conhecimento não emerge da reflexão do indivíduo normal, da personalidade normal ou, ainda,
da emoção normal, mas, pelo contrário, a própria noção de normalidade emerge da
preocupação com o que é considerado problemático, perigoso ou patológico.
Assim como na designação dos modelos de “morte moderna” e “morte contemporânea”,
a ideia de um modelo de conduta normal, em contraste a um patológico, não pretende sugerir a
evidência de um único modelo de pessoa numa determinada cultura. Conforme o conceito de
tipo ideal weberiano,
Em nosso próprio tempo, [...] a Psicologia, na forma de um modelo de indivíduo
psicológico, têm sido a base de tentativas similares de unificação da conduta de vida
em torno de um único modelo do que seja subjetividade apropriada. Mas a
unificação da subjetivação deve ser vista como um objetivo de programas
específicos, ou como um pressuposto de certos estilos de pensamento, não como
uma característica das culturas humanas. (ROSE, 2011, p. 48).
A elaboração de conhecimento acerca da subjetividade gera uma expectativa sobre as
condutas humanas. É neste recorte que busco analisar a experiência do luto. A expertise ‘psi’
fornece conhecimento, a partir da observação da vivência social do luto em um contexto
histórico-cultural, que instaura uma norma, uma forma como o luto deve ser vivido. A partir da
construção deste conceito são elaboradas as categorias referentes à experiência normal e
patológica deste fenômeno, como formulado no DSM-V.
A construção de saberes sobre o luto, pela delimitação de uma vivência esperada e de
outra, passível de intervenção por ser considerada uma ameaça à vida, gera regras que seriam
28
interiorizadas pelos indivíduos inseridos naquele contexto. A construção destes saberes produz
uma nova categoria de sintomatologia e, portanto, novas necessidades cultivadas. É neste
sentido em que propostas são elaboradas para cuidar do luto preventivamente, de maneira que
ele não evolua para uma experiência patológica. Na medida em que saberes, práticas
institucionais e profissionais são reconfigurados, com oferta de modelos para elaboração de
perdas, com a possibilidade de intervenção de “experts da conduta humana”, novas
subjetividades e sensibilidades – e insensibilidades – são produzidas socialmente.
As técnicas da conduta humana pretendem agir sobre os indivíduos sem violar sua
autonomia. Os saberes ‘psi’ não configurariam uma dominação sobre os indivíduos, mas uma
“condução da conduta”, uma orientação ao governo de si (ROSE, 2011, p. 139). Desta forma, a
partir da concepção de uma experiência de luto patológico, delimitada pelos saberes ‘psi’, o
indivíduo busca autorregular suas emoções, para adequá-las a um padrão normal. De acordo
com Elias (1993, p. 193), os indivíduos da sociedade ocidental moderna se configuram como
sujeitos com emoções autocontroladas, uma vez que controles externos são interiorizados.
Deste modo, a partir da formulação de um luto normal e um luto patológico, os indivíduos
controlariam a duração e intensidade de suas emoções e comportamentos, enquadrando suas
experiências em um conceito normatizado do luto.
Neste cenário são criadas técnicas inovadoras e, consequentemente, demandas de
atendimento especializado a partir da interiorização destes valores. A apropriação deste
fenômeno pelos saberes ‘psi’ fornece um modelo de elaboração dos eventos traumáticos ou de
perda ocorridas na vida, e uma possibilidade de ação pelos “experts da conduta humana”, tanto
com propostas curativas de uma vivência patológica, como intervenções preventivas.
Na sociedade ocidental contemporânea, caracterizada pela busca contínua do prazer,
configura-se um campo científico, com especializações para profissionais ‘psi’, direcionado ao
controle do sofrimento pela perda. A estruturação de um saber, uma teoria e uma prática
específicos para esta etapa da vida possibilita a oferta e, consequentemente, a construção de
demanda por serviços específicos para acompanhamento do luto. Observa-se recentemente
uma oferta crescente de clínicas e cursos de especialização direcionados para este fim. O tema
começa a ser amplamente divulgado nos meios profissionais e em meios de comunicação
destinados à população geral. De acordo com Menezes e Gomes (2011, p. 121), a crescente
visibilidade de temas acerca da morte e morrer pode ser interpretado como um meio de
elaboração coletiva em consequência de uma secularização da sociedade, reverenciando o
29
indivíduo até o último momento de sua vida. Grupos terapêuticos, encontros, conversas e
relatos de experiências vividas por enlutados são divulgados na internet. O luto se configura,
portanto, como um período da vida que merece acompanhamento profissional, seja como
tratamento do luto patológico ou como acompanhamento na elaboração do luto normal, a fim
de garantir que aquele status de sofrimento tenha a menor duração possível, prevenindo-se de
um luto patológico. O achatamento do processo de luto, com controle da duração e intensidade
de sua expressão configura uma situação aparentemente paradoxal, em relação à visceralização
do processo do morrer. A morte é reinserida socialmente como um processo “normal”, na
medida em que é posta em discurso com o objetivo de atender aos desejos do morredor. O luto,
por sua vez, apesar de considerado como fenômeno “natural”, tem suas expressões
controladas, pelas construções dos saberes ‘psi’. É neste sentido que esta dissertação tem a
proposta de analisar o luto, a partir de seus discursos e prescrições de influência paliativista,
como ferramenta das tecnologias de si, da gestão da conduta humana.
30
3 OBJETIVOS
3.1 OBJETIVO GERAL
Apreender a constituição do corpus teórico dos saberes ‘psi’ acerca do luto na
contemporaneidade, a partir das prescrições terapêuticas a ele referidas.
3.2 OBJETIVOS SECUNDÁRIOS
Analisar a formulação das prescrições a partir do corpus teórico;
Identificar os saberes que o profissional deve adquirir para sua habilitação no manejo
do cuidado com o luto;
Identificar as modalidades de luto sujeitas à recomendação de acompanhamento
profissional.
31
4 METODOLOGIA
4.1 ESCOLHA DA METODOLOGIA
Esta pesquisa qualitativa, com abordagem socioantropológica, objetivou analisar as
construções e particularidades da forma como o luto é entendido nas sociedades ocidentais
contemporâneas. Para isto optou-se por analisar o discurso produzido acerca deste tema pelos
profissionais de saúde em manuais e livros-texto. Os manuais configuram um campo de
análise privilegiado, uma vez que, de acordo com Schiavinatto e Pataca (2016), este material
apresenta com clareza os conceitos elaborados em determinado período e cultura, além de
indicar forte associação entre teoria e prática. Assim, os manuais representam uma íntima
associação entre a produção e conhecimento, e sua difusão.
O material analisado é, em sua maioria, de função didática, destinado ao público
profissional (médicos, psiquiatras e psicólogos, principalmente) ou, ainda, destinado aos
familiares enlutados, com a função de orientá-los sobre o processo de luto, sugerindo possíveis
intervenções formais ou informais. Na medida em que os manuais apresentam uma síntese
teórica e a prática a ela associada, eles se configuram como referência norteadora da expertise
que, por sua vez, reflete noções do público leigo em geral.
Deste modo, o campo de investigação de especial enfoque foi composto por manuais e
livros-texto destinados aos profissionais da área da saúde sobre o tema da morte e luto, como o
DSM, manuais de Cuidados Paliativos, manuais de Geriatria e Gerontologia, e manuais
específicos sobre luto. A partir do conteúdo extraído desta literatura foi possível identificar
definições, modelos teóricos, prescrições e intervenções que refletem a forma como o luto é
apreendido pela classe profissional e, também, pelo público geral.
4.2 ANÁLISE DOCUMENTAL
Esta pesquisa de metodologia de análise documental objetiva examinar as diversas fontes
selecionadas, a fim de apreender um possível ‘fio condutor’ que explicite características do
luto na contemporaneidade. Para os fins desta pesquisa, esta metodologia foi selecionada como
mais vantajosa devido à possibilidade de levantamento e análise de grande volume de
32
documentos e informações em um breve período de tempo (VÍCTORA; KNAUTH; HASSEN,
2000, p. 72), adequando-se, inclusive, ao tempo restrito de realização do mestrado.
De acordo com Sá-Silva (2009, p. 2), a metodologia empreendida depende de fatores
característicos da pesquisa. No caso da pesquisa documental, esta possibilita a extração e
resgate de grande quantidade de informação. Segundo Kamler e Thomson (2015, p. 46), é
importante o exame de grande quantidade de informação, pois a literatura não é monolítica,
mas plural, o que significa que as literaturas compreendem um ou vários campos de produção
de conhecimento. Portanto, é possível extrair delas diferentes categorias que embasam o
campo de estudo. É diante do exame deste material plural que o pesquisador pode assumir uma
postura avaliativa, frente à construção científica diversa acerca do tema.
O uso metodológico da análise documental é frequentemente justificado nas Ciências
Sociais, por ampliar a análise de objetos cuja compreensão necessita de contextualização
histórica e sociocultural. Permite ainda analisar a dimensão temporal a partir da compreensão
do social ao possibilitar a observação do processo de maturação ou de evolução de indivíduos,
grupos, conceitos, comportamentos, práticas, entre outras categorias. (SÁ-SILVA, 2009, p. 2).
Ainda de acordo com Sá-Silva (2009, p. 5), a pesquisa documental engloba a busca de
informações em fontes primárias, que são os documentos que não receberam nenhum
tratamento científico e, portanto, são analisados primeiramente pelo pesquisador. Esta análise é
relevante, pois, segundo o conceito de documento apresentado pela Escola dos Anais21
(SÁ-
SILVA, 2009, p. 7), documento é qualquer fonte que, por apresentar um vestígio do passado,
tem a função de testemunho de uma história construída social e culturalmente.
Segundo Cellard (2012, p. 299) a interpretação dos documentos deve ser precedida por
uma avaliação crítica sobre o contexto, o autor, a autenticidade e confiabilidade do texto, sua
natureza e seus conceitos-chave. Esta análise do corpus documental é de suma importância,
pois, devido à sua ausência de neutralidade, o pesquisador deve considerar a intencionalidade
expressa no documento. Deste modo, a análise destes documentos possibilita produzir ou
21A école des Annales funda a chamada Nova História, movimento de oposição ao paradigma tradicional. Como
características desse movimento é possível citar seu interesse por quase qualquer atividade humana, uma vez que
a realidade é construída social e culturalmente; formula a história mediante análise das estruturas ao interpretar
as transformações das mentalidades; interesse pela cultura popular descentralizando o discurso dos “grandes
homens” e, para isto, utiliza-se de outras fontes além dos documentos oficiais, englobando fontes visuais, orais e
até estatísticas; associa os fatos tanto aos movimentos coletivos como a ações individuais e, por fim, considera
ser impossível a objetividade na história. Portanto, se faz sempre necessário justificar a perspectiva de inserção
de seu relato uma vez que este, assim como qualquer documento, não será neutro (BURKE, 1996, p. 14).
33
reelaborar conhecimentos e criar novas formas de compreender os fenômenos. Uma vez que os
fatos, por si mesmos, nada explicam, é a interpretação do pesquisador que poderá sintetizar as
informações e, na medida do possível, realizar inferências.
É neste sentido que Kamler e Thomson (2015, p. 45) apontam algumas tarefas
fundamentais na pesquisa baseada em literaturas. As autoras orientam a iniciar a pesquisa
reconhecendo os campos concernentes à investigação, a partir do desenvolvimento histórico
dos campos e do exame de suas bases e tendências empíricas e teóricas. Após esta primeira
imersão é possível estabelecer quais estudos e ideias são mais pertinentes ao embasamento da
pesquisa a ser realizada. O pesquisador pode então criar a justificativa para sua pesquisa,
definindo a contribuição concreta que pretende alcançar ao fim da pesquisa.
4.3 BUSCA E SELEÇÃO DE ARTIGOS
Esta pesquisa iniciou com o reconhecimento do campo. Para esta finalidade foi realizado
levantamento bibliográfico na base de dados da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS). Em
consulta ao DeCS (Descritores em Ciências da Saúde) da BVS, averiguou-se que o descritor
correspondente ao termo ‘luto’ para pesquisa nesta base de dados é ‘pesar’. O DeCS descreve
o pesar (ou grief, como descritor correspondente em inglês) como: “Tristeza normal e
apropriada em resposta a uma causa imediata. É autolimitante e desaparece gradativamente
dentro de um período razoável de tempo” (BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE).
Com o objetivo de construir um panorama das construções científicas sobre o campo nos
diversos aspectos englobados pelo processo do luto, a busca por artigos ocorreu por meio da
combinação do termo “pesar” com outros termos relativos à sua vivência pelos atores sociais
envolvidos. Os demais termos eleitos foram: “adaptação psicológica”, “atitude frente à morte”,
“assistência terminal”, “morte”, “ética”, “cuidados paliativos”, “doente terminal”, “revisão” e
“direito de morte”. A princípio foi priorizado o filtro apenas pelo idioma, realizando a busca
por artigos em português. Os artigos encontrados, em sua maioria, foram produzidos após os
anos 2000, salvo duas exceções, do final da década de 1990, em revistas de enfermagem. Os
demais artigos foram publicados em revistas de Psicologia, Medicina, Saúde Coletiva, Bioética
e, também, Enfermagem. O levantamento foi finalizado, na medida em que os resultados
começaram a se esgotar, apresentando artigos repetidos.
34
O acesso aos manuais e livros-texto ocorreu por meio de pesquisa na bibliografia
recomendada em sites, internacionais e nacionais, de instituições que são referências em
Cuidados Paliativos, além de indicações de profissionais da área e a partir do conteúdo
abordado em cursos de especialização em terapia do luto. Durante o processo de análise deste
material também foram levadas em consideração notícias veiculadas na internet,
principalmente por mídias nacionais, destinadas ao público leigo. Este material foi considerado
de caráter complementar à análise, a fim de analisar as atuais perspectivas culturais sobre o
tema na sociedade brasileira contemporânea.
A escolha de livros-texto, manuais e conteúdo dos cursos de especialização como objeto
de análise permitiu o exame da ideologia que caracteriza as normas de conduta do sofrimento
devido à perda. Por sua vez, o conteúdo observado em mídias destinadas ao público leigo tem
por objetivo analisar a difusão do tema no âmbito social, assim como suas possíveis
consequências. Neste sentido, a ausência de neutralidade destes documentos, por cumprir uma
função social, permite emergir certas características sobre o tema (LUCA, 2006). Uma vez que
estes materiais são produzidos a partir de um contexto social e produzem intervenções sobre a
sociedade, a marca da intencionalidade de seu conteúdo reflete características de determinada
cultura. Segundo Mendoza (2000, p. 98), são considerados, portanto, como fonte legítima de
dados, por “possibilitar a construção racional de um processo de pesquisa e/ou
desenvolvimento científico”.
Dentre as fontes bibliográficas destinadas a profissionais de saúde, foram considerados
os documentos produzidos a partir do final do século XX, momento em que se inicia a
produção de conteúdos prescritivos acerca da morte e luto, sob a perspectiva dos Cuidados
Paliativos. O levantamento bibliográfico foi composto por textos produzidos por profissionais
militantes da proposta dos Cuidados Paliativos, com o intuito de difundir esta expertise e por
textos da área das Ciências Sociais, que possibilitam um diálogo entre o objeto observado e o
tema da pesquisa.
No capítulo seguinte apresento as fontes escolhidas para análise do material. Em seguida,
no mesmo capítulo, aponto as perspectivas teóricas dos manuais, com a finalidade de expor as
principais características do discurso sobre o luto na contemporaneidade ocidental.
35
5 DESCRIÇÃO DO MATERIAL
Inicialmente a busca por material didático sobre o luto orientou-se em torno de manuais
de Cuidados Paliativos. Estes manuais foram considerados fundamentais para começar a
análise das construções científicas sobre o luto, devido à legitimidade da especialização
paliativista na sociedade ocidental contemporânea, enquanto cuidado direcionado aos atores
sociais envolvidos no processo do morrer. A partir do momento em que o paciente é
considerado “fora de possibilidades terapêuticas de cura”, o foco dos cuidados dos
profissionais de saúde sobre o paciente e seus familiares gira em torno da preparação e
elaboração do processo de morrer. Esta ideologia abre espaço para uma estruturação de um
saber específico sobre o luto, que deve ser assistido pelos profissionais de saúde envolvidos
nos cuidados paliativos, a fim de prevenir e/ou oferecer tratamento para uma possível
complicação do processo de luto.
Apesar do foco desta pesquisa incidir sobre as construções científicas brasileiras, foram
também consideradas produções internacionais, em especial as oriundas da Inglaterra e
Estados Unidos. Esta atenção especial deve-se ao pioneirismo destas duas nações na
formulação do ideário paliativista, seja pela filosofia hospice, criada pela inglesa Cicely
Saunders, ou pelo movimento norte-americano que deu origem aos Cuidados Paliativos.
Assim, tradicionalmente, as produções e práticas inglesas e norte-americanas são consideradas
referências pelos pesquisadores e pensadores da área, ora como construção teórica norteadora
para a aplicação prática em instituições das demais nacionalidades, ora sob um olhar crítico
sociológico relativizador dos traços culturais de tais construções.
Foram, portanto, selecionados manuais de Cuidados Paliativos, internacionais e
nacionais, que são considerados referências pelos profissionais da área. Foi também
considerado um manual nacional de Geriatria e Gerontologia por tratar da morte, do morrer e
do luto, sob perspectiva paliativista. Em seguida foram selecionados manuais e livros-texto,
internacionais e nacionais, específicos sobre luto22
. Cabe ressaltar que as publicações das
22Na língua inglesa há três termos distintos relativos à ideia de luto. ‘Bereavement’ é o estado do luto, o fato de
perceber a perda, a descrição do status social de alguém que sofreu uma perda significativa (KNOTT, 2002, p.
51). ‘Grief’ se refere ao emocional do indivíduo que está em estado de luto (KNOTT, 2002, p. 51). ‘Mourning’ é
a resposta psicológica à morte e sua expressão ou comunicação na sociedade (KAUFFMAN, 2002, p.311). Uma
vez que esses três termos são igualmente traduzidos como “luto”, não houve discriminação nem prevalência por
qualquer destes conceitos durante a busca na literatura internacional.
36
primeiras edições destes documentos são mais recentes do que as edições de lançamento dos
manuais de Cuidados Paliativos, o que indica a consequente legitimação de uma nova
expertise e nova categoria profissional sobre o luto.
O tratamento sobre os documentos selecionados iniciou-se pelos títulos internacionais,
com o objetivo de analisar o conteúdo científico basal usado como referência pelos autores
nacionais dedicados a esta temática. Em um segundo momento foram analisadas as referências
nacionais, a fim de apreender uma possível construção científica sobre o luto, que evidencie
marcas culturais da sociedade brasileira.
O Oxford Textbook of Palliative Medicine teve sua primeira edição publicada em 1993,
cinco anos após o reconhecimento da medicina paliativa23
como uma subespecialidade da
medicina, no Reino Unido. Em 2015 foi publicada a quinta edição deste livro-texto, indicando
a expansão da medicina paliativa, sua aceitação e legitimidade na sociedade ocidental
contemporânea. A terceira edição, versão utilizada nesta pesquisa, representa uma ampliação
da abordagem do conteúdo, em relação às edições anteriores. Além de contar com a revisão e
atualização dos capítulos preexistentes, contou com a inclusão de novos capítulos, sobre a
aplicação da medicina paliativa em torno de condições não-malignas e, também, com a
inserção de uma nova seção sobre contribuições de psicoterapias, terapias ocupacionais,
musicoterapia e arteterapia. Deste modo, o Oxford Textbook of Palliative Medicine se
estabeleceu como um manual internacional sobre os Cuidados Paliativos. Assim, apesar de ser
desenvolvido especialmente para médicos, ele é consultado por profissionais e pesquisadores
de outras categorias profissionais e disciplinas da área de saúde.
A terceira edição do manual Oxford, publicada em 2003, conta com mais de 160
colaboradores renomados, de diversos países. Esta edição contém 100 capítulos divididos em
21 seções, o que demonstra o caráter interdisciplinar da especialização. São eles: Introdução; O
desafio da Medicina Paliativa; Questões éticas; Comunicação e Medicina Paliativa; Pesquisa
em Medicina Paliativa; Evolução do paciente e mensuração de resultados; Princípios do uso de
drogas em Medicina Paliativa; Controle de sintomas; Medicina Paliativa pediátrica; Medicina
Paliativa em doenças não-malignas; Aspectos culturais e espirituais da Medicina Paliativa;
Questões emocionais da Medicina Paliativa; Assistência social na Medicina Paliativa;
23O Oxford Textbook of Palliative Medicine se refere à ‘medicina paliativa’ enquanto uma subespecialidade
dentro do campo de conhecimento da Medicina, enquanto os ‘cuidados paliativos’, campo ainda mais recente, se
referem aos cuidados da equipe multidisciplinar (DOYLE, 2010, p. xxi).
37
Reabilitação na Medicina Paliativa; Contribuição à Medicina Paliativa das profissões de saúde
aliadas; Terapias complementares em Medicina Paliativa; Medicina Paliativa domiciliar; A
fase terminal; Luto; Educação e treinamento em Medicina Paliativa; Medicina Paliativa – uma
perspectiva global24
. Conta ainda com uma apresentação de autoria de Cicely Saunders, em
que relembra o leitor da história do movimento hospice e o situa em relação às novas
ferramentas disponíveis, e aos atuais desafios e princípios. Afirma que esta edição do manual
abrange um campo mais amplo, que vai além da abordagem sistemática ao controle de
sintomas, preocupando-se com o impacto total da doença persistente sobre a pessoa e sua
família (SAUNDERS, 2005, p. xvii). De fato, uma das novidades da terceira edição é um novo
capítulo, destinado à medicina alternativa e complementar para pacientes em Cuidados
Paliativos, e uma seção sobre as contribuições das demais profissões de saúde aliadas à
Medicina Paliativa, como a psicologia clínica, arte e musicoterapia e fisioterapia. Os capítulos
preexistentes foram reescritos, após revisão, a fim de introduzir as novas ideias e novas
tecnologias desenvolvidas desde a última edição.
