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Revista Eletrônica da Faculdade Dinâmica
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APRESENTAÇÃO
A Revista Ciência Dinâmica é um periódico semestral editado pela Faculdade
Dinâmica do Vale do Piranga, em Ponte Nova/MG.
Aberta aos professores, convidados e, principalmente, aos acadêmicos da
Faculdade Dinâmica, a revista tem por finalidade precípua a publicação dos primeiros
trabalhos elaborados pelos alunos, contribuindo para incentivo à iniciação científica e a
expansão do conhecimento nas áreas das Ciências Jurídicas e Sociais.
A revista está disponível no endereço eletrônico www.faculdadedinamica.com.br
e, em breve, também em meio impresso.
A Revista Ciência Dinâmica tem a missão de constituir-se em um periódico
qualificado, fomentado preferencialmente por artigos elaborados pelos acadêmicos do Curso
de Direito da Faculdade Dinâmica, propiciando, através do estímulo à reflexão científica, o
amadurecimento, a ampliação do conhecimento e a consolidação dos ensinamentos teóricos
absorvidos na Faculdade, contando, ainda, com a valorosa contribuição de professores da
Instituição e de professores convidados que só vem enriquecer o conteúdo da publicação.
Conselho Editorial
Revista Ciência Dinâmica®
Editora: Faculdade Dinâmica
Ano I, n° 3, 1° Semestre 2010
ISSN – 2176-6509
_________________________
Conselho Editorial: Prof. Dr. José
Luiz Quadros de Magalhães, Prof.
Leilson Soares Viana, Prof. Mestre
Bernardo Gomes Barbosa
Nogueira, Prof. Mestre José
Carlos Henriques, Prof. Ramon
Mapa da Silva, Prof. Ernane
Salles.
________________________
Revista Ciência Dinâmica.
Faculdade Dinâmica do Vale do
Piranga. Rua G, n° 205, Bairro
Paraíso. Ponte Nova-MG.
Contato: (31) 3817-2010
revista@faculadedinamica.com.br
www.faculdadedinâmica.com.br
________________________
É proibida e reprodução, no todo
ou em parte, dos artigos
publicados nessa Revista sem
prévia autorização dos seus
autores, resguardado o direito de
citações com expressa referência à
sua fonte.
Copyright©
Todos os Direitos Reservados
Ponte Nova – 2009/2
________________________
Formando Pessoas!
EDITORIAL
Se da continuidade de um trabalho podemos inferir algo em relação à
necessidade do mesmo, podemos dizer que essa edição da Revista Ciência
Dinâmica – Revista Científica Eletrônica da Faculdade Dinâmica reafirma
não só o compromisso da Faculdade Dinâmica em atender à necessidade
crescente de pesquisa científica responsável e socialmente engajada, como
também à vontade de levar o conhecimento científico produzido na
instituição para a comunidade, sempre carente de veículos que
possibilitam, mais do que informação, reflexão sobre aspectos profundos
de sua própria vivência.
Entre a vida e a ciência reside um abismo longo e, muito
possivelmente, intransponível. Isso se dá porque a ciência é pouco mais
que uma representação racionalizada da vida, representação que nunca é, e
não pode ser, completa. Também a arte não é vida, mas uma representação
estética da mesma, o que explica a resposta de Cézanne a um interlocutor
que o perguntara sobre a figura de um cão verde que o pintor acrescentara
em um quadro, alegando que não existiam cães verdes: “mas isso não é
um cão, é um quadro”. A ciência está para a vida como os cães pintados
de Cézanne estão para os cães reais, como uma representação, uma
maneira de se enxergar.
As páginas que se seguem estão repletas de representações. Em si, elas
representam o enfrentamento não só de problemas que a reflexão teórica
gera, mas o tatear de dimensões existenciais e sociais que vivemos e
dividimos mesmo sem saber. Tão logo as páginas a seguir forem fechadas
a vida continuará, como não poderia deixar de ser, mas com outras
matizes, outras cores, porque filtrada pela reflexão e pelo olhar fino da
representação científica. Se existe algo em comum entre todos os textos
aqui presentes é essa tentativa de criar pontes entre o abismo da ciência e
o da vida. O sucesso da empreitada é condicionado mais pela ação do
leitor, sua argúcia, sua perspicácia e crítica, do que pela qualidade do texto
ou o tema abordado. E é esse leitor, o que vivencia o que lê, que nos
interessa, é para eles que essas linhas existem.
Aos autores nosso muito obrigado, em especial aos docentes que
mantêm a experiência da pesquisa e do estudo cada vez mais forte e viva.
Aos leitores nossos desejos de boas e instigantes leituras e que encontrem
nessas páginas elementos para repensar a vida, em qualquer aspecto que
seja, e assim, torná-la um pouco mais digna de ser vivida.
PROF. RAMON MAPA DA SILVA Coordenador do NAP – Núcleo Acadêmico de Pesquisa
Faculdade Dinâmica
SUMÁRIO
Apresentação ............................................................................................................................ 1
Editorial .................................................................................................................................... 2
Índice de Autores ..................................................................................................................... 4
1. A separação conjugal e os conflitos pós-separação: o retorno ao judiciário. .............. 5
2. Da possibilidade de incidência do contraditório e do direito de defesa na fase pré-processual ........................................................................................................................ 26
3. Estado de Exceção e crítica ao parlamentarismo em Carl Schmitt ............................ 43
4. Gestão Municipal – novos rumos da administração gerencial .................................... 54
5. Sobre Remédios Constitucionais e Direitos Petitórios ................................................. 66
6. A segurança jurídica trazida pelo serviço notarial e registral aos cidadãos .............. 84
7. A penalização em sindicância administrativa disciplinar. ........................................... 97
8. Pós-positivismo e argumentação jurídica: reflexão à luz do conceito de Direito .... 109
9. A função social da empresa em relação a função social da propriedade. ................ 122
ÍNDICE DE AUTORES
Daniel Pereira Delvaux – Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica de Ponte Nova.
Dênio Guilherme dos Reis – Especialista em Direito Público pela FADOM. Doutorando em Ciências Jurídicas
e Sociais Universidad del Museo Socio Argentino. Professor Universitário nas áreas de Direito Civil, mais
especificamente Direitos Reais e Contratos. Pós Graduando em Direito Notarial e Registral pela Faculdade
Milton Campos. Oficial de Registro de Imóveis de Jequeri-MG.
Erika Cristina Nunes – Bacharel em direito e integrante do PICV 2008 e PIBIC 2009 da PUCMinas
Flaviana Maria da Silva – Acadêmica do 5º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale
Piranga.
Harrysson Luiz da Silva – Pós-Doutor em Ergonomia Cognitiva -UFSC- IGETECON
Hugo Garcez Duarte – Mestre em Direito “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade
Presidente Antônio Carlos de Juiz de Fora/MG; Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido
Mendes/RJ. Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas
Gerais/MG.
Iglesias Fernanda de Azevedo Rabelo – Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa; Mestra em
Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa; advogada e Professora do Curso de Direito da
Faculdade Dinâmica em Ponte Nova/MG.
Karla Maria Damiano Teixeira – PhD em Ecologia Familiar e Infantil, Profª Adjunta do Departamento de
Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa.
Leonardo Augusto Marinho Marques – Advogado e Professor de Direito Processual Penal da PUCMinas
Márcia da Rocha Rodrigues – Aluna do 8º Período do Curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Dinâmica
do Vale do Piranga.
Maria das Dores Saraiva de Loreto – Pós-Doctor em Família e Meio Ambiente, Profª Associada do
Departamento de Economia Doméstica da Universidade Federal de Viçosa.
Ramon Mapa da Silva – Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC – MG), Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Presidente Antônio
Carlos – UNIPAC, Professor do Curso de Direito da UNIPAC de Itabirito e da Faculdade Dinâmica de Ponte
Nova.
Suely Vidal José – Acadêmica do 5º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale Piranga.
Tatiana Rosmaninho Andrade – Acadêmica do 8º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do
Vale Piranga.
Thamara Tereza Linhares Gomes – Acadêmica do 8º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do
Vale Piranga.
Vagner Adriano Ferreira – Acadêmico do 8º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale
Piranga.
Vagner Adriano Ferreira – Aluno do 8º Período do curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Dinâmica do
Vale do Piranga.
Walace Marçal Viana – Acadêmico do 5º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale Piranga.
Walter de Laia Rocha – Acadêmico do 8º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale
Piranga.
Wanderson Gutemberg Soares – Bacharel em direito e integrante do PICV 2008 e PIBIC 2009 da PUCMinas.
5
A SEPARAÇÃO CONJUGAL E OS CONFLITOS PÓS-SEPARAÇÃO: O RETORNO AO JUDICIÁRIO.
Iglesias Fernanda de Azevedo Rabelo1
Maria das Dores Saraiva de Loreto2
Karla Maria Damiano Teixeira3
Harrysson Luiz da Silva4
RESUMO: Diante da constatação empírica das implicações da ruptura conjugal sobre a
dinâmica da vida familiar, delimitou-se a seguinte questão de pesquisa: Após a separação
judicial do casal, ainda persistem os conflitos? Para responder a essa pergunta, este artigo teve
como objetivo examinar as novas situações conflitivas que motivaram o ingresso com outras
ações judiciais pós-separação judicial. Como procedimento metodológico, diante da natureza
descritiva e qualitativa da pesquisa, fez-se uso de entrevistas semi-estruturadas. Os resultados
mostraram que os conflitos pós-separação, na maioria das vezes, associam-se à escassez de
recursos e aspectos do relacionamento com o ex-cônjuge. A escassez de recursos ou a
insuficiência de renda foi um fator preponderante para a proposição de novas ações judiciais, no
sentido de alcançar uma melhora na qualidade de vida. Outro domínio da vida determinante
para o ingresso com novas ações está associado com o relacionamento, principalmente em
termos da ação de conversão da separação judicial em divórcio, com vistas a uma maior
liberdade e novas relações afetivas. Conclui-se que os conflitos não cessam após o rompimento
da sociedade conjugal. Eles ainda remanescem, o que instiga a demanda do judiciário para a
solução de novos conflitos, associados basicamente a aspectos financeiros e relacionais.
Palavras-chaves: Separações conjugais; novos processos; conflitos.
ABSTRACT: Given the empirical observation of the implications of marital breakdown on
the dynamic of family life, a question is raised: Conflicts remain after the couple’s legal
separation? To answer this question, this article aims to review the new conflict situations
which led to new lawsuits after judicial separation. Semi-structured interviews were used as
methodological procedure, in the face of the descriptive and qualitative nature of the research.
The results show that post-separation conflicts are, in most cases, associated with scarcity of
resources and aspects of the relationship with the former spouse. The scarcity of resources or
lack of income was an important factor for new lawsuits proposed in order to achieve a better
quality of life. Another area of life which determines new lawsuits is associated with the
relationship, especially on lawsuits for conversion of legal separation into divorce, aiming
more freedom and new relationships. After all, it follows that conflicts do not cease after the
breakup of the marriage. They still remain, which instigates the demand for Judiciary to
resolve new conflicts, mainly associated with financial and relationship aspects.
Keywords: marital separations, new processes; conflicts.
1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa; Mestra em Economia Doméstica pela Universidade
Federal de Viçosa; advogada e Professora do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica em Ponte Nova/MG. 2 Pós-Doctor em Família e Meio Ambiente, Profª Associada do Departamento de Economia Doméstica da
Universidade Federal de Viçosa. 3 PhD em Ecologia Familiar e Infantil, Profª Adjunta do Departamento de Economia Doméstica da
Universidade Federal de Viçosa. 4 Pós-Doutor em Ergonomia Cognitiva -UFSC- IGETECON.
6
1. INTRODUÇÃO
Evidências empíricas têm mostrado que as separações judiciais provocam alterações
significativas na dinâmica da família, dentre elas: a partilha de bens; a definição de guarda
direta, o pagamento de pensão, dentre outras. Essas alterações, por sua vez, podem influenciar
a qualidade de vida dos membros da família, na medida em que o patrimônio material e a
renda familiar envolvida são, em regra, repartidos entre os cônjuges e, também, porque a
separação judicial interfere nas dimensões simbólicas da família.
Nos termos das leis que disciplinam a separação judicial, qualquer dos cônjuges
poderá propor ação de separação judicial, quando for imputado ao outro qualquer ato que
importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum5;
quando se provar a ruptura da vida em comum há mais de um ano e a impossibilidade de sua
reconstituição6; ou mesmo, quando o outro cônjuge estiver acometido de doença mental
grave, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum,
desde que, após uma duração de dois anos a enfermidade tenha sido reconhecida de cura
improvável7. O legislador listou de maneira exemplificativa os motivos que representam a
impossibilidade da comunhão de vida, como: o adultério8; a tentativa de morte
9; a sevícia
10 ou
injúria grave11
; o abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo; a
condenação por crime infamante12
e a conduta desonrosa13
, 14
(BRASIL, 2005).
5 Art. 1.572 do Código Civil de 2002.
6 §1
o do art. 1.572 do Código Civil de 2002.
7 §2
o do art. 1.572 do Código Civil de 2002.
8 É a quebra de fidelidade que os cônjuges reciprocamente se devem (PEREIRA, 2004, p. 258).
9 Tem os seus extremos assentados no Direito Penal, os quais poderão ser transpostos para aqui. Bom será,
contudo ressaltar que não se exige, para fundamentar o Desquite, haja condenação do agente no juízo
criminal, embora seja certo que a sua absolvição pode ilidir a ação cível, se fundada em excludente de
criminalidade, como a negação de autoria ou legítima defesa (PEREIRA, 2004, p. 260). 10
Sevícias são os maus-tratos, ofensas físicas, agressão, toda espécie de atentado à integridade corporal do outro
cônjuge (PEREIRA, 2004, p. 260). 11
É todo ato que implique ofensa à integridade moral do cônjuge. Em termos gerais, é a ofensa à honra,
portanto, “conduta desonrosa”. Não coincide sua conceituação com a figura criminal. Esta, obviamente, é de
molde a fundamentar a dissolução da sociedade conjugal. Mas justificam-na também palavras e gestos
ultrajantes; quaisquer ofensas à respeitabilidade do outro cônjuge; a transmissão de moléstia venérea; a
imputação caluniosa de adultério; as práticas homossexuais; a injusta recusa das relações sexuais; o ciúme
infundado, gerando clima de intranqüilidade (Moura Bittencourt); toda sorte, enfim, de atos que agravam a
honra, a boa fama, a dignidade do cônjuge ou lhe tragam situação vexatória ou humilhante no seu meio social
ou familiar (PEREIRA, 2004, p. 260). 12
Como “crimes infamantes” compreendem-se aqueles que traduzem um vício de personalidade tal, por parte
do agente do crime, que tornam absolutamente incompatíveis o interesse coletivo na prestação de um serviço
confiável e de qualidade e o forte receio de que o interessado venha novamente a revelar o grave vício de
conduta já externado. São exemplos de crimes dessa natureza, o tráfico de entorpecentes, o latrocínio, a
extorsão mediante seqüestro, etc. (PEREIRA, 2004, p. 263). 13
Não existe um critério pré-ordenado, outrossim, para a definição do que se compreende como conduta
desonrosa, prevista no art. 1753-VI. É de se considerar todo comportamento de um dos cônjuges, que
7
Feres-Carneiro (1998), Gianella (1998) e Abuchaim e Abuchaim (2007) mostram
que a relação conflituosa entre o casal que enseja a separação judicial não cessa após o
rompimento da sociedade conjugal. Apontam, também, que a separação implica
conseqüências financeiras e emocionais negativas, ou seja, a separação judicial implica numa
lide15
que envolve conflitos dos quais decorrem outros conflitos.
Além das questões sentimentais, questões objetivas devem ser disciplinadas, em
regra, quando se dá a separação. O casal precisa definir a quem caberá a guarda dos filhos e
como serão exercidas as visitas; qual será o valor a ser pago a título de pensão alimentícia;
como será partilhado o patrimônio, incluindo ativos e passivos. Essas questões são tidas como
fontes de conflitos, que culminam por ensejar a propositura de novas ações judiciais.
O pagamento de pensão alimentícia aos filhos, por exemplo, é considerado uma das
principais fontes de conflitos. Gianella (1998) apresenta um trabalho realizado ao longo de 15
anos, do qual fizeram parte 60 famílias divorciadas, que tinham filhos de dois a 18 anos no
momento da separação; tendo sido constatado que a resolução da crise do divórcio em relação
aos filhos está estreitamente ligada à capacidade dos pais para conseguir acordos e,
principalmente, com respeito à abdicação dos alimentos, que constitui o aspecto mais delicado
dos acordos, em torno do qual os pais mostram maiores dificuldades. A questão financeira
também fica em evidência como fonte de conflito.
Galvão (2006, p. 1), com base em dados de uma pesquisa americana, afirma que o
divórcio é um dos caminhos mais rápidos para a destruição da riqueza comum. A pesquisa
aponta que o crescimento médio anual da riqueza dos casados é de 4%; enquanto o aumento
médio do patrimônio após a união conjugal é de 93%, e que a soma dos bens com o divórcio
diminui para 77%.
A importância dessa análise decorre da constatação de que o conflito é inerente à
interação humana; considerando, como, ressalta Winton (1995), que todos os sistemas sociais
têm recursos escassos, sob os quais ocorrem competição e conflitos, além do fato de que
implique granjear menosprezo no ambiente familiar ou no meio social em que vive o casal. Assim, se devem
entender os atos degradantes como o lenocínio, o vício do jogo, o uso de tóxicos, a conduta homossexual, a
condenação por crime doloso, especialmente que impliquem a prática de atos contra a natureza, os delitos
sexuais, o vício da embriaguez. Essa referência é meramente exemplificativa. Não é possível arrolar todos os
atos que possam constituir conduta desonrosa de um cônjuge. Cabe ao juiz, em cada caso, examinando as
circunstâncias materiais da espécie, e tendo em vista o ambiente familiar, o grau de educação e de
sensibilidade do cônjuge, e quaisquer outros elementos informativos, decidir se a imputação procede e se a
conduta do cônjuge tem efetivamente o caráter desonroso (PEREIRA, 2004, p. 264). 14
Art. 1.573 do Código Civil de 2002. 15
Pretensão resistida (CARNELUTTI, 1958).
8
exibem uma estratificação social, em que algumas pessoas detêm mais poder que as outras,
tornando-se inevitável a presença de atitudes conflitivas.
Nesse contexto, objetivou-se com esse artigo analisar os conflitos relacionados
materializados em processos judiciais após o rompimento da sociedade conjugal.
2. REVISÃO TEÓRICO-CONCEITUAL
A revisão de literatura visou fundamentar o campo de investigação da pesquisa, bem
como, os conceitos fundamentais sobre os seguintes temas: separação judicial, divórcio e suas
implicações.
2.1. A separação judicial, o divórcio e suas implicações
Segundo Cahali (2005, p. 20), a decomposição da sociedade familiar acontece
através de uma paulatina, intermitente ou sucessiva infração dos deveres que resultam do
matrimônio e participa da própria contingência humana. Ou seja, o casal não consegue
administrar o conflito inerente às interações estabelecidas em suas relações intra e
extrafamiliares.
A sociedade conjugal constituída pelo casamento cessa pela morte de um dos
cônjuges, pela sentença anulatória do casamento, pela separação judicial e pelo divórcio.
É importante distinguir a diferença entre o término da sociedade conjugal e a
dissolução do vínculo matrimonial. A extinção da sociedade conjugal pela separação judicial
não pressupõe o desfecho do vínculo matrimonial, ou seja, com ela findam-se as relações do
casamento, mas o vínculo permanece intacto, o que impede os cônjuges de contrair novas
núpcias. O vínculo somente se extingue com a morte, a anulação e o divórcio, que
possibilitam aos ex-cônjuges a contrair novas núpcias.
A conquista legislativa do direito de romper o vínculo matrimonial foi obtida, no
Brasil, depois de muita luta. Uma das barreiras para a legalização do Divórcio no Brasil deve-
se ao fato da forte atuação da Igreja Católica. Com o Concílio de Trento (1545 a 1553), a
doutrina da Igreja se consolidou, repudiando o divórcio em definitivo, proclamando o
matrimônio à categoria de sacramento com caráter de indissolubilidade. O que se permite em
face da Igreja Católica é a separação de corpos, denominada divortium quo ad thorum et
habitationem, que deixa intacto o vínculo matrimonial (PEREIRA, 2004).
9
Para melhor entendimento acerca do casamento, da separação e do divórcio no
Brasil, convém trazer um breve histórico. Ao tempo do Império prevalecia a doutrina da
Igreja, nos termos do Concílio de Trento e da Constituição do Arcebispado da Bahia. Um
decreto de 3 de novembro de 1827 oficializou o casamento segundo as diretrizes daquele
Concílio. Com isso, adotou-se a jurisdição canônica, o que significa afirmar que não se
admitia a validade do casamento sem a intervenção da Igreja e, também, obviamente, que o
casamento era indissolúvel (PEREIRA, 2004).
Na constituição da República de 1824 nada se mencionou sobre o casamento.
Somente na Constituição outorgada em 1890 foi feita referência ao matrimônio, onde dizia
em seu art. 72, §4o A República só reconhece o casamento civil, que precederá sempre as
cerimônias de qualquer culto. Aqui foi afastada a jurisdição canônica. Assim, durante a
Primeira República, vigeu o Decreto no 181, de 24 de janeiro de 1890, que instituiu o
casamento civil e manteve o critério da indissolubilidade do vínculo. Em decorrência do lobby
da Igreja Católica, o legislador inseriu na Constituição de 1934, o princípio da
indissolubilidade, que constou das reformas constitucionais de 1937, 1946, 1967 e da Emenda
Constitucional no 1, de 1969. Com isso, tendo a indissolubilidade do vínculo matrimonial
caráter constitucional, o Brasil se posicionava, com destaque, entre os países antidivorcistas.
Sendo o casamento indissolúvel, era inegável o estigma de culpa atribuído a quem
pretendesse se separar; ressaltando-se que, culturalmente, o cônjuge desquitado era visto com
preconceito, como pessoa à margem das relações familiares.
Segundo Pereira (2004, p. 275), a indissolubilidade do casamento não é a regra na
sociedade primitiva. Segundo ele, os povos primitivos cultivaram a noção do vínculo conjugal
suscetível de rompimento, salvo algumas poucas exceções; inclusive, nos primeiros tempos, o
Cristianismo se mostrou pouco seguro em relação ao combate ao divórcio. Para o mencionado
autor, os monumentos que nos legaram as civilizações antigas atestam a existência do
divórcio. O velho testamento do povo Hebreu o aprovava, indo mesmo mais longe, por
admitir o repúdio unilateral como prerrogativa marital. O Código de Hamurabi, por sua vez,
facultava o divórcio ao marido e à mulher. Na Grécia, praticou-se o divórcio e admitiu-se o
repúdio da mulher estéril. Em Roma, não obstante proclamar-se (...) o casamento como uma
união por toda a vida, o divórcio era conseqüência natural do fato de ser o casamento
sustentado pela affectio maritalis: desde que esta desaparecia, tinha lugar a separação –
divortium. Mesmo o matrimônio sacramental e solene (confrarreatio), que a princípio se
10
reputava indissolúvel, veio a dissolver-se por uma cerimônia contrária – diffarreatio genus
erat sacrificci quo inter virum et mulierem fiebat dissolutio.
Pereira (2004) ressalta que na República eram poucos os casos de divórcio. No
Império, e à medida que a opulência romana foi suscitando a dissolução dos costumes, o
divórcio generalizou-se e atingiu todas as classes.
Aquele autor lembra que o Cristianismo combateu o divórcio, embora se mostrasse
nos primeiros tempos pouco seguro, tendo em vista passagens parcialmente divergentes dos
Evangelhos. Em São Mateus (Cap. V, versículo 32, e XIX, versículo 9) admite-o por
adultério, ao passo que São Marcos (Cap. X, versículo 2) e São Lucas (Cap. XVI, versículo
18) condenam-no de modo absoluto. São Paulo, impressionado talvez pela sua freqüência na
sociedade romana, que ele conhecia, revelou-se-lhe contrário (Epístola aos Coríntios, VII,
versículo 10).
No Direito Brasileiro sempre se adotou a separação de corpos e a dissolução da
sociedade conjugal, não se podendo dizer o mesmo quanto ao divórcio (dissolução do
vínculo). Anteriormente à Lei no 6.515, de 26 de dezembro de 1997, havia a previsão do
“desquite”, hoje denominado “separação judicial”. O desquite configurava uma sanção para o
comportamento de um dos cônjuges, contravenientes aos deveres fundamentais do
matrimônio. O antigo “desquite litigioso” punia o adultério, a tentativa de morte, as sevícias, a
injúria grave, o abandono do lar. Com o advento da Lei no 6.515/1977, a denominação
“desquite” foi substituída por “Separação Judicial Litigiosa ou Consensual”.
A Lei no 6.515/1977 e a Emenda Constitucional n
o 9, de 28 de junho de 1977,
representaram um marco importante no Direito de Família e refletiu a opinião dominante à
época ao instituir o divórcio, com bem expressa Pereira (2004, p. 279):
Em suas linhas gerais, a Lei no 6.515, de 26 de dezembro de 1977, deu um passo na
marcha evolutiva de nosso Direito de Família, procurando, com sinceridade,
solucionar problemas que a vida conjugal dá nascimento, e que o excessivo amor à
tradição impedia de resolver (PEREIRA, 2004, p. 279).
No tocante à Emenda Constitucional retro mencionada, esclarece o mesmo autor,
que: com a aprovação da Emenda Constitucional no 9, de 28 de julho de 1977, foi aberta a
porta ao divórcio, ao ser alterado o §1o do art. 175, franqueando a dissolução do matrimônio
nos casos previstos em lei, e admitindo o §2o o divórcio desde que haja separação judicial
por mais de três anos (PEREIRA, 2004, p. 279).
11
A Constituição da República de 1988, por sua vez, trouxe um avanço ainda maior
quanto à possibilidade do divórcio. Os prazos estabelecidos naquela emenda foram reduzidos.
Assim, em seu art. 226, §6o, a CR/1988 previu a possibilidade do Divórcio após um ano da
separação judicial, ou comprovada por mais de dois anos a separação de fato. Com isso, ficou
instituído o divórcio direto. O casamento religioso com efeitos civis também foi protegido
pela Constituição vigente, em seu art. 226, §2o: O casamento religioso tem efeito civil, nos
termos da lei. Foi editada, em seguida, a Lei no 7.841, de 1989, que alterou os arts. 16,
parágrafo único, e 40 da Lei 6.515/1977, bem como revogou os arts. 18 e 40, §1o, da Lei n
o
6.515/1977.
Conforme já dito, a luta pelo divórcio foi acirrada. Parlamentares divorcistas, como
Nelson Carneiro, tentaram por mais de três décadas, mas os projetos de lei acabavam sendo
vencidos pelos opositores, fortemente apoiados pela Igreja Católica.
Felizmente, com a instituição do divórcio não aconteceu nenhuma das previsões
catastróficas apregoadas pelos opositores do mesmo. Efetivamente, o divórcio não representa
um perigo ao casamento, uma vez que a sustentação deste não pode se dar pela proibição. São
outros os valores que servem de sustentáculo para a família constituída pelo matrimonio.
Esses valores estão inseridos na noção de afetividade e é sobre esse prisma que as sociedades
conjugais devem ser mantidas ou desconstituídas, para o bem de seus integrantes. A
finalidade do casamento há muito tempo deixou de ser a procriação. Hoje, têm importância os
sentimentos que unem o homem e a mulher.
A separação de corpos, que é autorizada pela Igreja católica, é uma medida cautelar
para se autorizar o afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal, prevista
no art. 1.562 do Código Civil de 2002 e disciplinada pelo Código de Processo Civil, nos arts.
888, IV e 799.
O Código Civil de 2002, em conformidade com a lei do divórcio (Lei no 6.515/77),
trouxe a “separação judicial litigiosa” e a “separação judicial consensual”, que subordinam a
separação à “insuportabilidade da vida em comum”, nos termos do art. 1.572 daquele Código.
A separação judicial litigiosa pode se dar quando um dos cônjuges provar a ruptura
da vida em comum por um ano e a impossibilidade de sua reconstituição (art. 1.572, §1o).
Trata-se de um caso em que o ambiente conjugal deixou de existir por um motivo conhecido
somente dos cônjuges, ou destes e de terceiros, pondo fim à comunidade de vida, sem que o
cônjuge inocente quisesse ou pudesse intentar ação de separação. Resulta de dois elementos:
12
um material, qual seja o fato de estarem os cônjuges separados um do outro por mais de um
ano e outro psíquico, que podem se relacionar as razões que situam no plano da mera
manifestação interior, como a incompatibilidade de gênios ou cessão da afinidade (PEREIRA,
2004, p. 253).
Uma segunda causa para se pleitear a separação judicial litigiosa é quando o outro
cônjuge estiver acometido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que torne
impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de dois anos, a
enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável. Segundo Pereira (2004, p. 255), essa
previsão atenta contra os compromissos assumidos e contra o mais elementar sentimento de
solidariedade, na medida em que quando um cônjuge é fulminado por enfermidade que lhe
obscureça a mente, não configura falta a seus deveres e nem rompimento da sociedade por ato
de vontade.
A separação judicial litigiosa pode fundar-se em uma ou mais das causas seguintes
alegadas e provadas pela parte que postula a separação, nos termos do art. 1.573 do Código
Civil de 2002: adultério, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave; abandono voluntário do
lar conjugal, durante um ano contínuo; condenação por crime infamante e conduta desonrosa.
Maria Berenice Dias (2006) chama essa enumeração legal de rol de “culpas”. Além disso, o
legislador previu no parágrafo único do art. 1.573, que o juiz poderá considerar outros fatos
que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum.
Vários civilistas ressaltam o retrocesso do legislador ao enfatizar a pesquisa da culpa
para autorizar a separação judicial dos cônjuges. Dias (2006, p. 97) alerta para o fato de que
nenhuma das diversas hipóteses elencadas na lei permite a identificação de um culpado.
Segundo ela, o que traz a lei são meras conseqüências, pois a causa é única: o desamor, que é
o motivo para aquele que comete o adultério, tenta matar, agride, abandona, ou mesmo,
mantém conduta desonrosa. Portanto, as atitudes previstas na lei são apenas reflexos do fim
do amor. Em outras palavras, de acordo com os fundamentos dos conflitos, o casal deixa o
espírito de cooperação e passa a priorizar a competição, na busca pela satisfação de seus
interesses particulares, o que acaba por culminar em uma das situações descritas pela lei.
Na verdade, quando não se consegue administrar as situações de conflito, deixando
que os interesses próprios prevaleçam sobre os interesses do casal, é porque já se deu o
esgotamento do vínculo de afetividade e, isso, motiva a violação dos deveres do casamento.
13
A lei do divórcio, em vez de discriminar as causas da separação, refere-se a outros
fatores etiológicos da mesma, conforme previsto no seu art. 5º: conduta desonrosa ou
qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento, e tornem
insuportável a vida em comum. Quanto à violação dos deveres do casamento, Pereira (2004,
p. 265) preleciona:
A “violação dos deveres matrimoniais”, posto que elástica, é menos imprecisa.
Partindo-se de que são conhecidos e definidos os deveres conjugais (fidelidade
recíproca, vida em comum no domicilio conjugal, mútua assistência, sustento,
guarda e educação dos filhos previstos no art. 1.566), genericamente podem alinhar-
se, como violações dos deveres matrimoniais, todos os atos que se traduzem em
infração dessas obrigações que o legislador impõe aos cônjuges (PEREIRA, 2004, p.
265).
A questão da fidelidade recíproca é bastante frisada como um dever dos cônjuges no
casamento e uma expectativa dos mesmos (TREAS e GIESEN, 2000), diante do contexto
cultural em que a infidelidade está relacionada com a falta de verdade (DINIZ, 1998;
LUSTERMAN, 1998) e causa diversos sentimentos negativos no cônjuge traído (MATHES et
al., 1985; SHARPSTEEN, 1995; CANO e O’LEARY, 2000), além poder ocasionar a
desestabilização da harmonia familiar (BUNDT, 2007). Larrañga (2000) e Menezes (2005),
por sua vez, apontam que a infidelidade relaciona-se com a existência de problemas não
resolvidos na intimidade do casal. Já Madaleno (2005) indica que os cônjuges que se separam
por motivo de infidelidade têm dificuldades em se casarem novamente.
A separação judicial consensual está prevista no art. 1.574 do Código Civil de 2002,
que assim versa: dar-se-á a separação judicial por mútuo consentimento dos cônjuges se
forem casados por mais de um ano e o manifestarem perante o juiz, sendo por ele
devidamente homologada a convenção. Neste caso, após a oitiva do representante do
Ministério Público, o juiz homologa a separação. Vale ressaltar que compete ao juiz apreciar
os requisitos de fundo e de forma, verificar a regularidade do procedimento e apreciar a
validade das deliberações quanto aos filhos do casal.
No caso das separações consensuais, apesar de o casal já apresentar um acordo
pronto para ser homologado pelo juiz, não significa inexistência de conflitos. Às vezes, a
fonte dos conflitos é tão grave que os cônjuges preferem abrir mão de determinados interesses
e firmar um acordo, em prol de não se discutir a motivação da separação e apenas afirmar que
o rompimento da sociedade conjugal se deu por incompatibilidade de gênios ou porque a vida
em comum é de difícil convivência.
14
Em ambos os casos de separação, algumas questões são definidas, dentre elas a
partilha dos bens, a guarda dos filhos, o exercício das visitas, o nome do cônjuge. Constará
também a quantia com que os cônjuges concorrerão para a manutenção dos filhos na
proporção de seus recursos (art. 1.703) e, excepcionalmente, a pensão que será paga ao ex-
cônjuge para suas despesas pessoais, comprovada a hipossuficiência. Nota-se, portanto, que a
separação judicial dissolve a sociedade conjugal com tríplice conseqüência: pessoal,
patrimonial e relativa aos filhos.
A sentença que decreta a separação judicial somente faz coisa julgada16
em relação à
dissolução da sociedade conjugal e quanto à questão patrimonial. Todavia, a todo tempo é
lícito ao juiz modificar o que fora deliberado quanto aos filhos no tocante à guarda, visitas17
e
pensão alimentícia18
, bem como o que ficou determinado quanto à pensão de qualquer dos ex-
cônjuges.
Nos termos do art. 1.580, do Código Civil de 2002, decorrido um ano do trânsito em
julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da
medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão
em divórcio. Para ocorrer a conversão, é preciso comprovar que não houve reconciliação
durante aquele período.
Considerando que a sentença não transita em julgado, quanto à questão dos alimentos
e da guarda, novas ações podem ser propostas para se discutir novamente essas questões.
