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LIDIANE NUNES DA SILVEIRA
ROCcedilA UMA MARCA REGISTRADA O PROCESSO DE VALORIZACcedilAtildeO DO RURAL NA SOCIEDADE BRASILEIRA
Tese apresentada agrave Universidade Federal de Viccedilosa como parte das exigecircncias do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo Rural para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doctor Scientiae
VICcedilOSA MINAS GERAIS- BRASIL
2015
ii
Aos meus pais Joatildeo e Maria
e ao meu companheiro Leacutelis
fontes de inspiraccedilatildeo
apoio e partilha da vida
iii
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo agrave Universidade Federal de Viccedilosa especificamente ao Programa de
Poacutes-graduaccedilatildeo em Extensatildeo Rural do Departamento de Economia Rural pela
oportunidade de cursar o Doutorado e estendo meus cumprimentos a todo o corpo
docente e aos teacutecnicos administrativos que tornam o curso possiacutevel Agrave Coordenaccedilatildeo de
Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) pela concessatildeo de bolsa de
estudos que subsidiaram o desenvolvimento da pesquisa Ao Instituto Federal de Minas
Gerais Campus Ouro Preto pela concessatildeo de Licenccedila para Capacitaccedilatildeo que
possibilitou melhores condiccedilotildees para a dedicaccedilatildeo ao desenvolvimento da pesquisa e ao
cumprimento das exigecircncias do Programa em tempo haacutebil
Na UFV agradeccedilo imensamente agrave Professora Ana Louise pelo entusiasmo com
o qual conduz nossas pesquisas nos inspirando e motivando com sua dedicaccedilatildeo
disponibilidade e solicitude Agradeccedilo pela seguranccedila nos meus momentos de duacutevida
pela compreensatildeo relativa agraves condiccedilotildees de vida e pelas vaacuterias oportunidades de
aprendizado conquistas e aperfeiccediloamento que nos concedeu dentro e fora do Grupo de
Estudos Rurais Agriculturas e Ruralidades (GERAR) E pela confianccedila no meu
trabalho pela sintonia e escolhas certeiras e pela orientaccedilatildeo precisa Aos Professores
Douglas Mansur e Rennan Lanna pela coorientaccedilatildeo por transmitirem apoio e confianccedila
nas decisotildees tomadas ampliando as possibilidades da pesquisa pela disponibilidade agrave
leitura criacutetica do texto e pela participaccedilatildeo nos momentos formais de avaliaccedilatildeo do
trabalho contribuindo para a pesquisa com seriedade e ao mesmo tempo leveza Ao
Professor Leonardo Civale que de forma muito soliacutecita e entusiaacutestica aceitou
contribuir com a leitura do trabalho em vaacuterios momentos despertando-nos para novas
facetas da pesquisa Ao Professor Luciano Rodrigues que aceitou prontamente
contribuir com o trabalho participando da banca de defesa e cujas colaboraccedilotildees foram
muito pertinentes Agrave Professora Neide Almeida que foi interlocutora indireta desse
trabalho ao longo de todo esse tempo agradeccedilo agraves leituras e contribuiccedilotildees Agradeccedilo a
todos os professores e professoras do Programa que contribuiacuteram direta ou
indiretamente para a minha formaccedilatildeo e para o bom desenvolvimento desta pesquisa No
DER agradeccedilo ainda agrave Carminha Romildo Cassiana Helena Brilhante Margarida D
iv
Maria Otto e Russo que sempre nos atenderam com carinho e presteza no cotidiano
acadecircmico
Na UFV devo tambeacutem meus agradecimentos aos componentes antigos e novos
do GERAR espaccedilo de aprendizado partilha apoio crescimento e amizade Agradeccedilo
ao Gustavo Braga pela oportunidade de aprendizado no curso de Metodologia
Quantitativa agrave Vanessa Barros pelo treinamento com o Alceste e agrave Paula Fernandes
pelo trabalho de acompanhamento e traduccedilatildeo da obra de Placide Rambaud Agradeccedilo
especialmente agrave Vanessa amiga para toda a vida Aos amigos e amigas do Programa
com os quais aprendi e me diverti muito agradeccedilo o apoio o incentivo a troca a
partilha das anguacutestias e das conquistas ao longo desses anos Sorte a todos noacutes
Agradeccedilo na UFMG agrave Professora Deborah Lima por me acompanhar mais
uma vez na minha trajetoacuteria acadecircmica pela disponibilidade em participar do exame de
qualificaccedilatildeo pelas contribuiccedilotildees preciosas ao meu trabalho Na UFOP agradeccedilo agrave
Professora Marisa Singulano pela solicitude em aceitar contribuir com o debate do
seminaacuterio e pela leitura do trabalho pelo carinho e compreensatildeo com as vicissitudes dos
momentos finais da tese Ao Professor Frederico Tavares pela gentileza em aceitar ao
convite para participar da banca de defesa suas leituras comentaacuterios e contribuiccedilotildees
acrescentaram um novo olhar ao trabalho
No IFMG agradeccedilo aos meus amigos professores e agraves minhas amigas
professoras da Coordenadoria de Aacuterea de Ciecircncias Sociais e da Coordenadoria de Aacuterea
de Histoacuteria primeiramente pela concessatildeo da Licenccedila Capacitaccedilatildeo mas sobretudo
pelo incentivo apoio parcerias e compreensatildeo nos momentos de ausecircncia Agradeccedilo
em especial ao Professor Guilherme Leonel e agrave Professora Alessandra Tostes pelo
apoio e compreensatildeo nas vaacuterias trocas de turmashoraacuteriosconteuacutedos que num primeiro
momento antes da Licenccedila Capacitaccedilatildeo foram fundamentais para que eu pudesse
cursar as disciplinas Ao Professor Rios e agrave Professora Paula pela descontraccedilatildeo nos
momentos finais de redaccedilatildeo da tese e agrave Professora Venuacutencia pela torcida e incentivo
Aos alunos e alunas que acompanharam o iniacutecio do doutorado com admiraccedilatildeo e
entusiasmo meus agradecimentos
Em Gonccedilalves natildeo tenho palavras para agradecer a recepccedilatildeo carinhosa a
paciecircncia e o acolhimento da Vera Ribeiro e da equipe da Secretaria de Turismo
Ivonete e Kleacuteber assim como o apoio logiacutestico o incentivo e paciecircncia de Roberto
v
Torrubia mediadores das entrevistas e cicerones nas visitas aos bairros rurais e
estabelecimentos da cidade Em nome destes agradeccedilo a todos e todas que me
receberam na cidade que aceitaram participar da pesquisa e compartilhar comigo suas
histoacuterias e a paixatildeo pela roccedila Gonccedilalves eacute definitivamente um lugar incriacutevel as
pessoas e suas histoacuterias fascinantes
No Mercado Central agradeccedilo a colaboraccedilatildeo e presteza do superintendente Luiz
Carlos Braga e da assessora Claacuteudia Neres que permitiram a realizaccedilatildeo da pesquisa no
Mercado de forma tatildeo soliacutecita Tambeacutem agradeccedilo a todos os trabalhadores e
frequentadores do Mercado que participaram da pesquisa cedendo parte do seu precioso
tempo de trabalho ou de lazer para responder aos questionaacuterios Vocecircs fazem do
Mercado esse lugar de tradiccedilatildeo e ldquorefuacutegio nostaacutelgicordquo
Essa pesquisa tambeacutem foi possiacutevel graccedilas a vaacuterios colaboradores agradeccedilo pelas
revisotildees feitas pela Elodia Lebourg pela Anastaacutezia Ladeira e Joseacute Dioniacutesio Ladeira
pela traduccedilatildeo da Liacutevia Quinquiolo a consultoria dos mapas concedida pelo Professor
Marcos Viniacutecius Sanches Abreu e pela cessatildeo das fotografias e ilustraccedilatildeo pelo Roberto
Torrubia Agrave colaboraccedilatildeo da estudante de graduaccedilatildeo em Economia Domeacutestica e bolsista
do Programa de Educaccedilatildeo Tutorial da UFV Danielle Batista durante a pesquisa das
marcas pela internet e organizaccedilatildeo dos dados
Por fim agradeccedilo aos incentivadores de todos os minutos sem os quais natildeo
haveria forccedilas possiacuteveis para desenvolver esse trabalho Ao meu pai Joatildeo Monteiro
pelo incentivo e esforccedilo para que eu chegasse ateacute aqui pelas oraccedilotildees pela admiraccedilatildeo e
pelas fotografias solicitadas Agrave minha matildee Maria pelas oraccedilotildees que iluminaram minhas
escolhas nos momentos de duacutevida me fortaleceram nos momentos desgastantes e
renovaram a minha feacute pela paciecircncia e pela compreensatildeo da minha ausecircncia Ao Leacutelis
natildeo tenho palavras para agradecer a maneira como compartilhou comigo o longo e
doloroso caminho de realizaccedilatildeo deste trabalho Agradeccedilo a partilha da paixatildeo pelas
coisas da roccedila do trabalho domeacutestico da crenccedila e da praacutetica por uma vida melhor do
apoio na pesquisa de campo do amor carinho e paciecircncia no dia a dia da ajuda com os
macetes no computador e dos trabalhos e leituras em conjunto Agradeccedilo agrave Marilda
Maia pelo incentivo pelas oraccedilotildees e pelo carinho acolhedor e a toda a famiacutelia Maia e
Brito pela acolhida e apoio Agradeccedilo agrave Efigecircnia em Viccedilosa e agrave Valquiacuteria em Ouro
Preto pelo trabalho domeacutestico Agradeccedilo aos meus amigos e agraves minhas amigas e aos
vi
familiares pela torcida pela irreverecircncia e acima de tudo por compreenderem a minha
ausecircncia Agradeccedilo a Deus por ter chegado ateacute aqui
vii
SUMAacuteRIO
LISTA DE FIGURAS viii
LISTA DE GRAacuteFICOS xii
LISTA DE QUADROS XIII
LISTA DE TABELAS XIV
LISTA DE ABREVIATURAS XV
RESUMO XVII
ABSTRACT XIX
INTRODUCcedilAtildeO 1
CONTEXTUALIZACcedilAtildeO DA PESQUISA 1
NO CAMINHO DA ROCcedilA PROCEDIMENTOS METODOLOacuteGICOS 6
APRESENTACcedilAtildeO DOS CAPIacuteTULOS 8
1 USOS E SIGNIFICADOS DO TERMO ROCcedilA NO BRASIL 11
11 USOS E SIGNIFICADOS DO TERMO ROCcedilA NA FORMACcedilAtildeO SOacuteCIO-HISTOacuteRICA DO BRASIL 11
12 USOS E SIGNIFICADOS DO TERMO ROCcedilA NOS ESTUDOS SOBRE O CAMPESINATO NO BRASIL 22
13 USOS E SIGNIFICADOS DO TERMO ROCcedilA EM TEXTOS CONTEMPORAcircNEOS 35
14 USOS E SIGNIFICADOS DO TERMO ROCcedilA EM TEXTOS NAtildeO ACADEcircMICOS 40
15 A CATEGORIA ROCcedilA FACE Agrave PROBLEMAacuteTICA CONCEITUAL RELATIVA AO RURAL 45
16 SIacuteNTESE DOS USOS E SIGNIFICADOS DA CATEGORIA ROCcedilA FACE AgraveS PERSPECTIVAS SOBRE O RURAL NO
BRASIL 67
2 ROCcedilA UMA MARCA REGISTRADA A PRODUCcedilAtildeO A CIRCULACcedilAtildeO E O CONSUMO DE PRODUTOS E SERVICcedilOS ldquoDA ROCcedilArdquo 69
21 A ROCcedilA VAI AO MERCADO UMA INTERPRETACcedilAtildeO A PARTIR DA ANTROPOLOGIA DO CONSUMO 69
22 PROCEDIMENTOS METODOLOacuteGICOS E ANAacuteLISE DESCRITIVA DE MARCAS DE PRODUTOS E SERVICcedilOS
COM O TERMO ROCcedilA NO BRASIL 72
23 PROCEDIMENTOS METODOLOacuteGICOS E ANAacuteLISE DE CONTEUacuteDO DE MARCAS DE PRODUTOS E SERVICcedilOS
COM O TERMO ROCcedilA NO BRASIL 89
24 PROCEDIMENTOS METODOLOacuteGICOS E ANAacuteLISE DAS ENTREVISTAS E APLICACcedilAtildeO DE QUESTIONAacuteRIOS
103
3 O MERCADO CENTRAL O CANTINHO DA ROCcedilA NA CAPITAL MINEIRA 130
31 O MERCADO E A NOVA CAPITAL 130
32 A OBSERVACcedilAtildeO PARTICIPANTE E A APLICACcedilAtildeO DE QUESTIONAacuteRIOS NO MERCADO CENTRAL 136
33 O MERCADO CENTRAL E SEUS PARES DE OPOSTOS A CIDADELAacute FORA A ROCcedilAAQUI DENTRO 146
34 AS CATEGORIAS ROCcedilA NO MERCADO CENTRAL 163
4 O FESTIVAL DE GASTRONOMIA E CULTURA DA ROCcedilA DE GONCcedilALVES ldquoAQUI A ROCcedilA Eacute A RAINHArdquo 169
41 A CIDADE DE GONCcedilALVES 169
42 A OBSERVACcedilAtildeO PARTICIPANTE AS ENTREVISTAS E OS ldquoBASTIDORESrdquo DO FESTIVAL 182
43 O 4ordm FESTIVAL DE GASTRONOMIA E CULTURA DA ROCcedilA DE GONCcedilALVES 197
viii
44 AS CATEGORIAS ROCcedilA EM GONCcedilALVES 218
5 O QUE SIGNIFICA ROCcedilA AFINAL 238
51 PROCEDIMENTOS METODOLOacuteGICOS E ANAacuteLISE DAS RESPOSTAS DAS ENTREVISTAS E QUESTIONAacuteRIOS
COM O USO DO SOFTWARE ALCESTE 239
52 PROCEDIMENTOS METODOLOacuteGICOS E ANAacuteLISE DAS RESPOSTAS DAS ENTREVISTAS E QUESTIONAacuteRIOS
COM O USO DO SOFTWARE NVIVO 248
53 SIacuteNTESE DOS RESULTADOS SOBRE OS SIGNIFICADOS DO TERMO ROCcedilA COM O USO DO ALCESTE E DO
NVIVO 258
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 261
REFEREcircNCIAS 266
APEcircNDICES 288
APEcircNDICE A ndash TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ndash PRODUTORES 288
APEcircNDICE B ndash TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ndash CONSUMIDORES 290
APEcircNDICE C ndash TERMO DE AUTORIZACcedilAtildeO DE USO DE IMAGEM 292
APEcircNDICE D ndash ROTEIRO DE ENTREVISTA AOS PRODUTORESDISTRIBUIDORES 293
APEcircNDICE E ndash QUESTIONAacuteRIO SEMIESTRUTURADO ndash PRODUTORES E DISTRIBUIDORES 295
APEcircNDICE F ndash QUESTIONAacuteRIO SEMIESTRUTURADO ndash CONSUMIDORES 299
ix
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 ndash Roccedila de mandioca 17
FIGURA 2 ndash Roccedila de milho 18
FIGURA 3 ndash Roccedila de feijatildeo 18
FIGURA 4 ndash Caracteriacutesticas da roccedila na formaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica do Brasil Colocircnia 22
FIGURA 5 ndash Bairros rurais em Gonccedilalves-MG 25
FIGURA 6 ndash Caracteriacutesticas da roccedila no Brasil Contemporacircneo 40
FIGURA 7 ndash Mapa dos municiacutepiosEstados com produtos e serviccedilos com a marca roccedila no Brasil por regiatildeo 2014 82
FIGURA 8 ndash Evoluccedilatildeo das caracteriacutesticas histoacutericas do campo no Brasil e dos usos e significados da marca roccedila (1960-2015) 103
FIGURA 9 ndash Verduras no Mercado Central 114
FIGURA 10 ndash Frutas no Mercado Central 114
FIGURA 11 ndash ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo Gonccedilalves-MG 114
FIGURA 12 ndash Queijo artesanal no Mercado Central 115
FIGURA 13 ndash Cachaccedilas no Mercado Central 115
FIGURA 14 ndash Doces no Mercado Central 115
FIGURA 15 ndash Quitandas no Festival de Gonccedilalves-MG 117
FIGURA 16 ndash Artesanato e cestaria em Gonccedilalves-MG 118
FIGURA 17 ndash Utensiacutelios em aacutegata no Mercado Central 118
FIGURA 18 ndash Panelas de cobre no Mercado Central 118
FIGURA 19 ndash Gamelas no Mercado Central 119
FIGURA 20 ndash ldquoCasinha da roccedilardquo no Mercado Central 119
FIGURA 21 ndash Localizaccedilatildeo de Belo Horizonte-MG 131
FIGURA 22 ndash Fachada do Mercado Central 133
FIGURA 23 ndash Produto com marca ldquoRoccedilardquo no Mercado Central 137
FIGURA 24 ndash Restaurante ldquoCozinha da Roccedilardquo no centro de Belo Horizonte-MG 138 FIGURA 25 ndash Canecas em aacutegata 140
FIGURA 26 ndash Doces embalados no tecido de chita 140
FIGURA 27 ndash Peacutes de boi 141
FIGURA 28 ndash Berrantes 141
FIGURA 29 ndash Gaiolas 141
FIGURA 30 ndash Corredor de artesanato tecelagem e cestaria 142
FIGURA 31 ndash Panelas de barro 142
FIGURA 32 ndash Panelas de pedra 142
FIGURA 33 ndash Queijo cabacinha defumado 144
FIGURA 34 ndash Corredor no Mercado Central 147
FIGURA 35 ndash Queijos 148
FIGURA 36 ndash Utensiacutelios domeacutesticos 148
x
FIGURA 37 ndash Flores e pimentas 148
FIGURA 38 ndash Interior do restaurante 165
FIGURA 39 ndash Lavabo do restaurante 166
FIGURA 40 ndash Detalhe da arquitetura do restaurante 166
FIGURA 41 ndash Fachada do ldquoRoccedila Capitalrdquo no Mercado Central 168
FIGURA 42 ndash Localizaccedilatildeo de Gonccedilalves-MG 170
FIGURA 43 ndash Vista panoracircmica da cidade de Gonccedilalves-MG 171
FIGURA 44 ndash Vista do Bairro dos Remeacutedios 172
FIGURA 45 ndash Cachoeira do Simatildeo no Bairro Retiro 172
FIGURA 46 ndash Igreja de Nossa Senhora das Dores centro de Gonccedilalves-MG 173 FIGURA 47 ndash Localizaccedilatildeo de Gonccedilalves na APA Fernatildeo Dias 176
FIGURA 48 ndash Carro de boi 181
FIGURA 49 ndash Boneca decorativa na loja ldquoDireto da Roccedilardquo rodoviaacuteria de Itajubaacute-MG 184
FIGURA 50 ndash Boneco decorativo na loja ldquoDireto da Roccedilardquo rodoviaacuteria de Itajubaacute-MG 184
FIGURA 51 ndash Wifi Zone na praccedila de Gonccedilalves-MG 186
FIGURA 52 ndash Mapa ilustrado de Gonccedilalves-MG 189
FIGURA 53 ndash Pedra Chanfrada no Bairro Terra Fria 192
FIGURA 54 ndash Restaurante Trecircs Irmatildes no Bairro Rural do Juncal 193
FIGURA 55 ndash Prato do Restaurante Ao Peacute da Pedra 193
FIGURA 56 ndash Restaurante da Vilma no Bairro dos Venacircncios 194
FIGURA 57 ndash Feira ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo 195
FIGURA 58 ndash ldquoCafeacute na Roccedilardquo na Feira ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo 196
FIGURA 59 ndash Interior do ldquoCafeacute na Roccedilardquo 196
FIGURA 60 ndash ldquoParquinho da Roccedilardquo na Feira ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo 196 FIGURA 61 ndash Mesas e stands no 4o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila 202
FIGURA 62 ndash Salatildeo de festas do Clube Recreativo de Gonccedilalves-MG 202 FIGURA 63 ndash Stand de Slow Food ldquoConviacutevio Terras Altas do Sapucaiacuterdquo 203 FIGURA 64 ndash Oficina de queijos de ovelha e cervejas artesanais ndash 203
FIGURA 65 ndash Cartaz de divulgaccedilatildeo do 1o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila 205
FIGURA 66 ndash Cartaz de divulgaccedilatildeo do 2o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila 205
FIGURA 67 ndash Guia Gastronocircmico do 3o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila 206
FIGURA 68 ndash Cartaz de divulgaccedilatildeo do 4o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila 206
FIGURA 69 ndash Fornalha e fogatildeo a lenha 209
FIGURA 70 ndash Broa de pau-a-pique 210
FIGURA 71 ndash Quituteiras Dona Dita Aline e Cida 210
FIGURA 72 ndash Tear 211
FIGURA 73 ndash Artesanato em palha de milho 211
xi
FIGURA 74 ndash Sela e balaios 212
FIGURA 75 ndash Carro de boi e milho 212
FIGURA 76 ndash Raacutedio antigo 212
FIGURA 77 ndash Armaacuterio decorativo 213
FIGURA 78 ndash Detalhe decorativo 213
FIGURA 79 ndash Detalhe decorativo 214
FIGURA 80 ndash Dupla Campo Belo e Companheiro e Catireiros da Mantiqueira 215
FIGURA 81 ndash Desfile de Carros de Boi 215
FIGURA 82 ndash Igreja de Nossa Senhora dos Remeacutedios no Bairro Rural dos Remeacutedios 222
FIGURA 83 ndash Dendograma da classificaccedilatildeo hieraacuterquica descendente do corpus 241
FIGURA 84 ndash Anaacutelise Fatorial de Correspondecircncia em Coordenadas 242
FIGURA 85 ndash Mapa da aacutervore de codificaccedilatildeo 257
FIGURA 86 ndash Dendograma da anaacutelise de cluster dos noacutes 258
xii
LISTA DE GRAacuteFICOS
GRAacuteFICO 1 ndash Evoluccedilatildeo das solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila 79
GRAacuteFICO 2 ndash Tipos de produtos com solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila no Brasil no INPI 84
GRAacuteFICO 3 ndash Evoluccedilatildeo dos produtos e serviccedilos com solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila no Brasil no INPI 87
GRAacuteFICO 4 ndash Tipos de serviccedilos com solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila 88
GRAacuteFICO 5 ndash Quantidade de marcas em cada categoria por deacutecadas 101
GRAacuteFICO 6 ndash Residecircncia dos produtoresdistribuidores respondentes 107 GRAacuteFICO 7 ndash Profissatildeo dos produtoresdistribuidores respondentes 108
GRAacuteFICO 8 ndash Funccedilatildeo exercida no estabelecimento pelos produtoresdistribuidores respondentes 108
GRAacuteFICO 9 ndash Escolaridade dos produtoresdistribuidores respondentes 109
GRAacuteFICO 10 ndash Faixa etaacuteria dos produtoresdistribuidores respondentes 109
GRAacuteFICO 11 ndash Residecircncia dos consumidores respondentes 110
GRAacuteFICO 12 ndash Faixa etaacuteria dos consumidores respondentes 110
GRAacuteFICO 13 ndash Escolaridade dos consumidores respondentes 111
GRAacuteFICO 14 ndash Profissatildeo dos consumidores respondentes 111
GRAacuteFICO 15 ndash Origem dos consumidores respondentes 112
GRAacuteFICO 16 ndash Origem dos pais dos consumidores respondentes 112
GRAacuteFICO 17 ndash Profissotildees dos pais dos consumidores respondentes 113
GRAacuteFICO 18 ndash Subcategorias e atributos 256
xiii
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 ndash Caracteriacutesticas da roccedila no Brasil Colocircnia e no campesinato no Brasil Repuacuteblica 34
QUADRO 2 ndash Classificaccedilotildees Nacional e de Nice dos produtos e serviccedilos com a marca roccedila com processo de registro no INPI 75
QUADRO 3 ndash Reagrupamento das categorias de produtos e serviccedilos com a marca roccedila com processo de registro no INPI a partir das Classificaccedilotildees Nacional e de Nice 77
QUADRO 4 ndash Categorias da anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica 97
QUADRO 5 ndash Categorias dos significados dos produtosserviccedilos com a marca roccedila segundo os produtoresdistribuidores 120
QUADRO 6 ndash Categorias dos significados dos produtosserviccedilos com a marca roccedila segundo os consumidores 122
QUADRO 7 ndash Comparaccedilatildeo das categorias de significados 128
QUADRO 8 ndash Siacutentese das categorias de significado roccedila no Mercado Central 168
QUADRO 9 ndash Menu do 4o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila 207
QUADRO 10 ndash Variaacuteveis e coacutedigos da linha de comando do corpus 240
QUADRO 11 ndash Siacutentese das classes de significados e variaacuteveis 247
xiv
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 ndash Quantidade de solicitaccedilotildees de registro de marca com o termo roccedila no INPI no Brasil por deacutecadas 78
TABELA 2 ndash Quantidade de produtos e serviccedilos com a marca roccedila por unidades da federaccedilatildeo no Brasil identificadas na internet 83
TABELA 3 ndash Evoluccedilatildeo dos tipos de produtos e serviccedilos com solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila no Brasil no INPI 85
TABELA 4 ndash Evoluccedilatildeo dos produtos e serviccedilos com solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila no Brasil no INPI 86
TABELA 5 ndash Frequecircncia das marcas mais recorrentes com a palavra roccedila ao longo das deacutecadas 90
TABELA 6 ndash Categorias das marcas com o nome roccedila 99
TABELA 7 ndash Quantidade de referecircncias agraves categorias de significados de roccedila 252
TABELA 8 ndash Categorias de significados de roccedila para consumidores e produtores 253
TABELA 9 ndash Categorias de significados de roccedila por cidades 254
TABELA 10 ndash Subcategorias de significados de roccedila 256
xv
LISTA DE ABREVIATURAS
ALCESTE ndash Analyse Lexicale par Contexte drsquoun Ensemble de Segments de Texte
ANVAR ndash Agecircncia Nacional Francesa de Valorizaccedilatildeo agrave Pesquisa
APA ndash Aacuterea de Proteccedilatildeo Ambiental
BELOTUR ndash Empresa Municipal de Turismo
BH ndash Belo Horizonte
CAIrsquos ndash Complexos Agroindustriais
CEASA ndash Central de Abastecimento de Minas Gerais
CNRS ndash Centro Nacional Francecircs de Pesquisa Cientiacutefica
CNS ndash Conselho Nacional de Sauacutede
COMTUR ndash Conselho Municipal de Turismo
DO ndash Denominaccedilatildeo de Origem
ECO 92 ndash Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
ECOCERT ndash Organismo de Controle e Certificaccedilatildeo
EMATER ndash Empresa Mineira de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural
EPTV ndash Emissoras Pioneiras de Televisatildeo
EUA ndash Estados Unidos da Ameacuterica
IBD ndash Instituto Biodinacircmico
IBGE ndash Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica
IBPT ndash Instituto Nacional de Planejamento Tributaacuterio
IDH ndash Iacutendice de Desenvolvimento Humano
IG ndash Indicaccedilatildeo Geograacutefica
IMA ndash Instituto Mineiro Agropecuaacuterio
INMETRO ndash Instituto Nacional de Metrologia Normalizaccedilatildeo e Qualidade Industrial
INPI ndash Instituto Nacional de Propriedade Industrial
IP ndash Indicaccedilatildeo de Procedecircncia
IRPP ndash Induacutestria Rural de Pequeno Porte
MAPA ndash Ministeacuterio da Agricultura Pecuaacuteria e Abastecimento
MDA ndash Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio
MPB ndash Muacutesica Popular Brasileira
xvi
MST ndash Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
OCDE ndash Organizaccedilatildeo para Cooperaccedilatildeo do Desenvolvimento Econocircmico
ORNAS ndash Ocupaccedilotildees Rurais Natildeo Agriacutecolas
PAC ndash Poliacutetica Agriacutecola Comum
PIB ndash Produto Interno Bruto
PNAD ndash Pesquisa Nacional por Amostra de Domiciacutelios
PNATER ndash Programa Nacional de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural
PRONAF ndash Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
QGIS ndash Quantum Gis (Geographic Information System)
SBT ndash Sistema Brasileiro de Televisatildeo
SIRGAS ndash Sistema de Referecircncia Geocecircntrico para as Ameacutericas
SPSS ndash Statistical Package for Social Sciences
TV ndash Televisatildeo
UCE ndash Unidade de Contexto Elementar
UCI ndash Unidade de Contexto Inicial
xvii
RESUMO
SILVEIRA Lidiane Nunes da D Sc Universidade Federal de Viccedilosa novembro de 2015 Roccedila uma marca registrada o processo de valorizaccedilatildeo do rural na sociedade brasileira Orientadora Ana Louise de Carvalho Fiuacuteza Coorientadores Douglas Mansur da Silva e Rennan Lanna Martins Mafra Esta pesquisa analisou os usos e significados do termo roccedila expressos nas marcas de
produtos e serviccedilos no mercado brasileiro entre os anos de 1960 e 2014 Partiu-se da
premissa de que roccedila eacute um termo de uso nativo relativo e relacional que a depender do
contexto social pode carrear uma valoraccedilatildeo simboacutelica positiva ou estigmatizada para
classificar pessoas e bens na perspectiva da antropologia do consumo Teve-se como
pressuposto que os usos e os significados atribuiacutedos ao termo roccedila no Brasil poderiam
revelar mudanccedilas e permanecircncias acerca da representaccedilatildeo do ldquocampordquo enquanto espaccedilo
fiacutesico e do ldquoruralrdquo enquanto modo de vida indicando implicitamente a dinamicidade
da relaccedilatildeo campo-cidade e rural-urbano em meio agraves transformaccedilotildees socioeconocircmicas do
Brasil Estabeleceu-se como hipoacuteteses de trabalho que o uso da categoria roccedila entre
atores de diferentes contextos sociais ateacute meados dos anos 1980 acentuava as
tradicionais assimetrias historicamente instituiacutedas na sociedade brasileira Apoacutes os anos
1980 o uso dessa categoria nas marcas de produtos e de serviccedilos apontaria para a
flexibilizaccedilatildeo das fronteiras demarcatoacuterias das hierarquias sociais ao criar
identificadores fluidos em relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees sociais de consumidores e produtores A
valoraccedilatildeo positiva do termo roccedila na sociedade brasileira se relacionaria tanto a fatores
externos como a emergecircncia de discursos voltados agrave conservaccedilatildeo ambiental e a
revalorizaccedilatildeo do rural como alternativa de vida agraves condiccedilotildees sociais da modernidade
tardia e do poacutes-produtivismo quanto a fatores internos como as conquistas advindas
das poliacuteticas sociais posteriores ao periacuteodo da redemocratizaccedilatildeo brasileira A pesquisa
analisou uma amostra de 325 marcas com solicitaccedilatildeo de registro com a palavra roccedila no
Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) no periacuteodo entre 1965 e 2014 Esta
amostra foi analisada utilizando-se estatiacutestica descritiva e anaacutelise de conteuacutedo de
frequecircncia leacutexico-sintaacutetica e categoacuterica Realizou-se tambeacutem trabalho de campo
aplicando-se 70 questionaacuterios semiestruturados e entrevistas a produtores distribuidores
e consumidores de produtos e serviccedilos com a marca roccedila no Mercado Central de Belo
Horizonte e no 4ordm Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila na cidade de Gonccedilalves
xviii
em Minas Gerais Estes dados foram analisados por meio de estatiacutestica descritiva
anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica com a utilizaccedilatildeo do software NVivo e anaacutelise estatiacutestica
textual com auxiacutelio do software Alceste A anaacutelise de conteuacutedo das marcas corroborou
a hipoacutetese de que a categoria roccedila apontaria para uma revalorizaccedilatildeo do rural sendo
utilizada para se distinguir dos produtos e serviccedilos industrializados massificados
indiferenciados destacando a sua procedecircncia ou origem Na perspectiva dos
produtores distribuidores e consumidores os produtos com a marca roccedila foram
classificados positivamente como naturais e artesanais em detrimento dos produtos
industrializados A classificaccedilatildeo desses produtos e serviccedilos pelos entrevistados envolvia
os ideais de natureza bem como o imaginaacuterio romacircntico-nostaacutelgico e tradicional
Constatou-se uma permanecircncia no uso histoacuterico do termo roccedila como sinocircnimo de
lavoura campo e rural mas a atribuiccedilatildeo de novos significados como romacircnticos
nostaacutelgicos e com referecircncias agrave natureza que confirmam uma tendecircncia de valorizaccedilatildeo
do rural em curso Comprovou-se tambeacutem o caraacuteter relativo e relacional do termo roccedila
considerado como lavoura campo e rural para os entrevistados residentes no campo e
como natureza interior e cidade pequena para os respondentes metropolitanos
xix
ABSTRACT
SILVEIRA Lidiane Nunes DSc Universidade Federal de Viccedilosa November 2015 Roccedila a registered trademark the rural appreciation process in Brazilian society Advisor Ana Louise de Carvalho Fiuacuteza Co-Advisors Douglas Mansur da Silva and Rennan Lanna Martins Mafra
This research analyzed the uses and meanings of the term roccedila expressed in trademarks
of products and services in the Brazilian market between 1960 and 2014 Started from
the premise that roccedila is a native terms of use relative and relational that depending on
social context can generate a positive symbolic value or stigmatized to classify people
and goods based on Anthropology of Consumption It had as presupposition that the
uses and meanings attributed to the term roccedila in Brazil could reveal changes and stays
on the representation of the ldquofieldrdquo while physical space and ldquoruralrdquo as a way of life
indicating implicitly the dynamics of country side-town and rural-urban relationship
among the socio-economic transformations in Brazil It was established as a working
hypothesis that the use of roccedila category between actors from different social contexts
until the mid-1980s accentuated the traditional asymmetries historically instituted in
Brazilian society After the 1980s the use of this category in trademarks of products
and services this fact should point to flexibility of the frontier demarcation in social
hierarchies as they create identifiers fluids in relation to social position of consumers
and producers The positive evaluation of the term roccedila in Brazilian society would relate
both to external factors such as the emergence of speeches aimed at environmental
conservation and upgrading of the rural as an alternative life to the social conditions of
late modernity and post-productivism as the internal factors such as the achievements
resulting from subsequent social policies to the period of Brazilian redemocratisation
The research analyzed a sample of 325brands with registration request with the word
roccedila the National Institute of Industrial Property (INPI) in the period between 1965 and
2014 This sample was analyzed using descriptive statistics and analysis of frequency
content lexical-syntactic and categorical Also held fieldwork applying 70 semi-
structured questionnaires and interviews with producers distributors and consumers of
products and services to the roccedila brand in the Central Market of Belo Horizonte and 4th
Food Festival and Culture from the Roccedila in the city Gonccedilalves in Minas Gerais These
data were analyzed using descriptive statistics categorical content analysis using NVivo
xx
software and textual statistical analysis using the Alceste software The content analysis
of the marks corroborated the hypothesis that roccedila category would point to a revaluation
of the rural and have been used to distinguish the goods and industrial services mass
market undifferentiated highlighting their origin or source From the perspective of
producers distributors and consumers products with the roccedila brand were rated
positively as natural and hand made at the expense of manufactured products The
classification of these products and services by interviewees involved the ideals of
nature as well as the romantic nostalgic and traditional imaginary It was found a stay
in the historical use of the term roccedila as synonymous with agriculture countryside and
rural but the allocation of new meanings as romantic nostalgic and with references to
nature that confirm a rural on going appreciation trend It also demonstrated the relative
and relational character of the term roccedila regarded as farming countryside and rural
residents to interviewees in the field and how nature country town and small town to
the metropolitan respondents
1
INTRODUCcedilAtildeO
Contextualizaccedilatildeo da pesquisa
Embora o termo roccedila jaacute tenha sido estudado em diversos trabalhos realizados no
Brasil o enfoque analiacutetico geralmente adotado voltava-se para o seu significado como
espaccedilo de cultivo Nesta tese procurou-se analisar os significados associados ao termo
roccedila em marcas de produtos e serviccedilos bem como em eventos culturais Observaccedilotildees
assistemaacuteticas serviram para a elaboraccedilatildeo da premissa de que a depender do contexto
social no qual se usa o termo roccedila o seu acionamento pode carrear uma valorizaccedilatildeo
simboacutelica positiva ou estigmatizada e marginalizada Esta pesquisa analisou portanto o
termo roccedila como uma categoria de uso nativo operada simbolicamente entre os grupos
sociais em seus diferentes contextos de forma relativa e relacional (LIMA 1999) para
classificar pessoas e bens (BOURDIEU 2013)
Objetivou-se de forma especiacutefica nesta tese compreender os usos e
significados do termo roccedila expressos nos enunciados de marcas de produtos e serviccedilos
disponiacuteveis no mercado brasileiro da deacutecada de 1960 ateacute 2014 Propocircs-se como
hipoacutetese de pesquisa que as transformaccedilotildees socioeconocircmicas ocorridas na relaccedilatildeo entre
o campo e a cidade neste periacuteodo de aproximadamente meio seacuteculo se evidenciam no
cotidiano dos brasileiros atraveacutes do uso que fazem do termo roccedila Segundo Kageyama
(2008) pode-se observar a partir dos anos 1990 uma proximidade maior na dinacircmica
envolvendo as relaccedilotildees entre o campo e a cidade principalmente nos pequenos e
meacutedios municiacutepios em funccedilatildeo do aprofundamento da industrializaccedilatildeo difusa que os
alcanccedila Neste periacuteodo as Ocupaccedilotildees Rurais Natildeo Agriacutecolas (ORNAS) se
desenvolveram no campo acompanhadas do processo de expansatildeo da monetarizaccedilatildeo
das sociedades rurais que se aprofundou atraveacutes da remuneraccedilatildeo salarial do trabalho
agriacutecola que passou a ser mais fiscalizado bem como do acesso agrave aposentadoria rural e
aos programas sociais do governo como o Bolsa Famiacutelia Todos estes fatores apontam
para a configuraccedilatildeo de uma relaccedilatildeo mais estreita entre citadinos e rurais Aleacutem disso as
preocupaccedilotildees ambientais impulsionam novas funcionalidades atribuiacutedas ao campo
2
mediante o culto agrave natureza agrave valorizaccedilatildeo de uma vida alternativa saudaacutevel e
sustentaacutevel
Essas mudanccedilas tecircm como reflexos praacuteticos transformaccedilotildees demograacuteficas
ocupacionais e de renda tanto para as populaccedilotildees originariamente rurais quanto para as
neorrurais Entre os rurais destacam-se as novas ocupaccedilotildees no campo em setores de