Devido ao interesse desta presente pesquisa, foram levantados para análise dois capítulos
da terceira edição do manual25
: “Bereavement issues and staff support” inserido na seção de
Medicina Paliativa Pediátrica, e “Bereavement”, capítulo único de seção homônima. Segundo
os autores dos capítulos selecionados, o luto é entendido como uma resposta adaptativa
essencial à experiência de perda, de modo que é considerado um fenômeno biológico que,
contudo, sofre influências culturais. Apesar da experiência de perda ser considerada como
vivência universal e, portanto, o luto ser considerado um processo normal, o manual indica
alguns contextos potencialmente desencadeadores de complicações de ordem fisiológica,
psicológica ou social. Para compreensão do que pode ser considerado normal no processo de
luto, o manual situa o leitor em relação às principais teorias formuladas sobre o luto. São elas:
a Teoria do Apego, de Bowlby; o modelo psicodinâmico, de Freud; as teorias interpessoais,
como a de Horowitz; os modelos sociológicos; modelos comportamentais; e o Modelo de
Processo Dual, de Stroebe e Schut26
. O manual apresenta ainda as principais apresentações
clínicas do luto, como o luto antecipatório, e formas de luto complicado e seus possíveis
24 Tradução de minha autoria assim como todas a seguir, exceto menção expressa. 25 Nesta pesquisa foi utilizada a terceira edição do Oxford Textbook of Palliative Medicine devido à inviabilidade
de acesso ao conteúdo na íntegra das edições mais recentes. Contudo, optou-se por apresentar os dados editoriais
da quarta edição, para ilustrar as mudanças do livro-texto, enquanto documento internacional. 26 Estas teorias serão abordadas adiante.
38
fatores desencadeantes. A partir destas referências teóricas, o manual formula possíveis formas
de tratamento e intervenções, assim como as habilidades necessárias ao profissional de saúde
envolvido com o processo de luto de seus pacientes e familiares. A adaptação ao evento da
perda sofrida é entendida como um processo de crescimento pessoal.
Partindo para os documentos americanos, o primeiro analisado foi The IAHPC Manual
of Palliative Care27
. A International Association for Hospice and Palliative Care28
(IAHPC) é
uma associação dedicada à promoção e desenvolvimento dos Cuidados Paliativos. A história
da associação29
tem início no International Hospice Institute30
, fundado em 1980 pela
oncologista filipina Josefina Magno, que, após sua experiência pessoal de tratamento ao câncer
de mama, estabeleceu um dos primeiros programas hospice nos Estados Unidos. Este instituto
promovia conferências anuais para médicos, enfermeiros e membros da equipe
multidisciplinar, que deu origem ao Academy of Hospice Physicians31
(AHP). Posteriormente,
da AHP formaram-se duas organizações independentes: a American Academy for Hospice and
Palliative Medicine32
e a International Hospice Institute and College33
(IHIC) presidida pela
Josefina Magno. Em 1996, o médico Derek Doyle foi eleito presidente da faculdade do IHIC.
Derek Doyle promoveu uma perspectiva internacional ao IHIC, enfatizando que os Cuidados
Paliativos não deveriam ter um modelo único. Pelo contrário, cada país deveria ser encorajado
e capacitado a desenvolver seu próprio modelo de cuidado paliativo, de acordo com seus
recursos e condições. A partir de então, os membros da IHIC desenvolveram a IAHPC, uma
organização com perspectiva internacional guiada pela ideologia multimodal de Derek Doyle.
A IAHPC estabelece então como objetivo a promoção de cuidados paliativos com acesso
universal e de alta qualidade, por meio de sua integração a todos os níveis de cuidados de
saúde, com diagnóstico e tratamentos precoces e assegurando que os pacientes, familiares e
cuidadores tenham ao máximo seu sofrimento aliviado. Para objetivar um caráter universal, a
associação é composta por um grupo de profissionais de diversos países com diferentes
experiências, expertises e habilidades. Além de promover encontros, seminários e workshops,
27 Manual de Cuidados Paliativos da IAHPC, em português. 28 Associação Internacional para Hospice e Cuidados Paliativos, em português. 29 Informação obtida no site da associação, disponível em: http://hospicecare.com/home/. Último acesso em: 10
de janeiro de 2017. 30 Instituto Internacional de Hospice, em português. 31 Academia de Médicos de Hospice, em português. 32 Academia de Hospice e Medicina Paliativa, em português. 33 Instituto e Faculdade Internacional de Hospice, em português.
39
esta associação divulga vasto material sobre a temática dos Cuidados Paliativos, inclusive
conteúdos de diretrizes assistenciais, controle de dor com uso de opióides e discussões éticas
sobre eutanásia e suicídio assistido. Dentre as publicações disponibilizadas no site da
associação, é possível acesso ao IAHPC Manual of Palliative Care, elaborado por Derek
Doyle e Roger Woodruff. Este manual é proposto com fins didáticos aos provedores de
cuidados de saúde sobre os principais aspectos dos cuidados paliativos. Contudo, não objetiva
ser um documento completo ou preciso e, portanto, não deve sugerir um curso de tratamento
em particular.
A terceira edição do manual, publicada em 2013, conta com sete seções: Princípios e
práticas dos Cuidados Paliativos; Questões éticas nos Cuidados Paliativos; Dor; Controle de
sintomas; Psicossocial; Aspectos organizacionais dos Cuidados Paliativos; e Recursos. Embora
o manual não apresente uma seção ou capítulo específico sobre luto, devido à importância da
IAHPC no campo dos Cuidados Paliativos, optei por analisar a seção “Psicossocial”, por tratar
de aspectos relacionados à morte e o morrer. Esta seção aborda o sofrimento psicológico,
espiritual e existencial acarretado pelo processo de morrer de um ente querido, e indica
algumas orientações de manejo profissional sobre este sofrimento, que pode se transformar em
um transtorno depressivo.
Outro manual americano analisado foi a segunda edição do Handbook of Palliative
Care34
, organizado por Cristina Faull, Yvonne Carter e Lilian Daniels, respectivamente duas
médicas e uma enfermeira paliativistas, com a colaboração de autores de diversas
especialidades da área de saúde. Este livro-texto propõe apresentar os recentes
desenvolvimentos na proposta dos Cuidados Paliativos e como coloca-los em prática, além de
abordar as variações inaceitáveis que podem derivar de um cuidado paliativo inadequado
(2005, p. viii). Assim, este manual se estrutura como material didático para estudantes e
profissionais e como resultado do desenvolvimento dos Cuidados Paliativos. Este documento é
composto por 23 capítulos, que abordam os principais princípios e práticas paliativistas, como
questões éticas, habilidades comunicacionais, controle da dor e demais sintomas. Destes
capítulos, dois foram selecionados para análise. O primeiro é intitulado “Adapting to death,
dying and bereavement35
”, de autoria de Brian Nyatanga, professor da University of Central
England, na divisão de Oncologia e Cuidados Paliativos. O outro capítulo, intitulado
34 Manual de Cuidados Paliativos, em português. 35 Adaptando à morte, ao morrer e ao luto, em português.
40
“Terminal Care and dying36
”, de autoria de Brian Nyatanga e da farmacêutica Christine
Hirsch, foi posteriormente descartado, devido a seu conteúdo técnico, não apresentando
diálogo com as prescrições analisadas nesta pesquisa.
O capítulo analisado não oferece uma definição clara do que seria uma vivência de luto
considerada normal. No entanto, aborda o luto enquanto processo passível de intervenção
profissional, seja no luto antecipatório, com indicações de intervenções para a adaptação
necessária à perda, seja nos tipos de luto categorizados como complicados. Nyatanga
reconhece que a maioria das pessoas tem recursos para enfrentar o luto, mas para alguns esta
vivência pode representar um risco à saúde. É sobre este grupo que o capítulo pretende
elucidar, mediante apresentação de modelos teóricos e de fatores de risco, além de discriminar
habilidades consideradas necessárias aos profissionais, e os níveis possíveis de intervenção.
Ainda na categoria de materiais internacionais sobre Cuidados Paliativos, foi analisado o
capítulo sobre luto do Guía de Cuidados Paliativos da Sociedade Espanhola de Cuidados
Paliativos (SECPAL). A SECPAL foi fundada em 1992, reunindo profissionais de saúde
comprometidos com a tarefa diária de atender e cuidar de pacientes “fora de possibilidade
terapêutica de cura”. A sociedade nasce com a finalidade de divulgar os Cuidados Paliativos na
Espanha, organizando congressos e jornadas, além da criação de uma revista e de guias
temáticos. Atualmente a SECPAL é considerada uma sociedade científica de referência na
língua espanhola e, também, no mundo37
.
O Guia de Cuidados Paliativos da SECPAL, disponível para download gratuito no site, é
um material breve, destinado a profissionais de saúde e leigos. Ele apresenta, em dezoito
capítulos, os principais tópicos acerca do tema, como definição de doença terminal, principais
sintomas, tratamento de dor e um capítulo exclusivo sobre luto. Este breve capítulo apresenta
em duas páginas os principais tópicos, como forma de situar o leitor acerca das construções
que orientam o trabalho sobre o luto. O guia define o luto como processo para se retomar o
equilíbrio e se refere ao modelo teórico de William Worden, que destaca as tarefas necessárias
para que o enlutado finalize o processo de luto. Aponta ainda algumas orientações e
intervenções, com o objetivo de facilitar o rompimento de vínculo com quem faleceu.
36 Cuidado terminal e o morrer, em português. 37 Informação obtida no site da sociedade, disponível em: http://www.secpal.com/inicio. Último acesso em: 10
de janeiro de 2017.
41
Após levantamento sobre a morte, o morrer e o luto nos manuais internacionais sobre
Cuidados Paliativos, a análise voltou-se para os manuais internacionais específicos sobre luto.
A Encyclopedia of Death and Dying38
configurou-se como um documento essencial para a
compreensão das diferentes palavras da língua inglesa para se referir aos aspectos do que em
português englobamos no termo ‘luto’. Deste compêndio interdisciplinar sobre o tema da
mortalidade, escrito por mais de 100 colaboradores, foram analisados os verbetes
“bereavement”, “mourning” e “grief”. Cabe observar que este último não apresenta uma
definição do termo isolado – “grief” aparece somente como adjetivo ou sendo adjetivado por
outro termo, como terapia do luto (grief therapy) ou luto antecipatório (anticipatory grief).
Segundo os editores desta enciclopédia (HOWARTH; LEAMAN, 2002, p. xvi), a morte
é um dos poucos aspectos da vida que é verdadeiramente interdisciplinar e de importância para
toda a humanidade. Contudo, o fato de ser interdisciplinar pode dificultar a entrada de um
pesquisador no tema, pois a literatura tende a se organizar por disciplinas e não por temas. Este
documento, portanto, tem o objetivo de apresentar conteúdos sobre a morte e o morrer, das
diversas perspectivas interdisciplinares e culturais, em ordem alfabética. Os verbetes
consultados foram também considerados como objeto de análise, pois evidenciam definições
de luto, os modelos teóricos e os trabalhos empíricos no campo e modelos terapêuticos. Ao
final de cada verbete são ainda sugeridas referências bibliográficas, para o leitor que tenha
interesse em aprofundamento em determinado tema.
Conforme apresentado, outro manual utilizado foi o Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais, o DSM, elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria. Contudo,
para fins específicos de análise, apenas a quinta edição, a mais recente, foi considerada. O
DSM se propõe a ser um guia prático, funcional e flexível de informações, para auxiliar no
diagnóstico preciso e no tratamento adequado de transtornos mentais. Trata-se, portanto, de um
recurso essencial para clínicos, estudantes, profissionais e pesquisadores da área, uma vez que
viabiliza uma linguagem comum entre os profissionais de diferentes orientações (AMERICAN
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. xli).
Nesta edição do manual constam três seções e um apêndice: a primeira seção comunica as
informações básicas sobre o DSM; a segunda aborda os critérios diagnósticos e os códigos; e a
terceira seção trata dos instrumentos de avaliação e modelos emergentes. Esta última seção
38 Enciclopédia da morte e do morrer, em português.
42
destaca transtornos que, por não estarem suficientemente bem estabelecidos, carecem de mais
estudos para integrar a classificação oficial de transtornos mentais, como é o caso do
Transtorno do Luto Complexo Persistente. No Apêndice constam ainda algumas informações,
como as principais mudanças que a edição atual apresenta em relação com a edição anterior, a
correlação dos códigos do DSM com os códigos da Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), manual também usado
internacionalmente, e um índice. Por meio deste, foi possível localizar e analisar todas as
páginas do manual que continham a palavra ‘luto’, seja como diagnóstico diferencial ou como
transtorno.
Ao situar o luto como diagnóstico diferencial do Transtorno Depressivo Maior e do
Transtorno de Ansiedade de Separação, o DSM aponta sintomas referentes ao que considera
normal em um processo de luto e que, portanto, não deve ser confundido com tais transtornos.
Na formulação do que poderá vir a ser classificado como Transtorno do Luto Complexo
Persistente, o manual destaca certos sintomas, que devem ser percebidos como disfuncionais,
para um diagnóstico de um luto complicado, e discrimina fatores de risco.
O Handbook of Bereavement Research and Practice: Advances in theory and
intervention39
também foi utilizado. A atual terceira edição deste livro-texto, organizado por
Margaret Stroebe e colaboradores apresenta aos leitores o vasto campo científico sobre o luto,
com a colaboração dos principais pensadores e pesquisadores sobre o tema. Este manual busca
abranger a gama de conhecimento sobre o luto, abordando desde análises evolutivas e
biológicas até perspectivas construtivistas e sociológicas. Além disso, apresenta diversos
tópicos acerca desta temática, como o luto após um desastre e o luto não-autorizado. Deste
modo, este livro-texto abrange o luto sobre diferentes contextos familiares, sociais, religiosos e
culturais, além de abordar as principais teorias, como também suas implicações e aplicações
(OYEBODE, 2009).
Este conteúdo está dividido em 27 capítulos, organizados em seis seções. São elas:
Introdução; Abordagens e questões científicas contemporâneas; Preocupações sociais
contemporâneas40
; Padrões e consequências do luto: fenômenos e manifestações; Padrões e
consequências do luto: perspectivas relacionais; Conclusão. Devido à sua visão geral do
estado-da-arte do tema, foram selecionados capítulos de caráter teórico para a análise.
39 Manual de pesquisa e práticas em luto: avanços na teoria e na intervenção, em português. 40 “Contemporary societal and practice concerns” no original em inglês.
43
Contudo, apesar destes capítulos apresentarem modelos teóricos sobre luto, definições de luto
complicado e fatores de risco, o material analisado, em conjunto com outros capítulos de
perspectiva sociológica, acabaram por contribuir de maneira mais relevante na discussão
apresentada nesta pesquisa.
Ainda sobre os materiais internacionais específicos sobre luto, foi também analisado o
Guía para familiares en duelo, da SECPAL. Este guia, elaborado a partir da experiência
profissional dos autores, é destinado aos familiares de pacientes em cuidados paliativos e tem
por objetivo proporcionar os elementos necessários para enfrentar os momentos da perda de
um ente querido. Assim, o guia busca transmitir informações teóricas e práticas sobre o luto, a
partir de um texto breve, com linguagem coloquial. As orientações contidas neste guia
objetivam auxiliar o familiar enlutado a enfrentar os momentos difíceis do luto, para alcançar
um reequilíbrio de sua vida, prévia à perda. Segundo o guia, o enfrentamento pode acontecer
com ou sem acompanhamento profissional.
A análise das construções científicas nacionais também foi baseada em manuais de
Cuidados Paliativos e em um manual específico sobre o luto. O primeiro material analisado foi
o Manual de Cuidados Paliativos, organizado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos
(ANCP). A ANCP foi idealizada durante o Congresso Internacional de Cuidados Paliativos &
Dor, em 2004, realizado no Instituto Nacional do Câncer (INCA), no Rio de Janeiro. Até
então, os profissionais interessados no ideário paliativista pertenciam a grupos estaduais de
assistência e/ou ensino dos Cuidados Paliativos. Constatou-se neste evento a necessidade de
organizar uma entidade que representasse e lutasse pelo reconhecimento dos Cuidados
Paliativos, enquanto especialidade médica e por sua viabilidade junto ao Sistema Único de
Saúde, a fim de garantir o conhecimento e acessibilidade a esta alternativa de tratamento em
todo o território brasileiro. Em 2005 a ANCP foi fundada, e conta com 35 médicos signatários
da ata de fundação, momento em que também se elegeu a primeira diretoria e um estatuto que
delineia os objetivos da academia. A fundação da ANCP é um marco na medicina ensinada e
praticada no Brasil, uma vez que almeja o reconhecimento e divulgação dos Cuidados
Paliativos, frente às instâncias políticas e à população brasileira41
.
A segunda edição do Manual de Cuidados Paliativos ANCP, lançada em 2012, foi
elaborada por profissionais de saúde comprometidos com o tema e sua divulgação. O manual
41 Informação obtida no site da ANCP, disponível em: http://www.paliativo.org.br/home.php. Último acesso em:
10 de janeiro de 2017.
44
foi produzido com o objetivo de promover a melhora da qualidade de vida dos pacientes e seus
familiares, na medida em que previne e trata do sofrimento físico, psicológico, social e
espiritual. Seus 56 capítulos estão organizados em nove seções: Introdução; Controle de
Sintomas; Síndromes clínicas; Procedimentos em Cuidados Paliativos; A equipe
multiprofissional em Cuidados Paliativos; Cuidando do paciente e de sua família; Tópicos
especiais em Cuidados Paliativos; Assistência ao fim da vida; Anexos.
Foi selecionado para análise o único capítulo do Manual de Cuidados Paliativos ANCP
que trata exclusivamente do luto. Neste capítulo, Débora Genezini efetua uma síntese das
principais construções teóricas, de modo a situar o profissional de saúde que se aproxima do
tema. A autora apresenta uma definição de luto, luto antecipatório e luto complicado, faz
referência ao modelo teórico de Worden e aos demais modelos de fases de luto de forma
crítica e, ainda, indica algumas possíveis intervenções e situações de risco para as quais os
profissionais devem estar atentos.
O Tratado de Geriatria e Gerontologia, outra referência nacional analisada, teve sua
primeira edição lançada em 2002. Em 2011 chegou à sua terceira edição, mantendo sua
responsabilidade com a construção científica que perpassa questões ético-científicas, políticas
e socioeconômicas contemporâneas. Esta obra, editada por Elizabete Viana de Freitas e Ligia
Py, é realizada em parceria com a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG),
organização que desde sua fundação em 1961, mantém o compromisso acadêmico, com o
intuito de divulgar e fortalecer estas especialidades42
. Este tratado reúne estudos sobre as
patologias relacionadas com o envelhecimento, sejam as adquiridas na velhice ou nos anos que
a precedem. A existência de pacientes crônicos, fora de perspectivas terapêuticas e terminais,
destaca a importância de uma geriatria paliativa que enfoque temas de ordem biopsicossocial.
Os 157 capítulos do livro estão divididos em oito partes, sendo as três primeiras
compostas por 82 capítulos destinados a temas especiais em geriatria, enquanto as demais
seções abordam temas ligados à gerontologia. Destes, foram selecionados para análise três
capítulos, das seções destinadas à Gerontologia, que abordam especificamente a presença da
morte (própria ou dos outros) na velhice e o luto nesta etapa da vida. Entre as principais
questões apresentadas nos capítulos, destacam-se: as definições de qualidade de vida e
“qualidade de morte” como prevenção de um processo de luto complicado; a viuvez como
42 Informação obtida no site da associação, disponível em: http://sbgg.org.br/. Último acesso em: 10 de janeiro
de 2017.
45
fator de risco agravada pela questão de gênero, e críticas a alguns modelos e construções
teóricas.
Por fim, mas não menos importante, adicionou-se o Tratado Brasileiro de Perdas e Luto
aos demais objetos de análise. Este tratado, lançado em 2014, é um material ainda único na
literatura brasileira, por reunir mais de 60 autores nacionais e estrangeiros, no intuito de
abranger a pluralidade e interdisciplinaridade da temática do luto. Para além da abordagem
psiquiátrica e psicológica, o tratado atende à tendência contemporânea de dar voz às
contribuições provenientes de outros campos de conhecimento, como a religiosa, a filosófica, a
pedagógica, a estética e assistencial. Deste modo, os 54 capítulos do livro encontram-se
divididos em quatro grandes módulos: Luto – visões plurais e interdisciplinares; Fundamentos,
conceitos, pesquisas e contextos; Luto e a educação; Assistência aos enlutados.
Uma vez que o objetivo desta pesquisa é analisar a construção científica e de um corpus
teórico acerca do luto na contemporaneidade que ditam as prescrições terapêuticas a ele
referidas, foram selecionados sete capítulos, cujos títulos demostram abordar diretamente esta
temática. O capítulo de conceituação do luto situa o leitor acerca das produções teóricas nas
quais os principais manuais sobre luto se baseiam. Apresenta a teorias de certos autores, como
Colin Parkes, Erich Lindemann, John Bowlby, Elisabeth Kübler-Ross e William Worden, além
de localizar o luto no DSM e no CID. No segundo capítulo selecionado, “Modelos de luto
‘normal’”, o autor, João Paulo Solano, aprofunda alguns dos modelos teóricos já apresentados
no capítulo anterior e pontua algumas críticas a eles. Em outro capítulo, ao abordar o luto
complicado, Solano expõe certos fatores de risco, previstos por pesquisas prévias, e algumas
críticas presentes na literatura, quanto ao diagnóstico e inclusão do luto complicado no DSM.
Outras questões apresentadas no tratado que merecem destaque referem-se à resiliência e à
importância da construção de narrativas no processo de elaboração do luto.
5.1 LUTO: DEFINIÇÃO E REFERENCIAIS TEÓRICOS
Para fins didáticos, optou-se por dividir de forma temática o conteúdo analisado dos
documentos selecionados. Primeiramente, foram examinados os conceitos dos tipos de luto
abordados e os modelos teóricos citados. Estas categorias são essenciais para adentrar o campo
uma vez que são estas construções teóricas que embasam as práticas profissionais – categoria
que será analisada adiante.
46
Em um plano geral, os manuais não diferem significativamente em relação aos conceitos
e modelos teóricos. Alguns capítulos apresentam um panorama mais amplo da construção
teórica, abordando de forma crítica as definições de luto e os modelos teóricos. Outros
capítulos, mais breves, oferecem uma definição de luto e se restringem a algumas teorias. Uma
vez que essa diferença de abordagem não corresponde à origem disciplinar do capítulo –
oriundo de manual de luto ou de Cuidados Paliativos – esta diferença parece refletir a
finalidade do manual. Algumas obras parecem apresentar o tema de forma a orientar leigos ou
profissionais que possam vir a se deparar com uma situação de luto, enquanto outros
aprofundam as questões teóricas, instigando reflexões dos profissionais de saúde e
pesquisadores sobre suas condutas. Não se trata, portanto, de divergências teóricas, mas de
exames mais ou menos profundos acerca do tema.