Caso o detentor da guarda considere que a pensão paga pelo visitante não está suficiente, ele
pode ingressar com uma ação revisional de alimentos visando majorar o valor da pensão
alimentícia. Da mesma forma, o visitante19
que considerar o valor pago elevado, pode
16
Conforme disposto no art. 467 do Código de Processo Civil, coisa julgada material é a eficácia, que torna
imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário (BRASIL, 2005). 17
Dias (2006, p. 365) aponta que não são pouco freqüentes os pedidos de suspensão das visitas por denúncia de
abuso sexual do genitor. Em face da seriedade da acusação e da dificuldade de sua comprovação, deve ser
imediatamente determinada a realização de estudo social e a elaboração de perícia psicológica e
psiquiátrica não só com o filho, mas também com ambos os genitores. Sem provas além da versão da
genitora, descabe simplesmente interromper as visitas e cortar qualquer contato do pai com o filho. Precisa o
juiz ter redobrada cautela, pois a acusação às vezes é levada a efeito por vingança, exatamente para
obstaculizar as visitas, por ter havido suspensão do pagamento dos alimentos, ou simplesmente pelo fato de o
genitor estar com nova companheira. 18
O direito a alimentos deve ser compreendido no seu aspecto amplo, compreendendo não apenas a alimentação
propriamente dita, mas, também, todos os demais bens necessários para se atender às necessidades básicas
(CYRILLO e CONTI, 2005). 19
Que é o detentor da guarda indireta. Vale ressaltar que todas as prerrogativas decorrentes do poder familiar
persistem mesmo quando da separação ou do divórcio dos genitores, o que não modifica os direitos e deveres
dos pais em relação aos filhos, conforme disposto no art. 1.579 do CC/2002. Como o poder familiar é um
complexo de direitos e deveres, a convivência dos pais não é requisito para a sua titularidade.
15
ingressar com a revisional para minorar o valor pago. Essas novas ações são distribuídas por
dependência à ação de separação20
.
As ações revisionais são comuns, posto que o dever de alimentar se prolonga no
tempo, seja por ter havido aumento ou redução, quer das possibilidades do alimentante, quer
das necessidades do alimentando. Essas alterações afetam o princípio da proporcionalidade
que norteia a fixação dos alimentos e, portanto, autorizam a busca de nova equalização do
valor dos alimentos.
Segundo Rizzardo (2005, p. 737), justamente por estar condicionada a pensão aos
pressupostos da necessidade do alimentando e da possibilidade do obrigado impera o
princípio da alterabilidade das decisões que estabelecem os alimentos. O referido autor
acrescenta que as sentenças, em matéria de alimentos, não transitam em julgado, permitindo
sempre a revisão quando há mudança econômica na situação das partes.
Quanto à ação exoneratória, o simples implemento da maioridade não autoriza a
exoneração imediata do encargo. Dias (2006, p. 457) aponta que:
Freqüentes sãos as ações de exoneração pela alegação da impossibilidade do
alimentante de continuar atendendo ao dever alimentar. Nessa hipótese se faz mister
uma robusta prova da incapacidade absoluta do devedor, principalmente quando
ausente prova de que não subsiste a necessidade do alimentando. Quer a constituição
de nova família, quer o nascimento de outros filhos não justificam o pedido de
redução do encargo alimentar, sob pena de se estar transferindo a obrigação
alimentar de uns filhos para outros, mas a tendência é proceder à readequação
(DIAS, 2006, p. 457).
No que diz respeito à guarda21
, caso o visitante ao pegar o filho durante o tempo que
lhe cabe para as visitas, e não o devolver, o guardião poderá ingressar com uma ação de busca
e apreensão do menor22
. Além disso, caso o visitante queira obter a guarda direta dos filhos,
poderá ingressar com uma ação de modificação de guarda.
Quanto às visitas, caso algum dos cônjuges queira alterar a regulamentação ou
mesmo discipliná-la, nos casos em que não ocorreu, poderá ingressar com uma ação de
regulamentação de visitas. Ainda, quanto aos alimentos, caso o devedor não efetue o
pagamento, o guardião poderá ingressar com uma ação de execução de pensão23
, que pode
20
Isso significa que os processos ficam apensados. 21
Geralmente, as mães ficam com a guarda dos filhos, devido ao modelo de maternagem vigente em nossa
sociedade (MACEDO, 2002). 22
Nessa hipótese, não se trata de demanda cautelar a exigir a propositura de ação principal oportunamente, uma vez
que a guarda já se encontra definida. A ação é satisfativa e se exaure com o cumprimento da medida liminar. 23
O Código de Processo Civil admite duas modalidades executórias: a execução contra devedor solvente (CPC,
art. 732) e a execução mediante coação pessoal (CPC, art. 733). Esta ultima é uma das raras exceções em que
a Constituição admite prisão por dívida (CR/1988, art. 5o LXVII) (VADE MECUM, 2008). Nesse tocante,
16
culminar na prisão do devedor de alimentos. Quanto aos bens, se não foram partilhados no ato
da separação, pode se propor a ação de partilha. Enfim, todas essas ações tramitam junto com
a ação primeira, ou seja, a ação de separação, que pode ter sido antecedida pela ação cautelar
de separação de corpos. Assim, uma série de outras ações podem ser propostas após a
dissolução da sociedade conjugal.
Quando a separação é amigável, normalmente a partilha é feita conjuntamente com o
pedido de separação. Nesse ato, dispõem os cônjuges segundo suas vontades no tocante à
divisão dos bens, nos termos do parágrafo único do art. 1.575 do Código Civil de 2002, que
assim versa: A partilha de bens poderá ser feita mediante proposta dos cônjuges e
homologada pelo juiz ou por este decidida (VADE MECUM, 2008).
No entanto, também é comum que se postergue para momento posterior a disposição
sobre o patrimônio, embora esta prática possa acarretar problemas no tocante à propriedade de
bens adquiridos por um dos separados depois da homologação, a não ser que se realize o
inventário ou o arrolamento dos existentes até a separação.
Caso os cônjuges não entrem em acordo sobre a partilha, proceder-se-á a mesma de
forma judicial, com a intervenção do juiz. Salienta-se a necessidade de observância constante
da igualdade dos valores de cada uma das duas partes que compõem o monte partilhável, em
consonância com o regime de bens instituído no casamento. (RIZARDO, 2005).
Não há estudos sobre a motivação para o ingresso com essas novas ações e se estas
têm alguma relação com a qualidade de vida. E, conforme já afirmado, apesar das evidências
empíricas sobre a redução da qualidade de vida da família monoparental24
, após a separação
judicial, não se conhece estudos científicos sobre dessa questão.
3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A presente pesquisa, de natureza descritiva-exploratória, priorizou a análise
qualitativa para obtenção de dados. Considerou-se para esta escolha, o trabalho investigativo
importante esclarecer que o Superior Tribunal de Justiça firmou o seguinte entendimento por meio da súmula
309: o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações
anteriores à citação e as que vencerem no curso do processo (VADE MECUM, 2008). 24
O fim dos vínculos afetivos com prole é o principal gerador de monoparentalidade. Quando da separação
dos pais, normalmente os filhos ficam sob a guarda de um dos genitores. Na grande maioria das vezes, na
companhia da mãe. Ao pai, de forma confortável, é deferido singelo direito de visita, direito que exerce a seu
bel-prazer, sem maior comprometimento com a criação e desenvolvimento do filho. De modo geral, ocorre
uma transitoriedade entre duas situações. Num primeiro momento, há família biparental constituída. A
separação gera uma família monoparental, por exemplo, a mãe fica com o filho (DIAS, 2006, p. 185).
17
realizado e a complexidade do objeto de estudo, assim como a limitação de acesso aos
processos e, consequentemente, aos casais que preenchessem os requisitos estabelecidos.
A técnica de coleta de dados utilizada foram entrevistas semi-estruturadas25
, que
foram realizadas junto aos genitores detentores da guarda direta dos filhos, abordando-se
sobre questões relativas aos conflitos que ensejaram a separação judicial
A amostra compôs-se de dez famílias residentes na cidade de Viçosa/MG que, em
virtude da separação judicial, tornaram-se famílias monoparentais, constituídas apenas por um
dos cônjuges e a prole. Os dados foram analisados em função do conteúdo dos depoimentos
dos ex-cônjuges detentores da guarda dos filhos, em termos dos seus pontos semelhantes e
divergentes. As entrevistadas foram identificadas como: mulher “A”, mulher “B”, mulher
“C”, mulher “D”, mulher “E”, mulher “F”, mulher “G”, mulher “H”, mulher “I”, mulher “J”,
com o objetivo de proteger suas identidades.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1. Identificação de novas situações conflitivas após a separação judicial
A separação judicial significa a total impossibilidade de o casal administrar o
conflito e permanecer em união. No entanto, a separação não significa o fim dos conflitos.
Eles ainda remanescem, o que instiga a demanda do judiciário para a solução de novos
conflitos. Instaura-se nova lide, que, segundo Carnelutti (1958), é um conflito de interesses,
qualificado pela pretensão de um dos interessados e pela resistência do outro. Todavia, as
novas lides, em regra, versam diretamente sobre uma questão objetiva: recursos, o que não
significa que outros fatores não influenciem essa decisão de demandar o judiciário.
No caso da mulher “A”, a relação estabelecida com o ex-marido após a separação foi
definidora para o ingresso com novas ações, mas, a questão relativa à pensão e aos bens
(recursos) também foi abordada. Ao ser questionada sobre o que motivou o ingresso com novas
ações judiciais, após a separação judicial, afirmou o seguinte:
Eu entrei com o divórcio porque eu queria acabar com tudo. Acabar com o vínculo
que existia. Na hora que fui entrar com o divórcio, perguntaram se ele estava
pagando a pensão. Falei que não e aí a advogada entrou com a execução. Não
tinha mais acordo, amizade...
Já tinha acontecido o caso do chumbinho26
. Pedi a partilha da casa para legalizar.
O meu marido queria que eu renunciasse tudo para ficar tudo para os filhos.
25
Por entrevista semi-estruturada, entende-se aquela que se desenrola a partir de um esquema básico, porém não
aplicado rigidamente, permitindo ao entrevistador realizar as necessárias adaptações.
18
A doação do único bem imóvel aos filhos é uma forma muito utilizada pelos casais
para minimizar os prejuízos da divisão do mesmo. Assim, a mulher “A” ingressou com ação
de partilha, ação de conversão da separação em divórcio e com ação de execução de pensão
alimentícia.
A mulher “B” viu no fim da possibilidade de restauração do casamento e também na
redução da renda, os motivos para a propositura de duas novas ações judiciais foram: ação
revisional de pensão e ação de conversão da separação em divórcio:
Já tinha quatro anos que estávamos separados. Ele já tem outra mulher e filhos.
Então, pensei em ter possibilidade de encontrar outra pessoa que dê mais valor em
mim. Para que eu possa casar novamente... Eu pensei assim: volta não vai ter. Para
mim não tinha sentido ficar presa numa pessoa. Pedi a revisional de alimentos
porque ele tava pagando o mesmo valor por dois anos, apesar dos aumentos do
salário. Conversei com ele, mas ele não quis aumentar. A pensão era de 42% do
salário.
A mulher “C”, por sua vez, ingressou com ação revisional de alimentos, execução do
acordo para o ex-marido pagar a casa e ação de conversão da separação em divórcio:
Ele tava pagando muito pouco, não dava para nada... porque ele tava dando a
pensão sobre o salário mínimo e não sobre o que ele ganhava. Não recebo sobre
férias e nem sobre o 13o salário. Pedi para ele ajudar a comprar remédio para as
meninas e ele não ajudou. Também entrei para ele pagar a metade da casa. Pedi
para ele assinar o divórcio porque ele queria casar de novo. Eu não tava pensando
em casar de novo.
A mulher “C” construiu junto com o marido sobre a laje da casa dos pais dele. Com a
separação, ela saiu da casa, diante da impossibilidade de conviver com os ex-sogros; desta
forma o imóvel ficou sendo utilizado apenas pelo marido, sem que ela recebesse qualquer
valor. Além disso, quando tentou receber o valor correspondente à meação, os sogros
alegaram que o imóvel tinha sido construído por eles.
A mulher “D”, que ficou com a guarda de cinco filhos, viu na escassez de recursos a
necessidade de ingressar com a ação de execução de pensão, relatando que:
Além dele não estar dando atenção também não estava dando alimentação. Não
cumpriu o que falou na frente do juiz que ia assumir. Foi combinado de dar pensão,
mas ele mandava uns 10 a 20 reais. Eu não tava agüentando. Ele disse que estava
com problema do coração. Mãe sempre reclamava dos meus filhos, mas não queria
que eu entrasse com a ação. Mas fiquei com muita raiva e procurei a Dra. Maria do
Carmo. Demorou para o juiz chamar. Depois ele voltou a não pagar. Ele tinha que
dar o dinheiro para alimentar. Ele achou um desaforo dar dinheiro depois da
separação. (...) Ele foi preso por isso. A dívida era de R$4.000,0. Recebi só uns
R$2.000,00. Os meninos não queriam só a metade. Mas eu não ia deixar a mãe dele
passar o natal com o filho preso. Ela sempre me ajudou. Agora ele paga direitinho.
26
A entrevistada contou que sofreu envenenamento por chumbinho ao tomar chá na casa do ex-marido após já
ter se separado dele. Com isso, foi dada como morta, ficou toda roxa e foi parar no CTI. O ex-marido a
acusou de ter causado o envenenamento para culpá-lo.
19
Quando é flagrante a reiterada atitude omissiva do alimentante no atendimento da
obrigação alimentar, pode caracterizar-se o crime de abandono, previsto no art. 244 do
Código Penal27
.
A mulher “E”, que também construiu no lote do sogro, sofreu para reaver a sua casa.
Isso foi o motivo para a ação de execução do acordo, no tocante à divisão dos imóveis:
O meu sogro cismou que esta casa era dele e colocou um homem para morar aqui.
O homem era sem-vergonha. Eu vim aqui e entrei no banheiro... Quando ele
chegou, falou que podia me processar, podia falar que eu tinha furtado. Então,
entrei para pedir minha casa, tive que pagar oficial de justiça e foi uma luta.
Naquele dia, me senti muito humilhada. Depois que ele saiu, aluguei minha casa e
com o dinheiro, pagava lá em Silvestre. Assim fiquei por um ano... Eu tinha que
alugar minha casa para refazer minha renda.
Quanto à ação de conversão em divórcio, a mulher “E” relatou que: não tinha volta,
não queria voltar mais. Eu não gostava dele.... Por sua vez, a situação financeira motivou a
mulher “F” a ingressar com a ação de execução de pensão: minha situação financeira não era
muito boa, por isso precisava de ajuda. Eu entrava com ação, fazia acordo e ele deixava de
pagar. Durante o tempo que ele recebia auxilio acidente do INSS, ele pagou a pensão, mas
quando deixou de receber, não pagou mais.
A mulher “G” ingressou com ação de execução de pensão e com a ação de conversão
de separação em divórcio. A primeira, porque ele não tava pagando pensão e a segunda,
porque já estava separada mesmo, porque faz a gente sentir mais livre, porque infelizmente
não dá para voltar a ser solteira. A mulher “H” também ingressou com as mesmas ações.
Quanto à ação relativa ao não-pagamento da pensão ela justificou: Pensei comigo que não sou
obrigada a criar filho sozinha. Ficou que ele tinha que pagar 30% do salário mínimo. Voltei
lá para cobrar. Depois quis tirar a queixa, mas a Dra. Maria do Carmo falou que o dinheiro
é do menino.
Os alimentos dos filhos são irrenunciáveis. O Código Civil de 2002 consagra, no art.
1.708, o princípio da irrenunciabilidade aos alimentos, admitindo apenas que o credor não
exerça o direito.
Quanto à ação de conversão da separação em divórcio, a mulher “H” disse: pedi o
divórcio porque ele tá doido querendo casar. Assim vai me dar sossego se ele casar. Eu
também tô pretendendo.
27
Art. 244 – Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito)
anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes
proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente
acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente
enfermo (VADE MECUM, 2008).
20
Somente com o divórcio dá-se a dissolução do vínculo matrimonial. Com isso, o
divorciado pode contrair novas núpcias. A conversão da separação em divórcio está prevista
nos arts. 35 a 37, da Lei do Divórcio.
O descumprimento das cláusulas previstas no acordo da separação levou a mulher
“I” a demandar novamente o judiciário. Ela ingressou com ação de obrigação de fazer para
que o ex-marido cumprisse as obrigações assumidas:
Na partilha, abri mão de muita coisa. Ele ficou de construir minha casa, mas não
cumpriu tudo. Não deu acabamento e nem o registro. Até a casa ser construída, ele
tinha que pagar o aluguel e não pagou até hoje... Somente com o registro do
apartamento em meu nome vou ter segurança da casa ser minha.
Após a separação, o ex-marido da mulher “I” ingressou com ação de exoneração em
face do filho mais velho, posto que o mesmo havia completado 18 anos. Esse fato foi relatado
pela mulher “I”, como uma situação que a marcou no processo de separação como um todo:
Eu não esqueço quando ele tirou a pensão do meu filho. Eu não esqueço a revolta do meu
filho, porque ele ficou sem pensão e estava estudando e fazendo tratamento (medicamento
regulado). Quem requereu a conversão da separação em divórcio foi o ex-marido e casou-se
com a ex-funcionária do açougue do casal.
A mulher “J” foi quem mais lamentou perdas financeiras com a separação. Ela
entrou com ação de execução de pensão:
Ele pagava 10% do salário mais setenta reais. A advogada falou que ele tinha que
pagar até completar o valor dos atrasados, mas apesar de ter feito acordo ele não
pagou. Ele ficou com tudo. A casa que era nossa tá valorizada e ele me deu um
barraco no valor de R$1.200,00. Ele ficou com tudo, apesar de eu ter comprado
tudo.
Não me preocupo com a casa porque sei que vai ficar para os meus filhos. Ele ficou
mais de um ano sem pagar pensão. Ele nunca teve dó dos filhos. Posso dizer que
sempre fui pai e mãe dos meninos. A pensão é pouca, mas ajuda. Eu pensei em
deixar pra lá, mas fiquei sem trabalho...
De acordo com os relatos das mulheres e a natureza das ações propostas, os maiores
conflitos que motivam o ingresso com novas ações são relativos à escassez dos recursos. Fica
evidente que a limitação de recursos é fonte propícia para o conflito e, por conseguinte, a
estratificação, definida como uma distribuição ou retenção dos recursos de um modo desigual,
organiza e justifica comportamentos; criando e perpetuando desigualdades estruturais e
provendo estruturas de oportunidades diferenciadas entre os membros. Dessa maneira, o
cônjuge detentor da guarda, que suporta todas as obrigações e responsabilidades pela criação
e educação dos filhos, diante da falta de auxilio material, se vê numa posição de desigualdade
21
e vale-se do judiciário para sanar essa desigualdade e ver o pai compelido a cumprir com a
sua obrigação.
Não se pode deixar de considerar que, além dos recursos, outros fatores podem
contribuir para a instauração de novos litígios, como o desejo de findar definitivamente o
vínculo matrimonial para constituição de novos arranjos familiares, a mágoa pela
desconsideração com os filhos, o que representa o fim definitivo do projeto comum outrora
partilhado e, talvez, aqueles resquícios de raiva, mágoa e rancor, frutos dos conflitos que
ensejaram a separação, ainda não esquecidos.
4.2. Os motivos para a propositura de novas ações judiciais
Questionou-se ao público entrevistado quais os motivos para a propositura das novas
ações judiciais. De acordo com os dados apurados, a questão relacionada com as necessidades
materiais, ou seja, os sentimentos de insatisfação com questões materiais e, também, os
sentimentos de insatisfação com as relações mantidas com os ex-maridos levaram as
entrevistadas a ingressarem com ações judiciais no sentido de alcançar uma melhora na
qualidade de vida.
A mulher “A” relacionou o ingresso com as ações devido ao relacionamento com o
ex-marido. A mulher “B” justificou o ingresso com a conversão da separação em divórcio da
seguinte forma: eu pensei assim: volta não vai ter. Para mim, não tinha sentido ficar presa
numa pessoa. E, justificou o ingresso com a revisional de pensão porque a renda não
aumentou, em que pese ele ter sido condenado a pagar um porcentual sobre o salário, o
salário subiu duas vezes e ele não aumentou a pensão.
A conversão da separação pode ser consensual ou litigiosa. Na conversão consensual
não se exige audiência privada do juiz com os ex-cônjuges, para esclarecer as conseqüências
da decisão de buscar a conciliação. Essa exigência ocorre com a separação, pois nesta ainda
existem pendências a ajustar; enquanto no divórcio já estão aparadas as arestas. (RIZZARDO,
2005).
Na conversão litigiosa, procede-se a citação do outro cônjuge, que terá o prazo de 15
dias para contestar. A ação prosseguirá conforme o rito comum e próprio para as demais
ações. O cônjuge apenas teria motivos para contestar, caso no interregno de tempo após a
separação tenha ocorrido reconciliação ou que caso não tivesse transcorrido o prazo de um ano
após a separação.
22
Por sua vez, a mulher “C” justificou o ingresso com a execução do acordo para ele
pagar a casa e a conversão da separação em divórcio da seguinte forma: Entrei com os novos
pedidos porque esta casa não é minha. Quero construir uma casa neste lote aqui do lado, que
comprei, porque tenho que entregar essa casa para minha irmã de São Paulo para ela
terminá-la. Já a ação revisional de alimentos foi por que: Ele tava pagando muito pouco, não
dava pra nada.
A ação de revisão refere-se, na maioria dos casos, ao quantum da pensão alimentícia
fixado, posto que sujeito a modificação, de acordo com a variação socioeconômica das partes.
No caso em questão, a entrevistada relatou o aumento das necessidades por parte das filhas,
justificando-se, assim, a busca pelo aumento do quantum da pensão..
A mulher “D” foi taxativa: além de não estar dando atenção, também não estava
dando alimentação. Não cumpriu o que falou na frente do juiz que ia assumir. Então, foi por
causa da alimentação e do relacionamento.
A necessidade de refazer a renda justificou para a mulher “E” o ingresso com a ação
de execução do acordo para receber a casa: eu tinha que alugar minha casa para refazer
minha renda. E, para o ingresso com o pedido de conversão da separação em divórcio, disse
que: não tinha volta, não queria voltar mais.
A execução dos acordos feitos nos autos da separação, em regra, corre nos mesmos
autos. O juiz determina a intimação do réu para cumprimento da obrigação, podendo,
inclusive, fixar multa diária para o caso de inadimplemento.
A mulher “F” justificou o ingresso com a ação de execução de pensão da seguinte
forma: Foi por causa de minha filha. Para manter a saúde e a educação e, também, por ser
um direito dela.
A mulher “G”, que ingressou com ação de execução de pensão alimentícia e com a
ação de conversão da separação judicial em divórcio, relacionou a propositura dessas ações:
por causa da renda e por causa dos relacionamentos, para firmar novas relações.
Os relacionamentos e a renda também motivaram o ingresso, por parte da mulher
“H”, das ações de conversão de separação em divórcio e de execução da pensão alimentícia:
Relacionamentos. Porque tanto ele quanto eu temos novos relacionamentos.
23
A mulher “I” ingressou com a ação de execução da obrigação de fazer para ter
segurança da sua habitação: somente com o registro do apartamento em meu nome vou ter
segurança da casa ser minha.
A ausência de trabalho e renda motivou o ingresso da ação de execução de pensão
alimentícia por parte da mulher “J”: Ele ficou mais de um ano sem pagar. Ele nunca teve dó
dos filhos. Posso dizer que sempre fui pai e mãe dos meninos. A pensão é pouca, mas ajuda.
Eu pensei em deixar pra lá, mas fiquei sem trabalho.
Nesse contexto, a escassez de recursos ou insuficiência de renda foi um fator
preponderante para a proposição de novas ações judiciais, por meio de execução de pensão
alimentícia. Esses dados estão concernentes com a natureza jurídica do instituto da pensão
alimentícia, que é prover as necessidades básicas do alimentando. Nesse sentido, a explicação
de Cyrillo e Conti (2005, p. 1) é de que:
O direito aos alimentos, que deve ser compreendido no seu aspecto amplo, incluindo
não só a alimentação propriamente dita, mas também todos os demais bens que
satisfaçam as necessidades humanas básicas, garantindo assim a vida, tanto física,
como intelectual e moral, está consagrado no Código Civil em seus artigos 1.694 a
1.701.
O ordenamento jurídico já consagrou o direito de os filhos menores pleitearem a
seus pais recursos suficientes para fazer frente às suas necessidades básicas, caso
eles não estejam cumprindo esta obrigação, por tê-los abandonado ou por outra
razão qualquer. Os pais têm a obrigação legal de sustentar os filhos menores e estes
têm o direito de ser mantidos pelos pais até que possam fazê-lo por seus próprios
meios (CYRILLO e CONTI, 2005, p. 1).
Outro ponto determinante para o ingresso com novas ações está associado com o
relacionamento, principalmente em termos da ação de conversão da separação judicial em
divórcio, com vistas a uma maior liberdade e novas relações. Além desses domínios, também
foram citados: alimentação, habitação, saúde e educação.
O ingresso com as ações tem relação com dois dos três verbos considerados básicos à
vida humana, que são: ter, amar e ser (ALLARDT, 1995, apud HERCULANO, 1998). A relação
se dá com os verbos ter e amar. Com o primeiro, na medida em que se refere às condições
materiais necessárias ao atendimento das necessidades básicas mencionadas pelas
entrevistadas: renda, alimentação, habitação, saúde e educação. Já o segundo, amar, está
associado à necessidade de se relacionar com outras pessoas, que é a motivação da maioria
das entrevistadas ao requerer o rompimento definitivo do vínculo com o ex-marido.
24
5. CONCLUSÕES
Apurou-se que, após a separação judicial do casal, ainda persistem os conflitos entre
o casal. Quanto às novas situações conflitivas, que motivam o ingresso com novas ações
judiciais, pode-se afirmar a predominância das questões relativas a recursos. Em grande parte
dos casos estudados, a pensão alimentícia é utilizada para o orçamento familiar. Assim, diante
do não-pagamento, a escassez de recursos motiva o ingresso com nova ação. Trata-se do
exercício de poder por parte do ex-marido, que se vale da sua condição de estar longe da prole
para deixar o ônus de arcar com as despesas materiais com a detentora da guarda. E, a
demanda do judiciário por parte desta significa uma maneira de estabelecer a igualdade, por
meio da intervenção do Estado-Juiz que obriga o pai inadimplente a efetuar o pagamento da
pensão sob pena de prisão.
No entanto, não somente os recursos motivam as novas ações. Outros motivos que
impulsionaram aquela força motora para vencer a resistência de buscar o judiciário para tratar
de questões pessoais, como: questões de foro íntimo, derivadas do desejo de romper
definitivamente os laços com o ex-marido, algumas vezes pelo fato de ele ter constituído nova
família, outras pela vontade da entrevistada de se envolver sentimentalmente com outro
homem; como também a mágoa pela desconsideração com os filhos, por deixar o ônus apenas
com a detentora da guarda e em nada contribuir para o sustento material dos filhos; além
daquele resquício de sentimentos, frutos dos conflitos que ensejaram a separação, ainda não
esquecidos.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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26
DA POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO CONTRADITÓRIO E DO DIREITO DE DEFESA NA FASE PRÉ-PROCESSUAL 1
Leonardo Augusto Marinho Marques. 2
Erika Cristina Nunes.3
Wanderson Gutemberg Soares.4
RESUMO: Busca-se compreender, por meio do método jurídico-teórico, orientando-se
através do estudo de casos, visando abordagem dialética, a investigação preliminar no
processo penal, à luz dos princípios constitucionais do contraditório e do direito de defesa,
sob a perspectiva do modelo constitucional de processo, voltado para a promoção dos direitos
fundamentais. Entende-se que a incidência de tais princípios, na fase pré-processual, contribui
para a afirmação do investigado como sujeito de direitos e para a realização dos direitos
fundamentais no processo penal.
Palavras-chave: Modelo constitucional de processo; Inquérito Policial; Direitos
Fundamentais.
ABSTRACT: Try to understand, through the legal-theoretical method, guiding it through
case studies, dialectical approach to the preliminary investigation in criminal proceedings, in
light of the constitutional principles of adversarial proceedings and the right to defense, from
the perspective of model of constitutional process, towards the promotion of fundamental
rights. It is understood that the incidence of such principles, in the pre-procedure, contributes
to the affirmation of the investigated as a subject of rights and the realization of fundamental
rights in criminal proceedings.
Keywords: Model of constitutional process; police investigation; Fundamental Rights.
1. INTRODUÇÃO
A maioria dos autores de processo penal defende a inaplicabilidade do contraditório
e do direito de defesa na fase de investigação, por entender que a incidência desses princípios
inviabilizaria ou dificultaria a atividade da polícia judiciária na coleta de informações
mínimas sobre a autoria e a materialidade do fato. Inegavelmente, esse entendimento confere
primazia ao interesse público, atribuindo ao Estado plenas condições para investigar
determinada infração penal, em detrimento de eventuais direitos outorgados ao investigado.
1 Artigo resultante de pesquisa desenvolvida na PUCMinas, campus São Gabriel, no Programa de Iniciação
Científica Voluntária – PICV 2008/2009. 2 Advogado e Professor de Direito Processual Penal da PUCMinas.
3 Bacharel em direito e integrante do PICV 2008 e PIBIC 2009 da PUCMinas.
4 Bacharel em direito e integrante do PICV 2008 e PIBIC 2009 da PUCMinas.
27
Há também quem aponte a impossibilidade prática de se realizarem essas garantias,
sob o argumento de que a investigação precede a identificação da autoria. Desconhecendo-se
o autor, não haveria como assegurar o contraditório e o direito de defesa.
Mesmo sem enfrentá-los imediatamente, acredita-se que os obstáculos apontados
pela teoria sejam frutos de uma mentalidade inquisitória que vem prevalecendo na realidade
processual penal brasileira desde o período das Ordenações e que ainda se faz bastante
presente no Código de Processo Penal de 1941.
Esta mentalidade reforça o mito da busca da verdade absoluta, por meio de um
procedimento que concentra o poder e as funções nas mãos do Estado, reservando-lhe a
gestão da prova, com o objetivo de impedir a participação dos afetados e de eliminar qualquer
oportunidade de contestação ao poder. Nesse quadro, compreende-se a política de defesa
social, a concentração de funções, a atuação de ofício, a redução do investigado à condição de
objeto de investigação, a ausência do contraditório e o sigilo como características basilares do
método inquisitorial.
O problema diagnosticado é que grande parte dos autores brasileiros tem classificado
o sistema processual brasileiro como misto ou acusatório formal. Neste, a fase pré-processual
é pautada pela forma inquisitiva, enquanto a fase processual pela forma acusatória. Ocorre
que a manutenção do método inquisitivo na investigação preparatória representou um grande
golpe contra o método acusatório, restabelecido na França após a queda do Antigo Regime,
sob manifesta influência das idéias liberais.
Importante esclarecer que o golpe foi engendrado por Napoleão Bonaparte, logo que
ele assumiu o poder no início do século XIX. Ao ditador não interessa o processo penal
democrático compromissado com a promoção dos direitos fundamentais, razão pela qual se
retornou ao modelo processual que privilegia a concentração de poder. 5
O golpe consiste no fato da prova ser colhida antecipadamente no inquérito, sendo
depois introduzida no processo, para ser impugnada tardiamente pelo acusado sob manto de
garantias constitucionais tardias: presunção de inocência, contraditório, ampla defesa, dentre
outros. Lopes Júnior elucida a farsa do sistema misto:
A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo
trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do
julgador pra imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais variadas
fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova judicializada;
cotejando a prova policial com a judicializada; e assim todo um exercício
5 Cf. COUTINHO (2001)
28
imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação,
que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição. O
processo acaba por converter-se em uma mera repetição ou encenação da primeira
fase. (LOPES JÚNIOR, 2005, p. 170).
Sem dúvida, a aceitação do modelo misto entre os processualistas brasileiros tem
contribuído para a perpetuação do método inquisitório, dificultando a afirmação de direitos do
investigado no curso da fase preliminar.
Partindo, portanto, do modelo acusatório delineado na Constituição da República6,
procurar-se-á romper com a mentalidade inquisitiva do Código de Processo Penal, criando
condições para se compreender a incidência do contraditório e do direito de defesa na
investigação policial.
2. O INQUÉRITO POLICIAL E A PROMOÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Conhecida como fase pré-processual e/ou investigação preliminar, o inquérito
policial é, antes de tudo, o local em que há o predomínio do método inquisitivo no sistema
processual penal brasileiro.
As atividades exercidas na fase pré-processual são de extrema necessidade para o
processo penal, pois, é nessa fase, antecedente e primária, que se deve reunir os elementos que
irão justificar o processo ou o não-processo (hipóteses de arquivamento), já no contexto de
promoção dos direitos fundamentais.
Como o inquérito policial segue a lógica do sistema inquisitório e a Constituição da
República consagrou o modelo acusatório, necessário se faz promover uma interpretação
constitucionalmente adequada da investigação. Definitivamente, o inquérito policial precisa se
legitimar no horizonte dos direitos fundamentais.
Afinal, no Estado Democrático de Direito não é possível sustentar a primazia do
interesse público sobre o interesse individual, reflexo daquela velha oposição entre autonomia
pública e autonomia privada, originária da filosofia política7. Ao contrário, pensa-se,
atualmente, na existência de um ambiente abrangente de proteção aos direitos fundamentais.
Nesse ambiente, existe uma nova relação de reciprocidade e de complementaridade entre a
6 O Brasil adotou, constitucionalmente e de forma explícita, o sistema acusatório. Este, por sua vez, tem como
principais características: separação das atividades de acusação, defesa e julgamento; gestão das provas pelas
partes; imparcialidade do juiz; vedação da atuação de ofício por parte do Juiz; procedimento oral e público;
incidência dos princípios do contraditório e da ampla defesa; livre convencimento motivado do juiz. 7 Cf. Habermas (1997), Habermas (2002) e Habermas (2003).
29
perspectiva coletiva e a perspectiva individualizada. E, nesta última, é que reside a
possibilidade concreta de incidência do contraditório e do direito de defesa.
Inevitavelmente, esta nova realidade se projeta sobre a investigação preparatória.
Essa nova releitura sobre a tutela dos direitos fundamentais no processo penal exige que se
rompa com aquele antigo binômio segurança x liberdade. 8 Por certo, não são apenas esses
dois os direitos fundamentais que estão em jogo no processo penal. O direito à intimidade, à
privacidade, à imagem, à honra, ao sigilo telefônico, ao sigilo de correspondência, à
integridade física e moral, dentre tantos outros, que, também se inserem na realidade
processual penal, ao lado da segurança e liberdade, reclamando idêntica proteção, seja na fase
investigatória ou na fase processual.
É justamente nessa enorme perspectiva de promoção dos direitos fundamentais que
se pretende estabelecer a incidência do contraditório e do direito de defesa.
3. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E SUA APLICABILIDADE NA FASE PRÉ-PROCESSUAL
O Estado é o único titular do poder de julgar, aplicar e fazer com que se execute
penas. Mas não é esse, simplesmente, o seu papel. É atribuída ao Estado, primordialmente, a
proteção ao indivíduo.
Cabe frisar que as garantias e princípios constitucionais são válidos, pois vigentes,
existem juridicamente e isso os tornam de observância obrigatória, ou seja, os fazem exigíveis
e cogentes9.
A inteira submissão do acusado/indiciado face ao Estado, frente à fase de inquérito,
implica a adoção de um sistema penal autoritário. A democratização do processo ocorrerá
através do fortalecimento da participação e representação do indivíduo que ocupa o lugar
processual de sujeito passivo.