serviccedilos por exemplo como caseiros das casas de campo dos citadinos como
funcionaacuterios ou proprietaacuterios de pousadas hoteacuteis fazenda restaurantes serviccedilos
turiacutesticos dentre tantas outras Jaacute os neorrurais ao se mudarem para o campo em busca
de uma vida sossegada e saudaacutevel em contato com a natureza iniciam novos
empreendimentos abrindo oportunidades de emprego no setor de turismo rural de
turismo ecoloacutegico ou mesmo na produccedilatildeo agriacutecola e agroindustrial voltada para
mercados de nicho diversificando a economia rural
Mas esta proximidade entre citadinos e rurais tambeacutem pode ser observada nas
cidades seja nos pequenos municiacutepios ou nas grandes metroacutepoles por meio da induacutestria
cultural vinculada ao estilo country Este fenocircmeno pode ser observado no mercado da
muacutesica sertaneja da moda texana nas grandes festas de rodeio em exposiccedilotildees
agropecuaacuterias restaurantes temaacuteticos dentre outros fenocircmenos voltados para a
revalorizaccedilatildeo daquilo que eacute considerado simples ruacutestico autecircntico natural como o
consumo de produtos artesanais com caracteriacutesticas locais minimamente processados
ou de produtos orgacircnicos agroecoloacutegicos encontrados nas feiras onde se compra
diretamente do produtor rural A busca por maior proximidade ao campo por parte dos
citadinos se faz ainda por meio de experiecircncias voltadas para a realizaccedilatildeo de mudanccedilas
na arquitetura e na gastronomia ao resgatar elementos materiais e simboacutelicos antigos
como o fogatildeo a lenha ou a fornalha na ldquocozinha caipira gourmetrdquo Tais manifestaccedilotildees se
voltam para uma tentativa de reviver se apropriar e ou reelaborar velhas receitas que
lembram a comida da avoacute a casa na roccedila as feacuterias no siacutetio que remetem agraves
experiecircncias do passado A busca pelo caminho da roccedila a ressignificaccedilatildeo das origens
rurais o culto agrave nostalgia revelam um desgaste do modelo de sociedade poacutes-fordista
hipermodernizada Todos estes fenocircmenos a depender do contexto e da experiecircncia
podem significar tanto um afastamento da sociedade de consumo como por outro lado
apenas uma fuga momentacircnea da mesma com duraccedilatildeo datada um fim de semana ou
alguns dias de feacuterias Enfim investigar como o uso da palavra roccedila na circulaccedilatildeo de
3
bens e serviccedilos no Brasil pode revelar esses complexos aspectos do rural nos uacuteltimos
anos eacute o que se propotildee nessa tese1
A emergecircncia a partir da segunda metade do seacuteculo XX de um mercado de
produtos e serviccedilos com a marca roccedila no Brasil torna-se ainda mais emblemaacutetico
quando se observa historicamente os usos e significados do termo roccedila neste paiacutes No
Brasil Colocircnia o termo roccedila estava vinculado agrave formaccedilatildeo de lavouras ao longo das
trilhas abertas para descobrimentos rumo ao interior do paiacutes visando garantir os
provimentos dos desbravadores que se aventuravam na conquista de novos espaccedilos A
categoria roccedila nessa eacutepoca tambeacutem era empregada para designar a produccedilatildeo de
gecircneros alimentiacutecios agraves margens das grandes lavouras monocultoras para garantir os
viacuteveres para a famiacutelia dos senhores e dos trabalhadores O uso do termo roccedila referia-se
ainda agrave produccedilatildeo agriacutecola desenvolvida por trabalhadores livres e suas famiacutelias nas
zonas perifeacutericas agraves cidades para o abastecimento destas
Assim nos primeiros seacuteculos da colonizaccedilatildeo brasileira as roccedilas se referiam aos
espaccedilos de cultivos em grandes extensotildees de terra e a agricultura era praticada de forma
itinerante Mas ao longo destes seacuteculos de colonialismo as transformaccedilotildees dos ciclos
produtivos o crescimento da populaccedilatildeo especialmente de uma classe de trabalhadores
livres pauperizada e uma maior sedentarizaccedilatildeo nos espaccedilos jaacute domesticados foi dando
lugar ao uso da palavra roccedila para se referir agrave lavoura de autoconsumo das famiacutelias
agricultoras mas em espaccedilos de terra cada vez menores Eacute assim que no Brasil Impeacuterio
cuja estrutura fundiaacuteria foi entatildeo marcada pela Lei de Terras de 1850 a alienaccedilatildeo a
heranccedila e a sucessatildeo da terra fragmentaram o terreno Aos poucos o termo roccedila foi
sendo cada vez mais associado a essa pequena lavoura de famiacutelias camponesas
instaladas em pequenas propriedades de forma marginalizada em relaccedilatildeo agraves grandes
produccedilotildees e agraves cidades
A consolidaccedilatildeo dessa estrutura fundiaacuteria no Brasil Repuacuteblica especialmente ateacute
a primeira metade do seacuteculo XX marca o uso da categoria roccedila natildeo soacute para se referir a
essa pequena produccedilatildeo agriacutecola marginalizada agrave cidade mas tambeacutem a uma
hierarquizaccedilatildeo dos processos agraacuterios e agriacutecolas Essa hierarquia caracteriza-se tanto
pelas famiacutelias agricultoras que cultivam as roccedilas em regimes de posse arrendamento ou
1 Vaacuterias pesquisas chamaram a atenccedilatildeo para este processo de ressignificaccedilatildeo do rural tambeacutem no Brasil dentre elas Alem (1996) Allonso (2012) Carneiro (1998) De Paula (1999) Eacuteboli (2005) Oliveira L (2003) Oliveira A (2009) Silva J (1997) entre outros Elas seratildeo discutidas mais detalhadamente ao longo deste trabalho
4
parceria com os grandes proprietaacuterios quanto pela relaccedilatildeo desigual que foi se formando
entre o campo e a cidade Foi nessa eacutepoca que surgiram expressotildees como ldquojeca da
roccedilardquo e a palavra aqui estudada ateacute onde foi possiacutevel averiguar comeccedilou a ser utilizada
para estigmatizar marginalizar classificar pessoas e bens com o estereoacutetipo negativo do
atraso do subdesenvolvimento da ausecircncia de direitos e da carecircncia de serviccedilos Atesta
esse processo a figura do personagem de Monteiro Lobato Jeca Tatu presente no
imaginaacuterio rural do Brasil Na segunda metade do seacuteculo XX ateacute os anos 1980 a
categoria roccedila seguiu sendo utilizada como um marcador social da diferenccedila reforccedilada
pelos novos arranjos produtivos no campo como a modernizaccedilatildeo conservadora os
conflitos deflagrados pelas lutas pelo direito dos trabalhadores rurais a expansatildeo urbana
e o ecircxodo rural aprofundando ainda mais as desigualdades entre a agricultura
empresarial e a familiar entre o campo e a cidade
A amplitude dos significados do termo roccedila jaacute havia se destacado para a
pesquisadora durante a execuccedilatildeo de uma pesquisa realizada em 2005 na regiatildeo do
Centro-Oeste de Minas Gerais que teve como objetivo estudar as relaccedilotildees de
sociabilidade e trabalho entre boias-frias ou ldquoapanhadores de cafeacuterdquo no municiacutepio de
Piumhi (SILVEIRA 2005) Em um dado momento das entrevistas notou-se que os
ldquoapanhadores de cafeacuterdquo utilizavam o termo roccedila para descrever a sua infacircncia o seu
modo de vida os seus gostos e a sua cultura Falavam de roccedila como um espaccedilo de vida
como o seu lugar Roccedila nas falas dos ldquoapanhadoresrdquo abarcava o ldquocampordquo como
espaccedilo fiacutesico mas tambeacutem os aspectos culturais caracteriacutesticos do rural enquanto modo
de vida ldquoEu nasci e me criei na roccedilardquo ldquoEstudei soacute ateacute o terceiro ano Na roccedila era difiacutecil
estudarrdquo ldquoNas roccedilas nossas de primeiro soacute tinha carro de boi Hoje vocecirc natildeo acha
mais boiada de carrordquo Num segundo momento em 2007 durante a realizaccedilatildeo de outra
pesquisa na mesma regiatildeo entrevistando agricultores e tambeacutem citadinos constatou-se
novamente o uso do termo roccedila como espaccedilo fiacutesico no qual se vive e como modo de
vida (SILVEIRA 2008) Mediante estas duas pesquisas emergiu um contraste de
significados atribuiacutedos agrave roccedila pelos habitantes e trabalhadores do campo entrevistados
nas referidas pesquisas e o significado atribuiacutedo agrave roccedila nos textos acadecircmicos no Brasil
nos quais roccedila se refere agrave lavoura Foi justamente a partir da percepccedilatildeo desse jogo
ambiacuteguo que envolve o uso e os significados da expressatildeo roccedila no Brasil ora utilizado
para discriminar ora para exaltar que surgiu a motivaccedilatildeo para esta pesquisa Assim
este estudo se propocircs a analisar roccedila como categoria nativa buscando apreender nova
5
nuance sobre o ldquocampordquo enquanto espaccedilo fiacutesico e sobre o ldquoruralrdquo enquanto modo de
vida ao menos em Minas Gerais local de desenvolvimento da pesquisa (ENDLICH
2010)
A partir desse objetivo atribuiacutedo agrave investigaccedilatildeo vislumbrou-se a possibilidade
de buscar analisar esses diversos usos e significados do termo roccedila no Brasil
considerando para tanto o seu uso no mercado de produtos e serviccedilos em funccedilatildeo de
sua crescente disseminaccedilatildeo A hipoacutetese a ser investigada nesta pesquisa eacute a de que o
uso e os significados atribuiacutedos ao termo roccedila no Brasil poderiam revelar mudanccedilas e
permanecircncias acerca do ldquocampordquo concebido enquanto espaccedilo fiacutesico e do ldquoruralrdquo
enquanto modo de vida indicando implicitamente a dinamicidade da relaccedilatildeo campo-
cidade e rural-urbano em meio agraves transformaccedilotildees socioeconocircmicas do Brasil
Em inuacutemeros contextos sociais como na induacutestria cultural ou no mercado de
produtos e serviccedilos eacute possiacutevel notar os diferentes usos do vocaacutebulo roccedila Estes sugerem
a ocorrecircncia de um imaginaacuterio sobre o campo e o rural com conotaccedilotildees associadas agrave
tradiccedilatildeo agrave natureza ao romantismo e agrave nostalgia Devido agraves limitaccedilotildees que um trabalho
dessa envergadura imporia fez-se necessaacuterio eleger um objeto especiacutefico de
investigaccedilatildeo dentre os diversos campos de significaccedilatildeo relativos ao termo roccedila na
sociedade brasileira Optou-se portanto por se realizar a pesquisa no campo das marcas
de produtos e serviccedilos que utilizam a expressatildeo roccedila no Brasil desde os anos 1960 A
escolha se deu em funccedilatildeo das marcas de produtos e serviccedilos que utilizam o termo roccedila
expressarem um processo socialmente vivido de ressignificaccedilatildeo do campo e do rural no
Brasil
O marco teoacuterico utilizado nesta pesquisa permitiu a elaboraccedilatildeo de trecircs hipoacuteteses
acerca dos significados do termo roccedila nos diferentes contextos da sociedade brasileira
1) o uso da categoria roccedila entre atores de diferentes posiccedilotildees e contextos sociais ateacute
meados dos anos 1980 acentuava as tradicionais assimetrias historicamente instituiacutedas
na sociedade brasileira cumprindo a funccedilatildeo demarcatoacuteria de reproduzir as relaccedilotildees
vividas em tempos preteacuteritos 2) o uso da categoria roccedila apoacutes os anos 1980 nas marcas
de produtos e de serviccedilos flexibiliza as fronteiras demarcatoacuterias das hierarquias sociais
amenizando as diferenccedilas instituiacutedas na sociedade brasileira ao criar identificadores
fluidos em relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees sociais de consumidores e produtores bem como ao
transvestir o campo e o rural com a imagem espetacularizada de um campo-urbanizado
revelando novos usos e sentidos para o rural na cultura brasileira 3) esse arrefecimento
6
do uso da categoria roccedila para demarcar assimetrias sociais na sociedade brasileira
relaciona-se tanto a fatores externos quanto a internos Dentre os fatores externos
destacam-se entre outros a emergecircncia de discursos movimentos e poliacuteticas voltadas agrave
sustentabilidade e agrave conservaccedilatildeo ambiental e a identificaccedilatildeo de um papel preponderante
do campo nessa empreitada e aos processos de revalorizaccedilatildeo do rural como alternativa
de vida agraves condiccedilotildees sociais da modernidade tardia e do poacutes-fordismo Quanto aos
fatores internos destacam-se aqueles ligados ao contexto de redemocratizaccedilatildeo brasileira
poacutes-1988 caracterizado pelas conquistas sociais das camadas mais pobres inclusive no
campo com a universalizaccedilatildeo da aposentadoria rural e as poliacuteticas sociais de
transferecircncia de renda como o Bolsa Famiacutelia e de creacutedito e financiamento como o
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) o Programa
de Aquisiccedilatildeo de Alimentos e os processos de assentamento rural da Reforma Agraacuteria
Propotildee-se portanto nesta pesquisa investigar os usos e significados que envolvem a
palavra roccedila em marcas de produtos e serviccedilos no Brasil da deacutecada 1960 ateacute 2014
No caminho da roccedila procedimentos metodoloacutegicos
A busca da diversidade de sentidos do termo roccedila e seu uso nas marcas de
produtos e serviccedilos implicou na execuccedilatildeo de trecircs procedimentos metodoloacutegicos que
permitiram uma triangulaccedilatildeo de dados para a anaacutelise Essa triangulaccedilatildeo foi possiacutevel
analisando-se os dados secundaacuterios com base na estatiacutestica descritiva e na anaacutelise de
conteuacutedo realizando-se uma categorizaccedilatildeo dos dados primaacuterios tambeacutem com base na
anaacutelise de conteuacutedo e efetuando-se uma descriccedilatildeo etnograacutefica a partir da observaccedilatildeo
participante Enquanto a anaacutelise de dados secundaacuterios permitiu constatar a ocorrecircncia do
fenocircmeno estudado e identificar sua tendecircncia dentro de uma perspectiva histoacuterica a
anaacutelise dos dados primaacuterios possibilitou a compreensatildeo de alguns significados inerentes
ao fenocircmeno
O primeiro procedimento consistiu no levantamento de dados secundaacuterios que
revelassem a existecircncia de marcas de produtos e serviccedilos com o termo roccedila no Brasil
no periacuteodo compreendido entre 1960 e 2014 no Instituto Nacional de Propriedade
Industrial (INPI) oacutergatildeo ligado ao Ministeacuterio do Desenvolvimento Induacutestria e Comeacutercio
7
Exterior e responsaacutevel entre outras competecircncias pela concessatildeo do registro de marcas
no Brasil A amostra coletada continha 325 marcas com o termo roccedila que foram
analisadas utilizando-se a estatiacutestica descritiva com auxiacutelio do software Microsoft
Excel e a anaacutelise de conteuacutedo de frequecircncia leacutexico-sintaacutetica e categoacuterica seguindo-se
as orientaccedilotildees de Bardin (1977) Essa amostra de produtos e serviccedilos com solicitaccedilatildeo de
registro de marcas com o termo roccedila no INPI tambeacutem foi investigada em sites blogs e
fanpages na internet onde foram identificadas 162 delas Essa uacuteltima amostragem
permitiu construir um mapeamento da distribuiccedilatildeo espacial dessas marcas nos
municiacutepios Estados e regiotildees brasileiras a partir da composiccedilatildeo de um mapa no
software Quantum Gis (QGis) utilizando-se para isso o banco de dados de camadas
vetoriais ou shapefiles ldquoLimitesrdquo da Base Cartograacutefica Vetorial do Brasil (BASE
[2007]) conforme o Sistema de Referecircncia Geocecircntrico para as Ameacutericas (SIRGAS)
ambos disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica (IBGE)
O segundo procedimento consistiu na aplicaccedilatildeo de 70 questionaacuterios
semiestruturados e entrevistas a produtores distribuidores e consumidores de produtos e
serviccedilos com a marca roccedila no Brasil alguns selecionados a partir da amostra de dados
secundaacuterios entre aqueles que se dispuseram a participar da pesquisa Os questionaacuterios
foram aplicados a alguns produtoresdistribuidores via e-mail utilizando-se um
formulaacuterio eletrocircnico a distribuidores e consumidores no Mercado Central de Belo
Horizonte e a produtores e consumidores participantes do Festival de Gastronomia e
Cultura da Roccedila na cidade de Gonccedilalves ambas em Minas Gerais Os dados coletados
nos questionaacuterios e entrevistas foram analisados por meio de estatiacutestica descritiva
anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica com base nas orientaccedilotildees de Bardin (1977) anaacutelise
estatiacutestica textual com auxiacutelio do software Alceste e codificaccedilatildeo com o uso do
software NVivo O terceiro procedimento realizado concomitantemente agrave aplicaccedilatildeo de
questionaacuterios e entrevistas referiu-se agrave observaccedilatildeo participante em dois loacutecus de
circulaccedilatildeo de bens com a marca roccedila no 4ordm Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila
da cidade de Gonccedilalves e no Mercado Central de Belo Horizonte entre os meses de
setembro e novembro de 2014 Estes eventos foram selecionados para se realizar a
observaccedilatildeo participante e a aplicaccedilatildeo de entrevistas eou questionaacuterios a partir de alguns
criteacuterios ambos caracterizaram-se pela ampla circulaccedilatildeo de consumidores eou
frequentadores destes espaccedilos potencialmente motivados pelo consumo de serviccedilos e
produtos da roccedila Gonccedilalves ateacute entatildeo tem desenvolvido sua vocaccedilatildeo turiacutestica em
8
torno da cultura rural e da categoria roccedila e possuiacutea vaacuterios estabelecimentos na cidade e
no campo que utilizavam o termo roccedila no seu nome O Mercado Central tambeacutem
possuiacutea alguns estabelecimentos com o vocaacutebulo roccedila em seu nome aleacutem de ser
apontado por alguns autores que o estudaram como um lugar dentro da capital
mineira que seria identificado pelos seus frequentadores como um refuacutegio nostaacutelgico
que lembra a roccedila Adicionalmente o Mercado Central reunia uma seacuterie de
estabelecimentos que comercializam entre outros produtos oriundos do campo entre
alimentos bebidas artesanatos e utilidades domeacutesticas Os demais criteacuterios que
nortearam a escolha destes eventosespaccedilos para a pesquisa de campo seratildeo
apresentados detalhadamente nos capiacutetulos 3 e 4 que tratam respectivamente dos
procedimentos metodoloacutegicos e da descriccedilatildeo dos dados relativos agrave pesquisa no Mercado
Central de Belo Horizonte e no 4ordm Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila de
Gonccedilalves
Os resultados dos trecircs procedimentos metodoloacutegicos juntamente com a
descriccedilatildeo detalhada destes procedimentos seratildeo apresentados ao longo dos capiacutetulos
desta tese refletindo o desenvolvimento de cada etapa da pesquisa A disposiccedilatildeo dos
capiacutetulos e seu conteuacutedo seratildeo explicitados a seguir
Apresentaccedilatildeo dos capiacutetulos
No primeiro capiacutetulo desta tese desenvolveu-se uma revisatildeo bibliograacutefica com o
intuito de identificar de que forma o vocaacutebulo roccedila foi empregado no Brasil numa
perspectiva histoacuterica em diferentes esferas discursivas Nesse sentido apresenta-se
alguns usos e significados da categoria roccedila identificados em alguns textos do
pensamento social brasileiro relativo agrave formaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica do Brasil Em seguida
apresenta-se como o termo roccedila foi abordado dentro dos estudos sobre o campesinato no
Brasil Numa perspectiva mais contemporacircnea expotildee-se em duas frentes os usos e
significados do termo roccedila em textos recentes tanto na academia quanto em outras
vertentes natildeo acadecircmicas como na literatura na muacutesica e na induacutestria cultural Nesses
uacuteltimos textos jaacute se aponta para algumas possibilidades de exploraccedilatildeo dos significados
da categoria roccedila como marca de produtos e serviccedilos no Brasil que emergiu de forma
9
mais contundente nas uacuteltimas trecircs deacutecadas Encerra-se esse primeiro capiacutetulo fazendo-se
um esforccedilo reflexivo no intuito de se pensar as possiacuteveis conexotildees entre os usos e
significados da categoria roccedila com as atuais configuraccedilotildees do campo e do rural
buscando-se compreender de que maneira as mudanccedilas e permanecircncias no sentido do
termo podem expressar as dinacircmicas do campo no Brasil
No segundo capiacutetulo apresenta-se uma reflexatildeo sobre o uso do vocaacutebulo roccedila no
mercado de bens e serviccedilos no Brasil desde os anos 1960 como marca Para tanto
parte-se de algumas questotildees propostas por autores claacutessicos da Antropologia do
Consumo refletindo-se sobre suas possibilidades de interpretaccedilatildeo do tema em questatildeo
em consonacircncia com algumas abordagens sobre gecircneros do discurso inserindo-se a
discussatildeo desta pesquisa no campo das relaccedilotildees entre consumo e comunicaccedilatildeo Apoacutes
uma exposiccedilatildeo detalhada dos procedimentos metodoloacutegicos adotados para a coleta dos
dados secundaacuterios relativos agraves marcas de produtos e serviccedilos com o termo roccedila
discute-se os resultados agrave luz das hipoacuteteses e perspectivas teoacutericas apontadas no
primeiro capiacutetulo Confronta-se tambeacutem os resultados obtidos pela estatiacutestica descritiva
e pela anaacutelise de conteuacutedo das marcas com a categorizaccedilatildeo das respostas dadas pelos
produtores distribuidores e consumidores de bens e serviccedilos da roccedila refletindo-se sobre
os usos e significados que a circulaccedilatildeo desses bens promove entre esses agentes
No terceiro capiacutetulo faz-se uma exposiccedilatildeo do processo de circulaccedilatildeo de bens da
roccedila no Mercado Central de Belo Horizonte refletindo como se empregam os
significados do termo roccedila em plena metroacutepole por meio da troca destes bens No
Mercado foi possiacutevel buscar alguns apontamentos para a reflexatildeo sobre qual o lugar da
roccedila no modo de vida urbano e moderno e perceber como o consumo pode revelar o que
se pensa sobre esse modo de vida Ou seja a marca roccedila eacute boa para comprar mas
tambeacutem eacute ldquoboa para pensarrdquo
O quarto capiacutetulo constitui-se de uma descriccedilatildeo do 4ordm Festival de Gastronomia e
Cultura da Roccedila do municiacutepio de Gonccedilalves localizado no sul de Minas Gerais
refletindo-se sobre como os agentes e instituiccedilotildees dessa cidade construiacuteram seu capital
turiacutestico em torno da ideia de roccedila Na cidade e no festival eacute possiacutevel perceber como se
veiculam diferentes significados do termo roccedila onde seu caraacuteter relativo e relacional eacute
mais expressivo dada a diversidade social do lugar constituiacuteda por agricultores
familiares convencionais agricultores familiares pluriativos (donos de restaurantes e
pousadas) agricultores orgacircnicos neorrurais cidadatildeos em geral e turistas Embora o
10
estudo do Mercado em Belo Horizonte e do Festival em Gonccedilalves natildeo tenha sido
realizado com a pretensatildeo de efetuar comparaccedilotildees eacute possiacutevel perceber alguns
contrapontos nos usos e significados da categoria roccedila nos dois eventos o que reforccedila o
recorte relativo e relacional desta categoria
Esses contrapontos ficaram ainda mais evidentes nos resultados obtidos por
meio da anaacutelise do corpus das entrevistas e questotildees abertas dos questionaacuterios com o
uso do software de anaacutelise estatiacutestica de dados textuais o Alceste e com o software de
codificaccedilatildeo NVivo A anaacutelise revelou categorias de significados para a palavra roccedila
diferenciadas entre consumidores e produtores no Mercado Central e no Festival de
Gastronomia e Cultura da Roccedila Os resultados possibilitaram verificar e corroborar as
hipoacuteteses que balizaram essa pesquisa e foram confrontados com as inferecircncias
elaboradas a partir das anaacutelises dos capiacutetulos anteriores A partir dessas respostas foi
possiacutevel indicar os principais usos e significados do termo roccedila no Brasil e sua relaccedilatildeo
com o rural apresentados nas consideraccedilotildees finais dessa tese em conjunto com uma
reflexatildeo sobre os limites e possibilidades que a pesquisa apresentou
11
1 USOS E SIGNIFICADOS DO TERMO ROCcedilA NO BRASIL
Como roccedila eacute expressa nos diferentes discursos do cotidiano Na literatura na
muacutesica na publicidade no entretenimento na academia Teraacute o vocaacutebulo roccedila nesses
espaccedilos discursivos os mesmos usos e sentidos Se roccedila eacute uma palavra ldquopolissecircmica e
escorregadiardquo (SANTOS 2006 p 92) cuja variaccedilatildeo estaacute especialmente condicionada
aos diferentes contextos e grupos sociais que a empregam como se sugere nesta
pesquisa qual seria o alcance dessa variedade semacircntica Quais os seus limites Para
responder a algumas dessas questotildees e mapear as mudanccedilas e permanecircncias na histoacuteria
do uso e do significado de roccedila no Brasil se apresenta neste capiacutetulo uma breve
reflexatildeo do termo roccedila em diferentes fontes bibliograacuteficas No campo do discurso
acadecircmico se verificou a etimologia da palavra roccedila dando ecircnfase especialmente aos
seus usos e significados na formaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica do Brasil Para tanto analisou-se
textos de cronistas viajantes e autores claacutessicos do pensamento social brasileiro
Tambeacutem foram examinados os empregos do termo roccedila e seu derivado roccedilado nos
textos que estudaram o campesinato brasileiro Analisou-se ainda os trabalhos mais
recentes em termos dos usos e significados da palavra roccedila E por fim foram
observados os sentidos deste vocaacutebulo em outros segmentos discursivos aleacutem do
cientiacutefico passando por alguns textos da literatura por composiccedilotildees musicais peccedilas
publicitaacuterias e midiaacuteticas chegando ateacute o mercado de produtos e serviccedilos com a marca
roccedila no Brasil diante do qual se buscou compreender de que forma a circulaccedilatildeo de bens
se apropriaria desse enunciado culturalmente construiacutedo e lhe ressignificaria
11 Usos e significados do termo roccedila na formaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica do Brasil
O estudo de Oliveira M (2012) embora de publicaccedilatildeo recente trata de uma
caracterizaccedilatildeo histoacuterica da roccedila como uma categoria tipoloacutegica de ocupaccedilatildeo espacial de
produccedilatildeo e construccedilatildeo da paisagem desde a colonizaccedilatildeo do Brasil O autor se refere
especialmente agraves formaccedilotildees coloniais na Bahia e no restante do litoral nordestino bem
como nas aacutereas de atuaccedilatildeo jesuiacutetica em Satildeo Paulo e parte da regiatildeo das entradas ateacute a
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situaccedilatildeo contemporacircnea tomando como exemplo a Amazocircnia Oliveira M (2012)
constroacutei uma definiccedilatildeo do que seria a roccedila contrapondo-a agraves chaacutecaras e casas de campo
destinadas ao lazer Nesse sentido o autor ressalta que as roccedilas eram consideradas
unidades dedicadas ldquouacutenica e exclusivamente agrave produccedilatildeordquo e natildeo agraves praacuteticas de lazer
Assim na sua perspectiva a roccedila estaria ligada agrave produccedilatildeo de mantimentos em
oposiccedilatildeo agrave urbe e situada em grandes propriedades (OLIVEIRA M 2012 p 756) No
periacuteodo colonial segundo Oliveira M (2012) as roccedilas aleacutem de pertencerem
geralmente agraves grandes propriedades tambeacutem podiam ser encontradas em terras
devolutas e eram conduzidas por matildeo de obra familiar de agregados e ou escravos e a
sua principal funccedilatildeo seria o abastecimento de nuacutecleos urbanos proacuteximos e rurais
Segundo o mesmo autor as roccedilas ainda hoje cumpririam essa funccedilatildeo em ldquoregiotildees
menos populosas do paiacutesrdquo (OLIVEIRA M 2012 p 758) Destaca o autor que as
roccedilas tambeacutem eram encontradas nos ldquoaldeamentos indiacutegenas agraves margens do latifuacutendio
monocultor dos cursos hiacutedricos e das estradas e em assentamentos de quilombos e
mocambos aleacutem de trilhar os caminhos dos desbravadores dos sertotildees e das florestasrdquo
(OLIVEIRA M 2012 p 760)
Em geral na bibliografia sobre o Brasil Colocircnia consultada por Oliveira M
(2012) as roccedilas eram consideradas propriedades ruacutesticas localizadas nos campos e
forneciam especialmente a mandioca e a farinha dela derivada Mas o autor cita
tambeacutem o cultivo de ldquoalgodatildeo amendoim anil arroz cafeacute cana-de-accediluacutecar feijatildeo
pimenta milho tabaco urucumrdquo e ldquodiversas frutasrdquo como ldquobananas e laranjasrdquo aleacutem
de ldquolegumesrdquo (OLIVEIRA M 2012 p 758) Entre os textos dos cronistas e viajantes
consultados Oliveira M (2012) cita as indicaccedilotildees de Sousa (1587) ressaltando que as
roccedilas no Brasil deveriam ser entendidas em comparaccedilatildeo aos ldquocasais almuinhas
herdades ou quintas ruacutesticas em Portugalrdquo2 (SOUSA 1587 p 757) Consultando-se a
2 De acordo com os verbetes do Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2009) almuinha ou almainha ou almoinha eacute um quintal cercado uma quinta suburbana Casal refere-se a um povoado pequeno lugarejo pequena propriedade pequena gleba cercada fora do foro ou pelos arredores mas nunca anexa agrave habitaccedilatildeo do seu proprietaacuterio Herdade eacute uma propriedade rural de dimensotildees consideraacuteveis fazenda quinta e sinocircnimo de siacutetio A quinta eacute uma propriedade rural com moradia terreno proacuteprio para a agricultura pomar de laranjeiras conjunto de casas de diversos proprietaacuterios e pertencentes a uma freguesia Roccedila eacute descrita como accedilatildeo ou efeito de roccedilar roccediladura terreno em que se faz a roccedilada terreno com muito mato mato crescido geralmente em terreno acidentado terreno de lavoura grande ou pequeno sementeira cultivada entre o mato ou em terreno de roccedilada pequena propriedade agriacutecola onde se cultivam frutas hortaliccedilas e alguns cereais regiatildeo aleacutem dos limites das cidades na qual se praticam em maior ou menor escala atividades agriacutecolas e pecuaacuterias a zona rural ou campordquo A etimologia da palavra segundo o mesmo dicionaacuterio eacute um regressivo do verbo roccedilar que designa o ato de romper ou seja limpar um campo de mato e ervas
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proacutepria obra de Sousa (1587) senhor de engenho e ldquoproprietaacuterio de roccedilasrdquo segundo
Varnhagen (1851) percebe-se como na formaccedilatildeo do Brasil Colocircnia nos quinhentos
roccedila estava atrelada agrave produccedilatildeo de mantimentos Ao longo de todo o seu tratado
especialmente descrevendo os modos de vida na Bahia de entatildeo Sousa (1587)
menciona os pares ldquoroccedilas e lavourasrdquo ldquoroccedilas e fazendasrdquo ldquoroccedilas e canaviaisrdquo ldquoroccedilas e
quintaisrdquo ldquoroccedilas e aacutervoresrdquo ldquoroccedilas e granjeariasrdquo ldquoroccedilas e aldeias matos e camposrdquo e
ldquoroccedilasrdquo num emprego largo e inespeciacutefico Sousa (1587) tambeacutem faz menccedilatildeo agraves roccedilas
dos iacutendios e especificamente agraves roccedilas dos iacutendios com canas-de-accediluacutecar plantadas assim
como fala das canas da roccedila
Mas o discurso central de Sousa (1587) sobre o termo aqui estudado estaacute
relacionado agrave expressatildeo ldquoroccedila de mantimentordquo De acordo com a sua descriccedilatildeo nas
roccedilas se lavravam muitos mantimentos frutas e hortaliccedilas Sua exposiccedilatildeo das ocupaccedilotildees
nas terras da Bahia fala das granjearias de roccedilas de mantimentos com criaccedilotildees de vacas
porcos e canaviais O mantimento fruto das roccedilas ao qual Sousa (1587) se refere
compotildee-se majoritariamente do que ele denomina como mantimento natural ou seja a
mandioca (chamada de farinha de pau ou farinha de patildeo em Portugal) elemento nativo
cultivado pelos indiacutegenas e adotado pelos colonizadores substituindo o trigo e o patildeo
Aleacutem da mandioca Sousa (1587) elenca uma longa lista de tubeacuterculos cereais legumes
e leguminosas que compunham as roccedilas de mantimentos das terras brasileiras batata
caraacutes mangaraacutes taiaacutes milho de Guineacute ou ubatim (zaburro em Portugal) favas feijotildees
aboacuteboras-de-quaresma ou jerimum amendoim pimentas Quanto agraves frutas o autor cita
caju banana mamatildeo mangaba ingaacute cajaacute pequi bacuripari umbu sapucaia jenipapo
macugecirc piquiaacute guti ubucaba mondururu mandiba cambuiacute curuanha araccedilaacute araticu
pinho abajeru amaitim apeacute murici cupiuacuteba maccedilarandiba mucuri cambucaacute
maracujaacute ananaacutes Sousa (1587) emprega ainda o vocaacutebulo roccedila para se referir ao
trabalho desenvolvido nas lavouras notaacutevel nas expressotildees fazer roccedila roccedilar trabalhar
nas roccedilas Mas o emprego do termo roccedila natildeo se limitava agrave ideia da lavoura jaacute que este
autor tambeacutem faz referecircncias agraves casas das roccedilas
Nos textos claacutessicos de alguns autores do pensamento social brasileiro como
Candido (2010) Holanda (1994 1995) e Ribeiro (2006) roccedila aparece atrelada agrave cultura
caipira desenvolvida no interior do Estado de Satildeo Paulo sul de Minas Gerais e do Rio
Janeiro parte de Goiaacutes Mato Grosso e Paranaacute Nesse contexto ldquoroccedilardquo aparece formada
pelo pequeno agricultor autocircnomo e sua famiacutelia nuclear e tambeacutem relacionada ao
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movimento das bandeiras de conquista de novos espaccedilos e do estabelecimento de
plantaccedilotildees ao longo desses caminhos formando nuacutecleos de provisatildeo de alimentos agraves
minas
Embora Ribeiro (2006) mencione a produccedilatildeo de roccedilas de subsistecircncia por todos
os tipos socioculturais crioulos caboclos gauacutechos sertanejos ou caipiras a sua
vinculaccedilatildeo a esses dois uacuteltimos tipos eacute notaacutevel Segundo o autor nos engenhos
accedilucareiros do Nordeste brasileiro no periacuteodo colonial entre o tipo social por ele
identificado como crioulo havia o haacutebito de se designar um ldquofeitorrdquo para cuidar das
roccedilas dentro dos engenhos Mas tambeacutem cita o lavrador que cultivava sua roccedila com a
famiacutelia dentro desse subsistema (RIBEIRO 2006 p 257 260) Entre a populaccedilatildeo por
ele designada de cabocla na regiatildeo amazocircnica tambeacutem havia o costume de produccedilatildeo
de roccedilados para a subsistecircncia especialmente do cultivo de mandioca e milho
(RIBEIRO 2006 p 284) Da mesma maneira o autor afirma que nos nuacutecleos
formados nos currais de criaccedilatildeo de gado do ldquoBrasil Sertanejordquo eram plantados roccedilados
para aprovisionar a famiacutelia do vaqueiro que tambeacutem contava com algumas vacas
leiteiras Esses roccedilados tambeacutem garantiam sustento para o gado que se alimentava das
palhas que sobravam das colheitas feitas pelos lavradores embora nas aacutereas de
pastoreio abundante e extensivo as roccedilas fossem cercadas Mas o autor tambeacutem destaca
que essas roccedilas de lavradores e vaqueiros sertanejos eram precaacuterias assim como suas