É consenso entre os manuais que o luto é um fenômeno natural, vivenciado em
decorrência da morte de uma pessoa querida, que sofre influências culturais. Contudo, esse
aspecto de sua natureza não é explorado pela maioria dos manuais, que tendem a naturalizar
este conceito. As únicas exceções que fundamentam a questão biológica do luto são o capítulo
escrito por John Archer, “Theories of grief: past, present, and future perspectives43
”, no
Handbook of bereavement research and practice44
, e o capítulo de Adriana de Oliveira e Silva,
“Conceituando o luto”, para o Tratado brasileiro de perdas e luto. Estes autores fazem
referência às pesquisas de Charles Darwin que, apesar de não desenvolver uma teoria
específica sobre o luto, observou expressões faciais comuns ao processo de enlutamento em
adultos, crianças e animais. Conforme explicitado por Silva (2014, p. 72) a obra de Darwin
intitulada “The expression. of the emotions in men and animals45
”, publicado em 1972, embasa
o desenvolvimento posterior do tema, que entende o luto em termos de seleção natural, uma
vez que é encontrado em aves e mamíferos.
Em geral, os demais capítulos iniciam sua fundamentação teórica a partir dos estudos
psicanalíticos de Freud ou Bowlby, que focam na questão da vinculação afetiva, que é abalada
no evento da morte. Frente a essa desestabilização do vínculo ocasionada pela morte, parece
ser um consenso entre os teóricos da área a ideia de que o processo de luto é um trabalho de
adaptação a uma nova realidade, sem a existência da pessoa amada. Segundo William Worden,
43 Teorias do luto: perspectivas do passado, do presente e do futuro, em português. 44 Manual de pesquisa e prática em luto, em português. 45 A expressão das emoções nos homens e nos animais, em português.
47
psiquiatra americano, a perda definitiva de uma pessoa amada ou a iminência desta perda
provoca um desequilíbrio no estado de bem-estar do indivíduo, configurando uma situação
psicologicamente traumática (GENEZINI, 2009, p. 323). O Guía para familiares en duelo, da
SECPAL, com material elaborado especificamente para auxiliar os familiares enlutados com
elementos necessários para o enfrentamento, explicita este caráter adaptativo em sua primeira
página de conteúdo. Segundo o guia: “O luto é o processo de adaptação que permite
reestabelecer o equilíbrio pessoal e familiar rompido com a morte de um ser querido” (2007, p.
7). Portanto, retornar a um estado similar de equilíbrio é um processo que demanda tempo.
Apesar de alguns manuais, como o DSM-V e o Guía para familiares en duelo, estipularem
uma média normal de tempo para elaboração desta nova realidade, entende-se que o período de
tempo necessário sofre influência de algumas variáveis individuais, relacionais (entre o
enlutado e o falecido) e circunstanciais (relativos ao evento da morte).
O primeiro relato teórico sobre luto do qual se tem ciência é a teoria desenvolvida por
Sigmund Freud em “Luto e Melancolia” (2006), publicado em 1917. Neste artigo, Freud
afirma que, embora o luto envolva grave afastamento daquilo que se constitui a atitude normal
da pessoa perante a vida, este fenômeno não deve ser considerado uma condição patológica e
ser submetido a tratamento médico – os episódios agudos de dor e a busca pelo objeto perdido
são considerados como reações instintivas, a serviço da sobrevivência (ALVES, 2014, p. 349).
Segundo Freud, o luto tem a função específica de romper os vínculos afetivos com o falecido,
por meio de um trabalho ativo realizado pelo enlutado (ARCHER, 2011, p. 45). O luto é
descrito como um período em que a realidade da perda é repetidamente testada por meio de
confrontações com memórias e pensamentos relativos à perda (NYATANGA, 2005, p. 105). O
período de luto é entendido como um mecanismo de adaptação em que o enlutado ativamente
promove o esvaziamento de energia investida no falecido, para que possa ser redirecionada a
outros objetos (KNOTT, 2002, p. 51). Nesta concepção, a completa retirada do vínculo é
fundamental para que o processo de luto se complete e o enlutado continue seguindo com sua
vida.
Apesar das críticas de pesquisadores, a concepção freudiana ainda influencia teorias e
práticas. Ao relativizar a concepção do ‘trabalho de luto’ proposto por Freud, advoga-se que o
processo de adaptação não depende do rompimento de vínculos estabelecidos com o falecido.
Ao contrário, os enlutados devem enfrentar sua perda e ressignificar este vínculo.
48
Após Freud, Erich Lindemann, psiquiatra alemão-americano, desenvolveu o primeiro
estudo científico sobre as reações de luto, inaugurando um campo de descrições empíricas
nesta área, com o intuito de compreender as reações de luto e como manejá-las (KAUFFMAN,
2002, p. 313). Lindemann acompanhou e estudou familiares das quase 500 pessoas que
morreram em um incêndio ocorrido na discoteca Coconut Grove Night Club, em Boston, em
1942. A partir deste estudo, Lindemann publicou, em 1944, “Symptomatology and
manegement of acute grief46
”, obra clássica na área. Seguindo os passos do seminário de
Freud, este estudo aborda as reações de luto, em sua complexidade emocional e somática. A
partir das entrevistas realizadas com os familiares após o desastre, Lindemann definiu seis
características comuns à experiência de uma morte repentina, que nomeou de “luto agudo”.
Elas seriam: estresse físico, ruminações sobre a perda, culpa, raiva, redução da funcionalidade
e tendência a internalização do ser perdido (SILVA, 2014, p. 73).
Lindemann considera o luto uma síndrome emocional cujas consequências podem ser
normais ou patológicas – em outros termos, um luto normal ou disfuncional. Conforme
enumerado por Silva (2014, p. 73) e por Kauffman (2002, p. 313), Lindemann distingue nove
reações disfuncionais do luto:
Hiperatividade, sem um sentimento de perda;
Sensação de sintomas em semelhança aos sofridos pelo falecido;
Reações psicossomáticas;
Alterações nos relacionamentos sociais;
Raiva e hostilidade contra pessoas específicas;
Repressão da hostilidade, acarretando um comportamento rígido;
Perda duradoura dos padrões de interação social;
Ações prejudiciais ao próprio bem-estar social;
Depressão agitada.
John Bowlby, médico psiquiatra e psicoterapeuta inglês, na década de 1960, desenvolveu
a teoria psicanalítica conhecida como Teoria do Apego, baseando-se nas reações emocionais,
cognitivas e biológicas da criança, diante da separação temporária com a mãe. Posteriormente
o autor expandiu o contexto de seus estudos, englobando as demais relações biológicas
importantes, como as sociais. Segundo a Teoria do Apego, o desenvolvimento de vínculos
46 Sintomatologia e manejo do luto agudo, em português.
49
afetivos com outras pessoas é fundamental no desenvolvimento da pessoa, uma vez que gera
segurança e potencial de sobrevivência (KISSANE, 2005, p. 1138). Os primeiros laços
afetivos estabelecidos, em geral na relação do bebê com a mãe e os demais laços familiares,
dependendo do contexto, podem transmitir padrões de segurança ou insegurança. Estes
padrões emocionais, cognitivos e comportamentais se repetem, frente a situações de perda de
alguém com que se tinha um vínculo considerado importante (SILVA, 2014, p. 74).
O processo de vinculação envolve um sistema motivacional que tem como objetivo
orientar comportamentos para que esta ligação seja mantida (ARCHER, 2011, p. 48). Assim,
separações temporárias induzem a reações emocionais e a motivações comportamentais para
retomar contato com a pessoa com quem se está vinculado. Segundo Bowlby, essas reações
frente a uma situação de separação temporária são consideradas uma resposta adaptativa, uma
vez que os vínculos são importantes para a sobrevivência. Contudo, no caso do luto, essas
reações ocorrem em uma situação em que a reunião não é possível. Já que separações
temporárias acontecem com frequência geralmente maior do que perdas permanentes devido à
morte, o luto é então considerado como um preço a se pagar, frente às reações de separação
adaptativas (ARCHER, 2011, p. 48).
Assim, Bowlby estudou as reações das pessoas frente às perdas e elaborou um modelo de
cinco fases sobre a tentativa de adaptação característica do luto. A primeira seria definida por
um estado de torpor e protesto. A duração desta fase pode variar entre poucos instantes a
vários dias, e é marcada por emoções extremas, que podem envolver a negação e a raiva. A
segunda fase, que pode durar semanas ou anos, tem como principal característica a busca
motivada pelo desejo intenso pela presença da pessoa perdida, acarretando sentimentos de
preocupação pela pessoa falecida e inquietação física. Quando o enlutado começa a perceber
que suas “tentativas de busca” não surtem efeito, ocorre o início de um momento caracterizado
pela desorganização e desespero. Neste estágio, a realidade da perda começa a ser assimilada e
as memórias são revividas, de modo que pode haver sensação de sobrecarga e pouca energia.
A quarta fase é marcada pela reorganização, em que o enlutado redefine novos objetivos para
sua vida, desencadeando uma readaptação ao cotidiano (SILVA, 2014, p. 313-314).
Colin Murray Parkes, psiquiatra inglês, iniciou seus estudos sobre luto no final da década
de 1950 e, poucos anos depois, ingressou na equipe de John Bowlby, parceria que se manteve
até 1992, com a morte de Bowlby. Na década de 1970, Parkes expande os estudos sobre luto
de Bowlby, ao abarcar estudos empíricos pioneiros (ARCHER, 2011, p. 46). Segundo a teoria
50
do colapso da visão de mundo desenvolvida por Parkes, a morte de alguém é entendida como
uma catástrofe, o que exige do enlutado uma transição psicossocial vivida em duas fases de
reação. A primeira se refere a uma reação aguda, caracterizada por um tumulto de emoções
intensas, enquanto a segunda fase, a crônica, é caracterizada por vivências de vazio, de perda
do sentido da vida e de isolamento social (SOLANO, 2014, p. 110).
Outra proposta apresentada por Parkes é a “teoria biológica do luto”, que aborda as
seguintes reações de luto: alarme, procura, alívio, raiva e culpa, e obtenção de nova realidade.
No ‘alarme’ observam-se reações fisiológicas relacionadas ao estresse, como aumento da
pressão arterial e frequência cardíaca, perda de apetite, insônia, problemas digestivos, além de
sentimentos de raiva e irritação, e lembranças intrusivas. A ‘procura’ envolve uma dor
emocional aguda, inquietação, preocupações e pensamentos relacionados com o falecido, com
uma diminuição de interesse pela própria aparência e cotidiano. O ‘alívio’ ocorre devido às
percepções, sensações ou crenças na presença do falecido ou de contato com ele por meio do
sonho. A negação ou descrença na realidade também podem acontecer, com a finalidade de
produzir alívio. Raiva e culpa também são sentimentos frequentes no processo de luto,
podendo ser autodirigidos, direcionados ao falecido ou a outras pessoas. Com a sensação de
obtenção de uma nova identidade o processo de luto chegaria ao fim, segundo Parkes. Esta
sensação é necessária, já que a morte pode provocar alterações no entendimento do mundo,
provocando modificações nos papéis assumidos pelo enlutado, devido à falta do falecido
(SILVA, 2014, p. 73).
No final dos anos 1960, Elisabeth Kübler-Ross foi pioneira nos estudos sobre a morte e o
morrer, em uma época em que a temática da morte era tabu em discussões sociais e, até,
profissionais. A partir de seu trabalho com pacientes terminais, a autora estabelece os cinco
estágios que seriam vividos no processo do morrer e, também, no processo de luto. A proposta
de Kübler-Ross é a mais conhecida entre leigos no Ocidente, mas também por vezes mal
interpretada, inclusive por profissionais, ao considerarem o processo de luto como uma
progressão linear (KNOTT, 2002, p. 51). De fato, a autora esclarece que nomeia de estágios
por falta de um termo mais adequado, mas aponta que não há uma linearidade a ser seguida,
nem a obrigatoriedade de passar por todos os estágios (SILVA, 2014, p. 74). Assim, Genezini
(2009, p. 324) lembra aos leitores que a delimitação em fases tem função norteadora para o
profissional, auxiliando a identificação de alterações não-adaptativas ao luto, mas não como
um protocolo, já que o luto é um processo individual e subjetivo.
51
As cinco fases descritas por Kübler-Ross são: negação, raiva, negociação, depressão e
aceitação. A primeira é caracterizada pela negação cognitiva da realidade e manutenção da
realidade pelo enlutado – é uma negação simbólica. A raiva surge conforme a evitação
cognitiva falha, e pode ser expressa com intensidade ou abafada devido a sentimentos de culpa
ou inadequação. Quando expressa, a raiva pode ser dirigida às pessoas e aos profissionais
envolvidos, ou para si mesmo, produzindo sentimentos de culpa. Na etapa da negociação,
dependendo do sistema de crenças do enlutado, pode haver uma tentativa de contato ou elo que
facilite a aceitação da perda. Conforme a morte é entendida como real e que a raiva ou a
negociação não irão reverter a situação, aproxima-se a fase da depressão. O enlutado passa a se
centrar no tempo presente e, com tal reação, pode experimentar determinadas emoções, como
tristeza, pesar e percepção de “vazio”, assim como isolamento social, que pode dificultar a
readaptação à vida. Por fim, na fase de aceitação, a morte é entendida como inevitável e o
enlutado começa a se reorganizar, interiorizando as características positivas do falecido e
readaptando-se de forma construtiva à vida (SILVA, 2014, p. 74).
Apesar de pouco citada (KAUFFMAN, 2002; SILVA, 2014), Therese Rando,
tanatologista e psicóloga clínica norte-americana, especialista em ciências comportamentais,
oferece importante colaboração, especialmente sobre o tema do luto antecipatório. Seu
trabalho, desenvolvido a partir do final da década de 1980, integra aspectos provenientes de
distintas observações e teorias. Rando propõe três fases de luto, que devem ser cumpridas para
que se alcance uma resolução saudável. Contudo, apesar de serem apresentadas em distintos
períodos de tempo, Silva afirma que fica claro na obra de Rando que as fases não têm uma
ordem fixa, podendo se sobrepor ou serem revividas, do mesmo modo em que não há a
obrigatoriedade de vivenciar todas as fases. A primeira fase seria a evitação, típica do
momento após o recebimento da notícia. As reações assemelham-se às observadas em
situações traumáticas e há uma necessidade de reconhecimento de que a perda é real. Em
seguida, a fase da confrontação é considerada como a mais intensa emocionalmente, uma vez
que há uma vivência da dor da separação, e a percepção de perdas secundárias, em decorrência
da morte. Nesta fase é possível experienciar certas emoções, como tristeza, raiva, protesto,
busca pelo ser perdido e o relativo enfrentamento desses sentimentos. Na terceira fase de
acomodação, conforme os sintomas de luto agudo são suavizados, o enlutado passa a se
readaptar social e emocionalmente à nova realidade sem a pessoa perdida, investindo em
novos projetos e novas relações (SILVA, 2014, p. 75). No enfrentamento, Rando distingue
52
ainda seis processos que ocorrem sequencialmente: reconhecimento da perda, reação à
separação, recordar o morto e o relacionamento, abandonar vínculos antigos com o morto e
com o mundo pressuposto, reajustamento de forma adaptativa frente ao novo mundo (sem
esquecer-se do antigo) e reinvestimento (KAUFFMAN, 2002, p. 312).
Talvez o trabalho mais citado nos manuais analisados seja a concepção de J. Willian
Worden, sobre suas construções teóricas ou em torno de suas indicações de intervenção
profissional (WORDEN, 2002; KISSANE, 2005; NYATANGA, 2005; REVERTE e
CÀRCER, 2007; GENEZINI, 2009; DOLL, 2013; SANTOS, 2014; SILVA, 2014; SOLANO,
2014). Há, inclusive, um verbete na Encyclopedia of death and dying, escrita pelo próprio
autor, sobre sua teoria, que explica o processo de luto como tarefas. Seu trabalho,
desenvolvido a partir da década de 1980, tem como referência inicial a Teoria do Apego de
Bowlby, e entende o luto como um processo contínuo, que parte da intensa dor aguda devido à
perda, até o momento de ajustamento às novas relações. Este processo pode ser facilitado por
determinadas intervenções profissionais, como aconselhamento ou terapia.
Segundo Worden (2002, p. 217), o processo de luto envolve quatro tarefas, que não
precisam ser concluídas em uma ordem específica e podem ser revisitadas. Contudo, faz a
ressalva de que o processo de luto pode sofrer complicações, quando essas tarefas não são
efetivamente completadas. A primeira tarefa diz respeito à aceitação da perda, não sendo
apenas uma aceitação racional, mas também emocional. É frequente o sentimento de
irrealidade imediatamente após a perda, o que pode provocar atitudes de busca. Por esta razão,
esta aceitação pode ser facilitada, com a visão do corpo do falecido, com conversas sobre a
morte e suas circunstâncias. A segunda tarefa implica a experiência e o processo do sofrimento
psicológico resultante da perda, a fim de que este não se manifeste por algum sintoma
somático ou reapareça em uma perda futura, o denominado ‘luto adiado’. O luto é
multideterminado e, portanto, a dor pode ser experimentada de maneiras diferentes, de acordo
com o tipo e natureza de relacionamento. Assim, enquanto algumas dores podem ser amenas,
outras podem desencadear complicações médicas, como transtorno de ansiedade ou depressão
(WORDEN, 2002, p. 218). A terceira tarefa envolve o ajustamento interno e externo do
enlutado ao ambiente sem o falecido. Worden formula essa tarefa de forma ampla, pois o
ajustamento irá depender do relacionamento estabelecido e dos papéis que o falecido
desempenhava na vida do enlutado. O tempo desta tarefa também é especialmente variável,
uma vez que pode contar com um tempo de meses, até uma percepção de todas as perdas
53
secundárias acarretadas por aquela morte. A última tarefa implica em realinhar os laços com o
falecido, para que o enlutado possa seguir em frente. Ao contrário da teoria de rompimento de
vínculos de Freud, Worden entende que o falecido nunca estará completamente fora da vida do
enlutado e, assim, este precisa achar um lugar para que a pessoa possa ser lembrada, ao mesmo
tempo em que um espaço é deixado livre, para que o sobrevivente possa seguir com sua vida e
estabelecer novos relacionamentos.
Este modelo de trabalho de luto de Worden é considerado revolucionário, ao declarar
que o sofrimento deve ser vivido de forma ativa, por meio das quatro tarefas. O autor
considera que a espera passiva do enlutado pelo término do processo de luto é, de fato, um
fator de risco que pode resultar em um luto complicado (SOLANO, 2014, p. 109). De acordo
com Doll (2013, p. 1872), a ideia proposta por Worden de elaboração do luto em fases, com
uma expectativa de voltar a um status considerado normal, em certo período de tempo,
influencia o trabalho prático de profissionais ou leigos sobre o luto, como intervenções e
terapias – assunto que será abordado adiante com mais detalhes, no próximo tópico.
Apesar das diferenças e das críticas aos modelos apresentados, especialmente quanto ao
suposto caráter prescritivo e linear das fases e tarefas, estas teorias são consideradas de grande
relevância pelos profissionais e pesquisadores da área, influenciando teorias e práticas até o
momento. Contudo, nenhum desses modelos em isolado é considerado suficiente para explicar
o fenômeno do luto.
Magaret Stroebe e Henk Schut, professores alemães na área de psicologia clínica e da
saúde criticam essas teorias, alegando que elas explicam o fenômeno do luto de forma ampla,
sem explorar as vias de enfrentamento individuais (KISSANE, 2005, p.1138). É neste sentido
que, em 1995, os autores propuseram o Modelo de Processo Dual, na busca de abranger os
diferentes conhecimentos dos modelos preexistentes e, ainda, ampliar a teoria, abordando o
enfrentamento sobre o luto. De fato, este modelo foca no enfrentamento individual,
entendendo que este fator é determinante na boa adaptação.
Os autores sugerem que, frente a um evento de perda, o enlutado irá oscilar entre dois
processos. Um dos processos diz respeito ao enfrentamento orientado para a perda em si,
enquanto o outro processo se refere ao enfrentamento orientado para restauração. Segundo a
proposta, o enlutado oscila entre os dois tipos de enfrentamento de forma não padronizada.
Contudo, é frequente que, nos primeiros momentos após a perda, apresente-se um foco maior
no enfrentamento orientado para a perda. Os dois processos são compostos por pensamentos,
54
sentimentos e comportamentos que podem ter significados positivos ou negativos, como
reavaliação ou ruminação, revisão de metas e interpretação do evento, que podem acontecer de
forma construtiva ou não. Os exemplos de enfrentamento são oferecidos pelos autores,
podendo se referir aos dois processos, independente do caráter positivo ou negativo, que os
classificam.
Deste modo, o Modelo de Processo Dual propõe um confronto ativo ao luto. Este
confronto é feito de forma dinâmica, a fim de alcançar um equilíbrio entre o enfrentamento e a
evitação. Os autores entendem que por vezes o enlutado precisa de tempo para ‘descansar’ do
estresse do sofrimento ocasionado pela perda. Assim, estas emoções negativas são
compensadas por uma reavaliação positiva e pela construção de significados. O equilíbrio
proposto consiste em viver o luto e permitir a restauração e ambos sofrem influências
interpessoais e culturais (KISSANE, 2005, p. 1138).
Alguns manuais (MALKINSON, 2002; KISSANE, 2005; NYATANGA, 2005; DOLL,
2013) citam ainda a contribuição das teorias sociológicas construtivistas a partir do trabalho de
Tony Walter, do final da década de 1990. A perspectiva sociológica baseada no interacionismo
simbólico reconhece a importância dos grupos e redes, como a família e amigos, no processo
de luto. Apesar das variações culturais nos padrões de socialização, é considerado que as redes
de suporte têm uma influência fundamental no ajustamento (KISSANE, 2005 p. 1138). Walter
entende que o significado da perda e da pessoa falecida é negociado em interações sociais
entre o enlutado e as pessoas em seu entorno. Assim, a partir das relações, constrói-se uma
biografia da pessoa falecida, de modo que o processo de luto é resolvido quando a pessoa
enlutada consegue construir uma biografia estável, integrando a memória da pessoa falecida à
sua vida atual (DOLL, 2013, p. 1879). Portanto, segundo a teoria de Walter, a recuperação do
luto não significa voltar ao mesmo estado anterior, mas incluir a memória do falecido na vida
futura, o que pode implicar em crescimento e amadurecimento pessoal.