Para tanto, não se pode ter uma leitura e interpretação da fase investigativa/pré-
processual de forma desvinculada da Constituição. Deve-se evitar a inversão lógica,
paleopositivista10
.
8 Oliveira (2004).
9 Cf. Silva (2007).
10 Cf. Lopes Júnior (2005): “os paleopositivistas restringem a eficácia garantista da Constituição para fazer com
que esta entre na sistemática autoritária e separada do nosso CPP.”
30
Ressalte-se que não há que se falar em ordenamento jurídico infraconstitucional que
possa concorrer de forma horizontal com a Constituição. Todo ordenamento jurídico, seja ele
anterior ou ulterior à Constituição de 1988, estará submetido ao ordenamento constitucional,
onde terá sua principal fonte formal. Sua compatibilidade em relação à Constituição se dará
da forma vertical, posto que deverá se ater ao princípio da supremacia da Constituição11
.
Nesse sentido, o princípio do contraditório e o direito de defesa12
tornam-se itens
essenciais e primordiais na compleição de um processo constitucional que, verdadeiramente,
seja instrumento de efetivação dos direitos fundamentais.
A Constituição democrática que possuímos e os direitos e garantias fundamentais por
ela integrados frente ao Estado Democrático de Direito, se associam para que haja a
possibilidade de incidência e realização efetiva desses princípios no processo penal e,
consequentemente, na fase pré-processual.
É inconcebível pensar no exercício de qualquer das funções estatais que não tenham
como base e fundamento o respeito efetivo aos direitos fundamentais consolidados.
Entretanto, tais princípios e garantias são menosprezados diariamente pela prática viciada em
que estamos mergulhados, principalmente, quando observados desde a fase pré-processual,
passando pela persecução e no que esta resulta, excluindo-se de nosso cenário processual
penal a democracia que apresentam.
Assim, apesar de constitucionalmente previstos, princípios e direitos fundamentais
possuem, em sua maioria, conceitos abertos, o que permite que sua aplicabilidade seja
cerceada por doutrinas que, ao invés de buscar sua efetivação, a obstaculizam dando espaço
ao chamado “decisionismo13
” e “subjetivismo14
” jurídico-doutrinário, que buscam avaliação
por meio de valores.
Devemos nos ater ao fato de que, apesar de buscar a ordem e a unidade, o sistema
jurídico não é harmônico, de forma absoluta. Assim, por não ser imutável ou de fácil e
coerente adequação, não é possível que se exija uma perfeita conformação de suas normas.
11
Esse exercício efetivo dos princípios e garantias na atividade jurisdicional, como um todo, bem como na
aplicabilidade da lei, é derivado da superioridade da Constituição face, não só ao ordenamento jurídico, como,
também, ao Estado. 12
Derivados do princípio da igualdade processual e corolários do devido processo legal. 13
Fenômeno jurídico que supervaloriza a decisão (sentença), não se situa na norma ou em sua imperatividade. 14
Doutrina filosófica onde o sujeito é a fonte da verdade. Mas, tal verdade é individual, própria.
31
Um modelo de raciocínio apropriado seria o modo problemático15
que implica, não
na inexistência de um sistema, mas a existência de um sistema não rigoroso. A partir de uma
perspectiva democrática, o Estado Democrático de Direito pressupõe um ordenamento onde é
possível diversidade de aplicações quanto ao tradicionalmente imposto, ou, pelo menos, que
se discuta tais aplicações.
Contudo, grande parte do nosso Judiciário originou-se em escolas de direito baseadas
no paradigma liberal16
. E, por esse motivo, teimam na aplicação mecânica da norma.
Entretanto, na via procedimentalista da Constituição, sob a ótica de Fazzalari17
, adotada em
nosso país, o contraditório se apresentaria como principal elemento do processo, melhor:
como elemento definidor.
Sendo o contraditório e o direito de defesa garantias constitucionalmente previstas,
não se deve restringir seu campo de atuação por meio de meras interpretações legislativas ou
através de aplicações erroneamente horizontais da norma constitucional, do contrário, não se
estará diante de um processo constitucional democrático.
(...), é indispensável que os direitos fundamentais sejam efetivados, única forma de
permitir que a soberania popular se manifeste na sua integral inteireza. Num país de
excluídos como o Brasil a presente discussão ganha contornos críticos e bem
definidos: a defesa dos direitos fundamentais é o único caminho seguro para
consolidação da democracia. (CRUZ, 2001, p. 242).
O direito de defesa18
e o contraditório19
fazem com que o indiciado tenha efetiva
ciência dos atos praticados e participe da produção de elementos probatórios. Visam propiciar
ao investigado a possibilidade de produzir e acompanhar provas, de ter o acompanhamento de
defensor técnico e a possibilidade de, facultativa e pessoalmente, participar de atos, na fase
processual como na fase pré-processual. Além disso, poderá conhecer, claramente, a
imputação que lhe é feita, bem como ter liberdade de se manifestar, dentro das previsões
legais.
O que se pode observar é que, na prática, o direito de defesa se encontra prejudicado.
Afinal, quase não há atuação de defensor durante a fase de inquérito. As exceções se
apresentam quando a situação financeira do indiciado o permite constituir procurador. Na
esmagadora maioria, não há a presença de defensor público ou nomeação de defensor dativo,
15
Cf. Galuppo (2001), é um modo de raciocínio não-sistemático do aplicador, “em que o contorno fático do
caso interfere no próprio sentido das normas jurídicas.” 16
Cf. Cruz (2001). 17
Cf. Pellegrini (2003). 18
Cf. Lopes Júnior (2005): como poder correlato de ação. 19
Cf. Pellegrini (2003): definido como uma efetiva participação das partes na persecução processual e na
produção do provimento final.
32
mesmo para que presencie e defenda, formalmente, os interesses do indiciado ante ao
interrogatório policial, conforme previsão legal.
A efetiva aplicação das garantias constitucionais acaba por assegurar o acusado
frente à acusação, minimizando sua hipossuficiência frente ao Estado e permitindo equidade.
Possibilita, ainda, segurança jurídica não só ao acusado/indiciado, mas ao autor e à
coletividade, pois, acabaria por justificar ou impedir acusações com indícios insuficientes ou
não-razoáveis.
O processo nasce a partir da apresentação da denúncia do Promotor, devendo dispor
de requisitos, legalmente previstos, para que seja recebida em Juízo. E o seu instrumento
legal, aquele que instrui a denúncia e atribui a ela indícios de autoria e materialidade, mesmo
que não exclusivo, é o Inquérito Policial.
Tourinho Filho (2005) entende que a efetiva aplicação do contraditório na fase pré-
processual afetaria a investigação produzida pela polícia judiciária. Entende, ainda, que
quando a Constituição se refere ao processo administrativo, não estaria se referindo ao
inquérito policial, mas, sim, a um processo que tenha como resultado o conhecimento de
ilícitos administrativos, principalmente, devido à possibilidade de aplicação de uma punição.
Como se pode ver firmou-se, doutrinária e jurisprudencialmente, a idéia de que não
se aplicam, à fase de inquérito, os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Tal aceitação afeta o valor dos elementos obtidos em tal fase preliminar. Os
argumentos para não aplicação dos princípios aqui discutidos são: a natureza inquisitiva e
informativa do inquérito policial, bem como a natureza meramente administrativa do
procedimento. Este último, um dos principais, se firma na teoria de que não seria necessário,
em um simples procedimento administrativo, que o acusado se pronuncie a respeito dos fatos
contra ele imputados, por não resultar, tal procedimento, em decisão ou sentença que o possa
prejudicar/condenar. Contudo, segundo Cretella Júnior:
(...) processo designa entidade que, em essência, naturalmente, ou ontologicamente,
nada difere da que se designa por procedimento (Tito Prates Fonseca, Lições de
Direito Administrativo, p. 203, e Marcello Caetano, Manual... cit., p. 726), podendo-
se, quando muito, quantitativamente, denominar de processo o conjunto de todos os
atos e procedimento tão-só um ou um grupo desses atos. (CRETELLA JÚNIOR,
2004, p. 32).
Ainda, conforme Cretella:
(...) processo é o todo; procedimentos são as partes que integram esse todo. Dentro
de uma operação maior e global, contenciosa ou não, penal, civil ou administrativa,
que se desenvolva entre dois momentos distintos – o processo –, cabem outras
33
operações parciais ou menores – os procedimentos – que, em bloco formando uma
unidade, concorrem para completar a operação mais complexa, mencionada.
(CRETELLA JÚNIOR, 2004, p. 33).
Destarte, é equivocada a interpretação no que tange a aplicação do termo processo
administrativo. Além disso, claro é que, na fase investigativa, há a predominância das
atividades probatórias, pretendendo-se embasar futura e eventual ação penal. Apesar disso,
dissociou-se a imagem do "acusado", figurando apenas o "indiciado", por não se ter, ainda, a
identificação da autoria nem a denúncia formal. Questão meramente terminológica.
Nesse sentido é o entendimento de Lopes Júnior:
A postura do legislador constitucional no art. 5º, LV, foi claramente garantidora, e a
confusão terminológica (falar em processo administrativo quando deveria ser
procedimento) não pode servir de obstáculo para sua aplicação no inquérito policial.
Tampouco pode ser alegado o fato de a Constituição mencionar acusados e não
indiciados é um impedimento para sua aplicação na investigação preliminar. Sucede
que a expressão empregada não foi só acusados, mas sim acusados em geral,
devendo nela ser compreendida também o indiciamento, pois decorre de uma
imputação determinada. Por isso o legislador empregou acusados em geral, para
abranger um leque de situações, com um sentido muito mais amplo que a mera
acusação formal (vinculada ao exercício da ação penal) e com um claro intuito de
proteger também ao indiciado. (LOPES JÚNIOR, 2005, p. 245).
Assim, fazer separação entre processo e procedimento, ou limitar a aplicabilidade e a
efetividade de garantias e direitos fundamentais por questões relacionadas à interpretações
terminológicas, é ater-se à parte de um todo complexo. Nesse sentido, tal parte se apresenta
alheia ao todo que a complementa, separando fases que formam o processo em si, e que
possibilitam a formação de toda a instrução, criando a persecução processual e firmando o
convencimento do juiz para que se chegue ao provimento final: a sentença.
Por meio do raciocínio apresentado, torna-se necessário que se tenha uma conexão
entre a fase pré-processual e a fase processual como parcelas de um todo que, juntas, e de um
modo sincrético, possibilitem e desenvolvam a persecução processual, visando a satisfação
jurídica na sentença e, assim, seja possível a criação de segurança jurídica, não apenas numa
perspectiva geral, mas, também, vista pela ótica do iniciado/denunciado, em todos os
momentos processuais.
Não há, ainda, como se argumentar a negativa ao contraditório na fase pré-
processual, baseando-se no fundamento de que há participação do Ministério Público, atuando
como custos legis. Não desmerecendo a função (por lógico, posto sua importância e
necessidade), mas, valorando e tornando efetiva a participação da parte legítima, para atuar
em contraditório (posto ter interesse na futura demanda, passível de ser proposta, e,
34
consequentemente, no provimento final). Sob esta perspectiva, observemos os dizeres de
Cruz:
Também no discurso de aplicação imparcial do direito, a noção procedimental e
comunicativa das partes envolvidas torna-se base de legitimidade do Estado
Democrático. As pretensões juridicamente dedutíveis devem ser reciprocamente
reconhecidas pelos operadores do direito. A constituição e a democracia não serão
salvas por juízes e promotores travestidos de super-homem/mulher-maravilha
defensores da ética e da justiça. Ao contrário, a efetividade/legitimidade
constitucional encontra seu fundamento nos instrumentos processuais capazes de
realizar tais valores. O acesso à ordem jurídica, a eficácia da tutela jurisdicional, o
contraditório, a igualdade entre as partes, a fundamentação das decisões judiciais,
dentre outros princípios, são o fundamento de um processo jurisdicional
democrático, desde que unidos a uma perspectiva ética no discurso da aplicação
jurídica. (CRUZ, 2001, p. 227).
A produção de material de cunho probatório, de modo unilateral, na fase pré-
processual, é um exemplo da ausência do contraditório e, consequentemente, do direito à
defesa do indiciado. Com o objetivo de informar a acusação e de justificar o processo, tal
material é angariado durante a fase pré-processual e, na prática, confirmado na fase
processual, ganhando força e validade de prova. Nestes termos a acusação possui uma
vantagem substancial em relação à defesa, o que evidencia a desigualdade provocada pela não
aplicação do contraditório. Ora, há evidente desrespeito/ataque aos princípios, direitos e
garantias fundamentais se a acusação elabora todo o aparato probatório durante a fase pré-
processual, por meio de poderes estatais de polícia e, simplesmente, apresenta-o na fase
processual, onde é meramente confirmada.
Tomando por base os estudos estatísticos nos arquivos e nas publicações
especializadas do Judiciário, realizadas pelo doutrinador Alexandre de Moraes
temos que: 95% do processos criminais no Brasil, resultam de denúncia embasada
em Inquérito Policial. Por sua vez, os juízes, utilizam-no para receber ou rejeitar a
acusação; para decretar a prisão preventiva ou conceder a liberdade provisória; para
determinar o arresto, seqüestro e o confisco de bens, etc.; para decidir crimes graves,
como estupro, roubo, furto qualificado, estelionato, tráfico de drogas e contrabando,
esse último, o número chega a 100%. (ANDRADE, 2008, p. 04).
Partindo do pressuposto de que há uma disparidade, enorme, entre o indiciado e o
Estado, este último, investido na função administrativa investigativa, por meio do seu poder
de polícia, durante o inquérito policial/fase pré-processual, surge a exigência de um
tratamento que vise igualar os desiguais. Assim, ao indiciado deve ser concedido direitos e
garantias fundamentais, no caso específico, o contraditório e o direito de defesa, na fase pré-
processual, como exigência para uma igualdade formal e material.
Para que o processo penal trate o indiciado como sujeito, amparado por direitos e
garantias fundamentais, constitucionalmente previstos, tanto na fase processual como na fase
pré-processual, é essencial que se estabeleça a possibilidade de efetiva igualdade entre as
35
partes, e esta acontece quando o Estado (polícia judiciária e Ministério Público) e o indiciado,
sujeito de direitos, encontram-se em um mesmo plano processual, ou seja, como partes,
legitimamente, ativas em contraditório, possibilitando efetivo exercício do direito de defesa.
4. ESTUDO DE CASOS
É na análise de casos concretos, autos processuais, que se pode perceber o grande
problema acarretado ao processo penal pela inaplicabilidade dos princípios do contraditório e
do direito de defesa.
A manutenção do cárcere do indiciado/acusado, sem uma sentença transitada em
julgado, por exemplo, traz consigo um enorme prejuízo para a defesa ferindo os princípios em
questão, além, é claro, da presunção de inocência.
Nesse mesmo sentido, são as palavras de Ferrajoli:
(...) a custódia preventiva (...) pode ser considerada favorável somente por quem
considere o papel da defesa como obstáculo inoportuno e a investigação como
inquisição da parte. Contrariamente, dentro de uma concepção cognitiva e acusatória
de processo ela não só não é necessária, mas prejudicial à averiguação da verdade
por meio do livre contraditório. (FERRAJOLI, 2006, p. 448).
Analisando o processo nº 245.07.124.869-5, verificamos que o denunciado foi preso
no dia 13/07/2007, conforme se pode verificar nos autos:
AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO (fls. 02) 13/07/2007 (às 03:00
horas). (...) diante do fato foi dado voz de prisão em flagrante ao conduzido
presente, foi lido e resguardado os seus direito constitucionais e sua integridade
física. (SANTA LUZIA/MG, 2007a).
Este, somente deixou os cárceres após a sentença final, em 20/11/2007, ficando, ao
total, 131 (cento e trinta e um) dias preso, como é possível verificar na sentença abaixo:
SENTENÇA (fls. 109 a 115) 20-11-2007. Fundamentação (...) A autoria, no entanto,
não restou devidamente comprovada, uma vez que não existem nos autos provas
concretas e seguras de que o acusado trazia consigo as substâncias entorpecentes
apreendidas, bem como que ele tentou dispensa-las (sic), jogando-as debaixo do
assento do ônibus, ao avistar os policiais militares, que adentraram no coletivo. (...)
JULGO IMPROCEDENTE a denúncia para ABSOLVER P.A.O., (...)/Autorizo a
incineração da droga, observadas as cautelas legais./Custas pelo Estado./Expeça-se
incontinenti alvará de soltura./Após o trânsito em julgado, expeça-se alvará em favor do acusado para levantamento da quantia em dinheiro apreendida, conforme
Auto de Apreensão de f. 11 e Comprovante de Depósito judicial de f. 43,
restituindo-lhe, ainda, os vales transportes, mediante termo nos autos. (...). (SANTA
LUZIA/MG, 2007b, grifo nosso).
É possível, ainda, perceber que o indiciado/acusado respondendo a todo o processo
preso, teve direitos e garantias fundamentais violados, sendo, ao final, absolvido por falta de
provas.
36
A presunção de culpabilidade, fato este recorrente, pode, também, ser observada, nos
autos do processo nº Processo 245.07.124.504-8, na qual o indiciado/acusado sofreu enormes
prejuízos advindos do descumprimento de norma constitucional. Vejamos:
AUTOS DE PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO E DE APREENSÃO EM
FLAGRANTE ATO INFRACIONAL. (fls. 02) Aos 12 de junho de 2007, às
02h22min, nesta Cidade de Santa Luzia/MG, (...) compareceu com o CONDUTOR
DO FLAGRANTE A.R.R., Policial Militar (...). Que confirma o inteiro teor do
BOPM (...) ao passarem pela Rua (...), depararam com os elementos ora
identificados como E.F.J., B.J.O. e F.B.O. em atitude suspeita; (...); QUE, diante dos
fatos os menores foram apreendidos e o maior preso em flagrante (...). (SANTA
LUZIA/MG, 2007c).
O caso demonstra que o indiciado/acusado fora preso no dia 12 de junho de 2007, e
que durante toda a fase pré-processual e fase processual foi mantido em cárcere.
SENTENÇA (fls. 79 a 82) 30-08-2007 (...). Assiste razão ao Ministério Público e à
Defesa quando pugnam pela absolvição do acusado (...). Assim, o contexto
probatório não deixa a certeza da prática do crime, razão pela qual o acusado deve
ser absolvido. (...) CONCLUSÃO (...). Ao exposto, JULGO IMPROCEDENTE a
denúncia para ABSOLVER E.F.J., qualificado nos autos, da imputação que lhe foi
feita na peça acusatória, nos termos do art. 386, IV, do Código de Processo Penal.
(...). Expeça-se competente alvará de soltura. (...). (Santa Luzia/MG, 2007d).
A garantia da liberdade, prevista na constituição, somente foi conquistada após a
sentença de absolvição por falta de provas e a expedição do respectivo alvará de soltura.
Assim, nesse caso, o indiciado/acusado ficou preso por 80 dias, sendo ao final absolvido.
Alguns poderão dizer que, oitenta dias preso é tempo razoável. Mas se considerarmos que a
Constituição de 1988 garante a liberdade para todos, até que a sentença esteja transitada em
julgado, e que as condições das penitenciárias brasileiras são péssimas, a simples manutenção
do indiciado/acusado nos cárceres é um dos maiores prejuízos que um sujeito pode sofrer.
A violação a direitos e garantias fundamentais é gritante e o juiz, que deveria ser o
principal garantidor de tais direitos, previstos constitucionalmente, acaba por causar mais
embaraço na sua preservação.
Vejamos um despacho de homologação da prisão em flagrante delito:
DESPACHO (fls. 07) “(...) ratifico a prisão em flagrante de P.A.O., por infringir o
contido no Art. 33 da Lei 11.343/06, considerando a quantidade da substância
arrecadada, o alto valor em dinheiro em poder do conduzido com procedência
duvidosa, e o horário em que o mesmo fora encontrado no interior de um coletivo.”
(SANTA LUZIA/MG, 2007e).
Observemos o seguinte: o despacho de homologação citado, faz às vezes de
sentença, antes mesmo da devida instrução processual. Assim, fere vários princípios e
garantias constitucionais. Dentre eles: o contraditório e o direito de defesa, em questão, e,
consequentemente, o devido processo legal. Se não vejamos: ao afirmar que o conduzido
37
infringiu o tipificado no art. 33, da Lei nº 11.343/06; ao afirmar que o valor em dinheiro
apreendido em poder do conduzido era de origem duvidosa; e, finalmente, ao basear a
veracidade das alegações policiais no horário em que o conduzido se encontrava dentro do
ônibus coletivo (22:00 horas, conforme se depreende, inclusive, da denúncia). De acordo com
o art. 5º, da CR/88, em seu inciso LIV, temos que o conduzido, enquanto sujeito de direitos,
não será tratado como culpado, até que se prove o contrário. Desse modo, entende-se como
ilegal a primeira fundamentação que homologa a prisão em flagrante do caso ora estudado.
Outro fundamento duvidoso, o segundo, afirma ser de origem duvidosa o valor em dinheiro
em seu poder. Contudo, mesmo que o fosse, “ninguém é obrigado a produzir provas contra si
mesmo”, e, em sendo assim, o conduzido poderia ter se recusado a responder à pergunta
relacionada a origem do dinheiro ou, até mesmo, calar-se.
Por último, no que tange à terceira fundamentação apresentada, é absurda, posto ferir
o direito a liberdade, por limitar o trânsito dos cidadãos, seu direito de ir e vir, no horário em
que bem lhe provier.
A fundamentação para homologação da prisão em flagrante fere, também, o princípio
da imparcialidade do juiz, tendo em vista o fato de, de forma clara, demonstrar que considera
o conduzido culpado do fato tido como criminoso. Por fim, cabe ressaltar que, em relação ao
caso especificado, o acusado foi absolvido.
Outra característica marcante é a fundamentação da denúncia tendo por base o
inquérito policial.
Denúncia (fls. I a IV), em 26/07/2007. Em face de P.A.O., vulgo “PEDRÃO”, pelo
art. 33, caput, da lei nº 11.343/2006. Consta dos inclusos autos de inquérito policial que, na noite de 12 de junho de 2007, por volta de 22:00 horas, no interior
de um ônibus que se encontrava na Avenida Antônio de Pinho Tavares, Bairro
Cristina, em Santa Luzia/MG, o Denunciado trazia consigo substância entorpecente
sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.”
(SANTA LUZIA/MG, 2007f, grifo nosso).
O caso acima, como na maioria das vezes, demonstra que os autos de inquérito
policial, fundamentam e instruem a denúncia oferecida pelo Ministério Público. Assim,
contraria o que vários autores afirmam: tratar o inquérito policial de “mero procedimento
admistrativo”, sem nenhuma finalidade específica. Podemos perceber a contradição existente
entre a teoria e a prática, também, no termo de interrogatório, no termo de oitivas das
testemunhas e na sentença:
TERMO DE INTERROGATÓRIO (fls. 89 e 90) 1-10-2007. (...) Presente o
Defensor nomeado para o ato Dr. J.M.O. (...)./Presente, o Promotor de Justiça Dr.
C.E.D.P. (...) quesitos obrigatórios/2ª PARTE (...): que os fatos narrados na
38
denúncia não são verdadeiros; que confirma seu depoimento prestado em sede policial (...). (SANTA LUZIA/MG, 2007g, grifo nosso).
No mesmo sentido é o termo de oitiva de testemunha, processo nº 245.07.124.869-5:
“TERMO DE OITIVA DE TESTEMUNHA (...) 2ª TESTEMUNHA DA DENÚNCIA (fls.
93) 11-10-2007. (...) que confirma seu depoimento prestado em sede policial (...).”
(SANTA LUZIA/MG, 2007h, grifo nosso).
Essa mesma lógica segue a sentença, processo nº 245.07.124.504-8:
SENTENÇA (fls. 79 a 82) 30-08-2007 (...). A autoria, por sua vez, não restou
comprovada, uma vez que não existem nos autos provas concretas e seguras de que
o acusado estava, de fato, exercendo o comércio de substâncias entorpecentes no
local. O contexto probatório carreado para os autos mostra que o acusado, não
obstante estar na companhia dos adolescentes infratores, estava comprando bombons
no local onde fora abordado, (...). (SANTA LUZIA/MG, 2007i, grifo nosso).
A validação da fase do inquérito policial, também, está presente nas alegações finais
do Ministério Público, vejamos:
ALEGAÇÕES FINAIS DO MP. (fls. 116 a 18) 16-01-2007. (...). A autoria foi objeto de confissão tanto em fase policial como em interrogatório judicial, amparada perfeitamente pelos depoimentos das testemunhas. (...). (SANTA
LUZIA/MG, 2007j, grifo nosso).
ALEGAÇÕES FINAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO (fls. 115 a 120) 09-05-2008.
(...) A confissão do réu está em harmonia com as demais provas nos autos, em especial com as declarações das testemunhas ouvidas na fase inquisitorial. (...). Diante do exposto, o Minístério Público pugna pela CONDENAÇÃO do acusado
(...). (SANTA LUZIA/MG, 2008, grifo nosso).
Destarte, observemos que as provas corroboradas em fase de inquérito policial,
permeiam o processo penal e sua instrução, sendo praxe processual a simples leitura do que
foi dito em sede policial, seguida da pergunta: “Você confirma o depoimento prestado na
Delegacia?”; obtendo-se como resposta: “sim” ou “não”; e acrescentando-se ao Termo: “(...)
que confirma seu depoimento prestado em sede policial (...)” integralmente ou parcialmente.
Ressalte-se que, em sede policial, o depoimento é o momento em que não se encontram
presentes o contraditório e o direito de defesa e que, em sua esmagadora maioria, não se tem a
presença de defesa técnica, resultando em uma cruel supressão de direitos e garantias
fundamentais.
Assim, verificamos que é no decorrer da fase procedimental, que se percebe a
importância da fase preparatória para o processo como um todo. O inquérito policial visto
como um fim em si mesmo, não demonstra a importância desta fase e o prejuízo que causa ao
interessado, principalmente, quando há a negação da aplicação dos princípios e garantias
fundamentais.
39
Os reflexos do inquérito policial, que estão presentes em toda a fase processual, não
deixam dúvidas sobre a magnitude desse instrumento probatório de acusação. A análise do
inquérito policial demonstra, de forma clara, que a fase pré-processual tem o sentido de
conduzir e instrumentalizar a fase processual. A oitiva de testemunhas, ocorrida nessa fase,
tem como fundamento a legitimação do ocorrido em sede de inquérito, buscando acrescer
toda a prática probatória, contudo, de modo, originalmente, inquisitorial. E é nesse sentido
que os princípios constitucionais ganham um contorno diferenciado, exigindo uma efetiva
aplicação, também, na fase investigativa.
CONCLUSÃO
Com a Constituição de 1988, a manutenção do Código de Processo Penal de 1941 no
ordenamento jurídico pátrio desafia a nova ordem constitucional vigente, qual seja: a de que o
processo penal deve passar, necessariamente, pelo filtro da Constituição de 1988 para poder
atingir o seu objetivo primordial, que é a efetiva garantia dos direitos fundamentais previstos.
Assim, devemos ter a relação entre o processo penal e a Constituição, considerando-se aquele
como um instrumento que garanta a aplicação dos direitos e garantias fundamentais previstos
nesta, tornando-se um processo penal constitucional e, consequentemente, democrático.
Assim, torna-se evidente e necessária a democratização do processo penal, em seu
todo.
Com a efetiva incidência do contraditório e do direito de defesa, visando respeitar o
indiciado/investigado como indivíduo, e não mero objeto de investigação, teremos
resguardados os direitos e garantias fundamentais e o status de sujeito de direitos durante o
inquérito policial.
Tal incidência poderá ser compreendida como um direito/ônus processual para o
indiciado, a partir de uma correta interpretação do art. 5º, inciso LV, da Constituição de 1988,
bem como de uma análise da fase pré-processual por meio da perspectiva problemática e
sincrética do processo penal.
Desta forma, pensar a aplicabilidade e a incidência dos princípios do contraditório e
da ampla defesa requer, antes de tudo, abandonar as influências de um Estado autoritário e de
uma doutrina utilitarista; requer, ainda, consolidar a escolha por um Estado Democrático de
Direito com concepções pluralistas, atribuindo ao indiciado a condição de sujeito de direitos,
40
além de afirmar a função do processo penal como um instrumento de limitação do poder
estatal e ao mesmo tempo garantidor dos direitos e garantias fundamentais.
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43
ESTADO DE EXCEÇÃO E CRÍTICA AO PARLAMENTARISMO EM CARL SCHMITT
Ramon Mapa da Silva1
Daniel Pereira Delvaux2
RESUMO: O objetivo do presente artigo é fazer uma análise do Estado de Exceção em Carl
Schmitt. Utilizando-se das teorias de Schmitt, serão abordados aspectos sobre estado de
exceção, decisão política e soberania. A crítica de Schmitt ao parlamentarismo liberal será
também analisada para a compreensão da soberania na modernidade tardia e do uso do direito
enquanto técnica.
Palavras-chaves: Estado de exceção, parlamentarismo, soberania.
ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze the state of exception in Schmitt. Using the
theories of Schmitt, aspects will be addressed on the state of exception, sovereignty and
political decision. Schmitt's critique of the liberal parliamentary system will also be examined
for the understanding of sovereignty in late modernity and the use of law as technique.
Keywords: State of exception, parliamentary system, sovereignty.
INTRODUÇÃO
O Estado de Exceção é o momento extremo onde não mais existe o direito, mas
prevalece a decisão. Esse conceito limite tratado por Schmitt em “Teologia Política”, e mote
principal de sua análise da soberania, será aqui abordado com o intuito de estimular o debate
acerca da situação da soberania nas atuais democracias liberais, contribuindo para a discussão
sobre o estado de exceção, o conceito de soberano e de soberania, bem como o poder de
decisão como característica do político.
Tendo como base os escritos de Schmitt, esses aspectos polêmicos serão tratados
aqui com o intuito de analisar e demonstrar o que Schmitt estabelece como essencial: a
exceção como fundamento da soberania.
O Parlamentarismo liberal e o problema da homogeneidade e integração nacional
1 Mestrando em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC – MG),
Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC,
Professor do Curso de Direito da UNIPAC de Itabirito e da Faculdade Dinâmica de Ponte Nova. 2 Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica de Ponte Nova.
44
Penso que as expressões lex civilis e jus civile, quer dizer, lei e direito civil, são
usadas promiscuamente para designar a mesma coisa, mesmo entre os mais doutos
autores, e não deveria ser assim. Porque direito é liberdade, nomeadamente a
liberdade que a lei civil nos permite, e lei civil é uma obrigação que nos priva da
liberdade que a lei de natureza nos deu. (Hobbes, 2003, p. 246).
Na teoria hobbesiana, da impossibilidade de obedecer às regras inatas, aos ditames
da razão, às Lex naturalis, o homem cria o Estado, o Deus artificial e mortal3, que lhe imporá
um conjunto de leis positivadas. De acordo com Santos (2007), na concepção de Hobbes, a
justiça é um valor presente na razão humana, que após a criação do Estado, exerce um papel
mantenedor e decisivo, permitindo a estabilidade dos pactos entre os homens. Segundo
Schmitt, a formação do Estado legal positivista não se dá como tipo histórico até o século
XIX, onde o “pensamento de Hobbes penetra e atua eficazmente no Estado legal positivista
do século XIX, mas isso só se realiza de uma forma que poderíamos chamar de apócrifa”`4
(Schmitt, 2004, p.70). Esse Estado do século XIX é o Estado legiferante que assiste à
derrocada do político, como veremos à frente. O estado natural exposto no Leviatã por
Hobbes é um Estado sem lei e o estado civil é um estado de paz justamente porque é jurídico.
Isso leva às ideias de Schmitt sobre a formação e função do Estado levantadas tanto em O
Conceito do Político como em o Nomos da Terra (Nomos der Erde). Assim como para
Hobbes, para Carl Schmitt os Estados surgem para evitar uma situação de “guerra civil
mundial”.5 Tal situação, segundo Schmitt, historicamente quase teve lugar com as disputas
confessionais provenientes da Reforma Protestante. Uma vez que a Igreja não mais conseguia
conter os levantes e os conflitos o Estado toma para si essa função e se torna o garantidor de
um pacto de “não-agressão” entre os envolvidos nas disputas confessionais:
Com a crise da autoridade da Igreja decorrente do movimento da Reforma, a questão
da justa causa se transforma em um fator de exacerbação da inimizade confessional
e de desencadeamento de uma violência crescente. A ordem do Estado moderno
teria sido uma resposta às conseqüências anárquicas e desagregadoras dos conflitos
religiosos dos séculos XVI e XVII. A afirmação do monopólio do direito de guerra
por parte do Estado implicou despojar os grupos em conflito dos princípios de
3 Esse ser artificial recebeu de Hobbes o nome de Leviatã, criatura da mitologia judaico-cristã citada no livro de
Jó como “o mais poderoso dos filhos do orgulho”, e que só possuía Deus como força acima de si. Schmitt
dedicaria um livro à análise do Leviatã como símbolo político, considerado por Habermas sua obra de maior
expressão (prefácio ao Conceito de Político, Del Rey Editora, 2009) 4 Ao termo apócrifa, podemos nos referir a algo sem autenticidade ou não provado.
5 Tal conceito é inserido por Schmitt no texto “Teoria do Partisan” de 1963, segundo Agamben (2004: 13) no
mesmo ano Hannah Arendt utiliza o mesmo termo em “Sobre a Revolução”. Schmitt usa a ideia de Guerra
Civil Mundial para explicar os novos tipos de conflito que estariam sendo criados para substituir os conflitos
do modelo clássico amigo x inimigo que estaria deixando de existir. É a guerra contra o inimigo absoluto. Em
uma das passagens Schmitt diz: “No ano de 1914, os povos e governos da Europa entraram cambaleantes na
primeira guerra mundial sem uma inimizade real. A inimizade real só surgiu a partir da própria guerra, que
começou como uma guerra estatal convencional do Direito Internacional europeu e terminou como uma
guerra civil mundial da inimizade revolucionária entre classes. Quem irá impedir que, de forma análoga, mas
infinitamente mais intensa, surjam inesperadamente novas espécies de inimizade, cuja extensão provoque
manifestações inesperadas de um novo caráter partisan? SCHMITT (2009: 243)
45
legitimidade mutuamente excludentes que cada um deles reivindicava na luta contra
o seu adversário. Com a soberania estatal, se constitui uma instância de decisão e
ordenação da vida coletiva, que pretende ter um caráter último nos limites de um
espaço circunscrito e, com isso, exclui, no interior desse âmbito, todas as decisões e
ordens públicas alternativas. (FERREIRA, 2008:332)
Contudo, Schmitt chama atenção para o fato de que o Estado no fim da modernidade,
e, sobretudo, o Estado contemporâneo, vem, paulatinamente, perdendo sua capacidade de
garantir a paz. Isso porque para que o Estado consiga atingir seus objetivos de manutenção da
paz antes é preciso lidar com a ameaça real e constante de guerra. Tal decorre do fato de que a
existência do Estado pressupõe a existência do Político, e, na lição de Schmitt, o critério
fundamental do político é a separação amigo x inimigo, que somente se sustenta perante a real
possibilidade de guerra.6 A substituição desse critério político pelo critério “apolítico” de
“humanidade” significa, na obra do pensador de Plettemberg, o fim do político, e o fim da
soberania estatal, uma vez que o soberano não mais governa, já que não há mais decisões
políticas a serem tomadas, somente posições gerenciais diante do aparato estatal, uma vez que
o agrupamento amigo x inimigo não existe se todos forem colocados como iguais na forma
maior da humanidade. De fato, sem a separação amigo x inimigo, critério essencial do
político, a soberania, enquanto fator essencialmente político, deixa de existir.7
No período entre guerras o parlamentarismo vive uma profunda crise em toda
Europa, especialmente na Alemanha, Itália e Espanha, e é nessa crise em que Schmitt escreve
a parte mais polêmica de sua vasta obra. Não aceita a crítica fundada na prática do
parlamentarismo (argumento do mal menor) como apregoada em Capitant (LE BRAZIDEK:
2002) e trava a discussão em seus princípios. Uma democracia que descarta o povo das
decisões parece algo ilógico. A única fonte de legitimidade em um regime democrático é a
vontade popular. Na crise ficava claro que no sistema parlamentar os representantes
representavam mais o partido que o povo. Era um governo “do povo” por notáveis. Com a
multiplicação dos partidos formam-se os governos de coalizão, onde estes não assumem seus
atos sendo politicamente irresponsáveis, assegurando impunidade frente aos eleitores. O
parlamentarismo acaba sendo uma fachada do governo dos partidos.