moradias devido agrave situaccedilatildeo de agregado das fazendas que lhes traziam inseguranccedila e
uma trajetoacuteria marcada pela transitoriedade e nomadismo (RIBEIRO 2006 p 309 312
313 327) De acordo com Ribeiro (2006 p 377) os gauacutechos arregimentados por
paulistas e curitibanos que se instalaram nos campos do Sul para se dedicar agrave criaccedilatildeo de
gado faziam roccedilados de mandioca milho e aboacutebora e fabricavam farinha aleacutem de
campearem o gado criarem cavalos e muares e amansarem bois de serviccedilo
Quanto agrave relaccedilatildeo entre o caipira e a roccedila no texto de Ribeiro (2006) ela aparece
em pelo menos trecircs frentes distintas O autor relata que se formavam roccedilas junto com
ranchos improvisados nas bandeiras paulistas em busca da identificaccedilatildeo de regiotildees para
a mineraccedilatildeo e tambeacutem na tomada de missotildees jesuiacuteticas no Sul para o aprisionamento de
indiacutegenas catequisados para o trabalho compulsoacuterio (RIBEIRO 2006 p 332) De
acordo com o antropoacutelogo nas regiotildees onde se desenvolveu a mineraccedilatildeo por conta do
aglomerado demograacutefico urbano e de uma matildeo de obra livre entre negros e mulatos
alforriados e brancos pobres formou-se uma agricultura comercial que fornecia queijo
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rapadura toucinho e carne mantimentos em geral cujas roccedilas eram desenvolvidas
suspeitava ele em regime de parceria Tambeacutem assinala que aos escravos das lavras era
permitido desenvolver suas roccedilas (RIBEIRO 2006 p 339 342)
Segundo Ribeiro (2006 p 344-345) posteriormente com a decadecircncia da
mineraccedilatildeo alguns dos proacuteprios mineradores negociantes artesatildeos e empregados foram
ocupando novamente o campo e se tornando roceiros produzindo para a proacutepria
subsistecircncia Da mesma forma muitos dos bandeirantes paulistas que se assentavam em
terras distantes ou mesmo aqueles que voltavam para a sua gente segundo este autor
(2006 p 333-334) tornaram-se criadores de gado e lavradores produzindo para o seu
proacuteprio consumo numa divisatildeo de tarefas os homens roccedilavam caccedilavam e guerreavam
e as mulheres cuidavam da roccedila do plantio da colheita do preparo dos alimentos e do
cuidado das crianccedilas
Eacute nesse contexto de esgotamento da mineraccedilatildeo e da economia mercantil a ele
vinculada que Ribeiro (2006) identifica uma dispersatildeo e uma nova sedentarizaccedilatildeo dos
paulistas no espaccedilo que denomina de ldquoaacuterea cultural caipirardquo que abrange uma vasta aacuterea
do Centro-Sul desde a costa do Espiacuterito Santo e Rio de Janeiro passando por Minas
Gerais Satildeo Paulo Paranaacute ateacute o Mato Grosso Consolida-se nessa regiatildeo de acordo
com o mesmo uma exploraccedilatildeo agriacutecola itinerante que derruba as matas e as queimam
para formar os roccedilados teacutecnica de origem tupi que caracterizou largamente o cultivo do
caipira e mesmo de um campesinato mais recente Esse processo apontado por Ribeiro
(2006 p 346) foi posteriormente suplantando pela plantaccedilatildeo de pastagens para o
desenvolvimento da pecuaacuteria visando abastecer os crescentes mercados urbanos que
demandavam o consumo de carne marginalizando e se apropriando da roccedila caipira
Mas antes dessa transformaccedilatildeo a organizaccedilatildeo social dos caipiras foi marcada pela
formaccedilatildeo dos bairros rurais que uniam vizinhos e familiares pelo sentimento de
localidade e pela participaccedilatildeo coletiva (mutiratildeo) para o lazer e o trabalho especialmente
a derrubada de matas e formaccedilatildeo dos roccedilados (RIBEIRO 2006 p 347) Nesse sentido
pode-se afirmar que a roccedila funcionava como um dos elementos que estruturavam a vida
rural caipira a partir da qual se constituiacuteram os bairros rurais
Para Ribeiro (2006 p 28) o haacutebito de cultivar roccedilas identificado nessas
formaccedilotildees socioculturais que originaram a cultura brasileira foi herdado da matriz tupi
Para o autor o povo tupi na eacutepoca da colonizaccedilatildeo do Brasil pelos portugueses iniciava
sua proacutepria revoluccedilatildeo agriacutecola desenvolvendo teacutecnicas de domesticaccedilatildeo de plantas para
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o mantimento de seus roccedilados cujo exemplo mais conhecido e difundido hoje no
Brasil seria o caso da mandioca Aleacutem dela o autor ressalta que os povos tupis tambeacutem
cultivavam ldquo[] o milho a batata-doce o caraacute o feijatildeo o amendoim o tabaco a
aboacutebora o urucu o algodatildeo o carauaacute cuias e cabaccedilas as pimentas o abacaxi o
mamatildeo a erva-mate o guaranaacute entre muitas outras plantas [] o caju o pequi etcrdquo
(RIBEIRO 2006 p 28) A teacutecnica era a mesma relatada para os lavradores do periacuteodo
colonial derrubada das aacutervores com machado e queima do terreno Vecirc-se essa teacutecnica e
esses cultivos sendo mencionados por outros autores na discussatildeo adiante
A provisatildeo garantida pelas roccedilas plantadas ao longo das expediccedilotildees ao interior
do Brasil tambeacutem foram ressaltadas no estudo de Candido (2010) como ilustra a
passagem que cita o Regimento de Dom Rodrigo de Castel-Blanco que diz em seus 1ordm
e 8ordm paraacutegrafos
1ordm Toda pessoa de qualquer qualidade que seja que for ao sertatildeo a descobrimentos seraacute obrigado a levar milho e feijatildeo e mandioca para poder fazer plantas e deixaacute-las plantadas porque com esta diligecircncia se poderaacute penetrar os sertotildees que sem isso eacute impossiacutevel 8ordm Mandaraacute semear as roccedilas que jaacute ficam as terras beneficiadas de milho feijatildeo e aboacutebora (CANDIDO 2010 p 60-61)
No trabalho de Candido (2010 p 61) tambeacutem fica evidente o povoamento da
roccedila colocada em contraposiccedilatildeo agrave cidade como na passagem do Conde de Assumar
datada de 1717 sobre os arredores da cidade de Satildeo Paulo
Saiu a Sua Exa a ver a cidade que estaacute situada em um plano e poderaacute ter ateacute quatrocentas casas a maior parte teacuterreas mas muita falta de gente porque a maior parte dos moradores vivem fora dela em umas quintas a que chamam roccedilas as quais natildeo constam de outras plantas que de milho farinha de patildeo [mandioca] e feijatildeo e algumas frutas da terra que tudo isto vem a ser o seu quotidiano sustento dos paulistas natildeo comendo carne senatildeo em alguns dias do ano e quando datildeo algum banquete ou fazem alguma festa sempre vem agrave mesa o feijatildeo com toucinho que se pode supor que eacute o arroz dos Europeus
Essas informaccedilotildees satildeo complementadas ainda pela citaccedilatildeo que Candido (2010
p 62) faz de Antonil a respeito da existecircncia das roccedilas no caminho das Minas
[] haacute aqui roccedilas de milho aboacuteboras e feijatildeo que satildeo as lavouras feitas pelos descobridores das minas e por outros que por aiacute querem
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voltar E soacute disto constam aquelas e outras roccedilas nos caminhos das minas e quando muito tem mais algumas batatas
Candido (2010 p 62) destaca que ldquoo feijatildeo o milho e a mandioca plantas
indiacutegenas constituem pois o que se poderia chamar triacircngulo baacutesico da alimentaccedilatildeo
caipira alterado mais tarde com a substituiccedilatildeo da uacuteltima pelo arrozrdquo Essa afirmaccedilatildeo eacute
interessante uma vez que se pode encontrar entre os camponeses em Minas Gerais
ainda hoje um sistema proacuteprio de classificaccedilatildeo no qual roccedila eacute milho e feijatildeo enquanto
o cultivo de outras espeacutecies como o arroz ou o cafeacute natildeo eacute considerado como roccedila mas
como plantaccedilatildeo e lavoura respectivamente (SILVEIRA 2008) Ou seja para alguns
camponeses mineiros roccedila seria uma antonomaacutesia para plantaccedilotildees de milho e feijatildeo
como jaacute foi destacado por Heredia (1979) e Garcia Juacutenior (1983) em Pernambuco No
trabalho de Candido (2010 p 66) encontra-se uma referecircncia parecida de que para os
caipiras a mandioca era por antonomaacutesia o mantimento e o milho a roccedila As
seguintes imagens ilustram ldquoroccedilasrdquo na visatildeo dos camponeses de Minas Gerais ou seja
roccedilas de mandioca milho e feijatildeo
FIGURA 1 ndash Roccedila de mandioca
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
18
FIGURA 2 ndash Roccedila de milho
Fonte Joatildeo Monteiro da Silveira
FIGURA 3 ndash Roccedila de feijatildeo
Fonte Joatildeo Monteiro da Silveira
Relevante notar que ao longo de seu trabalho Candido (2010) se refere aos
caipiras do interior paulista como roceiros e utiliza o termo roccedila para se referir tanto agraves
lavouras quanto ao local como sinocircnimo de campo ou rural quando fala das ldquopessoas
da roccedilardquo do ldquohomem da roccedilardquo ou da ldquogente da roccedilardquo (CANDIDO 2010 p 22 47 48
49 68 74 129 134 142 149 154 162 199 201 204) Para este autor a cultura
caipira marcada pela organizaccedilatildeo social em bairros e pela economia de subsistecircncia ou
seja caracterizada pelo ajuste ao meio era formada pelos sitiantes posseiros e
agregados Destarte Candido (2010) assume a existecircncia de uma estratificaccedilatildeo social na
cultura rural paulista falando especialmente do periacuteodo poacutes-ciclo bandeirante no seacuteculo
XVIII dividindo de um lado os proprietaacuterios de fazendas de cana gado e mais tarde
de cafeacute e de outro os sitiantes Entretanto o autor destaca que os fazendeiros
participam da cultura caipira em termos de seus costumes fala e rusticidade embora
nem sempre possam ser considerados dela integrantes Nesse sentido Candido (2010)
19
considera que tanto os fazendeiros quanto os sitiantes e mesmo os posseiros tecircm uma
origem em comum nos mesmos troncos familiares tendo feito parte dos ldquosiacutetios de roccedilardquo
que segundo ele seriam territorialmente avantajados e sem uma niacutetida distinccedilatildeo entre a
grande e a pequena propriedade
A expressatildeo siacutetios de roccedila eacute recorrentemente empregada por Holanda (1994
1995) especialmente nos seus estudos sobre Satildeo Paulo colonial A referecircncia de
Holanda (1994) aos siacutetios de roccedila aparece muitas vezes em contraste coma vila a
cidade ou as sedes urbanas em geral sendo o siacutetio da roccedila o espaccedilo no campo onde se
produz os mantimentos Nesse sentido o autor tambeacutem faz alusatildeo agrave ldquoroccedilardquo tanto como
ldquoespaccedilo ruralrdquo quanto como ldquoespaccedilo de produccedilatildeordquo usando inclusive a expressatildeo ldquoroccedila
de mantimentosrdquo jaacute consagrada por Sousa (1587) O contraste do uso do vocaacutebulo roccedila
em oposiccedilatildeo agrave cidade fica claro quando Holanda (1994 p 90) reproduz um trecho de
Frei Vicente do Salvador
[] cidade esquisita de casas sem moradores pois os proprietaacuterios passavam mais tempo em suas roccedilas rurais soacute acudindo no tempo das festas A populaccedilatildeo urbana constava de mecacircnicos que exerciam seus ofiacutecios de mercadores de oficiais de justiccedila de fazenda de guerra obrigados agrave residecircncia
O trecho se refere agrave cidade de Salvador no seacuteculo XVI e Holanda (1994 p 90)
ressalta como no Brasil Colocircnia a elite habitava o campo e frequentava as cidades
apenas em ocasiotildees especiais O contraste do povoamento do campo em relaccedilatildeo agrave
cidade jaacute foi notado num trecho anterior quando Candido (2010) cita uma passagem do
Conde de Assumar sobre Satildeo Paulo no seacuteculo XVIII ressaltando como a populaccedilatildeo
vivia de forma maciccedila nas roccedilas e natildeo na cidade embora nesta houvesse um
aglomerado de casas
Assim como no trabalho de Candido (2010) Holanda (1994 1995) se refere ao
agricultor e agrave populaccedilatildeo que vive no campo no periacuteodo colonial como roceiros
expressatildeo que vai se tornando escassa no vocabulaacuterio acadecircmico sobre estudos rurais no
Brasil como se veraacute adiante Holanda (1995 p 187) se refere ao uso da farinha oriunda
ldquodos milhos da roccedila de expediccedilatildeordquo como mantimento obrigatoacuterio nas expediccedilotildees no
seacuteculo XVIII juntamente com o feijatildeo e o toucinho de porco sugerindo a existecircncia de
roccedilas de produccedilatildeo de mantimentos destinadas agrave provisatildeo daqueles que partiam agraves
20
entradas Por outro lado o autor tambeacutem menciona os ldquosiacutetios de roccedilardquo como um
assentamento dos paulistas que se sedentarizam em contraste agraves bandeiras
Jaacute na obra de Freyre (2003) as menccedilotildees agrave roccedila satildeo sempre feitas com a
conotaccedilatildeo de lavoura agraves vezes chamando-a de roccedilado relacionadas aos controles de
pragas aos problemas com ataque de lagartas e ao trabalho de roccedilar o mato Apenas
numa ou noutra reproduccedilatildeo de trechos de cronistas e viajantes do Brasil colonial Freyre
(2003) em notas de rodapeacute alude agraves ldquoroccedilas de mantimentordquo ou agrave ldquoroccedila como espaccedilo
ruralrdquo num sentido mais amplo Da mesma forma Prado Juacutenior (2011) refere-se agrave roccedila
especialmente em termos das praacuteticas agriacutecolas limpeza da aacuterea agricultaacutevel por meio
da roccedilada e da queima bem como faz referecircncia agrave lavoura de subsistecircncia que segundo
ele teria dado origem a uma forma particular de exploraccedilatildeo agriacutecola destinada agrave
produccedilatildeo de gecircneros alimentares diferenciada do que denomina de grande lavoura Para
o autor essa agricultura de subsistecircncia poderia incluir uma grande propriedade que
neste aspecto assemelhava-se agrave grande lavoura ldquoateacute a insignificante roccedila chaacutecara ou
siacutetio onde natildeo haacute escravos ou assalariados e onde o proprietaacuterio ou simples ocupante da
terra eacute ao mesmo tempo o trabalhadorrdquo (PRADO JUacuteNIOR 2011 p 162) No acircmbito
das grandes lavouras o desenvolvimento das roccedilas para o provimento da subsistecircncia
era feito pelos escravos no dia da semana considerado ldquolivrerdquo geralmente o domingo
Nas fazendas de gado do sertatildeo conforme o autor tambeacutem era costume que os
trabalhadores ajudantes escravos ou assalariados chamados de ldquofaacutebricasrdquo se
ocupassem das roccedilas de subsistecircncia Em fins do seacuteculo XVII e iniacutecio do XVIII alvaraacutes
ordenavam aos lavradores de cana e aos proprietaacuterios de embarcaccedilotildees de traacutefico de
escravos que plantassem roccedilas de mandioca para a subsistecircncia destes (PRADO
JUacuteNIOR 2011 p 167 200)
A partir das fontes verificadas corrobora-se com a caracterizaccedilatildeo da categoria
roccedila criada por Oliveira M (2012) e citada no iniacutecio deste capiacutetulo Nesse sentido
conclui-se que o termo ldquoroccedilardquo durante o Brasil Colocircnia denominava um espaccedilo
eminentemente dedicado agrave produccedilatildeo (e natildeo ao lazer e fruiccedilatildeo embora haacute indicaccedilotildees da
existecircncia de uma vida social intensa) especialmente de gecircneros alimentiacutecios os
mantimentos destinados ao autoconsumo (tambeacutem citado como subsistecircncia) e ao
abastecimento local Como um desdobramento dessas condiccedilotildees detalha-se que os
gecircneros alimentiacutecios principais eram a mandioca em primeiro lugar aleacutem do milho
feijatildeo aboacuteboras e uma variaccedilatildeo de outros gecircneros como as pimentas batatas caraacute
21
amendoim algumas frutas como mamatildeo abacaxi e banana aleacutem do algodatildeo e do
tabaco entre outros A matildeo de obra que se dedicava a essa produccedilatildeo era composta
desde os proacuteprios escravos da monocultura ou da mineraccedilatildeo ateacute a classe intermediaacuteria
de homens livres que compunha a populaccedilatildeo colonial brasileira como feitores
agregados vaqueiros ou seja homens brancos pobres ou negros e mulatos alforriados
As roccedilas garantiam portanto o sustento dos trabalhadores que deveriam prover a si
mesmos e agrave sua famiacutelia bem como abastecia o sistema local seja o engenho ou as
cidades vizinhas sendo a sua localizaccedilatildeo perifeacuterica agraves vilas e sedes urbanas
Mas as roccedilas tambeacutem eram plantadas ao longo das trilhas abertas pelas
expediccedilotildees ao interior do Brasil seja para descobrimentos ou para a captura de grupos
indiacutegenas para o trabalho escravo Assim da mesma forma que a roccedila promovia a
mobilidade tambeacutem garantia o assentamento das populaccedilotildees e o processo de
sedentarismo As roccedilas a partir da derrubada das matas da incineraccedilatildeo do terreno e do
cultivo de plantas nativas como a mandioca apontam para a apropriaccedilatildeo das teacutecnicas
indiacutegenas pelos colonizadores num processo de adaptaccedilatildeo ao meio facilitando suas
entradas a posse e a dominaccedilatildeo do espaccedilo O uso da teacutecnica das roccedilas foi sendo
reproduzido pelas populaccedilotildees descendentes principalmente de brancos e iacutendios em
especial os posseiros e agricultores que juntamente com suas famiacutelias foram
desenvolvendo uma agricultura itinerante de autoconsumo dentro da aacuterea de cultura
caipira
Por tudo que foi descrito supotildee-se que no Brasil Colocircnia a roccedila muitas vezes
funcionou como um dos elementos que constituiacuteram a vida rural brasileira garantindo
natildeo somente o abastecimento e a reproduccedilatildeo da populaccedilatildeo local mas tambeacutem o
desenvolvimento dos proacuteprios empreendimentos sejam as bandeiras o engenho os
currais e as minas o trabalho e a cultura da sociedade rural Nesse sentido acredita-se
que aleacutem das referecircncias dos autores aqui citados que usavam o termo roccedila como
sinocircnimo de vida rural a constataccedilatildeo da importacircncia das roccedilas na estruturaccedilatildeo da vida
colonial brasileira tambeacutem permite tal inferecircncia Apresenta-se a seguir a
representaccedilatildeo em forma de diagrama das principais caracteriacutesticas da categoria roccedila na
literatura consultada que trata da formaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica do Brasil Colocircnia
22
FIGURA 4 ndash Caracteriacutesticas da roccedila na formaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica do Brasil Colocircnia
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
12 Usos e significados do termo roccedila nos estudos sobre o campesinato no
Brasil
No item anterior analisou-se a forma como o termo roccedila foi retratado na
literatura que trata da formaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica do Brasil Colocircnia Neste item apresenta-
se uma anaacutelise acerca do significado do termo roccedila nos estudos sobre o campesinato no
Brasil Roccedila eacute uma categoria que pode ser identificada como fundamental nos estudos
sobre o campesinato brasileiro O termo roccedila tem sido pensado e utilizado tanto para
descrever quanto para explicar a vida e o conceito de camponecircs Nos estudos do
campesinato a roccedila ou o roccedilado eacute descrita de maneira detalhada o que contribui natildeo
soacute para compreender a evoluccedilatildeo dos usos e significados deste vocaacutebulo no periacuteodo poacutes-
colonial brasileiro como tambeacutem possibilita uma anaacutelise microssocioloacutegica no acircmbito
da pequena produccedilatildeo agricultora familiar de autoconsumo
Teacutecnica indiacutegena bullDerrubada do mato e queimada bullCultivo de mandioca milho feijatildeo aboacutebora bullProcesso itinerante
Produccedilatildeo bullGecircneros alimentiacutecios mandioca milho feijatildeo aboacutebora bullMatildeo de obra escravos homens livres (brancos pobres ou negros alforriados) agregados e parceiros
Consumo bullAutoconsumo ou subsistecircncia bullAbastecimento local (engenho curral de gado minas cidades vizinhas)
Empreendimento
bullExpediccedilotildees de descobrimentos bullBandeiras bullAgricultura marginal ao engenho currais de gado minas bullBairro rural caipira bullPequena produccedilatildeo familiar
Elemento estruturante da
vida rural
bullRoceiros bullCasas da roccedila bullGente da roccedila bullPovoamento na roccedila bullRoccedila versus cidadevilavida urbana bullSinocircnimo de rural
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Queiroz (1973) chama a atenccedilatildeo para o fato de que o campo era retratado como
estando ocupado por dois segmentos os grandes fazendeiros e os trabalhadores rurais
escravos ou natildeo A autora entatildeo notabiliza a existecircncia de uma camada social
intermediaacuteria que natildeo seria nem fazendeira nem trabalhadora sem terras formada pelos
sitiantes a qual designa como camponeses Natildeo se trataria portanto de um povo
isolado sendo o bairro rural prova da existecircncia desta sociedade rural Nesse sentido o
campesinato ou essa camada social intermediaacuteria corresponderia aos trabalhadores que
se dedicavam agraves roccedilas no Brasil Colocircnia conforme evidenciado na seccedilatildeo anterior
sendo portanto os descendentes desses grupos sociais (ou o que resultou de sua
reproduccedilatildeo aliado a outros fatores como a decadecircncia do engenho e da mineraccedilatildeo)
Queiroz (1973) caracteriza o campesinato como um grupo social subordinado
ora a um senhorio ora agrave sociedade urbana Quando se tratava de uma regiatildeo onde natildeo
havia grandes fazendas sendo os sitiantes os uacutenicos produtores estabelecia-se uma
hierarquia mais horizontalizada dividida com base nos grupos de agricultores que
possuiacuteam ferramentas de arado os quais eram considerados mais abastados em relaccedilatildeo
aos sitiantes que utilizavam apenas a matildeo de obra familiar que por sua vez estavam
sobrepostos aos trabalhadores sem terras Queiroz (1973) destaca a dependecircncia dos
sitiantes em relaccedilatildeo agrave cidade retratando a relaccedilatildeo de troca econocircmica dentro de um
contexto de subordinaccedilatildeo poliacutetica Embora a autora utilize o aspecto da subordinaccedilatildeo
poliacutetica para definir o camponecircs do ponto de vista econocircmico ela o caracteriza como
voltado para uma loacutegica de reproduccedilatildeo autocircnoma desenvolvendo praacuteticas produtivas
voltadas para o autoconsumo A categoria roccedila aparece na anaacutelise de Queiroz (1973 p
194) sobre o campesinato como o espaccedilo no qual se produz o cultivo
Nas pequenas empresas agraacuterias exploradas por unidades domeacutesticas a superfiacutecie cultivada de pequeno porte denominou-se sempre lsquoroccedilarsquo o pequeno empresaacuterio rural ndash roceiro ndash entregava-se agrave policultura em pequena escala auxiliado pela proacutepria famiacutelia e agraves vezes por um ou outro camarada remunerado
A roccedila tem um aspecto central na distinccedilatildeo que a autora faz entre ldquoas pequenas
empresas agraacuterias voltadas para a agricultura de subsistecircnciardquo e ldquoas pequenas empresas
agraacuterias voltadas para a comercializaccedilatildeo de seus produtosrdquo Na primeira a roccedila de
subsistecircncia eacute o foco central de dedicaccedilatildeo do trabalho da famiacutelia sendo a venda do
excedente da produccedilatildeo ou qualquer outra obtenccedilatildeo de fonte de renda apenas
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complementar agravequela Na segunda categoria o foco do trabalho familiar eacute a plantaccedilatildeo
destinada ao comeacutercio e a roccedila seria apenas uma complementaccedilatildeo desta Nessa
tipologia Queiroz (1973) contrapotildee a ldquoroccedilardquo agrave ldquocultura comercialrdquo e evidencia a
heterogeneidade das empresas agriacutecolas do interior de Satildeo Paulo A autora a partir do
relato do funcionamento de uma fazenda do interior paulista no periacuteodo da
implementaccedilatildeo da poliacutetica de colonizaccedilatildeo do governo brasileiro na passagem do seacuteculo
XIX para o XX identifica as culturas comerciais nela existentes as lavouras de
amendoim milho e mandioca e como roccedila de subsistecircncia o arroz o feijatildeo a
batatinha a cebola a melancia a aboacutebora e as hortaliccedilas Neste aspecto a roccedila ainda eacute o
nuacutecleo de provisatildeo da famiacutelia mas deixa de secirc-lo para a comunidade no entorno
percebendo-se um processo maior de autonomizaccedilatildeo que nas eacutepocas anteriores e de
diversificaccedilatildeo dos processos agraacuterios e agriacutecolas
Nesse estudo de Queiroz (1973) a categoria roccedila eacute explicitada a partir de outras
esferas da vida camponesa ateacute entatildeo natildeo mencionadas pelos viajantes e cronistas do
Brasil Colocircnia A autora faz referecircncia agrave divisatildeo de trabalho por gecircnero que envolve a
categoria roccedila na famiacutelia camponesa ressaltando que nos processos de mutiratildeo os
homens se encarregavam das tarefas na roccedila e as mulheres na cozinha Poreacutem no
trabalho regular as mulheres trabalhavam na roccedila com os maridos embora essa
situaccedilatildeo fosse mais comum entre as mulheres mais velhas As mulheres mais jovens
eram destinadas na maioria das vezes ao trabalho domeacutestico enquanto os homens
assumiam o trabalho na roccedila Nas novas geraccedilotildees as mulheres somente trabalhavam na
roccedila ao lado de seus maridos nos casos de uma necessidade econocircmica mais acentuada
De forma mais geral destaca-se que no texto de Queiroz (1973) as expressotildees
ldquotrabalho da roccedilardquo ou ldquotrabalho na roccedilardquo aparecem vaacuterias vezes para designar o trabalho
exercido na lavoura agriacutecola Por vezes ela tambeacutem se refere a um ldquosistema de roccedilardquo
para designar uma particularidade do trabalho camponecircs que estaria estritamente ligado
ao ldquotrabalho de roccedilardquo ou seja ao cultivo agriacutecola Segundo Queiroz (1973) haveria
uma formaccedilatildeo hieraacuterquica da sociedade rural em torno da roccedila o que pode ser notado
de forma expliacutecita em relaccedilatildeo aos agricultores camponeses face agrave agricultura de
exportaccedilatildeo As Danccedilas de Satildeo Gonccedilalo em Santa Briacutegida na Bahia narradas pela
autora expressam em seus rituais esta hierarquia socialmente vivida na comunidade
Os fazendeiros e donos de armazeacutem ocupavam as posiccedilotildees privilegiadas seguidos pelos
donos de pequenas roccedilas que se sobrepunham agravequeles que natildeo possuiacuteam roccedila nenhuma
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Esse processo de hierarquizaccedilatildeo social em torno da roccedila ainda natildeo havia sido apontado
nos textos consultados sobre o Brasil Colocircnia e parecem estar relacionados a uma
estruturaccedilatildeo tardia dos processos agraacuterios e agriacutecolas no Brasil cujas consequecircncias
seratildeo posteriormente apontadas nesta pesquisa
No que diz respeito a esta relaccedilatildeo dos agricultores camponeses com a roccedila
Queiroz (1973) destaca que esta era formada em regiotildees ainda natildeo ldquoinvadidasrdquo pela
grande monocultura de exportaccedilatildeo nem pela agricultura comercial e a induacutestria Da
mesma forma a autora admite que a ocupaccedilatildeo das melhores terras pela grande
monocultura seria muitas vezes o motivo da decadecircncia de muitos camponeses cujas
roccedilas ficariam restritas agraves piores terras Apesar disso natildeo se pode deixar de destacar
que para a autora o sistema de cultivo camponecircs a roccedila se constituiria em uma das
condiccedilotildees de mobilidade dos bairros rurais Nesse sentido o processo itinerante que
caracteriza a teacutecnica da roccedila seria a estrateacutegia que possibilitaria a reproduccedilatildeo dessas
famiacutelias de agricultores Os roceiros de Queiroz (1973) satildeo tanto aqueles que trabalham
na roccedila quanto tambeacutem aqueles originaacuterios do campo sendo o termo utilizado para
caracterizar natildeo soacute um processo relacionado ao trabalho mas tambeacutem de identificaccedilatildeo
social A categoria roceiro empregada por Queiroz (1973) no entanto vai se tornando
menos recorrente nos estudos de campesinato posteriores ao dela
FIGURA 5 ndash Bairros rurais em Gonccedilalves-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Na imagem acima visualiza-se uma placa de tracircnsito indicando o sentido para
alguns dos bairros rurais em Gonccedilalves Minas Gerais Destaca-se que este municiacutepio
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fica proacuteximo agrave Itajubaacute regiatildeo estudada por Moura (1978) seguindo a perspectiva dos
estudos de bairros de Queiroz (1973) Moura (1978) estudou os padrotildees de heranccedila e
parentesco na reproduccedilatildeo de uma aacuterea camponesa em Satildeo Joatildeo da Cristina na regiatildeo de
Itajubaacute no sul de Minas Gerais Em um capiacutetulo destinado agrave discussatildeo da produccedilatildeo
camponesa Moura (1978) distingue o siacutetio da fazenda num esquema de oposiccedilatildeo
construiacutedo pelos proacuteprios camponeses O sitiante era tido como aquele que tinha pouca
terra e ao mesmo tempo como um lavrador categoria profissional que o identificava
como cidadatildeo O fazendeiro ao contraacuterio era tido como o proprietaacuterio de grande
extensatildeo de terra a qual estava situada fora dos limites do bairro Moura (1978 p 16)
complementa a sua definiccedilatildeo de sitiante afirmando que ldquo[] o lsquositiantersquo trabalha na
lsquoroccedilarsquo com a ajuda dos filhos plantando fundamentalmente lsquopara o gastorsquo (ou lsquopara o
estocircmagorsquo)rdquo Tambeacutem neste estudo assim como no de Queiroz (1973) a relaccedilatildeo com a
roccedila reforccedila a identificaccedilatildeo dentro de uma estrutura hieraacuterquica
Moura (1978) ressalta ainda que dentro de uma mesma propriedade privada
podiam existir unidades econocircmicas independentes no seu interior as quais eram
caracterizadas pela ldquocasa e a roccedilardquo do pai e pela ldquocasa e a roccedilardquo do(s) filho(s) casado(s)
Cada unidade econocircmica entatildeo corresponderia a uma famiacutelia nuclear dividida entre
unidade de produccedilatildeo (roccedila) e unidade de consumo (casa) A roccedila aparecia entatildeo como
um nuacutecleo estruturante da famiacutelia assim como era um componente importante da vida
rural mais ampla como destacado anteriormente A oposiccedilatildeo entre casa (unidade de
consumo) e roccedila (unidade de produccedilatildeo) reproduz a oposiccedilatildeo entre atividades domeacutesticas
e atividades agriacutecolas numa divisatildeo do trabalho familiar apontada pela autora Caberia agrave
mulher o trabalho da ldquocasardquo e ao homem o da ldquoroccedilardquo Embora ambos fossem
classificados pelos sitiantes como ldquotrabalhordquo apenas o trabalho na roccedila era tido como
serviccedilo ldquopesadordquo Por outro lado o trabalho da mulher na roccedila quando permitido era
tratado como ldquoajudardquo e natildeo como ldquotrabalhordquo Essa divisatildeo do trabalho marcava tambeacutem
a reproduccedilatildeo social que direcionava a inserccedilatildeo dos filhos e filhas no trabalho da roccedila e
da casa respectivamente Segundo Moura (1978) as meninas se tornavam aos poucos
responsaacuteveis por tarefas domeacutesticas de acordo com sua faixa etaacuteria e os meninos
assumiam tambeacutem de acordo com a sua idade as tarefas na roccedila A roccedila tinha um
aspecto fundamental em relaccedilatildeo ao trabalho dos meninos pois a eles era entregue uma
ldquopequena roccedilardquo para ser cuidada de forma independente o que marcava um processo de
emancipaccedilatildeo do grupo familiar antes mesmo do casamento A roccedila era portanto uma
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passagem ritual dentro da famiacutelia camponesa tendo um papel estruturante no nuacutecleo
familiar camponecircs ao ser utilizada natildeo soacute na construccedilatildeo dos papeacuteis de gecircnero mas
tambeacutem na identificaccedilatildeo dos papeacuteis de cada geraccedilatildeo dentro do grupo domeacutestico
Garcia Juacutenior (1983) e Heredia (1979) tambeacutem estudaram o campesinato
especificamente aquele que se formou agrave margem da plantation na Zona da Mata
Pernambucana Assim como no trabalho de Moura (1978) Garcia Juacutenior (1983) e
Heredia (1979) consideraram a unidade domeacutestica como composta pela unidade de
produccedilatildeo o ldquoroccediladordquo e pela unidade de consumo a ldquocasardquo Entretanto para ambos o
roccedilado foi compreendido e descrito como um processo produtivo Os autores
dedicaram-se a descrever as tarefas e os ciclos desse sistema produtivo bem como os
seus produtos identificando que no campesinato da Zona da Mata Pernambucana os
principais produtos que definiam o roccedilado eram a mandioca o feijatildeo (ou fava) e o milho
ndash sendo que especialmente a mandioca era utilizada como sinocircnimo de roccedila Apesar da
mandioca do milho e do feijatildeo (ou fava) serem considerados os principais produtos do
roccedilado eles natildeo excluem a existecircncia de vaacuterios outros como algodatildeo caraacute inhame
vagem coentro maxixe alho pepino chuchu quiabo pimentatildeo alface tomate
jerimum repolho cenoura cebola abacaxi maracujaacute melancia e melatildeo (HEREDIA
1979)
O roccedilado eacute ainda subdividido em termos de produtos nas categorias de
ldquolavourardquo e de ldquoaacutervoresrdquo ou ldquopeacutes de paurdquo A diferenccedila eacute dada pelos cultivos temporaacuterios
e permanentes As lavouras permanentes aacutervores frutiacuteferas ou mesmo o cafeacute por
exemplo podem ser encontradas natildeo soacute no roccedilado (espaccedilo destinado ao cultivo) mas
tambeacutem no terreiro ou no quintal espaccedilo proacuteximo da casa de morada onde tambeacutem se
planta Mas satildeo as lavouras permanentes que definem o ldquosiacutetiordquo e delimitam as terras de
posse da famiacutelia Em decorrecircncia da sua existecircncia temporal a lavoura permanente de
alguma forma comprovaria a ligaccedilatildeo com o passado (GARCIA JUacuteNIOR 1983)
Segundo Garcia Juacutenior (1983) e Heredia (1979) a agricultura camponesa se
caracterizaria pela associaccedilatildeo ou sucessatildeo de cultivos no mesmo espaccedilo de terra Por
outro lado para Queiroz (1973) a sucessatildeo ou a rotatividade de culturas e roccedilas natildeo
impediria o caraacuteter itinerante das roccedilas camponesas
O processo de trabalho no roccedilado descrito por Garcia Juacutenior (1983) e Heredia
(1979) consiste nas etapas de ldquoroccedilar o matordquo ou seja retirar a vegetaccedilatildeo natural
utilizando foices machados e estrovengas Essa tarefa eacute geralmente realizada pelo
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homem pai de famiacutelia Posteriormente se junta toda a vegetaccedilatildeo que foi roccedilada num
processo denominado ldquocoivarardquo A coivara eacute entatildeo queimada e posteriormente limpa
ou seja as sobras satildeo retiradas Se ainda for necessaacuterio destoca-se ou seja retiram-se
os troncos ou tocos de vegetaccedilatildeo que restaram com a utilizaccedilatildeo de uma enxada Todas
essas atividades satildeo masculinas Com a terra limpa o plantio se inicia com os homens
abrindo as covas com a enxada e as mulheres eou as crianccedilas depositando as sementes
e fechando as covas com os peacutes A plantaccedilatildeo precisa ser mantida realizando-se