Ao considerar o luto como fenômeno natural e cultural, as teorias buscam elucidar que
seus sinais e ‘sintomas’ são normais nesse momento. Por englobar angústia emocional,
processos cognitivos, respostas físicas, aspectos comportamentais e, até, mudanças
fisiológicas, considera-se que o luto e a depressão se encontram em um continuum biológico
(KISSANE, 2005, p. 1138). Assim, é frequente, entre as teorias, a proposta de orientar o
enlutado e o profissional acerca de reações usuais ao luto, para que este evento não seja
medicalizado desnecessariamente, por ser diagnosticado de forma errônea como um transtorno
55
depressivo. No entanto, com exceção do Guía de Cuidados Paliativos da SECPAL, de alguma
forma, todos os manuais abordam o tema concernente a uma possível complicação do luto,
seja orientando quanto ao trabalho de prevenção no momento do luto antecipatório ou
definindo os tipos de luto complicado e seus possíveis fatores de risco. A frequência desse
tema indica a preocupação profissional e, portanto, social e possivelmente individual, sobre a
vivência do luto, de forma a garantir que este evento não seja mais devastador do que seria
naturalmente.
Prigerson, Vanderwerker e Maciejewski (2011, p. 168) afirmam que aproximadamente
de 80% a 90% dos enlutados vivenciam uma experiência ‘normal’ de luto. Segundo os autores,
por mais doloroso e disruptivo que seja o ‘luto normal’, o enlutado supera a sensação inicial de
descrença e, gradualmente, começa a aceitar a perda como uma realidade. Assim, consideram
que a grande maioria dos enlutados é capaz de eventualmente seguir com suas vidas, suas
funções e atividades diárias, ao se ajustar à perda de forma mais ou menos adaptativa.
Contudo, sob algumas circunstâncias, o luto pode ser extremamente angustiante e
debilitante – caso que configuraria um ‘luto complicado’ (PRIGERSON, VANDERWERKER
e MACIEJEWSKI, 2011, p. 165). Portanto, a ideia de um luto complicado está associada à
noção de disfuncionalidade, devido à inabilidade de adaptação à perda e de conduzir o luto a
uma conclusão satisfatória (DAVIES e ORLOFF, 2005, p. 833).
É considerado normal o luto com algum grau de perturbação emocional e de déficit nas
atividades diárias, por um período de tempo. No entanto, diante da incapacidade do enlutado
de retornar a um funcionamento adequado, o luto passa a ser classificado como complicado, e
a intervenção profissional é indicada. Deste modo, a barreira entre uma disfuncionalidade
‘normal’ e uma ‘anormal’ está vinculada às noções de duração e intensidade dos sintomas.
Ainda assim, essa definição é pouco objetiva e não possibilita um consenso sobre um corte,
que determine quando o luto ‘normal’ pode começar a ser considerado ‘anormal’.
Nyatanga (2005, p. 107) afirma que, apesar da sugestão de tempo como critério de
diferenciação ser útil, ela também é arbitrária e pode ser discriminativa, já que os tempos dos
indivíduos variam e podem se afastar da curva prevista. Malkinson e Witztum (2002) criticam
as abordagens tradicionais, originárias de modelos médicos, que baseiam suas definições de
luto complicado nas noções de intensidade, duração e desvinculação com o falecido. Para estes
autores, apesar de haver embasamento para a ideia de diminuição da intensidade de reações no
decorrer do tempo, não há sustentação para a suposição de que há um limite de tempo para o
56
luto e que sua consequência é a desvinculação. Desta forma, eles consideram que o luto é um
processo vitalício, e que o ‘luto patológico’ pode ser entendido como a intensificação do luto,
de modo que o funcionamento é afetado e a pessoa permanece em uma espécie de luto
contínuo, sem conseguir progredir para uma reorganização ou adaptação (MALKINSON e
WITZTUM, 2002, p. 219).
Apesar da dificuldade de mensurar e delimitar uma fronteira entre o luto ‘normal’ e o
‘complicado’, a atenção dada a esse tema pelos manuais reflete a preocupação social e
profissional com o evento do luto. Além de caracterizar o que pode ser considerado normal no
luto, é importante determinar em quais aspectos o luto pode ser considerado complicado e
como preveni-lo. Deve-se evitar ao máximo que o sofrimento causado pela morte de alguém
ou sua iminência não seja intenso nem duradouro, a ponto de causar alguma disfuncionalidade.
É no intuito de prevenir uma complicação do luto que se torna crucial a atenção profissional
sobre o período do ‘luto antecipatório. Na Encyclopedia of death and dying, Charles A. Corr
afirma que este conceito foi introduzido por Erich Lindemann, em 1944, para aludir às reações
de luto referentes a uma perda que ainda não ocorreu ou ao luto de uma morte iminente (2002,
p. 217). Segundo o autor, Therese Rando, em seu livro Loss and antecipatory grief47
, definiu
este fenômeno abrangendo o processo de luto, o enfrentamento, a interação, o planejamento e a
reorganização psicossocial. Corr propõe, ainda, um estreitamento da definição, ao limitá-la às
reações e respostas às perdas que ainda não ocorreram e que ainda não estão em processo de
ocorrer, ou seja, aos processos de morte que estão no futuro e ainda não se iniciaram, não se
moveram da expectativa para a realidade (2002, p. 217). Essa proposta de definição objetiva
diferenciar o luto, devido a um enfrentamento diante um processo de morte de um luto
antecipatório ‘puro’. O autor argumenta que o luto antecipatório não deveria ser confundido
com o luto que se inicia na iminência da morte, uma vez que, neste caso, algumas perdas já se
encontram presentes. De todo modo, o ‘luto antecipatório’, como proposto por Corr, também
pode afetar o luto em si, funcionando como um fator de prevenção.
De modo geral, o luto antecipatório amplia o que se entende por processo de luto. O luto
não se refere apenas à perda final provocada pela morte física, ele pode começar antes, quando
uma doença anuncia o processo do morrer. Kissane (2005, p. 1139) chama a atenção para as
mudanças que a doença e o tratamento provocam, e que podem ser consideradas como perdas
47 Perda e luto antecipatório, em português.
57
secundárias. Dependendo das circunstâncias, uma doença pode ocasionar a perda do trabalho,
do lazer, de uma segurança financeira, da autonomia, do sentimento de certeza sobre a vida e
mudanças sobre a imagem corporal e em torno da percepção de bem-estar. Estas mudanças
exigem o início de um processo de ressignificação do vínculo com o doente, e de um processo
de aceitação de um conjunto de perdas, até a perda definitiva provocada pelo evento da morte.
O luto antecipatório se configura então como uma experiência que pode ser vivida nas esferas
cognitiva, emocional e comportamental (GENEZINI, 2009, p. 323). Assim, entende-se que
neste período é indicado o acompanhamento e, quando necessário, intervenções profissionais,
a fim de prevenir complicações futuras. A prevenção é considerada possível, uma vez que
algumas condições que se configuram como fatores de risco já estão presentes antes do
momento da morte.
Conforme referido, após o evento da morte é frequente que o enlutado apresente reações
emocionais, cognitivas, comportamentais e fisiológicas, assim como é esperado que essas
respostas típicas do luto provoquem alterações na funcionalidade diária da pessoa enlutada. É
neste sentido que Genezini alerta para a necessidade de cautela, ao se considerar um luto como
complicado, pois uma depressão reativa à perda é esperada e, portanto, se deve levar em
consideração os fatores ‘duração’ e ‘intensidade’ (2009, p. 324).
Essa noção de que o luto é considerado ‘anormal’ a partir de certa duração e intensidade
se reflete nas definições de tipos de luto complicado e nas orientações sobre os diagnósticos e
nas futuras prescrições. Baseando-se nessas categorias, os manuais se referem principalmente a
três tipos principais de luto complicado: o luto inibido ou adiado, o luto crônico ou prolongado
e o luto traumático ou inesperado48
.
Os teóricos sobre o luto consideram se tratar de um mecanismo de defesa comum, algum
grau de negação entre os enlutados nos primeiros momentos após a morte. Esta forma de
autoproteção é considerada válida, na medida em que viabiliza a assimilação gradual da morte
do ente querido. Contudo, a persistência desse estado pode ser considerada como uma
48 Baseando-se no trabalho de Erich Lindemann, Colin Parkes sugeriu que o ‘luto patológico’ poderia ser
descrito como crônico, adiado ou inibido. Sob outra perspectiva, a partir da Teoria do Apego, John Bowlby
explorou as ligações entre as experiências da infância e o desenvolvimento de um ‘luto patológico’. A partir
deste estudo de Bowlby, cada vez mais o foco das pesquisas se volta para a exploração dos vários fatores
antecedentes que podem tornar as pessoas mais vulneráveis a reações adversas. É neste sentido que a
reformulação da nomenclatura de tipos de ‘luto patológico’ proposta por Parkes e Weiss, entre síndrome do luto
inesperado, síndrome do luto ambivalente e síndrome do luto crônico pode ser considerada mais vantajosa. Além
de esboçar os sintomas clínicos distintos de cada tipo, este esquema indica uma etiologia de reações
insatisfatórias do luto, auxiliando na escolha de intervenção terapêutica (BRADBURY, 2002, p. 221).
58
complicação do processo de luto. Este estado de ‘luto adiado’ pode ser considerado
problemático, na medida em que se entende que o luto deve ser sentido para ser elaborado.
Malkinson e Witztum (2002, p. 220) alertam que, nesses casos, o indivíduo pode passar a
impressão de estar enfrentando bem a perda sofrida, mas, de repente, pode se mostrar
deprimido ou ansioso. Segundo Kissane (2005, p. 1140), o adiamento do luto pode estar
associado com dificuldades de relacionamento ou com a emergência de um estado de
hipomania em indivíduos com transtorno bipolar. Essa evitação do contato com as emoções
pode consistir uma reação automática ou um esforço consciente, caso frequente em indivíduos
compulsivamente autoconfiantes e independentes (NYATANGA, 2005, p. 108).
Pesquisas recentes criticam a caracterização do luto considerado adiado, como uma
reação patológica. Não necessariamente tal condição refletiria uma evitação disfuncional, mas
ao contrário, é argumentado, a partir do conceito de resiliência49
, que tal resposta pode ser
consequência de um ajustamento rápido, diante de uma perda antecipada (DOLL, 2013 p.
1874). Para a Psicologia, resiliência pode ser entendida como um “construto associado às
características pessoais que permitem a um indivíduo adaptar-se e superar situações adversas”
(SOLANO, 2014, p. 171). Considera-se que a resiliência é tanto uma capacidade inata quanto
uma característica que pode ser aprimorada ao longo da vida por fatores ambientais. É neste
sentido que Solano cita as pesquisas de Bonanno e colaboradores, que têm mostrado que a
maioria das pessoas não demonstra sofrimento por luto e, por esta razão, são definidas como
grupo resiliente. Assim, a resiliência é considerada uma característica que previne o luto
complicado, ao mesmo tempo em que a experiência de luto pode consolidar um patamar maior
de resiliência, tornando as pessoas mais aptas ao enfrentamento de crises e estresse (SOLANO,
2014, p. 175).
O luto crônico é o tipo de luto complicado mais abordado pelos manuais. Trata-se do
único tipo de luto considerado como transtorno pelo DSM-V, sob a denominação de
Transtorno do Luto Complexo Persistente, caracterizado pelas reações de luto e pesar
persistentes (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 290). De modo amplo, o
49 Resiliência é um conceito oriundo das ciências físicas, para se referir à capacidade de determinado material de
retornar ao seu estado original após uma deformação sofrida por uma força, tensão ou pressão. O conceito foi
apropriado pela psicologia e pela pedagogia na década de 1970, quando Michaell Rutter utilizou o termo para se
referir à capacidade de resistência de crianças frente a adversidades. Apesar do surgimento recente do termo em
Psicologia e de seu uso crescente nas últimas décadas, Santos (2003) argumenta que, no passado, diversos
autores se referiam à mesma ideia, utilizando outros termos, como “recursos pessoais”, por exemplo.
59
luto crônico é definido pela condição de expressões emocionais intensas referentes à perda
(MALKINSON; WITZTUM, 2002, p. 220). Nyatanga (2005, p. 108) considera que as reações
do luto crônico correspondem às emoções normais do luto, porém vivenciadas com a mesma
intensidade dos momentos iniciais, sem redução com a passagem do tempo. Entende-se que
esta condição está associada a relacionamentos superdependentes, em que o enlutado evita o
sentimento de abandono por meio da perpetuação do relacionamento vivenciado por meio do
luto (MALKINSON; WITZTUM, 2002, p. 220; KISSANE, 2005, p. 140).
Prigerson, Vanderwerker e Maciejewski (2011, p. 170), ao discutirem a inclusão de um
diagnóstico relativo ao luto no DSM-V, destacam que, durante os meses iniciais após a perda,
muitos dos sinais e sintomas do luto ‘normal’ são semelhantes aqueles vivenciados por
indivíduos que apresentaram complicações, devido ao prolongamento do luto. Contudo,
afirmam que seis meses após a morte, a maioria dos enlutados alcança concordância com a
maioria algum grau de aceitação e, consequentemente, reestabelece, ao menos em parte, seu
funcionamento normal. Essa observação justifica a delimitação de um tempo mínimo
necessário para a ocorrência dos sintomas para diagnóstico.
Além do tempo, Shimshon, Malkinson e Witztum (2001) destacam que a adequação e
extensão do funcionamento biopsicossocial do enlutado é importante na avaliação. Contudo, é
insuficiente para medir o impacto. Segundo os autores (SHIMSHON; MALKINSON;
WITZTUM, 2011, p. 190), o eixo central da medição de resposta se refere à relação com o
falecido. Consideram, portanto, que a atenção a esses dois domínios, do funcionamento e do
relacionamento, é vantajoso do ponto de vista teórico, empírico, diagnóstico e de estratégias de
intervenção.
Segundo Prigerson, Vanderwrker e Maciejewski (2011, p. 170), a angústia vivida no luto
crônico tem origem em um protesto psicológico contra a realidade da perda e uma relutância
em se adaptar à vida sem aquela pessoa. Esta conceituação reflete os critérios delimitados no
DSM-V para o diagnóstico do Transtorno do Luto Complexo Persistente. De acordo com o
manual (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 789-790), esse transtorno
tem como critério fundamental a especificidade das reações estarem relacionadas à experiência
da morte de alguém com quem se tinha um relacionamento próximo. Além disso, os sinais e
sintomas ainda devem se encaixar em outros quatro critérios. O enlutado deve experimentar,
desde a morte, ao menos um dos quatro sintomas discriminados no critério B por, pelo menos,
doze meses entre os adultos, e seis meses entre crianças. Os sintomas do critério B se referem à
60
angústia de separação, como saudade persistente, intenso pesar e dor emocional. Os sintomas
do critério C devem ser experimentados em um grau “clinicamente significativo” na maioria
dos dias, persistindo por doze meses nos adultos e seis meses nas crianças. É preciso detectar
ao menos seis dos doze sintomas do critério C, que estão divididos entre sintomas acerca do
sofrimento reativo à morte e sintomas associados à perturbação social/da identidade. É ainda
necessário que a perturbação do sentimento do luto cause sofrimento significativo ou prejuízo
no funcionamento social, profissional, ou em outras áreas importantes (critério D), e que a
reação seja desproporcional às normas culturais, religiosas ou inapropriadas à idade (critério
E).
O luto traumático, também conhecido como inesperado, pode ser desencadeado a partir
de uma morte repentina, inesperada ou, de alguma forma, chocante. Segundo Malkinson e
Witztum (2002, p. 220), o processo de luto se iniciaria de forma complicada, pois, devido à
imprevisibilidade da morte nestes casos, o enlutado tem especial dificuldade de aceitar sua
realidade. Este contexto facilitaria a manutenção de forte sentimento de obrigação com o
falecido, impedindo o desenvolvimento do processo de luto. Segundo Kissane (2205, p. 1140)
nestes casos, a integração e aceitação da morte podem ser interferidas pela excitação e
aumento da angústia que as memórias do evento podem disparar. A imprevisibilidade ou o
contexto chocante da morte podem provocar reações de luto semelhantes às respostas
características do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)50
, como lembranças
intrusivas, flashbacks, pesadelos, irritabilidade e dificuldade de concentração.
50 Segundo o DSM-V (2014) o Transtorno de Estresse Pós-Traumático é um transtorno que especifica a
“exposição a episódio concreto ou ameaça de morte, lesão grave ou violência sexual” (p. 271). Admite que tal
exposição é considerada válida na vivência direta, no testemunho pessoal, no conhecimento do evento
traumático com familiar ou amigo próximo ou ser exposto de forma repetida ou extrema a detalhes aversivos. O texto faz a ressalva de que, no caso de evento concreto ou ameaça de morte a terceiros é preciso que o evento
tenha sido violento ou acidental. Entre os sintomas o manual destaca: lembranças intrusivas, angustiantes,
recorrentes e involuntárias; sonhos angustiantes e recorrentes de conteúdo e/ou sentimento relacionado; reações
dissociativas como se o evento estivesse ocorrendo novamente; sofrimento psicológico intenso ou prolongado;
reações fisiológicas intensas e prolongadas; evitação persistente a estímulos associados ao evento traumático;
alterações negativas em cognições e no humor associadas ao evento traumático e alterações marcantes na
excitação e na reatividade associadas ao evento. As perturbações presentes devem persistir por mais de um mês e
causar sofrimento clinicamente significativo e prejuízo social, profissional ou em outras áreas importantes
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014, p. 271-272).
61
5.2 LUTO: FATORES DE RISCO E INTERVENÇÕES PROFISSIONAIS
A construção de uma ideia de que o luto deve ser um processo de ruptura ou uma
ressignificação dos vínculos rumo à aceitação da perda estabelece uma expectativa de que o
sofrimento deve ser superado. Além da superação, em um bom trabalho de luto deve haver
uma busca existencial por um significado, viabilizando uma percepção do enlutado, de
vivência de crescimento pessoal ao final do processo. Deste modo, considera-se que o
sofrimento deve ser autolimitado e funcional, uma vez que o foco no potencial de crescimento
não objetiva minimizar a dor do luto, mas canalizar esta dor e raiva para gerar esforços
significativos que possam contribuir para sua recuperação (DAVIES; ORLOFF, 205, p. 834).
Esta expectativa por uma finalidade positiva do processo de luto gera uma ideia normativa do
luto normal. O “normal” é definido pelo resultado normativo, ao mesmo tempo em que as
normas do resultado também definem o processo do luto (KAUFFMAN, 2002, p. 313).
O luto complicado, por sua vez, é entendido como qualquer situação que se desvie ou
ameace se desviar dessa norma. É com a finalidade de garantir que o luto seja vantajoso para o
crescimento pessoal, ou ao menos que não seja prejudicial, que pesquisadores e profissionais
da área buscam delimitar fatores de risco que possam interferir negativamente no processo.
As possibilidades circunstanciais evidenciadas nos manuais como fatores de risco configuram
uma longa lista. Afirma-se que determinados fatores prescreveriam ou, ao menos aumentariam
a chance de complicação do luto, e que o luto complicado é, por sua vez, um fator de risco
para outras consequências prejudiciais. É neste sentido que Genezini (2009, p. 329) se refere à
Kóvacs, para ressaltar que o luto mal elaborado começa a se tornar um problema de saúde
pública, tanto para familiares quanto para profissionais, devido à excessiva carga de
sofrimento, por vezes sem possibilidade de elaboração, podendo acarretar doenças psíquicas
e/ou físicas. Assim, de acordo com o foco específico de cada manual e de capítulo, os autores
abordam características pré-morte que ameaçam o percurso normal do luto, para que seja
implementada uma intervenção preventiva, ainda no luto antecipatório. Quando a prevenção
não é possível ou foi insuficiente, caberia uma ação reparadora sobre os aspectos negativos que
interferem no processo, a fim de facilitar o reequilíbrio, evitando maiores prejuízos.
Apesar da dificuldade de delinear uma pesquisa científica sobre os riscos que o luto
representa para a saúde, os manuais confirmam a ideia do senso comum, de que uma pessoa
enlutada é uma pessoa fragilizada e, nesse sentido, teria maiores chances de desenvolver
62
alguma condição patológica. Nyatanga (2005) admite a dificuldade de provar a prevalência de
morbidades psiquiátricas em enlutados ou de condições cardíacas devido ao “coração partido”.
Ainda que os resultados não tenham sido significativos ou objetivos, o autor considera os
enlutados como um grupo de risco para condições como depressão, ansiedade, abuso de álcool
e drogas prescritas e tendências e comportamentos suicidas. Por fim, afirma que as pesquisas
foram ainda mais inconclusivas, na confirmação de uma associação entre luto e doença física
(NYATANGA, 2005, p. 107).
Outros manuais afirmam o luto como fator de risco para consequências físicas,
psicológicas e sociais negativas, apesar da aparente falta de confirmação científica sólida.
Kissane (2005, p. 1141), Prigerson, Vanderwerker e Maciejewski (2011, p. 174) alertam que o
luto, por si só, representa um fator de risco para a saúde, mas que pessoas em processo de luto
complicado apresentam riscos ainda maiores de disfunções físicas, psicológicas ou sociais. Os
autores listam possíveis consequências do luto, como aumento do uso de planos de saúde para
consultas médicas e hospitalização devido a queixas somáticas, depressão ou ansiedade;
efeitos cardiovasculares, neuroendócrinos e no sistema imunológico; prejuízos funcionais de
ordem social, familiar e ocupacional e qualidade de vida reduzida. Alguns estudos chegam a
indicar um aumento da taxa de mortalidade em enlutados entre 45 e 75 anos devido a causas
cardiovasculares, acidentes, suicídio e abuso de álcool e outras substâncias, podendo ainda
estar relacionado ao isolamento social e à alienação (KISSANE, 2005, p. 1141).
Segundo Nyatanga (2005, p. 104), as crises emocionais relacionadas ao luto não surgem
sem um fator de vulnerabilidade pré-existente à morbidade. Portanto, seria possível a
identificação de contextos potencialmente prejudiciais e uma intervenção preventiva a
pacientes e familiares considerados vulneráveis. A gama de condições que potencialmente
vulnerabilizariam o enlutado é extensa, e frequentemente são apresentadas nos manuais sem
um embasamento que justifique o prognóstico. Solano (2014, p.113) expõe essa situação de
forma didática, ao contextualizar cronologicamente as pesquisas que deram origem a tais
resultados. Segundo o autor, é possível indicar uma primeira leva de investigações, realizadas
entre 1950 e 2000, que se centraram em observações clínico-qualitativas. Apesar de serem
consideradas pouco científicas, devido à falta de controle na obtenção dos resultados, estas
pesquisas ainda constituem referência em alguns manuais observados. Kissane, autor da seção
sobre luto no manual Oxford, baseia-se em resultados obtidos nesta época, para apresentar as
63
quatro categorias de fatores de risco capazes de indicar candidatos ao acompanhamento
preventivo do luto.