6 Schmitt insiste que aceitar a possibilidade da guerra como fundamento do político, uma vez que pressuposto
para o agrupamento amigo x inimigo, não é fazer apologia da guerra: “A guerra é apenas a realização extrema
da inimizade. Ela não precisa ser nada de quotidiano, nada de normal, tampouco precisa ser percebida como
algo ideal ou desejável, tendo, antes, que permanecer existente como possibilidade real, na medida em que o
conceito de inimigo conserva seu sentido. (SCHMITT, 2009:35) 7 De fato, um agrupamento amigo x inimigo que envolvesse a humanidade como um dos pólos só poderia ter
lugar contra “inimigos da humanidade”, como ocorre na, indevidamente chamada, guerra ao terror. A questão
é que, para que uma guerra nessas condições realmente seja possível, os inimigos da humanidade não podem
ser considerados como humanos, já que, se tal ocorresse estariam inclusos no pólo da humanidade e o guerra
não se justificaria.
46
A defesa de Schmitt de um governo baseado na vontade popular é sensivelmente
distinta do governo democrático liberal baseado no voto e na atuação descontrolada dos
partidos. De fato, em Schmitt uma ditadura pode, e segundo ele, em verdade é, mais
democrática que um governo parlamentarista partidário. Novamente isso decorre da
concepção do político como baseado no agrupamento amigo x inimigo. Uma vez que o
confronto entre tais pólos é público, e envolve os contingentes populacionais dos opositores,
uma unidade entre aqueles que se posicionam em qualquer um dos lados nasce. Essa unidade
possibilita uma vontade popular forte, baseada na homogeneidade do povo que vive a
realidade política. Um ditador representaria melhor essa homogeneidade que um governante
eleito pelo sistema partidário e que tivesse que governar atendendo aos ditames do legislativo
parlamentar. Os partidos que compõe o poder legislativo representam o ideal liberal da
legitimação pelo discurso e defendem interesses distintos dos interesses populares. O
constante conflito de interesses dentro do sistema parlamentar faz ruir a homogeneidade
fundamental para um governo realmente democrático. Ao invés de um agrupamento amigo x
inimigo clássico surgem diversos adversários privados dentro do próprio país, minando a
unidade nacional e impossibilitando o governo de atuar realmente, abrindo espaço para uma
guerra civil. O discutir perpétuo que caracteriza o sistema parlamentar liberal engessa
qualquer possibilidade de decisão, impossibilitando, por conseguinte, a existência de
soberania real. Ademais, a forma parlamentar, que coloca o poder na mão do legislativo
elegeu a lei como forma de legitimação par excellence, gerando o que Schmitt chama de
Estado Legiferante:
Como “Estado legiferante”, designa-se, nesse aspecto, um determinado tipo de
Estado que tem por característica ver a suprema e decisiva expressão da vontade
comum residir em normatizações que aspiram a ser Direito e, por essa razão, exigem
necessariamente determinadas qualidades, às quais se podem subordinar, por
conseguinte, todas as outras funções, questões e áreas públicas específicas. Na
realidade, desde o século XIX, o termo “Estado de Direito” passou a ser entendido
nos países do continente europeu apenas como referência a um Estado legiferante,
mais precisamente ao Estado legiferante parlamentar. A posição destacada e central
do Parlamento partia do princípio de que ele, em sua qualidade de “corporação
legiferante”, compusesse as supramencionadas normatizações com toda a dignidade
do législateur. (SCHMITT, 2007:2)
Em tal Estado a exceção não pode existir, uma vez que todas as questões públicas
precisam ser previstas por leis gerais. Ou a decisão que versaria sobre a exceção estaria
prevista no ordenamento, o que faria que a exceção perdesse seu caráter de imprevisibilidade,
ou essa decisão não seria considerada jurídica. Em verdade, nem mesmo política, uma vez que
o Estado pela visão legalista nada mais é que a corporificação do ordenamento jurídico. Ora,
se, como quer Schmitt, a exceção em política é análoga ao milagre na teologia, um evento
47
inesperado, irrepresentável na ordem comum das coisas, e que, uma vez exaurido restaura a
própria ordem comum que rompera (em Schmitt é a partir do eventual, do especial, do
excepcional, que podemos compreender o quotidiano, o geral, o comum) sua positivação pelo
ordenamento esvazia esse caráter excepcional, privando-lhe de sentido. Como nos mostra
Agamben, “o estado de exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter
forma legal” (AGAMBEN, 2004:12). De fato, o estado de exceção é o momento onde o
direito é obrigado a lidar com a vida, na sua complexidade extremada que não pode ser
reduzida a nenhuma normatividade. Por isso o positivismo, iminentemente formal e desligado
da existência real do direito não reconhece a exceção. O positivismo jurídico, por não aceitar
a exceção como algo jurídico, uma vez que afeito unicamente a normatizações gerais é,
incontornavelmente, contrário à soberania e incapaz de compreender o fenômeno jurídico em
toda sua profundidade:
Max Planck ha demonstrado cómo el positivismo de las ciencias naturales, em su
interés por alcanzar una seguridad incondicionada solo tiene em cuenta la impresión
de los sentidos y, en consecuencia, no puede distinguir las percepciones engañosas e
ilusorias de las otras; por eso en una física positivista no caben ilusiones de los
sentidos. El destino del positivismo de la ciencia del derecho, interesado solamente
em la seguridad y en evitar la arbitrariedad subjetiva, tiene cierta semejanza com
esse mismo hecho. Si falla la normalidad de la situación concreta que la norma
positiva presupone, pero que, si se considera positivo –jurídicamente, es
imperceptible, entonces caería con ella posibilidad firme, previsible e inquebrantable
de aplicación de la norma. También la “justicia de la positividad”, de la que habla
Erich Jung, cesaría. Sin el sistema de coordenadas de un orden concreto, el
positivismo jurídico no consigue distinguir entre justicia e injusticia, ni entre
objetividad e arbitrariedad subjetiva. (SCHMITT, 1996:44)
Como vimos até o momento, Schmitt critica o Estado liberal em três momentos: em
primeiro lugar no abandono da forma política, caracterizado pela substituição do agrupamento
amigo x inimigo pelo conceito apolítico de humanidade, depois a forma legalista de
fundamentação própria do Estado Legiferante, e, por último, a incapacidade desse Estado
apolítico e legalista de lidar com a exceção, pressuposto da soberania. A essa altura é
fundamental recordarmos que, o soberano, em Schmitt, representa a vontade do povo, e é
capaz de manter a integridade da nação apesar das ameaças constantes representadas pelo
pluralismo, que encontra na forma partidária a via para minar a integração política e a
soberania.
O fato de o sistema parlamentar se basear no voto popular para legitimar a
investidura de seus representantes não afeta a crítica de Schmitt. Segundo ele o voto nada
mais é que uma vontade privada que não coincide, necessariamente, com o melhor para a
nação. Um amontoado de vontades privadas não constrói uma vontade pública por serem de
naturezas claramente distintas. Ao governo da maioria imposto pela forma liberal de agir
48
“político”, Schmitt opõe o governo de todos, baseado na vontade popular homogênea
representada pelo soberano que exerce uma função de real integração política:
Carl Schmitt afirma ainda que o presidente do Reich não representa apenas um
poder neutro, mas tem também uma função de integração política nos termos de
Rudolf Smend, pois representa o Estado em contraposição ao pluralismo do
Parlamento. A unidade política do Estado, para Schmitt, está representado pelo
presidente, eleito por toda a nação. (BERCOVICI, 2009:78)
O presidente do Reich agiria de forma neutra, uma vez que independente dos
partidos, não beneficiando ou atendendo nem a um nem a outro. Aqui reside mais uma crítica
à forma positivista de se fazer direito. Kelsen diz que a objetividade e neutralidade da Teoria
Pura do Direito podem ser vistas no fato de a mesma ter sido acusada de legitimar posições
das mais discrepantes, como a nacional socialista e a liberal. Contudo, não é o servir a todos,
mas o não servir a ninguém que caracteriza a neutralidade.
Schmitt via com péssimos olhos o pluralismo político de sua época como uma
desintegração do Estado. A autoridade estatal estaria sendo usurpada por poderes outros,
tornando impossível qualquer integração política minimante sólida. De Popitz, Schmitt
empresta o termo policracia:
Essa situação foi chamada por Popitz de policracia, com a qual se encontra
qualificada de forma sumamente acertada um fenômeno de características especiais
que, embora esteja estreitamente ligado ao pluralismo de nosso sistema político, não
é absolutamente idêntico a ele. Na economia publicada Alemanha, reina hoje uma
“pluralidade quase ilimitada de entes detentores de vontade da mais variada espécie
e qualificação, não suficientemente ligados entre si”. (SCHMITT, 2007:134)
Em 1921, Schmitt publica o ensaio “A Ditadura” (Die Diktatur), em que enfatiza o
papel do Presidente do Reich (Reichprasident) na recém fundada República de Weimar, no
qual o soberano teria condições de, graças ao artigo 48 da Constituição que garantiria poderes
especiais ao mesmo frente a problemas políticos incapazes de serem resolvidos pela aplicação
hodierna do ordenamento jurídico, efetivamente, encarnar a vontade popular com mais
propriedade decisória que o corpo legislativo, considerando que os parlamentares
inevitavelmente tem um caráter público de debates e equilíbrio de poderes:
“Ao Estado como uma unidade essencialmente política pertence o jus belli, a
possibilidade real de num dado caso, determinar, em virtude de sua própria decisão,
o inimigo e combatê-lo. Com que meios técnicos a luta será travada, que
organização das forças armadas existe, quais são as perspectivas de vencer a guerra,
é aqui indiferente, enquanto o povo unido politicamente estiver pronto a lutar por
sua existência e sua independência, sendo que ele mesmo determina, em virtude de
decisão própria, em que consiste sua independência e sua liberdade”.(SCHMITT,
1992,p.71)
Schmitt parte da idéia do Estado soberano entendido como aquele que tem o poder
de decisão sobre um caso de exceção cabendo ao Estado, através da decisão política
e não em norma consensual, ponto em que faz objeção ao liberalismo e ao
parlamentarismo da República de Weimar, que segundo Schmitt seria incompatível
49
a democracia com este sistema representativo. A falta de autonomia decisória das
ações políticas faz com que ele defenda a ideia de que a “legitimidade política na
sociedade da democracia de massas não se basearia mais em convicções de valores
principais, senão única e exclusivamente na legalidade formal do
procedimento”.(SCHMITT, 1992,p.26)
Na exceção, para que a ação soberana seja realmente eficaz, não deve carecer de
quaisquer legitimações advindas da forma jurídica adotada pelo Estado. Nos momentos em
que a exceção se apresenta, em geral de perigo para a própria vida do Estado, é preciso que o
soberano exerça seu poder de decisão de forma a afastar as ameaças ao Estado. Essa posição
extrema talvez justifique não só a filiação de Schmitt ao nazismo como a apologia de alguns
atos de Hitler em um curto, mas impressionante, texto: O Führer defende o direito.
Nesse libelo Schmitt justifica a ação de Hitler contra inimigos da nova ordem que ele
pretende instaurar como ação contra inimigos do Estado. E fundamenta a concessão de
poderes ao Presidente do Reich com base nessa necessidade de proteção retomando o conceito
de ato de governo:
A fines del siglo XVIII, el Häberlin vinculó el problema del derecho de emergencia
nacional al de la delimitación de los asuntos judiciales y los gubernamentales y
declaró que, en caso de correr peligro el Estado de haber sufrido grandes daños,
puede convertir cualquier asunto judicial en asunto gubernamental. En el siglo XIX,
Dufour, uno de los padres del derecho administrativo francés, definió el acto del
gobierno (acte de gouvernment) sus traído a cualquier revisión judicial como un
acto cuyo propósito es defender a la sociedad; defenderla contra los enemigos
internos y externos, abiertos u ocultos, actuales o futuros. (Schmitt, Carl, El Führer
defiende el derecho, in Carl Schmitt, Teólogo de la Política, colêtanea org. México,
p. 117)
Schmitt desenvolve argumentos sobre a necessidade de um governo soberano, bem
como a forma de agir desse Estado em momentos de crise. Em sua obra sobre o Estado de
Exceção, Teologia Política, que trata do poder de decisão, Schmitt aborda o papel do
soberano, como aquele que decide sobre o Estado de exceção, baseado num conceito de
soberania que não se encaixa num caso normal. Todo Estado, segundo Schmitt, deveria
incluir em sua constituição um elemento ditatorial, a possibilidade de instaurar todos os tipos
de violência a serviço do próprio Direito, do próprio Estado. A soberania, Schmitt define
como o poder de decidir sobre a instauração do Estado de Exceção. Por exceção, entende-se
como o momento em que se sai do Estado de Direito para se instaurar ações excepcionais,
ações de exceção. O Estado usa de dispositivos legais justamente para suprimir os limites da
sua atuação, a própria legalidade e os direitos dos cidadãos. Segundo Agamben, o estado de
exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal. Onde continua
a política depois que o direito deixa de existir.
50
Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção: decisão e soberania
A exceção é um limite, determinando a normalidade e o caso excepcional. O
soberano, portanto, é aquele que “decide sobre o estado de exceção” (SCHMITT: 2006) e
quando este passará a vigorar. Na concepção de Schmitt, o estado de exceção representa uma
transformação existencial da vida e para isso toda norma deveria ser destruída. A decisão do
estado de exceção tem um sentido existencial superior ao da vida cotidiana.
a exceção é mais interessante que o caso normal. O normal não prova nada; a
exceção prova tudo; ela não só confirma a regra, mas a própria regra só vive da
exceção. Na exceção, a força da vida real rompe a crosta de uma mecânica
cristalizada na repetição. (SCHMITT: 2006)
Em Teologia Política, Schmitt trata do importante papel do soberano, que decidiria
sobre a existência do Estado de exceção como também sobre o que deveria ser feito para
eliminá-lo. O soberano estaria incumbido de “decidir sobre a suspensão total da constituição”
(SCHMITT: 2006). O Estado apresenta uma superioridade sobre a norma jurídica em que
podemos afirmar que “a decisão liberta-se de qualquer decisão normativa e torna-se absoluta.
No caso de exceção o Estado suspende o direito em função de um “direito à autopreservação”
(SCHMITT: 2006)
Para a jurisprudência, o Estado de exceção possui um significado análogo ao do
milagre para a teologia. Só com a consciência dessa situação consegue-se
compreender o rumo da evolução das idéias da filosofia do Estado nos últimos
séculos. (SCHMITT: 2006)
A exceção exerceria na política moderna um papel semelhante ao milagre na religião.
É a exceção que “confirma a ordem, é o milagre que reafirma o continum”. Daí a necessidade
de se introduzir um elemento “particular, pessoal e forte” na política moderna, algo que tinha
caído no esquecimento com o obscurecimento do absolutismo político. Schmitt procura
fortalecer o político como vital do estado de exceção que só deveria ocorrer através da ação
de um soberano carismático equivalente ao monarca de direito divino da época absolutista.
Segundo Agamben:
A exceção é a condição de possibilidade da norma jurídica e o próprio significado da
autoridade do Estado. Eis a situação paradoxal, segundo a qual o soberano através
da exceção cria a situação de que o Direito precisa para poder existir, a qual,
ironicamente, é a situação de suspensão do próprio direito.
Para Schmitt, o elemento decisionista e personalista da noção de soberania perdeu o
efeito na modernidade tardia e na conversão do Estado de Direito em Estado Legiferante. O
prevalecimento do ateísmo, suplantando a ideia de Deus pela do homem e a majestade do
51
soberano substituída pela noção de soberania popular leva a falta de um espaço autônomo de
decisão sobre o agir político. Para Schmitt, ordem e segurança devem partir de uma decisão
soberana, ainda mais evidenciada em situações de exceção. As contradições dentro de um
Estado têm que ser resolvidas por ele próprio e em casos de perturbação da ordem pública, até
mesmo, se necessário for, instaurar uma ditadura.
Conclusão
A partir do Estado Legiferante do século XIX a forma decisória cede lugar para um
agir que enxerga no direito uma técnica racional para a dominação. Foi Weber o primeiro a
ver essa característica em suas considerações sobre a burocratização do aparato estatal. Como
leitor de Weber, Schmitt compreende essa burocratização como uma racionalização que afasta
o aspecto existencial do direito, melhor apreendido no momento da decisão e da exceção. Na
sua visão escatológica, esse estado de decadência do político é a homologia do que, em
teologia, se entende por apocalipse. Pela defesa da Teologia Política como algo possível8, é
perceptível que a separação entre mundo espiritual e material em Schmitt não é tão radical
como a tradição ocidental apregoa, por isso sua compreensão do fim do Estado como o
apocalipse não é algo que surpreenda. E é preciso uma decisão soberana para evitar esse fim.
Jacob Taubes, teologicamente, explica:
Schmitt’s interest was in only one thing: that the party, that the chaos not rise to the
top, that the state remain. No matter what the price. This is difficult for theologians
and philosophers to follow, but as far as the jurist is concerned, as long as it possible
to find even one juridical form, by whatever hairsplitting ingenuity, this must
absolutely be done, for otherwise chaos reigns. This is what he later calls the
katechon: The retainer (der Aufhalter) that holds down the chaos that pushes up
from below. That isn’t my worldview, that isn’t my experience. I can imagine as an
apocalyptic: let it go down. I have no spiritual investment in the world as it is. But I
understand that someone else is invested in this world and sees in the apocalypse,
whatever its form, the adversary and does everything to keep it subjugated and
suppressed, because from there forces can be unleashed that we are in no position to
control. (TAUBES, 2004:103)
O pensamento de Schmitt trata do agir político. E sua compreensão está atrelada
necessariamente ao momento extremo da exceção. A racionalidade técnica que herdamos da
modernidade, por ser incapaz de lidar com o excepcional dificulta nossa compreensão acerca
disso. De fato, as críticas a Schmitt parecem vir todas do mesmo lado, de uma defesa do
Estado de Direito como último bastião da democracia, mas ignoram que a pergunta de
8 Em Teologia Política, Schmitt explicita o debate intelectual com Peterson acerca da possibilidade de uma
teologia política.
52
Schmitt não é essa e, que a mesma ainda permanece sem resposta: e se esse Estado de Direito
falhar? E na sua falta? Na sua exceção? E, mais radicalmente como pergunta Agamben, e se,
perversamente, o Estado de Exceção se tornar a regra? E se essa regra for legitimada pela
ordem jurídica legalista tradicional ganhando um status de legalidade, como na questão dos
detidos acusados de conspiração terrorista após o 11 de setembro, privados de qualquer
estatuto jurídico e mantidos numa zona de flutuação entre o criminoso comum e o político?
Sem a compreensão do momento decisório dentro do direito tais perguntas permanecem sem
resposta. Isso fica muito claro na crítica de Habermas a Schmitt e aos demais “modernos
ressentidos”, que não aceitam o projeto da modernidade como a solução para humanidade.
Ainda afeita a muitos conceitos formais e contrafáticos, tal crítica acaba renegando o aspecto
existencial do político. Colocar o mundo da vida como um pano de fundo é ignorar que o
problema começa justamente nesse pano de fundo. Da mesma forma, ignorar a exceção é
fechar os olhos para onde o problema da política e do direito efetivamente toma forma: não
nas leis e na formalidade do ordenamento, mas na complexidade irrepresentável da vida.
Bibliografia:
AGAMBEN, Giorgio, Estado de Exceção, São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
BERCOVICI, Gilberto, Carl Schmitt e a tentativa de uma revolução consevadora, in
Pensamento Alemão no Século XX, Jorge Almeida e Wolfgang Bader (orgs) São Paulo:
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Schmitt, in Revista Kriterion, nº 118, Belo Horizonte: UFMG, 2008, 327-366.
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LE BRAZIDEK, Gwéanel. René Capitant y Carl Schmitt frente al parlamentarismo: de
Weimar a La quinta república. 2002.
SCHMITT, Carl. The Leviathan in State Theroy of Thomas Hobbes: meaning and failure of a
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SCHMITT, Carl, O Conceito do Político/Teoria do Partisan, Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
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SCHMITT, Carl, Legalidade e Legitimidade, Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
53
SCHMITT, Carl, O Guardião da Constituição, Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
SCHMITT, Carl, La Dictadura, Madrid: Revista de Occidente, 1968.
SCHMITT, Carl, Sobre los três modos de pensar la ciencia jurídica, Madrid: Editorial Tecnos, S.A,
1996.
TAUBES, Jacob, The Political Theology of Paul, California: Stanford University Press, 2004.
ZIZEK, Slavoj, Bem- vindo ao deserto do real!, São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
54
GESTÃO MUNICIPAL - NOVOS RUMOS DA ADMINISTRAÇÃO GERENCIAL
Márcia da Rocha Rodrigues1
RESUMO: Este estudo mostra que apesar da Constituição Federal de 88 ter consagrado
autonomia para os municípios, existem ações que podem ser implementadas de acordo com a
necessidade de cada gestor, buscando maior eficiência na prestação do serviço público,
porém, existe a dificuldade orçamentária, pois os municípios possuem autonomia mas não
possuem recursos suficientes para gerir tais conquistas. Para que o município possa promover
uma reforma administrativa eficaz, terá que iniciar o seu processo de modernização ao
elaborar e implantar essa reforma, definindo o seu conceito organizacional e seus princípios
de gestão gerencial, cujo embrião passa pelo controle dos gastos públicos, pelo fortalecimento
da participação popular (orçamento participativo) nas decisões de governo e pela
descentralização das ações, através das administrações regionais, que assumem a execução da
prestação de serviços na ponta e aproxima o cidadão da administração. É de suma importância
para o Município a descentralização das ações municipais através de suas administrações
regionais ou secretarias, baseada na facilitação da gestão orçamentária e o efetivo gasto com a
população local, a qual exercerá uma melhor participação e fiscalização nas ações do
executivo municipal, principalmente no orçamento participativo e na criação de conselhos que
auxiliam e fiscalizam a administração em áreas diversas.
Palavras-Chave: Autonomia Municipal, Descentralização, Reforma Administrativa
ABSTRACT: This study shows that although the Constitution of 88 have devoted autonomy
for municipalities, there are actions that can be implemented according to the needs of each
manager, seeking greater efficiency in public service delivery, however, it is difficult budget
because the municipalities have autonomy but have insufficient resources to deal with such
achievements. For the municipality to promote an effective administrative reform, will have
to start the modernization process to design and implement this reform, defining their
organizational concept and principles of managerial organization, whose embryo passes
through the control of public spending, the strengthening of popular participation
(participatory budgeting) in the decisions of government and the decentralization of actions
by regional administrations, which take the implementation of service delivery at the tip and
near the public administration. It is extremely important for the municipality decentralization
of municipal actions through their regional offices or, based on the facilitation of budget
management and cost effective with the local population, which will have a better
participation and oversight in the actions of the municipal executive, especially in
participatory budgeting and the creation of councils that assist and supervise the
administration in several areas.
Keywords: Municipal Autonomy, Decentralization, Administrative Reformation
1 Aluna do 8º Período do Curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga
55
1. INTRODUÇÃO
Na distribuição dos poderes orgânicos, a cargo do poder constituinte, não foi
deferido ao Município o Poder Judiciário, mas tal fato não retira do Município a condição de
ente federado com personalidade jurídica de Direito Público e competência ampliada na nova
ordem constitucional.
Os municípios podem criar muito pouco no que diz respeito às normas de
estruturação, mas podem inovar quanto às de funcionamento, embasadas no controle
administrativo do Município, bem como na gestão administrativa do mesmo, efetuando a
divisão em secretarias, redistribuindo cargos e descentralizando poderes, em prol de uma
melhor e eficaz administração.
Conforme dispositivo do art. 29 da Constituição Federal de 1988, a organização
municipal é da competência privativa do Município. Assim, a Lei Orgânica adquire uma
categoria diferenciada das leis ordinárias, por conter substância constitucional. A Lei
Orgânica ultrapassa os limites objetivos das leis ordinárias para alcançar o patamar de norma
de substância constitucional, com eficácia normativa restringida à área territorial do
Município. Sob esse aspecto ela é a Constituição do Município.
A Constituição de 1988, em seu art. 1º, incorporou o Município como parte
integrante e autônoma do todo indissolúvel, que constitui o Estado Democrático de Direito
por ela instituído.
Desta forma, a autonomia municipal constitui-se na faculdade de dispor sobre os
assuntos de seu interesse, através de suas próprias leis. Tal autonomia consolida-se pelo
governo próprio e pelo uso de sua competência através da auto-administração.
2. PODERES DO MUNICÍPIO
Segundo o entendimento do Dr. Getúlio Saraiva2, o poder do Município poderia ser
analisado sob a influência de diversas correntes do direito como o jus naturalismo, o poder do
Município decorreria de um direito natural, como uma corporação histórica que é anterior ao
Estado. Seria, assim, um direito e um poder afirmado em si mesmo. Se visto, entretanto, pelo
ângulo do direito positivo, chega-se à teoria da delegação de poder, ao raio cedido de ação
2 Dr. Getúlio Saraiva, disponível em <(coluna dr.getulio saraiva.html no site
http://everardocaioprado.blogspot.com/2009/04/coluna-dr-getulio-saraiva.html)>
56
(Kelsen), sendo o poder do Município uma delegação do poder estatal, que vem expresso no
art. 29 da Constituição Federal.
O Município, por um direito natural reconhecido, ou pelo raio cedido de ação, exerce
poder sobre o seu território, no exercício de sua autonomia, numa extensão de poder estatal,
tanto pelo critério orgânico como pelo funcional.
Ao admitir o exercício do poder pelo próprio povo, deixando de lado a tradicional
declaração, que se continha nas constituições anteriores, de que o poder era exercido em nome
do povo, a nova Constituição de 1988 aderiu ao dispositivo no art. XXI. I., da Declaração
Universal dos Direitos Humanos3, da qual o Brasil é signatário: “Todo homem tem o direito
de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes
livremente escolhidos”.
A divisão de poderes é imposta pelo regime democrático. Essa divisão conduz às três
funções do Estado, sistematizadas por Montesquieu que se representam pelas atividades de
legislação, de administração e jurisdição.
Detentora do Poder Legislativo, constituído pela função de estabelecer normas gerais
e especiais destinadas a definir a vida do Município, cabe à Câmara Municipal deliberar sobre
todos os aspectos da vida administrativa, enquanto ao Poder Executivo é reservada a função
administrativa e executória dessas deliberações.
O Prefeito Municipal, com auxílio dos secretários municipais exerce função de
administrador que limita suas atribuições, subordinando-o ao cumprimento das leis e
resoluções emanadas da Câmara Municipal.
O detentor do poder público é o povo, todo o poder dele emana, nos termos do
parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal.
Na divisão de funções entre os poderes legislativo e executivo se estabelecem
situações específicas. O Prefeito Municipal na direção do Poder Executivo pode influir nos
atos legislativos da Câmara Municipal através do veto, que representa a não aprovação do ato.
Constitui, porém, crime de responsabilidade do Prefeito atentar, de qualquer forma, contra o
livre funcionamento da Câmara Municipal, punível com a cassação de mandato. A Câmara
Municipal, detentora do poder de fiscalizar os atos do Poder Executivo pode interferir na ação
administrativa do Prefeito, mas este não pode interferir nos atos da Câmara.
3 Declaração Universal dos Direitos Humanos; disponível em::<
http://www.sejus.am.gov.br/programas_02.php?cod=0333> em 08 de junho de 2010.
57
À Câmara Municipal cabe, entre outras matérias de sua competência privativa,
suspender, no todo ou em parte, a execução de ato normativo municipal declarado,
incidentalmente, inconstitucional por decisão definitiva do Tribunal de Justiça, quando a
decisão de inconstitucionalidade for limitada ao texto da Constituição do Estado respectivo.
Cabe também à Câmara Municipal, aprovar as contas do prefeito, ao término do mandato,
ratificando ou retificando a posição do Tribunal de Contas do Estado.
3. A AUTONOMIA MUNICIPAL SEGUNDO A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS DA CF/88
A autonomia do Município é dividida em três ordens: política (art. 29, I, da CF),
administrativa (art.29, caput, da CF) e financeira (art. 30, III, da CF). A autonomia política
consiste na eleição do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores e na criação das leis locais,
realizada de acordo com a legislação eleitoral vigorante, ditada pela União. A autonomia
administrativa define-se pelo poder de se organizar juridicamente através de lei orgânica
própria, sem a tutela do Estado-membro, e de dispor sobre a sua própria administração em
tudo que respeita aos seus interesses locais. O referido autor preceitua que o provimento dos
negócios do interesse local “cabe exclusivamente ao Município interessado, não sendo lícita a
ingerência de poderes estranhos, sem ofensa à autonomia local”4. (MEIRELLES, 2001, p.
108).
Ainda, de acordo com o autor acima referido, a autonomia financeira advém do
poder de instituir e arrecadar tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas,
como preceitua a Constituição Federal. O Município, entretanto, não institui imposto, posto
que os de sua competência já venham definidos expressamente na Carta Federal (art. 156).
Cabe-lhe a instituição de taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pelos serviços
prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição, bem assim a contribuição de melhoria,
decorrente de obras públicas.
O mestre José Afonso da Silva5 (1988, p.623-624) enumera quatro capacidades
dentro do conceito de autonomia do Município: capacidade de auto-organização, capacidade
de auto-governo, capacidade normativa própria e capacidade de auto-administração, sendo
definidas como:
4 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª edição. São Paulo, Malheiros Editores, 2001 5 SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª edição. São Paulo, ed. Revista dos
Tribunais, 1988.
58
a) Capacidade de auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria;
b) Capacidade de auto-governo, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores às
respectivas Câmaras Municipais;
c) Capacidade normativa própria, ou capacidade de auto-legislação, mediante a
competência para a elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas
à sua competência exclusiva e suplementar;
d) Capacidade de auto-administração, administração própria, para manter e prestar
os serviços de interesse local.
Competência é a capacidade ou aptidão para alguma coisa. Entende-se por
competência do Município, o somatório das atribuições que lhe são reservadas para o
conseguimento de seus fins, como limite de sua atuação.6 (A Constituição Brasileira de 1988:
interpretações (in II Fórum Jurídico),1990.).
É reservada ao Município toda competência, que não lhe seja vedada pela
Constituição Federal, para cuidar dos assuntos de interesse local.
Hely Lopes Meirelles7 (2001) declara que competências legislativas existem, em
caráter concorrente e supletivo, nas três ordens estatais, e nesse particular é que se avultam as
dificuldades de triagem. Integram a competência do Município, comum à União e ao Estado,
zelar pela guarda das Constituições Federal e Estadual, das leis e das instituições
democráticas e conservação do patrimônio público (art. 23, I, da CF).
A competência do Município é exercida através de agentes com poder funcional. A
capacidade do agente não tem relevância, se vista como aptidão intrínseca da pessoa. É ela um
poder atribuído pela lei aos órgãos ou agentes públicos.
As competências privativas do Município estão previstas no artigo 30 da
Constituição Federal, que estabelece as matérias cuja competência exclusiva é atribuída aos
municípios, e confere poderes para legislar a fim de promover o bem-estar comum local e
para atender as suas funções sociais.8 (Edson Jacinto da Silva, 2009).
A Constituição Federal de 1988 adotou na repartição de competências o critério do
interesse local, sendo tudo aquilo que é inerente à sua faculdade, ou seja, “interesses locais
dos municípios são aqueles que relacionam imediatamente com suas necessidades imediatas,
e, indiretamente, em maior ou menos repercussão, com as necessidades gerais”9 (BASTOS,
2000, p.311).
6 A Constituição Brasileira de 1988: interpretações (in II Fórum Jurídico). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1990. 7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª edição. São Paulo, Malheiros Editores, 2001.
8 SILVA, Edson Jacinto da. Manual do Assessor Jurídico Municipal, 4ª edição, revista e atualizada, editora
J.H.Mizuno, Leme/SP, 2009. 9 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000.
59
Existe a predominância de interesses, não exclusividade, como o diferencial do
interesse local para o interesse geral, até mesmo por estar o Município dentro de um Estado
que integra a federação brasileira, formando a “União indissolúvel”, e por ser parte dessa
coletividade, qualquer benefício ou afetação ao ente local, direta ou indiretamente afetará os
demais entes federativos.
Portanto, interesse local não se confunde com interesse privativo, pois o que está
protegido na Constituição é aquele interesse peculiar, ou seja, próprio e especial. Em cima
desse “interesse local” é que o município desenvolve sua competência legislativa, onde a
Constituição Federal em seu art. 30 apresenta um rol apenas exemplificativo, indicando pelos
pontos básicos da autonomia do Município, deixando um campo aberto onde o legislador
pode trabalhar da forma mais eficiente em prol do interesse do município.
É necessário salientar que com a descentralização das ações através das
administrações regionais, o município terá condições de não somente ouvir da população local
quais são as suas prioridades, como também identificar onde e como a administração
municipal irá aplicar os recursos disponíveis, melhorar o aspecto social durante a elaboração
do orçamento participativo, além de informar à população como está aplicando o erário
público, mediante a desconcentração das ações de fomento econômico e definição de novas
estratégias para o desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico da cidade.
A Constituição de 1988 define os Municípios como membros da Federação, rezando
no seu artigo 18 que “a organização político-administrativa da República Federativa do
Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos
autônomos10
...”. É quando se passa, então, a associar descentralização à municipalização,
vinculando-a ao processo de autonomização das distintas esferas subnacionais entre si.
Mas não obstante a interpretação amplamente partilhada, sobretudo da perspectiva do
governo federal, de que o novo texto constitucional descentralizou recursos, mas não os
encargos – o que vem sendo atribuído a uma transformação não concluída de um novo
sistema federativo brasileiro e à conseqüente redefinição ainda nebulosa das competências e
atribuições.