limpezas no mato que cresce entremeio agrave lavoura Esse processo de capina pode ser
feito pelas mulheres Jaacute a colheita eacute realizada pelos homens Algumas dessas etapas
correspondem agraves teacutecnicas de origem indiacutegena tiacutepicas do periacuteodo colonial
A divisatildeo das tarefas por gecircnero no campesinato jaacute anteriormente assinalada
por Moura (1978) e Queiroz (1973) eacute discutida de maneira mais detalhada por Garcia
Juacutenior (1983) e Heredia (1979) como demonstra Heredia (1979 p 77) na seguinte
passagem ldquoNatildeo haacute duacutevida de que o lugar que os diferentes membros ocupam dentro do
grupo domeacutestico estaacute estreitamente ligado agrave sua posiccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves atividades que
desenvolvem no lsquoroccediladorsquo ou na lsquocasarsquordquo De acordo com essa autora a oposiccedilatildeo casa-
roccedilado aleacutem de refletir a divisatildeo do grupo domeacutestico em unidade de consumo e unidade
de produccedilatildeo expressa tambeacutem a oposiccedilatildeo entre o trabalho e o natildeo trabalho
relacionando-os ao homem e agrave mulher respectivamente O roccedilado eacute tido como tendo
preponderacircncia sobre a casa pois eacute a produccedilatildeo nele realizada que garante a
sobrevivecircncia do grupo domeacutestico seja por meio do seu consumo ou da compra de
gecircneros alimentiacutecios com a renda dela advinda Se o pai de famiacutelia eacute o responsaacutevel pelo
roccedilado ndash e este domina a casa ndash logo o grupo domeacutestico estaacute sob a autoridade paterna
As tarefas realizadas pelas mulheres no roccedilado satildeo especiacuteficas podendo assumir o
roccedilado somente em casos excepcionais como morte do pai de famiacutelia doenccedila ou
velhice Mesmo assim a mulher assume o roccedilado se natildeo houver um sucessor masculino
no grupo domeacutestico A preponderacircncia do pai (responsaacutevel pelo roccedilado) no grupo
domeacutestico se manifesta em diferentes ocasiotildees eacute ele quem decide sobre os cultivos e
seus manejos administra os recursos disponiacuteveis e faz todos os negoacutecios (arrendamento
de terras de trabalho para ldquobotar roccediladordquo venda de animais ou produtos do roccedilado
compra de gecircneros necessaacuterios agrave reproduccedilatildeo do grupo domeacutestico) No espaccedilo da casa a
proeminecircncia do pai garante a ele a prioridade para se servir nas refeiccedilotildees e para
consumir os produtos mais nobres no caso de escassez As melhores ferramentas de
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trabalho tambeacutem soacute podem ser usadas pelo pai passando ao domiacutenio dos filhos adultos
da mulher e dos filhos pequenos conforme o desgaste provocado pelo uso Como
destaca Heredia (1979) a enxada eacute o siacutembolo do trabalho no roccedilado
Conforme demonstra Heredia (1979) a constituiccedilatildeo das posiccedilotildees sociais dos
membros do grupo domeacutestico determinada pelo par de opostos casa-roccedilado pode ainda
ser compreendida pelo papel do ldquoroccediladinhordquo Trata-se de um roccedilado individual
pertencente agrave matildee de famiacutelia ou a cada filho separadamente No roccediladinho o cuidado eacute
individual e de responsabilidade do membro ao qual ele foi concedido Isto porque eacute o
pai quem concede uma parte da terra de trabalho ao filho ou agrave esposa para ldquobotaremrdquo o
seu roccediladinho Eacute tambeacutem o pai quem concede os insumos e ferramentas necessaacuterios ao
cultivo do roccediladinho quem determina o que seraacute cultivado (jaacute que eacute ele quem fornece as
sementes) e os dias da semana que o filho pode se dedicar agrave sua roccedila individual No
entanto a autora ressalta que os produtos adquiridos no roccediladinho podem ser vendidos e
a renda eacute aplicada para atender agraves necessidades individuais diferentemente do roccedilado
cujos resultados satildeo inteiramente destinados agraves satisfaccedilotildees do grupo como um todo seja
de forma direta ou indireta Por isso a dedicaccedilatildeo ao proacuteprio roccediladinho natildeo libera o filho
ou a esposa da obrigaccedilatildeo de ajudar no roccedilado familiar visto que eacute este que garante a
reproduccedilatildeo de todo o grupo domeacutestico Embora a princiacutepio o destino da produccedilatildeo do
roccediladinho seja individual ele pode ser apropriado pelo pai e utilizado na satisfaccedilatildeo das
necessidades familiares num caso de escassez ou de dificuldades em geral Apesar de
ser uma forma de individualizaccedilatildeo ao proporcionar a cada membro do grupo
domeacutestico a satisfaccedilatildeo das necessidades privadas o roccediladinho tambeacutem eacute ao mesmo
tempo um reforccedilo do pertencimento ao grupo familiar jaacute que soacute pode ter um roccediladinho
aquele eacute membro do grupo domeacutestico
Tambeacutem Woortmann e Woortmann (1997) dedicam-se a uma etnografia do
trabalho na lavoura camponesa a partir da pesquisa com sitiantes sergipanos Os autores
propotildeem pensar o trabalho como um ldquosaber-fazerrdquo ou seja a compreender natildeo soacute o
trabalho como teacutecnica mas como cultura apreendendo todo o aparato de ideias que o
antecede Como o trabalho camponecircs eacute realizado no roccedilado a etnografia de Woortmann
e Woortmann (1997) permite compreender de maneira mais profunda e numa
perspectiva simboacutelica o sentido de roccedila para os camponeses se comparado agraves outras
etnografias aqui discutidas
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Woortmann e Woortmann (1997) descrevem o ldquosiacutetio camponecircsrdquo como o lugar
do trabalho por excelecircncia composto na regiatildeo estudada pelo ldquomatordquo ldquocapoeirardquo
ldquochatildeo de roccedilardquo eou ldquomalhadardquo ldquopastordquo ldquocasa de farinhardquo ldquocasardquo e ldquoquintalrdquo Os
autores fazem uma descriccedilatildeo extremamente detalhada desses componentes que satildeo natildeo
soacute espaccedilos do siacutetio mas tambeacutem etapas do processo de trabalho agriacutecola No entanto o
ldquochatildeo de roccedilardquo e a ldquomalhadardquo mais do que isso satildeo por si soacute modelos de processos
produtivos sistemas agriacutecolas pois o modelo de ldquochatildeo de roccedilardquo mais antigo demanda
um pousio de longos anos (sistema extensivo) enquanto a ldquomalhadardquo eacute um recente
sistema de cultivo de caraacuteter intensivo Havia geralmente um processo no qual apoacutes a
derrubada do mato a terra era transformada em terra de trabalho ou seja em chatildeo de
roccedila Este poderia ser substituiacutedo pela malhada ou pelo pasto ou simplesmente pelo
pousio Como o chatildeo de roccedila era a primeira etapa de plantaccedilatildeo que se seguia agrave
domesticaccedilatildeo da natureza geralmente o solo era mais rico em nutrientes e podia ser
explorado sem a necessidade de correccedilatildeo Apoacutes vaacuterios cultivos quando a terra do chatildeo
de roccedila comeccedilava a dar sinais de esgotamento ela era entatildeo descansada ou destinada ao
pasto ou agrave malhada (forma de cultivo intensivo) o que poderia ocorrer com ou sem o
descanso Entretanto os autores notaram que historicamente o sistema agriacutecola de
chatildeo de roccedila tinha sido preterido em detrimento do modelo da malhada Nota-se
especificamente nesse estudo uma contraposiccedilatildeo aos autores que escreveram sobre o
periacuteodo colonial em que a roccedila ainda era marcada por um processo de exploraccedilatildeo
itinerante Ainda que haja um revezamento da roccedila no campesinato sergipano estudado
por Woortmann e Woortmann (1997) percebe-se um processo sedentaacuterio de produccedilatildeo
Assim como ressaltado pelos pesquisadores discutidos anteriormente
Woortmann e Woortmann (1997) tambeacutem demonstraram que o chatildeo de roccedila aleacutem de
produzir o cultivo tambeacutem era um espaccedilo de aprendizado do trabalho agriacutecola pelos
jovens sitiantes como revela a seguinte passagem ldquoO chatildeo de roccedila portanto natildeo
produz apenas agricultura mas tambeacutem agricultores na medida em que eacute um lsquocampo de
treinamentorsquo para futuros sitiantesrdquo (WOORTMANN WOORTMANN 1997 p 70)
Segundo os autores este espaccedilo de aprendizado correspondia ao roccediladinho descrito por
Garcia Juacutenior (1983) e Heredia (1979) a respeito do campesinato pernambucano Nesse
sentido a descriccedilatildeo do aprendizado do trabalho pelos filhos dos camponeses de
Woortmann e Woortmann (1997) se mostra bastante parecida com aquela relatada por
Heredia (1979) e Garcia Juacutenior (1983) e por isso natildeo seraacute reproduzida aqui
31
Woortamann e Woortmann (1997) tambeacutem identificaram que a roccedila era uma
antonomaacutesia para milho e feijatildeo embora fossem encontradas nela outros produtos de
cultivo Tambeacutem identificaram o processo de consorciamento (associaccedilatildeo) dos cultivos
bem como as aacutervores frutiacuteferas (lavoura permanente aacutervore ou peacute de pau) geralmente
no espaccedilo do quintal referido no campesinato pernambucano como terreiro
Interessante notar uma significaccedilatildeo dada pelos autores a um dos sistemas de
consorciamento que denominam de ldquomicro ecossistema da roccedilardquo Destaca-se ainda
como contribuiccedilotildees desses autores o aspecto cultural e simboacutelico que Woortmann e
Woortmann (1997) atribuiacuteram agrave roccedila
Para sitiantes ou caboclos como tambeacutem para os Ilongot como mostra Renato Rosaldo a leitura das roccedilas eacute uma forma de construccedilatildeo do tempo cada roccedila eacute a expressatildeo de um periacuteodo O conjunto das roccedilas eacute a histoacuteria do grupo Mas a leitura da roccedila e do espaccedilo onde ela se faz tem ainda outro sentido histoacuterico ela eacute tal como no Meacutexico a leitura da subordinaccedilatildeo Para os camponeses mexicanos ao nobre e depois ao branco para os sitiantes aos proprietaacuterios Para os sitiantes a roccedila sempre expressa o trabalho e este o domiacutenio sobre a terra (WOORTMANN WOORTMANN 1997 p 149)
Nesta passagem pode-se perceber que a roccedila natildeo expressa somente um fator de
produccedilatildeo e a garantia de sobrevivecircncia do grupo domeacutestico mas ela eacute constitutiva do
proacuteprio grupo Acreditava-se que a roccedila constituiacutea o grupo domeacutestico natildeo somente
enquanto meio para a sua reproduccedilatildeo social mas tambeacutem como capaz de construir
simbolicamente esse grupo por meio da memoacuteria Essa afirmaccedilatildeo tambeacutem pode ser
compreendida quando Woortmann e Woortmann (1997) ao descreverem a divisatildeo do
trabalho familiar por gecircnero referem-se ao trabalho na roccedila como um ldquoprocesso
construtor de gecircnerordquo
Em um trabalho mais recente Brandatildeo (2009) dedicou-se parcialmente a uma
descriccedilatildeo do papel da roccedila no campesinato goiano O autor introduz uma nova leitura de
pares de opostos sobre a roccedila ao afirmar que para os camponeses ela revelaria o
confronto entre o ldquotempo antigordquo e os ldquodias de hojerdquo aleacutem de revelar uma relaccedilatildeo
vertical e horizontal ou seja esse confronto remete-se agrave questatildeo agraacuteria e agrave relaccedilatildeo
entre os proprietaacuterios como revelam as expressotildees ldquoroccedilas do fazendeirordquo e ldquoroccedilas de
meiardquo ldquoroccedila granderdquo e ldquoroccedila virgemrdquo O autor destaca tambeacutem a existecircncia das ldquoroccedilas
de tocordquo ou seja pequenas lavouras sazonais abertas em terras cultivaacuteveis sobre
espaccedilos de matas derrubadas Eram assim chamadas pois natildeo eram feitas destocas
32
derrubavam-se as matas queimavam-se os galhos e troncos de aacutervores (tocos) Nas
pequenas roccedilas de toco eram produzidos o arroz o milho e o feijatildeo O trabalho na roccedila
foi descrito pelos entrevistados como ldquotocar roccedilardquo Brandatildeo (2009) em uma nota de
rodapeacute que poderia passar despercebida reproduz a fala de uma camponesa que relata
ldquoter nascido e se criado na roccedilardquo usando roccedila para designar o lugar e a cultura em que
se vive
A descriccedilatildeo da categoria roccedila ou roccedilado nos estudos sobre o campesinato no
Brasil permite uma anaacutelise mais acurada da roccedila numa perspectiva microssocioloacutegica
cuja unidade de anaacutelise eacute a famiacutelia camponesa No que tange ao que foi descrito como
roccedila no Brasil Colocircnia a roccedila camponesa continuou com um espaccedilo eminentemente de
produccedilatildeo particularmente de gecircneros alimentiacutecios representados pela triacuteade mandioca
milho e feijatildeo muitas vezes sendo referidos como antonomaacutesia de roccedila embora
estivessem presentes outros produtos tambeacutem
As mudanccedilas ou nuances identificadas relacionam-se ao fato de a roccedila
camponesa continuar garantindo o sustento familiar mas deixando de ter um papel
preponderante no abastecimento local do seu entorno tornando-se ao que parece
isolada ou pelo menos marginalizada Outro aspecto a se considerar eacute a maneira como
a roccedila estrutura a vida camponesa determinando os papeis de gecircnero e geraccedilatildeo dentro
do grupo domeacutestico Esses papeacuteis centrados no patriarcalismo revelam um processo de
hierarquizaccedilatildeo social interna na famiacutelia camponesa Mas a hierarquia social tambeacutem
comeccedila a ser exposta em relaccedilatildeo agrave comunidade externa agrave famiacutelia camponesa tanto no
que concerne agrave produccedilatildeo (autoconsumo versus comercializaccedilatildeo) quanto em relaccedilatildeo agrave
estrutura fundiaacuteria e agrave posse da terra Possivelmente esse dado relativo ao tamanho da
propriedade agrave sua funccedilatildeo ao tipo de matildeo de obra empregado e agrave propriedade ou agrave posse
do terreno tenha se consolidado e se evidenciado a partir da Lei de Terras de 1850 que
instituiu o acesso agrave terra a partir da sua alienaccedilatildeo deslegitimando os processos de
ocupaccedilatildeo da mesma ateacute entatildeo recorrentes na histoacuteria brasileira Eacute provaacutevel que estas
questotildees estejam tambeacutem no cerne da ideia de subordinaccedilatildeo que autores como Queiroz
(1973) ressaltam como condiccedilatildeo camponesa estando relacionada aos sistemas de
posse parceria e trabalho agregado nas grandes fazendas Embora as roccedilas marginais agraves
lavouras monocultoras jaacute fossem realidade no Brasil Colocircnia e a instabilidade da
situaccedilatildeo dos roceiros jaacute tivesse sido relatada pelos autores consultados a subordinaccedilatildeo
do roceiro a um senhorio parece tomar outras dimensotildees a partir da propriedade da
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terra em 1850 Por outro lado a roccedila ganha outras conotaccedilotildees simboacutelicas relacionadas
natildeo soacute ao ciclo de vida da famiacutelia como no caso dos membros masculinos com os
rituais de passagem da infacircncia a vida adulta mas tambeacutem de histoacuteria memoacuteria e
posse da terra
Nota-se ainda a importacircncia das roccedilas nos bairros rurais Entretanto as suas
caracteriacutesticas de agricultura itinerante parecem oscilar com situaccedilotildees de uma
exploraccedilatildeo agriacutecola mais permanente que reaproveita o espaccedilo utilizado da roccedila com
produccedilotildees rotativas e consorciamento Os estudos do campesinato tambeacutem permitem
compreender por meio das descriccedilotildees de etapas do processo produtivo e sua relaccedilatildeo
com a pecuaacuteria por exemplo a roccedila como um sistema agriacutecola Para sintetizar essas
comparaccedilotildees representa-se no diagrama abaixo as mudanccedilas e permanecircncias dos
sentidos e usos de roccedila no Brasil Colocircnia e no campesinato
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QUADRO 1 ndash Caracteriacutesticas da roccedila no Brasil Colocircnia e no campesinato no Brasil Repuacuteblica
BRASIL COLOcircNIA CAMPESINATO Empreendimento
Expediccedilotildees de descobrimentos Bandeiras Agricultura marginal ao engenho currais de
gado minas Bairro rural caipira Pequena produccedilatildeo familiar
Empreendimento Pequena produccedilatildeo familiar
(camponecircs colono ou sitiante) Bairro rural caipira
Produccedilatildeo Gecircneros alimentiacutecios mandioca milho
feijatildeo aboacutebora Matildeo de obra escravos homens livres
(brancos pobres ou negros alforriados) agregados e parceiros
Produccedilatildeo Gecircneros alimentiacutecios mandioca
milho feijatildeo Matildeo de obra famiacutelia camponesa
(proprietaacuterios posseiros agregados e parceiros)
Consumo Autoconsumo ou subsistecircncia Abastecimento local (engenho curral de
gado minas cidades vizinhas)
Consumo Preponderacircncia do autoconsumo ou
subsistecircncia Abastecimento local (fazenda
monocultura agregados e parceiros) ou comercializaccedilatildeo externa para cidades e vilas
Teacutecnica indiacutegena Derrubada do mato e queimada Cultivo de mandioca milho feijatildeo aboacutebora Processo itinerante
Teacutecnica indiacutegena Derrubada do mato coivara
capoeira chatildeo de roccedila malhada pastou ou pousio
Cultivo de mandioca milho e feijatildeo Processos itinerante e de
rotaccedilatildeoassociaccedilatildeodescanso Como um dos elementos estruturantes da
vida rural Roceiros Casas da roccedila Gente da roccedila Povoamento na roccedila Roccedila versus cidadevilavida urbana Sinocircnimo de rural
Estruturaccedilatildeo da famiacutelia camponesa Estruturaccedilatildeo interna hierarquia de
gecircnero e geraccedilatildeo Estruturaccedilatildeo externa hierarquia
social com base na possepropriedade da terra produccedilatildeo e consumo subordinaccedilatildeo social e poliacutetica
Identificadores e marcadores sociais Autonomizaccedilatildeo isolamento e
marginalizaccedilatildeo do campesinato
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
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13 Usos e significados do termo roccedila em textos contemporacircneos
Nos estudos sobre o campesinato a roccedila serve para classificar os grupos rurais
em termos hieraacuterquicos uma vez que aqueles que estabelecem roccedilas satildeo em geral
pequenos produtores rurais familiares que produzem para autoconsumo As roccedilas satildeo
compostas por plantaccedilotildees de milho feijatildeo e mandioca que muitas vezes satildeo
designadas pelo vocaacutebulo roccedila embora outras espeacutecies tambeacutem possam ser nela
cultivadas Assim no campesinato roccedila eacute considerada como uma categoria central de
trabalho definidora da famiacutelia camponesa classificadora de sua situaccedilatildeo social no
campo Por meio da roccedila cumpre-se a funccedilatildeo de classificar as pessoas especialmente
por criteacuterios de gecircnero e geraccedilatildeo baseando-se nas funccedilotildees que cada membro familiar
nela exerce O processo produtivo a propriedade da terra as possibilidades de
mobilidade tambeacutem se relacionam estritamente com a roccedila como se pocircde perceber nos
estudos do campesinato
Mas seraacute que essas hierarquias sociais que passam a marcar a organizaccedilatildeo social
em torno da roccedila se reproduziriam em outros contextos O que diz a bibliografia
contemporacircnea a esse respeito Na Sociologia Rural o termo roccedila natildeo tem sido
utilizado de forma recorrente como uma categoria de pensamento que permite
compreender fenocircmenos da vida rural no Brasil Entretanto alguns textos se dedicaram
a essa discussatildeo ora utilizando roccedila como uma categoria central de anaacutelise ora como
variaacutevel ou pano de fundo para outras discussotildees Nesse sentido alguns dos textos
contemporacircneos aqui analisados que tratam do vocaacutebulo roccedila contribuiacuteram para se
verificar como os seus usos e sentidos se reproduziram ou foram ressignificados nos
uacuteltimos anos
Inicia-se esta perspectiva apresentando os argumentos de Oliveira M (2012 p
758) que se dedicou a discutir a categoria roccedila dentro da formaccedilatildeo rural brasileira O
autor afirma que nos textos por ele lidos sobre o assunto roccedila eacute tida como um
brasileirismo A palavra roccedila eacute de origem portuguesa (MARTINS J 2014) mas entre
os indiacutegenas brasileiros o haacutebito do cultivo de determinados alimentos especialmente a
mandioca foi logo adotado pelos colonizadores que denominaram tal praacutetica de roccedila
Segundo Oliveira M (2012 p 758-759) a roccedila eacute praticada no Brasil pelo ldquolavrador
ou roceirordquo que de acordo com ele tambeacutem eacute chamado de ldquocaipira capiau matuto
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tabareacuteu e vazanteirordquo O autor destaca o caraacuteter pejorativo com que esses termos satildeo
empregados em muitos contextos sociais com o intuito de inferiorizar o homem do
campo principalmente num processo de hierarquizaccedilatildeo em que a gente da cidade
estaria colocada em posiccedilatildeo de superioridade
Nesse sentido o estudo de Rios (2011) eacute particularmente interessante por trazer
o termo roccedila agrave tona relacionando-o a um expliacutecito processo de hierarquizaccedilatildeo da cultura
rural no Brasil A autora analisou recentemente no interior da Bahia como alunos e
alunas provenientes da roccedila construiacuteam representaccedilotildees de suas identidades e como as
praacuteticas discursivas escolares intervinham nesse saber Rios (2011) ressalta o choque
entre as histoacuterias de vida e as praacuteticas discursivas de seus alunos e alunas que viviam na
roccedila e as praacuteticas discursivas escolares e o processo etnocecircntrico e hieraacuterquico que
permeava essa relaccedilatildeo Para a autora
Para muitos alunos e alunas ndash inclusive para alguns oriundos da roccedila ndash ser da roccedila significa ser inferior ignorante ser de outro grupo possuir outra linguagem e acima de tudo ser diferente sendo esta semioacutetica da diferenccedila construiacuteda negativamente por meio da exclusatildeo e da marginalizaccedilatildeo fruto de todo um processo histoacuterico construiacutedo tambeacutem pela proacutepria instituiccedilatildeo escolar (RIOS 2011 p 14)
Rios (2011) ressalta ainda que na regiatildeo onde realizou seu estudo em Piemonte
da Chapada no interior da Bahia o uso do vocaacutebulo roccedila passa por uma
(des)construccedilatildeo histoacuterica do lugar da terra da negaccedilatildeo dos sujeitos de seus saberes e
linguagens A autora observou em diversas circunstacircncias nas pequenas cidades da
regiatildeo como o termo roccedila era tomado como um ldquonatildeo-lugarrdquo na perspectiva de Augeacute
(2004) Rios (2011) faz referecircncia aos estudos de Santos F (2006) ao assumir o termo
roccedila como uma categoria nativa que carregaria uma polissemia e uma construccedilatildeo
histoacutericaepistemoloacutegica no cotidiano dos alunos e alunas estudados(as)
Para Santos F (2006) na regiatildeo do Recocircncavo Sul da Bahia roccedila teria a
equivalecircncia de rural O autor ressalta que para realizar o seu estudo a respeito dos
alunos provenientes da roccedila precisou alccedilar esse termo ao status de categoria teoacuterica
Mas na falta de uma bibliografia que o legitimasse jaacute que aquelas disponiacuteveis segundo
ele negligenciavam as particularidades de ruralidades especiacuteficas Santos F (2006)
lanccedilou matildeo de uma pesquisa bibliograacutefica sobre a formaccedilatildeo histoacuterica do Recocircncavo
Baiano Nessa empreitada Santos F (2006) tambeacutem sistematizou a compreensatildeo da
populaccedilatildeo local sobre o lugar onde vivia e a maneira de se referir a ele como roccedila De
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acordo com este autor o processo histoacuterico de ocupaccedilatildeo das terras da regiatildeo pelos
colonizadores conferiu agrave roccedila ao longo do tempo uma conotaccedilatildeo depreciativa por se
tratar de pequenas propriedades cuja posse se deu por formas marginais e assimeacutetricas
em relaccedilatildeo ao grande proprietaacuterio Assim Santos F (2006) aplica essas categorias para
a estrutura agraacuteria do Recocircncavo Baiano
A distinccedilatildeo entre fazenda e roccedila parece tornar-se mais clara quando substantivada Fala-se em ldquofazenda de gadordquo ldquode cacaurdquo ldquode cafeacuterdquo (esta em menor importacircncia hoje mas muito forte no passado regional) mas natildeo se fala em ldquofazenda de mandiocardquo ldquode laranjardquo ldquode bananardquo ldquode feijatildeordquo ldquode melanciardquo ldquode amendoimrdquo estas satildeo roccedilas (SANTOS F 2006 p 87)
Nesse sentido Santos F (2006) assume a relaccedilatildeo entre roccedila e (os tipos de)
lavoura fazendo inclusive uma digressatildeo histoacuterica ao demonstrar a origem da palavra
na regiatildeo do Recocircncavo Baiano Poreacutem quando se trata do roccedilado (ato de derrubar
matas e preparar uma aacuterea para cultivo) Santos F (2006) destaca sua perspectiva
fundiaacuteria
Para sintetizar as discussotildees apresentadas anteriormente consideremos primeiramente que as pequenas lavouras de subsistecircncia que marcam a formaccedilatildeo histoacuterica do Recocircncavo explicam por que o termo roccedila eacute tatildeo utilizado nesta regiatildeo e em particular no municiacutepio de Amargosa Esta talvez seja a regiatildeo do Brasil onde este termo tem uso mais frequente A preponderacircncia de matas no Recocircncavo colonial fator que exigiu constantes (re)aberturas de roccedilados para o cultivo das lavouras nesta regiatildeo que foi durante seacuteculos o palco principal da colonizaccedilatildeo brasileira bem como a grande existecircncia de pequenas propriedades destinadas agrave agricultura de subsistecircncia (roccedilas) satildeo fatores que contribuiacuteram para a disseminaccedilatildeo da ldquoexpressatildeordquo roccedila na Bahia e mesmo no Nordeste onde por vezes o termo assume a equivalecircncia de ldquoruralrdquo Mas eacute preciso registrar que quando o termo assume o sinocircnimo de rural (ldquoEu moro na roccedilardquo ldquoEle foi para a roccedilardquo) natildeo se trata nestes casos de um rural qualquer de um rural geneacuterico A roccedila eacute um rural especiacutefico um rural retalhado em pequenas ou mesmo minuacutesculas propriedades destinadas agrave agricultura de subsistecircncia Propriedade lugar de trabalho de labuta onde em conjunto a famiacutelia lavra a terra e dali tira o seu sustento e ao mesmo tempo plantaccedilatildeo fruto da lavra da terra lavoura a roccedila eacute digamos o paradigma de uma forma de vida marginal que define as populaccedilotildees rurais empobrecidas do Recocircncavo excluiacutedas das benesses da modernidade que soacute chega agraves fazendas versatildeo atualizada dos antigos engenhos que outrora deram riqueza e fama ao Recocircncavo (SANTOS F 2006 p 92 grifo do autor)
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Santos F (2006) relata que inicialmente na histoacuteria da formaccedilatildeo agraacuteria do
Recocircncavo a roccedila era a aacuterea de terra destinada ao cultivo e agrave plantaccedilatildeo dela resultante
Entretanto segundo ele o processo histoacuterico de fragmentaccedilatildeo das propriedades em
domiacutenios cada vez menores fruto das heranccedilas e sucessotildees levaram agrave correspondecircncia
entre roccedila como aacuterea de cultivo e como pequena propriedade Daiacute que para as
populaccedilotildees rurais simples do Recocircncavo roccedila tem o significado de propriedade terreno
e tambeacutem tem o sentido de rural Conforme indica este autor percebe-se portanto um
processo de metoniacutemia em que roccedila tida como aacuterea da lavoura vai se tornando
sinocircnimo de rural Entretanto natildeo de um rural generalizado mas especiacutefico qual seja
da pequena propriedade natildeo tendo a mesma conotaccedilatildeo para se referir agrave fazenda ou ao
engenho Para Santos F (2006) inclusive o caraacuteter pejorativo que roccedila recebe nessa
regiatildeo estaria relacionado agrave sua submissatildeo agrave fazenda e ao engenho e ao status de uso e
natildeo de posse da terra sendo portanto uma categoria inferior em relaccedilatildeo agrave fazenda e ao
engenho
De forma divergente Martins J (2014) contrapotildee os vocaacutebulos roccedila e ldquotaperardquo
Segundo ele roccedila eacute uma palavra de origem portuguesa utilizada para designar terra
cultivada e ldquotaperardquo de origem nhengatu refere-se agrave terra que jaacute foi habitada cultivada
e encontra-se em pousio portanto em espera O que diferencia sua interpretaccedilatildeo da de
Santos F (2006) entretanto eacute a sua afirmaccedilatildeo de que roccedila faria parte tanto do
vocabulaacuterio dos ricos quanto dos pobres enquanto ldquotaperardquo compunha apenas o
vocabulaacuterio dos pobres (MARTINS J 2014 p 11) Provavelmente esta afirmaccedilatildeo de
Martins J (2014) tem a ver com a sua assertiva de que antes da Lei de Terras de 1850
no Brasil que instituiu a posse e a alienaccedilatildeo da terra fazenda era todo produto do
trabalho humano o que incluiacutea a terra cultivada ou seja a roccedila Fazenda ateacute entatildeo natildeo
teria a conotaccedilatildeo moderna de propriedade fundiaacuteria e mais ainda de latifuacutendio Era
cultivo e natildeo posse podendo portanto coincidir com roccedila
Assim na literatura recente que se produziu acerca do termo roccedila percebe-se a
sua referecircncia histoacuterica Na verdade os textos contemporacircneos corroboram com
algumas ideias apresentadas pela literatura mais antiga a respeito do termo roccedila
principalmente a sua constituiccedilatildeo a partir da abertura de matas para o plantio de
lavouras para o sustento Nota-se que num primeiro momento as roccedilas eram apenas a
lavoura fruto do trabalho e atendia indiscriminadamente agraves pequenas e grandes
propriedades os empreendimentos mais tiacutemidos e aqueles mais ambiciosos Mas o
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processo de estruturaccedilatildeo fundiaacuteria cuja Lei de Terras de 1850 eacute indicada como
mecanismo central parece ter conduzido o uso do termo roccedila cada vez mais em direccedilatildeo
agrave pequena propriedade de uso familiar sem posse formal voltada para o autoconsumo
estando agraves vezes agraves margens das grandes exploraccedilotildees agriacutecolas e das cidades
Concomitantemente os seus sentidos vatildeo ganhando conotaccedilotildees pejorativas e o seu uso
vai servindo para classificar as pessoas num processo de hierarquizaccedilatildeo social natildeo
somente no campo mas tambeacutem na cidade
Variavelmente entretanto destaca-se o trabalho recente de Carvalho e Sabino
(2013) que faz uso da categoria roccedila apresentando outra significaccedilatildeo deste termo
utilizado por grupos oriundos da camada meacutedia urbana da cidade do Rio de Janeiro
considerados por eles naturalistas ou seja adeptos da ldquoalimentaccedilatildeo natural vegan e
alimentaccedilatildeo vivordquo (CARVALHO SABINO 2013 p 15) Na visatildeo destes naturalistas
cariocas a roccedila eacute por eles classificada numa oposiccedilatildeo binaacuteria agrave cidade numa
perspectiva que os autores consideram neorromacircntica idiacutelica e ressacralizadora da
natureza Para estes consumidores de alimentos naturais o modo de vida no campo
traduzido por eles como roccedila eacute considerado puro saudaacutevel positivo e feliz em
contraposiccedilatildeo agrave cidade vista como suja impura negativa insalubre O alimento da
roccedila assim para estes grupos traduziria uma visatildeo de mundo e um estilo de consumo
praacuteticas alimentares e comensalidade adotadas em suas vidas cotidianas e consideradas
por eles como naturais No entanto os autores revelam uma postura criacutetica ao
perceberem a sacralizaccedilatildeo da cultura popular e da roccedila pelas camadas meacutedias urbanas
como um processo de legitimaccedilatildeo do discurso dominante de classe a respeito da poliacutetica
de sauacutede e nutricional Haveria para Carvalho e Sabino (2013) nesse sentido uma
romantizaccedilatildeo da pobreza do campo por parte da populaccedilatildeo urbana de classe meacutedia que
embora reverencie e siga algumas praacuteticas alimentares da roccedila natildeo se desvincularia
totalmente do seu modo de vida urbano Apesar do cunho criacutetico o trabalho de
Carvalho e Sabino (2013) eacute aquele que mais se aproxima dos novos significados do
termo roccedila entre alguns grupos sociais contemporacircneos que eacute objeto de estudo desta
tese
Embora nos textos sobre o periacuteodo colonial jaacute se sugira que o vocaacutebulo roccedila
tendia a ser usado para se referir ao campo e agrave cultura rural nos textos mais recentes
sobretudo no de Santos F (2006) e no de Rios (2011) roccedila aparece como sinocircnimo de
rural Entretanto os autores destacam que roccedila natildeo seria a metoniacutemia de um rural
40
generalizado mas de um rural popular camponecircs familiar tiacutepico da pequena
propriedade Assim a evoluccedilatildeo do termo roccedila conforme se representa no diagrama
seguinte teria sofrido uma sintetizaccedilatildeo nos uacuteltimos anos
FIGURA 6 ndash Caracteriacutesticas da roccedila no Brasil Contemporacircneo
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
14 Usos e significados do termo roccedila em textos natildeo acadecircmicos
De acordo com Paixatildeo (2006) no poema A roccedila Varella (1892) incorpora o
bucolismo (descriccedilatildeo da vida campestre e pastoril) e a esteacutetica romacircntica tratando a
roccedila como uma paisagem imaginaacuteria Em termos comparativos destaca-se como o
escritor Alves (2005) natural da cidade de Boa Esperanccedila no sudoeste de Minas
Gerais em seu livro dedica uma seccedilatildeo de suas crocircnicas intitulada A roccedila agraves memoacuterias
de sua infacircncia na roccedila A primeira crocircnica dessa seccedilatildeo tambeacutem se chama A roccedila e a
uacuteltima Adeus agrave roccedila A roccedila a que se refere Alves (2005) nessas crocircnicas eacute utilizada
como sinocircnimo de rural englobando o campo a lavoura mas tambeacutem uma cultura
proacutepria dos que vivem no campo O autor fala das casas dos quintais dos animais das
brincadeiras das crianccedilas dos sentimentos da relaccedilatildeo com quem vivia fora do campo
dos remeacutedios caseiros da organizaccedilatildeo da vida domeacutestica da dificuldade de acesso agrave
ROCcedilA =
SIacuteTIO CAMPO RURAL
Pequena propriedade (uso e natildeo
posse)
Lavoura
Produccedilatildeo para autoconsumo
Matildeo de obra familiar
41
informaccedilatildeo Ou seja o escritor descreve uma cultura um modo de vida que denota a
vivecircncia no campo traduzida por ele pelo termo roccedila
Guardadas as devidas proporccedilotildees esteacuteticas que natildeo vecircm ao caso neste trabalho
percebe-se uma possiacutevel diferenccedila de significaccedilatildeo do termo roccedila nas obras de Alves
(2005) e Varella (1892) O primeiro relata um cenaacuterio que existiu enquanto o segundo
cria uma representaccedilatildeo De acordo com Paixatildeo (2006) o poema de Varella (1892) faz
uma descriccedilatildeo generalista da paisagem rural de maneira decorativa e ornamental natildeo se
referindo a nenhum lugar especiacutefico o autor natildeo estaacute falando da proacutepria infacircncia
descrevendo o rural a partir de um ponto de vista subjetivo Para esse criacutetico literaacuterio