O primeiro conjunto se refere à natureza da morte, englobando certas circunstâncias,
como mortes fora do tempo esperado de um ciclo de vida (por exemplo, de crianças), mortes
repentinas, inesperadas, traumáticas ou estigmatizadas, como nos casos de AIDS e suicídio. A
segunda categoria aborda as forças e vulnerabilidades do enlutado, como a existência de um
histórico psiquiátrico prévio, a personalidade, o estilo de enfrentamento (por exemplo,
preocupação extrema e baixa autoestima), e o acúmulo de experiências de perda. A natureza
do relacionamento entre o falecido e o enlutado também pode influenciar negativamente a
vivência do luto, como nos casos de relações superdependentes, simbióticas, ou de relações
ambivalentes. A última categoria discriminada é referente à rede de apoio familiar e social, em
que pessoas com famílias disfuncionais51
, com pouca coesão e comunicação, pessoas isoladas
e pessoas com percepção de uma rede de apoio precária estariam mais suscetíveis a
complicações no processo de luto (KISSANE, 2005, p. 1141).
A segunda leva de pesquisas, produzidas de 2001 até a data presente, é caracterizada por
estudos delineados de forma mais criteriosa e, portanto, teriam um grau de evidência maior.
Estas pesquisas organizam os fatores em cinco grupos. O primeiro grupo se refere aos fatores
relacionados à vida afetiva na infância, em que históricos de intensa angústia de separação, de
negligência ou de super dependência podem afetar negativamente. Os fatores relacionados a
antecedentes pré-mórbidos do enlutado também são evidenciados, como histórico de doença
psiquiátrica e características precárias da rede de suporte social disponível. O terceiro grupo
distingue os fatores relacionados ao tipo e contexto da morte, como múltiplas perdas
concorrentes ou morte por suicídio. Aspectos pessoais do enlutado também podem configurar
fatores de risco, como a viuvez, o estilo pessoal de enfrentamento, a personalidade e, às vezes,
a prática religiosa é considerada como proteção contra o luto complicado. O quinto grupo
evidencia os fatores concernentes à relação do enlutado com o falecido, tanto sobre a
51 Segundo Kissane (2005, p. 1140), a noção de funcionalidade/disfuncionalidade familiar se refere à sua
influência sistêmica no resultado do luto. A partir das dimensões de coesão, expressão e conflito, o autor
apresenta cinco categorias de ambiente familiar: dois funcionais e três disfuncionais. As consideradas funcionais
são aquelas que, por apresentarem forte coesão e/ou comunicação eficaz, são capazes de adaptação ao luto,
apesar das diferenças internas de opinião. As famílias disfuncionais são aquelas com pouca coesão, comunicação
ineficaz e, portanto, são conflituosas ou, ainda, são aquelas que apresentam um nível precário de comunicação,
silenciando certos sentimentos, como a raiva.
64
proximidade de parentesco como por uma possível sobrecarga do enlutado-cuidador
(SOLANO, 2014, p. 114).
Além da identificação de grupos de risco, algumas categorias específicas de enlutados
são destacadas em alguns manuais, por serem consideradas merecedoras de uma abordagem
especialmente cuidadosa (KISSANE, 2005, p. 1144; REVERTE e CÀRCER, 2007, p 16). O
primeiro grupo evidenciado se refere às crianças enlutadas. Elas podem apresentar reações
imediatamente após a perda, ou depois de passado algum tempo. Reverte e Càrcer (2007, p.
17) listam como reações mais frequentes:
comoção ou confusão diante da perda,
raiva e irritabilidade que podem ser manifestas em jogos e brincadeiras ou
diretamente a algum membro familiar,
medo de perder quem ainda está vivo, retorno a etapas anteriores do
desenvolvimento,
sentir-se responsável pela morte devido a coisas que tenha dito, feito ou
desejado,
tristeza,
insônia,
falta de apetite,
falta de interesse por coisas que costumavam lhe motivar,
medo prolongado de estar só,
diminuição do rendimento escolar,
desejo de estar com a pessoa falecida.
A intervenção profissional com a criança, seja como prevenção ou tratamento, deve
proporcionar uma comunicação franca, explicativa e adequada à idade e possibilidade
cognitiva, uma vez que apenas por volta dos dez anos de idade que a criança entende o caráter
definitivo da morte (KISSANE, 2005, p. 1144). Assim, os familiares e profissionais devem
buscar ser honestos, informando e respondendo de maneira sensível, assim que possível, sobre
os acontecimentos, respeitando um momento e local adequados. Reverte e Càrcer (2007, p. 20)
incentivam que os familiares permitam que a criança participe dos rituais funerários caso ela
deseje, contanto que lhe seja explicado o que acontecerá neste momento. Por fim, é importante
que, no acompanhamento do luto infantil, os adultos incentivem a criança a expressar o que
65
sente, e que eles se mantenham física e emocionalmente próximos da criança, com o objetivo
de oferecer o máximo de estabilidade possível (KISSANE, 2005, p. 1144; REVERTE;
CÀRCER, 2007, p. 20).
Os adolescentes também constituem um grupo vulnerável por si. Nesta faixa etária, eles
já são conscientes do caráter definitivo da morte e das mudanças que ela produz. É frequente
que, diante do processo de luto, os adolescentes deixem de participar da vida familiar, como
forma de buscar reduzir o sofrimento causado pela perda. Enquanto no luto das crianças e
adolescentes mais jovens predominam os efeitos fisiológicos, como dor de cabeça ou
estômago, nos adolescentes mais velhos, assim como nos adultos, o maior sofrimento é
psicológico. Contudo, Reverte e Càrcer (2007, p. 24) alertam que um luto mal resolvido nesta
idade pode acarretar problemas graves e duradouros, como abuso de drogas, delinquência,
promiscuidade sexual e suicídio. As autoras orientam os familiares de adolescentes enlutados
que forneçam informações, permitam a expressão de sentimentos no tempo desejado pelo
adolescente, disponibilizem sua participação em rituais, mostrem-se próximos e disponíveis,
mantenham ao máximo a rotina e evitem que o adolescente assuma papéis que não sejam seus,
reafirmando sua personalidade (REVERTE; CÀRCER, 2007, p. 25).
Por serem estigmatizados e interpretados como frágeis e vulneráveis, os idosos configuram o
terceiro grupo, para o qual os profissionais e familiares devem dedicar especial atenção, a fim
de não os excluírem do processo de luto familiar. Provavelmente o idoso já vivenciou uma
série de experiências de perdas, podendo ter algum conhecimento sobre seu processo pessoal
de luto. Por outro lado, esta sequência de perdas de familiares e amigos também pode
proporcionar maior sentimento de solidão, e uma consequente percepção de rede de apoio
precária, frente ao recente evento de morte. Devido ao possível nível de isolamento, programas
voluntários e grupos de apoio são recomendados aos idosos, para promover sua socialização
(KISSANE, 2005, p. 1144). Familiares e profissionais devem acompanhar e facilitar o luto e a
recuperação, por meio de demonstrações de carinho e compreensão (REVERTE; CÀRCER,
2007, p. 27).
Detectar fatores de risco nas vivências do luto é importante para determinar o tipo de
intervenção profissional mais adequado para cada caso. É interessante que esta percepção da
necessidade de tratamento se dê precocemente, para que não ocorra ‘desperdício’ de
investimento profissional em casos que poderiam ser autogeridos. Apesar das reações físicas,
emocionais e sociais provocadas pelo luto, pesquisadores concordam que a maioria das
66
pessoas enlutadas se adapta ao longo do tempo, não demonstrando maior benefício em uma
terapia do luto. De fato, há uma preocupação quanto ao perigo do luto ser medicado
excessivamente, prejudicando o potencial crescimento pessoal do qual os enlutados podem se
beneficiar (NYATANGA, 2005, p. 109). Contudo, considera-se que entre 10% e 20% dos
enlutados evoluem para um luto complicado, casos em que a intervenção terapêutica é
justificada (ALVES, 2014, p. 349). Assim, a avaliação dos riscos é considerada como
componente essencial na gestão do luto.
Postular que nem todos os enlutados necessitam de acompanhamento profissional neste
momento não significa afirmar que os enlutados não precisam de suporte. Em geral, há dois
tipos de suporte, que devem estar disponíveis à pessoa em processo de luto: o informal e o
formal. O primeiro tipo é composto por familiares e amigos e, geralmente, é a rede de suporte
a qual o enlutado primeiro tem acesso. Apesar de algumas vezes as intensas emoções de
tristeza e raiva do enlutado dificultarem tais relações, a família e amigos podem ser de ajuda
prática, nos preparativos do funeral, na resolução de questões burocráticas, por exemplo, ou
em auxílio emocional, ao proporcionar uma atmosfera de conforto e de segurança que o
enlutado precisa. As ajudas formais são prestadas por profissionais ou voluntários
institucionalizados, especialmente nas áreas da saúde, assistência social, grupos de autoajuda e,
até, em comunidades religiosas (DOLL, 2013, p. 1880).
Quanto à ajuda exercida por profissionais de saúde, especialistas no tema propõem
intervenções que servem de guia aos profissionais para uma prática mais eficaz. Em geral estas
propostas se baseiam na teoria de William Worden. Apesar das recentes críticas, que
questionam a ausência de reconhecimento da negação como mecanismo de defesa válido, a
falta de evidência de efetividade e a inconsistência com perspectivas culturais e históricas, os
conceitos de Worden sobre o ‘trabalho de luto’ e suas quatro tarefas seguem embasando as
práticas profissionais (NYATANGA, 2005, p. 112). Ao entender que, no trabalho de luto, o
enlutado deva assumir uma posição ativa objetivando a superação, Worden considera
importante demarcar dois diferentes tipos de intervenção: o aconselhamento e a terapia do luto.
Segundo o autor, o aconselhamento do luto teria a função de facilitar o ‘luto normal’ em
pessoas com capacidade de autogerir o processo e, por esta razão, teria uma duração mais
breve. A terapia do luto, por sua vez, é composta por técnicas especializadas, para intervir no
luto complicado. Sua duração é mais longa e variável, de acordo com as condições
psicossociais do enlutado (NYATANGA, 2005, p. 112).
67
A fim de auxiliar o profissional na escolha das intervenções psicoterapêuticas, alguns
manuais as dividem em três níveis: primário, secundário e terciário (NYATANGA, 2005, p.
110; DOLL, 2013, p. 1881; ALVES, 2014, p.350). A intervenção primária consiste na ajuda
profissional que deve estar disponível a todos os enlutados, independente da indicação por
avaliação de risco. Este tipo de suporte acontece pela oferta de informações sobre a
experiência do luto e acerca do acesso a outras formas de apoio. Uma intervenção primária
pode ser o suficiente para as pessoas que vivenciam um processo normal do luto. As
intervenções secundárias se destinam às pessoas identificadas como grupo de risco e, portanto,
podem se beneficiar em uma oportunidade mais formal, para rever e refletir sobre a
experiência da perda. Estas oportunidades podem acontecer em trabalhos voluntários de apoio
ao luto, nos grupos de autoajuda com pessoas que passaram ou estão passando por situações de
luto semelhantes, e em grupos ou comunidades religiosas que ofereçam espaço para este tipo
de apoio. O terceiro nível é composto por intervenções especializadas, desenhadas para o
grupo minoritário dos casos de luto complicado. Nestes casos são necessárias intervenções dos
serviços de saúde mental, de apoio psicológico, de aconselhamento ou psicoterapia
especializada, de especialistas em Cuidados Paliativos e serviços gerais de luto.
Historicamente pode-se considerar que o luto, enquanto processo natural, sempre foi
facilitado por redes de apoio informais. Segundo Malkinson (2002, p. 223), o ser humano
possui uma resposta básica de ajuda, conforto e consolo, que sempre esteve disponível por
meio da família, da igreja e da comunidade. Contudo, em geral, este tipo de apoio
incondicional teria retrocedido, ou não estaria mais disponível na sociedade ocidental
contemporânea. Segundo a autora, uma variedade de abordagens terapêuticas desenvolvidas,
como grupos de autoajuda, aconselhamento e terapia do luto, acaba por ocupar esse espaço,
deixado pela rede de apoio pessoal do enlutado, em virtude do crescente processo social de
individualização na sociedade ocidental contemporânea (MALKINSON, 2002, p. 223).
Pesquisadores sobre terapia do luto apresentam algumas críticas quanto à falta de
comprovação científica da eficácia do tratamento e de uma suposta homogeneidade e
normatização do processo de luto, por meio das intervenções profissionais (DOLL, 2013, p.
1881). No entanto, as intervenções são consideradas vantajosas, ao menos para a redução de
risco de patologias subsequentes para alguns enlutados avaliados em alto risco
(MALKINSON, 2002, p. 224; KISSANE, 2005, p. 1141).
68
As terapias do luto sofreram mudanças, conforme o desenvolvimento do campo, tanto no
âmbito teórico como prático. O luto já foi definido como um processo com tempo limitado,
chegando à conclusão com a retomada da vida considerada ‘normal’. Sob esta perspectiva, a
terapia do luto era proposta como uma ferramenta para facilitar a restauração da vida prévia ao
evento da morte, o que significa, da vida considerada ‘normal’. Pesquisadores mais recentes
entendem o luto como um processo mais complexo. A começar pelo fato de o luto por vezes
ser entendido como um processo inconclusivo, pois ao invés de alcançar a retomada de um
estado prévio, seu objetivo buscaria um reequilíbrio, do que foi abalado no evento da perda. É
considerada inviável a retomada a um estado prévio, pois a vida nunca mais será a mesma sem
a existência daquela pessoa que faleceu. Deste modo, as terapias de luto são conduzidas de
múltiplas formas, e o processo é direcionado a uma construção de significado e atenção à vida
emocional e interpessoal do enlutado. A terapia do luto é então caracterizada por um processo
de aceitação de uma nova realidade, que está em constante mudança, e da ressignificação do
falecido (MALKINSON, 2002, p. 223).
Os manuais evidenciam diferentes enfoques teóricos que delineiam algumas
intervenções terapêuticas para o evento do luto. Segundo Kissane (2005, p. 1142), o modelo
mais básico seria uma intervenção focada no suporte e na expressão, em que o enlutado é
convidado a compartilhar com o profissional de saúde seus sentimentos sobre a perda. Por sua
vez, o profissional deve escutar com atenção empática, para perceber e acolher a angústia
alheia. Assim, a proposta é que, por meio do compartilhamento do sofrimento e da escuta de
forma confortante, o enlutado mude a avaliação cognitiva da nova realidade que foi alterada
para sempre.
A partir desse modelo, que é base para qualquer intervenção terapêutica com enlutados,
podem-se destacar as duas habilidades profissionais mais evidenciadas nos manuais: a
comunicação clara e franca, e a empatia (MALKINSON, 2002, p. 223; DAVIES; ORLOFF,
2005, p. 835; NYATANGA, 2005, p. 103; GENEZINI, 2009, p. 325; BURLÁ; AZEVEDO,
2013, p. 1730; SANTOS, 2014, p. 368). Não raro os manuais afirmam a importância, para os
profissionais, de habilidades subjetivas, para além das habilidades técnicas. Ao mesmo tempo
em que a promoção de uma comunicação clara e eficaz pode ser aperfeiçoada com o
aprendizado de técnicas, outras habilidades subjetivas são valorizadas no profissional. Davies e
Orloff (2005, p. 835) destacam determinadas capacidades, como: alta tolerância à
ambiguidade, flexibilidade e apreciação das diferenças individuais, boa rede de apoio externa e
69
consciência realista de seus limites pessoais, alegria de viver e bom humor, empatia, desejo de
continuar aprendendo e comodidade com a morte.
A partir do modelo básico de compartilhamento das emoções e suporte empático,
diferentes linhas teóricas disponibilizam uma variedade de modalidades terapêuticas. A
abordagem de perspectiva psicodinâmica encara o relacionamento entre o cliente e o terapeuta,
marcado pela transferência e contratransferência52
, como ponto focal do processo terapêutico.
Contudo, diante de um luto disfuncional, ao objetivar retrabalhar a relação do enlutado com o
falecido, este relacionamento deve assumir a centralidade no tratamento, e a figura
transferencial pode ser o falecido, ao invés do terapeuta (MALKINSON, 2002, p. 224). É,
portanto, uma terapia de tempo variável, de acordo com a individualidade do enlutado, para
conseguir desconstruir os vínculos estabelecidos em vida e elaborar a dor da perda (ALVES,
2014, p. 350).
As terapias cognitivas enfatizam que o enlutado não tem controle sobre os significados
por ele construídos em torno do evento. A terapia cognitiva reconhece tanto o valor curativo
do processo de luto como a natureza traumática da morte e seu efeito sobre o sistema de
crenças do enlutado. Uma vez que esse abalo no sistema de crenças pode aumentar a tendência
a pensamentos distorcidos, a terapia busca conectar o mapa cognitivo do enlutado com suas
respostas comportamentais relacionadas à perda (MALKINSON, 2002, p. 224).
A abordagem cognitiva-comportamental tem contribuição especialmente reconhecida
para os casos de luto crônico. Nestes casos, a abordagem comportamental regula a exposição
do enlutado aos “gatilhos” que impulsionam as rememorações que têm efeito de construir
obstáculos ao progresso do luto. Simultaneamente há um reenquadramento cognitivo das
ideias negativas (como exemplo, o sentimento de deslealdade por se autorizar a seguir em
frente na vida) conduzindo a uma adaptação construtiva (KISSANE, 2005, p. 1143). Alguns
autores indicam especificamente para os casos de luto crônico, a combinação de terapia
individual e terapia de grupo, para promover a socialização do enlutado e, se necessário, o uso
de psicofármacos, como antidepressivos (KISSANE, 2005, p. 1143; SILVA, 2014, p. 77).
52 O conceito de ‘transferência’ nas abordagens psicodinâmicas se refere ao relacionamento do paciente com o
terapeuta, revivendo, nesta oportunidade, os primeiros vínculos afetivos relacionados às figuras parentais ou seus
substitutos. Por sua vez, o conceito de ‘contratransferência’ é concernente à inevitável reação do analista,
provocada pela transferência do paciente. Os dois conceitos são centrais na relação terapêutica, em diversas
vertentes psicanalíticas.
70
A terapia de perspectiva construtivista entende o luto como uma construção de
significado sobre a perda, finalidade objetivada por esta intervenção profissional. Deste modo,
o luto e suas implicações são compreendidos mais como uma vantagem para o processo de
construção de significados do que como sequelas emocionais e sintomáticas. Uma vez que o
modo como o enlutado interpreta sua experiência, outras características comumente
relacionadas ao luto perdem influência, como as noções de tempo, resultado e recuperação
(MALKINSON, 2002, p. 225).
A abordagem de terapia familiar53
propõe uma Terapia do luto focada na família (Family
Focused Grief Therapy – FFGT), que pode ser aplicada preventivamente às famílias
consideradas de alto risco ou nos casos já estabelecidos de luto complicado. Kissane (2005, p.
1143) afirma que os terapeutas de família já reconhecem há algum tempo a importância da
rede familiar no processo de luto. De acordo com seu grau de funcionalidade ou
disfuncionalidade, a família pode assumir um papel positivo ou negativo, frente ao
enfrentamento individual concernente ao luto. O autor apresenta a Escala de Ambiente
Familiar54
, uma tipologia do funcionamento familiar, desenvolvida com o objetivo de auxiliar
na identificação de famílias funcionais e famílias pertencentes ao grupo de risco. Esta escala
determina cinco classes familiares: dois tipos funcionais e três disfuncionais. As funcionais
podem ser do tipo “solidária”, com alta coesão, que facilita a adaptação do luto, e a do tipo
“focada em resolver conflitos”, que apresentam comunicação coesa e efetiva, e alto grau de
tolerância de diferenças e opiniões. Quando às famílias disfuncionais, elas podem ser do tipo
“hostil”, caracterizada pela falta de coesão, comunicação ineficaz e relacionamentos
conturbados, do tipo “taciturno”, com raiva silenciada e alto nível de depressão, e, ainda, do
tipo “intermediário” que, com níveis medianos de comunicação, coesão e conflito, coloca a
família em risco de deterioração, frente a eventos estressores (KISSANE, 2014, p. 1141).
Este modelo terapêutico focado na família tem como objetivo melhorar o funcionamento
familiar, sobre certos aspectos, como comunicação e coesão. A família é convidada a
identificar e trabalhar os aspectos da vida familiar reconhecidos por eles como motivo de
53 A abordagem de terapia familiar tem como foco o funcionamento sistêmico da família, ao invés de
centramento no indivíduo. Segundo Kissane (2005, p. 1143), este modelo tem como objetivo melhorar o
funcionamento familiar, a partir da identificação e reconhecimento de aspectos familiares como causa do
problema. O trabalho terapêutico promove, então, a coesão, a comunicação aberta de pensamentos e sentimentos,
e a busca por soluções eficazes de problemas, de forma a reduzir os conflitos e melhorar a tolerância das
diferenças de opinião, fortalecendo a família como uma unidade. 54 Family Environment Scale, no original em inglês.
71
preocupação. O modo de funcionamento familiar é aperfeiçoado como unidade, mediante a
melhora da coesão, da livre comunicação de pensamentos e sentimentos e do aprendizado de
uma efetiva forma de resolução de problemas (KISSANE, 2005, p. 1143).
As definições, teorias, fatores de risco e modelos terapêuticos apresentados nos manuais
são diversos e, por vezes, divergentes. Contudo, exceto pela constatação da ênfase atribuída a
determinados autores e teorias (como o exemplo de William Worden, com suas propostas), os
manuais não elegem nem contrapõem tais formulações. Os modelos são apresentados de forma
harmônica, de modo que as diferenças nas teorias podem ser consideradas complementares. A
partir da exposição do conteúdo teórico apresentado pelos manuais, no capítulo seguinte
abordo estas formulações, enquanto técnicas da gestão da conduta humana na sociedade
ocidental contemporânea.
72
6 O LUTO NA SOCIEDADE OCIDENTAL CONTEMPORÂNEA
De acordo com os manuais e literaturas atuais sobre o tema, o luto é considerado um
fenômeno universal que sofre alterações culturais, tanto em seu referencial teórico quanto nas
práticas a ele referidas. É neste sentido que esta pesquisa tem por objetivo analisar este
fenômeno, enquanto constructo que reflete noções e valores característicos da ideologia
ocidental moderna. Torna-se, portanto, necessário evidenciar tais aspectos, a fim de possibilitar
uma apreensão do luto na contemporaneidade, sob a ótica do estranhamento, desnaturalizando
a suposta universalidade do fenômeno.