10
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado,
1988.
60
A) COMPETÊNCIA EXCLUSIVA
É aquela que só entra nas atribuições do Município (art. 30, da CF), com exclusão da
União e do Estado-membro. É exercida, em sua plenitude, dentro da sua área territorial, tanto
na esfera legislativa quanto na executiva. Compete ao Município, privativamente:
I. Legislar sobre assuntos de interesse local, notadamente: emendas à Lei Orgânica; a
instituição, decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e aplicação de
suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade
II. de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; a criação,
organização e supressão de Distrito, observada a legislação estadual; a criação,
organização e supressão de subdistrito; a organização e a prestação de serviços
públicos de interesse local, diretamente ou sob regime de concessão, permissão ou
autorização, incluindo o transporte coletivo de passageiros, que tem caráter
essencial; o plano diretor; o regime jurídico dos servidores públicos municipais; a
organização de serviços administrativos; a administração, utilização e alienação de
seus bens; o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e orçamentos anuais;
III. Construir guarda municipal destinada à proteção de seus bens, serviços e
instalações;
IV. Elaborar o Plano Municipal de Desenvolvimento Integrado;
V. Implantar processo adequado para tratamento de lixo urbano;
VI. Zelar pela guarda e observância de sua Lei Orgânica.
Pelo preceito constitucional contido no art.30, I, todos os atos que visem a realização
dos objetivos do Município, que não conflitem com os interesses da União e/ou do Estado-
membro, podem por ele ser praticados, inclusive através da suplementação da legislação
federal e estadual, quando essas adentrarem na área de incidência dos seus objetivos e
interesses (art.30,II, da CF). Dessa enumeração, embora incompleta, dos itens referenciados à
competência própria do Município se extrai os objetivos municipais.
B) COMPETÊNCIAS COMUNS
A competência comum ou cumulativa ocorre por poder ser exercida pela União, pelo
Estado-membro, pelo Distrito Federal e pelo Município, com a mesma capacidade funcional.
Compete ao Município, concorrentemente, nos termos do art. 23 da Constituição
Federal:
I. zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e
conservar o patrimônio público;
II. Cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas
portadoras de deficiência;
III. Proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e
cultural, monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV. impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros
bens de valor histórico,artístico ou cultural;
V. proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
VI. proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas;
VII. preservar as florestas, a fauna e a flora;
61
VIII. fomentar a produção agrária e organizar o abastecimento alimentar;
IX. promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições
habitacionais e de saneamento básico;
X. combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a
integração social dos setores desfavorecidos;
XI. registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e
exploração de recursos hídricos e minerais em seu território;
XII. estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.
Lei complementar federal fixará normas para a cooperação entre a União, o Estado e
o Município, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito
nacional, nos termos do art.23, parágrafo único, da Constituição Federal.
C) COMPETÊNCIA EM COOPERAÇÃO
Quando uma entidade federativa, a quem não compete originalmente a atribuição
funcional para a prática de certos atos administrativos, adentra validamente e por disposição
legal, na esfera funcional de outra, com vistas ao atendimento aos fins do Estado, em sua
concepção genérica.
Compete ao Município manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do
Estado, programas de educação pré-escolar, de ensino fundamental e prestar serviços de
atendimento à saúde da população (art. 30, VI e VII da CF/88).
Para a realização de tais serviços as partes interessadas devem fixar os deveres, as
responsabilidades e os direitos de cada uma. Não vêm explícitas as formalidades do ato
cooperativo, mas se houver necessidade de aplicação e recursos municipais, haverá
necessariamente que depender o ato de autorização legislativa. A participação do município
justifica-se pela finalidade pública dos serviços em referência.
D) COMPETÊNCIA SUPLETIVA
A competência dita supletiva é a que se estabelece por ampliação, permitindo a
solução de possíveis conflitos, atribuindo-se ao Município capacidade para a elaboração de
leis, em atendimento ao interesse local, versando sobre matéria não definida em sua
competência privativa. No art. 30, II da Constituição Federal, foram facultados ao Município
os mais amplos poderes para suplementar, nos assuntos de interesse local, as legislações
federal e estadual, no que couber.
Essa legislação suplementar torna-se necessária especialmente nos assuntos
relacionados na Constituição Federal, limitada à listagem das competências concorrente ou
62
em cooperação, não podendo adentrar nos assuntos de competência privativa da União ou do
Estado.
E) COMPETÊNCIA DE AUTO-ORGANIZAÇÃO
A Constituição Federal de 1988 inseriu em seu artigo 29 a competência ao
Município, para promover sua auto-organização. Compete ao Município, implementar sua Lei
Orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de 10 dias, e aprovada por dois
terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios
estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado.
Rege o art. 182 da Carta Magna que a política de desenvolvimento urbano, executada
pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o “bem estar” de
seus habitantes. Tal artigo implementa o Plano Diretor, aprovado pela Câmara Municipal,
obrigatório para as cidades com mais de 20.000 habitantes, que é o instrumento básico da
política de desenvolvimento e de expansão urbana.
4. ORGANIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL
A organização dos serviços administrativos compreende-se as repartições públicas
municipais, dos dois Poderes (executivo e legislativo), e todas as atividades diretamente
ligadas à Administração, abrangendo o ensino, a limpeza pública, a saúde pública, a
construção e conservação de rodovias. Esta organização deve ser feita através de leis
específicas.
A Lei Complementar municipal deverá instituir o Plano de Desenvolvimento
Integrado do Município. Enquanto o Plano Diretor limita a sua atuação ao ordenamento
físico-territorial da cidade, o Plano de Desenvolvimento Integrado, que abarca o próprio Plano
Diretor, contempla também os aspectos sócio-econômicos, já que ao Município se abriu a
oportunidade, pelo art. 174, da Constituição Federal, de ação normativa e regulamentadora
das atividades econômicas, posto que o Estado, definido de forma singular na Constituição,
incorpora a União, os Estados-membros e os Municípios, todos os entes federativos.
O art. 37 da Carta Magna de 1988 impõe que a atividade administrativa municipal
obedeça aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade
e eficiência.
63
Os atos da Administração são públicos, a conduta da Administração deve estar
amparada em expressa disposição legal, o procedimento administrativo deve caracterizar-se
pela probidade, objetivando bem comum. A Administração deve tratar a todos igualmente,
sem conferir distinção ou tratamento privilegiado, pautando-se pelo equilíbrio e pelo bom
senso.
O Governo do Município é exercido, em sua função legislativa, pela Câmara
Municipal e, em sua função executiva, pelo Prefeito Municipal, com o auxílio dos Secretários
Municipais. Pelo princípio da independência dos poderes (art. 2º, da CF), é vedada a
delegação de atribuições de um poder a outro, isto é, quem for investido no exercício da
função de um poder não pode exercer a outra, salvo poucas exceções que as Leis orgânicas
podem prever.
Pelo princípio da separação dos poderes, o Poder Legislativo dos Municípios é
autônomo e desvinculado do Poder Executivo, tendo suas funções expressas na Lei Orgânica
do Município, em decorrência da norma fundamental, contida no art.29 da CF.
O mestre José Afonso da Silva11
enumera as funções essenciais do Poder
Legislativo, agrupando-as em cinco atribuições, que transportadas para o plano municipal
podem ser divididas, em:
I. atribuições legislativas;
II. atribuições meramente deliberativas;
III. atribuições de julgamento;
IV. atribuições de fiscalização;
V. atribuições organizacionais.
O Poder Executivo Municipal é exercido pelo Prefeito Municipal, auxiliado
pelos Secretários Municipais. O Prefeito e o Vice-Prefeito são eleitos mediante pleito direto e
simultâneo, realizado em todo território nacional, que tomarão posse perante a Câmara
Municipal.
No exercício do governo do Município compete ao Prefeito Municipal,
entre outras, as seguintes atribuições:
I. nomear e exonerar os Secretários Municipais;
II. exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da
Administração municipal;
III. iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos na Lei Orgânica;
IV. sancionar,promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e
regulamentos para sua fiel execução;
11
SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, ed. Revista dos Tribunais,
1980.
64
V. vetar projetos de leis,total ou parcialmente;
VI. dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração municipal, na
forma da lei;
VII. comparecer ou remeter mensagem e plano de governo à Câmara Municipal por
ocasião da abertura da sessão legislativa, expondo a situação do Município e
solicitado as providências que julgar necessárias;
VIII. nomear, após a aprovação pela Câmara Municipal, os servidores que a lei assim
determinar;
IX. enviar à Câmara Municipal o plano plurianual, o projeto de lei de diretrizes
orçamentárias e as propostas de orçamento previstas na Lei Orgânica;
X. assinar convênios de natureza urgente, sem ônus para o
Município,encaminhando-os à Câmara Municipal no prazo de dez dias para
aprovação;
XI. prestar anualmente à Câmara Municipal,dentro de sessenta dias após a abertura da
sessão legislativa, as contas referentes ao exercício anterior;
XII. prover os cargos públicos municipais, na forma da lei;
XIII. convocar extraordinariamente a Câmara Municipal;
XIV. nomear, após aprovação da Câmara, o Procurador do Município, onde houver;
XV. nomear o Administrador Distrital, onde houver;
XVI. exercer outras atribuições prevista em lei.
A organização dos Municípios se estabelece em um modelo federal constituído de
dentro para fora, isto é, pela descentralização da União para os Estados e subseqüentemente
para os Municípios.
5. CONCLUSÃO
Os novos rumos da Administração Pública dependerá de um amplo estudo de
viabilização financeira e de alterações na legislação municipal para propiciar um novo modelo
de gestão gerencial, onde o poder de decisão deverá ser centralizado pelo gestor, porém, as
ações deverão ser descentralizadas para que atinjam o objetivo principal, que é o atendimento
ao princípio constitucional da eficiência.
Para que a administração pública seja mais eficiente, deverá promover uma ampla
reforma administrativa, adequando-se aos modelos de administração gerencial, promovendo a
descentralização das ações do município, com planejamento adequado para captação de
recursos junto às esferas estadual e federal, capaz de atender às necessidades do município,
aliado ao controle de gastos públicos, reduzindo-o para equilibrar as finanças públicas para
atender aos anseios da população.
A transformação da Administração Pública se dará por um lento processo, pois
apesar da mudança ocorrida com a administração gerencial, ainda encontram-se presentes as
burocracias que imperam na legislação municipalista, principalmente no aspecto da lei de
responsabilidade Fiscal, que impõe aos entes municipais ainda uma condição de burocratizar
ao passo que deveriam descentralizar ações na busca de uma maior eficiência.
65
Portanto, tal modelo gerencial restará ainda distante dos pequenos municípios,
principalmente aqueles que não dispõem de mão-de-obra qualificada e de material humano
capaz de transformar o Município em um verdadeiro ente federado voltado para a
Administração Gerencial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(A Constituição Brasileira de 1988: interpretações (in II Fórum Jurídico). 2. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1990.).
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 4ª edição. São Paulo: Saraiva,
2000.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF,
Senado, 1988.
Declaração Universal dos Direitos Humanos; disponível em::<
http://www.sejus.am.gov.br/programas_02.php?cod=0333> em 08 de junho de 2010.
Dr. Getúlio Saraiva <(coluna dr.getulio saraiva.html no site
http://everardocaioprado.blogspot.com/2009/04/coluna-dr-getulio-saraiva.html)>
MARE – Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado. Plano Diretor da
Reforma do Estado (on-line). Brasília: <http://www.planejamento.gov.br>, 1995.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 22ª edição, atualizada, São
Paulo, Malheiros Editores, 1997.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 15ª edição. São Paulo, Malheiros
Editores, 2001
SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo, ed. Revista dos
Tribunais, 1980.
SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 7ª edição. São Paulo, ed.
Revista dos Tribunais, 1988.
SILVA, Edson Jacinto da. Manual do Assessor Jurídico Municipal, 4ª edição, revista e
atualizada, editora J.H.Mizuno, Leme/SP, 2009.
66
SOBRE REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS E DIREITOS PETITÓRIOS
Flaviana Maria da Silva
Suely Vidal José
Walace Marçal Viana1
RESUMO: O presente artigo tem a finalidade de discutir acerca do exercício de alguns
direitos constitucionais, mostrando a forma como estão abordados pela CF/88, além de
posições doutrinárias e interpretações de legislações específicas. Examinaremos os direitos
de: acesso às informações públicas, certidão, petição, habeas corpus, habeas data, mandado
de segurança, mandado de injunção, ação popular e assistência judiciária gratuita.
Obviamente, como é compreensível, não pretendemos, com este trabalho, esgotar o tema. De
forma sucinta, traremos para o leitor uma abordagem sobre conceitos, legitimidade,
finalidade, natureza jurídica e requisitos para o exercício destes direitos. No entanto,
dedicamos atenção por primar, a todo instante, a defesa de seu exercício como aspecto basilar
dentro do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chaves: informação pública, habeas corpus, habeas data, certidão, petição, ação
popular.
ABSTRACT: This article aims to discuss about the exercise of some constitutional rights,
showing how they are approached by CF/88, and doctrinal positions and interpretations of
specific laws. We will examine the rights to: access to public information, certificate, petition,
habeas corpus, habeas data, writ of mandamus, writs of injunction, popular action and legal
aid. Obviously, as is understandable, we do not intend with this work, the whole theme.
Briefly, the reader will bring to a discussion of concepts, legitimacy, purpose, and legal
requirements for the exercise of these rights. However, we devote attention to excel at any
moment, the defense of its exercise as fundamental aspect within the democratic state of law.
Keywords: public information, habeas corpus, habeas data, certification, petition, popular
action.
1. INTRODUÇÃO
Sabemos que vários são os direitos ressalvados pela CF/88 aos indivíduos e à
coletividade em geral. Os mais importantes deles encontram-se elencados no rol do artigo 5º,
constituindo a porta de entrada de nossa Carta Magna e servindo de embasamento para todos
os demais. Porém, a Constituição não previu somente direitos, mas também formas de
reclamarmos perante o Poder Público quando quaisquer destes sofrerem violação ou quando
não forem conferidos em sua plenitude.
1
Acadêmicos do 5º período do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica do Vale Piranga/MG.
67
Os termos “direitos petitórios” e os “remédios constitucionais” não se encontram
assim dispostos na legislação, mas são conferidos pela doutrina. Voltam-se à garantia da
efetividade dos direitos conferidos pela CF/88, que possuem aplicabilidade direta e imediata,
seja no plano individual ou coletivo.
Na lição de José Afonso da Silva (2007, p.442) o termo “remédios constitucionais” é
aplicado “no sentido de meios postos à disposição dos indivíduos e cidadãos para provocar a
intervenção das autoridades competentes, visando sanar, corrigir, ilegalidade e abuso de poder
em prejuízo de direitos e interesses individuais”.
São eles, ferramentas, antídotos criados para afastar ilegalidades e abusos de poder,
ou mais ainda, instrumentos importantes para nós cidadãos atuarmos tanto em defesa de
nossos direitos, quanto no monitoramento do exercício da função pública.
Daí, serem de extrema importância o seu estudo sistematizado.
Destarte, vamos dar seguimento à exposição de alguns destes em espécie.
2. DIREITO AO ACESSO À INFORMAÇÃO PÚBLICA
O direito constitucional de acesso às informações públicas vem resguardado pela
CF/88 em seu artigo 5º, inciso XXXIII, in verbis:
“todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse
particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob
pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado”. (BRASIL, 1988)
O dispositivo confere a todos o direito de solicitar informações junto aos órgãos
públicos, com vistas a atender interesse particular ou ainda interesse coletivo ou geral. É
dever do Estado informar, é direito de todos serem informados. Neste sentido, podemos dizer
que a palavra “todos” abrange de forma genérica tanto os nacionais, quanto os estrangeiros e
ainda, pessoas físicas e jurídicas.
De fato, “o exercício prático do princípio constitucional de que “todo poder emana
do povo” está condicionado ao acesso da população ao conhecimento e à informação”.
(CANELA e NASCIMENTO, 2009, p.5)
Mas, não é qualquer tipo de informação que pode ser obtida por este remédio
constitucional. O próprio inciso faz ressalva às informações que devem ser guardadas em
sigilo visando à segurança do Estado e da sociedade.
68
Muito bem exposto por Levy (2009, p.7) são os requisitos para o exercício do direito
à informação, quais sejam: “a) objeto determinado; b) legitimidade e interesse; c)
razoabilidade do pedido e ausência de abuso de direito; d) ausência de sigilo; e e) respeito à
privacidade, intimidade, honra e imagem”. Mais adiante ele assevera que “ o pedido de
informação somente pode ter por objeto fatos determinados, e não objetos genéricos, que
configurem devassa na Administração”.
O próprio governo tem criado medidas que visam o acesso amplo às informações
públicas. Como exemplo, podemos citar a criação do Portal da Transparência
(http://www.portaltransparencia.gov.br/), em novembro de 2004, com o objetivo de permitir o
acompanhamento da execução financeira dos programas de governo, em âmbito federal.
“O cidadão pode acompanhar, sobretudo, de que forma os recursos públicos estão
sendo usados no município onde mora, ampliando as condições de controle desse
dinheiro, que, por sua vez, é gerado pelo pagamento de impostos.” (Portal
Transparência).
“Assim, por exemplo, torna-se possível ao cidadão saber, além de quanto o servidor
recebeu em diárias para realização de uma viagem a serviço, quanto foi gasto em
passagens, qual o motivo da viagem, sua duração e período. Igualmente, podem-se
conhecer as licitações e os contratos firmados, inclusive com descrição do objeto,
valor do contrato e nome dos vencedores por item, bem como informações sobre os
aditivos aos contratos, caso existentes.” (Boletim Informativo – ano 2 - nº 2 - Janeiro
a Março de 2009)
Porém, ainda não existe uma lei que regulamente de forma específica o acesso às
informações, inclusive quanto à disposição sobre seus procedimentos e prazos.
“O Brasil tem tomado diversas medidas esparsas que visam ao aprimoramento da
transparência administrativa, como, por exemplo, a criação de websites que
disponibilizam informações sobre contas públicas e processos legislativos, a criação
de comissões de combate à corrupção e o desenvolvimento de programas
informativos destinados ao público em geral. Estas iniciativas, no entanto, não são
suficientes e devem ser fortalecidas pelo estabelecimento de um verdadeiro regime
de acesso à informação (...).
Existe hoje um projeto de lei sobre o tema parado no Congresso Nacional,
aguardando análise pelo plenário, desde 2003. Um novo pré-projeto de lei também
está em elaboração no Executivo e deve ser apresentado ao Congresso, em 2009. É
necessário que atores da sociedade civil se mobilizem para debater o conteúdo
destas propostas e sua adequação aos padrões internacionais.” (MARTINS, 2009, p.
27)
Cabe a nós depreendermos a interpretação de que o Estado deve buscar facilitar o
acesso a informações, uma vez que é direito garantido a todos pela nossa Carta Magna.
Constitui, dentro do Estado Democrático, uma importante ferramenta para a
sociedade: à medida em que possibilita a transparência da Administração Estatal, também nos
confere um meio de controle social e monitoramento da gestão pública.
69
3. DIREITO DE PETIÇÃO E DIREITO DE CERTIDÃO
Temos aqui a menção a dois remédios constitucionais distintos.
Prescreve a CF/88, em seu artigo 5º, inciso XXXIV, que:
“são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou
contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de
direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal.” (BRASIL,
1988)
O primeiro deles diz respeito ao direito de petição, possuindo natureza informal e
democrática. “Pode ser definido como o direito que pertence a uma pessoa de invocar a
atenção dos poderes públicos sobre uma questão ou uma situação.” (MORAES, 2009, p.183).
Está voltado para informações que possuem uma dimensão coletiva, de abrangência pública.
Podemos extrair da alínea “a” a interpretação de que tal direito permite ao requerente
a solicitação junto aos Poderes Públicos da tomada de providências cabíveis voltadas para a
defesa de direitos ou ilegalidade ou abuso de poder. Trata-se, portanto, de um remédio que
confirma o exercício da democracia ao permitir à parte requerente apresentar queixa de ato
ilegal, reclamar um direito e até mesmo reivindicar determinados interesses, sejam eles
individuais ou coletivos.
Segundo Moraes (2009, p.183-184), este direito “constitui uma prerrogativa
democrática, de caráter essencialmente informal, apesar de sua forma escrita, e independe de
pagamento de taxas”. Ele cita mais adiante que “ (...) seu exercício está desvinculado da
comprovação da existência de qualquer lesão a interesses próprios do peticionário”.
O segundo, explanado na alínea “b”, diz respeito ao direito de certidão, que tem
duplo objetivo ou pressupostos básicos: a defesa de direitos e o esclarecimento de situações
em que há interesse pessoal. O direito de certidão é remédio constitucional voltado a garantir
efetividade do direito de informação de dimensão particular.
O Estado não pode se eximir de entregar gratuitamente tal informação quando
solicitado, sob pena de ferir este preceito constitucional.
Atestamos que, para o jurista Meirelles (1989, p.168):
“certidões administrativas são cópias ou fotocópias fiéis e autenticadas de atos ou
fatos constantes de processo, livro ou documento que se encontre nas repartições
públicas. Em tais atos o Poder Público não manifesta sua vontade, limitando-se a
trasladar para o documento a ser fornecido ao interessado o que consta de seus
arquivos”.
70
A lei n.° 9.051/95, que dispõe sobre a expedição de certidões para a defesa de
direitos e esclarecimentos de situações, prescreve que:
Art. 1.° As certidões para a defesa e esclarecimentos de situações, requeridas aos
órgãos da administração centralizada ou autárquica, às empresas públicas, às
sociedades de economia mista e às fundações públicas da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, deverão ser expedidas no prazo improrrogável de
quinze dias, contado do registro do pedido no órgão expedidor.
Art. 2.° Nos requerimentos que objetivam a obtenção das certidões a que se refere
esta Lei, deverão os interessados fazer constar esclarecimentos relativos aos fins e
razões do pedido. (BRASIL, 1995)
Adverte Moraes (2009, p.182) que o “direito à expedição de certidão engloba o
esclarecimento de situações já ocorridas, jamais sob hipóteses ou conjecturas relacionadas a
situações ainda a serem esclarecidas”. Também cita que Celso de Mello aponta os
pressupostos necessários para se valer do direito de certidão: “legítimo interesse (existência
de direito individual ou da coletividade a ser defendido); ausência de sigilo; res habilis (atos
administrativos e atos judiciais são objetos certificáveis)”.
Não são apenas as pessoas físicas as legitimadas para exercerem tanto o direito de
petição, quanto o de certidão. O inciso constitucional dispõe que “são a todos assegurados”, o
que nos possibilita compreender que o legislador não restringiu a abrangência deste direito,
sendo, ainda, ele estendido às pessoas jurídicas e aos estrangeiros, independentemente de
advogado.
A resposta do órgão requerido é obrigatória. Seja positiva: efetivando o direito de
pronto se informações tiverem em seu poder. Seja negativa: dizendo que não lhe compete ou
encaminhando ao órgão responsável pela mesma ou ainda estabelecendo um prazo a
posteriori para que seja conferida.
Porém, pode ocorrer situações em que após requeridos tais direitos perante o Poder
Público, este se omita, não dando qualquer resposta. Neste caso, quando não se tem satisfeito
o direito de petição perante o respectivo órgão público, ter-se-á por instrumento de defesa o
mandado de segurança. Se violado for o direito de certidão, a via jurisdicional correta será o
habeas data.
4. HABEAS CORPUS
Encontra-se determinado pelo inciso LXVIII do art. 5º da CF/88, nos seguintes
termos: "Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de
sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de
poder." (BRASIL, 1988).
71
Moraes (2003, p.138) menciona que o sentido da palavra alguém no habeas corpus
refere-se tão-somente à pessoa física (...) e era endereçado a quantos tivessem em seu poder
ou guarda o corpo do detido, da seguinte maneira: "Tomai o corpo desse detido e vinde
submeter ao Tribunal o homem e o caso”.
A expressão “habeas corpus” se pode traduzir como “ande com o corpo ou tenha
corpo”, formada pelo verbo latino habeas de habeo, (ter, andar com) e corpus
(corpo). A sua origem possui diferentes correntes, sendo que a primeira desses
correntes defende que essa origem do HC remota ainda ao Direito Romano e para
uma segunda corrente originou-se com o advento da Carta Magna da Inglaterra de
1215, em sua cláusula 39, que teve ao longo do tempo uma importância significativa
(tradução livre a partir de uma versão em inglês): “Nenhum homem livre será preso,
aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou
de maneira alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém
contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra.” -
significando que o rei devia julgar os indivíduos de acordo com a lei, e o devido
processo legal, não segundo a sua vontade pessoal, até então absoluta. (ALVES,
2010, p.2)
Vem definido pela doutrina como uma ação constitucional de caráter penal e de
procedimento especial, isenta de custas e que visa evitar ou cessar violência ou ameaça à
liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Não se trata, portanto, de uma
espécie de recurso, apesar de regulamentado no capítulo a eles destinados no Código de
Processo Penal. (MORAES, 2009, p.127)
Pode-se afirmar que trata-se de “um remédio destinado a tutelar o direito de
liberdade de locomoção, liberdade de ir, vir, parar e ficar. Tem natureza de ação
constitucional penal”. (SILVA, 2007, p.445)
Quanto às partes, considera-se que o autor da ação constitucional de habeas corpus
recebe o nome de impetrante; o indivíduo em favor do qual se impetra, paciente (podendo ser
o próprio impetrante), e por impetrado, a autoridade que pratica a ilegalidade ou abuso de
poder. (LENZA, 2009, p.728) O art. 654 do CPP vem estipular que "o habeas corpus poderá
ser impetrado por qualquer pessoa, em seu favor ou de outrem, bem como pelo Ministério
Público" (BRASIL, 1947). Subentende-se que tanto o nacional, quanto o estrangeiro podem
ser impetrantes, em seu próprio favor ou de terceiros.
Pode o habeas corpus ser ordenado de oficio pelo juiz ou tribunal, sem que haja
qualquer requerimento, conforme previsão expressa do parágrafo 2º do artigo 654 do Código
de Processo Penal que menciona: “Os juízes e os tribunais têm competência para expedir de
ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou
está na iminência de sofrer coação ilegal.”
72
A pessoa jurídica não pode ser sofrer qualquer ameaça ou violência em se tratando
de liberdade de locomoção, uma vez que este direito não lhe é dirigível, ou seja, não pode ser
paciente, mas pode ser impetrante. Assim, “nada impede que ela ajuíze habeas corpus em
favor de terceira pessoa ameaçada ou coagida em sua liberdade de locomoção”. (MORAES,
2009, p.130)
Também, é mister frisar que a ação de habeas corpus independe de advogado. Tanto
é que o próprio Estatuto da Advocacia, lei nº 8906/94, salienta em seu art. 1º, §1º, que “não se
inclui na atividade privativa da advocacia a impetração de habeas corpus em qualquer
instância ou tribunal”.
Em se tratando da legitimidade passiva, ensina a doutrina que:
“O habeas corpus deverá ser impetrado contra o ato do coator, que poderá ser tanto
autoridade (delegado de polícia, promotor de justiça, juiz de direito, tribunal etc.)
como particular. No primeiro caso, nas hipóteses de ilegalidade e abuso de poder,
enquanto no segundo caso, somente nas hipóteses de ilegalidade.
Por óbvio, na maior parte das vezes, a ameaça ou coação à liberdade de locomoção
por parte do particular constituirá crime previsto na legislação penal, bastando a
intervenção policial para fazê-la cessar. Isso, porém, não impede a impetração do
habeas corpus, mesmo porque existirão casos em que será difícil ou impossível a
intervenção da polícia para fazer cessar a coação ilegal (internações em hospitais,
clínicas psiquiátricas).” (MORAES , 2009, p.131)
O habeas corpus pode ser preventivo ou liberatório/repressivo. Assim, temos que:
“O primeiro ocorre quando alguém, ameaçado de ser privado de sua liberdade,
interpõe-no para que tal direito não lhe seja agredido, isto é, antes de acontecer a
privação de liberdade; o segundo, quando já ocorreu a "prisão" e neste ato se pede a
liberdade por estar causando ofensa ao direito constitucionalmente garantido”.
(WIKIPEDIA)
Não há formalidades para o procedimento do habeas corpus, é feito mediante
simples petição. Deverá ser impetrado perante a autoridade imediatamente superior àquela
que cometeu o ato de ilegalidade ou abuso de poder. Porém, há casos em que própria
Constituição determina competência para julgamento desta ação em razão da pessoa, como
por exemplo, quando são pacientes o Presidente da República, Procurador Geral da
República, Membros do Congresso Nacional, dentre outros.
“Como a ação de habeas corpus é de natureza informal, pois qualquer pessoa pode
fazê-la, não é necessário que se apresente procuração da vítima para ter ajuizamento
imediato. Ela tem caráter informal. Portanto, a ação tem características bem
marcantes, a se ver: privação de liberdade injusta; direito de, ainda que preso por
"justa causa", responder o processo em liberdade.” (WIKIPEDIA)
Mesmo sendo informal, o artigo 654, § 1º do CPP traz os seus requisitos mínimos:
§ 1° A petição de habeas corpus conterá:
a) o nome da pessoa que sofre ou está ameaçada de sofrer violência ou coação e o de
quem exercer a violência, coação ou ameaça;
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b) a declaração da espécie de constrangimento ou, em caso de simples ameaça de
coação, as razões em que funda o seu temor;
c) a assinatura do impetrante, ou de alguém a seu rogo, quando não souber ou
não puder escrever, e a designação das respectivas residências.
Ainda, por ser o direito de liberdade um dos maiores direitos conferidos, há
cabimento de liminar em todas as ações de habeas corpus, garantindo de pronto o retorno do
direito à pessoa se presentes o periculum in mora e o fumus boni iuris. A liminar visa impedir
que um dano maior ou um constrangimento irreparável seja sofrido pela pessoa.
A gratuidade da ação de habeas corpus encontra-se disciplinada, conjuntamente com
a do habeas data, pelo próprio art. 5º, da CF/88, inciso LXXVII, in verbis: “são gratuitas as
ações de habeas corpus e habeas data, e, na, forma da lei, os atos necessários ao exercício da
cidadania.”
5. MANDADO DE SEGURANÇA
O mandado de segurança, que surgiu na Constituição de 1934, por inspiração de João
Mangabeira é, segundo Ivan Lira de Carvalho, uma criação brasileira, derivada do habeas
corpus. (CARVALHO, 2009, p.6)
Regulado atualmente pela Lei 12.016/2009, só não esteve presente na Carta Maior de
1937, sendo que a de 1988 o contempla de duas formas: individual e coletivo.
A CF/88 o prevê em seu artigo 5º da seguinte maneira:
LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo,
não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela
ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no
exercício de atribuições do Poder Público;
LXX - o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:
a) partido político com representação no Congresso Nacional;
b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e
em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus
membros ou associados;
A doutrina o conceitua como “a ação de rito sumaríssimo pela qual a pessoa pode
provocar o controle jurisdicional quando sofrer lesão ou ameaça a direito líquido e certo, não
amparado por habeas corpus ou habeas data, em decorrência de ato de autoridade praticado
com ilegalidade ou abuso de poder. (DI PIETRO, 1999, p. 612) Tem natureza residual, pois
somente é cabível diante de situação em que não seja possível manejar habeas corpus ou
habeas data.
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Expõe Moraes (2009, p152) que, para Ary Florêncio Guimarães, ele é conferido aos
indivíduos para que se defendam de atos ilegais ou praticados com abuso de poder,
constituindo-se verdadeiro instrumento de liberdade civil e política.
O particular jamais poderá ser sujeito passivo do mandado de segurança, pois este
somente é cabível contra autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de
atribuições do Poder Público.
Quanto às modalidades, é mandado de segurança individual aquele destinado a
proteger direito subjetivo individual e onde a parte legítima (para ser o impetrante) é o próprio
titular do direito, seja ela pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira. Considera-se
como coletivo o que se destina à proteção de direitos a fim de preservar ou reparar interesses
transindividuais, quais sejam: individuais homogêneos, coletivos e difusos. Neste segundo
caso, será impetrante o partido político com representação no Congresso Nacional ou
organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em
funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou
associados.
O Poder Judiciário, após procurado pelo interessado, apreciará a ameaça ou lesão de
direito ocorrida e se este for líquido e certo, caberá a impetração do mandado de segurança.
Mas o que é um direito líquido e certo? Temos o conceito de que “direito líquido e certo é o
direito manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercido no
momento da impetração.” (MEIRELLES, 1989, p.612) É, portanto, direito líquido e certo
aquele sobre o qual não incide controvérsias, ou seja, sobre ele não paira nenhuma dúvida ou
discussão quanto à situação fática. Se tal direito precisa ser comprovado posteriormente, não é
líquido nem certo.
Para o prazo de impetração, dispõe a lei 12.016/2009 em seu artigo 23 que: “O
direito de requerer mandado de segurança extinguir-se-á decorridos 120 (cento e vinte) dias,
contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado.” Este prazo é decadencial, não se
suspende, nem se interrompe.
A doutrina classifica o mandado de segurança em: repressivo (para reparar
ilegalidade ou abuso de poder já ocorrido) e preventivo (para combater uma ameaça de se
violar direito líquido e certo).
Quanto à competência, o Manual do Mandado de Segurança (2000, p.9) explicita
que:
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“para a fixação do juízo competente em mandado de segurança não interessa a
natureza do ato a ser impugnado, o que importa é a sede da autoridade coatora e sua
categoria funcional. Assim, os mandados de segurança impetrados contra atos de
autoridades federais têm foro competente na localidade onde estão sediadas, desde
que haja vara federal, ou, na hipótese negativa, na Capital do Estado respectivo. Para
as autoridades estaduais e municipais, o foro competente será sempre o da respectiva
comarca.”
É cabível a obtenção de liminar diante do mandado de segurança. Para tanto, será
necessário demonstrar que o pedido feito precisa ser deferido com urgência, de forma
temporária, antes do julgamento definitivo, pois se fazem presentes a fumaça do bom direito
(fumus boni iuris) e o perigo da demora (periculum in mora). Com a alegação do primeiro
significa dizer que há uma grande chance de a situação levada ao judiciário ser verdadeira e
por isso deve ela ser juridicamente protegida desde já; com o segundo, que haverá dano
irremediável à pessoa que pede a medida judicial caso esta não seja imediatamente executada.
(WIKIPEDIA) Ao final, se a decisão confirmar o direito líquido e certo, a liminar será
confirmada uma vez que o direito já foi assegurado. Mas se não confirmado, a liminar será
cassada e o sujeito ativo será obrigado a ressarcir ao sujeito passivo as despesas pagas.
6. MANDADO DE INJUNÇÃO
Trata-se de ação subjetiva, que vem prescrita no artigo 5º da CF, inciso LXXI da
seguinte maneira:
“conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma
regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à
soberania e à cidadania;” (Brasil, 1988)
O mandado de injunção tem um campo de atuação restrito, não alcançando outros
direitos que não os previstos na CF/88.. José Afonso da Silva (2007, p. 448) define o
mandado de injunção como “um remédio constitucional posto à disposição de quem se
considere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas inviáveis por falta
de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição.” A finalidade será de dar
concretude à norma e efetivar o direito constitucional.