este seria um traccedilo que poderia identificar Varella (1892) com a esteacutetica do
individualismo romacircntico proacuteprio agrave cultura romacircntica vigente no Brasil no seacuteculo XIX
Destaca-se tambeacutem alguns textos narrativos que embora natildeo sejam
estritamente acadecircmicos foram construiacutedos com base em informaccedilotildees documentais
escritas e orais como no caso do livro Setuacutebal (2005) Neste texto a autora se dedica a
traccedilar aspectos da identidade cultural que constitui o caipira do interior paulista
valorizando a sua diferenccedila e tentando desconstruir estereoacutetipos histoacutericos acerca desse
tipo social A abordagem de Setuacutebal (2005 p 94) para configurar a cultura caipira
paulista eacute expressa nos seguintes elementos ldquoterra natureza e vida na roccedila
simplicidade no modo de ser e nos costumes linguajar caipira religiosidade
misticismo destino as diferentes dimensotildees do tempo as tradiccedilotildees as festas e o lazerrdquo
Nestas passagens Setuacutebal (2005) faz referecircncias agrave roccedila ligando-a
principalmente a um modo de vida proacuteprio em termos dos costumes da liacutengua da
religiosidade e das dimensotildees do tempo Nesse sentido pode-se inferir que ao tratar do
modo de vida caipira a autora constitua uma relaccedilatildeo entre este e a roccedila Em
complemento agraves suas visotildees a autora cita uma seacuterie de depoimentos de indiviacuteduos
entrevistados em cidades do interior do Estado de Satildeo Paulo cujas falas fazem menccedilatildeo
agrave roccedila vez por outra Nas expressotildees dos entrevistados por Setuacutebal (2005) a roccedila
aparece sempre como referecircncia ao lugar onde se nasceu e se foi ldquocriadordquo O lugar eacute um
elemento importante em suas falas que costumam fazer analogia entre a roccedila e o mato
o siacutetio o bairro e o interior Por outro lado para os entrevistados a roccedila enquanto lugar
com modo de vida tiacutepico daria origem a tipos sociais determinados que chamam de
roceiro agricultor caboclo homem do mato aleacutem da analogia mais comum entre ser
caipira e ser da roccedila utilizada quase como sinocircnimos ldquocaipira da roccedilardquo ldquocaipira satildeo
42
pessoas criadas na roccedilardquo e ldquovida de caipira na roccedilardquo (SETUacuteBAL 2005 p 89 90 96 e
100) Os depoimentos tambeacutem fazem alusatildeo ao trabalho na roccedila implicitamente agrave
lavoura e a uma linguagem proacutepria das pessoas da roccedila
Da mesma forma a jornalista Nepomuceno (1999) usa de dados documentais
orais e escritos para construir uma narrativa na qual traccedila uma trajetoacuteria da muacutesica
caipira e sertaneja no Brasil a partir da histoacuteria de vida de alguns de seus principais
compositores e cantores O sugestivo tiacutetulo de seu livro Muacutesica caipira da roccedila ao
rodeio jaacute sugere ao seu trabalho uma perspectiva histoacuterica Nesse sentido a roccedila eacute por
ela apresentada como um dos polos no caso a origem dessa perspectiva diacrocircnica
cujo oposto complementar seria o rodeio No texto de Nepomuceno (1999) a roccedila eacute
apresentada como o ldquoantigamenterdquo o espaccedilo rural de onde saiacuteram vaacuterios cantores e
compositores brasileiros rumo agrave ldquocidade granderdquo mas tambeacutem como um modo de vida
uma cultura bastante peculiar que em sua narrativa teria um tempo histoacuterico proacuteprio
Assim a roccedila seria o ldquoantigordquo e o ldquotradicionalrdquo em oposiccedilatildeo ao ldquomodernordquo ao
ldquoracionalrdquo e ao ldquotecnificadordquo associado ao rodeio O rodeio no texto da jornalista eacute
interpretado como uma metoniacutemia das festas de peatildeo das exposiccedilotildees agropecuaacuterias
elaboradas pela induacutestria cultural apresentando estreita relaccedilatildeo com o mercado de luxo
e fortuna do country e agribusiness conforme demonstram os trabalhos de Alem (1996)
e De Paula (1998 1999 2001) que seratildeo discutidos adiante Mas a oposiccedilatildeo roccedila
versus rodeio tambeacutem parece sugerir uma oposiccedilatildeo entre campo e ldquocidade granderdquo esta
uacuteltima tambeacutem aparecendo em contraste com outros pares utilizados pela autora como
fazenda e interior Assim Nepomuceno (1999) utiliza diferentes referecircncias como
sinocircnimas ou pelo menos correlatos como roccedila sertatildeo interior Destaca-se ainda em
seu texto como alguns sentimentos satildeo relacionados ao vocaacutebulo roccedila como paz
aconchego e nostalgia Como a autora usa a expressatildeo roccedila para se referir agrave origem da
muacutesica caipira mas tambeacutem de seus cantores e compositores ela tambeacutem se refere a ela
como a lavoura e o trabalho
Neste contexto vaacuterios compositores da muacutesica popular brasileira se dedicaram agrave
temaacutetica da roccedila em suas canccedilotildees para aleacutem daqueles relacionados ao gecircnero musical
ldquocaipirasertanejordquo para o qual a temaacutetica rural eacute recorrente (ALLONSO 2012
OLIVEIRA A 2009) Eacute possiacutevel encontrar canccedilotildees de gecircneros como o samba o rock
o reggae o baiatildeo que tambeacutem aludem agrave roccedila Artistas consagrados nesses gecircneros
musicais no Brasil jaacute compuseram ou interpretaram muacutesicas nas quais o vocaacutebulo roccedila
43
aparece como Cartola Luiz Gonzaga Gilberto Gil ou Martinho da Vila Algumas
muacutesicas se referem agrave roccedila a partir da construccedilatildeo de uma narrativa referente a um sujeito
que vive na cidade e almeja retornar agrave roccedila como na canccedilatildeo Vou pra roccedila de Luiz
Gonzaga e Zeacute Ferreira interpretada pelo primeiro ou na muacutesica homocircnima de Victor e
Leacuteo (composta por Victor) no reggae de Daniel Profeta Viver na roccedila o que confere
um tom idiacutelico e nostaacutelgico agrave narrativa Em outras canccedilotildees percebe-se uma esteacutetica
realista sobre a roccedila ao se referir a ela como lavoura como em Feriado na roccedila de
Cartola ou Madalena de Gilberto Gil e Isidoro A tradiccedilatildeo em termos de costumes de
um determinado grupo pode ser percebida em muacutesicas que tratam da cultura na roccedila
suas festas suas danccedilas as atividades da vida cotidiana como exemplificam as muacutesicas
Baile na roccedila e Festa na roccedila compostas por Tinoco e Nadir e interpretadas pela
claacutessica dupla de muacutesica caipira Tonico e Tinoco Notam-se tambeacutem algumas
referecircncias a uma moral e a um comportamento tiacutepico das pessoas da roccedila em muacutesicas
como Laacute na roccedila de Candeia e Alvarenga cantada por Martinho da Vila Caipira de
Joel Marques e Maracaiacute famosa nas vozes da dupla Chitatildeozinho amp Xororoacute ou Filho da
roccedila de Zeacute do Rancho interpretada por Zico e Zeca nas quais o ponto de vista pessoal e
o mote da moralidade denotam uma perspectiva romacircntica do compositor Nesses
contextos haacute narrativas musicais que questionam o estereoacutetipo negativo agraves vezes
atribuiacutedo ao indiviacuteduo identificado a uma cultura rural da roccedila bem como a exaltaccedilatildeo
de um ldquoruralismo idiacutelicordquo como no poema de Varella (1892) conforme a anaacutelise de
Paixatildeo (2006) Nessas muacutesicas o que se destaca aleacutem da diversidade de sentidos eacute o
uso do termo roccedila e natildeo ldquocampordquo ou mesmo ldquoruralrdquo para se referir a um lugar e a um
estilo de vida caracteriacutesticos
Se nos gecircneros artiacutesticos da cultura popular brasileira identificam-se um
conjunto de obras musicais ou literaacuterias que se refere agrave roccedila o mercado de produtos e
serviccedilos por meio das suas marcas tambeacutem contribui para a construccedilatildeo desses sentidos
diversos para o termo roccedila Eacute possiacutevel identificar uma seacuterie de produtos principalmente
alimentiacutecios que traz no roacutetulo a palavra roccedila Tais produtos podem ser agriacutecolas
agroindustriais ou industriais Feijatildeo da Roccedila Cachaccedila da Roccedila ou Pizza da Roccedila satildeo
exemplos dessas marcas O setor de entretenimento tambeacutem faz uso da marca roccedila
Restaurantes lanchonetes cafeterias pousadas hoteacuteis eventos de cultura e lazer
gastronomia e turismo que exploram o nome roccedila se constituem em alguns dos
exemplos de um conjunto consideraacutevel de estabelecimentos de prestaccedilatildeo de serviccedilos e
44
de comercializaccedilatildeo de produtos Embora muitos desses estabelecimentos possam estar
situados no campo dando a este uma nova funcionalidade aleacutem da produccedilatildeo agriacutecola
como bem explicam as discussotildees sobre o novo rural brasileiro (SILVA J 1997) ou a
nova ruralidade (CARNEIRO 1998) tambeacutem podem ser encontrados na cidade ou
mesmo em metroacutepoles
Aleacutem desse mercado de bens e serviccedilos haacute a induacutestria de entretenimento com
programas veiculados na televisatildeo e os eventos como rodeios exposiccedilotildees
agropecuaacuterias e festivais musicais que utilizam o termo roccedila como marca Algumas
afiliadas das principais emissoras de canal aberto da televisatildeo brasileira possuem
programas de entretenimento que veiculam o nome roccedila A emissora regional EPTV
afiliada agrave Rede Globo de Televisatildeo veicula um programa chamado Caminhos da Roccedila
10 anos a TV Cultura Vale do Accedilo em Minas Gerais apresenta o programa
Mineirinhos na Roccedila o Programa Cafeacute na Roccedila eacute produzido pela Tileoni Produccedilotildees e
exibido pelo canal TV Band Minas veiculado em Minas Gerais na TV aberta e em rede
nacional pela paraboacutelica Festa na Roccedila eacute exibido pelo canal regional TV Poccedilos da
Rede Minas e TV Cultura e para citar mais um entre outros o Cozinha da Roccedila do
programa Negoacutecios da Terra veiculado pela Rede Massa afiliada ao SBT Alguns
eventos musicais e de entretenimento tambeacutem apelam agrave roccedila em seus nomes a exemplo
dos festivais Roccedila lsquonrsquo Roll e tambeacutem o Roccedila in Rio Tanto os produtos que podem ser
consumidos e os serviccedilos acessados no contexto urbano que utilizam a marca roccedila
quanto os programas televisivos e os eventos de entretenimento citados levam a supor
um sentido estilizado ldquodesencaixadordquo de roccedila (GIDDENS 1991) Ou seja haveria um
distanciamento espaccedilo-temporal ao utilizar roccedila em contextos urbanizados industriais e
de modernidade tardia em relaccedilatildeo a todos os outros sentidos de roccedila aqui comentados
referentes agrave lavoura ao campo agrave cultura rural No miacutenimo nota-se uma possiacutevel
mistura entre sentidos romacircnticos tradicionais de apelo agrave memoacuteria naturalista com
aspectos modernos tecnoloacutegicos e mercadoloacutegicos
Os gecircneros artiacutesticos e publicitaacuterios aqui analisados permitem elucidar outros
usos e sentidos do termo roccedila que natildeo se resumem agravequeles jaacute registrados nos trabalhos
acadecircmicos brasileiros Pode-se observar que roccedila eacute agraves vezes utilizada como sinocircnimo
ou como forma de se referir ao campo e ao rural especialmente a partir de uma
perspectiva urbana sendo portanto relacional Nesse mesmo aspecto roccedila costuma
denotar nas peccedilas artiacutesticas aqui analisadas um comportamento tiacutepico um conjunto de
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preceitos morais e um estilo de vida com matizes tradicionais muitas vezes
contrastados com o modo de vida urbano Nos discursos artiacutesticos especialmente
literaacuterios a roccedila eacute descrita a partir de uma esteacutetica bucoacutelica e romacircntica em que
elementos relacionados agrave infacircncia agrave nostalgia ao idiacutelico satildeo ressaltados por seus
autores bem como na muacutesica o retorno ao campo agrave roccedila seja tema recorrente
No mercado de produtos e serviccedilos percebe-se ao mesmo tempo um
desencaixe das aplicaccedilotildees originais do termo roccedila e um arrojo em seus usos e sentidos
que ganham novas referecircncias e identificadores no contexto de uma cultura urbana
capitalista poacutes-moderna e globalizada que reinventa o que se pode tomar por roccedila Este
fenocircmeno parece ser um indicativo que possibilita a proposiccedilatildeo de que o rural tem
passado por um processo de reinvenccedilatildeo em que alguns de seus elementos satildeo
revalorizados e valorados em determinados segmentos na vida contemporacircnea
especialmente naqueles ligados ao consumo cultural Nas paacuteginas seguintes se
examinaraacute algumas dinacircmicas desse processo de transformaccedilatildeo do imaginaacuterio do rural
no Brasil e sua relaccedilatildeo com a produccedilatildeo e o consumo cultural para em seguida
verificar-se em que medida o uso e os significados do vocaacutebulo roccedila no mercado de
bens e serviccedilos seria um operador simboacutelico dessas mudanccedilas
15 A categoria roccedila face agrave problemaacutetica conceitual relativa ao rural
Como pocircde ser notado nas paacuteginas anteriores os diversos usos e significados
que envolvem o emprego do vocaacutebulo roccedila em diferentes contextos sociais e ao longo
da formaccedilatildeo histoacuterica brasileira possuem aspectos ambiacuteguos de hierarquizaccedilatildeo e ao
mesmo tempo de ressignificaccedilatildeo valorativa Estes aspectos podem ser percebidos na
sua dimensatildeo simboacutelica por meio da muacutesica da literatura da gastronomia dos
programas de entretenimento do discurso cotidiano das camadas populares no campo e
na cidade da classificaccedilatildeo social de pessoas como ldquojecasrdquo atrasados ou como
nostaacutelgicos de um mundo que jaacute foi melhor Mas o uso da expressatildeo roccedila tambeacutem pode
revelar as transformaccedilotildees objetivas que ocorrem na relaccedilatildeo entre o campo e a cidade
seja na esfera da produccedilatildeo e do consumo de produtos tais como alimentos orgacircnicos
naturais agroindustriais produtos com apelo tradicional ou artesanal seja no consumo
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de vestimentas mobiliaacuterio artesanato decoraccedilatildeo na esfera da geraccedilatildeo de renda e
ocupaccedilatildeo em atividades natildeo-agriacutecolas no campo no que se refere agraves atividades natildeo-
agriacutecolas com temaacutetica rural na cidade especialmente a partir dos anos 1980 periacuteodo
em que a emergecircncia de produtos e serviccedilos com a marca roccedila se expandiu
Observa-se assim que as mudanccedilas e permanecircncias que envolvem os usos e
significados da palavra roccedila no Brasil ao longo do tempo tecircm um paralelo com o
proacuteprio imaginaacuterio do rural natildeo soacute no Brasil mas tambeacutem em outros paiacuteses e outros
tempos histoacutericos Tanto os processos de inferiorizaccedilatildeo do rural como a sua mais
recente valorizaccedilatildeo estatildeo ligados agraves mudanccedilas referentes agrave relaccedilatildeo entre o campo e a
cidade Em termos conceituais as discussotildees sobre ldquocampo-cidaderdquo e ldquorural-urbanordquo
podem ser sintetizadas em cinco correntes teoacutericas fundamentais
1a perspectiva A dicotomia rural x urbano
Sorokin Zimmerman e Galpin (1986) contrapotildeem o rural e o urbano
estabelecendo como criteacuterio de diferenciaccedilatildeo desses espaccedilos a existecircncia ou ausecircncia de
alguns traccedilos tiacutepicos como a ocupaccedilatildeo da matildeo de obra da populaccedilatildeo as diferenccedilas
ambientais o tamanho das comunidades a densidade populacional a homogeneidade
ou heterogeneidade e a complexidade da estratificaccedilatildeo da mobilidade e da integraccedilatildeo
sociais A ocupaccedilatildeo da matildeo de obra era considerada o principal traccedilo que possibilitava a
diferenciaccedilatildeo entre estes espaccedilos para estes autores Para eles no campo a ocupaccedilatildeo da
matildeo de obra seria predominantemente agriacutecola em oposiccedilatildeo agrave cidade Este argumento eacute
atualmente contestado como um criteacuterio importante para definir o campo em virtude das
novas dinacircmicas produtivas e ocupacionais que caracterizariam as transformaccedilotildees no
campo contemporacircneo
Para Sorokin Zimmerman e Galpin (1986) no entanto a ocupaccedilatildeo agriacutecola eacute o
principal vetor que influenciaria as outras caracteriacutesticas O fato de os habitantes do
campo desenvolverem um trabalho agriacutecola os colocaria em contato direto com a
natureza diferenciando este espaccedilo da cidade O trabalho agriacutecola tambeacutem exigiria
comunidades menos populosas de maneira que os agricultores poderiam dispor de
maiores extensotildees de terra para cultivar Os autores tomavam ainda como criteacuterios
demarcatoacuterios entre o campo e a cidade o tamanho das comunidades consideradas
menores naquele a densidade populacional e a homogeneidade psicossocial das
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comunidades rurais Isto se deveria agrave suposta ocorrecircncia de uma reproduccedilatildeo e sucessatildeo
familiar dos agricultores no seu setor de ocupaccedilatildeo impedindo a inserccedilatildeo de indiviacuteduos
oriundos de outras classes ou regiotildees no trabalho agriacutecola Neste contexto os autores
tambeacutem afirmam que a estratificaccedilatildeo a diferenciaccedilatildeo social e as mobilidades social
ocupacional e espacial seriam mais proeminentes na cidade que no campo
2a perspectiva O continuum rural-urbano
A segunda perspectiva reuacutene autores que defendem a ideia de um continuum
entre o rural e o urbano e teria se originado a partir do estudo do campesinato como uma
part society feito por Redfield (1964) Este autor situa os camponeses numa escala
intermediaacuteria entre as sociedades primitivas (preacute-letradas ou folk) e as civilizadas O
autor destaca entretanto que a relaccedilatildeo entre a cidade e o campo seria instaacutevel jaacute que
haveria uma luta pelo ajustamento da ordem moral entre essas duas instacircncias Segundo
o autor
O conflito no niacutevel religioso ou eacutetico entre a cidade e o campo entre o homem da cidade e o camponecircs entre a mentalidade requintada e a mentalidade simples do habitante de um povoado ou do homem da tribo eacute tema antigo e familiar [] As relaccedilotildees entre a gente da cidade e a gente do campo formam uma grande separaccedilatildeo uma das principais fronteiras das relaccedilotildees humanas Esse fato observado pelo arqueoacutelogo eacute uma consequecircncia da revoluccedilatildeo urbana Existe agora a gente da cidade uma nova espeacutecie de gente ldquosem tradiccedilotildees sem religiatildeo inteiramente prosaica astuta improdutiva e que despreza profundamente o homem do campordquo [] Portanto existe na melhor das hipoacuteteses uma paz instaacutevel na fronteira moral entre a cidade e o campo O camponecircs conseguiu um ajustamento viaacutevel ele estaacute dentro da civilizaccedilatildeo mas vive desconfiado preferiria manter a cidade agrave distacircncia (REDFIELD 1964 p 56-57)
Nesse trecho jaacute se percebe um processo conflituoso de hierarquizaccedilatildeo entre o
rural e o urbano Solari (1979) constroacutei uma definiccedilatildeo do que seria a perspectiva de um
continuum entre o rural e o urbano
Elas partem no fundo da observaccedilatildeo de que entre o meio rural e o meio urbano existe uma gradaccedilatildeo infinita Em outras palavras estamos frente a um continuum Desde a habitaccedilatildeo rural isolada ateacute a grande cidade existem inuacutemeros escalotildees intermediaacuterios que vatildeo
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criando uma transiccedilatildeo insensiacutevel entre o meio rural propriamente dito e o meio urbano (SOLARI 1979 p 10)
Embora sua descriccedilatildeo seja mais orgacircnica Solari (1979) afirma que haveria uma
diferenccedila entre o homem rural das sociedades desenvolvidas e o homem rural das
sociedades tradicionais devido ao processo de urbanizaccedilatildeo da vida rural especialmente
no uso de implementos mecacircnicos e no fenocircmeno de dispersatildeo populacional para a
periferia das cidades Nestes termos o autor jaacute considera as novas dinacircmicas que
transformam o campo a partir da sua relaccedilatildeo com a cidade e com a industrializaccedilatildeo
3a perspectiva A urbanizaccedilatildeo do campo
A terceira perspectiva que trata da urbanizaccedilatildeo do campo de vertente francesa
tem como principal expoente Lefebvre (2008) O autor afirma que a cidade e o campo
foram marcados no passado por uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo Segundo Lefebvre (2008) a
urbanizaccedilatildeo da sociedade surgiu na cidade impulsionada pela industrializaccedilatildeo que
absorveu a produccedilatildeo agriacutecola a qual se converteu num setor da produccedilatildeo industrial
Esta seria para o autor uma das caracteriacutesticas do tecido urbano o conjunto das
manifestaccedilotildees do predomiacutenio da cidade sobre o campo Para Lefebvre (2008) essas
transformaccedilotildees no campo poderiam ser notadas tanto por meio de objetos como atraveacutes
do acesso a serviccedilos tais como o tratamento e o abastecimento de aacutegua o fornecimento
de eletricidade o uso do gaacutes a posse de automoacuteveis televisatildeo utensiacutelios de plaacutestico e
mobiliaacuterio moderno mas tambeacutem por um novo sistema de valores lazer moda
costumes seguranccedila previsatildeo do futuro racionalidade (LEFEBVRE 2001) Contudo
para Lefebvre (2001 p 19) no espraiamento do tecido urbano ainda persistiriam
ldquoilhotas e ilhas de ruralidade purardquo caracterizadas pela permanecircncia de camponeses
mal adaptados agrave existecircncia urbana Assim para o autor a relaccedilatildeo urbanidade-ruralidade
natildeo desapareceria ao contraacuterio se intensificaria
Assim como Lefebvre (2001 2008) Rambaud (1973) compreendia a
urbanizaccedilatildeo como um movimento complexo uma mudanccedila cultural generalizada um
vir a ser carregado da possibilidade de se tornar universal Rambaud (1973) valendo-se
da perspectiva da aculturaccedilatildeo analisou as consequecircncias da urbanizaccedilatildeo na sociedade
rural a partir de seu processo de diferenciaccedilatildeo de desenvolvimento e de dependecircncia
entre grupos sociais assimeacutetricos assim como os habitantes do village e da cidade Para
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o autor a contradiccedilatildeo faria parte do processo de urbanizaccedilatildeo da sociedade rural mas ele
se preocupava em relaccedilatildeo agraves condiccedilotildees em que o processo de urbanizaccedilatildeo poderia
incidir sobre a sociedade rural Para este socioacutelogo em sociedades rurais com o tecido
social mais coeso a possibilidade de integrar as influecircncias da cultura urbana em sua
organizaccedilatildeo social e espacial se daria por um direcionamento interno o qual se
manifestaria no ritmo das mudanccedilas e nas escolhas das inovaccedilotildees feitas por seus
habitantes Contudo em sociedades com pouca coesatildeo social o ritmo da aculturaccedilatildeo
poderia ser avassalador desfigurando e desintegrando a sociedade rural
Sobarzo (2010) seguindo a perspectiva lefebvriana defende que seria necessaacuterio
entender que campo e cidade seriam as formas o espaccedilo fiacutesico enquanto o urbano e o
rural seriam os conteuacutedos sociais os modos de vida De acordo com o autor a
sociedade urbana envolveria um modo de vida passiacutevel de superar as fronteiras fiacutesicas
entre cidade e campo transformando ambos e mudando tambeacutem a sua relaccedilatildeo Na
sociedade urbana as atividades desenvolvidas no campo utilizariam cada vez mais a
tecnologia e o emprego do conhecimento cientiacutefico possibilitando uma nova
organizaccedilatildeo territorial novos haacutebitos de vida e de consumo bem como novas relaccedilotildees
interpessoais Diminuiriam assim as diferenccedilas culturais de modos de vida e de
produccedilatildeo entre o campo e a cidade o que natildeo significaria na interpretaccedilatildeo que Sobarzo
(2010) faz de Lefebvre o fim do campo mas sim do modo de vida rural
4a perspectiva A recomposiccedilatildeo do rural
A quarta perspectiva defende o argumento da recomposiccedilatildeo do rural Expressatildeo
desta perspectiva eacute a concepccedilatildeo de Jean (1989) segundo a qual a ldquoruralidaderdquo moderna
estaria ancorada na recomposiccedilatildeo do rural sugerindo inclusive haver na
contemporaneidade uma supervalorizaccedilatildeo da vida rural citando como exemplo o
retorno agrave natureza e o neorruralismo Nesse sentido Bodson (1989) afirma que o rural
por vezes eacute utilizado para se referir a um paraiacuteso perdido a um mundo que natildeo existe
mais e acima de tudo para fazer um contraponto agrave sociedade atual Na mesma loacutegica
Bernard Kayser (1990) argumenta no sentido da recomposiccedilatildeo do rural trazendo como
evidecircncia para o seu argumento o crescimento demograacutefico no campo especialmente
por indiviacuteduos da terceira idade pela mobilidade promovida pelas migraccedilotildees
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pendulares comutaccedilotildees e pela existecircncia de coroas peri-urbanas e pelas diferenccedilas entre
os comportamentos rurais e urbanos
Barros (1989) argumenta que a reorganizaccedilatildeo territorial do espaccedilo agriacutecola em
ldquopluriativordquo e multifuncional recomporia o rural O autor defende que o fenocircmeno da
ldquorurbanizaccedilatildeordquo e dos ldquonovos ruraisrdquo conduziria a uma diversificaccedilatildeo do uso do espaccedilo
rural como lugar de lazer e natildeo mais somente como meio de produccedilatildeo Para Barros
(1989) a instalaccedilatildeo de faacutebricas e a ldquorurbanizaccedilatildeordquo (pulverizaccedilatildeo de cidades no meio
rural) modificariam o valor relativo do espaccedilo urbano e rural De acordo com ele a
atraccedilatildeo que as cidades exerciam como loacutecus da sociedade urbano-industrial teria
decrescido em favor da atraccedilatildeo do meio rural Antes visto com repulsa agora o campo
estaria sendo percebido como oferecendo formas de vida opostas agraves urbanas Barros
(1989) afirma que essas transformaccedilotildees conduziriam o campo a uma maior capacidade
de integraccedilatildeo com a cidade A ldquoruralidaderdquo e a cultura urbana seriam para ele
constitutivas do mesmo processo embora de diversas maneiras e diferentes
intensidades
Veiga (2004 2006) apesar de apontar para a urbanizaccedilatildeo do rural podendo
assim a princiacutepio parecer se enquadrar na terceira corrente propotildee na verdade a
emergecircncia de uma nova ruralidade engendrada pela urbanidade do rural a qual
exerceria assim maior poder de atraccedilatildeo dos espaccedilos rurais para os citadinos
revigorando o rural Veiga (2004) defende a ideia de que a globalizaccedilatildeo promoveria
diferentes respostas no meio rural uma de dimensatildeo econocircmica conduziria os espaccedilos
rurais mais isolados a uma maior marginalizaccedilatildeo enquanto outra ambiental valorizaria
o rural a partir da perspectiva da qualidade de vida e do bem-estar O nascimento dessa
nova ruralidade estaria atrelado agrave conservaccedilatildeo da biodiversidade ao aproveitamento
econocircmico da paisagem por meio do turismo e dos recursos renovaacuteveis em novas
matrizes energeacuteticas (VEIGA 2006)
Abramovay (2009) tambeacutem ressalta a emergecircncia da ruralidade buscando
exprimir o peso do meio rural na economia e na sociedade contemporacircneas evitando a
suposiccedilatildeo de que o rural teria se urbanizado O autor critica o fato de haver ldquo[] um
viacutecio de raciociacutenio na maneira como se definem as aacutereas rurais no Brasil o qual
contribuiria decisivamente para que estas aacutereas fossem assimiladas automaticamente a
atraso carecircncia de serviccedilos e falta de cidadaniardquo (p 21) Segundo o autor seria
importante considerar outros aspectos como a relaccedilatildeo com agrave natureza agrave importacircncia das
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aacutereas natildeo-densamente povoadas e agrave dependecircncia do sistema urbano para definir o rural
Por isso aponta para a pertinecircncia do conceito de ruralidade uma vez que este
privilegiaria a dimensatildeo territorial e natildeo a setorial para definir as aacutereas rurais
5a perspectiva O rural como representaccedilatildeo
Na quinta corrente encontram-se os autores que interpretam o rural e o urbano
como representaccedilatildeo Carneiro (2012) em sua perspectiva se posiciona criticamente em
relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo entre rural e urbano julgando que esta teria direcionado as anaacutelises
socioloacutegicas ao considerar o rural como atrasado Para a autora o rural natildeo estaria
imune agraves transformaccedilotildees da sociedade mais ampla apontando inclusive para
fenocircmenos como a ldquopluriatividaderdquo3 como expressatildeo da aproximaccedilatildeo entre campo e
cidade A autora destaca em sua anaacutelise a revalorizaccedilatildeo do mundo rural por parte dos
citadinos em termos de uma ldquoruralidade idiacutelicardquo (CARNEIRO 2012) A autora se
fundamenta na perspectiva de Mormont (1989) que ressalta que os processos de
definiccedilatildeo do rural seriam seletivos e privilegiariam alguns aspectos da realidade rural
opondo-os agrave cidade igualmente definida por caracteriacutesticas parciais Este uacuteltimo autor
acredita que algumas caracteriacutesticas do rural seriam interpretadas em funccedilatildeo de outros
sistemas valorativos ou seja ao se utilizar criteacuterios puramente teacutecnicos e econocircmicos o
rural pode ser visto como atrasado menos desenvolvido quiccedilaacute passiacutevel de desaparecer
agrave mercecirc de propostas de mudanccedilas envolvendo a difusatildeo teacutecnica a adoccedilatildeo de inovaccedilatildeo
a adaptaccedilatildeo social ao progresso Wanderley (2001) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para a
mudanccedila de perspectiva sobre o rural no Brasil contemporacircneo conforme relata
A sociedade brasileira parece ter hoje um olhar novo sobre o meio rural Visto sempre como a fonte de problemas ndash desenraizamento miseacuteria isolamento currais eleitorais etc ndash surgem aqui e ali indiacutecios de que o meio rural eacute percebido igualmente como portador de ldquosoluccedilotildeesrdquo Esta percepccedilatildeo positiva crescente real ou imaginaacuteria encontra no meio rural alternativas para o problema do emprego (reivindicaccedilatildeo pela terra inclusive dos que dela haviam sido expulsos) para a melhoria da qualidade de vida atraveacutes de contatos mais diretos e intensos com a natureza de forma intermitente (turismo rural) ou permanente (residecircncia rural) e atraveacutes do aprofundamento
3 Por pluriatividade a autora entende a combinaccedilatildeo de atividades agriacutecolas com natildeo-agriacutecolas em regiotildees marcadas pelo dinamismo da economia e pela proximidade entre campo e cidade
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de relaccedilotildees sociais mais pessoais tidas como predominantes entre os habitantes do campo (WANDERLEY 2001 p 31)
As mudanccedilas nas perspectivas do imaginaacuterio sobre o rural no Brasil agraves quais se
referem Carneiro (2012) e Wanderley (2001) podem ser percebidas de forma mais
detalhada sob diversos aspectos a partir do trabalho de alguns autores como o de
Oliveira L (2003) Essa pesquisadora destaca que a existecircncia de ambiguidades a
respeito do homem rural brasileiro jaacute estava presente nas obras de cronistas e viajantes
do seacuteculo XIX pelo paiacutes ldquoHavia como que uma oscilaccedilatildeo entre uma valorizaccedilatildeo
positiva que destacava a forccedila a autenticidade e a comunhatildeo com a natureza e uma
caracterizaccedilatildeo negativa cujo traccedilo principal era a preguiccedilardquo (OLIVEIRA L 2003 p
234) Da mesma forma a autora ressalta sobre a literatura ficcional que ldquoretomado em
meados do seacuteculo XIX o regionalismo fazia viver uma tensatildeo entre o idiacutelio romacircntico e
a representaccedilatildeo realista do homem do campo entre a nostalgia do passado e a denuacutencia
das miseacuterias do presenterdquo (OLIVEIRA L 2003 p 235) Citando Chiappini (1995) a
autora afirma que o regionalismo se desenvolveu em conflito com a modernizaccedilatildeo a
industrializaccedilatildeo e a urbanizaccedilatildeo sendo tambeacutem fruto destes
Assim como comenta Oliveira L (2003) o discurso sobre o rural no Brasil no
final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX oscilava entre uma visatildeo romacircntica e glorificada do
passado rural ao mesmo tempo em que titubeavam as denuacutencias das condiccedilotildees sociais
desiguais Mas a partir do ruralismo dos anos 1888-1920 ateacute o nacionalismo do Estado
Novo entre 1930 e 1940 no Brasil um projeto de construccedilatildeo de identidade nacional
calcado na figura romacircntica do homem do campo contribuiu para a legitimaccedilatildeo do
autoritarismo O ruralismo segundo Mendonccedila (1997) caracterizou-se como um
movimentoideologia poliacutetico(a) construiacutedo(a) por uma fraccedilatildeo natildeo hegemocircnica da
classe dominante de proprietaacuterios rurais que defendia o fortalecimento de uma
agricultura nacional diversificada e de um mercado interno organizando-se em
entidades de classe bastante ativas Durante o Estado Novo Beskow (2010) identificou
a elaboraccedilatildeo ideoloacutegica de uma nova identidade nacional e da tradiccedilatildeo cultural
brasileira que fundamentaram sua raiz no campo e no homem rural situando-os num
projeto de desenvolvimento econocircmico mas cujo fim uacuteltimo seria legitimar o regime
autoritaacuterio Nessa mesma eacutepoca entre os anos de 1910 a 1930 de acordo com Allonso
(2012) e Oliveira A (2009) duplas e grupos caipiras encenavam peccedilas teatrais que
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retratavam o homem rural brasileiro com um apelo cocircmico para um puacuteblico de classe
meacutedia urbana especialmente no Rio de Janeiro De acordo com Oliveira L (2003)
No periacuteodo aacuteureo do raacutedio e do cinema caipira de Mazzaropi ainda se mantinha uma visatildeo ambiacutegua sobre o caipira sobre o Jeca ele era bobo e esperto ao mesmo tempo Sua fala mole aparentemente inocente esconderia uma malandragem particular (OLIVEIRA L 2003 p 254)
Nesse sentido Oliveira L (2003) reconstroacutei o percurso da cultura rural
destacando o sucesso da muacutesica caipira nos anos 1940 e 1950 bem como sua
marginalizaccedilatildeo a partir dos anos 1960 com a acentuaccedilatildeo do processo de modernizaccedilatildeo
brasileiro passando entatildeo a estar relegada ao segundo plano como ldquosendo muacutesica de
pobre do interiorano e do suburbano muacutesica de quintal de cozinhardquo (OLIVEIRA L
2003 p 255) Esse processo de marginalizaccedilatildeo do rural a partir de meados do seacuteculo
XX tambeacutem se repercutiu nas Ciecircncias Sociais conforme indica o estudo de Oliveira
L (2003) ao analisar as representaccedilotildees sobre o homem rural paulista elaboradas pela
historiografia e pela literatura Uma dessas representaccedilotildees centralizava-se na
marginalizaccedilatildeo e na inferiorizaccedilatildeo de tipos sociais rurais tais como o caipira ou o
caboclo refletindo a exclusatildeo do campesinato brasileiro e do homem rural pobre nos
estudos acadecircmicos