A proposta de desnaturalização é fundamental para esta pesquisa, uma vez que a cultura
ocidental moderna, assim como as demais culturas, é considerada como se fosse “a cultura”
por excelência, o que conduz à tendência de sua universalização (DUARTE, 1999, p. 21). De
acordo com Duarte (1999, p. 22), trata-se de uma hipótese antropológica, de que a “cultura
ocidental moderna” é composta por um sistema de significação específico, que implica em
determinada maneira de percepção e entendimento dos fenômenos da vida. Estes valores
tornam-se culturais, uma vez que são internalizados, portados, praticados e transmitidos a cada
nova geração. Deste modo, esta análise parte desta configuração da sociedade ocidental
moderna, de sua constituição de verdades e da noção de pessoa vigente no contexto, com o
objetivo de evidenciar ideologias e valores presentes nas formulações em torno do luto.
6.1 SECULARIZAÇÃO, PSICOLOGIZAÇÃO E PSIQUIATRIZAÇÃO
O processo de secularização da sociedade ocidental moderna se encontra vinculado ao
processo de constituição da interioridade, um elemento fundamental da ideologia moderna.
Norbert Elias (1993) parte da ideia de que ocorreu uma profunda transformação em diversos
aspectos da vida em sociedade, o que foi abordado em sua obra intitulada “O processo
civilizatório”. Para o autor, a constituição dos Estados modernos é decorrente desse longo
processo, de cerca de cinco séculos. O exame do conjunto de etiquetas e representações
públicas características das sociedades de corte possibilitou uma compreensão do que se
passou, tanto nas esferas públicas quanto na configuração do plano íntimo, associado uma série
de atos e pensamentos. De acordo com Ferreira (2006, p. 15), o processo de constituição da
interioridade, abordado por Elias, também é contemplado por Michel Foucault, em sua análise,
73
desde a Antiguidade pagã, acerca da história das técnicas de si, sobre as relações de trato e
cuidado do próprio corpo. No contexto da Antiguidade pagã, as técnicas de si não se baseavam
em uma reflexividade em busca da revelação de um ‘eu’ pré-social. De fato, a máxima do
oráculo de Delfos, “conhece-te a ti mesmo”, se refere à construção de si, por meio do
autogoverno, de acordo com as verdades e ensinamentos dos grandes mestres – trata-se de um
‘eu’ constituído a partir da sociedade.
A interioridade individualizada começa a se delinear a partir da ética cristã, que tem
início no século II d.C. (FERREIRA, 2006, p. 16). Neste momento, o homem se destaca da
sociedade, na medida em que se volta para seu interior, em busca de Deus. Este exame de si é
decorrente do uso de instrumentos religiosos e jurídicos, como a confissão, e tem a finalidade
de alcançar a purificação da alma, pela distinção entre bem e mal, presentes no interior de seu
verdadeiro ‘eu’. Esta ideia de interioridade enquanto técnica de si se propaga até a
modernidade, com algumas modificações, com suas práticas culturais, instituições e hábitos
individuais. Na modernidade, a interioridade passa a ser associada às ideias de intimidade e
subjetividade. Assim, o exame de si adquire caráter reflexivo: a interioridade é a busca do
verdadeiro ‘eu’ pré-social.
As sociedades tradicionais ou holistas são fundadas no princípio onipresente da
hierarquia. De acordo com Salem (1992), a sociedade hierárquica é aquela na qual a
configuração de valores se organiza em torno de uma norma, geralmente consolidada na
religião, englobando todos os níveis e planos da vida social (SALEM, 1992, p.62). Neste
contexto, a noção de identidade é associada à posição que o sujeito ocupa socialmente – o
sujeito está submetido à totalidade social que o contém. Em contraposição, na ideologia
ocidental moderna, com a desestruturação da totalidade hierárquica produzida pela lógica
religiosa, o indivíduo desponta como valor moral central, rejeitando os englobamentos de
outrora, que o definiam a partir de um todo. Na sociedade ocidental moderna, o indivíduo é o
todo em si mesmo, uma vez que lhe é atribuído o estatuto de um ser moralmente autônomo e
pré-social.
Esta desestruturação da totalidade hierárquica religiosa não significa a extinção das
religiões, na sociedade ocidental moderna. Leaman (2002, p. 399) considera que,
frequentemente, na medida em que a sociedade se industrializa e se moderniza, mais ela se
torna secular. No entanto, Leaman (2002, p. 399) faz a ressalva de que esta tese não é
inteiramente verdade, uma vez que muitas sociedades modernas e científicas persistem com
74
compromissos religiosos. Pesquisadores da área afirmam que, apesar do processo de
secularização observado na sociedade ocidental não ter extinguido as expressões religiosas do
espaço público (LEAMAN, 2002, p. 400; MENEZES; GOMES, 2012, p. 96), considera-se que
a partir deste processo é concebida uma nova noção de pessoa, produzindo novas “verdades”
sociais, referentes à ideologia individualista. O mesmo ocorre com as religiões, que se
transformam, aderindo aos valores vinculados ao individualismo, de modo que as fronteiras
entre o caráter religioso e o não religioso no mundo moderno se tornam imprecisas
(MENEZES; GOMES, 2012, p. 90).
Com a secularização da sociedade, na medida em que o sujeito deixa de se definir a
partir de uma hierarquia religiosa, o indivíduo se configura como valor central. Segundo
Duarte (1999, p. 24), a configuração do indivíduo como valor se remete à construção de um
“dispositivo de sensibilidade”, entre os séculos XVII e XVIII. O autor destaca três aspectos
envolvidos nessa construção ideológica e institucional: a perfectibilidade ou aperfeiçoamento,
a experiência e o fisicalismo.
A construção desses aspectos característicos da individualização da sociedade ocidental
moderna constitui reflexo de transformações histórico-culturais. Na passagem do século XVII
para o XVIII, o ser humano ocidental passa a se entender como dotado de uma capacidade de
se aperfeiçoar indefinidamente (Duarte, 1999, p. 24). Esta noção se configura na medida em
que o sujeito ocidental se entende fora da hierarquia totalizante da religiosidade. Ele começa a
se considerar um ser dotado de razão própria – razão esta que, outrora, respondia a uma razão
divina hierarquicamente superior. A ‘razão’ ocidental moderna, entendida como uma
“verdade”, está localizada no ‘interior’ do sujeito e responde à sua ‘vontade’. Como busca da
‘verdade’, a interiorização, além de demarcar a responsabilização ativa do sujeito frente à
divindade, a si e a outrem, indica o uso sistemático da razão, como ferramenta do
conhecimento. Esta característica distingue o ser humano dos demais entes terrestres, pois é
por meio do uso desta razão que o sujeito constrói conhecimento – em busca de constante
aperfeiçoamento de si, e de suas condições de relação com o mundo.
É pelo movimento de busca da perfectibilidade que a cultura ocidental moderna está
orientada pelas ideias de progresso, desenvolvimento e transformação ilimitada (DUARTE,
1999). Contudo, este aperfeiçoamento só pode se desencadear por meio da “experiência” em
relação ao mundo exterior. O sujeito percebe o mundo externo por seus ‘sentidos’, construindo
novas formas de relação com a exterioridade e com o “mundo interno”, aperfeiçoando-se de
75
modo a obter mais controle sobre seu futuro. A preeminência da experiência reside no cerne do
empirismo que, posteriormente, sustenta o cientificismo e o positivismo. Os sentidos são
afirmados como veículo de articulação das relações humanas: eles estão localizados tanto na
raiz da razão como na das “emoções”. Assim, são considerados como meio de conhecimento
do mundo externo e de si, enquanto mundo interno (DUARTE, 1999, p. 25).
A partir da separação radical entre corpo e espírito, em que a corporalidade humana
passa a ser dotada de uma lógica própria, o fisicalismo se constitui como uma revolução
cosmológica da teoria da pessoa (DUARTE, 1999, p. 25). A corporalidade torna-se uma
dimensão autoexplicativa do humano. É o momento, por exemplo, da dissecação de corpos
humanos enquanto matéria que define o ser humano – definição que antes se baseava na ideia
de alma divina. Ao abordar como o fisicalismo acarreta modificações na concepção do
funcionamento do corpo e na condição humana, Duarte (1999, p. 26) ilustra com a história do
sistema nervoso, invenção do século XVIII. A partir desta concepção, os ‘sentidos’ são
articulados ao cérebro, que centraliza as informações, possibilitando o avançar rumo à
perfectibilidade. Em suma, entende-se então que o corpo humano é dotado de uma matéria,
organizada em um sistema nervoso, que articula as experiências vivenciadas sensivelmente em
uma razão, em torno da qual o sujeito se move em direção a um aperfeiçoamento de si e de
suas condições no mundo externo. Assim, os nervos são dotados de sensibilidade, que articula
a passagem da linguagem “científica” dos nervos para a linguagem moral, psicológica das
emoções (DUARTE, 1999, p. 26). Observa-se uma concepção “fisiológica” e uma
“sentimental” em torno da sensibilidade, sendo a última a mais englobante, uma vez que é, ao
mesmo tempo, dependente e autônoma do “substrato” nervoso.
Este “dispositivo da sensibilidade”, conforme designado por Duarte (1999), viabiliza a
preeminência de um estilo de vida que privilegia os recursos de prazer, os meios de
sensibilização do corpo. Este privilégio caracteriza a sociedade ocidental moderna como
hedonista55
. Campbell ainda distingue o hedonismo moderno, pela contínua estratégia
qualitativa de busca por intensidade, ao contrário do hedonismo “tradicional”, focado no
consumo quantitativo de recursos limitados (DUARTE, 1999, p. 28). Esta característica
55 A característica hedonista da sociedade ocidental moderna se opõe à ênfase dolorista do cristianismo, na
medida em que se desloca o privilégio da satisfação ou prazer a ser obtido no mundo terreno sob a forma de
realização emocional pessoal. Contudo, esta característica não promove a extinção da religião, mas viabiliza um
universo religioso moderno em que “o motor da experiência religiosa passa a estar sediado na interioridade do
sujeito” (DUARTE, 2006, p. 21).
76
influencia desde o consumo de drogas ilícitas e de uma alimentação suntuária, ao acelerado
desenvolvimento de tecnologias terapêuticas e preventivas, orientadas à maximização da
extensão da vida e otimização do uso do corpo.
Desta forma, entende-se por ‘cosmologia moderna’ o conjunto de linhas de força
ideológica supostamente articuladas em torno de valores conceituados como ‘subjetivismo’,
‘naturalismo’, ‘hedonismo’ e ‘racionalização corporal’ (DUARTE, 2006, p. 17). Estes valores
configuram não apenas a noção de um ‘ethos privado’, mas uma ordem púbica liberal moderna
presente em suas instituições, tanto nas construções científicas vigentes como nas
religiosidades modernas. Neste sentido, é importante distinguir o que Duarte (2006, p. 16)
chama de ‘difusão formal’ e ‘difusão material’ da ideologia moderna. O autor define a
primeira como “a que atinge e conforma as ordens institucionais da nação, no âmbito tanto do
Estado quanto da sociedade civil organizada” (DUARTE, 2006, p. 17), enquanto a ‘difusão
material’ se refere à internalização desses novos valores, que organizam as ações dos
indivíduos. É sob este viés que observa-se um processo de psicologização dos indivíduos e da
sociedade como um todo.
A concepção de um “indivíduo psicológico” consiste em um desdobramento do
individualismo característico da cultura ocidental moderna. O processo de individualização
indica uma subjetivação do sujeito: o indivíduo é dotado de uma “verdade” singular, que está
contida em seu “mundo interno”. A noção de sujeito psicológico frequentemente está
vinculada aos saberes “psi”. Segundo Figueiredo (2014, p. 19), a psicologia aparece no século
XVIII, como um projeto de uma ciência natural do subjetivo, enquanto tentativa de colonizar
este novo território da natureza interna.
Ao abordar a relação entre o indivíduo psicológico e os saberes ‘psi’, por vezes encontra-
se na literatura a defesa de que estes saberes fornecem uma “linguagem” para os aspectos
modernos característicos do sujeito. Em outras perspectivas, destaca-se a “fabricação” do
próprio sujeito, como efeito da difusão das estratégias disciplinares. De todo modo, segundo
Salem (1992, p. 67), ainda que se admita o sujeito psicológico como imperativo de um
conhecimento de si, este sujeito está associado aos saberes ‘psi’. Esta associação se configura
na medida em que a busca de si passa a ser mediada por um ‘outro’, no caso, pelos
especialistas ‘psi’. Contudo, a autora considera a coexistência do sujeito auto-constituinte
(“sujeito ético”), e do sujeito que depende de um ‘outro’ para consumar o encontro consigo
(“sujeito psicológico”) – condição em que também é necessária a afirmação de certas
77
propensões culturais, como ‘interiorização’, ‘introspecção’ e ‘subjetivação’. Assim, ao abordar
o ‘sujeito psicológico’ não significa afirmar que o sujeito é ‘fabricado’ pelos ‘saberes-
poderes’, mas que “os saberes ‘psis’ afirmam-se como importante foco de produção social de
representações sobre o indivíduo moderno” (SALEM, 1992, p. 68).
Figueiredo (2012, p. 129) sugere que o campo psicológico como atualmente é conhecido
nasceu da articulação conflitiva entre o liberalismo, o romantismo e as práticas disciplinares. O
autor considera o liberalismo enquanto práticas políticas que viabilizaram o desenvolvimento
de uma sociedade individualista e atomizada. A ideia de ‘liberdade’ está associada às noções
de autonomia e autodesenvolvimento, com influência do ideário romântico, em articulação
com o projeto individual. Assim, apresenta-se uma ênfase nas concepções de diversidade,
singularidade e interioridade dos indivíduos. Por fim, a disciplina se refere às novas
tecnologias de poder exercidas sobre as identidades, que são manipuláveis. Esses três polos
atraem-se e, ao mesmo tempo repelem-se, formando um território triangular, balizado por estes
valores iluministas. É este território que Figueiredo (2012, p. 151) considera fértil à construção
das psicologias, no final do século XIX e início do XX. Com o fortalecimento do polo da
disciplina em relação aos outros dois, a partir do desenvolvimento da sociedade administrada
(ou do capitalismo tardio), este território ganha densidade e volume. Uma nova camada é
experimentada e reconhecida como o ‘psicológico’, dotado de especificidade, e disponível
como objeto de saber e intervenção.
A psicologia, enquanto construção de um conhecimento sobre a subjetividade, justifica-
se na busca de colonizar o território “íntimo” do indivíduo. Uma vez que esta natureza interna
é presumida como hostil à disciplina do método científico, ela deve ser neutralizada,
fiscalizada e controlada, devido à preocupação epistemológica e metodológica
(FIGUEIREDO, 2014, p. 19).
Este conhecimento acerca da subjetividade configura o que Foucault denomina de
“micropoder” (SALEM, 1992, p. 69). De acordo com este autor, os micropoderes são
articulados e condensados em torno do “poder disciplinar”. Assim, trata-se de formas de
apreensão e de tratamento dos sujeitos que, consequentemente, produzem efeitos
singularizantes. O poder disciplinar conta com uma eficácia produtiva: seus dispositivos de
individualização produzem realidades e sentimentos, ao mesmo tempo em que institui o
próprio indivíduo e a individualidade. Deste modo, Foucault evidencia que o indivíduo é um
78
dos primeiros efeitos do poder. A partir de sua “fabricação”, o sujeito tem a “obrigação” à
subjetivação.
Os saberes ‘psi’, enquanto poderes disciplinares, instituem o sujeito, ao mesmo tempo
em que os sujeitam, em um processo nomeado por Salem (1992, p. 71) como “despossessão
subjetiva”. Este processo é marcado por uma dissociação entre o indivíduo e a “posse” de si,
pois ao pressupor a necessidade da presença de um “outro”, na busca obsessiva pela “verdade
interna”, o sujeito é convertido em objeto de investigação do especialista ‘psi’ que,
supostamente, sabe mais de sua “verdade” do que o próprio sujeito.
É neste sentido que a história da constituição das profissões referentes aos saberes ‘psi’
está vinculada à história da lenta e inexorável penetração das novas crenças psicologizantes,
oriundas de uma cosmologia individualista, no imaginário social (RUSSO, 2002, p. 7). A
noção de pessoa na cultura moderna transforma os saberes socialmente legitimados – no caso,
os “científicos”, representados pelos saberes ‘psi’ –, ao mesmo tempo em que é transformada
por eles.
Segundo Russo (2002), a história dessa subjetivação do sujeito, enquanto objeto de um
saber institucionalizado, está associada à difusão e à prática psicanalítica que, em geral,
marcou o mundo ocidental no século XX. De fato, sua história tem início na Europa no século
XVIII, com o surgimento da psiquiatria, a partir do aparecimento do hospício como espaço de
observação e cura, administrado por médicos e enfermeiras profissionais. Tal processo teve
início no Brasil somente no século XIX. Foi apenas no século XX que a psiquiatria brasileira
começou a se desvincular do alienismo francês e de sua concepção moral de doença mental,
alinhando-se com a proposta científica alemã, que buscava uma causa orgânica da doença
mental no cérebro e no sistema nervoso. Para Russo (2002, p. 16), as relações da psicanálise
com a medicina foram ambíguas desde o início. Embora Freud tenha negado a necessidade de
uma formação em medicina para praticar a psicanálise, seus colaboradores mantinham o
vínculo entre as duas disciplinas, na busca de legitimidade e cientificidade à especialidade
psicanalítica.
A promulgação da lei brasileira que reconhece a psicologia como profissão se deu
somente em 1962. Como atribuições reconhecidas do profissional psicólogo, o diagnóstico
psicológico, a orientação e seleção profissional, a orientação psicopedagógica e a solução de
problemas de ajustamento. Desde o início do século XX a psicanálise se difundia no Brasil,
mas foi na década de 1970 que a especialidade conquistou as camadas médias urbanas. Russo
79
(2002, p. 38) atribui a certos fatores políticos, econômicos e culturais esse boom da
psicologização da sociedade brasileira. O fechamento político, em decorrência das ditaduras
militares da época acarretou um período de obscurantismo, censura e repressão da sociedade.
Nesse sentido, diante da impossibilidade de preocupação com o social, o indivíduo se voltou à
preocupação com o “mundo interno”. Em termos de “micropolítica”, a disseminação da
contracultura também influenciou o processo de psicologização: a “moral burguesa”, ao
carregar a crítica da opressão, promove um retorno do sujeito para dentro de si, para repensar
suas pequenas atitudes cotidianas, suas escolhas íntimas, seu modo de ser (RUSSO, 2002, p.
41). Por fim, o “milagre econômico” que, à época, proporcionou uma expressiva mobilidade
ascendente, implicou em modificações no estilo de vida e no desenraizamento em relação ao
meio de origem, promovendo questionamentos sobre os modelos tradicionais.
Na década de 1990, a clientela brasileira da especialidade psicanalítica começa a
diminuir, devido tanto à aparição das “concorrentes” terapias corporais e práticas alternativas
como à “psiquiatrização” da sociedade (RUSSO, 2002, p. 73). Até então, a psiquiatria
mantinha uma relação ambígua no interior da medicina: por um lado, baseava-se na afirmação
de uma causalidade somática para os transtornos mentais; por outro, configurava-se como uma
medicina “especial”, por voltar-se a uma doença não propriamente somática. Contudo, em
paralelo às vertentes “morais” da psiquiatria (a abordagem psicanalítica sobre os transtornos
mentais e o movimento “antipsiquiátrico” de teor psico-político-social) que se afastavam da
doença mental como fato biológico, a vertente “somaticista” se manteve, por meio do
desenvolvimento significativo da pesquisa farmacológica em psiquiatria.
Em um primeiro momento, a vertente moral e a somática conviviam de forma pacífica –
os medicamentos possibilitavam o tratamento pela palavra de pacientes antes inabordáveis.
Assim, os medicamentos atingiam os sintomas, enquanto a psicanálise visava acessar a causa.
Contudo, os sucessos da terapêutica medicamentosa (e seu forte movimento econômico)
atraíram o interesse dos jovens psiquiatras, em detrimento da longa e cara formação
psicanalítica. Ademais, a “revolução medicamentosa” possibilitou que o psiquiatra se
posicionasse como médico, assim como as demais especializações da área.
A década de 1990 é considerada a década do cérebro, o que se somou às pesquisas sobre
o funcionamento cerebral, que inauguraram o novo campo científico da neurociência (Russo,
2002, p. 76). Neste momento tem início um movimento inverso: a psiquiatria e as demais
“descobertas científicas” passam a influenciar os psicanalistas norte-americanos, que propõem
80
uma revisão da teoria freudiana, na direção da incorporação de novas teorias neurocientíficas.
Este cenário conduz à afirmação de que “o atual sucesso da psiquiatria biológica e da ideologia
que a fundamenta talvez signifique que, mais que a anatomia, a biologia seja nosso destino”
(RUSSO, 2002, p. 77).
Embora o movimento dos saberes ‘psi’ siga a tendência de um direcionamento para
maior evidência do saber psiquiátrico, tal panorama não implica na total deslegitimação da
psicologia e da psicanálise, enquanto “verdades” sobre a natureza humana. A ‘psiquiatrização’
do social é também efeito de transformações dos valores sociais. A partir da secularização da
sociedade ocidental moderna, instaura-se um processo crescente de medicalização56
do social,
vinculado à crença generalizada na ciência e na razão, como método de construção do
conhecimento sobre o homem e a natureza. É neste sentido que, graças aos desenvolvimentos
científicos em torno da natureza humana, que a psiquiatria vem se estabelecendo como
referência de “verdade” sobre as sensibilidades, emoções e comportamentos dos indivíduos.
Na medida em que a psiquiatria passa a se basear em aspectos médico-científicos, a
especialização se legitima na cultura ocidental, como disciplina de referência, dentre as
ciências do homem.
Vidal (2006, p. 64) considera que as disciplinas das ciências do homem só adquirem
valor social o passo em que contribuem com a ‘perfectibilidade’ da humanidade – um dos
aspectos considerados de maior importância na cultura moderna. Apesar da análise de Vidal
focar na psicologização e na disciplina psicologia, pode-se considerar uma extrapolação da
ideia, englobando a psiquiatrização e a psiquiatria, devido à sua crescente afirmação frente à
sociedade. Assim, neste caso, entende-se que a ‘perfectibilidade’ está relacionada a fatores
biológicos e ao equilíbrio de neurotransmissores a ser reestabelecido, mediante intervenção
medicamentosa.