Regulamentado pela lei 8.038/90, o mandado de injunção serve, pois, para solucionar
casos de inaplicabilidade da norma constitucional devido à ausência de norma
infraconstitucional que a regulamente, tendo a finalidade de o Poder Judiciário dar ciência ao
Legislativo sobre a omissão de tal norma.
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Lenza expõe dois requisitos constitucionais para o mandado de injunção, quais
sejam: “norma constitucional de eficácia limitada, prescrevendo direitos, liberdades e
prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; falta de norma
regulamentadora, tornando inviável o exercício dos direitos, liberdades e prerrogativas acima
mencionados (omissão do poder público”.(LENZA, 2009, p.738)
A legitimidade ativa, ou seja, o poder de impetrar o mandado de injunção, é de
qualquer pessoa cujo direito inviabiliza-se por falta de norma regulamentadora. Já a
legitimidade passiva, cabe somente à pessoa estatal, pois “somente ao Poder Público é
imputável o encargo constitucional de emanação de provimento normativo para dar
aplicabilidade à norma constitucional.”(MORAES, 2009, p.173) Assim, devemos interpretar
que de regra caberá ao Legislativo, haja vista ser ele o responsável maior pela criação das leis.
Porém, também poderá ser sujeito passivo o Executivo e o Judiciário em situações que a estes
caberá a iniciativa do processo legislativo.
Um ponto bastante dissertado pela doutrina é a semelhança entre o mandado de
injunção e a ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) por omissão, já que ambos têm o
escopo de efetivar a aplicabilidade da norma constitucional. Porém, conforme assevera Souto
(2009, p.1), a similitude não é total, posto que o campo de atuação do mandado de injunção é
bem mais restrito que o da ADIN. Outra diferença destacada pelo referido autor reside na
legitimidade ativa: o mandado de injunção pode ser postulado por qualquer cidadão, enquanto
na ADIN a capacidade postulatória restringe-se aos agentes públicos discriminados no artigo
103 da Constituição Federal. O Mandado de injunção ocorre mediante o controle difuso,
diante de um caso concreto e o seu efeito é inter partes. A ADIN por omissão ocorre
mediante o controle concentrado, diante de uma situação abstrata e os seus efeitos é erga
omnes.
7. HABEAS DATA
O habeas data é outra das garantias fundamentais com status de “remédio
constitucional”. Através dele só se pode pleitear informações relativas ao próprio impetrante,
ou seja, tem caráter personalíssimo porque está voltado à proteção íntima de informação que
diz respeito somente ao indivíduo.
Vem amparado no artigo 5º, inciso LXXII da CF/88, in verbis:
“ conceder-se-á "habeas-data":
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a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante,
constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de
caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso,
judicial ou administrativo;”
Alexandre de Moraes (2009, p. 142) muito bem o define como ação constitucional,
dotada de caráter civil, conteúdo e rito sumário, cujo objeto é a proteção do direito líquido e
certo do impetrante que busca conhecer todas as informações e registros relativos à sua
pessoa que estejam constantes de repartições públicas ou particulares acessíveis ao público,
para eventual retificação de seus dados pessoais.
O rito do habeas data está regulamentado pela lei 9.507/97 e sua finalidade, de
acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2007, p.332), é evitar que atos dos órgãos
públicos baseiem-se em informações sigilosas, ignoradas pelo interessado, o que lhe subtrai
qualquer possibilidade de defender-se.
A legitimidade ativa é conferida a qualquer pessoa física ou juridica, brasileira ou
estrangeira e a ação tem caráter pessoal, só se podendo pleitear informações relativos ao
próprio impetrante, nunca de terceiros. Já os impetrados (legitimidade passiva), podem ser:
“as entidades governamentais, da administração pública direta e indireta, bem como as
instituições, entidades e pessoas jurídicas privadas que prestem serviços para o público ou de
interesse público, e desde que detenham dados referentes às pessoas físicas ou jurídicas.”
(MORAES, 2009, p.145/146)
Para o ajuizamento do habeas data entende a jurisprudência que deverá ter o
impetrante já esgotado todas as vias administrativas em busca da informação pretendida, pois
caso contrário correrá risco não ser reconhecido o remédio em comento por falta de interesse
de agir.
8. AÇÃO POPULAR
A ação popular vem disciplinada no inciso LXXIII do art. 5º, CF/88, da seguinte
forma:
"qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato
lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o
autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da
sucumbência". (BRASIL, 1988).
Trata-se de um importante instrumento de participação democrática que nos
possibilita o exercício da cidadania a fim de defender interesses de uma coletividade. Tem
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como objeto atos que afetem lesivamente o patrimônio público, a moralidade administrativa,
o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.
Pode ser proposta mediante duas formas: “forma preventiva (ajuizamento da ação
antes da consumação dos efeitos lesivos) ou repressiva (ajuizamento da ação buscando o
ressarcimento do dano causado).” (MORAES, 2009, p.185)
Reveste-se de legitimidade ativa aquele que se encontra na condição de cidadão.
Neste sentido, traz a Lei 4.717 de 29 de junho de 1965, em seu art. 1º, §3º, o requisito
subjetivo para comprovação de cidadania: “a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será
feita com o título eleitoral, ou com documento que a ele corresponda.” (BRASIL, 1965).
Desta forma, não tem legitimidade para a propositura de ação popular os estrangeiros
e aqueles que não estão em pleno gozo de seus direitos políticos, seja por perda ou suspensão
destes. Quanto às pessoas jurídicas, a Súmula 365 do STF estabelece: “Pessoa jurídica não
tem legitimidade para propor ação popular”.
Quanto à legitimidade passiva ressalta Moraes (2009, p. 188):
“Os sujeitos passivos da ação popular são diversos, prevendo a Lei n.° 4.717/65, em
seu art. 6.°, § 2.°, a obrigatoriedade de citação das pessoas jurídicas públicas, tanto
da Administração direta quanto da indireta, inclusive das empresas públicas e das
sociedades de economia mista, ou privadas, em nome das quais foi praticado o ato a
ser anulado, e mais as autoridades, funcionários ou administradores que houverem
autorizado, aprovado, ratificado ou praticado pessoalmente o ato ou firmado o
contrato impugnado, ou que, por omissos, tiverem dado oportunidade à lesão, como
também, os beneficiários diretos do mesmo ato ou contrato.”
Mas, quais serão as conseqüências da ação popular caso seja julgada procedente?
Ter-se-ão: “invalidade do ato impugnado; condenação dos responsáveis e beneficiários em
perdas e danos; condenação dos réus às custas e despesas com a ação, bem como honorários
advocatícios; produção de efeitos de coisa julgada erga omnes.” (MORAES, 2009, p.189)
É importante salientar que o autor desta ação, caso não caracterizada a má-fé, é
isento das custas processuais e do ônus da sucumbência, conforme menciona a CF.
9. ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E GRATUITA
Dentro do Estado Democrático de Direito, temos o acesso amplo à justiça como um
dos princípios basilares da ordem processual e, a Constituição Federal não poderia permitir
que aqueles que não têm condições de arcar com os custos fiquem na inércia de pleitearem
um direito que lhes é devido. Para tanto, previu de forma expressa, a nossa Carta Magna de
1988, em seu artigo 5º, inciso LXXIV, a assistência judiciária gratuita nos seguintes termos:
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“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência
de recursos”. (BRASIL, 1988)
Segundo Rocha (2007, p. 34): “O direito à prestação jurisdicional ficaria vazio de
conteúdo se os carentes de recursos não recebessem ajuda do Estado para obter a proteção
para seus direitos”.
Mas, o que afinal engloba a gratuidade da assistência judiciária fornecida pelo
Estado? Para regular este direito, foi criada, em 05 de fevereiro de 1950, a lei nº 1.060, que
estabelece as normas para a concessão da assistência judiciária aos necessitados. Através dela,
é garantido o acesso gratuito à justiça, compreendo, em seu artigo 3º, incisos I a VI, as
seguintes isenções aos necessitados: das taxas judiciárias e dos selos; dos emolumentos e
custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da Justiça; das
despesas com as publicações indispensáveis no jornal encarregado da divulgação dos atos
oficiais; das indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberão do
empregador salário integral, como se em serviço estivessem, ressalvado o direito regressivo
contra o poder público federal, no Distrito Federal e nos Territórios; ou contra o poder público
estadual, nos Estados; dos honorários de advogado e peritos e das despesas com a realização
do exame de código genético – DNA que for requisitado pela autoridade judiciária nas ações
de investigação de paternidade ou maternidade. (BRASIL, 1950)
A própria lei 1060/50 considera como necessitado, para os fins legais, "todo aquele
cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de
advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família".(BRASIL, 1950).
Para ser ter legitimidade deste direito deve haver uma afirmação da parte requerente
quanto à insuficiência de recursos, ou seja, para que a parte goze deste benefício deverá
declarar que não tem condições de suportar os gastos do processo sem prejudicar seu sustento
próprio e de seus familiares. Sobre tal condição dispôs a mesma lei que “a parte gozará dos
benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de
que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem
prejuízo próprio ou de sua família”.
Assim, podemos aferir que não se menciona exigência de nenhum fator
comprobatório da condição econômica, mas perante a afirmação de hipossuficiência será
concedido o benefício.
80
Nem a CF/88, nem a lei 1060/50 dão nota sobre a extensão deste direito à pessoa
jurídica, de tal forma que não há impeditivo ou qualquer distinção da abrangência do direito
neste sentido. Porém, o próprio STJ proferiu decisão favorável à situação:"A jurisprudência
deste Tribunal admite a concessão do benefício da assistência judiciária às pessoas jurídicas,
desde que haja comprovação da necessidade. (Agravo Regimental em Resp, nº
2003/0117651-1, 2ª Turma do STJ, Rel. Ministro Castro Meira. Julgado em 28/06/2005.
Publicado em: DJ 05/09/2005 p. 346)
Ainda, não é só privativo de brasileiros o exercício deste direito. É ele estendido aos
estrangeiros residentes no país, conforme reza o caput do art. 2º da mesma norma: “Gozarão
dos benefícios desta lei os nacionais ou estrangeiros residentes no País que necessitarem
recorrer à justiça penal, civil, militar, ou do trabalho”.
A orientação e defesa dos necessitados cabem à Defensoria Pública, em todos os graus.
“(...) no propósito de garantir a todos o acesso à justiça, em condições de igualdade,
a Constituição (art. 134) prevê a criação da Defensoria Pública, e a qualifica como
instituição essencial à administração da Justiça. Incumbe-lhe a orientação jurídica e
a defesa dos necessitados, em todos os juízos e tribunais. Haverá Defensorias
Públicas da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Territórios”. (ROCHA ,
2007, p.217)
É proveitoso destacar que não se confundem os significados os termos assistência
judiciária e benefício da justiça gratuita. O relator Marcelo Rodrigues, menciona no
julgamento do agravo abaixo:
[...] "Existe uma diferença conceitual e prática entre a locução 'assistência jurídica
gratuita', utilizada pela Carta da República, no inciso LXXIV de seu artigo 5º e as
expressões 'assistência judiciária' e 'gratuidade de justiça'".
"A constituição, ao assegurar a prestação da assistência jurídica integral e gratuita,
ampliou o campo de abrangência do instituto para abarcar não só o patrocínio
judiciário .... tornando mais amplos possíveis os serviços que vão desde a orientação
jurídica até a defesa em juízo" (ROGÉRIO NUNES DE OLIVEIRA, in Assistência
Jurídica Gratuita, p. 74, Ed. Lumem Júris: Rio de Janeiro - 2006).
E arremata ao citar PONTES DE MIRANDA (Comentários ao Código de Processo
Civil, Tomo I, 2ª edição, Forense, p. 460):
"O beneficio da justiça gratuita é direito à dispensa provisória de despesas, exercível
em relação jurídica processual, perante o juiz que promete a prestação jurisdicional.
É instituto de direito pré-processual. A assistência judiciária é a organização estatal,
ou paraestatal, que tem por fim, ao lado de dispensa provisória de despesas, a
indicação do advogado. É instituto de direito administrativo".
Com efeito, a obrigação do Estado do amplo acesso à Justiça cristaliza um princípio,
um objetivo fundamental da República, contido no art. 3º da Constituição Federal,
de construção de uma sociedade justa, que reduz as desigualdades sociais e erradica
a pobreza e a marginalização, sem qualquer discriminação, fundada na dignidade da
pessoa humana. [...] (Agravo de Instrumento, nº 1.0702.08.448741-3/001. Julgado
em: 13/05/2009. Relator Marcelo Rodrigues. Publicado em: Data do Julgamento:
08/06/2009.)
81
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao nosso ver, os remédios constitucionais acabam por reafirmar o direito pátrio.
A CF/88 não só previu direitos, mas também institutos que garantem que estes
direitos sejam exercidos em sua plenitude, livre de arbitrariedades e abuso de poder.
A exemplo, citemos: a CF/88 nos conferiu o direito de liberdade e, o remédio do
habeas corpus veio a tutetá-lo. Da mesma forma, conferiu-nos o direito à informação, mas
criou o direito de petição, de obtenção de certidão e do habeas data a fim de que possamos
exercitá-lo em cada caso.
Se um pedido nos for negado ou tido por não decidido, temos o mandado de
segurança, que vem amparar o direito líquido e certo.
Se algum destes direitos não puderem ser exercidos por falta de uma norma
regulamentadora, podemos usufruir do mandado de injunção.
Se a res publica sofrer ato lesivo, a ação popular vem buscar seu ressarcimento.
De um lado, conferem-se direitos para a sociedade, de outro, veda-se a atuação
abusiva do governante, uma vez que se encontra impedido de violar qualquer deles.
Temos armas, temos meios legais de exercemos nossa cidadania e garantir o gozo de
direitos violados ou não atendidos. Temos meios postos à nossa disposição a fim de exigirmos
das autoridades a sua intervenção quando quaisquer deles for violado ou não for conferido em
sua integralidade. Por isso, é de extrema importância o seu conhecimento por todos aqueles a
quem são dirigidos.
Diante do exposto, concluímos que devemos primar pela idoneidade do uso desses
institutos, seja no plano individual ou coletivo. Devemos usufruir deles sempre que necessário
ao invés de desprezá-los; devemos concretizá-los, pois consagram a vitória da democracia em
face de arbitrariedades, abusos de poder e de violação a direitos emanados pela Constituição.
11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Osvaldo Emanuel A. Habeas corpus, o ‘santo remédio’ para a liberdade.
Disponível em: < http://aqueimaroupa.com.br/?p=16172>.Acesso em: 10 jun. 2010.
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Mecum.7 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
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Processo Civil, relativas ao mandado de segurança. Vade Mecum.7 ed. São Paulo: Saraiva,
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______. Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965. Regula a ação popular. Vade Mecum.7 ed.
São Paulo: Saraiva, 2009.
______. Lei nº 8.906, de 04 de junho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a
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______. Lei nº 9.051, de 18 de maio de 1995 . Dispõe sobre a expedição de certidões para a
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84
A SEGURANÇA JURÍDICA TRAZIDA PELO SERVIÇO NOTARIAL E REGISTRAL AOS CIDADÃOS
0 Dênio Guilherme dos Reis
1
RESUMO: O serviço notarial e registral têm ganhado força atualmente em razão da rapidez
com que seus serviços são prestados, mormente em decorrência das inovações legais que
delegaram funções aos cartórios que outrora eram privativas do Poder Judiciário. Tal fator
decorre do acúmulo exacerbado de demandas judiciais, que, via de regra, não são
solucionadas a contento, em prazo razoável. Todavia, a população ainda desconhece os
benefícios dos serviços prestados pelos cartórios, utilizando como meio o Poder Judiciário
para a solução de demandas que hoje, podem ser solucionados com maior celeridade nos
cartórios. Assim pretende-se com o presente artigo demonstrar a segurança jurídica do serviço
notarial e registral mediante uma análise substancial de seu surgimento histórico, natureza
jurídica, bem como evolução legislativa. Desta feita, o serviço notarial e registral apresentam
perfeita segurança aos atos que realizam, além de serem dotados de caráter público, são feitos
de forma rápida e eficaz, satisfazendo em curto prazo os interesses da partes.
Palavras-chaves: Serviço notarial; Registro; Segurança Jurídica.
ABSTRACT: The notary service and registral have gained strength today because of the
rapidity with which its services are provided, mainly as a result of legal innovations that have
delegated tasks to private registries that were once the judiciary can. This factor arises from
the exaggerated accumulation of lawsuits, which usually are not resolved satisfactorily, within
a reasonable time. However, the population is still unaware of the benefits of services
provided by registries, using the judiciary as a means to resolve claims that today can be
solved more quickly in the registries. Thus it is intended with this article demonstrate the legal
and notarial service registral by a substantial analysis of its historical emergence, legal and
legislative developments. This time, the notarial service and registral have perfect security to
perform acts that, in addition to having a public character, are made quickly and efficiently,
satisfying short-term interests of the parties.
Keywords: notary service, registry, Security Law
1. INTRODUÇÃO
O serviço notarial e registral, paulatinamente, têm alcançado destaque em virtude da
conjugação de fatores como o crescimento populacional associado ao aumento da
criminalidade pela escassez de empregos. Neste cenário, o Poder Judiciário tem-se mostrado
1 Dênio Guilherme dos Reis é especialista em Direito Público pela FADOM. Doutorando em Ciências Jurídicas
e Sociais Universidad del Museo Socio Argentino. Professor Universitário nas áreas de Direito Civil, mais
especificamente Direitos Reais e Contratos. Pós Graduando em Direito Notarial e Registral pela Faculdade
Milton Campos. Oficial de Registro de Imóveis de Jequeri-MG.
85
insuficiente na solução da prestação jurisdicional devido ao grande volume de demanda que
sobrecarrega a instituição, engessando assim, a tramitação regular de um processo com
duração razoável.
Dentro deste contexto, o serviço notarial e registral vêm adquirindo espaço na
solução de pequenos litígios e procedimentos que podem ser solucionados com brevidade,
quais sejam: separação, divórcio, realização de inventário, retificação de área; sendo que neste
último procedimento a competência é do serviço registral de imóveis.
Todavia, não obstante a importante função que o serviço prestado pelos cartórios
possui, ainda é pouco utilizado pela população. As pessoas desconhecem ou não acreditam na
possibilidade de realização de certos procedimentos pelos cartórios, optando, mesmo diante
da lentidão do Poder Judiciário, por ingressar com uma demanda em juízo.
A premissa do serviço notarial e registral, analisando sua evolução histórica em
tempos remotos, estabelecendo conceitos, natureza jurídica e a evolução legislativa que
conferiu amplitude nas atividades notariais e registrais, pautou-se e ainda pauta-se no
princípio da segurança jurídica.
Por derradeiro, em razão das constantes modificações introduzidas no Código Civil
brasileiro atribuindo aos cartórios a função, observados certos requisitos legais, de realização
de separações, divórcios, partilha de bens, inventários, retificação de área, dentre outros atos
que antigamente somente eram realizados pelo Poder Judiciário, mister se faz o estudo sobre a
importância da utilização dos cartórios pelos cidadãos como meio facilitador de solução de
demandas, com o aval trazido pelo serviço, que é a segurança jurídica.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA ATIVIDADE NOTARIAL
O primeiro reflexo da confiabilidade do serviço notarial observa-se a partir do seu
surgimento, o qual possui como primeiro registro histórico as práticas dos escribas no antigo
Egito. Neste sentido, é salutar o entendimento de Brandelli, senão vejamos:
O embrião da atividade notarial, ou seja, o embrião do tabelião, nasceu do clamor
social, para que, num mundo massivamente iletrado, houvesse um agente confiável
que pudesse instrumentalizar, redigir o que fosse manifestado pelas partes
contratantes, a fim de perpetuar o negócio jurídico, tornando menos penosa a sua
prova, uma vez que as palavras voam ao vento.2
2 BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 4.
86
Assim, a partir do momento que o homem sentiu a necessidade de viver em
comunidade e gerir suas relações de forma confiável escolheu uma certa pessoa para que
pudesse anotar tais relações e torná-las públicas, visando o respeito, pela coletividade, dos
direitos nele inseridos.
Para Cotrim Neto3 a sociedade egípcia, dotada de um notório avanço social, era
regida pelo monarca, organizada em castas, imperando a forte influência sacerdotal, ocasião
em que surgiram os primeiros oficiais de notas, denominados de “escribas do Egito”. Eram
pessoas de altíssimo nível cultural, ocupantes de cargos privilegiados nesta sociedade,
considerados propriedade privada, podendo transmitir por sucessão aos herdeiros. Todavia,
destaca-se que os documentos por eles redigidos não eram possuidores de fé pública e por
isso, os instrumentos por eles lavrados, para ter valor probatório, tinham que ser homologados
por uma autoridade superior.
Neste compasso, aduz Almeida Junior:
Desde 600 anos A. C., o encargo de receber e selar os atos e contratos, que deviam
ser munidos do selo público, competia a uma espécie de notários chamados escribas.
Estes, na maior parte das convenções, faziam simples notas ou abreviaturas, cada
uma das quais significava uma palavra, e eram escritas com toda a celeridade, como
se depreende do versículo segundo do Salmo, XLIV: Lingua mea calamus scribae,
velociter scribentis. Eram revestidos de caráter sacerdotal, tanto os escribas ou
doutores da lei, que transcreviam e interpretavam a Sagrada Escritura, como os
escribas do povo, que ocorriam às necessidades quotidianas dos cidadãos, redigindo
memórias, cartas e semelhantes documentos. 4
No tocante à organização do sistema notarial egípcio, o referido autor Almeida
Júnior explica sua sistemática:
Na praxe egípcia, pois, se encontram a escritura, o cadastro, o registro e o imposto
de transmissão ou siza, em sua origem histórica. Encontram-se ainda o arquivo ou
cartório, porque não bastava que os contratos fossem registrados; a lei exigia ainda
que fossem transcritos no cartório do tribunal ou juízo e que fossem depositados no
cartório do conservador dos contratos: era o uso de todos os países onde penetrava a
civilização helênica. 5
Corroborando a explicação de Almeida Júnior em relação aos escribas, Brandelli
leciona:
Os escribas pertenciam às categorias de funcionários mais privilegiadas e lhes era
atribuída uma preparação cultural especialíssima; por isso, os cargos recebiam o
tratamento de propriedade privada, e, por vezes, transmitiam-se em linhas de
sucessão hereditária. Eram eles que redigiam os atos jurídicos para o monarca, bem
como atendiam e anotavam todas as atividades privadas. No entanto, como não eram
3 COTRIM NETO, Alberto Bittencourt. Perspectivas da função notarial no Brasil. Porto Alegre: Colégio
Notarial do Brasil – Seção do Rio Grande do Sul, 1973, p. 10. 4 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. São Paulo: Saraiva, 1963, p.5.
5 Ibidem, p.14.
87
possuidores de fé pública, havia a necessidade de que os documentos por eles
redigidos fossem homologados por autoridade superior. 6
Outro ponto de destaque na evolução histórica do serviço de notário foi o surgimento
na Grécia da figura dos mnemons ou epistates e hieromnemons, que a tradução em latim era
notarii, actuarii, chartularii, cuja tradução para o português seria notários, secretários e
arquivistas, considerados funcionários públicos. Tais pessoas eram encarregadas de redigir
instrumentos particulares, podendo posteriormente, ser utilizados pelas partes contratantes
como prova, de escrever os atos dos processos judiciais, como as petições, acusações, defesas,
citações e as decisões dos juízes e, por fim, tinham a função de conservar documentos
públicos e particulares.7
Dentro dessa dinâmica, explica Almeida Junior:
A verdade é que, em todos os países onde dominou a civilização helênica, observa-
se a existência de notários, incumbidos de dar aos contratos o seu testemunho
qualificado e, ao lado dos tribunais e juízes, um secretário, incumbido não só de
escrever peças do processo, como de coordená-las, guardá-las na caixa selada
respectiva e transmitir essa caixa ao juiz ou tribunal. A expressão – mnemons,
literalmente traduzida, bem explica que o fim principal do notário é guardar a
lembrança dos contratos, isto é, preconstituir prova.8
Assim, no início da civilização romana, a realização dos negócios acontecia de forma
verbal, sendo fielmente cumprida a lei natural e imperando a boa-fé. Porém, com o aumento
da população romana e a multiplicação dos negócios civis tornou-se necessária a
instrumentalização desses negócios por intermédio de um profissional, responsável por
conferir formalidade à vontade das partes, de forma que tal documento possuísse força
probatória como um ato público. 9
Sobre as figuras dos argentarii, dos notarii e dos tabularii, Miranda menciona que:
Surgiram diversos profissionais responsáveis pela instrumentalização de negócios,
conservação dos documentos e por serviços auxiliares da justiça, como os
argentarii, que exerciam nos fóruns a função de procurar empréstimos em dinheiro
para particulares e confeccionar os contratos de mútuo. Os notarii, cuja atividade era
escrever com as notas, que consistia muitas vezes na simples indicação das iniciais
ou abreviaturas conhecidas se revelando uma espécie de estenógrafos. Os tabularii,
que eram funcionários fiscais e tinham, dentre outras funções, a escrituração e a
6 BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 4-5.
7 GUERREIRO, José Augusto Mouteira. A Actividade Notarial e Registral na Perspectiva do Direito
Português. Trabalho apresentado no XIII Congresso Internacional de Direito Comparado, realizado no Rio de
Janeiro em Setembro de 2006. Publicado no site www.fd.uc.pt/cenor/textos/mouteiraguerreiro.pdf. Acessado
em 20.12.2009. 8 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 16.
9 Ibidem, p. 20.
88
conservação dos registros hipotecários, a direção do censo e posteriormente
confeccionavam documentos legais. 10
No entanto, a carreira de tabelião de notas, somente foi institucionalizada com a
administração do imperador Justiniano I (Flavius Petrus Sabbatius Justinianus), responsável
pela unificação do império romano cristão. 11
O Direito Canônico também contribuiu para o desenvolvimento da atividade notarial
como explica Almeida Júnior:
Na ordem eclesiástica, desde os primeiros tempos da Era Cristã, achamos alguns
oficiais que traziam o nome de notarii. Eram estes os notarii regionarii, notários
regionais, instituídos pelo Papa S. Clemente, no ano 98, os quais eram distribuídos
pelas sete regiões eclesiásticas, e tinham o encargo de receber os atos dos mártires,
de anunciar ao povo as procissões, as preces, etc.; os notários do tesouro da Igreja,
chamados também scriniarii, e os protonotários apostólicos, instituídos pelo Papa
Júlio I na primeira metade do século IV. Estes últimos se chamavam – participantes,
e gozavam de algum privilégio, como por exemplo, do direito a uma parte das taxas
pagas à chancelaria romana pela expedição dos atos e ad instar participantium, se
este título era concedido por mera honorificência. 12
Noutro giro, explica Arouca13
que com o tombamento de bens eclesiásticos para
proteção da igreja católica e o registro desses tombamentos para fins de publicidade e
segurança jurídica fomentou o registro das propriedades, que em um primeiro momento eram
efetuados sob a égide da igreja católica e posteriormente dando origem ao serviço de registro
de imóveis.
Além disso, contribuía para o estabelecimento de uma forte ligação da atividade
notarial à igreja católica, o fato de serem as pessoas ligadas ao clero dotadas de vasto
conhecimento, inclusive jurídico, dominando a escrita, e, desta forma, garantindo a confecção
de instrumentos de elevado nível técnico e dotados de perfeição nas formas.
Já no Brasil, Miranda14
ensina que a atividade notarial data do próprio
descobrimento, pois Pero Vaz de Caminha, embora não fosse oficialmente o escrivão da
10
MIRANDA, Marcone Alves. A importância da atividade notarial e de registro no processo de
desjudicialização das relações sociais. Disponível em:< http:// www.
ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7134>. Acesso em: 02 abr.
de 2010. 11
MARTINS, Cláudio. Teoria e Prática dos atos notariais. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 7. 12
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos da fé pública. São Paulo: Saraiva, 1963 p. 53-54. 13
AROUCA, Ana Carolina Bergamaschi. Evolução Histórica dos Notários e sua Função Social. Dissertação
apresentada ao Curso de Pós-graduação stricto sensu em Função Social dos Institutos de Direito Privado. São
Paulo, 2009. Disponível em: http// www.fadisp.com.br/download/.../ana_carolina_bergamaschi_arouca.pdf,
Acesso em: 02 abr 2010. 14
MIRANDA, Marcone Alves. A importância da atividade notarial e de registro no processo de
desjudicialização das relações sociais. Disponível em:< http:// www.
89
armada, de fato, exerceu a função notarial ao narrar oficialmente para a Coroa Portuguesa a
descoberta e a posse das novas terras.
Neste sentido, é pertinente a colocação de Brandelli sobre o desenvolvimento da
função notarial no Brasil, vejamos:
Abaixo da magistratura situava-se o terceiro nível da burocracia: uma vasta teia de
pequenos cargos, de tabeliães e escrivães a fiscais de portos e comissários da
marinha. Havia literalmente centenas desses cargos e sua presença na folha de
pagamento real indicava sua importância dentre os empregados reais. Alguns desses
cargos não requeriam qualquer experiência ou habilidade. Mesmo nos casos em que
isso se torna necessário, a habilidade não era levada em consideração no momento
em que as indicações eram feitas. Muitos dos cargos da burocracia profissional
podiam ser comprados, ou adquiridos como recompensa oferecida pela Coroa. Tais
cargos não eram apenas dados diretamente a candidatos em perspectiva, mas eram
também oferecidos a viúvas ou órfãos como dote. Obviamente, esses pequenos
cargos se constituíam um patrimônio real, um recurso que possibilitava a Coroa
assegurar a lealdade e recompensar bons serviços. 15
Em seguida, foi editado no dia 11 de outubro de 1827, o Decreto-Lei n.º 848,
regulando o provimento dos ofícios da Justiça e da Fazenda. No que se referem aos Registros
Públicos, estes foram instituídos pela Lei n.º 601, de 18.09.1850 e seu Regulamento n.º 1.318,
de 30 de janeiro de 1854 passou a ser de competência da Igreja Católica, ficando o sistema
conhecido como “Registro do Vigário” ou “Registro Paroquial”.
Posteriormente, foi editada a Lei n.º 1.237, de 24 de setembro de 1864,
regulamentada pelo Decreto n.º 3.453, de 26 de abril de 1865, criando o Registro de Imóveis
com a função de transcrever aquisições imobiliárias e inscrever ônus reais.
Ato contínuo, adveio em 25 de abril de 1874 o Decreto n.º 5.604 criando de maneira
formal e generalizada o registro civil para fins de nascimento, casamento e óbitos, sendo que a
partir do ano seguinte, 1875, algumas cidades deram início paulatino à criação dos ofícios de
registro civil, os denominados “cartórios” do registro civil.
Entretanto, foi somente a partir da promulgação da primeira Constituição Brasileira,
datada de 1891, que se teve início a primeira tentativa de organizar melhor a atividade notarial
e de registro ao dispor em seu artigo 58 que, o provimento dos ofícios de justiça nas
circunscrições judiciárias competia aos presidentes dos tribunais federais. 16
ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7134>. Acesso em: 02 abr.
de 2010. 15
BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 7. 16
MIRANDA, Marcone Alves. A importância da atividade notarial e de registro no processo de
desjudicialização das relações sociais. Disponível em:< http:// www.
ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7134>. Acesso em: 02 abr.
de 2010.
90
Assim, faz-se necessário frisar que a importância do serviço do notário advém desde
os primórdios da colonização, ou melhor, da socialização do homem, tendo a legislação
apenas conferido amplitude aos seus efeitos.
2.1. Definição do serviço notarial e de registro no ordenamento jurídico
Estabelece a Constituição Federal de 1988 no artigo 236 17
que:
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder Público.
§ 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos
notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus
atos pelo Poder Judiciário.
§ 2º - Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos
aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
§ 3º - O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de
provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura
de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.
Segundo dispõe o artigo 1º da Lei n.º 8.935 de 18 de novembro de 1994, conhecida
como Lei dos Notários e Registradores, os serviços notariais e de registros são os de
organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade,
segurança e eficácia dos atos jurídicos.
Ante tais considerações legais, nota-se que o serviço notarial não perdeu sua essência
com a evolução de sua denominação atribuída pelas legislações, ou seja, o serviço notarial
continua tendo como finalidade conferir validade e eficácia geral a documentos e situações
jurídicas, como sempre foi.
2.2. Natureza Jurídica do serviço registral e notarial
Em primeiro lugar, ao analisar o artigo 236 do texto constitucional, é possível
identificar a natureza pública da função notarial e registral, ainda que haja a delegação para
ser exercida em caráter privado.
Desta forma, a previsão constitucional exigindo a edição de lei federal para regular
essa atividade, o ingresso por concurso público, mediante seleção para verificação da aptidão
do candidato, preenchimento de requisitos legais e a necessidade da realização de concurso
para preenchimento das serventias que estejam vagas por mais de seis meses, caracterizam
17
BRASIL. Leis, etc. Constituição Federal, Código Civil, Código de Processo Civil. São Paulo: Manole, 2003,
p.1.780.
91
sua natureza pública, bem como a importância do serviço, pois os requisitos para o ingresso
no cargo são tão exigentes quantos outros, por exemplo, os cargos do Poder Judiciário.
A esse propósito, os serviços prestados pelos profissionais que laboram nos cartórios,
chamados serventuários são considerados servidores públicos, que exercem uma função
pública sui generis, exercida no interesse da sociedade. 18
Portanto, o fato de serem executados mediante delegação não retira do serviço
notarial e de registro a sua natureza de serviço público, essencial à segurança, eficácia,
publicidade e autenticidade dos atos jurídicos praticados no cotidiano da vida em sociedade.
No entendimento de Lima19
no que diz respeito a notários e registradores, o artigo 3°
da Lei 8.935/94 os qualifica como profissionais do direito. Logo, têm o dever de conhecer os
princípios e normas atinentes aos seus ofícios. As suas competências são taxativamente
definidas em lei (artigo 6°20
). Outrossim, o artigo 31, I21
, considera infração sujeita à sanção
disciplinar, a inobservância das prescrições legais e normativas.
Destaca Miranda22
que apesar da fiscalização dos atos notariais ser de competência
do Poder Judiciário, por expressa disposição constitucional, os serviços registrais e notariais
não mantêm qualquer relação organizacional nem hierárquica com o referido poder e
tampouco com qualquer outro órgão do Estado, estando o notário e o registrador subordinados
tão-somente à lei, em cumprimento ao princípio da legalidade.
Contudo, a disciplina da matéria notarial e registral não se restringe apenas à
Constituição Federal e à Lei 8.935/94, pois, diversas leis esparsas foram editadas tanto no
âmbito federal, como no âmbito estadual para disciplinar a matéria, atualizando-a de forma a
atender às necessidades sociais. Neste contexto, insere-se a Lei 11.441/07, que permitiu a
realização de separações, divórcios e partilhas na esfera extrajudicial, bem como a alteração
18
DINIZ, Maria Helena. Sistema de Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 1992, p.37. 19
LIMA, Rogério Medeiros Garcia de. Princípios da Administração Pública: reflexos nos serviços notariais e
de registro. In: Revista Autêntica, 2 ed. Belo Horizonte/MG: Ed.Lastro, 2003.