Segundo Oliveira L (2003) a postura da eacutepoca era a de que ldquo[] o mundo rural
ficava na coluna que significava atraso tradiccedilatildeo sobrevivecircncia Em contraposiccedilatildeo a ele
estaria o mundo urbano identificado com o progresso a modernidade o futurordquo
(OLIVEIRA L2003 p 237) Entretanto segundo a mesma autora no domiacutenio da
Sociologia tambeacutem teria havido uma ambiguidade ora exaltando-se a sabedoria do
homem rural ora expondo o seu atraso A autora afirma que a partir dos anos 1950
devido ao processo de modernizaccedilatildeo conservadora pelo qual passou o campo no Brasil
houve um interesse das Ciecircncias Sociais em estudar as suas dimensotildees de resistecircncia
diante dos processos de urbanizaccedilatildeo e de industrializaccedilatildeo Para a pesquisadora somente
com Franco (1969) o tema do caipira se inseriu no contexto da elite acadecircmica da
Universidade de Satildeo Paulo conseguindo trazer o tema do homem rural pobre caipira
para o debate da formaccedilatildeo social brasileira
A anaacutelise de Fressato (2009) sobre a representaccedilatildeo das praacuteticas culturais caipiras
nos filmes de Mazzaropi produzidos entre os anos 1950 e 1970 demonstra a relaccedilatildeo
ambiacutegua da cultura popular com a cultura dominante que oscilava entre a subordinaccedilatildeo
54
e a rebeldia contra a ordem instituiacuteda Seu personagem mais famoso o Jeca presente
expliacutecita ou implicitamente em todos os filmes teria evoluiacutedo de acordo com as
mudanccedilas da sociedade brasileira No iniacutecio ele seria inocente e ingecircnuo tornando-se
debochado e malicioso nos uacuteltimos enredos Defende a autora que a representaccedilatildeo do
Jeca preguiccediloso nos filmes de Mazzaropi dos anos 1950 revelou mais que um modelo
esteacutetico inspirado no personagem de Monteiro Lobato uma possiacutevel criacutetica ao modelo
nacional-desenvolvimentista em voga nessa eacutepoca no Brasil A preguiccedila de Jeca nos
filmes de Mazzaropi estaria se contrapondo ao discurso dominante da sociedade
burguesa racional de espiacuterito capitalista e valorizaccedilatildeo do trabalho Para Fressato (2009)
tal preguiccedila desmistificaria uma imagem de unidade social e apresentaria outras formas
de organizaccedilatildeo social que natildeo seriam consideradas politicamente corretas
Da mesma forma Fressato (2009) ressalta como os criacuteticos de cinema no Brasil
contemporacircneos de Mazzaropi avaliavam negativamente seus filmes comparando-os
principalmente agraves peliacuteculas da esteacutetica do Cinema Novo Muitas dessas criacuteticas ao
cinema de Mazzaropi eram direcionadas ao seu personagem caipira considerado de
mau gosto e excessivamente caricaturado Mas Fressato (2009) ressalta a mudanccedila nas
avaliaccedilotildees das produccedilotildees de Mazzaropi apoacutes sua morte e o extremo sucesso de puacuteblico
de seus filmes a despeito da natildeo aceitaccedilatildeo da criacutetica Este fato apontaria para uma
capacidade de Mazzaropi de gerar um sentimento de identidade e reconhecimento por
parte do puacuteblico citadino Principalmente os anos 1960 e 1970 marcaram no Brasil o
processo de ecircxodo rural e o crescimento da populaccedilatildeo urbana Muitos dos extratos
populacionais da periferia urbana eram de origem rural nessa eacutepoca o que pode ser
uma hipoacutetese para essa identificaccedilatildeo do puacuteblico de Mazzaropi com o personagem Jeca
apontada por Fressato (2009) Da mesma forma Martins J (1975) indica como
ouvintes da muacutesica sertaneja dos anos 1970 essa populaccedilatildeo proletaacuteria urbana residente
na periferia e de origem rural Segundo Allonso (2012) Martins J (1975) dirigiu aos
ouvintes e simpatizantes da muacutesica sertaneja as mesmas criacuteticas que esta recebeu por
parte de grupos dominantes da Muacutesica Popular Brasileira (MPB) principalmente sua
vinculaccedilatildeo ao conservadorismo Seus apreciadores seriam apontados como ldquoalienadosrdquo
viacutetimas da cultura de massa apartados de sua condiccedilatildeo ldquoraizrdquo ao se transformarem em
imigrantes e proletaacuterios urbanos (ALLONSO 2012)
Segundo Oliveira L (2003) com base em Santos J (1991) a partir da deacutecada
de 1980 foi se evidenciando um novo imaginaacuterio uma nova identidade para o mundo
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rural Com o advento da urbanizaccedilatildeo e da industrializaccedilatildeo a muacutesica sertanejacountry e
o entretenimento passaram a ter um lugar importante na construccedilatildeo da imagem do rural
e no seu consumo pelos citadinos se consolidando como simulacro da tradiccedilatildeo rural
Para Oliveira L (2003) reproduzindo o argumento de Nepomuceno (1999) a muacutesica
sertaneja renasceu a partir dos anos 1980 com o otimismo trazido pelo crescimento do
agribusiness pela reelaboraccedilatildeo dos valores rurais e pelo destaque das cidades do
interior que passaram a ser percebidas pela boa infraestrutura em detrimento agrave crise das
grandes aglomeraccedilotildees urbanas
Segundo Oliveira L (2003) os jovens da classe meacutedia preferiam se fixar no
interior onde encontravam oportunidades de consumo estudo e emprego e
reelaboravam a cultura rural a partir de elementos simboacutelicos do country norte-
americano ao inveacutes de simplesmente aspirarem a padrotildees culturais da cidade ldquoEles se
permitiam casar a alma rural com o progresso e com a riqueza e natildeo mais a alma
ingecircnua com a pobrezardquo (NEPOMUCENO 1999 citado por OLIVEIRA L 2003 p
255) Para Oliveira L (2003) o coroamento desse processo foi o sucesso de novelas
exibidas em canais abertos na televisatildeo em rede nacional com temaacuteticas rurais como
Pantanal (1990) e A Histoacuteria de Ana Raio e Zeacute Trovatildeo (1991) na extinta Rede
Manchete e O Rei do Gado (1996) na Rede Globo Oliveira L (2003 p 256) conclui
que ldquoo agribusiness e o circuito de rodeio constituiacuteram o espaccedilo social para que o
caipira ou o atrasado de ontem se tornasse o globalizado de hojerdquo
Essas transformaccedilotildees recentes na agricultura e suas consequecircncias no rural como
um todo tiveram expressatildeo especialmente a partir da deacutecada de 1980 Autores como
Abramovay (1994) Kageyama (2008) e Pires (2004) destacam que as mudanccedilas no
mundo rural e na produccedilatildeo agriacutecola a partir dos anos 1980 relacionam-se com a crise na
agricultura e no modelo produtivista nos Estados Unidos na Europa e nos paiacuteses
emergentes motivada pelo super-abastacimento mundial e pela emergecircncia de uma
pauta ambientalista Assim como ocorrera uma reestruturaccedilatildeo produtiva no setor
industrial a niacutevel mundial nos anos 1970 a partir de quando se consolida um modelo
de produccedilatildeo poacutes-fordista (ANTUNES 1995 SENNET 1999) a agricultura a partir dos
anos 1980 tambeacutem sofreu uma flexibilizaccedilatildeo produtiva De acordo com Abramovay
(1994) o modelo fordista de produccedilatildeo agriacutecola foi repensado especialmente na Europa
a partir da Poliacutetica Agriacutecola Comum (PAC) de 1992 quando as praacuteticas efetuadas entre
os anos 1960 e 1980 fundamentadas nos paradigmas da Revoluccedilatildeo Verde passaram a
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ser revistas diante das constataccedilotildees dos impactos ambientais inerentes a esse modelo
Para o autor a partir de entatildeo estabeleceu-se o que denomina de dualizaccedilatildeo da
agricultura concentrando-se por um lado a produccedilatildeo agriacutecola e por outro as praacuteticas
de desenvolvimento sustentaacutevel E a despeito de diversas interpretaccedilotildees o que se
identifica como um denominador comum eacute o fato de o rural natildeo ser mais sinocircnimo de
agriacutecola Haacute uma seacuterie de serviccedilos e novos arranjos produtivos no campo hoje como os
serviccedilos de conservaccedilatildeo ambiental o turismo e o desenvolvimento de uma agricultura
diversificada e localizada para um nicho de mercado concomitante agrave agricultura em
larga escala Como ressalta Pires (2004) outras dimensotildees do rural especialmente o
turismo rural a moradia e as questotildees ambientais ganham uma nova posiccedilatildeo O autor
tambeacutem salienta a transformaccedilatildeo das aacutereas rurais em aacutereas de consumo de bens e
serviccedilos especialmente por parte de determinados grupos sociais de classe meacutedia e da
elite de origem urbana que passam a valorizar o rural positivamente os neorrurais
Nessa esteira de mudanccedilas as novas dinacircmicas que emergiram no campo
brasileiro especialmente apoacutes os anos 1980 satildeo descritas por Silva J (2001) como
ldquonovo rural brasileirordquo e se constituiriam em atividades como a moderna agropecuaacuteria
produtora de commodities as atividades natildeo-agriacutecolas especialmente as ligadas agrave
moradia e ao lazer no meio rural as atividades de prestaccedilatildeo de serviccedilos bem como as
novas atividades agropecuaacuterias voltadas para nichos de mercado especiacuteficos aleacutem das
atividades relacionadas agrave preservaccedilatildeo do meio ambiente Silva J (1997) tambeacutem aponta
a industrializaccedilatildeo da agricultura cuja principal expressatildeo seriam os complexos
agroindustriais (CAIrsquos) como manifestaccedilatildeo do transbordamento do mundo urbano para
as aacutereas rurais
No acircmbito da cultura Alem (1996) identifica a construccedilatildeo de uma rede
simboacutelica de um rural-country hegemocircnico e dominante especialmente nas regiotildees
onde a partir dos anos 1960 a modernizaccedilatildeo agriacutecola foi intensa correspondendo agraves
zonas pecuaristas do interior de Satildeo Paulo Minas Gerais Rio de Janeiro Goiaacutes e Mato
Grosso e algumas aacutereas da Regiatildeo Norte O autor demonstra como os rituais do
ruralismo brasileiro tecircm sido ressignificados pela accedilatildeo da elite ruralista hegemocircnica e
por meio da induacutestria cultural e do Estado utilizando-se siacutembolos caipirascountry Essa
reelaboraccedilatildeo ultrapassa significaccedilotildees meramente rurais e eacute reinventada a partir de
distinccedilotildees urbanas modernas e capitalizadas Nesse sentido reconstroacutei-se uma
percepccedilatildeo do rural que natildeo estaria mais ligada agrave rusticidade ao atraso e agrave simplicidade
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a siacutembolos como o Jeca Tatu o caipira ou o sertanejo Esta nova ruralidade seria
referendada por meio da esteacutetica country revestida de siacutembolos do poder do capital e
da distinccedilatildeo triunfando sobre uma imagem do rural negativamente estereotipada Em
suas palavras
O Jeca Tatu reapareceu transformado eacute verdade Sadio e poderoso travestido em novos tipos sociais o empresaacuterio agriacutecola capitalizado e tecnificado o pecuarista de recorte texano o criador de cavalos de raccedila o poliacutetico lobista dos interesses ruralistas os empresaacuterios e profissionais liberais urbanos que investem em fazendas e siacutetios o agro-boy o cow-boy ou peatildeo de boiadeiro as duplas de muacutesica neo-sertaneja e muitos outros tipos sociais expressivos das novas representaccedilotildees ruralistas (ALEM 1996 p 25)
Alem (1996) afirma que essa rede caipirasertanejacountry se revestiria de um
caraacuteter popular e de massa que mascararia uma hierarquia social proacutepria da estrutura
social brasileira cuja oposiccedilatildeo caipiracitadino seria seu principal expoente Para ele
essa rede intencionaria diluir as desigualdades sociais e as diferenccedilas culturais embora
na praacutetica cotidiana as hierarquias e exclusotildees sociais sejam mantidas Diante dessas
constataccedilotildees De Paula (1998 1999 2001) estudou o estilo country no oeste paulista
afirmando que este introduziu o tema do rural no cenaacuterio e na sociabilidade urbanos A
autora (1998 2001) define o country como um padratildeo de sociabilidade um estilo de
vida que elabora o mundo rural e assim flexibiliza as fronteiras dicotocircmicas entre
campo e cidade jaacute que este padratildeo eacute produzido e consumido no espaccedilo urbano E
salienta que o country tambeacutem ldquoproduzrdquo o campo um campo que natildeo eacute soacute agriacutecola
De Paula (1998 2001) afirma que o country brasileiro seria uma reelaboraccedilatildeo do
country americano com tradiccedilotildees agraacuterias brasileiras e aspectos do mundo moderno
contemporacircneo Contudo natildeo se constituiria em uma simples coacutepia mas o assume
como um simulacro da experiecircncia da ruralidade que passa pela estetizaccedilatildeo do mundo
rural De Paula (1998 2001) argumenta que no Brasil o country estaria vinculado ao
processo de distinccedilatildeo sofisticaccedilatildeo e refinamento ao contraacuterio dos Estados Unidos
(EUA) onde o estilo remeteria agraves ideias de trabalho rusticidade e simplicidade4
Eacuteboli (2007) ao estudar os sentidos sociais construiacutedos e veiculados pelo
programa Globo Rural da Rede Globo a partir da deacutecada de 1980 identificou a
4 Este fato tambeacutem eacute constatado por Giuliani (1990) ao comparar os neorrurais franceses aos novos rurais brasileiros
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construccedilatildeo de uma imagem urbanizada do rural que transforma o rural agriacutecola em um
rural natureza e da figura de um heroacutei do campo Esse processo se desenrola segundo a
autora por meio da urbanizaccedilatildeo e da domesticaccedilatildeo da natureza graccedilas agrave ciecircncia e agrave
teacutecnica atraindo um puacuteblico urbano telespectador do programa aleacutem de seus
anunciantes e do proacuteprio homem rural Para a autora ao veicular a imagem de um rural
natureza domesticado pela teacutecnica e urbanizado o programa torna-se capaz de dialogar
com grupos sociais distintos vinculados direta ou indiretamente ao rural ou mesmo
quase completamente apartados dessa realidade O trabalho de Eacuteboli (2007) encontra-se
numa mesma perspectiva que o de Silva G (2009) que buscou apreender um possiacutevel
imaginaacuterio rural dos leitores urbanos da revista impressa Globo Rural moradores da
cidade de Satildeo Paulo e o sonho miacutetico de possuir uma casa no campo A autora
identificou trecircs movimentos que conformaram o imaginaacuterio desses leitores ao sonharem
com a casa no campo o tempo presente em que se percebe uma criacutetica ao modelo
civilizatoacuterio urbano da metroacutepole um movimento de saudade em relaccedilatildeo a um passado
rural e a um mundo natural e um gesto direcionado ao futuro longe da cidade numa
casa de campo proacutexima agrave natureza Movimentos que para a autora se intercalam entre
memoacuteria e imaginaccedilatildeo e sobretudo compotildeem um pensamento miacutetico que para ela
pode expressar um fenocircmeno social
No campo do imaginaacuterio sobre o rural e suas transformaccedilotildees destaca-se o
trabalho de Raymond Williams (2011) sobre a Inglaterra na passagem da sociedade
medieval para a moderna e de Entrena-Duraacuten (2012) sobre a Espanha no seacuteculo XX
As mudanccedilas nas representaccedilotildees sociais sobre o rural destacadas por esses autores para
a Europa na consolidaccedilatildeo da sociedade moderna trazem algumas referecircncias para se
analisar o caso brasileiro no seacuteculo XX especialmente a partir dos anos 1960 e mais
intensamente a partir dos anos 1980 periacuteodo em que se analisa nesta pesquisa a
emergecircncia de produtos e serviccedilos com a marca roccedila no mercado brasileiro
Raymond Williams (2011) demonstrou como as representaccedilotildees sociais a respeito
do campo e da cidade foram se transformando historicamente na Inglaterra utilizando
para a sua anaacutelise a literatura inglesa de temaacutetica rural O que chamou a atenccedilatildeo deste
autor foi o fato de que mesmo apoacutes as transformaccedilotildees engendradas pela Revoluccedilatildeo
Industrial que levaram a Inglaterra a uma configuraccedilatildeo urbano-industrial a literatura
rural permaneceu sendo produzida e lida de forma expressiva inclusive ao longo do
seacuteculo XX Segundo o autor a busca por um passado rural na literatura inglesa teria
59
diferentes significados segundo as especificidades relacionadas a contextos sociais
determinados Assim agrave medida que foi se desenvolvendo na Inglaterra ao longo dos
seacuteculos XVI XVII e XVIII um capitalismo agraacuterio moderno racional e tecnificado
foi se construindo ao mesmo tempo uma idealizaccedilatildeo do campo e da vida rural
expressa na poesia bucoacutelica concomitante ao crescimento das grandes cidades e ao
desenvolvimento da cultura urbana e da industrializaccedilatildeo
De acordo com Williams (2011) as mudanccedilas do capitalismo agraacuterio e os
melhoramentos por ele trazidos tambeacutem impactaram na relaccedilatildeo do homem com a
natureza tanto em termos praacuteticos como esteacuteticos Do ponto de vista esteacutetico surgiu
uma separaccedilatildeo entre a produccedilatildeo e o consumo da natureza com a invenccedilatildeo da paisagem
Parques e jardins passaram a ser produzidos com novas proposiccedilotildees sobretudo
baseadas no controle racional Interagindo com observaccedilotildees de cunho mais social
aparece a partir dessa invenccedilatildeo da paisagem uma linguagem verde Segundo o autor
justamente quando se desenvolve esta nova fase de processos industriais e de
intervenccedilatildeo intensa na natureza surge na literatura uma concepccedilatildeo de culto da
natureza intacta inculta e pitoresca com o gosto pela contemplaccedilatildeo da paisagem o
turismo contemplativo da natureza os roteiros de viagens a lugares especiais O autor
reconhece certa continuidade da idealizaccedilatildeo de personagens humildes e do campo visto
como natureza local de refuacutegio e aliacutevio em relaccedilatildeo agrave sociedade urbana O
ldquomelhoramentordquo da natureza e a expropriaccedilatildeo do trabalho pelo capital eram
interpretados pelos poetas dessa fase como uma perda do meio natural Ainda segundo o
autor o que estaria sendo expresso nessa poesia na verdade seria o sentimento de
expropriaccedilatildeo e divisatildeo social que utilizava a metaacutefora da natureza e do paraiacuteso para se
referir a um espiacuterito comunitaacuterio que ficara para traacutes Seria portanto uma maneira de
falar sobre a humanidade a partir da natureza e criticar implicitamente a sociedade na
qual se vivia Para Williams (2011) este movimento representou o fim da poesia
bucoacutelica e seu choque com a realidade rural
Pode-se perceber portanto que Williams (2011) destaca como a descriccedilatildeo da
vida campestre e pastoril com suas dificuldades tensotildees e conflitos foi dando lugar a
uma visatildeo idealizada do campo transformado em paisagem para a contemplaccedilatildeo Os
conflitos sociais de classes cada vez mais intensos com a expropriaccedilatildeo da terra dos
camponeses e com o aparecimento de uma classe de arrendataacuterios e de trabalhadores
rurais natildeo foram retratados mas antes exaltou-se em tom bucoacutelico e saudosista a
60
beleza da natureza a abundacircncia e a fartura do campo e dos aristocratas rurais Os
poemas dessa eacutepoca tambeacutem contrastavam a moral do campo e da cidade O primeiro
era atrelado agraves ideias de virtude inocecircncia e simplicidade enquanto a cidade era tomada
como sinocircnimo de ganacircncia desonestidade e ambiccedilatildeo Percebe-se portanto um culto agrave
vida rural que natildeo era necessariamente fiel agraves condiccedilotildees socioeconocircmicas da realidade
mas construiacuteda com traccedilos de idealizaccedilatildeo e de nostalgia As mudanccedilas de atitudes e as
novas sensibilidades da sociedade moderna em relaccedilatildeo ao mundo natural na Inglaterra
entre 1500 e 1800 tambeacutem foram relatadas por Thomas (2010) A relaccedilatildeo entre o
homem e o mundo natural e a classificaccedilatildeo entre a natureza e a cultura relatadas pelo
autor revelam uma trajetoacuteria que se transforma de uma visatildeo antropocecircntrica na qual o
mundo natural estaacute sujeito ao homem ateacute a emergecircncia de novas condiccedilotildees e
sensibilidades em relaccedilatildeo agrave natureza destronando o ser humano (ALMEIDA 2011)
Embora segundo Almeida (2011) Thomas (2010) tenha identificado a mudanccedila na
visatildeo sobre a natureza a sociedade moderna ainda estaria marcada pelos dilemas entre a
conservaccedilatildeo ou o domiacutenio da natureza e a produccedilatildeo agriacutecolas entre o campo e a cidade
O movimento romacircntico tambeacutem foi abordado por Norbert Elias (2001) em seu
estudo a respeito da sociedade de corte durante o reinado de Luiacutes XIV na Franccedila O
autor analisa as transformaccedilotildees vividas pelos guerreiros que antes viviam no campo sob
uma economia de troca e com uma relativa autonomia sobre suas terras mas passaram a
viver na corte em um contexto urbano sob uma economia monetaacuteria e numa rede mais
complexa e integrada de interdependecircncia A nobreza de corte passou a ver nos seus
antecessores situados em uma camada social inferior os siacutembolos de uma vida mais
livre simples independente natural e melhor Um sentimento de nostalgia e melancolia
constituiria para o autor a visatildeo romacircntica da nobreza de corte em relaccedilatildeo ao campo e
a vida natural
Elias (2001) considera como traccedilos essenciais do romantismo o fato de seus
idealizadores verem o presente em degradaccedilatildeo quando comparado ao passado O futuro
por sua vez seria uma restauraccedilatildeo do passado idealizado concebido como podendo ser
melhor e mais puro Mas essa idealizaccedilatildeo do campo estaria localizada em uma
dimensatildeo oniacuterica jaacute que sua realizaccedilatildeo dependeria do rompimento com seu status quo
Isso significaria abrir matildeo da posiccedilatildeo de prestiacutegio social ocupada na corte e desobedecer
a uma rede de interdependecircncia Tal processo resultaria em suma em ldquodescerrdquo na
escala social de reconhecimento e prestiacutegio para uma camada inferior Por isso o sonho
61
e a idealizaccedilatildeo seriam uma forma do indiviacuteduo escapar momentaneamente da coerccedilatildeo
externa e interna sem precisar perder sua posiccedilatildeo social Assim a perspectiva do
romantismo seria idealizada superdimensionando os problemas do presente e
subestimando a dureza da vida no campo e do trabalho agriacutecola eou pastoril
Elias (2001) estabelece uma conexatildeo entre a romantizaccedilatildeo das sociedades
agraacuterias e de seus personagens tiacutepicos como os guerreiros pastores e camponeses com
a ocorrecircncia crescente do ecircxodo rural e a progressiva industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo
Para ele as coerccedilotildees tiacutepicas da integraccedilatildeo social continuaram a se desenvolver na
Europa ao longo do seacuteculo XIX e se revelaram tambeacutem numa tradiccedilatildeo romacircntico-
burguesa da mesma forma como demonstrou Williams (2011) a respeito do bucolismo
O retorno agrave natureza segundo Elias (2001) tambeacutem teria encontrado formas natildeo
romacircnticas entre as camadas de elite bem como em outras camadas sociais por meio da
praacutetica de esportes e atividades de lazer no campo como escaladas trilhas viagens de
feacuterias ao litoral agraves montanhas ou ao campo Tais manifestaccedilotildees natildeo teriam contudo
conotaccedilatildeo nostaacutelgica
Por sua vez Entrena-Duraacuten (2012) destaca que ao longo do seacuteculo XX na
Espanha houve trecircs diferentes fases do imaginaacuterio coletivo sobre o meio rural Segundo
o autor a fase relativa agrave ldquomitificaccedilatildeo conservadorardquo teve lugar durante o regime
franquista entre 1940 e 1950 No contexto do desenvolvimentismo e da modernizaccedilatildeo
dos anos 1960 e 1970 observou-se um sentimento de menosprezo ao rural identificado
com o atraso sociocultural e o subdesenvolvimento econocircmico A partir dos anos 1980
percebeu-se entatildeo uma revalorizaccedilatildeo do rural fenocircmeno que acredita ser recorrente
em vaacuterias outras sociedades modernas defendendo a perspectiva de uma reinvenccedilatildeo do
rural e de sua mitificaccedilatildeo com um recorte neorruralista A volta ao rural para o autor
natildeo seria marcada por uma perspectiva de retorno agrave sociedade agraacuteria tradicional mas
antes por uma perspectiva orientada pela qualidade de vida e pelo desenvolvimento
sustentaacutevel As transformaccedilotildees do imaginaacuterio coletivo sobre o rural em direccedilatildeo agrave sua
revalorizaccedilatildeo estariam relacionadas agrave expansatildeo do turismo rural e agrave moradia no campo
dentre outras manifestaccedilotildees da expansatildeo das interligaccedilotildees entre citadinos e rurais
A mitificaccedilatildeo conservadora construiacuteda na Espanha durante o regime franquista
de acordo com Entrena-Duraacuten (2012) fundamentou-se no discurso do ideal de uma
sociedade rural tradicional como o paradigma da harmonia e da integraccedilatildeo social
corporativa que tinha como objetivo impliacutecito negar eou marginalizar os conflitos
62
sociais Tal ideologia segundo o autor fora inspirada em referecircncias culturais do
catolicismo tradicional e nas doutrinas falangistas que criaram uma mitificaccedilatildeo
idealizadora e bucoacutelica da agricultura considerada mais como um modo de vida
tradicional e moralmente superior ao urbano do que uma atividade econocircmica O
contexto social da eacutepoca era caracterizado por uma Espanha rural tradicional com a
maioria da populaccedilatildeo empregada no setor primaacuterio com trabalhadores e arrendataacuterios
especialmente na Regiatildeo Sul (ENTRENA-DURAacuteN 2012)
O segundo momento de transformaccedilotildees do imaginaacuterio sobre o rural na Espanha
teria sido em meados do seacuteculo XX no periacuteodo desenvolvimentista quando parte
consideraacutevel da populaccedilatildeo rural migrou para a cidade em busca de melhores condiccedilotildees
de vida Essas transformaccedilotildees se deram cada vez mais intensamente atraveacutes da adoccedilatildeo
de modelos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos tiacutepicos da sociedade moderna em substituiccedilatildeo
aos haacutebitos e costumes tradicionais locais Isto se traduziu tambeacutem na adoccedilatildeo de uma
poliacutetica agraacuteria mais teacutecnica profissional e economicista resultando inclusive na
criaccedilatildeo do Serviccedilo de Extensatildeo Rural e no Instituto Nacional Agronocircmico nos moldes
desenvolvimentistas O resultado desta poliacutetica agraacuteria de acordo com o autor foi a
mecanizaccedilatildeo agriacutecola num contexto geral de industrializaccedilatildeo e modernizaccedilatildeo
tecnoloacutegica e a transferecircncia da forccedila de trabalho agriacutecola para os setores industriais e
de serviccedilos visiacutevel no fenocircmeno do ecircxodo rural O urbano constituiacutea a imagem do
progresso da civilizaccedilatildeo e do desenvolvimento em oposiccedilatildeo ao campo considerado
atrasado
O rural foi sendo concebido cada vez mais como um espaccedilo que concentrava a
produccedilatildeo agriacutecola modernizada Entretanto Entrena-Duraacuten (2012) ressalta que a
entrada da Espanha na entatildeo Comunidade Econocircmica Europeia e sua participaccedilatildeo na
Poliacutetica Agriacutecola Comum conduziram agrave reflexatildeo sobre o problema da superproduccedilatildeo e a
necessidade de se proporcionar o desenvolvimento sustentaacutevel no meio rural Esse
contexto histoacuterico marcou a transiccedilatildeo do periacuteodo desenvolvimentista para a fase da
revalorizaccedilatildeo do rural do ponto de vista socioeconocircmico e demograacutefico Tal
revalorizaccedilatildeo do rural caracterizou-se pela crise do paradigma urbano-industrial ao
mesmo tempo em que a agricultura perdeu seu peso como atividade primordial no
campo dando lugar ao desenvolvimento da pluriatividade e da multifuncionalidade De
acordo com Entrena-Duraacuten (2012) ao mesmo tempo foram se consolidando as
perspectivas de defesa do desenvolvimento territorial voltadas para as vocaccedilotildees
63
agriacutecolas e para o exerciacutecio do turismo do lazer e das atividades ligadas agrave nova
ruralidade marcadas pela venda e consumo do ecoloacutegico como no caso do setor
imobiliaacuterio
Nesse sentido a revalorizaccedilatildeo e a ressignificaccedilatildeo do rural na Espanha segundo
Entrena-Duraacuten (2012) ocorreria num contexto marcado por pressupostos poacutes-
produtivistas ou seja pela valorizaccedilatildeo do entorno ecoloacutegico do espaccedilo rural pela
praacutetica da agricultura natildeo produtivista pelo desenvolvimento sustentaacutevel e pela
valorizaccedilatildeo da qualidade de vida Para o autor o contexto mais marcante que envolve a
revalorizaccedilatildeo do rural relaciona-se agrave emergecircncia do turismo rural que contribui para o
desenvolvimento e a conservaccedilatildeo do patrimocircnio natural arquitetocircnico e especialmente
a valorizaccedilatildeo da cultura local marcada pelo uso da paisagem das acomodaccedilotildees e dos
utensiacutelios tradicionais tanto pela populaccedilatildeo local quanto pelos turistas e novos
residentes oriundos da cidade Entretanto o autor destaca que essa ressignificaccedilatildeo do
rural tem passado por uma construccedilatildeo social natildeo mais baseada somente na concepccedilatildeo
autaacuterquica local mas em termos de uma glocalizaccedilatildeo dos espaccedilos rurais Isto ocorre
justamente pela fixaccedilatildeo no campo de turistas ou novos residentes de origem urbana
que trazem consigo referecircncias do mundo urbano e contribuem para uma mitificaccedilatildeo do
meio rural que envolve imagens diversas complexas e agraves vezes contraditoacuterias entre a
populaccedilatildeo local os turistas e os neorrurais
Entrena-Duraacuten (2012) argumenta que as condiccedilotildees nas quais os turistas e
neorrurais vivenciam os modos de vida espaccedilos e lares tradicionais rurais satildeo
sucedacircneos ou simulacros edulcorados motivados pela busca do proacuteprio do autecircntico e
do artesanal O autor acredita que a mercantilizaccedilatildeo e o consumo das paisagens e do
modo de vida rural pelos turistas produz uma artificializaccedilatildeo ou mesmo uma imitaccedilatildeo
da autecircntica ruralidade Citando autores como Hobsbawm e Ranger (2000) entre outros
Entrena-Duraacuten (2012) afirma que se trata uma materializaccedilatildeo de tendecircncias de
reinventar o rural tradicional De acordo com o autor essa idealizaccedilatildeo do meio rural
por meio da construccedilatildeo de simulacros da autenticidade rural atende especialmente agraves
aspiraccedilotildees de uma camada urbana de sociedades modernas avanccediladas que busca no
exotismo na comunidade na autenticidade na natureza e na vida saudaacutevel suprir as
carecircncias da sociedade urbano-industrial globalmente preponderante de onde provecircm os
turistas e neorrurais
64
A busca pela tradiccedilatildeo pelo autecircntico assim como a valorizaccedilatildeo da natureza e
dos processos de produccedilatildeo artesanais e locais parecem conformar os processos de
produccedilatildeo circulaccedilatildeo e consumo de bens com a marca roccedila no Brasil A busca por
autenticidade por parte das marcas remeteria a um apelo agrave tradiccedilatildeo ao saber-fazer
artesanal presente na fabricaccedilatildeo do produto ou na prestaccedilatildeo do serviccedilo com pretensatildeo
de reviver dimensotildees relativas ao ldquojeito como era antesrdquo O sentimento de nostalgia e o
romantismo que parecem envolver a identificaccedilatildeo da marca roccedila com a tradiccedilatildeo
estariam relacionados agrave presenccedila de elementos maacutegicos da consciecircncia os quais se
expressam de acordo com Mannheim (1986) no tradicionalismo Por outro lado para
Lifschitz (2011) a criaccedilatildeo de tradiccedilotildees estaria relacionada com estrateacutegias poliacuteticas de
legitimaccedilatildeo de populaccedilotildees tradicionais como os quilombolas por ele estudados
envolvendo a disputa de valores entre os agentes da modernidade e os agentes do grupo
aleacutem de utilizarem meios de produccedilatildeo modernos na criaccedilatildeo da tradiccedilatildeo
O objeto de estudo desta pesquisa a marca roccedila parece partilhar de aspectos
apontados por Lifschitz (2011) a respeito do uso de teacutecnicas modernas na criaccedilatildeo de
elementos associados agrave tradiccedilatildeo pois se pressupotildee que estes elementos estejam
envolvidos na fabricaccedilatildeo dos produtos da roccedila ou na performance da oferta dos
serviccedilos Ressalta-se ainda que o autor demonstra como essas teacutecnicas modernas atuam
na tentativa de sacralizar e revestir de aura os elementos tradicionais Aqui como em
Mannheim (1986) nota-se a referecircncia aos aspectos maacutegicos que envolvem o conceito
de tradiccedilatildeo Lifschitz (2011) assume ainda que nas comunidades por ele estudadas
pocircde observar a disputa pela autenticidade de determinadas praacuteticas culturais A busca
pela autenticidade tambeacutem parece fazer parte do jogo de disputas para definir o que eacute
um produto ou serviccedilo da roccedila Essa disputa que orbita o mercado de bens da roccedila se
insere num processo que embora conflituoso revela a tentativa de rurais citadinos e
neorrurais partilharem um horizonte de significados socialmente construiacutedo Esse
processo de alguma forma estaacute relacionado com experiecircncias que tentam romper com
o atomismo individual a racionalidade instrumental autocentrada e subjetivada
caracteriacutesticas da vida moderna conforme ressalta Taylor (2011) segundo Beltrami
(2012) e Silveira Rocha e Cardoso (2013)
Em suma pode-se destacar que no Brasil desde a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica ateacute
meados da deacutecada de 1950 a imagem do rural caracterizou-se pela valorizaccedilatildeo do
homem rural tido como modelo para a construccedilatildeo de uma identidade nacional com
65
uma visatildeo romacircntica de sua suposta inocecircncia simplicidade e honestidade Contudo
esse imaginaacuterio possui pitadas de ironia e comicidade revelando o homem rural como
preguiccediloso e desmotivado marginalizado do projeto de naccedilatildeo em vias de se urbanizar e
se industrializar Destaca-se nesse sentido o personagem Jeca Tatu de Monteiro
Lobato as peccedilas teatrais de duplas caipiras e a primeira fase dos filmes de Mazzaropi
representada pelo Jeca Esse periacuteodo desde a Repuacuteblica Velha ateacute o fim do Estado
Novo e iniacutecio da era nacional-desenvolvimentista correspondeu no que tange ao
autoritarismo poliacutetico e ao uso do homem rural no ideal nacional ao periacuteodo de
mitificaccedilatildeo conservadora apontado por Entrena-Duraacuten (2012) na Espanha guardadas as
devidas proporccedilotildees Uma das diferenccedilas mais marcantes nos dois casos eacute justamente a
ambiguidade discursiva sobre o rural no Brasil jaacute neste periacuteodo do iniacutecio do seacuteculo XX
quando o homem rural eacute ora modelo moral a ser seguido ora exemplo de
comportamento a ser estigmatizado
Em um segundo momento dos anos 1950 ateacute o final dos anos 1970 durante o
processo de urbanizaccedilatildeo e industrializaccedilatildeo mais intenso no Brasil aleacutem da
modernizaccedilatildeo agriacutecola acentuada eacute possiacutevel perceber novamente as posiccedilotildees ambiacuteguas
sobre o rural Primeiramente a indiferenccedila acadecircmica das Ciecircncias Sociais para com o