Uma vez que a psiquiatrização da sociedade promove e é promovida pela construção
social da profissão do psiquiatra, Vidal (2006, p. 65) afirma que uma das consequências sociais
é a estipulação deste saber como mecanismo de definição de normas e de controle do
56Nesta pesquisa considero o conceito mais tardio e amplo de ‘medicalização’. Segundo Zorzanelli, Ortega e
Bezerra Júnior (2014), o uso restrito do termo, referindo-se somente às práticas médicas (mais exatamente, as
biomédicas) obscurece outros níveis de sua ocorrência. A ampliação da noção de medicalização para além da
medicina engloba o processo de ‘farmacologização’ (CAMARGO JR, 2013), inclusive o papel ativo dos
usuários de medicamentos, e os processos de ‘psicologização’ e ‘psiquiatrização’, enquanto ferramentas da
biopolítica (como explorado nesta dissertação).
81
funcionamento humano. Ao mesmo tempo em que os saberes ‘psi’ promoveriam o avançar da
humanidade no sentido da perfectibilidade, eles também apoiam a formação de autoridades,
uma vez que resultariam de um suposto conhecimento da natureza humana. Deste modo, a
psicologia e a psiquiatria se definem como dispositivos no “governo dos homens”, no sentido
foucaultiano.
Os saberes ‘psi’ se configuram como produção cultural difusora de um ideário e
produtora de sensibilidades em torno da concepção bio-psico-social dos indivíduos. A partir do
momento em que tais ciências produzem verdades e novas subjetividades acerca do fenômeno
do luto, pode-se considerar que estas especializações atuam como um dispositivo da morte à
semelhança do dispositivo foucaultiano da sexualidade.
De acordo com Agamben (2005), o conceito de “dispositivo” começa a ser usado com
maior frequência por Foucault em meados dos anos 1970, momento em que este autor se
debruça sobre a temática da “governabilidade” ou, em outros termos, do “governo dos
homens”. Embora Foucault nunca tenha apresentado uma definição para ‘dispositivo’, a partir
da análise de sua obra e discursos, Agamben (2005) destaca algumas características do
conceito. Assim, ‘dispositivo’ é entendido como uma rede ampla e heterogênea de elementos
linguísticos e não-linguísticos, que tem sempre uma função estratégica concreta, inscrita em
uma relação de poder. Portanto, inclui em si a própria episteme57
. Uma vez que ‘dispositivo’ é
entendido como rede, não é possível resumir o conceito a uma tecnologia de poder específica,
tampouco como uma generalização abstrata. ‘Dispositivo’ é um termo técnico de uma rede,
que se estabelece entre elementos históricos – a concretização em relações de poder de
instituições, processos de subjetivação e regras.
A partir da relação entre a classe dos seres viventes e os dispositivos, resulta um terceiro
elemento: o sujeito. Um indivíduo pode comportar vários sujeitos, conforme a proliferação de
processos de subjetivação. Portanto, o dispositivo é “uma máquina de produção de
subjetivações, e só enquanto tal é uma máquina de governo” (AGAMBEN, 2005, p. 15). Para
Agamben (2005, p. 13), ‘dispositivos’ é literalmente “qualquer coisa que tenha de algum modo
a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os
gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”. O conjunto de elementos é
extrapolado para além das instituições e das práticas, cuja conexão com o poder é
57 Segundo Agamben, episteme para Foucault é aquilo que em certa sociedade permite distinguir entre o que é
aceito como enunciado científico daquilo que não é científico (AGAMBEN, 2005, p. 10).
82
relativamente evidente – engloba, por exemplo, a caneta, os computadores e a própria
linguagem, que talvez seja o dispositivo mais antigo.
Os dispositivos não são elementos completamente exteriores e independentes aos
indivíduos, pois “na raiz de cada dispositivo está [...] um desejo demasiadamente humano de
felicidade e a captura e a subjetivação deste desejo em uma esfera separada constitui a potência
específica do dispositivo” (AGAMBEN, 2005, p. 14). Portanto, todo dispositivo implica um
processo de subjetivação, ao mesmo tempo em que sem o processo de subjetivação o
dispositivo não pode funcionar como dispositivo de governo. É deste modo que, na concepção
de Foucault, os dispositivos criam corpos dóceis e, ao mesmo tempo, ‘livres’.
A concepção de ‘dispositivo’ como produtor de subjetividades e, portanto, como
“governo dos homens”, é o que permite que Nikolas Rose (1988) afirme que é uma ilusão
julgar nossas personalidades, subjetividades e “relacionamentos” como questões privadas,
reflexos de nossos verdadeiros ‘eus’. De fato, estas instâncias são analisadas como objetos de
poder, são governadas na medida em que são “socialmente organizados e administrados nos
mínimos detalhes” (ROSE, 1988, p. 31). Este governo do ‘eu’ contemporâneo acontece
mediante a incorporação das capacidades pessoais e subjetivas dos indivíduos, aos objetivos e
aspirações dos poderes públicos. A subjetividade integra os cálculos das forças políticas,
inserindo-se nas estratégias sociais, de modo a regular as condutas dos sujeitos, a partir de uma
ação sobre suas capacidades e propensões mentais. Esta administração da subjetividade é
crucial na organização moderna, na medida em que preenche o espaço entre as vidas
“privadas” e as preocupações “públicas” – extrapolando-se a administração das forças e
potências, como na ‘sociedade disciplinar de Foucault, ao englobar as subjetividades, para
aumentar a produtividade e a harmonia. Assim, a partir do momento em que se torna
necessário regular as subjetividades, configura-se uma nova expertise, encarregada de
classificar e medir a psique, predizer e diagnosticar suas alterações e prescrever tratamentos.
Tal expertise confere a estes profissionais a autoridade e legitimidade social de compreender e
agir sobre os indivíduos – institui-se como uma nova autoridade sobre o ‘eu’.
Contudo, estas novas formas de pensar não se restringem às figuras de autoridade, elas
afetam os “leigos” em suas crenças pessoais, desejos e aspirações. As formulações dos saberes
‘psi’ caracterizam o processo de subjetivação das sociedades ocidentais modernas,
reconstruindo a ideia que os indivíduos têm de si próprios, e remodelando as técnicas de
administração de suas emoções. É neste sentido que as construções dos saberes ‘psi’ acerca do
83
luto favorecem uma formulação de novas relações com este evento. Ao estabelecer, por
exemplo, um tempo normal de luto, fases e comportamentos esperados (ainda que com fins
didáticos), cria-se uma expectativa dos próprios indivíduos enlutados, sobre suas reações e
sensibilidades. No governo de si durante a vivência do luto, a percepção de um desvio do
“padrão” (ou sua possibilidade) pode ser considerada como uma ameaça a si ou à sua
adequação social. Cabe, portanto, ao profissional ‘psi’ restaurar ou facilitar o equilíbrio
subjetivo que, de certo modo, foi abalado, a partir da introjeção de suas definições e regras
acerca do luto.
A preocupação de Rose (1988) não é determinar se o conhecimento da vida subjetiva é
uma “verdade” epistêmica, mas como estes sistemas de verdades são estabelecidos, produzidos
e avaliados. Nesse sentido, o autor não entende que tais sistemas reprimem a liberdade do
indivíduo, mas estimulam a subjetividade e a autoconsciência, promovendo a
‘perfectibilidade’. Portanto, os sistemas de verdade são fundamentais na produção de
indivíduos, uma vez que os mantêm “livres para escolher”, conforme seus sentidos orientados
para o auto-aperfeiçoamento e para sentimentos subjetivos de prazer.
Em suma, a subjetividade se tornou um recurso na administração dos problemas sociais,
uma vez que a expertise configurada pelos saberes ‘psi’ atua como forma de ‘governo’.
Entende-se por ‘governo’ “certa forma de buscar a realização de fins sociais e políticos através
da ação, de uma maneira calculada, sobre as forças, atividades e relações dos indivíduos que
constituem uma população” (ROSE, 1988, p. 35). As ações das autoridades têm como objetivo
maximizar as forças de cada indivíduo, minimizar seus problemas e organizá-los da forma
mais eficaz. Portanto, faz-se necessário conhecer os indivíduos. Esse conhecimento deve
transformar aquilo que deve ser governado, no caso as subjetividades, em traços materiais, de
modo que possam ser comparados e contrastados, para que se estabeleça um entendimento
geral e individual. Delimita-se, assim, o território dos saberes ‘psi’ e seu papel-chave na
governamentabilidade dos indivíduos: seus sistemas conceituais geram uma ‘linguagem’ de
análise e uma explicação que fornece o meio que possibilita que a subjetividade e a
intersubjetividade humanas sejam objeto de cálculos das autoridades. Segundo Rose (1988, p.
39), a “avaliação psicológica não é meramente um momento de um projeto epistemológico
(...): ao tornar a subjetividade calculável, elas tornam as pessoas sujeitas a que sejam efetuadas
intervenções com e sobre elas – e que façam coisas a elas próprias – em nome de suas
capacidades subjetivas”.
84
A organização desse conhecimento constitui o que pode ser nomeado de “tecnologias
humanas”, que envolvem a forças e as capacidades calculadas, outras forças (biológicas e
mecânicas, por exemplo) e artefatos, formando redes operacionais de poder. Estas técnicas
organizam os humanos no espaço e no tempo, para alcançar certos resultados, orientados em
função de uma noção ampla de produtividade, que ultrapassa o âmbito do trabalho laboral,
atingindo os momentos de lazer – o sujeito deve consumir cultura (filmes, livros, viagens etc.),
associando o hedonismo à noção de produtividade.
O conhecimento psicológico, enquanto “tecnologia humana”, é estruturado em resposta a
determinado problema, que surgiu em uma circunstância social específica, cuja origem não
predestina somente o tipo de solução proposta. A própria psicologia é composta por diversas
escolas que, muitas vezes, são conflitantes. De todo modo, diferenças e divergências à parte,
em uma perspectiva ampla, o governo é o mesmo, ao se infiltrar sutilmente regulando
existências e experiências, atuando como “técnicas de si”.
Certamente, a diversidade de vertentes da psicologia produzem teorias e terapias do luto
que apresentam divergências conceituais, teóricas, diagnósticas e prescritivas. Contudo, de
modo geral, estas construções dos saberes ‘psi’ produzem ‘verdades’, que delimitam uma
intensidade e um tempo para a vivência das reações decorrentes de uma perda. Mesmo nos
casos em que não é explicitado um tempo específico de superação do luto, devido às inúmeras
variáveis subjetivas e circunstanciais, o entendimento de que as reações se abrandam com o
passar do tempo gera expectativas sobre o sujeito enlutado. A ideia de que este processo pode
ser mais ou menos difícil para cada sujeito e, portanto, se tratar de um processo mais ou menos
longo, promove uma autogestão das emoções e das reações de luto e, até, de busca por
terapias, de modo a facilitar a recuperação, por meio de um reequilíbrio da subjetividade.
As “técnicas de si” envolvidas na regulação das sensibilidades, em torno do processo de
morte e do luto são enquadradas no amplo conceito de biopoder – “campo composto por
tentativas mais ou menos racionalizadas de intervir sobre as características vitais da existência
humana” (RABINOW; ROSE, 2006, p. 28). O biopoder consiste na produção de discursos de
‘verdade’ sobre o caráter ‘vital’ dos sujeitos e suas respectivas autoridades, em estratégias de
intervenção sobre a existência coletiva, em nome da vida e da morte, e em modos de
subjetivação, por meio dos quais os indivíduos agem sobre si próprios, de acordo com os
discursos legitimados e, também, em nome do coletivo.
85
O biopoder não é um mecanismo estatal de repressão. Corpos não-estatais exercem
importante papel nas disputas e estratégias biopolíticas. No âmbito da saúde, por exemplo,
desde o fim da Segunda Guerra, agências estatais e não-estatais adquiriram importância,
constituindo um “complexo bioético em que o poder e tecnologias médicas são reguladas por
novas autoridades (RABINOW; ROSE, 2006, p. 37). Estes biopoderes seguem se
transformando, conforme sua relação com o social. De fato, segundo Rabinow e Rose (2006),
As racionalidades, estratégias e tecnologias do biopoder mudaram ao longo do
século XX, assim como a administração da saúde e da vida coletiva tornou-se um
objetivo chave de Estados governamentalizados, e novas configurações da verdade,
do poder e da subjetividade surgiram para dar suporte às racionalidades do bem-estar e da segurança, assim como aquelas de saúde e higiene. (p. 38).
Rabinow e Rose (2006, p. 48) sugerem um aprimoramento nas ferramentas conceituais,
para uma análise crítica mais refinada, acerca das relações entre a biopolítica, o biocapital e a
bioeconomia. Os autores consideram que o biopoder, que atravessa certas questões, como raça,
sexualidade e, em âmbito mais molecular, o aconselhamento genético, não deve ser entendido
simplesmente como uma questão de eugenia. As técnicas de biopoder podem ser exercidas de
forma mais sutil sobre a saúde e a vitalidade, de modo a beneficiar as relações de mercado –
problemas de saúde física ou emocional são “problemas”, na medida em que afetam a
produtividade do indivíduo.
É neste sentido que a psicologia e psiquiatria exercem poder regulatório. Rabinow e
Rose (2006) se referem a uma pesquisa empreendida por Rose (2006), acerca de uma nova
geração de medicamentos antidepressivos, baseando-se na justificativa de que a depressão se
tornará a segunda maior causa de doença, tanto nos países centrais quanto nos periféricos, por
volta de 2020, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Esta crença (e preocupação)
com a depressão é derivada da concepção humanista de que o sofrimento é resultado de uma
condição clínica subdiagnosticada, da preocupação dos governos com as consequências em
seus orçamentos, devido aos dias perdidos, em decorrência da depressão e, também, do
marketing da indústria farmacêutica, por uma “conscientização da doença”. Assim, é possível
considerar que a busca dos indivíduos por “qualidade de vida” e felicidade é influenciada por
aspectos que extrapolam o campo “privado” e, até, a esfera da subjetividade.
86
6.2 SOFRIMENTO COMO RISCO: UMA SOCIEDADE DO DESEMPENHO
A construção científica acerca do luto é formulada com a finalidade de garantir sua
elaboração, no sentido de aceitação da perda vivida. Diante da necessidade criada de
acompanhamento da equipe de profissionais de saúde sobre o luto, os manuais sobre o tema
indicam orientações para o reconhecimento de características que poderiam facilitar ou
dificultar uma passagem sadia e satisfatória pelo processo de luto. Deste modo, a partir da
configuração de indicadores presentes em cada caso, as intervenções profissionais são
estabelecidas. Em alguns casos, elas assumem o caráter de acompanhamento dos familiares,
em sua trajetória por um luto considerado ‘normal’. No entanto, outros casos exigiriam
intervenções profissionais, a fim de garantir uma devida adaptação à perda. Estas intervenções
podem ser preventivas – evitando ou, ao menos, minimizando uma possível complicação do
processo de luto – ou curativas, agindo sobre um luto pós-morte considerado complicado.
Desde o final do século XX são criados cursos de especialização para profissionais de
saúde – sobretudo psicólogos – em terapia do luto, com uma produção bibliográfica
prescritiva, voltada à prevenção de um “luto patológico”. A busca da produção de uma morte
controlada em uma cena ordenada, harmoniosa e pacífica, conforme o ideal paliativista, denota
um processo de normatização da morte e do luto. O sofrimento acarretado pela situação de
perda, quando não evitado, deve ser vivenciado de forma calma e comedida, para não interferir
neste cenário pacífico construído. É neste sentido que especialistas em luto formulam o que
seria uma experiência normal após uma perda.
A psicologização e a psiquiatrização do luto configuram a normatização deste processo,
na medida em que os sujeitos enlutados se tornam objetos de intervenção externa e interna,
mediante técnicas de si, em nome de suas capacidades subjetivas. A normatização do processo
de luto, a partir de sua apropriação por estes saberes técnicos especializados, naturaliza e
universaliza determinados aspectos considerados ‘normais’, enquanto qualquer possível desvio
é abordado como potencial fator de risco. Pesquisadores e profissionais ‘psi’ consideram que o
luto ‘normal’ pode durar um ou dois anos. Contudo, conforme observado nos manuais sobre
luto, este período não é respeitado para a identificação de indivíduos em risco de luto
complicado. Se o luto representa um risco de provocar um prejuízo maior, ele deve ser
identificado e tratado precocemente. Segundo Walter (2006, p. 76), a preocupação em
identificar o fator de risco antes que ele provoque consequências adversas reflete uma
87
sociedade caracterizada por uma impossibilidade de sofrer e, portanto, obcecada em predizer e
eliminar o risco, garantindo segurança e, até, felicidade – a “sociedade de risco”, conforme
conceituação de Beck (1992).
O indivíduo enlutado deve compartilhar suas emoções com os profissionais de saúde, de
preferência no luto antecipatório ou no momento inicial do luto pós-morte, para que potenciais
riscos sejam detectados, amenizados ou minados. Cria-se uma dupla exigência: o sujeito
enlutado deve compartilhar sua experiência e o profissional deve ser empático – habilidade
explicitamente recomendada pelos manuais. A exigência da publicização do luto, por meio do
compartilhamento com a equipe profissional (ou com os pares, em grupos de apoio) cria uma
expectativa social que pode ser conflitante com as necessidades emocionais do indivíduo
enlutado (WALTER, 2011, p. 255). A abordagem do profissional de saúde institucionalizado
pode não ser convidativa, quando interpretada como intervenção prescritiva, protocolar. O
sujeito enlutado pode desejar privacidade ou compartilhar sua experiência com um profissional
com quem tenha intimidade – que pode não ser o caso do profissional ‘psi’ da equipe
paliativista ou hospitalar. Ao mesmo tempo, este profissional pode considerar esta evitação
como uma resposta reativa, indicativa de um luto ‘adiado’ e, portanto, possível luto
complicado. A ideia de que há um risco no luto que deve ser evitado pode provocar tentativas
terapêuticas obstinadas, ou insistentes recomendações dos familiares, na busca por adequação
do indivíduo que apresenta respostas desviantes da ‘norma familiar’ (WALTER, 2006, p. 75).
A ideia de risco está presente nos manuais sobre luto em dois sentidos: o luto em si como
fator de risco para o desenvolvimento de aspectos prejudiciais, e o destaque de características
internas e externas ao sujeito, que se configuram como fatores de risco para o desenvolvimento
de um luto complicado. Os manuais evidenciam, especialmente, três tipos de luto complicado,
devido à intensidade e/ou duração do sofrimento: o luto adiado, o luto crônico e o luto
traumático. Outra categoria importante é a conceituação do luto antecipatório enquanto
momento propício para intervenções preventivas, agindo sobre os fatores de risco, evitando ou
minimizando uma complicação do luto.
Diante da elaboração de conceitos de lutos complicados e da estipulação de fatores
determinantes ou, ao menos, facilitadores destes quadros, torna-se necessária uma análise do
luto, a partir da categoria de risco. Afinal, qual risco o luto complicado representa para a
sociedade ocidental contemporânea? O que é “complicado” no luto, para que especialistas
determinem fatores de risco associados a este fenômeno?
88
De acordo com Lupton (2003), a categorização de alguma pessoa, objeto ou fenômeno
enquanto ‘risco’ não é passível de explicação por análise meramente racional, tampouco por
uma relação de causalidade, em que uma emoção precede o pensamento lógico em um
processo linear. O risco é um processo permeado por influências socioculturais e, portanto, é
dinâmico e heterogêneo, na medida em que seus entendimentos são constantemente
configurados e reconfigurados. Trata-se de um processo complexo e ambivalente, de modo que
não deve ser representado somente como nocivo e negativo. Em parte, experienciar emoções
intensas e superá-las evidencia uma sensação de autocontrole e de autenticidade da
individualidade (LUPTON, 2013, p. 636).
Para os teóricos da abordagem socioantropológica, as respostas emocionais ao risco não
são conceituadas de maneira análoga à de modelos psicológicos comportamentais, que as
classificam como respostas inerentes e involuntárias a estímulos ameaçadores. As reações
emocionais são entendidas como construções sociais, culturalmente produzidas por
significados compartilhados, e experiências passadas (LUPTON, 2013, p. 636). As emoções
são fluidas, relacionais e contextuais, têm uma história construída em experiências prévias, têm
culturas localizadas no tempo e no espaço, e são coletivas – podem ser compartilhadas, não se
restringem ao indivíduo e à esfera individual.
Uma vez que as emoções se constituem como elemento essencial para a apreensão do
mundo pelo corpo, é na constante relação com outros corpos que as emoções são construídas
culturalmente. Assim, a vivência de determinado fenômeno pelo indivíduo sofre influências
socioculturais. A partir da interpretação – racional e emocional, se é que é possível tal
distinção – coletiva, alguns fenômenos são categorizados como risco, integrando um sistema
de significações sociais, usado na busca por compreensão do mundo.
Na medida em que o risco é construído coletivamente, ele é uma potencialidade. Risco é
a projeção de ideias no futuro, é imaginar as consequências de uma ação ou evento.
Fenômenos são definidos como risco quando considerados como ameaçadores para um
indivíduo ou comunidade. De acordo com Lupton (1997, p. 78), ter conhecimento do risco de
determinada situação faz com que indivíduos tenham atitudes, com a finalidade de se proteger.
Assim, a categorização como “população de risco” pode significar uma oportunidade de
garantir maior controle sobre a situação, possibilitando uma ação, em face da desordem
provocada pela possibilidade de adoecimento. Uma vez que o risco sobre a saúde é
identificado, ele deve ser prevenido. A prevenção ocorre por meio do controle do tempo, na
89
busca por disciplinar o futuro. Na medida em que o risco é apenas uma, entre tantas outras
possibilidades, de que as condições atuais se encaminhem para uma condição patológica, as
intervenções preventivas visam minar ao máximo tais possibilidades, a fim de garantir um
desenrolar sadio, ‘normal’.
É sob esta perspectiva que o luto antecipatório se configura como uma das ideias centrais
no atual processo do morrer influenciado pelo ideário paliativista. Enquanto na relação com o
paciente58
, os pontos chave da atenção podem ser resumidos no controle da dor total e na
manutenção da consciência, preservando ao máximo sua identidade e autonomia, a atenção aos
familiares incide, sobretudo, no âmbito emocional que configura o luto antecipatório. A morte
de alguém próximo pode ser uma experiência caótica, sendo potencialmente prejudicial para o
próprio enlutado e, consequentemente, para seu entorno. Apesar das tentativas de singularizar
o processo da morte, permanece a necessidade de manter este cenário ordenado e controlado.