20 Artigo 6 º da Lei 8.935/94: Aos notários compete: I - formalizar juridicamente a vontade das partes; II -
intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade,
autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias
fidedignas de seu conteúdo; III - autenticar fatos.
21 Artigo 31, I da Lei 8.935/94: São infrações disciplinares que sujeitam os notários e os oficiais de registro às
penalidades previstas nesta lei: I - a inobservância das prescrições legais ou normativas.
22 MIRANDA, Marcone Alves. A importância da atividade notarial e de registro no processo de
desjudicialização das relações sociais. Disponível em:< http:// www.
ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7134>. Acesso em: 02 abr.
de 2010.
92
do artigo 212 e 213 da Lei 6.015/73 que trouxe à baila a possibilidade de retificação de área,
de forma administrativa, perante a serventia registral, proporcionando maior comodidade aos
usuários do serviço e por consequência direta, a celeridade dos feitos requeridos.
2.3. A segurança e confiabilidade do serviço notarial e registral
Com a evolução das relações sociais entre os homens, os conflitos tendem a surgir,
seja por competição, por ganância ou por destaque no meio em que se encontram, e até por
poder, enfim, vários são os fatores que motivam as pessoas a estabelecerem litígios entre si.
Em razão de tal evolução o Poder Judiciário caracteriza-se como o principal
mediador de tais conflitos, tendo o juiz como o aplicador da lei ao caso concreto, ou seja,
dizendo o direito às partes.
Mas como a sociedade tende a evoluir e o homem tende a progredir em vários
aspectos, seja biologicamente ou psicologicamente, os conflitos acompanham tal evolução, ou
seja, tornam-se cada vez mais incidentes ao ponto de fazer com que o Poder Judiciário fique
engessado pelo alto índice de demanda, não decidindo os litígios em um prazo razoável.
Neste contexto Moraes23
explica que o Poder Judiciário, desde que haja
plausibilidade da ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação judicial
requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação judicial é
princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde
uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue.
Neste diapasão, já mencionava Rui Barbosa na Oração aos Moços:
“... justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta, uma vez
que a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as
lesa no patrimônio, honra e liberdade”. 24
Assim, a demora no julgamento das lides pelo Poder Judiciário faz surgir na
coletividade um sentimento de frustração e insegurança e ainda a perda de credibilidade na
justiça, o que pode contribuir para o retorno da prática da justiça privada, como nos tempos
bárbaros.
23
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo/SP: editora Atlas, 2004, p. 34. 24
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços, reedição da Faculdade Ruy Barbosa e do Museu Casa de Rui Barbosa,
Salvador/BA, outubro de 2001.
93
Neste contexto, algumas funções são delegadas ao particular para que as realize em
caráter público, momento em que os serviços notariais esboçam sua relevância e
confiabilidade.
A busca de soluções para esse quadro deveria valorizar “novas técnicas” que
visassem a diminuição da distância entre a sociedade e a justiça. Essas “novas
técnicas”, divididas em uma “vertente jurisdicional” e uma “vertente extra-
processual” deveriam ser incentivadas, de forma a aproximar a justiça dos cidadãos
e contribuir para seu desafogamento. As técnicas jurisdicionais realizariam a
“desformalização do processo”, ou seja, a busca de um processo mais rápido,
simples e econômico, de acesso fácil e direto, apto a solucionar com eficiência
certos tipos de controvérsias, de menor complexidade. A vertente extra-processual
estaria relacionada com a busca de meios alternativos ao processo, tais como a
arbitragem, a conciliação extra-judicial e a auto-composição, técnicas que, além de
contribuírem para a desobstrução dos tribunais, também funcionam como “estímulo
às vias participativas, à informação e à tomada de consciência” além da conseqüente
“pacificação social. 25
Nesta seara, o serviço notarial e registral ganham força e reconhecimento social. A
Lei n.º 10.931 de 02 de agosto de 2004 ao alterar dispositivos da Lei n.º 6.015 de 31 de
dezembro de 1973, a denominada Lei de Registros Públicos, possibilitou que as retificações
de registro imobiliário, que antes estavam sujeitas a procedimento judicial de jurisdição
voluntária, sejam feitas pelo próprio oficial do Registro de Imóveis, só se levando ao Poder
Judiciário as situações em que não houver acordo entre as partes envolvidas ou houver, em
tese, risco de lesão a direito de propriedade de algum confrontante.
De igual forma é a Lei n.º 11.790 de 02 de outubro de 2008 que ao alterar
dispositivos da Lei de Registros Públicos possibilita ao Oficial de Registro Civil registrar as
declarações de nascimento feitas após o decurso do prazo legal, sem necessidade primária da
intervenção judicial, como se exigia anteriormente.
Ademais, a Lei n.º 11.441 de 04 de janeiro de 2007 que ao alterar dispositivos do
Código de Processo Civil possibilita a realização de inventários, partilhas, separações e
divórcios consensuais por via administrativa, dispensando, assim, o procedimento judicial,
desde que não haja interesses e direitos de incapazes.
Por fim a Lei nº 12.133 de 17 de dezembro de 2009, que ao dar nova redação ao
artigo 1.526 do Código Civil, determina que a habilitação para o casamento seja feita
pessoalmente perante o oficial do Registro Civil, com a ciência do Ministério Público, não
necessitando mais, como outrora, da intervenção judicial, salvo no caso de impugnação pelo
oficial, pelo Ministério Público ou por terceiro.
25
GRINOVER, Ada Pellegrini. A Crise do Poder Judiciário. Texto preparado para a XIII Conferência Nacional
da OAB. São Paulo, 1990.
94
Nota-se que o legislador vem conferindo ao serviço notarial e registral uma
importante função nas relações jurídicas estabelecidas entre as pessoas, ou seja, um eficaz
instrumento de formalização e publicidade das relações, principalmente com a rapidez que é
realizada. Além disso, confere a estabilidade e segurança de igual forma com que os atos
praticados pelo Poder Judiciário possuem, conferindo segurança e celeridade, resgatando cada
vez mais a confiabilidade dos cidadãos.
3. CONCLUSÃO
Ante todo o exposto é possível concluir que o serviço notarial e registral, em razão
de seu arcabouço histórico angariado de confiança e segurança jurídica, é um serviço de
enorme utilidade pública, pois facilita os procedimentos que são de sua competência, seja pela
agilidade da realização ou mesmo pelo caráter público que possui.
Além disso, conclui-se que a importância da atividade notarial e registral, ou melhor,
a confiabilidade em suas atividades resulta benefícios não apenas para a sociedade em geral,
em suas relações, mas principalmente ao Judiciário, que progressivamente vai desafogando
das demandas acumuladas, fazendo acontecer a desjudicialização como corolário do princípio
da celeridade.
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95
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das Leis Império do Brasil, 31 dez. 1865. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>.
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providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br /ccivil _03 /Leis /
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Constituição Federal, dispondo sobre os serviços notariais e de registro. Diário Oficial da
União, Brasília, 21 nov 1994. Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 17 de
mar de 2010.
BRASIL. Lei 10.931, de 02 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de
incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário,
Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei no 911, de 1
o de outubro de 1969, as Leis n
o
4.591, de 16 de dezembro de 1964, no 4.728, de 14 de julho de 1965, e n
o 10.406, de 10 de
janeiro de 2002, e dá outras providências. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.931.htm>.Acesso em: 02
abr. de 2010.
BRASIL. Lei 11.441 de 04 de janeiro de 2007. Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de
janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário,
partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa. Disponível em:<
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2007-2010/2007/ Lei /L1 1441.htm>. Acesso
em: 02 abr. 2010.
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dezembro de 1973 – Lei de Registros Públicos, para permitir o registro da declaração de
nascimento fora do prazo legal diretamente nas serventias extrajudiciais, e dá outras
providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010
/2008/Lei/L11790.htm>. Acesso em: 02 de abr. 2010.
BRASIL. Lei 12.133 de 17 de dezembro de 2009. Dá nova redação ao art. 1.526 da Lei no
10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para determinar que a habilitação para o
casamento seja feita pessoalmente perante o oficial do Registro Civil. Disponível
96
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/L12133.htm>. Acesso em
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Acesso em: 02 abr. de 2010.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo/SP: editora Atlas, 2004.
97
A PENALIZAÇÃO EM SINDICÂNCIA ADMINISTRATIVA DISCIPLINAR.
Vagner Adriano Ferreira1
RESUMO: O presente artigo visa analisar a sindicância, levando em conta seu conceito,
finalidade e previsão legal de aplicação, tendo como base a legislação federal e estadual. Na
oportunidade observou-se uma grande divergência conceitual, especialmente o que condiz
com a finalidade. Ficando evidente a função da sindicância dentro do processo administrativo
disciplinar, o que vem sendo hoje deturpada, já que sua característica inicial de ser um
procedimento de caráter investigativo – instrutório, servindo como inquérito no referido
processo administrativo, e hoje sendo aplicada como função apuratória de irregularidade para
com o intuito de aplicar uma penalização, sendo utilizado para a aplicação de penas de
natureza “leve” como à advertência ou a suspensão de até 30 (trinta) dias, desde que cumpram
os princípios do contraditório, da ampla defesa. Foram apresentados alguns dos princípios que
norteiam o processo administrativo, já que não é pacifico quanto todos os princípios, variando
de doutrinador para doutrinador. Sendo explanado no artigo, durante a fundamentação o
procedimento da sindicância em suas duas finalidades hoje admitidas, iniciando em sua
constituição alcançando o final desta, no momento de apresentação do relatório final. Sendo
observado ainda que a comissão sindicante que deverá ser imparcial na condução da
sindicância, podendo o servidor investigado ou indiciado propor exceção de suspeição ou
impedimento.
Palavras-Chave: Sindicância; Punição; Princípios do contraditório e ampla defesa.
ABSTRACT: The present article aims at to analyze the investigation, leading in account its
concept, purpose and legal forecast of application, having as base the federal and state
legislation. In the chance a great conceptual divergence was observed, what especially condiz
with the purpose. Being evident the function of the investigation inside of the administrative
proceeding to discipline, what it comes today being misleading, since its initial characteristic
of being a procedure of investigative character - instructive, serving as inquiry in the related
administrative proceeding, and today being applied as investigative function of irregularity
stops with intention to apply a penalization, being used for the application of penalty of
“light” nature as to the warning or the suspension of up to 30 (thirty) days, since that they
fulfill the principles of the contradictory, of legal defense. Some of the principles had been
presented that guide the administrative proceeding, since it is not I pacify how much all the
principles, varying of doutrinador for doutrinador. Being explanado in the article, during the
recital the procedure of the investigation in its two purposes today admitted, initiating in its
constitution reaching the end of this, at the moment of presentation of the final report. Being
observed despite the sindicante commission that will have to be impartial in the conduction of
the investigation, being able the server investigated or accused to consider exception of
suspicion or impediment.
KEYWORDS: Investigation; Punishment; Principles of the contradictory and legal defense.
1 Aluno do 7º Período do curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga.
98
INTRODUÇÃO
Os servidores públicos respondem administrativamente pelos ilícitos administrativos
definidos em legislação estatutária, no entanto, para a apuração e penalização destes
servidores, a Administração Pública utiliza meios como a sindicância e o processo
administrativo, o qual abordaremos no decorrer do presente artigo.
A Sindicância é um dos meios de apuração de irregularidades envolvendo servidores
públicos em decorrência de seu cargo ou de suas atribuições, no entanto deve-se esclarecer
que sua aplicação poderá estar compreendida de vícios, a qual poderá acarretar a nulidade de
todo o procedimento sindicante.
Porém com o presente artigo, procuraremos responder a questões quanto a legalidade
da sindicância, principais vícios e ainda quanto a aplicação da pena, já que esta é o resultado a
ser pretendido caso confirmada a veracidade dos indícios que fundamentaram a sindicância.
1. A SINDICÂNCIA
Antes de adentrar ao estudo da sindicância em todos seus aspectos, devemos
esclarecer que conceitualmente, sindicância é:
Para Hely Lopes Meireles,2 (p. 705):
“É o meio sumário de apuração ou elucidação de irregularidades no sérvio para
subseqüente instauração de processo e punição ao infrator.”
Já Maria Sylvia Zanella di Pietro3, utiliza-se o conceito do ilustre doutrinador José
Cretella Junior, (p. 636):
“meio sumario de que se utiliza a Administração do Brasil para, sigilosa ou
publicamente, com indiciados ou não, proceder à apuração de ocorrências anômalas
no serviço público, as quais, confirmadas, fornecerão elementos concretos para a
imediata abertura de processo administrativo contra o funcionário público
responsável.”
E ainda José dos Santos Carvalho Filho4, conceitua, (p. 790):
“Trata-se da denominação usualmente dispensada ao procedimento administrativo
que visa a permitir uma apuração preliminar sobre a existência de ilícito funcional. É
através da sindicância que se colhem indícios sobre: a existência da infração
funcional; de sua autoria; e do elemento subjetivo com que se conduziu o
responsável.
2 MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22.Ed. 2ª reimpr. São Paulo: Atlas, 2009.
4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 10. Ed. Rio de Janeiro. Editora
Lúmen Júris, 2003.
99
Em analise aos distintos doutrinadores observa-se que ambos conceituam a
sindicância como um meio sumário de apuração de irregularidades, que servirá como
fundamento para a abertura de um processo administrativo disciplinar, funcionando como
uma espécie de inquérito policial, que servirá ou não para a abertura de uma ação penal.
No entanto, para Odete Medauar5 (p. 318), a sindicância possui duas modalidades: A
sindicância preliminar a processo administrativo e a sindicância como processo sumário:
A sindicância preliminar a processo administrativo trata-se de um meio de apuração
prévia, do processo administrativo disciplinar, na qual servirá para o colhimento de elementos
informativos para instaurar ou não o referido processo, servindo como peça preliminar e
informativa determinando os fatos e indicando os indiciados à autoria, tratando-se assim de
um meio de apuração previa.
Já a sindicância como processo sumário, destina-se a apurar a responsabilidade do
servidor já indicado, por praticar falta de natureza leve, inclusive aplicando pena.
Adotando a mesma ideia da doutrinadora Odete Medauar, o grande Celso Antônio
Bandeira de Melo6 (p. 322), conceitua:
“É o procedimento investigativo, com prazo de conclusão não excedente de 30 dias
(prorrogáveis pela autoridade superior por igual período), ao cabo do qual, se a
conclusão não for pelo arquivamento do processo ou pela aplicação de penalidade de
advertência ou suspensão até 30 dias, assegurada ampla defesa, será instaurado
processo disciplinar, o que é obrigatório sempre que o ilícito praticado enseja sanção
mais grave.”
Diante todos os conceitos acima expostos, vemos a divergência de opiniões quanto à
finalidade da sindicância, já que uma somente é seu caráter investigativo - instrutório, e outra
com um caráter punitivo, funcionando como um verdadeiro Processo Administrativo
Disciplinar, somente em rito sumário, e limitado a penas de natureza “leve”, como a
advertência e a suspensão de até 30 (trinta dias).
Tendo em vista, o forte entrelaçamento com o Processo Administrativo Disciplinar,
temos visualizar que o mesmo trata-se segundo Hely Lopes Meireles7 (p.702):
“É o meio de apuração e punição de faltas graves dos servidores públicos e demais
pessoas sujeitas ao regime funcional de determinados estabelecimentos da
Administração.”
5 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 13. Ed. rev.e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009. 6 DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 26. Ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros Editores: 2009. 7 MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
100
Conforme o conceito supracitado fica claramente demonstrado que no Processo
Administrativo Disciplinar, à finalidade é a apuração da possível falta cometida por servidor,
e caso for, aplicar a sanção pertinente, podendo incluir em seu procedimento a fase
inquisitória.
Assim é visível que a sindicância teve sua finalidade desvirtuada, passando de um
procedimento inquisitivo, para um procedimento punitivo, sendo considerado por alguns
autores como a doutrinadora Odete Medauar, como um Processo Administrativo Sumário.
No entanto cabe ressaltar que para a sindicância poder ter caráter punitivo, esta terá
que garantir a prevalência em seus atos dos princípios do contraditório e ampla defesa,
conforme é pacífico pelo Supremo Tribunal Federal:
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. POLICIAL MILITAR NÃO ESTÁVEL.
LICENCIAMENTO. SINDICÂNCIA SUMÁRIA. Licenciamento de policial
militar sem estabilidade pode resultar de procedimento administrativo mais simplificado, desde que respeitado o contraditório e a ampla defesa. Verificação
da ocorrência do contraditório e da ampla defesa é discussão que demanda reexame
de fatos e provas - vedação da Súmula 279. Agravo regimental a que se nega
provimento. (STF - AG.REG.NO AGRAVO DE INSTRUMENTO - AI 504869
AgR / PE – PERNAMBUCO, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Publicado
em: 18/02/2005). (Grifo Nosso).
Assim sendo, fica demonstrado que a sindicância na hipótese punitiva adota os
princípios do processo administrativo, e assim cumpre a previsão legal da Constituição
Federal.
“Art. 5º [...]
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes;”
Como se observa no processo administrativo deve ser amparado por princípios já
previstos no rol de direitos e garantias fundamentais, preservando aos litigantes, no caso ao
servidor acusado por pratica de ato infracional, o contraditório e a ampla defesa.
Quanto aos princípios do processo administrativo, encontra-se previstos
constitucionalmente os princípios do contraditório, ampla defesa, do devido processo legal e
da razoável duração do processo dentre outros, os quais passemos a abordar.
Em relação ao principio do contraditório, para Odete Medauar8 (p. 171) é a faculdade
do acusado, no caso do processo administrativo disciplinar o indiciado, de manifestar-se sobre
as acusações, documentos, defendendo-se sobre o seu ponto de vista, utilizando argumentos
8 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 13. Ed. rev.e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009.
101
próprios, de modo que a contradita tenha efetividade e não apenas seja uma formalidade
constante no processo.
Outro princípio é o da ampla defesa, segundo a própria Odete Medauar (p.173), trata-
se do direito de defesa, que é o direito de resistência ás pretensões adversárias, consistindo na
possibilidade do acusado, (indiciado) apresentar sua defesa, possibilidade de apresentação de
recurso, utilização de defesa técnica, obrigatoriedade de ser notificado da abertura do
processo, requerer a produção de provas, etc.
Já o princípio da razoável duração do processo, garante a celeridade na tramitação do
processo, mantendo um vínculo estreito com o da eficiência, visando uma tramitação célere
do processo, para que a decisão seja tomada no menor tempo possível. Ressalta-se que este
princípio não implicará no sacrifício do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, já
que pautará pela proporcionalidade e conciliação das partes envolvidas.
E o Princípio do devido processo legal, segundo Odete Medauar, a doutrina
posiciona favoravelmente quanto a aplicação deste princípio no processo administrativo,
conforme observa-se a sumula 21 do STF, in verbis:
“STF – Sumula 21 - Funcionário em estágio probatório não pode ser
exonerado nem demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais
de apuração de sua capacidade.”
Sendo assim, caberá no processo administrativo disciplinar, a garantia do devido
processo legal, sendo garantido ainda o contraditório e a ampla defesa, já que existem
indiciados e fatos que poderão ser controvertidos.
Ainda existem vários outros princípios, sendo que alguns estão na constituição, em
doutrina ou jurisprudências como o da Legalidade, onde a Administração Pública deverá agir
na forma e nos limites da lei com o intuito de atingir a finalidade prevista, devendo embasar o
processo administrativo em uma norma legal.
Outro princípio é o da oficialidade ou impulsão, onde a responsabilidade para a
movimentação do processo administrativo será da Administração Pública, mesmo que a
abertura fora provocado por particular.
O principio do informalismo ou formalismo moderado: nada mais é que a dispensa
dos ritos sacramentais e rígidos, quando trata-se de atos a cargo do particular, quando não
tratar deste atos deverão ser observadas as formalidades absolutamente necessárias, utilizando
ritos e forma simples, suficientes para a obtenção da certeza e da segurança jurídica de modo
102
a propiciar o alcance dos fins almejados pelo sistema normativo, contudo, deverá ser
respeitado os direitos do sujeito, o contraditório e a ampla defesa.
O Princípio da Verdade Material ou verdade real segundo Hely Lopes (p. 695-696) é
a autorização de a administração valer-se de qualquer prova licita na busca obstinada pela
verdade de que a autoridade processante ou julgadora tenha conhecimento, desde que
translade para o processo, devendo a decisão ser tomada nos fatos, tais como apresentam a
realidade, não utilizando somente a versão oferecida.
No Princípio da Garantia da Defesa, para Hely Lopes Meireles (p.696), decorre do
princípio do Devido Processo Legal e do contraditório, garantindo a defesa seja dado total
direito de acompanhar o processo, sendo cientificado dos atos, utilizar recursos, inclusive
publicando os atos oficiais.
Outros Princípios, além dos supracitados, foram encontrados no manual de
Sindicância e Processo Administrativo de Minas Gerais9, que são:
“impessoalidade: a decisão da Administração Pública deve cingir-se ao interesse
apresentado e não ao interessado.
moralidade: é a observância de preceitos éticos produzidos pela sociedade,
variáveis, no tempo, segundo as circunstâncias de cada caso.
publicidade: não havendo previsão legal em contrário, ou razão lógica, os atos
praticados pela Administração Pública devem ser levados ao conhecimento público.
eficiência: consiste em utilizar mecanismos que assegurem uma decisão adequada,
dentro do menor tempo possível.
igualdade: é incabível o tratamento diferenciado mesmo quando uma das partes
interessadas for a Administração Pública.
finalidade: aplicação da lei tal qual é, ou seja, na conformidade de sua razão de ser.
motivação: explicitação dos motivos que levaram a Autoridade a tomar determinada
decisão.
razoabilidade: “O princípio da razoabilidade, na origem, mais do que um princípio
jurídico, é uma diretriz de senso comum ou, mais exatamente, de bom senso jurídico
que se faz necessário à medida
que as exigências formais que decorrem do princípio da legalidade tendem a reforçar
mais o texto das normas, a palavra da lei, que o seu espírito. A razoabilidade
formulada como princípio jurídico, ou como diretriz de interpretação das leis e atos
da Administração, é uma orientação que se contrapõe ao forrmalismo vazio, à mera
observância dos aspectos exteriores da lei, formalismo esse que descaracteriza o
sentido finalístico do Direito.” - Maria Paula Dallari Bucci - “O princípio da
razoabilidade em apoio à legalidade” – Cadernos de Direito Constitucional e
Ciência Política 16/173.
proporcionalidade: “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de
obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente
9 MINAS GERAIS, Auditoria Geral do Estado, Manual de Sindicância e Processo Administrativo
Disciplinar, disponível em < http://www.auditoriageral.mg.gov.br/downloads/doc_download/7-manual-de-
sindicancia-e-processo-administrativo-disciplinar-pdf-139-mb> em: 29/05/2010.
103
necessárias ao atendimento do interesse público” - Lei Federal 9.784/99, art. 2º,
Parágrafo único, inciso VI.
segurança jurídica: não se deve alterar ato ou situação jurídica mediante aplicação
retroativa de nova interpretação da lei, da mesma forma, não se deve invalidar
decisões com vícios sanáveis e que não acarretem lesão ao interesse público nem
prejuízo a terceiros.
interesse público: interesse público não significa, necessariamente, interesse da
Administração Pública, podendo haver até conflito. Segundo o ensinamento de
Celso Antônio Bandeira de Melo, “o interesse público deve ser conceituado como o
interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm
quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelo simples fato
de o serem.” - “Curso de Direito Administrativo” p. 59.
boa-fé: embora seja um elemento externo ao ato e seja impossível perscrutar o
pensamento, é possível aferir a boa ou má fé face as circunstâncias do caso concreto,
por meio de um conjunto convergente de indícios.
duplo grau de jurisdição: é uma extensão do direito à ampla defesa, uma vez que a
possibilidade de recurso administrativo e/ou revisão retira o arbítrio de quem decide
e obriga a uma decisão devidamente motivada e fundamentada.
“non bis in idem” - nas esferas administrativa ou penal, o servidor não pode ser
processado e punido duas vezes em razão do mesmo fato.”
Destarte é possível aduzir, diante a todos os princípios mencionados acima, mesmo
se tratando de uma sindicância e não de um processo administrativo disciplinar, deverá
cumprir os referidos princípios, cabendo-se ressaltar que na hipótese de sindicância em caráter
punitivo deverão estar presente obrigatoriamente os princípios do contraditório e da ampla
defesa, sob pena de nulidade da mesma.
Após termos tratado toda a parte doutrinaria da sindicância e sua relação com o
processo administrativo, passaremos ao procedimento de realização da sindicância,
apresentando suas especificidades e analisando-a, quando necessário.
Primeiramente após o conhecimento de fato envolvendo alguma irregularidade no
serviço público, ocasionada por servidor, a autoridade competente nomeará um sindicante ou
por uma comissão de dois ou três sindicantes.
A quantidade de membros da sindicância não é determinada nem pela doutrina, nem
pela lei 8.112/90 (dispõe sobre o regime jurídico dos servidores publico da união, das
autarquias e fundações públicas federais) e nem a Lei 869/52 (dispõe sobre o estatuto dos
servidores públicos civis do estado de Minas Gerais).
Contudo é notório que a indicação dos membros para a formação da comissão é um
ato discricionário, que poderá estar viciada por motivos políticos, perseguição, inimizades,
etc. No entanto cabe ao indiciado, caso esteja submetido a esta sujeição, alegar exceção de
suspeição e impedimento, em prol da prevalência do princípio da imparcialidade,
razoabilidade e do devido processo legal.
104
Após a instauração da sindicância, deverá ser notificado o envolvido na acusação
para prestar declaração, ou ficar em silêncio, também serão ouvidos as possíveis testemunhas
além do denunciante ou vítima.
Após a oitiva das possíveis testemunhas, ocorrem duas hipóteses: A primeira é
quando a sindicância possua caráter somente instrutório, no qual a comissão ou o sindicante
elaborará um relatório devidamente fundamentado, opinando pelo arquivamento, ou
instauração do Processo Administrativo Disciplinar.
Caso a sindicância possua caráter punitivo, será lavrado pela comissão o despacho de
indiciamento, a qual a partir deste momento abrirá ao indiciado a garantia do contraditório e
ampla defesa, sendo o indiciado citado, para que seja apresentada defesa previa, produza
provas, e realize a oitiva da testemunha, etc. E seja intimado para a apresentação de razoes
finais.
Ao final também será redigido o relatório a qual poderá opinar pelo arquivamento do
processo, aplicação da penalidade de advertência ou suspensão por até 30 (trinta) dias.
Cabe ressaltar que os procedimentos da sindicância punitiva são os do processo
administrativo disciplinar, e quanto a utilização de defesa técnica por advogado, a Súmula
Vinculante nº 5 do STF nos demonstra:
“STF - Súmula Vinculante n° 5: A falta de defesa técnica por
advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a
Constituição.”
Diante a sumula é possível aduzir que a utilização do advogado pelo indiciado é
facultativa, podendo o indiciado querer ou não sua presença.
Contudo o disparate na utilização do termo sindicância, quando deveria ser utilizada
a terminologia processo administrativo disciplinar, é tanta, que o Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, no acórdão do processo nº 1.0079.02.029545-1/002, o relator Audebert Delage,
admite a demissão na sindicância, desde que seja observada o princípio do contraditório e
ampla defesa, conforme trecho abaixo:
“[...] In casu, em tese, em razão de ter sido aplicada a penalidade de demissão ao
impetrante, não poderia ter sido ela precedida de mera sindicância. Contudo, ao contrário do que entendeu a ilustre Juíza sentenciante, houve instauração na verdade, de verdadeiro processo administrativo disciplinar, a despeito de ter sido nomeado por sindicância. Foram observados os princípios constitucionais, asseguradas as garantias fundamentais do contraditório e da ampla defesa ao
impetrante. Foi ouvido o sindicado, f. 144/148, que foi notificado para apresentar
defesa, oferecida à f. 151/155, apresentadas alegações finais, f. 168/215,
posicionando-se a autoridade sindicante pela aplicação da pena de demissão. Nesse
105
procedimento houve, inclusive, a oitiva de testemunhas arroladas pelo apelado.[...]”
(TJMG – Processo nº 1.0079.02.029545-1/002; Relator Audebert Delage, publicado
em 11/11/2004) (Grifo Nosso)
Neste mesmo entendimento, pode observar nas entre linhas da ementa do Tribunal
Regional da 1ª Região, referente ao processo nº AMS 1999.34.00.025754-5/DF, do relator
Desembargador Federal José Amilcar Machado, no acórdão transcrito abaixo:
“EMENTA: ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. SANÇÃO
DISCIPLINAR. SINDICÂNCIA. DEVIDO PROCESSO LEGAL.
INOBSERVÂNCIA. APURAÇÃO DE INFRAÇÃO COM PENA COMINADA DE
DEMISSÃO. EXIGÊNCIA DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ARTS. 132, XIII, E 146 DA LEI Nº
8.112/90. APURAÇÃO DE INFRAÇÃO PUNÍVEL COM PENA DE
SUSPENSÃO. EXORBITÂNCIA DO PRAZO LEGAL PARA CONCLUSÃO DOS
TRABALHOS. AUSÊNCIA DE NULIDADE. AMPLIAÇÃO DO OBJETO DA
INVESTIGAÇÃO. POSSIBILIDADE. GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO
CONTRADITÓRIO. INOBSERVÂNCIA. ANULAÇÃO DO PROCEDIMENTO.
[...]
5. Comprovado nos autos que a autoridade administrativa não oportunizou ao servidor o exercício do direito à ampla defesa e ao contraditório, uma vez que tão-somente tomou o seu depoimento e o convocou para acareação, sem lhe oportunizar o direito de apresentar defesa escrita, é de se anular a sindicância realizada e respectiva punição. Precedentes da Corte.
[...]
(TRF 1ª REGIÃO – Processo nº AMS 1999.34.00.025754-5/DF, Relator:
Desembargador Federal José Amilcar Machado, Publicado em: 15/04/2008) (Grifo
Nosso)
Desta forma, aduzi-se que mesmo tratando de sindicância, sendo assim nomeada,
contudo tomando todo o procedimento de um processo administrativo disciplinar, sendo
garantida a ampla defesa e o contraditório, será admitida a validade da mesma.
Tendo em vista, esta possibilidade de utilização, poderá ocasionar maior insegurança
quanto a validade e empregabilidade da sindicância, já que a sindicância poderá ser
convalidada como um processo administrativo, perdendo assim sua função principal.
CONCLUSÃO:
Isto posto, o presente trabalho demonstrou total divergência, e ainda total
desvirtuamento quanto a utilidade da sindicância, já que a mesma possui natureza
investigatória – instrutiva, tendo a função de funcionar como inquérito para o Processo
Administrativo Disciplinar, contudo a mesma, vem sendo comumente utilizada para a
aplicação de penas de caráter leve, como a advertência ou suspensão de até 30 dias, admitindo
até outras penas desde que atendam os princípios do processo administrativo.
106
Tal possibilidade de utilização da sindicância já vem sendo admitida pela legislação
vigente, como a lei nº 8.112/90 (dispõe sobre o regime jurídico dos servidores publico da
união, das autarquias e fundações públicas federais) e a Lei nº 869/52 (dispõe sobre o estatuto
dos servidores públicos civis do estado de Minas Gerais), e ainda pelo julgamento do Agravo
De Instrumento - AI 504869, pelo STF (Supremo Tribunal Federal), e das demais
jurisprudências transcritas no decorrer do presente artigo, o que garante o caráter legal da
mesma, desde que garantido o contraditório e a ampla defesa.
Data vênia, não foi avaliada as conseqüências que uma pena aplicada por um
procedimento administrativo sumário, já que no caso uma advertência ou suspensão, poderá
acarretar ao servidor, como a perda do direito de promoção de carreira, férias-prêmio,
dependendo do estatuto.
Tal afirmativa decorre, tendo em vista os legisladores colocarem pesos nas punições,
de peso “leve” no caso a sindicância, e de peso “grave” nos casos dos processos disciplinares,
não avaliaram a denominação da criação dos dois procedimentos e suas formalidades.
Contudo sendo assegurada a ampla defesa e o contraditório, e tendo a sindicância,
observado a natureza e os procedimentos do processo administrativo disciplinar, não a
transforma em um procedimento correto, mas sana o vício existente, já que é assim é aplicada,
e admitida por nossos tribunais.
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7=LINKON&SECT8=DIRINJMG&SECT9=TODODOC&co1=E&co2=E&co3=E&co4=E&
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em: 30 maio 2010.
109
PÓS-POSITIVISMO E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: REFLEXÃO À LUZ DO CONCEITO DE DIREITO
Hugo Garcez Duarte
1
RESUMO: O artigo visa analisar a proposta hodierna, de conciliação entre validade formal e
validade material (legitimidade). Para tal, discorremos sobre as teorias Positivista e Pós-
positivista do Direito, perpassando os ditames da Escola da Exegese, tendo demonstrado que
o conceito de Direito alterou-se de acordo com o paradigma adotado. Esta última encarou o
Direito como ciência completa, sem lacunas, apta a resolução de todos os fatos da vida por
meio da aplicação literal da lei. A primeira sucedeu-a com uma nova proposta, evidenciando o
caráter discricionário de aplicação do Direito bem como sua indeterminação. A segunda, por
sua vez, propõe-se a resolver os problemas que envolvem o poder discricionário do juiz e a
indeterminação do Direito, não resolvidos pela primeira. Nesse sentido, suscitamos a teoria de
Robert Alexy, que baseado no papel exercido pelos princípios e na argumentação jurídica,
aponta o procedimento do Direito como parte de seu conceito.
Palavras-chave: Pós-positivismo; poder discricionário; determinação do Direito; princípios;
argumentação jurídica.
ABSTRACT: The article aims to analyze the proposal of today, to reconcile the formal
validity and validity of the material (legitimacy). To this end, we talk about theories Positivist
and Post-positivist law, bypassing the dictates of the School of Exegesis, showing that the
concept of law has changed in accordance with the paradigm adopted. The latter challenged
the law as a science, which has no gaps, able to solve all the facts of life through the literal
application of the law. The first pass it with a new proposal, showing the character of
discretionary application of law and its indeterminacy. The second, in turn, is proposed to
solve problems involving the discretion of the judge and the indeterminacy of law, not
resolved first. In this sense, the theory put forward by Robert Alexy, who based the role
played by the principles and legal argument, says the procedure of law as part of its concept.
Key-words: Post-positivism; power discretion; choice of law; principles; legal argument.
INTRODUÇÃO
O artigo faz uma digressão acerca do conceito de Direito. Analisamos primeiramente
os preceitos do Positivismo, estabelecendo suas distinções com os defendidos pela Escola da
Exegese.
1 Mestre Direito “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos de Juiz
de Fora/MG; Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Professor de Direito
Constitucional da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do Leste de Minas Gerais/MG.
