Responsabilidade Civil Jogos

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Julgado do TJRJ que reconheceu a responsabilidade civil do fornecedor de serviço que baniu o usuário, sem justificativa, do jogo.

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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL

Ap. Cível nº 0011124-91.2008.8.19.0002 - fls. 1/7

ACÓRDÃO EM APELAÇÃO CÍVEL PROCESSO nº 0011124-91.2008.8.19.0002 APELANTE: LEVEL UP INTERACTIVE S A APELADO: VINÍCIUS SILVA DE SOUZA RELATOR: DES. ANTÔNIO ILOÍZIO BARROS BASTOS

INDENIZATÓRIA. BANIMENTO DE JOGOS VIRTUAIS FALTA DE COMPROVAÇÃO DE CONDUTA DESLEAL DO CONSUMIDOR/JOGADOR DANO MORAL CONFIGURADO Participante de jogos virtuais que, em razão de alegada aquisição ilícita e em duplicidade de itens do jogo, foi permanentemente banido do site. Conduta ilícita não comprovada. Além disso, as normas do jogo previam, na época da suposta fraude, pena de apenas um dia de suspensão. A regra de irretroatividade de punições também é aplicada na seara contratual. O Direito e a realidade se conformam em uma simbiose de tal maneira que podem nascer novas formas de soluções dos problemas da vida, ou mesmo ser aplicadas às novas realidades soluções pré-existentes. Por isso a internet e sua realidade virtual não podem ficar de fora dessa interação. Por assim dizer, e levando em conta uma interpretação evolutiva, afigura-se razoável impor à imagem virtual a mesma sorte a que é condenada a imagem humana real, notadamente em casos concretos semelhantes, além do que sempre por trás de um participante de competição virtual existe uma pessoa com sentimentos e dignidade, pelo que resta claramente configurado dano moral, tanto mais que o nickname do Autor permaneceu à vista de todos como banido. Sentença mantida. Negado provimento ao recurso.

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Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação cível nº. 0011124-91.2008.8.19.0002, em que é apelante LEVEL UP INTERACTIVE S A e apelado VINÍCIUS SILVA DE SOUZA,

ACORDAM os integrantes desta Décima Segunda Câmara

Cível, em sessão realizada nesta data e por unanimidade de votos, em conhecer e negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Relator.

Trata-se de ação ajuizada por VINÍCIUS SILVA DE SOUZA

em face de LEVEL UP INTERACTIVE S/A, sob o rito sumário, objetivando a compensação dos danos morais experimentados, bem como a condenação na obrigação de fazer consistente no restabelecimento do serviço de conta oferecido pela Ré.

Aduz o Autor que mantém junto à Ré, desde 12/2006, uma conta

de jogo on-line identificada com o nome de r2d2000 – Nick: Goldenaxe; que se trata de serviço para entretenimento via internet; que em 30/11/2007 foi punido com o cancelamento de sua conta em razão de uso de “bug exploit” (duplicação de itens virtuais mediante o sistema de back up do jogo), quando o regulamento dispõe que a punição para esse tipo de ocorrência dura apenas um único dia; que não tinha como identificar a duplicidade do item em questão; que tentou resolver o imbróglio junto à central de atendimento da Ré, mas não logrou êxito; e que foi lançado em lista de punidos disponibilizada para membros do jogo, não tendo chance de se explicar nem ao grupo com quem firmara contato, nem à própria Ré, experimentando por isso dano moral.

A Ré, em sua resposta de fls. 41/54, preliminarmente suscita

impossibilidade jurídica do pedido autoral. No mérito, discorre sobre o funcionamento do fato gerador da punição, aduzindo que o Autor utilizou reiteradamente junto a outro usuário indevida e maliciosamente o mecanismo de back up do jogo, e com isso pôde duplicar itens virtuais valiosos; discorre, ademais, sobre a falta de boa-fé no comportamento perpetrado e sobre as regras do jogo em questão. Aduz ainda que inexiste dano moral caracterizado e por fim afirma também ser exorbitante o valor pleiteado a título de danos morais.

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O processo culminou na sentença de fls. 126/129 na qual foram julgados procedentes os pedidos para condenar a Ré a restabelecer a conta do autor no jogo nos exatos moldes em que se encontrava em 26/11/2007, e ao pagamento do valor de R$ 1.000,00 (mil reais) a título de danos morais.