caipira que adiante se flexionaraacute na curiosidade sobre suas formas de resistecircncia agrave
urbanizaccedilatildeo e agrave industrializaccedilatildeo No cinema e na muacutesica passou-se a se refletir mais
ainda sobre a relaccedilatildeo entre os urbanos e os rurais especialmente pelo contexto de
ecircxodo rural e aglomeraccedilatildeo dessa populaccedilatildeo na periferia dos centros urbanos e no
trabalho proletaacuterio Assim o cinema de Mazzaropi conforme Fressato (2009) passou a
ironizar o citadino a partir da visatildeo do rural e a muacutesica antes caipira transformou seu
gecircnero em sertanejo com temas urbanos e modernos conforme destaca Oliveira (2009)
Mas eacute tambeacutem nessa eacutepoca que a muacutesica sertaneja passou a ser classificada como um
gecircnero inferior pela MPB como muacutesica cafona de caipira ou de uma massa urbana
alienada E o rural como um todo foi identificado ao atraso ao tradicional e
conservador em detrimento da cidade moderna e desenvolvida como destaca Oliveira
(2003) Essa mesma eacutepoca na Espanha foi classificada por Entrena-Duraacuten (2012)
como desenvolvimentista na qual se hierarquizou o urbano e o rural entre o avanccedilo e o
atraso respectivamente
O processo de valorizaccedilatildeo do rural apontado por Entrena-Duraacuten (2012) na
Espanha poacutes-produtivista poacutes anos 1980 seria marcado especialmente pelo
66
desenvolvimento do turismo rural e suas dinacircmicas inerentes neorrurais valorizaccedilatildeo da
qualidade de vida no campo criacutetica agrave agricultura produtivista e processos de
conservaccedilatildeo da natureza e dos aspectos de vida locais Os estudos analisados no Brasil
especialmente o de Eacuteboli (2007) e Silva G (2009) tambeacutem apontam para uma
valorizaccedilatildeo do rural a partir da criacutetica ao modelo civilizatoacuterio urbano e ao culto da
natureza Mas a valorizaccedilatildeo do rural a partir dos anos 1980 e 1990 no Brasil parece
natildeo passar somente pelo discurso do rural natureza e do rural idiacutelico da casa no campo
mas tambeacutem pela esteacutetica country ressignificada a partir das referecircncias culturais norte-
americanas (ALEM 1996 DE PAULA 1998 1999 2001 OLIVEIRA L 2003) E
embora revalorizem o rural reproduzindo alguns de seus aspectos culturais na cidade e
entre as camadas urbanas a esteacutetica country reproduz as antigas hierarquias sociais
dominantes no campo agora na cidade bem disfarccediladas numa suposta democracia de
acesso cultural agrave muacutesica sertaneja agraves festas de rodeio e agrave moda country conforme Alem
(1996) e De Paula (1998 2001) Eacute a revalorizaccedilatildeo do rural agrave moda brasileira com suas
ambiguidades e contradiccedilotildees
Sugere-se a partir da anaacutelise dessas obras sobre aspectos do rural brasileiro que
haacute a produccedilatildeo de um simulacro da tradiccedilatildeo rural nos moldes demonstrados por Entrena-
Duraacuten (2012) para o caso da Espanha no Brasil possivelmente recortado por uma
perspectiva nostaacutelgica e romacircntica conforme descreveu Elias (2001) trazendo a anaacutelise
para a contemporaneidade como forma de escapar pelo imaginaacuterio ou pelo turismo das
coerccedilotildees da sociedade moderna urbana e industrializada sem precisar abrir matildeo
efetivamente das suas condiccedilotildees de vida Esse simulacro se revela no consumo e
fruiccedilatildeo das muacutesicas sertanejas na adoccedilatildeo do estilo country no turismo rural na vida
neorrural no consumo de revistas ou na audiecircncia de programas de televisatildeo de
conteuacutedo rural e no sonho da casa no campo por exemplo Por outro lado as
hierarquias parecem se reproduzir especialmente quando se atenta para os trabalhos
mais recentes publicados apoacutes os anos 1990 Referimo-nos agrave disputa entre a muacutesica
sertaneja e a popular brasileira dentro do campo musical que conforme indicam
Allonso (2012) e Oliveira A (2009) tende a ser dominada pela segunda agraves
dificuldades de ajustamento dos alunos oriundos da roccedila do interior baiano ao discurso
escolar urbano conforme relata Rios (2011) agrave divisatildeo de classes que se estabelece na
cultura country e nos circuitos de rodeio sendo a primeira identificada a uma elite
dominante pelos autores Alem (1996) e De Paula (1998 1999 2001)
67
Essas reflexotildees nos levam a sugerir que no Brasil pelo menos ao longo do
seacuteculo XX constituiu-se um imaginaacuterio sobre o rural bastante complexo com contornos
ambiacuteguos e agraves vezes contraditoacuterios Elementos de idealizaccedilatildeo misturavam-se agraves
criacuteticas hierarquizaccedilotildees e dicotomias A partir dos anos 1990 essas contradiccedilotildees do
imaginaacuterio sobre o rural parecem ter se renovado ganhando novos elementos como a
cultura country e a valorizaccedilatildeo do rural como natureza Mas permaneceram as
diferenciaccedilotildees e os estereoacutetipos Acredita-se que a anaacutelise da categoria roccedila por meio
da produccedilatildeo o consumo de produtos e serviccedilos com essa marca desde os anos 1960 no
Brasil possa proporcionar um maior entendimento sobre como o imaginaacuterio acerca do
rural brasileiro se reconstroacutei nos discursos sobre a natureza a tradiccedilatildeo a autenticidade
a nostalgia e a distinccedilatildeo
16 Siacutentese dos usos e significados da categoria roccedila face agraves perspectivas
sobre o rural no Brasil
A revisatildeo de literatura a respeito dos usos e significados do termo roccedila no
Brasil e do imaginaacuterio sobre o rural neste paiacutes e tambeacutem em naccedilotildees europeias revelou
um conjunto de mudanccedilas que em siacutentese pode ser compreendido como a passagem de
um modelo dicotocircmico entre o campo e a cidade em que a vocaccedilatildeo agriacutecola do campo
acentuava a sua contradiccedilatildeo com a cidade No entanto a complexidade e a diversidade
que marcam a sociedade contemporacircnea apontam para uma aproximaccedilatildeo do modo de
vida das pessoas que vivem no campo em relaccedilatildeo aos citadinos Concomitantemente a
este fenocircmeno de diluiccedilatildeo dos contrastes entre os habitantes de ambos os espaccedilos tanto
o campo enquanto espaccedilo fiacutesico como o rural enquanto um modo de vida reinventado
passam a ser idealizados e valorizados como apontam Carneiro (2012) Entrena-Duraacuten
(2012) Jean (1989) Kayser (1990) Veiga (2004 2006) entre outros Estes autores
apontam para a emergecircncia de novos setores produtivos no campo para o surgimento de
novas ocupaccedilotildees e fontes de renda O campo passa a ser representado como um espaccedilo
de contemplaccedilatildeo fruiccedilatildeo e preservaccedilatildeo dos recursos naturais Esta faceta poacutes-
produtivista vinculada ao campo enquanto espaccedilo fiacutesico e ao rural enquanto modo de
vida parece ter tido o seu eco nos novos significados do vocaacutebulo roccedila Um dos campos
68
representativos dessa ressignificaccedilatildeo da categoria roccedila no Brasil seraacute analisado no
proacuteximo capiacutetulo
69
2 ROCcedilA UMA MARCA REGISTRADA A PRODUCcedilAtildeO A CIRCULACcedilAtildeO E O
CONSUMO DE PRODUTOS E SERVICcedilOS ldquoDA ROCcedilArdquo
21 A roccedila vai ao mercado uma interpretaccedilatildeo a partir da antropologia do
consumo
Novos usos e significados atribuiacutedos ao termo roccedila podem ser notados como foi
demonstrado anteriormente no imaginaacuterio expresso no cancioneiro popular em
algumas peccedilas literaacuterias e tambeacutem na induacutestria cultural do entretenimento e da
informaccedilatildeo Dentre esses diferentes contextos em que se expressam o uso do termo
roccedila optou-se por analisar nesta pesquisa o mercado de bens e serviccedilos que veiculam
este termo como marca ou que aludem a ele
Assim como o uso da expressatildeo roccedila na esfera da produccedilatildeo artiacutestica e da
induacutestria cultural parece ser um indicador da revalorizaccedilatildeo do campo enquanto espaccedilo
fiacutesico e do rural enquanto modo de vida no Brasil seu emprego no mercado tambeacutem
parece evidenciar esta faceta valorativa especialmente a partir de meados dos anos
1980 Mas a emergecircncia da circulaccedilatildeo de bens e serviccedilos que se autodefinem como da
roccedila tambeacutem sugere novos usos e significados aleacutem daqueles consagrados
historicamente no Brasil A tentativa de compreender esses novos usos e significados da
palavra roccedila no mercado brasileiro se justifica em termos da constataccedilatildeo da sua
expansatildeo poacutes anos 1960 mediada pelas trocas e pela possibilidade que o consumo
dispotildee na sociedade contemporacircnea de se reapropriar dos significados que a proacutepria
cultura produz (MILLER 1987 citado por DUARTE 2010) Assim sendo corrobora-se
com Anjos e Caldas (2014) quando afirmam que
Como eacute possiacutevel falar de uma nova ruralidade sem evocar os traccedilos que sustentam as representaccedilotildees sociais construiacutedas pelos consumidores supostamente aacutevidos por absorver a tradiccedilatildeo e o singular em detrimento do padronizado do convencional (ANJOS CALDAS 2014 p 52)
Nesse sentido analisar os usos e significados da expressatildeo roccedila na
contemporaneidade por meio do mercado permite observar de que maneira os mesmos
70
se institucionalizam ao ganhar um caraacuteter mais formal e racionalizado como marca de
um empreendimento por exemplo O movimento dos usos e significados de roccedila pode
ser pensado em termos de sua migraccedilatildeo de um gecircnero do discurso simples como aquele
relativo agrave comunicaccedilatildeo imediata como o diaacutelogo face a face para um gecircnero do
discurso complexo como aquele relativo agraves situaccedilotildees de comunicaccedilatildeo vinculadas ao
conviacutevio cultural predominantemente escrito nomeadamente atraveacutes das marcas de
produtos e serviccedilos com o termo roccedila Para Bakhtin (2003) os gecircneros complexos
como por exemplo o artiacutestico o cientiacutefico o juriacutedico e o publicitaacuterio incorporam e
reelaboram os gecircneros simples fazendo com que percam seu viacutenculo direto com a
realidade concreta Assim o uso da expressatildeo roccedila que antes se restringia ao discurso
informal do cotidiano no campo das relaccedilotildees sociais constitutivas do mundo rural
brasileiro com os seus conteuacutedos e significados intriacutensecos eacute incorporado por outras
esferas comunicativas mais formais e complexas caracterizadas por um contexto
urbano e moderno dentre as quais se destaca aqui o mercado de bens e serviccedilos
Para Bakhtin (2003) os gecircneros do discurso enquanto tipos relativamente
estaacuteveis de enunciados satildeo marcados por estilos padronizados e estereotipados mas o
autor admite que esses estilos tambeacutem podem ser flexiacuteveis plaacutesticos e criativos
(RODRIGUES 2004) Daiacute a percepccedilatildeo de novos usos e significados para o termo roccedila
nos roacutetulos de produtos que agraves vezes natildeo tecircm uma ligaccedilatildeo imediata com o mundo
rural Isso eacute possiacutevel porque para Bakhtin (2003) a diversidade de gecircneros eacute
determinada pelas posiccedilotildees sociais contextos relaccedilotildees sociais entre os sujeitos da
situaccedilatildeo de comunicaccedilatildeo Assim a escolha das ldquopalavrasrdquo para compor um enunciado
natildeo eacute determinada pelo seu conteuacutedo leacutexico ou seja pelo seu significado ldquoneutrordquo
encontrado em um dicionaacuterio mas pelo seu uso tiacutepico em outros enunciados
relacionados ao do sujeito que fala Este fenocircmeno parece ocorrer no emprego do termo
roccedila como marca de produtos e serviccedilos
A categoria roccedila como trabalho na produccedilatildeo agriacutecola voltado para o
abastecimento das populaccedilotildees vinculado agrave pequena produccedilatildeo familiar e ao
autossustento eacute incorporada ao sofisticado campo do marketing e da publicidade Por
isso o campo eleito nesta pesquisa como objeto de anaacutelise do vocaacutebulo roccedila foi dentre
as vaacuterias possibilidades existentes o mercado de bens e serviccedilos com as suas marcas
Tal escolha se alicerccedilou nas observaccedilotildees de Douglas e Isherwood (2013) que afirmam
que o sentido dos bens reside na sua capacidade de transportar e comunicar seu
71
significado cultural Essa tambeacutem eacute a perspectiva de Sahlins (2003 p 177) para quem
ldquoo proacuteprio consumo eacute uma troca (de significados) um discurso ndash ao qual virtudes
praacuteticas lsquoutilidadesrsquo satildeo agregadas somente post factordquo Sahlins (2003) inspira-se em
Baudrillard (1972)
Assim como eacute verdade da comunicaccedilatildeo do discurso tambeacutem eacute verdade dos bens e produtos o consumo eacute troca [] Haacute uma produccedilatildeo social um sistema de troca de materiais diferenciados de um coacutedigo de significados e valores constituiacutedos (BAUDRILLARD 1972 citado por SAHLINS 2003 p 177)
O mercado de produtos e serviccedilos eacute considerado um campo de accedilatildeo cujos
processos de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e consumo produzem significados e informam sobre
as relaccedilotildees sociais (BARBOSA L CAMPBELL 2006 DUARTE 2010) Neste
intento assume-se os bens como o fazem Douglas e Isherwood (2013) como sistemas
de categorias cuja funccedilatildeo eacute expressiva e simboacutelica permitindo captar os usos e
significados aqui pretendidos para o termo roccedila Natildeo se trata portanto de meros
objetos de consumo mas de coacutedigos que fazem parte de uma ordem cognitiva complexa
de categorias culturais e de relaccedilotildees entre elas que transmite distinccedilotildees Essas categorias
culturais de acordo com Sahlins (2003) podem ser manipuladas pela proacutepria
manipulaccedilatildeo dos bens uma vez que na sociedade ocidental burguesa a produccedilatildeo
material eacute o lugar dominante da produccedilatildeo simboacutelica
Analisar os significados do termo roccedila e de que forma eles expressam mudanccedilas
e permanecircncias relacionadas ao campo enquanto espaccedilo fiacutesico e ao rural enquanto
modo de vida no Brasil via a materialidade dos bens de consumo significa como
ressaltam Douglas e Isherwood (2013) tomar os objetos como a parte visiacutevel da cultura
nos quais se concretiza o intangiacutevel da ordem simboacutelica Para estes autores os objetos
ajudam na criaccedilatildeo de uma ordem cognitiva baseando-se em pressupostos e crenccedilas
culturais estabilizando e dando visibilidade agraves categorias culturais pela materialidade
Busca-se portanto neste capiacutetulo compreender o significado cultural sedimentado nos
bens (SAHLINS 2003)
A anaacutelise dos significados e usos do termo roccedila nas marcas de produtos e
serviccedilos permite ainda verificar uma das hipoacuteteses que guia este trabalho a qual
defende que este mercado que veicula a expressatildeo roccedila revela a flexibilizaccedilatildeo das
fronteiras demarcatoacuterias das hierarquias sociais historicamente instituiacutedas no Brasil por
72
meio de um processo que parece apontar para uma revalorizaccedilatildeo do rural Nesse
sentido o estudo dos bens e serviccedilos que se distinguem pela marca roccedila pode ser um
indiacutecio desse processo de valorizaccedilatildeo do rural brasileiro Segundo a perspectiva de
Baudrillard (1972) Douglas e Isherwood (2013) Sahlins (2003) no consumo estatildeo
subjacentes as construccedilotildees sociais de valor de dada sociedade Compartilha-se ainda da
perspectiva de Douglas e Isherwood (2013) de que o significado dos bens excede o seu
valor comercial o seu caraacuteter utilitaacuterio e a sua exibiccedilatildeo de status Para Sahlins (2003) a
circulaccedilatildeo de bens na sociedade ocidental comunica as suas ideias e categorias culturais
bem como revela os usos os significados e os valores que os sujeitos estabelecem com
os objetos apoacutes a sua aquisiccedilatildeo Segundo Sahlins (2003) portanto eacute o valor social que
estabelece o valor econocircmico ldquoEacute essa loacutegica simboacutelica que organiza a demanda O
valor social do fileacute ou da alcatra comparado com o da tripa ou liacutengua eacute o que
estabelece a diferenccedila em seu valor econocircmicordquo (SAHLINS 2003 p 176)
Assim se num primeiro momento a expansatildeo do mercado de bens e serviccedilos
com a marca roccedila parece sugerir um processo de agregaccedilatildeo de valor econocircmico
gerando ocupaccedilatildeo renda lucro e um nicho de mercado acredita-se que o escrutiacutenio dos
usos valores e significados envolvidos no processo de produccedilatildeo circulaccedilatildeo e consumo
de bens da roccedila revele um processo natildeo soacute de valoraccedilatildeo mas tambeacutem de valorizaccedilatildeo
do campo e do rural atraveacutes de bens associados aos mesmos evidenciando que os
valores sociais e natildeo soacute os utilitaacuterios fomentam a relaccedilatildeo entre os sujeitos e o mundo
dos bens Eacute nesse sentido que se desenvolvem as anaacutelises das marcas de produtos e
serviccedilos da roccedila nas paacuteginas seguintes
22 Procedimentos metodoloacutegicos e anaacutelise descritiva de marcas de produtos
e serviccedilos com o termo roccedila no Brasil
O primeiro passo para identificar o uso do termo roccedila na esfera dos bens no
Brasil consistiu na verificaccedilatildeo da existecircncia de produtos e serviccedilos que solicitaram o
registro da marca roccedila no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) do
Ministeacuterio da Induacutestria Comeacutercio e Desenvolvimento Exterior No Brasil a proteccedilatildeo agrave
propriedade industrial no geral existe desde 1809 tendo sido elaborada a partir da
73
vinda da Coroa Portuguesa em 1808 Mas a proteccedilatildeo agraves marcas foi especificamente
tratada em lei em 1875 por meio de uma representaccedilatildeo feita por Rui Barbosa conforme
descreve Massinelli (2014) Atualmente segundo esta autora a lei que trata do registro
de marcas e da Propriedade Industrial como um todo eacute a Lei nordm 9279 de 14 de maio
de 1996 e o oacutergatildeo responsaacutevel pela concessatildeo e garantia dos direitos de propriedade
intelectual para a induacutestria eacute o INPI Este oacutergatildeo eacute uma autarquia federal criada em
1970 e seus principais produtos satildeo o ldquoregistro de marcas desenhos industriais
indicaccedilotildees geograacuteficas programas de computador e topografias de circuitos as
concessotildees de patentes e as averbaccedilotildees de contratos de franquia e de transferecircncia de
tecnologiardquo (INPI 2015)
O sistema de registro de marcas no Brasil eacute feito por meio da solicitaccedilatildeo do
proacuteprio titular (ou por meio de um intermediaacuterio como uma agecircncia publicitaacuteria de
design ou por advogados) no INPI O depoacutesito do pedido de marcas eacute examinado pelo
INPI e soacute eacute concedido se este identificar que a marca atende agraves exigecircncias de registro e
se eacute uacutenica no seu ramo de atividade econocircmica natildeo podendo portanto ser repetida para
o mesmo produto ou serviccedilo As marcas podem ser protegidas em caraacuteter nominal
(apenas o seu nome) figurativo (siacutembolos e logotipo) e misto (ou seja ambos) O
procedimento conta com vaacuterias fases que o solicitante deve atender para ter sua marca
registrada Caso o registro seja concedido a marca eacute protegida por dez anos e sua
renovaccedilatildeo eacute possiacutevel No Brasil conforme destacam vaacuterios autores a propriedade da
marca eacute atributiva ou seja apenas por meio do seu registro legal (SILVA E 2014
TEIXEIRA 2007) A marca de acordo com o site do INPI eacute um sinal visual distintivo
que identifica o produto ou serviccedilo e o distingue em relaccedilatildeo aos outros e o certifica
quanto agrave sua conformidade com normas e especificaccedilotildees teacutecnicas (INPI 2014)
Realizou-se a consulta agrave base de dados do INPI no site wwwinpigovbr
visando identificar produtos e serviccedilos que tiveram seus registros solicitados com a
marca roccedila Esse processo foi possiacutevel porque o INPI informa aos solicitantes que antes
de fazer um pedido de registro de marca o interessado deve pesquisar se a marca que
pretende registrar estaacute disponiacutevel ou seja se o nome pretendido jaacute natildeo foi registrado
por outro titular o que impossibilitaria utilizaacute-la A consulta foi realizada no mecircs de
fevereiro de 2013 e sistematicamente atualizada ao longo dos anos de 2013 e 2014
Foram identificados 498 processos que solicitavam registro com a marca roccedila no
INPI Esses processos foram exportados em forma de planilha para o software Microsoft
74
Excel 2010 para que os dados pudessem ser processados A partir de entatildeo efetuou-se
alteraccedilotildees na planilha para atender aos objetivos desta pesquisa Excluiu-se nomes de
marcas com o radical roccedila mas que se tratavam de outras nomeaccedilotildees e retirou-se
tambeacutem as marcas repetidas que tinham seu processo de registro perpetrado pelo mesmo
titular para natildeo super-representar a amostra Entretanto em alguns casos natildeo foi
possiacutevel constatar se o registro havia sido feito pelo mesmo titular por isso ainda
aparecem muitas marcas repetidas com titulares aparentemente diferentes Apoacutes a
realizaccedilatildeo desses filtros restaram 325 produtos ou serviccedilos com a solicitaccedilatildeo de registro
com a marca roccedila no INPI que compuseram a amostra final
Efetuou-se a identificaccedilatildeo da classificaccedilatildeo das marcas de acordo com suas
caracteriacutesticas se produto ou serviccedilo efetuada pelo proacuteprio titular da marca segundo os
criteacuterios de normatizaccedilatildeo utilizados pelo INPI Os produtos e serviccedilos registrados no
INPI foram classificados pelos seus titulares com base nas ediccedilotildees 7ordf 8ordf 9ordf e 10ordf da
Classificaccedilatildeo Nacional e da Classificaccedilatildeo de Nice A descriccedilatildeo da classe de produtos e
serviccedilos a qual cada marca de roccedila pertencia citava por exemplo alimentos bebidas
casas de cultura lazer e entretenimento gastronomia comeacutercio de insumos agriacutecolas e
etc A tabela extraiacuteda do site do INPI continha ainda informaccedilotildees sobre a data e a
situaccedilatildeo do processo de registro (se registrado extinto ou arquivado)
O banco de dados construiacutedo a partir da coleta realizada no INPI foi analisado
buscando-se identificar a sua evoluccedilatildeo ao longo dos anos e a divisatildeo entre produtos e
serviccedilos A partir destes procedimentos foi possiacutevel estabelecer um confronto com as
hipoacuteteses delineadas Tambeacutem foram realizadas anaacutelises de conteuacutedo com base nos
princiacutepios orientados por Bardin (1977) visando identificar significados e padrotildees de
categorias de classificaccedilatildeo aleacutem de sua evoluccedilatildeo temporal
Constatou-se que as marcas coletadas eram de processos de registros no INPI
perpetrados de 1965 ateacute 2014 Considerou-se entatildeo estas cinco deacutecadas de registros
das marcas a fim de agrupaacute-las ao longo do tempo de 1965 a 1974 de 1975 e 1984 de
1985 a 1994 de 1995 a 2004 e de 2005 a 2014 Os recortes temporais permitiram
observar a evoluccedilatildeo da solicitaccedilatildeo de registros com a marca roccedila ao longo das cinco
deacutecadas bem como as mudanccedilas na frequecircncia da sua ocorrecircncia considerando-se os
produtos e serviccedilos
A anaacutelise descritiva contou ainda com a identificaccedilatildeo dos tipos de produtos e
serviccedilos com a marca roccedila a partir da Classificaccedilatildeo de Nice informada pelo proacuteprio
75
titular da marca Cada uma dessas categorias produtos e serviccedilos conteve tambeacutem suas
subdivisotildees a partir das discriminaccedilotildees de diferentes produtos e serviccedilos de acordo com
o sistema de normatizaccedilatildeo do INPI que classificou a natureza de cada objeto De acordo
com a Classificaccedilatildeo Nacional e a Classificaccedilatildeo de Nice os produtos e serviccedilos com a
marca roccedila foram identificados pelos titulares no processo de registro do INPI como
QUADRO 2 ndash Classificaccedilotildees Nacional e de Nice dos produtos e serviccedilos com a marca roccedila com processo de registro no INPI
Produtos Serviccedilos Armarinho Atividades culturais Artigos veterinaacuterios herbicidas fungicidas Cafeacute patildees pastelaria Bebida alcooacutelica Editora Beneficiamento Educaccedilatildeo formaccedilatildeo lazer atividades
desportivas e culturais Cafeacute Entretenimento e atividades culturais Cafeacute5 chaacute condimentos farinaacuteceos Fornecimento de comida e bebidas
acomodaccedilotildees temporaacuterias Carnes frutas e legumes em conserva secos e cozidos geleias doces compotas laticiacutenios ovos oacuteleos e gorduras comestiacuteveis
Jogos e brinquedos educaccedilatildeo formaccedilatildeo lazer atividades culturais
Carvatildeocombustiacutevel Lazer e atividades culturais Casa de veterinaacuteria adubos cutelaria Propaganda gestatildeo de negoacutecios funccedilotildees de
escritoacuterio Cereal Publicidade gestatildeo de negoacutecios comerciais
administraccedilatildeo comercial Faacutermacos fungicidas e herbicidas Restaurante Maacutequinas Restaurante alojamento temporaacuterio Maacutequinas e ferramentas agriacutecolas Telecomunicaccedilotildees Maacutequinas ferramentas mecacircnicas instrumentos agriacutecolas natildeo manuais
Telecomunicaccedilotildees e educaccedilatildeo formaccedilatildeo lazer atividades culturais
Moacuteveis e artigos de vaacuterios materiais Telecomunicaccedilotildees e entretenimento Produtos agriacutecolas frutas e verduras frescas animais plantas flores sementes e alimentaccedilatildeo para animais
Telecomunicaccedilotildees e entretenimento atividades culturais
Serviccedilos veterinaacuterios de agricultura horticultura e silvicultura
Telecomunicaccedilotildees e publicidade gestatildeo de negoacutecios comerciais administraccedilatildeo comercial
Tabaco artigos para fumantes foacutesforos Utensiacutelios domeacutesticos Vestuaacuterio calccedilados e chapelaria
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir do Banco de dados do INPI de 2014
5 Como pode ser observado algumas dessas categorias se repetem porque ao longo dos anos o sistema de Classificaccedilatildeo Nacional e de Classificaccedilatildeo de Nice foram sendo revisados e atualizados acrescentado um ou outro item agraves classificaccedilotildees jaacute existentes
76
Efetuou-se entatildeo um reagrupamento dessas classificaccedilotildees visando tornar essas
informaccedilotildees mais sinteacuteticas para a anaacutelise Na categoria produtos construiu-se o
reagrupamento alimentos bebidas utensiacutelios domeacutesticos beneficiamento bioquiacutemicos
maacutequinas vestuaacuterio mobiliaacuterio armarinho minerais e fumo A categoria serviccedilos foi
reorganizada nas seguintes subdivisotildees negoacutecios cultura gastronomia e turismo Apoacutes
esse reagrupamento chegou-se ao seguinte quadro
77
QUADRO 3 ndash Reagrupamento das categorias de produtos e serviccedilos com a marca roccedila com processo de registro no INPI a partir das Classificaccedilotildees Nacional e de Nice
ALIMENTOS Cafeacute chaacute condimento farinaacuteceos
Carnes frutas e legumes em conserva secos e cozidos geleias doces compotas laticiacutenios ovos oacuteleos e gorduras comestiacuteveis
Cereal Produtos agriacutecolas frutas e verduras frescas animais plantas flores sementes e alimentaccedilatildeo para animais
ARMARINHO Armarinho BEBIDAS Bebida alcooacutelica Cafeacute Cervejas aacutegua e
sucos de fruta
BENEFICIAMENTO Beneficiamento BIOQUIacuteMICOS Artigos veterinaacuterios
herbicidas fungicidas Casa de veterinaacuteria adubos cutelaria
Faacutermacos fungicidas e herbicida
Serviccedilos veterinaacuterios de agricultura horticultura e silvicultura
FUMO Tabaco artigos para fumantes foacutesforos
MAacuteQUINAS Maacutequinas Maacutequinas e ferramentas agriacutecolas
Maacutequinas ferramentas mecacircnicas instrumentos agriacutecolas natildeo manuais
MINERAIS Carvatildeocombustiacutevel MOBILIAacuteRIO Moacuteveis e artigos de
vaacuterios materiais
UTENSIacuteLIOS Moacuteveis e artigos de vaacuterios materiais
Utensiacutelios domeacutesticos
VESTUAacuteRIO Vestuaacuterio calccedilados e chapelaria
CULTURA Editora
Jogos e brinquedos telecomunicaccedilotildees e entretenimento educaccedilatildeo formaccedilatildeo lazer atividades desportivas e culturais
GASTRONOMIA Cafeacute patildees pastelaria
Fornecimento de comida e bebidas acomodaccedilotildees temporaacuterias
Restaurante
Restaurante alojamento temporaacuterio
NEGOacuteCIOS Propaganda gestatildeo de negoacutecios funccedilotildees de escritoacuterio
Publicidade gestatildeo de negoacutecios comerciais administraccedilatildeo comercial
Telecomunicaccedilotildees e publicidade gestatildeo de negoacutecios comerciais administraccedilatildeo comercial
TURISMO Fornecimento de comida e bebidas acomodaccedilotildees temporaacuterias
Restaurante alojamento temporaacuterio
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir do Banco de dados do INPI de 2014
Apoacutes essa reorganizaccedilatildeo das categorias de produtos e serviccedilos realizou-se as
anaacutelises descritiva das marcas roccedila Para cada deacutecada foram descritas a quantidade de
78
solicitaccedilotildees de registro de marcas com o termo roccedila o nuacutemero de produtos e serviccedilos
ou ambos e quais eram os tipos de produtos e de serviccedilos identificados
No Brasil entre os anos de 1965 e 2014 foram feitas 325 solicitaccedilotildees para
registro de marca com o termo roccedila no INPI Apesar de o INPI ter sido criado em 1970
haacute um pedido de registro de marca feito em 1965 com a palavra roccedila tratando-se
inclusive da proteccedilatildeo do nome do personagem Zeacute da Roccedila desenhado pelo cartunista
brasileiro Mauriacutecio de Souza A evoluccedilatildeo dos pedidos de registro de marca no Brasil
para o vocaacutebulo roccedila de acordo com os dados colhidos no INPI podem ser conferidos
na tabela a seguir
TABELA 1 ndash Quantidade de solicitaccedilotildees de registro de marca com o termo roccedila no INPI no Brasil por deacutecadas
DEacuteCADAS SOLICITACcedilOtildeES DE REGISTRO
1965-1974 2 06
1975-1984 5 15
1985-1994 36 111
1995-2004 111 342
2005-2014 171 526
TOTAL 325 1000
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site do INPI no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr
Nas duas primeiras deacutecadas analisadas entre 1965 e 1974 e de 1975 a 1984 o
nuacutemero de solicitaccedilotildees de registro para a marca roccedila foi bastante reduzido A partir de
meados da deacutecada de 1980 no entanto a quantidade de pedidos aumentou
gradativamente Destaca-se sobretudo que metade das solicitaccedilotildees feitas ao INPI para
o registro com a marca roccedila se concentrou nos uacuteltimos dez anos a partir de 2005
correspondendo a 526 do total Embora o aumento dos processos de registro de
marcas para produtos e serviccedilos da roccedila possa estar relacionado a um simples processo
de racionalizaccedilatildeo e institucionalizaccedilatildeo dos estabelecimentos comerciais e empresas no
Brasil no geral o que se pretende notabilizar com esses dados eacute o fato da categoria
roccedila figurar nesse processo de forma evolutiva conforme pode-se observar no graacutefico
abaixo
79
GRAacuteFICO 1 ndash Evoluccedilatildeo das solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site do INPI no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr
Diversos fatores podem estar relacionados ao aumento do registro de marcas De
acordo com Lluch (2013) a proliferaccedilatildeo das marcas estaacute associada agrave consolidaccedilatildeo das
grandes empresas modernas e no caso da Argentina por ela estudado seria um traccedilo
principal do proacuteprio desenvolvimento do capitalismo nesse paiacutes Para esta autora a
consolidaccedilatildeo de uma sociedade de consumo dominada pelas marcas estaacute associada agrave
ldquodifusatildeo de novos meacutetodos de vendas variaccedilotildees nos niacuteveis de renda e grau de
urbanizaccedilatildeordquo (LLUCH 2013) No caso do Brasil destaca-se o acelerado processo de
urbanizaccedilatildeo ocorrido especialmente entre 1950 e 1980 (devido especialmente agrave
migraccedilatildeo campo-cidade) e seu consequente incremento populacional ldquoexuberanterdquo
ainda em 2000 e 2010 apesar do decliacutenio no ritmo de crescimento absoluto conforme
ressaltam Brito e Pinho (2012)
Quanto agrave variaccedilatildeo do niacutevel de renda pesquisas recentes publicadas no ano de
2012 apontaram para a formaccedilatildeo de uma ldquonova classe meacutediardquo ou ldquonova classe Crdquo
graccedilas a abertura de cerca de 2 milhotildees e meio de novos postos de trabalho com
remuneraccedilatildeo de ateacute trecircs salaacuterios miacutenimos na primeira deacutecada do seacuteculo XXI no Brasil
(NEacuteRI 2012 POCHMANN 2012 citado por SOUZA J 2014) Esse incremento da
ocupaccedilatildeo e renda com aumento real do salaacuterio miacutenimo complementado pelas poliacuteticas
de transferecircncia de renda como o Bolsa Famiacutelia e a expansatildeo do microcreacutedito seriam
fatores apontados por esses autores como responsaacuteveis pela potencial mobilidade de
classe e inclusatildeo no mercado de bens e consumo Embora o proacuteprio Souza J (2014) se
contraponha aos argumentos de Neacuteri (2012) e Pochmann (2012) a respeito da
mobilidade de classe e do caraacuteter ldquoessencialmente economicistardquo de suas interpretaccedilotildees
2 5
36
111
171
0
20
40
60
80
100
120
140
160
180
1965-1974 1975-1984 1985-1994 1995-2004 2005-2014
SOLICITACcedilOtildeES DE REGISTRO COM A MARCA ROCcedilA
80
o autor natildeo nega o incremento nas faixas de renda do que denomina de classe
trabalhadora ou ldquobatalhadorardquo como tambeacutem natildeo nega o aumento de postos de trabalho
formais surgidos na uacuteltima deacutecada no Brasil
Segundo Guedes (2012) nos uacuteltimos trinta anos o INPI concedeu cerca de um
milhatildeo de registros e estima que tem recebido ainda cerca de 80 mil solicitaccedilotildees
anuais Apesar disso dados estatiacutesticos indicam que no Brasil apenas 15 das
empresas com registro na Junta Comercial solicitam o registro de marca no INPI como
afirma Copetti (2007 p 204) baseada em Correa (2001) Por outro lado Guedes (2012)
afirma que no ano de 2011 foram solicitados 150000 registros de marcas no Brasil
Neste mesmo ano foram feitos 18 pedidos de registro de marcas com a palavra roccedila o
que representa apenas 0012 do universo total de processos Dito isso ressalta-se que
essa amostra com marcas com o nome roccedila coletada no INPI natildeo eacute representativa haja
vista que a quantidade de estabelecimentos que veiculam a marca roccedila no Brasil sem
solicitar o seu registro eacute desconhecida O que importa observar por enquanto eacute
justamente a escolha pelos proprietaacuterios de usar o vocaacutebulo roccedila no naming
(GUEDES 2012) ou seja no processo de criaccedilatildeo de sua marca acreditando que esse
termo possui um apelo mercadoloacutegico para o puacuteblico consumidor de seu produto ou
serviccedilo com os seus consequentes benefiacutecios em termos de publicidade fidelizaccedilatildeo da
clientela lucro advindo de licenccedilas e franquias entre outros como um fenocircmeno em si