A atenção ao luto antecipatório com o objetivo de garantir reações controladas e manejáveis é
do interesse do sujeito enlutado, que evita e regula sofrimentos excessivos e suas
consequências, e dos profissionais e instituições de saúde, que mantêm sua rotina sob controle.
Neste sentido, a consciência do risco, na sociedade ocidental contemporânea, assume uma
ótica da responsabilidade. A crença social é que, ao se perceber suscetível a uma situação de
risco à saúde, a conscientização seria suficiente para motivar uma modificação do
comportamento (LUPTON, 1997, p. 82). Assim, categorizar algum evento como risco é
chamar atenção para ele, e reconhecer sua importância para a subjetividade e bem-estar. Deste
modo, o fenômeno do luto se configura como risco, na medida em que é tido como ameaça à
subjetividade e ao bem-estar do indivíduo – e, possivelmente, da coletividade em que ele está
inserido.
Quando indivíduos decidem o que é risco e julgam seu “peso”, avaliam o significado
social do fenômeno e seus valores, baseando-se em sensibilidades. A compreensão e
categorização de risco, portanto, não são estáticos, não seguem necessariamente modelos
preditivos de comportamento. O que é risco para um indivíduo pode não ser para outro. Então,
como considerar manuais que classificam o que é risco no luto e suas respectivas
58 Segundo o ideário paliativista, o paciente também deve ser acompanhado no luto antecipatório da perda de sua
própria vida, a fim de garantir um processo de morrer calmo, pacífico, com seus desejos e vontades atendidos.
Contudo, nos manuais selecionados observou-se maior ênfase no controle fisiológico e sintomático ao ser
abordado o cuidado com o paciente. Considera-se que a dor e o sofrimento físico são as necessidades primárias e
urgentes do paciente, de modo que só é viável atender aos demais aspectos após controle destes sintomas.
90
intervenções? Certamente, os manuais organizam o conhecimento teórico e prático acerca de
determinado tema, auxiliando o profissional a se posicionar. Contudo, tais manuais são
formulados a partir de quais ideias e ideais?
Ao abordar o problema do timing do morrer como a questão central, vinculada às causas
da morte indigna, em que o sujeito não deve morrer “fora do seu tempo” (nem jovem demais
nem velho demais), Kellehear (2016, p. 436) assume uma perspectiva social sobre o tempo.
Tal perspectiva significa afirmar que na cultura ocidental, mais importante do que os tempos
dos movimentos da Terra que “formam” os dias e os anos, o tempo é manipulado de acordo
com as convenções culturais e sociais. Neste sentido, o tempo não é uma ideia de duração
abstrata e neutra, mas uma medida das relações sociais, intrinsecamente ligada a profundos
juízos de valor, associados ao valor econômico e político dos indivíduos, grupos e culturas.
Para Kellehear (2016, p. 437), em acordo com Giddens, o tempo é definido como ingrediente
essencial da identidade e da organização social – é indispensável inclusive para a “ciência do
trabalho”, em que a quantificação da duração de tempo exigida para a realização de
determinada tarefa possibilita um cálculo do custo do produto e do trabalho. Deste modo, o
tempo é elemento fundamental do status que se atribui a determinado indivíduo, de acordo
com seu valor social. Kellehear (2016, p. 438) também se baseia na obra de Elias (1992) sobre
a natureza social do tempo. Para Elias (1992), nos contextos urbanos da sociedade ocidental
moderna, o tempo se relaciona intrinsecamente com os ciclos econômicos e com as
necessidades políticas da sociedade. Assim, o tempo social é organizado em função do
trabalho (em sentido mais amplo que o atual “emprego”), da produtividade.
É neste sentido que Han (2015, p.23) afirma que a sociedade ocidental do século XXI
não é mais definida como uma “sociedade disciplinar” foucaultiana, mas como uma
“sociedade do desempenho”. As técnicas de si não têm como principal objetivo o autocontrole
dos “sujeitos da obediência”. Neste contexto, os indivíduos são mais bem definidos como
‘sujeitos do desempenho e da produção’, são “empresários de si mesmo” (HAN, 2015, p. 23).
Na ‘sociedade do desempenho’, o inconsciente social deseja maximizar a produção e, para esta
finalidade, o paradigma da disciplina – de caráter negativo, pautado na coerção – é substituído
pelo paradigma do desempenho, pelo esquema positivo do poder. “A positividade do poder é
bem mais eficiente que a negatividade do dever” (HAN, 2015, p. 25). Contudo, não significa
que o poder cancele o dever, mas que o poder, por meio da técnica disciplinar, eleva o nível de
produtividade.
91
Esta mudança de perspectiva impõe sobre o indivíduo maior responsabilidade – “os
mandatos e as proibições da sociedade disciplinar dão lugar à responsabilidade própria e à
iniciativa” (HAN, 2015, p. 27). A ênfase sobre o imperativo do dever é substituída pela ênfase
no imperativo do desempenho. O ‘sujeito do desempenho’ está livre da instância externa de
domínio, contudo, há maior peso sobre a instância interna – o indivíduo é senhor e soberano de
si mesmo. A supressão da disciplina não implica em maior liberdade, uma vez que esta se
encontra vinculada à coação. É uma liberdade paradoxal, em que o indivíduo se entrega “à
livre coerção de maximizar o desempenho” (HAN, 2015, p. 29). Neste contexto social, a
depressão é a expressão patológica do fracasso do ‘sujeito do desempenho’, frente ao excesso
de responsabilidade e iniciativa – a depressão é um cansaço de fazer e poder. Portanto, o
depressivo é agressor e vítima ao mesmo tempo.
Nesta atual configuração da sociedade ocidental, a noção de doença está associada à
impossibilidade de desempenho, ou ao menos ao seu comprometimento. É nesta perspectiva
que Kellehear (2016, p. 401) entende o estigma social vinculado ao envelhecimento e ao
indivíduo morredor. A ideia de ‘normal’ está associada à noção de produtividade, aplicada na
ampla vida social econômica – o constante desempenho de si abordado por Han (2015). Deste
modo, o indivíduo aposentado e o doente debilitado são rotulados negativamente, devido à sua
improdutividade.
O sofrimento do luto também tem um tempo determinado (inclusive com implicações
legais, como na licença trabalhista para o luto), em que é socialmente aceito que o sujeito
enlutado esteja provisoriamente improdutivo ou com produtividade parcialmente
comprometida. A extrapolação deste tempo de improdutividade dá margem à conceituação do
luto complicado que, portanto, deve ser tratado por profissionais de saúde e, até,
medicamentado com antidepressivos, em última instância, para viabilizar sua superação e o
restabelecimento do ‘sujeito do desempenho’. Por sua vez, a noção de superação do luto está
vinculada à ideia de retomada do autocontrole do indivíduo sobre seu desempenho. A ideia de
superação engloba os aspectos comportamentais, emocionais e cognitivos, de modo que
indivíduos que continuam falando e relembrando o falecido, para além de um tempo
considerado ‘normal’ podem ser considerados “inconvenientes”, quando não patológicos.
Neste sentido, considera-se que o luto foi superado quando o indivíduo alcança um reequilíbrio
de seu cotidiano, adaptando-se à nova situação – retomando a realização das tarefas diárias e
assumindo o posicionamento de “seguir em frente”.
92
As recentes contribuições científicas da área questionam se o luto ‘adiado’ ou ‘inibido’
deve ser considerado um luto complicado, ou uma capacidade de resiliência do indivíduo.
Enquanto o luto ‘adiado’ começa a ser rotulado positivamente, o rótulo negativo do luto
crônico é cada vez mais legitimado pelos saberes ‘psi’ ao ser incluído no DSM-V como um
transtorno referente ao “luto persistente”. Assim como na depressão, o sofrimento é
patologizado, na medida em que o excesso de duração e/ou intensidade compromete a
produtividade ‘normal’ esperada do sujeito. Deste modo, diante da perda de uma pessoa
querida, o sofrimento inexorável devido ao luto é caracterizado como situação de risco para o
indivíduo enlutado. A partir desta análise crítica não se pretende questionar a legitimidade de
um sofrimento patologicamente significativo. Interessa aqui evidenciar que a patologização do
luto e a atenção preventiva despendida ao enlutado consistem em práticas culturais deste
contexto social, em que o indivíduo é responsável pela maximização de seu desempenho
produtivo.
A construção de saberes sobre o luto, a partir da delimitação de uma vivência esperada e
de outra passível de intervenção por ser considerada como ameaça à saúde e à vida, propicia a
criação de regras a serem interiorizadas. A construção desses saberes produz um novo grupo
de sintomas e, consequentemente, novas necessidades cultivadas. É neste sentido que
propostas são elaboradas para cuidar do luto preventivamente, para que ele não “evolua” para
uma experiência patológica, sendo necessário um controle, externo e/ou interno, sobre a
duração e intensidade das emoções e comportamentos – a ideia de um controle interno sobre o
próprio sofrimento implica uma responsabilização sobre o indivíduo exigindo um autocontrole
em função do seu desempenho. Na medida em que saberes, práticas institucionais e
profissionais são reconfigurados, com uma oferta de modelos para elaboração de perdas, com a
possibilidade de intervenção de “experts da conduta humana”, novas
sensibilidades/insensibilidades são produzidas socialmente.
93
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cultura de uma sociedade se transforma com o tempo, seus valores e noções de pessoa-
indivíduo-coletivo se modificam, e se refletem nas práticas sociais de cada contexto. Na
sociedade ocidental contemporânea, marcada por valores individualistas, que prezam a
autonomia, o livre-arbítrio, a singularidade e a busca do prazer, a mera longevidade não é
suficiente, se ela for acompanhada pela perda de características identitárias – a busca é pela
otimização do tempo de vida, de acordo com estes valores. É este contexto que possibilita a
elaboração e a divulgação do ideário dos Cuidados Paliativos, que, mais do que uma
especialização, se apresenta como uma proposta de uma nova medicina.
Diante dos limites de uma medicina curativa, o foco das práticas médicas se desloca, do
combate da doença para o cuidado do doente. No modelo de morte “moderna”, o processo do
morrer é longo e vivido em etapas. As sucessivas perdas das funções vitais são compensadas
por um complexo maquinário, que possibilita uma manutenção artificial da vida. A partir do
momento em que as máquinas podem garantir a manutenção da alimentação, dos batimentos
cardíacos e da respiração, é a perda definitiva e irreversível das funções cerebrais que
determina a morte. Uma vez que a morte se torna alvo da ação e eficácia técnica da medicina,
o processo do morrer geralmente termina após longo período de hospitalização em que, antes
de perder suas funções vitais, o indivíduo já havia perdido seu poder de escolha.
Os Cuidados Paliativos surgem de movimentos que indicam uma insatisfação social,
com adesão de membros da classe médica, frente a esta forma de assistência rotinizada,
mecânica e asséptica, que promove um processo de desumanização e assujeitamento do doente
na instituição hospitalar. A ideologia paliativista propõe uma nova prática, ativa e integral, em
relação ao doente considerado como “fora de possibilidades terapêuticas de cura”. A fim de
propiciar uma “boa morte” com “qualidade de vida”, a assistência profissional é direcionada à
totalidade “bio-psico-social-espiritual” do enfermo, que assume papel ativo em seu processo
terapêutico. As intervenções profissionais são direcionadas aos desejos e vontades do paciente,
oferecendo conforto, mediante controle da dor e dos sintomas, possibilitando uma expressão
de seus sentimentos e desejos. Assim, neste modelo de morte “contemporânea”, é necessária
uma “comunicação franca” entre os sujeitos envolvidos no processo de morrer, para que o
enfermo possa efetuar suas escolhas terapêuticas com consciência. A assistência deve ser
oferecida por uma equipe multiprofissional, capaz de abranger o cuidado da totalidade do
94
indivíduo e de seus familiares. No contexto contemporâneo, em que a vida do sujeito é
considerada única e singular, ela é sagrada, e o processo de morrer se torna “humanizado”,
para garantir “autonomia” e “dignidade”.
Este processo só é possível mediante uma aceitação social da morte pelos atores sociais
envolvidos na assistência. Deste modo, diante da notícia de uma morte iminente, os
profissionais de saúde consideram normal que o enfermo e seus familiares vivenciem algumas
fases de padrões de respostas emocionais, até alcançarem uma resposta adaptativa de
aceitação. O modelo pioneiro desta perspectiva, elaborado por Elizabeth Kübler-Ross,
descreve cinco etapas: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Na medida em que
os Cuidados Paliativos almejam produzir uma “boa morte”, mediante aceitação do processo do
morrer, a análise crítica considera que este cuidado representa uma expansão do território de
intervenção médica – para além do âmbito físico e biológico, aspectos psicológicos, sociais e
espirituais também são alvos de habilidades e saberes técnicos específicos. A intimidade passa
a pertencer à esfera de controle médico. A experiência do morrer é medicalizada em sentido
mais amplo, estabelecendo novas normas e controles externos e internos, em prol da garantia
de adequação das reações frente à morte.
O modelo de morte “contemporânea” é legitimado socialmente, como uma nova gestão
do processo de morrer, embora não se deixe de perceber uma coexistência de características do
modelo de morte “moderna”. Nesta nova relação com a morte, que busca reinseri-la na ordem
natural da vida, o luto se configura como objeto de saber científico. Este processo da
apropriação do luto pela ciência culmina na recente elaboração de um transtorno metal
relacionado ao luto no DSM-V, publicado em 2013, indicando que há uma possibilidade de
vivência patológica do evento. Diante da noção de que haveria uma vivência normal e outra
patológica, evidencia-se o luto como um fenômeno passível de controle mediante intervenções
científicas – função “assumida” pelos saberes ‘psi’.
É neste sentido que esta pesquisa objetivou uma apreensão da constituição do corpus
teórico dos saberes ‘psi’ acerca do luto na contemporaneidade, no qual se baseiam as
prescrições terapêuticas a ele referidas. A análise desta construção teórica e prática objetivou
evidenciar a formulação das prescrições presentes neste corpus teórico, identificando os
saberes necessários atribuídos aos profissionais, no manejo do luto e identificar as
características do luto que indicariam a demanda e indicação de acompanhamento ou
intervenção profissional.
95
Uma vez que as construções científicas surgem em resposta às demandas sociais, as
teorias e práticas elaboradas refletem ideias e valores presentes em determinado contexto
sociocultural. Por sua vez, ao adentrar as práticas sociais, essas construções científicas acabam
por produzir sensibilidades e subjetividades na sociedade. A partir desta perspectiva, a
metodologia considerada mais adequada para a realização desta pesquisa foi a análise
documental. Por meio da análise do discurso contido nos manuais e livros-texto, elaborados a
partir do final do século XX e destinados aos profissionais de saúde, foi possível destacar
conceitos e prescrições orientadas a uma nova gestão do processo de luto característica da
cultura ocidental contemporânea.
A seleção dos documentos inicialmente centrou-se em manuais nacionais e
internacionais de Cuidados Paliativos, por entender que este ideário de uma nova prática
médica indica uma nova gestão do processo de morte e, portanto, do luto. Esta percepção foi
confirmada, com a constatação de que a origem de manuais específicos sobre luto é posterior à
existência dos manuais paliativos. Ademais, a análise dos manuais de luto confirmou que seu
conteúdo reforçava e ampliava as construções do ideário paliativista sobre o tema. Portanto,
constatou-se que o material selecionado, publicado a partir da década de 1990, evidencia um
novo saber e, consequentemente, uma nova demanda de atendimento especializado, mediante
um processo de interiorização de novos valores sociais. A apropriação deste fenômeno pelos
saberes ‘psi’ fornece um modelo de elaboração dos eventos traumáticos ou de perda ocorridas
na vida, e uma possibilidade de ação, pela nova classe de especialistas em luto, tanto com
propostas curativas de uma vivência patológica, como intervenções preventivas.
Para fins didáticos, o conteúdo foi dividido em duas partes: construções teóricas
(conceitos e modelos teóricos) e construções orientadoras das práticas profissionais (fatores de
risco, prescrições e tratamentos). Observou-se que, quando consta, o conceito de luto ‘normal’
é apresentado de forma ampla, como fenômeno biológico universal na espécie humana (e
também em outros animais), que é vivenciado de formas diferentes, conforme a cultura em que
se insere. Por outro lado, as noções de lutos considerados complicados, apesar das
divergências apresentadas pelos autores, são bem delimitadas e conceituadas. Esta constatação
confirma a ideia de que a construção dos saberes ‘psi’ emerge da reflexão do que é
considerado problemático, perigoso ou patológico para determinada sociedade. Neste sentido,
o luto complicado não deve ser considerado como desviante, uma vez que é a norma que surge
a partir do que é considerado complicado.
96
Uma vez que a gestão do processo de morte preconiza uma aceitação deste evento, os
modelos teóricos sobre o luto são elaborados em torno da ideia de superação. Assim, o luto é
entendido como um período de desordem no funcionamento comportamental, cognitivo e
emocional do sujeito. Na medida em que a desordem prejudica o desempenho do indivíduo, a
superação do luto é definida pela ideia da restituição do equilíbrio, conforme sua condição
prévia ao evento da morte.
Deste modo, em geral, o luto é definido como complicado, na medida em que sua
duração e intensidade são consideradas atípicas. A falta ou breve demonstração de sofrimento
ou sua exacerbação são indicadores de que a elaboração daquele processo de luto será
comprometida. A mensuração da intensidade é uma tarefa subjetiva – com exceção de
comportamentos suicidas relacionados ao luto, é a percepção do indivíduo de um prejuízo
sobre seu funcionamento padrão que indica o “peso” de determinado sintoma. Quanto à
delimitação da duração, geralmente considera-se complicado o luto intenso por mais de um
ano, apesar da formulação do diagnóstico muitas vezes em período anterior. Constatou-se que
os manuais mais recentes tendem a não considerar o luto “ausente” ou “inibido” como uma
situação de risco ou patológica. Casos em que o indivíduo logo retoma seu funcionamento
‘normal’ são reinterpretados positivamente, como demonstração de resiliência – característica
valorizada na cultura de desempenho, da sociedade ocidental contemporânea.
O luto é um fenômeno comum à vida que, por causar sofrimento, interferindo no ideal
hedonista da cultura ocidental, deve-se garantir sua superação. As pesquisas sobre o tema são
destinadas à determinação de fatores que podem colocar em risco este objetivo final. Diversas
características são destacadas nos manuais como potenciais fatores de risco. Contudo, o
prognóstico permanece subjetivo, uma vez que a caracterização do risco é uma condição
multifacetada. As variáveis, em sua maioria, se referem à intimidade do indivíduo: fatores
relacionados à sua vida afetiva na infância, à sua personalidade, à sua relação com o falecido, e
ao contexto e processo da morte. A fim de prevenir uma complicação ou agravamento de um
luto considerado complicado, o enlutado deve compartilhar suas emoções com profissionais de
saúde, que devem oferecer uma escuta empática. Diferentes propostas de prevenção ou
tratamento são delineadas, conforme as linhas teóricas que as embasam e ao tipo de luto a que
se referem. De todo modo, a intimidade se configura como alvo de intervenções normativas
dos saberes ‘psi’.
97
O luto se configura como um importante e complexo objeto a ser estudado na sociedade
ocidental contemporânea. O inevitável sofrimento causado pela morte de alguém próximo é
entendido como uma ameaça ao equilíbrio físico, psicológico, emocional e social do indivíduo.
Por um lado, as propostas terapêuticas profissionais e leigas, com os grupos de apoio,
promovem um compartilhamento do luto, propondo uma aceitação social do sofrimento. Por
outro lado, estas práticas, ao normatizarem o sofrimento, afirmando o imperativo da superação
(ou, ao menos, de otimização) não estaria reafirmando o estigma social da morte e do luto? Em
outras palavras, a proposta de aceitação social da morte, afinal, não poderia ser entendida
como uma espécie de renovação e refinamento da ideia de tabu da morte, na medida em que a
gestão da morte se torna visível, mas o sofrimento continua limitado e controlado?
A construção científica sobre o luto reflete em suas características, os principais valores
fundantes da sociedade ocidental contemporânea: a autonomia, a singularidade e a busca do
prazer. Assim, em uma cultura que tem o indivíduo como seu valor máximo e central, o luto é
vivenciado como uma experiência única e singular. Uma vez que o indivíduo se constitui a
partir de suas experiências, aproveitando-as em busca do constante aperfeiçoamento de si, o
luto é mais uma oportunidade de alcançar sua interioridade, sua verdade e perfectibilidade.
Desta forma, a ideia de superação do luto não concerne apenas à noção de prevenção ou
tratamento do luto complicado, o indivíduo deve fazer uso do sofrimento causado pela perda,
em função de seu crescimento pessoal.
A fim de garantir uma otimização da experiência do luto, é preciso conhecer a
intimidade do sujeito. São os saberes ‘psi’ que fornecem a linguagem dos aspectos modernos
característicos do sujeito, ao mesmo tempo em que os constroem. Assim, a experiência de luto
se configura como objeto destes saberes, que promovem a ideia de superação. Deste modo, a
delimitação e a preocupação em minar possíveis fatores de risco não objetivam somente evitar
prejuízos para o indivíduo e seu entorno, mas promover um processo de aprendizagem de si,
no processo de adaptação à nova realidade.
A psicologização e a psiquiatrização do luto configuram a normatização desta
experiência, em tese, singular. Na medida em que a intimidade deve ser objeto de escrutínio,
para garantir a otimização do sofrimento do luto, as noções promovidas por estes saberes
promovem um controle externo (por meio de intervenções ‘psi’) e interno (pelas técnicas de
si). O processo de subjetivação referente ao luto implica em uma adequação das normas
98
direcionadas não só à manutenção do equilíbrio (do sujeito e do coletivo) pré-mórbido, como à
potencialização do constante desempenho do indivíduo, rumo à perfectibilidade.
O luto é um fenômeno multidimensional, presente nas relações intersubjetivas que, por
meio de seus poderes, conecta pesquisadores, profissionais de saúde, o doente, seus familiares
e círculo de sociabilidade. Assim, as raízes do luto contemporâneo não residem apenas no
“mundo interno” do indivíduo, as (in)sensibilidades relativas ao processo são negociadas em
sua rede social, composta por atores sociais e tecnologias. Deste modo, esta análise crítica
quanto à formulação da noção de um luto complicado, não tem como finalidade questionar a
existência de um exacerbado, e até patológico, sofrimento devido à morte. Questiona-se aqui a
apropriação do luto, pelos saberes científicos contemporâneos, na intenção de reduzir a
inconveniência do sofrimento, substituindo a desordem associada a este sentimento pela
ordem, previsibilidade e, até, felicidade.
99
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