110
Desenvolvemos que, apesar de trata-se de uma teoria extremamente formal, em
Kelsen e Hart, principalmente, há o reconhecimento do poder discricionário do juiz, que,
atrelado à norma, terá uma margem (por meio dos princípios) de apreciação, na busca da
melhor maneira de se resolver dado caso. Entretanto, não há resolução de tais problemas, por
mais que tenha apresentado uma teoria diversa do legalismo exacerbado defendido pela
Escola da Exegese, a qual reduzira o Direito à lei escrita, concebendo-o de uma maneira
completa, imputando ao julgador a efetivação dos ditames legais, ou seja, o papel de boca que
pronuncia os mandamentos legais.
Posteriormente, fomentamos a teoria Pós-positivista do Direito, tendo procurado
estabelecer que a pretensão de superação do Positivismo Jurídico, dominante no século XX,
concentra-se na resolução do problema que envolve o poder discricionário do julgador bem
como o da determinação do Direito no caso concreto, de modo a alcançar a conciliação entre
validade formal e validade material (legitimidade).
Almejando a resolução de referidos problemas, concebemos Robert Alexy como Pós-
positivista, por apresentar considerável alternativa para a celeuma.
Para o autor, o conceito de Direito engloba além de preceitos também defendidos
pelo Positivismo jurídico a pretensão à correção material, que poderá ser conquistada a partir
do procedimento do Direito, com ênfase no papel exercido pelos princípios e na
argumentação jurídica.
1. O POSITIVISMO JURÍDICO
O que se deve considerar como direito e a maneira mais adequada de aplicá-lo, são
questões, que há muito protagonizam discussões no cenário jurídico. Encontrar respostas não
é tarefa das mais fáceis, mas tentativas não faltam, modificando-se o paradigma conforme o
momento histórico vivido. Hodiernamente, a denominada Teoria Pós-Positivista do Direito
propõe solução à celeuma, almejando a superação do Positivismo Jurídico que dominara a
ciência jurídica no século XX.
Referida teoria pretenderia, para tal, combater características supostamente atribuídas
ao Positivismo Jurídico, que teria defendido a inexistência de princípios (ou desprovimento de
caráter normativo dos princípios), tendo pregado que o Direito é um modelo de regras; a
completude do Direito, isto é, a inexistência de lacunas; a supremacia da lei ordinária sobre a
Constituição; e a aplicação do Direito de forma mecânica, consubstanciada na subsunção.
111
Ocorre que, tais características coadunam-se, propriamente, com o legalismo da
Escola francesa da Exegese do século XIX, pois o Positivismo Jurídico defende
posicionamentos totalmente contrários.
A Escola da Exegese, que teve como marco o Código Napoleônico de 1804,
asseverava que Direito reduzir-se-ia à lei escrita, por prever em seu corpo, os princípios
superiores, eternos, uniformes, permanentes e imutáveis sustentados pela Escola
Jusnaturalista do Direito.
Para os adeptos desta Escola a lei era obra jurídica perfeita, completa, abarcando o
“verdadeiro direito”, reprodução escrita dos valores absolutos de justiça do Direito Natural,
insculpidos na vontade do legislador.
Tal concepção reduziu o juiz, ao papel de burocrático aplicador de leis, encarando o
ordenamento jurídico como um “catálogo”, dotado da previsão de todos os fatos ocorridos e
que viessem a ocorrer na sociedade, que com sua consecução subsumir-se-iam a ele. Ou seja,
vedava-se aos juízes o poder de criação, sendo-lhes reservada tão-somente, a incumbência de
verdadeira boca que pronuncia os ditames legais.
Sua atividade seria meramente silogística, eis que, a lei era encarada como premissa
maior e o fato como premissa menor, donde desta conjugação chegava-se a uma decisão
lógico-dedutiva.
Posteriormente, tal concepção acerca do Direito foi contestada, sendo a Escola
Histórica a primeira a fazê-lo, sustentando a inexistência de um direito geral e universal, visto
que cada povo em cada época teria o seu próprio direito, resultante de sua evolução histórica,
de seus usos, costumes e tradições.
Esforçaram-se os defensores desta Escola, em demonstrar que o direito era um
produto histórico, sujeito a permanente e natural evolução, nem estabelecido arbitrariamente
pela vontade dos homens, nem emanado de Deus, mas pela consciência coletiva do povo.
Nesses moldes, entende-se que a lei não é pronta e acabada estando suscetível a uma
interpretação mais ampla do que a defendida pela Escola da Exegese, imputando-se ao
intérprete, além da função de esclarecimento dos ditames legais, a promoção de sua
contextualização com os interesses e necessidades sociais, de modo que desvende como agiria
o legislador, caso estivesse em seu lugar prestes a solucionar um caso.
112
Já no século XX, o Positivismo Jurídico apresenta, também, uma teoria diversa da
legalista sustentada pela Escola da Exegese. Tal teoria, de caráter extremamente formal, teria
supostamente pregado a separação entre o Direito e a moral (teoria da neutralidade ou da
separação), concebendo o Direito de uma maneira neutra, como uma estrutura lógico-formal,
desprovida de qualquer conexão com a moral.
Dissemos supostamente, pelo fato de que, como notaremos a seguir, no que diz
respeito a interpretação do Direito bem como sua aplicação, grandes Positivistas, como
Kelsen e Hart, desenvolvem suas teorias admitindo a discricionariedade do julgador, que
vinculada à norma jurídica, por vezes irá transcendê-la, exercendo verdadeiro ato de criação
do Direito, despertando-nos por conseqüência, a reflexão: de quais elementos faria uso o
julgador para transcender a norma jurídica em seu ato de criação do Direito? seria a moral?
vejamos as teorias.
Kelsen aponta que a aplicação do Direito encontra-se carreada de uma forma
relativamente indeterminada, havendo relação entre normas de escalão superior e normas de
escalão inferior2.
Segundo este, a norma de escalão superior determina a execução bem como o
conteúdo da norma inferior3. Todavia, essa orientação se dá de um modo incompleto:
A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os
aspectos) o ato do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora
menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior, tem
sempre, em relação ao ato de produção normativa ou execução que aplica, o caráter
de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem mais
pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma
pluralidade de determinações a fazer (KELSEN, 2006, p. 388).
Na Teoria Positivista de Kelsen, o juiz, quando da aplicação do Direito, deverá além
de seguir a lei (norma de escalão superior) observar as diversas alternativas de interpretação
possibilitadas por esta moldura, de modo a apontar, na norma de escalão inferior (sentença), a
melhor maneira de solucionar dado caso, de acordo com suas peculiaridades.
Todavia, inadmite o mesmo, no que tange a busca do melhor modo de julgar-se o
caso concreto, que qualquer conteúdo seja considerado como Direito. Momento em que,
eventual preenchimento de lacunas estaria vinculado, pelo que chama de interpretação
autêntica, à atuação do órgão jurídico aplicador do Direito. De outro modo, demais tipos de
2 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fonte, 2006, p. 388.
3 Idem.
113
interpretação, como a cognoscitiva da ciência jurídica, estabeleceriam, tão-somente,
“possíveis significações de uma norma jurídica” (KELSEN, 2006, p. 395).
Hart, por sua vez, argumenta que na sociedade, haveria necessidade de delimitar-se
padrões e princípios de conduta difusos, e que o Direito, por não regular de forma específica a
conduta de cada indivíduo, mas de classes de pessoas e de atos, para fazê-lo, utiliza-se de dois
instrumentos: a legislação e o precedente. Por legislação, entende-se aquela forma normativa
definidora de um padrão de conduta como modelo obrigatório, de modo que o precedente
apresenta-se como uma referência de conduta4.
Por mais que tenha denominado tais figuras normativas, Hart reconhece a
impossibilidade da previsão, pelo legislador, de todos os fatos da vida, tendo fomentado, que
a aplicação do Direito é envolvida por uma gama de alternativas, classificando de textura
aberta do Direito a possibilidade de que, em razão das circunstâncias, autoridades judiciais e
administrativas evidenciem um equilíbrio entre interesses em conflito, cujo peso varia em
virtude das particularidades de cada caso5. Hart assevera a existência de uma margem, ou seja,
como Kelsen, admite espaços deixados em aberto para que o aplicador do Direito busque a
melhor forma de julgar determinado caso:
Se o mundo no qual vivemos tivesse apenas um número finito de características, e
estas, juntamente com todas as formas sob as quais podem se combinar, fossem
conhecidas por nós, poderíamos então prever de antemão todas as possibilidades.
Poderíamos criar normas cuja aplicação a casos particulares nunca exigiria uma
escolha adicional. Poder-se-ia tudo saber e, como tudo seria conhecido, algo poderia
ser feito em relação a todas as coisas e especificado antecipadamente por uma norma.
Esse seria um mundo adequado a uma jurisprudência “mecânica”. Esse não é,
evidentemente, o nosso mundo; os legisladores humanos não podem ter o
conhecimento de todas as combinações possíveis de circunstâncias que o futuro pode
trazer [...] (HART, 2009, p. 166-167).
Extrai-se do referido, a percepção de ambos autores que a aplicação do Direito é
carreada de criação, deixando claro, que o julgador, atendo-se às minúcias do fato, além de
julgá-lo aplicando o modelo obrigatório de conduta (norma jurídica), fomenta-o.
Além disso, nos resta evidente, manifestarem-se de formas totalmente distintas as
premissas da Escola legalista da Exegese e da Teoria Positivista do Direito, pois enquanto a
primeira defende uma interpretação mecânica do Direito, em que somente ao legislador é
atribuída a tarefa de criar Direito, a segunda tende a rechaçá-la, por considerar o aplicador do
Direito, além do legislador, um criador deste.
4 O autor desenvolve o raciocínio em HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009,
p. 161-162. 5 Nesse sentido HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 175.
114
Contudo, não nos parece claro o que a Teoria Pós-Positivista do Direito pretende
superar em realidade, no Positivismo Jurídico. Seria a hipotética separação entre Direito e
Moral constantemente argumentada? Haja vista que as características outrora anunciadas são,
igualmente, combatidas pelo Positivismo jurídico? É o que buscaremos desenvolver no
próximo capítulo quando examinaremos a Teoria Pós-Positivista do Direito.
2. PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO
A Teoria Pós-positivista do Direito propõe solução para o legado deixado pelo
Positivismo Jurídico, que não resolveu o problema da determinação do Direito no caso
concreto bem como o que envolve o poder discricionário do julgador.
Pretenderia a promoção do reencontro da ética com o Direito, por meio de um
conjunto de ideias difusas, inovando sua aplicação sem substituí-la, combatendo, entretanto, o
poder discricionário pregado por autores como o normativista Kelsen e também por Hart,
sem, contudo, voltar ao legalismo mecanicista da Escola da Exegese do século XIX, bem
como fazer uso dos metafísicos preceitos da Escola Jusnaturalista6.
Para alguns teóricos, como Luís Roberto Barroso, suas principais marcas são, a
ascensão dos valores e o reconhecimento da normatividade dos princípios, fundamentando
que a dogmática tradicional fomentou-se sob o mito da objetividade do Direito e da
neutralidade do intérprete, tendo encoberto seu caráter ideológico bem como sua
instrumentalidade à dominação econômica e social7. Vale dizer, todavia, existirem
controvérsias quanto ao referido, pois o Positivismo Jurídico como veremos a seguir concebe
os princípios como normas e não defende a neutralidade do intérprete.
Concordamos, inicialmente, que o legalismo manifesto na prática jurídica
(principalmente) necessita superação, eis que, realmente, ideologias foram encobertas em
nome da lei e a favor de uma dominação econômica e social. Entretanto, discordamos de
quem denomina tais ações como fruto do Positivismo Jurídico, pois há como demonstramos
no capítulo anterior, nos pensamentos de dois dos maiores positivistas (Kelsen e Hart), a
defesa de teses contrárias ao referido. Ora, uma coisa é a criatura, outra coisa é o nome que se
dá a esta criatura.
6 Sobre o reencontro da ética com o Direito indicamos a leitura de BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova
interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 2 ed. Rio de Janeiro,
2006, p. 47. 7 Idem.
115
O Positivismo, conforme vimos, em ambos os autores, admite que o legislador, como
ser humano que o é e não DEUS, não pode prever todas as minúcias do viver. Pois as normas
têm um condão de indeterminação, servindo unicamente, como uma moldura a ser preenchida
pelo intérprete, que investigará a melhor maneira da resolução do caso concreto.
Diversamente da Escola da Exegese do século XIX, que pregava a completude da lei bem
como a aplicação mecânica, sob o crivo da subsunção.
Que a aplicação do direito, em nosso tempo, se deu de uma maneira legalista,
havendo necessidade de uma lapidação, é fato. Todavia, há de reconhecer-se, que tal realidade
(legalismo exacerbado) coaduna-se com a escola legalista da Exegese, aplicada sob o manto
do Positivismo Jurídico. Vale dizer, a Teoria Positivista do Direito é estigmatizada por
elementos que não lhes são peculiares, pois o legalismo exacerbado por nós vislumbrado
representa em verdade os ditames doutrinários da Escola da Exegese e não os preceitos
daquela.
Tanto Kelsen, quando trata da generalidade da norma, como Hart quando trata da
textura aberta do Direito, reconheceram o papel criador do intérprete do Direito, que por
vezes, em atendimento às circunstâncias do caso deverá transcender a lei, que se aplicada de
forma literal não corresponderá aos anseios deste.
Como haveria neutralidade do intérprete no Positivismo Jurídico se ao mesmo é
reconhecido o poder discricionário e a possibilidade de criação do Direito? a neutralidade que
o Positivismo Jurídico sustenta é da ciência do Direito (e não do intérprete do Direito ou do
próprio Direito), significando inexistir subordinação entre este e uma moral específica. Ou
seja, para o Positivista o Direito encontra-se desvinculado de uma moral determinada, sendo
descrito de uma maneira puramente formal.
Neste sentido vale observar:
Quando uma teoria do Direito positivo se propõe distinguir Direito e Moral em geral
e Direito e Justiça em particular, para não os confundir entre si, ela volta-se contra a
concepção tradicional, tida como indiscutível pela maioria dos juristas, que
pressupõe que apenas existe uma única Moral válida – que é, portanto, absoluta – da
qual resulta uma Justiça absoluta. A exigência de uma separação entre Direito e
Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é
independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a
Moral (KELSEN, 2006, p. 75).
Kelsen, com tais palavras, ao que parece, visou demonstrar que o Direito não está
vinculado a uma moral pré-determinada, a uma moral absoluta. Para o professor, o justo não
pode ser prévia e arbitrariamente determinado, pois por meio de juízos de valor (relativos)
pode-se vincular o Direito a diversos valores, muitas vezes opostos.
116
No que tange referida relatividade Kelsen asseverou que:
Se pressupusermos somente valores morais relativos, então a exigência de que o
Direito deve ser moral, isto é, justo, apenas pode significar que o Direito positivo
deve corresponder a um determinado sistema de Moral entre os vários sistemas
morais possíveis. Mas com isso não fica excluída a possibilidade da pretensão que
exija que o Direito positivo deve harmonizar-se com um outro sistema moral e com
ele venha eventualmente a concordar de fato, contradizendo um sistema moral
diferente deste (Idem).
E a normatividade dos princípios? Como poderemos negar a existência de princípios
bem como o desprovimento de sua normatividade no Positivismo Jurídico diante da norma
geral de Kelsen e da textura aberta do Direito de Hart, se são exatamente esses tipos de
normas que, por seu caráter abstrato, autorizam o papel criador do aplicador do Direito? se o
Direito encontra-se desvinculado a uma moral determinada, abarcando diversas concepções
morais, como identificaremos à luz do caso concreto o Direito justo, senão por meio dos
princípios (que são normas)?
Tais premissas refletem, por mais que se trate de uma teoria extremamente formal,
que no Positivismo Jurídico existem princípios e que são considerados normas. Em nosso
sentir, o problema da legitimidade do Direito que o Pós-positivismo pretende superar no
Positivismo Jurídico, não reside na inexistência e/ou ausência de normatividade dos princípios
neste último, outrossim, no papel exercido pelos mesmos em ambas teorias.
No Positivismo Jurídico os princípios são encarados como justificativa do poder
discricionário do julgador, porquanto que, no Pós-positivismo Jurídico serviriam de meio para
superação dessa discricionariedade.
Essa evidência reflete-se na fundamentação do Direito e em sua adequação. No
Positivismo Jurídico, o fundamento de validade do Direito é formal, e por ser formal, sua
adequação é indeterminada. O Pós-positivismo por sua vez, em busca da determinação do
Direito, consubstancia-se na conciliação entre validade formal e validade material (legalidade
e legitimidade).
Grande desafio, porém, é a conquista da conciliação entre validade formal e validade
material sem voltar ao dogmatismo jusnaturalista. Tal conciliação ao que parece, coaduna-se
com o aludido papel dos princípios, que na teoria Pós-positivista, diversamente da teoria
Positivista (justificava o poder discricionário do juiz), assume o papel de elo (por meio da
argumentação jurídica) entre o legal e o justo.
117
Não temos, nesse humilde ensaio, a pretensão de estabelecer os caminhos da
conciliação entre o legal e o justo, mas procuraremos desenvolver a seguir o papel dos
princípios e da argumentação jurídica nessa jornada.
3. TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA
No ponto anterior, pudemos constatar que a proposta Pós-positivista pretende
superar, em verdade, no Positivismo Jurídico, os problemas, por este não resolvidos
envolvendo a determinação do Direito no caso concreto, além do poder discricionário do
julgador.
Notamos, diversamente do que se pregou em referência ao Positivismo Jurídico, por
mais que se tratasse de uma teoria extremamente formal, há neste, o reconhecimento de
princípios e que são considerados normas. Além de que, é exatamente este, o ponto
determinante de transição da Teoria Positivista para a Pós-positivista do Direito. Ou seja, que
na primeira teoria os princípios eram elementos justificadores do poder discricionário do
julgador, e neste último, realizam uma “ponte” para a superação dessa discricionariedade.
Os elementos dessa transição remontam-nos a outro problema, que envolve a
fundamentação do Direito e sua adequação, pois, no Positivismo Jurídico, o fundamento de
validade do Direito é estritamente formal, e sua adequação indeterminada. Logo, para que o
Pós-positivismo consolide-se, deverá galgar uma determinação legitima para o Direito no
caso concreto, sem, contudo, reduzir-se aos preceitos Jusnaturalistas. Entendamos melhor a
situação.
A fundamentação Jusnaturalista do Direito foi estritamente material, tendo em vista
que o Direito Positivo, para que fosse válido deveria estar em conformidade com os preceitos
do Direito Natural.
Essa concepção acerca do Direito sustentou-se enquanto havia certa homogeneidade
moral na sociedade (crenças, costumes, visões de mundo partilhados), vindo sucumbir diante
da já mencionada Escola da Exegese, que posteriormente fora sucedida pelo Positivismo
Jurídico, devido à pluralidade de características de uma nova sociedade que se formou.
Os preceitos Jusnaturalistas no que tange o fundamento de validade do Direito
(material) tornaram-se insustentáveis, cabendo ao Positivismo Jurídico demonstrar seu caráter
dogmático e absoluto, que em uma sociedade pluralista como a contemporânea nada mais
seria que arbitrar as visões de mundo de uma minoria sobre as da maioria.
118
Nesse contexto, a proposta Positivista apresenta um fundamento formal de validade
para o Direito, pregando sua neutralidade, ou seja, sua desvinculação a uma moral
determinada (relativismo).
Ocorre que, como essa validade é formal, é indeterminada. E como outrora
demonstramos nos pensamentos de Kelsen e Hart, há casos em que o aplicador do Direito
deverá transcender a lei para julgá-lo, e havendo uma indeterminação quanto à validade do
Direito, o controle da discricionariedade do julgador quando de sua aplicação resta
prejudicado.
Identificado o problema da validade formal no Positivismo Jurídico bem como o do
poder discricionário do julgador, ao final do século XX, vislumbrou-se a necessidade da
elaboração de uma teoria que demonstre qual deva ser o conteúdo legítimo do Direito e que
não imponha a visão de mundo de poucos a uma maioria.
Surge então o denominado Pós-positivismo Jurídico, no qual podemos colocar
Robert Alexy, que apresenta interessante solução para o problema da conciliação entre
legalidade e legitimidade no Direito.
Para Alexy, a despeito das teorias positivistas separarem Direito e moral, por meio de
um conceito de Direito com validade puramente formal, corroborada pela legalidade em
conformidade com o ordenamento e a eficácia social, as teorias não-positivistas tendem a
vinculá-los (Direito e moral), concebendo o autor um conceito de Direito carreado de um
terceiro aspecto além dos dois primeiros, vale dizer, o da correção material8.
Para o autor:
o direito é um sistema de normas que (1) formula uma pretensão de correção, (2)
consistindo na totalidade das normas que pertencem a uma Constituição geralmente
eficaz e que não são extremamente injustas, bem como à totalidade das normas
promulgadas de acordo com esta Constituição, que possuem um mínimo de eficácia
social ou de probabilidade de eficácia e não são extremamente injustas a qual (3)
pertencem princípios e outros argumentos normativos nos quais se apoia o
procedimento de aplicação do Direito e/ou tem que se apoiar a fim de satisfazer a
pretensão da correção (ALEXY, 2004, p. 123).
Com esses ditames Alexy enfatiza, primeiramente, que um sistema desprovido de
pretensão à correção não possa ser considerado sistema jurídico, e que na prática os sistemas
jurídicos a formulam. Posteriormente, que os elementos outrora descritos (legalidade em
conformidade com o ordenamento, eficácia social e a correção material) referem-se além da
Constituição, às normas postas em conformidade com essa constituição, existindo uma
8 A respeito consultar ALEXY, Robert. Elconcepto y La validez Del derecho. Barcelona: gedisa, 2004, p. 13-
14.
119
estrutura escalonada, excluindo-se normas extremamente injustas da seara do Direito. E por
fim, que incorpora-se ao Direito o procedimento de sua aplicação, pois tudo aquilo em que se
apoia ou que tem que se apoiar alguém que aplica o Direito almejando sua correção o Direito
abarca. Ou seja, que princípios não identificados como jurídicos sobre as bases da validade de
uma Constituição bem como demais argumentos normativos fundamentadores de decisões
pertenceriam ao Direito9.
Se não estivermos enganados, Alexy considera Direito e moral como “aliados”.
Aliados estes, que por meio de princípios bem como de argumentação jurídica buscam uma
aplicação justa para o Direito.
Antes de chegarmos ao findo momento desta digressão, necessitaremos pontuar
alguns aspectos que envolvem as teorias dos princípios e da argumentação jurídica de Alexy.
Alexy concebe princípios e regras como espécies de normas jurídicas, por mais que
sejam distintos. Para ele, as regras são aplicáveis na maneira do “tudo ou nada” 10
. Vale dizer,
se uma regra é válida, deverá ser aplicada na sua totalidade. Em se tratando de um conflito
entre regras, para que apenas uma delas seja considerada válida, deveremos tomar alguns
cuidados, pois se considerarmos determinada regra como válida a fim de aplicá-la ao caso,
como conseqüência, além da desconsideração da outra regra pela decisão, sua invalidade será
declarada, a não ser que essa regra encontre-se em uma situação que excepcione a outra11
.
Os princípios, de outro modo, são normas que ordenam que algo se realize na maior
medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. São, por conseguinte,
mandamentos de otimização, caracterizados pela possibilidade de satisfação em diferentes
graus e de acordo com as aduzidas possibilidades fáticas e jurídicas12
.
Podemos encará-los como razões em favor de determinado posicionamento
argumentativo, atribuindo-se peso, à luz do caso concreto, quando de uma colisão:
As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa.
Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de
acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido –, um dos princípios terá
que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado
inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o
que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob
determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser
resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos
9 Nesse sentido ALEXY, Robert. Elconcepto y La validez Del derecho. Barcelona: gedisa, 2004, p. 123-126.
10 Ronald Dworkin também menciona esta diferença, mas de forma distinta. O que não enfrentaremos neste
ensaio devido à delimitação de seu tema. 11
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 92-93. 12
Idem, p. 90.
120
concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso têm
precedência [...] (ALEXY, 2008, p. 93-94).
Importante frisarmos nas palavras ora mencionadas, que antecipadamente nenhum
princípio tem primazia sobre os demais, e que, o uso da ponderação torna possível
vislumbrar-se o maior peso de um princípio com relação a outro em dado caso, sem que haja a
invalidação do princípio tido como de peso menor. Ademais, em outro caso, poderá haver a
redistribuição dos pesos de uma maneira distinta, inclusive oposta.
Isso se dá, por que segundo Alexy, os princípios equiparam-se a valores, apesar de
não tratarem-se destes. Para o professor princípios dizem respeito a um conceito deontológico
(de dever ser), enquanto que os valores atinem a um conceito axiológico (de bom, de melhor),
não obstante estarem intimamente ligados, possibilitando-se colisão bem como sopesamento
tanto de princípios como de valores, vez que a realização gradual dos princípios corresponde à
dos valores13
.
Alexy delimita que a visão do nível dos princípios mostra que neles estão reunidas
coisas extremamente diversas. Mas mais importante que referir-se a essa diversidade é a
constatação de sua indeterminação. Pois no mundo dos princípios há lugar pra muita coisa,
podendo-se chamá-lo de mundo do dever-ser ideal. Para ele, as colisões, tensões, conflitos,
etc, surgem exatamente no momento em que se tem de passar do espaçoso mundo do dever-
ser ideal para o estreito mundo do dever-ser definitivo ou real14
.
Mas os princípios por si só, não têm a possibilidade de determinar a resposta correta
para cada caso, necessitando de um “amparo” para que alcance a aplicação racional do
Direito.
Alexy então, na busca dessa aplicação racional do Direito, elabora uma teoria da
argumentação jurídica, identificando-a como um caso especial da argumentação prática geral
(da argumentação moral), que conjuntamente com as regras e princípios formam um
procedimento, apto a estabelecer a melhor decisão para o caso concreto15
.
13
Idem, p. 144-145. 14
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 139. 15
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2001, p. 267.
121
CONCLUSÃO
Sabemos que a teoria de Alexy sofreu e sofre muitas críticas. Mas reconhecemos
como inoportuno, neste momento, tecer comentários a respeito, por tratar-se nossa meta, em
verdade, de outra seara bem mais humilde.
Viemos aqui para analisar a proposta Pós-positivista, que pretende resolver o
problema legado do Positivismo Jurídico, que apesar de reconhecer a discricionariedade do
julgador não a resolveu, além do que envolve a aplicação do Direito no caso concreto.
Ao que parece, obteve sucesso Alexy nessa jornada. Pois impossibilitado no mundo
contemporâneo, devido à pluralidade cultural e subjetiva, de apontar uma moral determinada
(o que seria arbitrário), com sua regra procedimental, com primazia nos princípios e na
argumentação jurídica, apontou considerável alternativa na busca da resolução racional do
caso concreto.
Entendemos, que o mundo contemporâneo, por sua diversidade e complexidade
dificulta a conquista da conciliação entre validade formal (legalidade) e validade material
(legitimidade). Vemos, todavia, que a única solução para esta conquista reside no
procedimento do Direito, que carreado por igualdade entre as partes, ampla defesa e
contraditório, argumentação jurídica, produção de provas e ênfase na efetividade dos
princípios jurídicos, galgará a legitima aplicação da lei no caso concreto.
REFERÊNCIAS
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_______. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2001.
_______. El concepto y la validez Del derecho. Barcelona: gedisa, 2004.
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fundamentais e relações privadas. 2ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
122
A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA EM RELAÇÃO A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.
Vagner Adriano Ferreira
Walter de Laia Rocha
Thamara Tereza Linhares Gomes
Tatiana Rosmaninho Andrade1
RESUMO: O presente artigo busca saber a constitucionalidade da Função Social da Empresa,
e sua relação com a Função Social da Propriedade, uma vez que a empresa é uma propriedade
pertencente ao sócio ou ao acionista.
PALAVRAS-CHAVE: Função Social da Empresa; Função Social da Propriedade; Empresa,
Propriedade.
ABSTRACT: The present article searchs to know the constitutionality of the Social Function
of the Company, and its relation with the Social Function of the Property, a time that the
company is a pertaining property to the partner or the shareholder.
KEYWORDS: Social function of the Company; Social Function of the Property; Company;
Property.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Primeiramente cabe falar que a função social da empresa é a busca do interesse
público em limitar o interesse privado, evitando o arbítrio individual que prejudique a
coletividade.
Segundo Mamede (2007, p. 84)
[...] a função social da empresa parte da percepção de que a atividade econômica
organizada para a produção de riqueza, pela produção e circulação de bens e/ ou pela
prestação de serviços, embora tenha finalidade imediata de remunerar o capital nela
investido, beneficiando os seus sócios quotistas ou acionistas, beneficia igualmente
o restante da sociedade, [...]
A sociedade a qual Gladston Mamede refere-se engloba os empregados, os clientes e
o próprio mercado em geral, na qual atingirá diversas pessoas direta ou indiretamente toda a
coletividade.
Diante disso demonstra - se a necessidade do Estado em garantir o interesse da
sociedade, da coletividade em relação a sociedade economicamente organizada, mesmo em se
tratando de atividades privadas, desta forma evitará a discricionariedade das empresas
1 Acadêmicos do Curso de Direito da Faculdade Dinâmica.
123
privadas, evitando assim a arbitrariedade destas, prejudicando o menos favorecido que é a
sociedade em geral.
Desta forma caberá ao Estado proteger com todos os seus órgãos e poderes, o direito
da coletividade, buscando atingir o interesse público protegido por este princípio tão
importante quanto os demais no funcionamento da Sociedade Empresaria.
Podemos assim perceber que este princípio tanto reflete a favor quanto contra os
interesses dos administradores das sociedades empresarias, já que retira deles a faculdade de
conservação ou exercício da arbitrariedade, sendo todos os atos contrabalanceados com o
interesse público.
A função social da empresa é um fator muito importante tanto para a recuperação da
empresa quanto para a sua falência. Essa importância fica explicita ao analisar o texto da
legislação infraconstitucional, em especial o art. 47 da Lei de Falências (Lei 11.101/05),
conforme transcrita abaixo.
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação
de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte
produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo,
assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica.
Não sendo diferente a Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76), dispõe:
Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o
grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:
a) – b) [...]
Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a
companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e
responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham
e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente
respeitar e atender.
Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe
conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências
do bem público e da função social da empresa.
Assim sendo, percebemos que não cabe somente ao estado fazer cumprir a função
social da empresa, mas cabe aos administradores, fornecedores, consumidores, enfim a
comunidade contribuir para que seja cumprida e efetivada a função social.
1. FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA X FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Na busca de compreendermos a função social da empresa, procuramos analisá-la
sobre o prisma da função social da propriedade, e assim a propriedade em si.
124
Não somente a propriedade móvel ou imóvel possui função social, mas todo o tipo de
propriedade, como prevê Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2009, p. 227).
[...]A função social incide sobre a própria estrutura da propriedade, portanto, recai
sobre qualquer bem, variando em intensidade em cada situação concreta, de acordo
com as efetivas utilidades dele para a sociedade. Se toda e qualquer propriedade
“atenderá a função social”, assim não apenas a propriedade do solo ou a dos bens de
produção, mas também a propriedade imaterial e a propriedade da empresa.
A função Social da empresa vem diretamente atrelada com a função social da
propriedade, uma vez que, a empresa também se trata de propriedade, não uma propriedade
prevista tradicionalmente pelo Código Civil, mas sim uma propriedade organizada para a
produção de lucros, conforme a visão moderna de noção de empresa. (CHAVES;
ROSENVALD, 2009).
A propriedade tem a sua função social prevista no art. 5º inciso XXIII da
Constituição da República Federativa do Brasil.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
Na visão de José Afonso da Silva (2008), a propriedade prevista no art. 5º,
supracitado, é a “propriedade em geral”, englobando inclusive a empresa, fazendo assim com
que a empresa cumpra todos os requisitos da propriedade em geral, inclusive a função social.
Sendo assim, mantendo a mesma relação, a empresa também obedecerá a função
social em relação a ordem econômica conforme prevê o art. 170, inciso III da Carta Magna.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios:
III - função social da propriedade;
Desta forma compreendemos que a propriedade é garantida constitucionalmente,
incluindo a propriedade da empresa, fazendo assim esta ter os direitos de propriedade,
conforme art. 1.228 Código Civil.
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade
com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio
ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e
das águas.
125
Assim sendo, poderá o proprietário da empresa, exercer todos os seus direitos
referentes a propriedade, desde que estes não conflitam com a função social da empresa.
Outrossim, Pereira (2005) em seu artigo Função Social da Empresa, elenca as
funções e a previsão legal.
[...] responsável pela geração de empregos, pelo recolhimento de tributos (sustento
da economia) e, ainda, movimenta a economia (compra e venda de bens e prestação
de serviço).
[...] a empresa observa a solidariedade (CF/88, art. 3°, inc. I), promove a justiça
social (CF/88, art. 170, caput), livre iniciativa (CF/88, art. 170, caput e art. 1°, inc.
IV), busca de pleno emprego (CF/88, art. 170, inc. VIII), redução das desigualdades
sociais (CF/88, art. 170, inc. VII), valor social do trabalho (CF/88, art. 1°, inc. IV),
dignidade da pessoa humana (CF/88, art. 1°, inc. III), observe os valores ambientais
(CDC, art. 51, inc. XIV), dentre outros princípios constitucionais e
infraconstitucionais.
Conforme visto trata-se de um rol vasto de funções que as empresas devem
proporcionar a sociedade, não sendo somente a geração de empregos, mas todo um conjunto
que leva o crescimento desta.
CONCLUSÃO:
Isto posto, percebemos que a função social da empresa na defesa do interesse da
coletividade, é constitucional, uma vez que, demonstrada a constitucionalidade da função
social da propriedade, e conforme vimos a empresa também é uma propriedade.
Porém vimos que na pratica a função social da empresa impede que a sociedade
empresária tenha o livre arbítrio para as decisões, contrariando assim o Código Civil no art.
1.228, onde garante os direitos do proprietário em relação a propriedade, já que muitas de
suas atitudes em frente a sociedade empresária deverá ser aprovadas por órgãos responsáveis,
a evitar o desrespeito a alguma função da empresa.
Desta forma, chegamos a conclusão de que a Função Social da Propriedade, na regra
evitaria grandes contrastes existentes na sociedade em geral, porém por falta de políticas
públicas mais coerentes, e conscientização dos proprietários das sociedades empresarias isto
não ocorre.
Somente através destas poderiam evitar as desigualdades que ocorrem nos dias
atuais, desigualdades estas que iniciam muitas vezes dentro da própria empresa.
As empresas brasileiras sofrem com a sobrecarga de tributos, o que analisado ao
ponto da função social, vemos que com o faturamento menor, uma vez retirada o que
126
compreende aos tributos, não haverá o desenvolvimento da sociedade, desta forma não poderá
proporcionar remunerações justas ou condições dignas de trabalho, sendo assim, entrará em
um circulo vicioso não obtendo os resultados pretendidos pela função social.
Atualmente somente vemos a análise detalhada de cada empresa, quando ocorre o
pedido de falência ou de recuperação Judicial, ou quando ocorre qualquer ato com a empresa
e esta for analisada pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
Deste modo entendemos que a Função Social da Empresa de modo geral, ou seja, na
lei e princípios, atenderia o interesse popular se fosse efetivamente cumprida, pela sociedade.
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