A Ré apela às fls. 131/151, basicamente reprisando o que

argumentara em sua peça de bloqueio, trazendo à baila apenas um fato novo não ventilado no processo.

O recurso é tempestivo e foi recebido à fl. 154. Contrarrazões

apresentadas às fls. 156/159. É o relatório. Passa-se ao voto. De início é importante destacar os limites da controvérsia ora em

exame, e neste particular destacam-se dois pontos concretos, quais sejam, a qualidade da conduta do Autor e o tipo de punição a ele imposta.

No que se refere à qualidade da conduta do Autor, ora Apelado,

faz-se presente o princípio da presunção de inocência; nessa esteira vige o in dubio pro consumidor do serviço. De fato, pelo que relatado, os itens virtuais representam qualidades meritórias do jogador. O problema é que se de um lado a Apelante afirma que “se o jogador negocia 1 item, ao final da negociação dever ter apenas 1 item e não 2, nem 3, nem 4” (fl. 136), de outro lado, o Apelado alega em sua peça inicial que não era possível distinguir o item verdadeiro do item falso.

Ora, não ficou claro nem provado, e essa missão era da Apelante,

que não é possível a duplicação de itens virtuais ser, p.ex., fruto da combinação de mérito com negócio celebrado entre jogadores. Em outras palavras, era preciso mostrar que o Apelado tinha ciência de que a duplicidade conforme acontecido só podia ser fruto de “bug exploit”, sob pena de não restar provada a tão invocada malícia apontada pela Apelante.

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Por outro lado, além de invocar dolo expresso pela malícia, a Apelante suscita que o Apelado obrou sem a devida boa-fé objetiva que dele se esperava. Neste particular, se faz presente também o que acima ventilado, ou seja, se em tese o Apelado desconhece que a duplicidade conforme ocorrida só poderia ser fruto de “bug exploit”, não vai se preocupar em sempre que adquirir itens virtuais valiosos entrar em contato com a Apelante para confirmação da operação, isso seria exigível caso fosse previsto em regulamento, o que revelaria a vulnerabilidade do jogo.

Que a operação de duplicidade de itens virtuais a partir do

mecanismo de back up do jogo é desleal isso não há dúvida, tampouco que tal operação enseje punição, mas não se pode descurar da imperiosa necessidade de se provar a possibilidade de prévia ciência do jogador quanto aos meandros de aquisição desses itens virtuais meritórios, a fim de que se tenha certeza que na hipótese concreta ora em exame o jogador tinha conhecimento mínimo que exige dele ao menos a comunicação da ocorrência à mantenedora do jogo.

Em suma, por mais que a Apelante tenha provado o artifício do

“bug exploit”, não logrou em provar que o Apelante tenha agido com malícia ou que este tinha prévio conhecimento a exigir dele desconfiança da operação e consequente comunicação à Apelante, em observância de uma postura pautada na boa-fé objetiva.

No que se refere ao tipo de punição, em que pese a Apelante à fl.

138 ter trazido à baila dado novo até então não veiculado no processo, qual seja, a de que informou em 28/11/2007 aos usuários do serviço de entretenimento que iria punir com bloqueio permanente as contas envolvidas na prática de “bug exploit”, cabe aqui apresentar uma consideração importante.

Segundo a documentação colacionada pela Apelante, a operação

de duplicação ocorreu em 15/11/2007 (fl. 80), ou seja, o fato gerador da punição foi anterior à comunicação acima aludida. A tabela de punições disponibilizada no sítio eletrônico da Apelante, e juntada às fls. 18/20, data de 29/11/2007. Sendo assim, a toda evidência, como esse fato gerador não é diferido no tempo, não

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seria cabível a retroatividade de uma punição atingindo fatos já consumados. Trata-se de regra basilar que permeia também as punições contratuais.

A retração in pejus contra o consumidor, na espécie, ainda mais

quando se leva em conta a falta de prova contundente quanto à qualidade de sua conduta, afigura-se, ainda que em homenagem à demanda coletiva dos usuários, violadora de um direito individual fundamental, qual seja, a da irretroatividade da punição, norma que pode ser extraída do inciso XL do art. 5º da CF (a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu).

A propósito, vale ressaltar lição do Ministro Eros Grau: “A interpretação se processa da seguinte forma: tenho o texto e tenho a realidade. Interpreto o texto e também considero a realidade, construindo a norma geral. Extraio do texto a norma que preexiste lá, mas que é conformada também pela realidade.” (Técnica Legislativa e Hermenêutica Contemporânea in Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. Atlas, 2008, pg.286) Ou seja, no processo exegético, o intérprete tira do enunciado

que prescreve “lei penal” a norma a ser aplicada na realidade fática contratual, em que se prevêem punições ao contratante, de modo que persista também nesta seara a norma de não retração em prejuízo da pessoa.

Releva salientar que, diferentemente do que alega a Apelante,

não existem nos autos “diversos” documentos que contrariem a tabela de punições juntada pelo Apelado às fls. 18/20, no máximo o único dado contrário seria a menção de tabela feita na contestação à fl. 49, que, diga-se de passagem, não tem qualquer comprovação, nem ao menos o endereço eletrônico que confere rastro de legitimidade tanto à citada tabela quanto à informação de fl. 138 apresentada no apelo como dado novo, que por sinal, a rigor, não foi endereçada ao Apelado, mas sim ao usuário “Lothos”, membro desde 2007, sendo certo que o Apelado é membro desde 2006.

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Quanto à condenação à restituição ao status quo ante, por óbvio, o julgador de primeiro grau não pretendeu em seu julgamento restabelecer uma situação de irregularidade, a toda evidência, a condenação consiste em se aplicar ao Apelado, já que constatado em sede processual a ocorrência do “bug exploit”, a punição que lhe era devida ao tempo do cometimento da infração, e não outra mais grave posteriormente criada no calor das demandas dos usuários do serviço.

Por fim, é cediço que não pode o Direito ficar alheio às

peculiaridades do moderno, do atual; a internet é uma realidade, e como realidade deve ser conformada pelo Direito. Em verdade, no próprio processo de interpretação, conforme acima aludido, para se alcançar a norma deve-se confrontar e conformar a realidade e o enunciado. Existe entre esses elementos uma espécie de simbiose que pode trazer novas formas de resolver os problemas da vida, ou mesmo, através de uma interpretação evolutiva, trazer ao campo das soluções pré-existentes novas realidades.

Nesta perspectiva, não se pode dissociar a imagem virtual da

imagem real, sendo certo conferir àquela a mesma sorte a que se condena esta. Ora, ponto pacífico neste momento do processo é o fato de que a imagem do Apelado, ainda que virtual, ficou “no ambiente virtual” exposta em lista desabonadora por tempo bem superior do que o devido, gerando evidentes transtornos aos seus conhecidos e amigos.

Essa realidade nos remete à solução sugerida na Súmula 89 do

TJRJ, segunda a qual é “razoável, em princípio, a fixação de verba compensatória no patamar de ate 40 (quarenta) salários mínimos, em moeda corrente, fundada exclusivamente na indevida negativação do nome do consumidor em cadastro restritivo de credito”. Ou seja, a figuração em cadastro restritivo desabonador por tempo superior ao devido afigura-se como motivo exclusivo e determinante à condenação por danos morais daquele que manteve negativado o nome e imagem virtuais.

Acresce notar que como se exige repercussão, esta é virtual,

natural do próprio ambiente, mas não se pode olvidar quanto à repercussão

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interna à pessoa, mesmo porque, em última análise, por trás da pessoa virtual há sempre uma pessoa humana real, com sentimentos e dignidade, de modo que uma experiência que no mundo real enseja flagrante dano moral, o fato de o nome e imagem serem virtuais tem quando muito efeito somente no quantum debeatur, jamais no an debeatur, e neste diapasão afigura-se razoável a fixação de mil reais conforme determinado pelo julgador a quo.

Por tais fundamentos, voto no sentido de negar provimento ao

recurso, mantendo íntegra a sentença. Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2010.

Antônio Iloízio Barros Bastos DESEMBARGADOR

Relator

Certificado por DES. ANTONIO ILOIZIO B. BASTOSA cópia impressa deste documento poderá ser conferida com o original eletrônico no endereço www.tjrj.jus.br.Data: 22/09/2010 10:24:08 Local Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro - Processo: 0011124-91.2008.8.19.0002 - Tot. Pag.: 7

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