(COPETTI 2007 GUEDES 2012 SILVA E 2014)
Na pesquisa em questatildeo a fim de se ter contato com sua identidade visual para
aleacutem do nome da marca procedeu-se a uma busca no Google pelo seu logotipo e
marketing Foram feitas duas etapas distintas de pesquisa uma aleatoacuteria na qual se
buscava qualquer marca com o termo roccedila e outra dirigida na qual se procurava
especificamente as marcas contidas no banco de dados extraiacutedo do INPI A pesquisa
aleatoacuteria no Google com a marca roccedila foi realizada nos meses de janeiro fevereiro e
marccedilo de 2014 estando seus resultados portanto condicionados a esse periacuteodo
Importante frisar que ao se digitar um termo de pesquisa num site buscador na
internet os resultados retornados satildeo sugeridos entre outros criteacuterios tambeacutem com base
no rastreamento de pesquisas anteriores com o mesmo termo (GOOGLE 2015) Isso
significa que de alguma forma os resultados apresentados correspondem a sites blogs
e paacuteginas de redes sociais mais acessadas eou populares Nos sites coletou-se quando
existiam as seguintes informaccedilotildees nome da marca tipo de estabelecimento (produtos
81
ou serviccedilos e sua especificaccedilatildeo) o responsaacutevel o endereccedilo do site o telefone a cidade
e o estado Essas informaccedilotildees compuseram uma planilha com o total de 43 marcas Essa
planilha foi utilizada posteriormente como amostra para o envio de questionaacuterios aos
seus responsaacuteveis com questotildees concernentes aos objetivos da pesquisa
Num segundo momento realizou-se uma busca no Google pelas marcas roccedila do
banco de dados do INPI Esse processo foi realizado entre abril de 2014 e abril de 2015
sendo seus resultados portanto condicionados a esse periacuteodo Ao se identificar a paacutegina
de divulgaccedilatildeo de cada marca especiacutefica colhiam-se quando disponiacuteveis as
informaccedilotildees sobre o nome da marca o tipo de estabelecimento o responsaacutevel o
endereccedilo do site o endereccedilo eletrocircnico o telefone a cidade e o estado Foram
identificados no total 162 marcas considerando ambos os procedimentos de pesquisa
que incluiacuteram as 43 anteriores Esses dados formaram uma planilha que possibilitou a
visualizaccedilatildeo da distribuiccedilatildeo espacial dessas marcas no Brasil A partir dessa planilha
construiu-se um mapa do Brasil com a indicaccedilatildeo das cidades onde se encontrou a marca
roccedila O mapa foi construiacutedo no software Quantum Gis6 versatildeo 21 Pisa com a
utilizaccedilatildeo do banco de dados7 disponibilizado pelo portal de mapas do IBGE Esse
mapeamento possibilitou que este fenocircmeno pudesse ser percebido pelo seu
espraiamento espacial aleacutem do recorte temporal que a anaacutelise dos dados do INPI jaacute
havia propiciado
6 O Quantum Gis ou QGIS eacute um Sistema de Informaccedilatildeo Geograacutefica desenvolvido pela Open Source Geospatial Foundation (OSGeo) e licenciado como software livre pela GNU General Public License (QGISBRASIL 2015) 7 Foi utilizado o banco de dados ldquoLimitesrdquo da Base Cartograacutefica Vetorial do Brasil (BASE [2007]) disponibilizado pelo IBGE
82
FIGURA 7 ndash Mapa dos municiacutepiosEstados com produtos e serviccedilos com a marca roccedila no Brasil por regiatildeo 2014
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira no software QGIS 21 utilizando o banco de dados
ldquoLimitesrdquo da Base Cartograacutefica Vetorial do Brasil (BASE [2007]) disponibilizado pelo portal de mapas do IBGE no endereccedilo
ftpgeoftpibgegovbrmapeamento_sistematicobase_vetorial_continua_escala_250mil (Acesso em 02082015)
Este mapeamento revelou a ocorrecircncia de estabelecimentos que ofereciam algum
tipo de serviccedilo ou que vendiam produtos com a marca roccedila em todas as regiotildees do
Brasil Todavia se percebeu uma maior concentraccedilatildeo destas marcas na Regiatildeo Sudeste
Se o argumento de Lluch (2013) de que a proliferaccedilatildeo de marcas registradas estaacute
atrelada aos maiores graus de urbanizaccedilatildeo e aumentos dos niacuteveis de renda estaacute correto
a maior ocorrecircncia de marcas com o termo roccedila na Regiatildeo Sudeste do Brasil pode estar
relacionada com o fato de que esta regiatildeo se caracteriza pelos maiores niacuteveis de
urbanizaccedilatildeo (CENSO 2013) renda8 e de existecircncia de grandes empresas9
8 Fazendo-se uma meacutedia ao longo de 10 anos entre 2001 e 2011 do valor do rendimento meacutedio mensal da populaccedilatildeo acima de 10 anos segundo os dados das Seacuteries Histoacutericas e Estatiacutesticas do IBGE a Regiatildeo Sudeste tem a maior meacutedia seguida das regiotildees Sul e Centro-Oeste com meacutedias bem proacuteximas agravequela do Sudeste (PNAD 2015) 9 Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributaacuterio (2012) no ano de 2012 a Regiatildeo Sudeste concentrava 49 dos empreendimentos do paiacutes seguida pelo Nordeste e Sul com 19 cada um
83
Por outro lado esta amostra foi construiacuteda a partir da identificaccedilatildeo das marcas
em espaccedilos virtuais de divulgaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo ou seja pode existir um nuacutemero
muito maior de marcas de produtos e serviccedilos em outras regiotildees as quais natildeo foram
contabilizadas por natildeo aparecerem na internet Na tabela a seguir eacute possiacutevel observar a
ocorrecircncia de estabelecimentos que ofertam bens ou serviccedilos com a marca roccedila em
cada unidade da federaccedilatildeo a partir da amostra colhida na internet
TABELA 2 ndash Quantidade de produtos e serviccedilos com a marca roccedila por unidades da federaccedilatildeo no Brasil identificadas na internet
ESTADO QUANTIDADE DE MARCAS
Satildeo Paulo 44
Minas Gerais 35
Rio de Janeiro 19
Paranaacute 13
Espiacuterito Santo 12
Pernambuco 7
Bahia 5
Goiaacutes 5
Cearaacute 4
Distrito Federal 3
Santa Catarina 3
Rio Grande do Sul 3
Mato Grosso 2
Rio Grande do Norte 2
Amazonas 1
Mato Grosso do Sul 1
Paraacute 1
Paraiacuteba 1
Rondocircnia 1
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
Pode-se notar que os Estados onde a marca foi mais recorrente foram Satildeo Paulo
Minas Gerais Rio de Janeiro e Espiacuterito Santo Nesse sentido conforme pode ser
percebido naquele mapa parece haver um ciacuterculo concecircntrico cujo epicentro estaacute na
Regiatildeo Sudeste mas que vai se irradiando em espiral para a vizinhanccedila Centro-Oeste
Sul e a parte litoracircnea do Nordeste
O que a aacuterea de maior concentraccedilatildeo das marcas roccedila parece indicar eacute para aleacutem
dos iacutendices de urbanizaccedilatildeo renda e grandes empresas acima discutido uma heranccedila
cultural do uso da palavra roccedila para designar a produccedilatildeo de mantimentos que
84
abasteciam a populaccedilatildeo rural e urbana em tempos preteacuteritos Boa parte das regiotildees e
Estados com maior aglomeraccedilatildeo de produtos e serviccedilos com a marca roccedila coincide com
a regiatildeo sob a influecircncia da cultura caipira segundo Cacircndido (2010) e Ribeiro (2006)
com os espaccedilos mais antigos da colonizaccedilatildeo brasileira em seus diferentes ciclos
produtivos desde a Bahia e Pernambuco passando pela regiatildeo mineradora e de fluxo
bandeirante que irradiou traccedilos da cultura caipira ateacute a Regiatildeo Sul nos caminhos dos
tropeiros
Nestes contextos conforme assinalaram vaacuterios autores anteriormente discutidos
formavam-se as roccedilas nas estradas das expediccedilotildees nas margens dos rios das grandes
lavouras dos currais e minas nas franjas urbanas ou mesmo nas terras devolutas e
mais tarde nas pequenas propriedades familiares para garantir o abastecimento local
(CANDIDO 2010 HOLANDA 1994 1995 OLIVEIRA M 2012 RIBEIRO 2006)
O uso da palavra roccedila para se referir agrave produccedilatildeo de mantimentos pode ser notado
tambeacutem na categorizaccedilatildeo feita pelos titulares das marcas por ocasiatildeo da solicitaccedilatildeo de
registro no INPI entre produtos e serviccedilos A grande maioria das marcas roccedila com
pedido de registro no INPI ao longo dos anos eacute do setor de alimentos conforme eacute
possiacutevel se verificar no graacutefico que se segue
GRAacuteFICO 2 ndash Tipos de produtos com solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila no
Brasil no INPI
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site
do INPI no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr Aleacutem dos produtos alimentiacutecios com a marca roccedila sugerirem uma permanecircncia
em termos do uso desta palavra para designar a produccedilatildeo de mantimentos observou-se
que outros produtos tambeacutem utilizaram a marca roccedila tais como produtos do setor de
beneficiamento de alimentos de bebidas em especial a cachaccedila o vinho e os sucos
Alimentos 132
Bebidas 59
Utensiacutelios domeacutesticos
7
Beneficiamento 5
Outros 14
85
naturais o fumo e o carvatildeo vegetal (mineral) Todos estes produtos tinham a sua
produccedilatildeo associada agrave roccedila como lavoura ou mesmo agrave agroinduacutestria em termos de uma
praacutetica produtiva tiacutepica do campo
Mas tambeacutem os produtos relativos agraves utilidades domeacutesticas o vestuaacuterio o
mobiliaacuterio e o armarinho ao fazer uso da categoria roccedila no seu naming denotavam um
processo de significaccedilatildeo relativo agrave cultura rural aos modos de vida tiacutepicos do campo ao
empregar roccedila como sinocircnimo de rural Os bioquiacutemicos e maacutequinas em geral referiam-
se agrave produccedilatildeo e venda de herbicidas fungicidas insumos quiacutemicos para uso na
agricultura aleacutem de todo o maquinaacuterio ferramentas e implementos agriacutecolas A
participaccedilatildeo de cada tipo de produto no conjunto das marcas roccedila em processo de
registro de INPI pode ser visto na tabela abaixo
TABELA 3 ndash Evoluccedilatildeo dos tipos de produtos e serviccedilos com solicitaccedilotildees de registro
com a marca roccedila no Brasil no INPI
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site do INPI no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr
Os dados expressos nessa tabela coletados dos registros de marcas roccedila do INPI
permitem afirmar que o principal ramo de atividade que faz uso do termo roccedila como
marca eacute o referente aos alimentos e agraves bebidas Os processos de registro desses produtos
demonstraram uma tendecircncia de aumento gradativo nas uacuteltimas trecircs deacutecadas (1985-
Tipo 1965-1974
1975-1984
1985-1994
1995-2004
2005-2014
Produtos Alimentos 2 13 42 75 Bebidas 3 10 26 20 Utensiacutelios domeacutesticos 1 3 2 1 Beneficiamento 2 3 Bioquiacutemicos 1 3 Maacutequinas 1 1 1 Vestuaacuterio 2 Mobiliaacuterio 2 Armarinho 1 Minerais 1 Fumo 1 Total de produtos 0 6 32 75 104 Serviccedilos Negoacutecios 1 5 18 37 Cultura 1 1 4 17 15 Gastronomia 14 32 Turismo 2 4 Total de serviccedilos 2 1 9 51 88
86
2014) embora o setor de bebidas pareccedila ter se estabilizado nos dois uacuteltimos dececircnios
Os outros produtos apareceram de forma intermitente e em poucas quantidades mas
sugerem uma recorrecircncia tambeacutem a partir de 1985 Em termos da principal divisatildeo
operada pelo INPI signataacuterio da Classificaccedilatildeo de Nice entre produtos e serviccedilos a
evoluccedilatildeo cronoloacutegica da marca roccedila tambeacutem merece observaccedilatildeo
TABELA 4 ndash Evoluccedilatildeo dos produtos e serviccedilos com solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila no Brasil no INPI
TIPODEacuteCADAS 1965-1974 1975-1984 1985-1994 1995-2004 2005-2014
Produtos 1 4 26 63 90
Serviccedilos 1 1 9 4 72
Produtos e serviccedilos 1 44 9
TOTAL 2 5 36 111 171
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site do INPI no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr
Assim como jaacute foi destacado anteriormente as duas primeiras deacutecadas (1965-
1984) tiveram uma quantidade reduzida de pedidos de registro para a marca roccedila sendo
dois no primeiro dececircnio e cinco no segundo Assim os primeiros registros da marca
foram destinados tanto para produtos quanto para serviccedilos enquanto que nos anos
1970 jaacute parecem indicar uma maior predominacircncia dos produtos em detrimento dos
serviccedilos apesar da pequena quantidade Nesse sentido as tendecircncias permitem
possiacuteveis inferecircncias nas trecircs uacuteltimas deacutecadas a partir dos anos 1980 A deacutecada de
1985-1994 foi marcada por uma predominacircncia da oferta de marcas roccedila de produtos
em relaccedilatildeo aos serviccedilos especialmente de alimentos e bebidas como jaacute foi salientado
Na deacutecada seguinte entre 1995-2004 ocorreu uma mudanccedila e parte
consideraacutevel das marcas com o termo roccedila teve seu registro requerido declarando seu
setor de atividade concomitantemente como produto e serviccedilo Assim o titular poderia
proteger a marca para mais de um ramo de atividade Observando-se as classes o nome
da empresa e a descriccedilatildeo da marca pode-se inferir que nesse dececircnio muitos titulares
fizeram a requisiccedilatildeo de registro da marca roccedila natildeo soacute para o produto feijatildeo por
exemplo mas tambeacutem para o seu proacuteprio escritoacuterio de negoacutecios no caso de uma
distribuidora de alimentos supostamente Essa ampliaccedilatildeo da definiccedilatildeo do ramo de
atividade no caso da marca roccedila entre os anos de 1995 e 2004 tambeacutem pode estar
relacionada ao salto no nuacutemero de solicitaccedilotildees de registro da marca roccedila em relaccedilatildeo agrave
deacutecada anterior o que pode ter obrigado alguns titulares a tentar registrar a sua marca
87
em um outro setor no caso da mesma marca jaacute ter sido concedida a outro
estabelecimento no mesmo ramo de atividades Embora as causas dessa mudanccedila natildeo
estejam claras o aumento de serviccedilos (junto com os produtos) na deacutecada de 1995 foi
uma tendecircncia que se manteve entre 2005 e 2014 embora nesse uacuteltimo dececircnio os
titulares tenham requisitado o registro da marca roccedila separadamente para produtos ou
serviccedilos conforme eacute possiacutevel verificar no graacutefico abaixo
GRAacuteFICO 3 ndash Evoluccedilatildeo dos produtos e serviccedilos com solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila no Brasil no INPI
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site
do INPI no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr
Constata-se assim que o aumento dos serviccedilos que veiculam como marca o
termo roccedila no Brasil desde meados da deacutecada de 1990 pode indicar ao mesmo tempo
a difusatildeo de uma cultura de um tipo de representaccedilatildeo do rural na cidade a qual se torna
visiacutevel atraveacutes da oferta natildeo soacute de serviccedilos relacionados agrave produccedilatildeo agriacutecola mas
principalmente de restaurantes lanchonetes festivais programas televisivos de
entretenimento e eventos culturais no geral que promovem algum tipo de experiecircncia
rural Nesse sentido o que outros autores como Alem (1996) e De Paula (1998 1999
2001) jaacute traduziram por meio da esteacutetica country percebe-se tambeacutem sob o roacutetulo roccedila
a promoccedilatildeo de uma estilizaccedilatildeo do rural que autecircntica ou tradicional apropriada pela
induacutestria cultural ou natildeo reinventa e atualiza um rural que de repente natildeo eacute mais
sinocircnimo de brega de inferior de marginalizado mas se torna atrativo e atraente Por
outro lado o desenvolvimento do setor de serviccedilos com a marca roccedila nas duas uacuteltimas
deacutecadas tambeacutem pode ser expressatildeo das mudanccedilas no proacuteprio campo conforme
apontado por Abramovay (1994) Carneiro (1998 2012) Silva J (1997 2001)
1 1 9
4
72
1
44
9 1 4
26
63
90
1965-1974 1975-1984 1985-1994 1995-2004 2005-2014
SERVICcedilOS PRODUTOS E SERVICcedilOS PRODUTOS
88
Martins J (2014) Veiga (2004 2006) relacionados agrave sua multifuncionalidade que
superou a atividade agropecuaacuteria como ramo predominante e possibilitou a proliferaccedilatildeo
de novas ocupaccedilotildees e exploraccedilotildees relacionadas agrave conservaccedilatildeo ambiental ao lazer e
fruiccedilatildeo proporcionados pelo turismo rural e ecoturismo e pela proacutepria cultura rural Os
dados representados no graacutefico que se segue revelam os tipos de serviccedilos mais
recorrentes que utilizam a marca roccedila no Brasil
GRAacuteFICO 4 ndash Tipos de serviccedilos com solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila no Brasil no INPI
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site
do INPI no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr
Observando-se os dados do Graacutefico 4 e da Tabela 3 percebe-se que os negoacutecios
foram os serviccedilos predominantes entre as marcas roccedila Entretanto os outros ramos de
atividades declarados pelos titulares das marcas a gastronomia a cultura e o turismo
satildeo reveladores dos usos e signficados que o mercado de bens e serviccedilos fazem da
categoria roccedila Por meio deles se percebe a veiculaccedilatildeo da cultura rural atrelada ao termo
roccedila que promove o consumo e a experiecircncia principalmente da comida da roccedila mas
tambeacutem de sua muacutesica danccedilas religiosidade festas tiacutepicas e do meio ambiente que
com maior evidecircncia apoacutes os anos 1980 vem revestindo o rural de um novo significado
relacionado agrave natureza numa perspectiva romacircntica e idiacutelica conforme assinalam
Abramovay (1994) Anjos e Caldas (2014) Carneiro (2012) Eacuteboli (2007) Entrena-
Duraacuten (2012) entre outros
O crescimento de negoacutecios com a marca roccedila foi gradativo sobretudo a partir
da deacutecada de 1985 enquanto a cultura apresentou uma elevaccedilatildeo desta deacutecada para a
seguinte (1995) mas parece ter se estabilizado A gastronomia e o turismo ao contraacuterio
Negoacutecios 61
Cultura 38
Gastronomia 46
Turismo 6
89
soacute apareceram portando a marca roccedila a partir de 1995 mas principalmente a
gastronomia revelou um crescimento gradativo nesta uacuteltima deacutecada (2005) enquanto o
turismo cresceu mas seus nuacutemeros satildeo ainda pequenos Mais adiante o papel da
gastronomia na veiculaccedilatildeo da categoria roccedila seraacute discutido mais detidamente em
especial no capiacutetulo sobre o Festival Gastronocircmico realizado em Gonccedilalves-MG
O crescimento do setor de serviccedilos com a marca roccedila nos uacuteltimos vinte anos
suscita vaacuterias hipoacuteteses explicativas 1) Pode apontar para uma ressignificaccedilatildeo do rural
face ao processo de modernizaccedilatildeo do campo acompanhando a trajetoacuteria citadina Neste
caso o consumo do termo roccedila em marcas de produtos e serviccedilos apontaria inclusive
para uma extrapolaccedilatildeo do uso inicial do vocaacutebulo vinculado agrave produccedilatildeo de gecircneros
alimentiacutecios sugerindo uma abrangecircncia social muito mais ampla percebida por
exemplo no simulacro que uma festa rural na metroacutepole pode proporcionar 2) Pode
apontar ainda para um trocircpego processo de inclusatildeo dos ldquopobres povos do campordquo agrave
sociedade brasileira Alijados das conquistas sociais e econocircmicas pelo menos ateacute os
anos de 1980 agricultores familiares e integrantes dos movimentos sociais como o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) entram na agenda poliacutetica
brasileira como atores sociais que despertam um misto de repulsa culpa e esperanccedila
3) Por fim pode-se pensar ainda que o consumo da cultura rural pode significar uma
criacutetica ao modelo de sociedade urbana e moderna e a reflexatildeo sobre outros modos de
vida possiacuteveis conforme argumentam Eacuteboli (2007) sobre a audiecircncia urbana do
programa televisivo Globo Rural e Silva G (2009) sobre os assinantes citadinos da
revista homocircnima Enfim todas estas trecircs hipoacuteteses podem se complementar expressar
nos coacutedigos culturais consumidos nos produtos e serviccedilos com a marca roccedila
No proacuteximo toacutepico apresentar-se-aacute a anaacutelise de conteuacutedo leacutexico-sintaacutetica e
categoacuterica que permitiraacute identificar os coacutedigos culturais que podem estar sendo
comunicados por meio da circulaccedilatildeo de bens e serviccedilos com o nome roccedila
23 Procedimentos metodoloacutegicos e anaacutelise de conteuacutedo de marcas de
produtos e serviccedilos com o termo roccedila no Brasil
Com o mesmo banco de dados coletado no INPI utilizou-se procedimentos de
anaacutelise de conteuacutedo definidos por Bardin (1977) como um
90
Conjunto de teacutecnicas de anaacutelises das comunicaccedilotildees visando obter por procedimentos sistemaacuteticos e objetivos de descriccedilatildeo do conteuacutedo das mensagens indicadores que permitam a inferecircncia de conhecimentos relativos agraves condiccedilotildees de produccedilatildeorecepccedilatildeo destas mensagens (BARDIN 1977 p 42)
Foram adotados trecircs procedimentos de anaacutelise de conteuacutedo segundo os
procedimentos descritos por Bardin (1977) 1) anaacutelise descritiva de frequecircncia das
ocorrecircncias das marcas 2) anaacutelise lexical e sintaacutetica e 3) anaacutelise categoacuterica ou temaacutetica
Efetuou-se primeiramente uma anaacutelise de frequecircncia das ocorrecircncias de cada marca
agrupando as repetidas e enumerando-as em ordem decrescente visando natildeo super-
representar as anaacutelises leacutexico-sintaacutetica e categoacuterica bem como facilitando esse
procedimento Identificou-se uma recorrecircncia das marcas mais utilizadas ao longo das
deacutecadas conforme eacute possiacutevel observar na tabela abaixo
TABELA 5 ndash Frequecircncia das marcas mais recorrentes com a palavra roccedila ao longo das deacutecadas
MARCA FREQUEcircNCIA POR DEacuteCADA
1965-1974 1975-1984 1985-1994 1995-2004 2005-2014
Da Roccedila 2 6 11 12
Cafeacute da Roccedila 3 9 10
Caminho da Roccedila 2 5 4
Caninha da Roccedila 1 2 2
Cantinho da Roccedila 4 3
Canto da Roccedila 4
Casa da Roccedila 3
Coisa da Roccedila ou Coisas da Roccedila 3 3
Deliacutecias da Roccedila 2 4
Feijatildeo da Roccedila 5
Produtos da Roccedila 4
Sabor da Roccedila ou Sabores da Roccedila 2 4 8
Tempero da Roccedila 4
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site do INPI no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr
Para a composiccedilatildeo desta tabela considerou-se os nomes de marcas com a palavra
roccedila que mais se repetiram e com titulares diferentes10 dentro de cada deacutecada e tambeacutem
10 Partiu-se do pressuposto que os titulares eram diferentes conforme constavam seus nomes (pessoas juriacutedicas ou fiacutesicas registradas como profissionais) nos processos como jaacute foi salientado anteriormente
91
em deacutecadas diferentes Aleacutem dessas havia um conjunto de marcas principalmente nas
trecircs uacuteltimas deacutecadas mas que foram desconsiderados aqui por figurarem apenas uma
vez ou por se repetirem somente no mesmo dececircnio Como pode ser notado a marca
mais frequente ao longo das deacutecadas foi ldquoDa Roccedilardquo tendo aparecido nas quatro
uacuteltimas deacutecadas e com relativa frequecircncia em cada uma delas Destaca-se ainda que
como o volume de solicitaccedilotildees de registro com a marca roccedila foi crescendo a cada
deacutecada a variedade dos nomes tambeacutem foi se diversificando ao mesmo tempo em que
as taxas de ocorrecircncia de uma mesma marca se intensificaram
Constatou-se assim que grande parte do mercado que veiculava o nome roccedila
era composto pelos produtos alimentiacutecios ou por bebidas como cafeacute feijatildeo e cachaccedila
Esse dado tambeacutem aponta para uma permanecircncia no uso do termo roccedila no Brasil ao
longo dos anos para se referir agrave produccedilatildeo de mantimentos conforme jaacute destacado
algumas vezes neste trabalho Por outro lado entre as marcas mais populares com o
nome roccedila figuram aquelas que fazem alusatildeo agraves caracteriacutesticas do bem material em
questatildeo ressaltando o sabor ou associando a mesma a espaccedilos intimistas como casa
canto cantinho ou caminho Esses significados seratildeo melhor discutidos adiante pois as
ferramentas de anaacutelise leacutexico-sintaacutetica e categoacuterica fornecem mais instrumentos para
essas reflexotildees Por ora cumpre apenas destacar que a marca mais utilizada ao longo
dos anos ldquoDa Roccedilardquo eacute justamente a mais sucinta que utiliza a categoria aqui estudada
como a sua principal distinccedilatildeo no mercado de produtos e serviccedilos
Posteriormente seguiu-se os procedimentos descritos por Bardin (1977) para a
realizaccedilatildeo da anaacutelise lexical sintaacutetica tomou-se como base as convenccedilotildees
primeiramente observando-se o nuacutemero total de palavras presentes chamadas pela
autora de ocorrecircncias e o nuacutemero total de palavras diferentes chamadas por ela de
vocaacutebulos Verificou-se ainda a relaccedilatildeo entre as ocorrecircncias e os vocaacutebulos visando
auferir o grau de riquezapobreza do vocabulaacuterio no repertoacuterio de marcas Em segundo
lugar procedeu-se agrave distinccedilatildeo das unidades de vocabulaacuterio identificando as palavras
plenas que satildeo as portadoras de sentido isto eacute quais dentre elas eram substantivos
adjetivos e verbos e as palavras instrumentos cuja funccedilatildeo era conectar ligar as
palavras plenas sendo estas artigos preposiccedilotildees pronomes adveacuterbios conjunccedilotildees e
etc conforme define Bardin (1977) Essas duas etapas foram aplicadas separadamente a
cada conjunto de deacutecadas de produtos e serviccedilos com a marca roccedila e os seus resultados
92
foram analisados integralmente em funccedilatildeo de natildeo ter havido discrepacircncias entre as
deacutecadas
Assim como a anaacutelise da frequecircncia a anaacutelise leacutexico-sintaacutetica das marcas com a
palavra roccedila tambeacutem revelou certo padratildeo ao longo das deacutecadas Ao se realizar a anaacutelise
leacutexico-sintaacutetica de todas as marcas em cada deacutecada pode-se comprovar a riqueza do
vocabulaacuterio marcada pela variedade das palavras que manteve-se relativamente estaacutevel
ao longo do tempo com uma pequena variaccedilatildeo devido ao aumento do volume das
marcas Assim ao se dividir o nuacutemero de palavras total pelo nuacutemero de palavras
diferentes de cada deacutecada considerando-se todas as marcas obteacutem-se as seguintes taxas
de diversidade do vocabulaacuterio na deacutecada de 1965-1974 de 15 na deacutecada de 1975-1984
de 18 na deacutecada de 1985-1994 de 279 na deacutecada de 1995-2004 de 287 e na uacuteltima
deacutecada de 2005-2014 de 280 Essa taxa do repertoacuterio do vocabulaacuterio eacute considerada de
baixa repeticcedilatildeo ou seja indica um vocabulaacuterio bastante variado para Bardin (1977)
Ressalta-se a riqueza do vocabulaacuterio das marcas roccedila considerando-se a especificidade
do conteuacutedo aqui tratado pois de acordo com Guedes (2012) o processo de criaccedilatildeo de
um nome para uma marca costuma ser dificultado pelo grande conjunto de marcas
parecidas jaacute existentes no mercado o que pode ocasionar certo padratildeo de similaridade
Por outro lado apesar da variedade do vocabulaacuterio identificada nestas marcas
observou-se um padratildeo uma estrutura comum na maior parte delas as marcas eram
formadas por uma meacutedia de trecircs palavras constituiacutedas por duas palavras plenas (com
significado) ligadas por uma palavra instrumento (conectora das palavras plenas entre
si) resultando na foacutermula
Substantivo + Adjetivo
ou
Substantivo + Locuccedilatildeo adjetiva (preposiccedilatildeo + substantivo)
Segundo Guedes (2012) alguns nomes de marcas satildeo selecionados pelas
empresas com o intuito de aludir agraves suas qualidades e atributos e satildeo para isso
formados por substantivos adjetivos ou a combinaccedilatildeo dos dois Nesse sentido parte das
marcas aqui estudadas eacute formada pela seguinte estrutura a palavra ldquoroccedilardquo ocupando a
93
funccedilatildeo de substantivo e um adjetivo caracterizando-a como no exemplo da marca
ldquoRoccedila Mineirardquo ou ainda pela marca ldquoRoccedila Verderdquo podendo essa foacutermula aparecer
por meio da junccedilatildeo do substantivo com o adjetivo criando-se uma uacutenica palavra um
neologismo como por exemplo ldquoRoccedilaboardquo ou ldquoRoccedilamaxrdquo Ou numa variaccedilatildeo desse
padratildeo em que ldquoroccedilardquo funciona como substantivo acrescentada de uma locuccedilatildeo
adjetiva como nos exemplos ldquoRoccedila de Minasrdquo ou ldquoRoccedila do Caipirardquo Mas o padratildeo
mais recorrente ao longo das deacutecadas para todas as marcas consideradas foi aquele
formado por um substantivo qualquer (geralmente caracterizado pelo produto ou
serviccedilo oferecido) acrescido da locuccedilatildeo adjetiva formada pela preposiccedilatildeo ldquodardquo (na
maioria das vezes mas tambeacutem aparece o ldquonardquo) e a palavra ldquoroccedilardquo que eacute um
substantivo funcionando como um adjetivo transformado pela morfologia como nos
exemplos ldquoCafeacute da Roccedilardquo ldquoFeijatildeo da Roccedilardquo ldquoPanela da Roccedilardquo ldquoSabor da Roccedilardquo
ldquoDeliacutecias da Roccedilardquo ldquoFesta na Roccedilardquo ldquoChick na Roccedilardquo entre outros
Autores dedicados aos estudos de marketing especialmente agraves discussotildees
concernentes agraves marcas como Kotler (2000) e Tavares (1998) citados por Guedes
(2012) afirmam que um ldquobomrdquo nome para marcas deve ser curto de faacutecil pronunciaccedilatildeo
compreensatildeo e memorizaccedilatildeo aleacutem de obviamente sua associaccedilatildeo aos significados
inerentes agrave cultura e de sugerir qualidades atributos e benefiacutecios do produto Nesse
sentido as marcas com o nome roccedila parecem seguir esse padratildeo ao se apresentarem
com um formato curto e de faacutecil pronuacutenciapercepccedilatildeomemorizaccedilatildeo
A identificaccedilatildeo dessa estrutura morfoloacutegica possibilitada pela anaacutelise leacutexico-
sintaacutetica permite sugerir algumas interpretaccedilotildees sobre o uso da palavra roccedila como
marcas de produtos e serviccedilos A primeira interpretaccedilatildeo que se depreende eacute que ao se
utilizar o substantivo concreto ldquoroccedilardquo numa locuccedilatildeo adjetiva ou seja qualificando
algum substantivo que veio antes dele como ldquocafeacuterdquo ldquofeijatildeordquo ldquopanelardquo transformando-
o num substantivo abstrato estaacute se supondo que ldquoroccedilardquo reveste-se de alguma
caracteriacutestica especial capaz de qualificar algum objeto tornando-o distinto Ora os
autores Copetti (2007) Guedes (2012) Massinelli (2014) Silva E (2014) e Teixeira
(2007) afirmam que uma marca registrada tem como funccedilatildeo principal tornar um bem ou
um serviccedilo distinto dos demais Nesse caso o operador da diferenccedila e da distinccedilatildeo eacute o
termo roccedila aquele que daacute significado ao objeto que se oferta ou se consome mesmo
quando jaacute se trata de um substantivo abstrato como ldquosaborrdquo ou ldquodeliacuteciardquo A segunda
questatildeo a se sublinhar diz respeito agrave recorrente utilizaccedilatildeo da preposiccedilatildeo ldquodardquo (formada
94
pela contraccedilatildeo da preposiccedilatildeo ldquoderdquo com o artigo definido ldquoardquo) que funciona nesse tipo
de construccedilatildeo morfoloacutegica para designar a procedecircncia a origem Ou seja a forma
mais padronizada utilizada nas marcas com a palavra roccedila eacute aquela em que a descriccedilatildeo
do produto ou serviccedilo indica a sua origem procedecircncia em termos de lugar vem da
roccedila ou feito na roccedila como nos exemplos citados acima ou ainda nestes ldquoProdutos da
Roccedilardquo ldquoMandioca da Roccedilardquo ldquoCarne da Roccedilardquo entre outros
Essas interpretaccedilotildees permitem pensar que haacute uma expectativa na ofertademanda
de produtos especialmente dos alimentos bebidas beneficiados ou da agroinduacutestria de
terem sido cultivados na lavoura na roccedila de onde foram colhidos e disponibilizados
diretamente para o consumo ou foram feitos de forma artesanal caseira familiar na
propriedade de uma famiacutelia agricultora de pequeno porte Ou seja parece permanecer
no imaginaacuterio a associaccedilatildeo entre roccedila e produccedilatildeo de mantimentos conforme descrita
pelos autores sobre o significado desta na formaccedilatildeo soacutecio-histoacuterica e no campesinato
brasileiro Mas tambeacutem haacute um conjunto de produtos (como vestuaacuterio mobiliaacuterio
utensiacutelios domeacutesticos) e mais especialmente de serviccedilos (gastronocircmicos ou culturais)
que ao atrelarem sua origem agrave roccedila parecem sugerir a reproduccedilatildeo de um saber-fazer
tiacutepico de um modo de vida rural como nos exemplos ldquoQuitandinha da Roccedilardquo ldquoForroacute
da Roccedilardquo ldquoTradiccedilatildeo da Roccedilardquo ldquoArte da Roccedilardquo e ldquoCozinha da Roccedilardquo entre outros
Ambas as variaccedilotildees se resumem na marca mais frequente ao longo das deacutecadas
ldquoDa Roccedilardquo A palavra roccedila figurava nas marcas aqui estudadas para indicar a origem ou
o modo de fazer relativo a um modo de vida tiacutepico A categoria roccedila assinalava assim
um atributo geneacuterico e natildeo estava relacionada com os processos formais de Indicaccedilatildeo
Geograacutefica (IG) como Indicaccedilatildeo de Procedecircncia (IP) e Denominaccedilatildeo de Origem (DO)
que certificam atraveacutes de selos produtos ou serviccedilos com caracteriacutesticas atreladas ao
seu local de origem11 Mas a associaccedilatildeo que pode ser feita entre o nome roccedila e a origem
dos produtos e serviccedilos parece sugerir uma seacuterie de significados a respeito da
valorizaccedilatildeo do saber-fazer relacionado aos produtos agriacutecolas e tambeacutem a um conjunto
de comportamentos relativos ao modo de vida rural como a gastronomia e a cultura por
exemplo Para Santos J (2014) a populaccedilatildeo urbana tem se interessado por produtos
11 Segundo informaccedilotildees do Ministeacuterio da Agricultura Pecuaacuteria e Abastecimento (2015) disponibilizadas no seu site com o tiacutetulo Indicaccedilatildeo Geograacutefica ldquoo registro de Indicaccedilatildeo Geograacutefica (IG) eacute conferido a produtos ou serviccedilos que satildeo caracteriacutesticos do seu local de origem o que lhes atribui reputaccedilatildeo valor intriacutenseco e identidade proacutepria aleacutem de os distinguir em relaccedilatildeo aos seus similares disponiacuteveis no mercado Satildeo produtos que apresentam uma qualidade uacutenica em funccedilatildeo de recursos naturais como solo vegetaccedilatildeo clima e saber fazer (know-how ou savoir-faire)rdquo
95
alimentiacutecios que remetam ao rural ao natural e cuja origem possa ser identificada numa
contrapartida aos processos de industrializaccedilatildeo dos alimentos Para a autora alguns
instrumentos como a ldquoIndicaccedilatildeo Geograacuteficardquo e o ldquoRegistro de Bens Culturais de
Natureza Imaterialrdquo (patrimocircnio imaterial) tecircm sido utilizados para valorizar o que ela
denomina de produtos alimentares tradicionais Ainda que a roccedila natildeo seja considerada
em nenhum desses processos formais especiacuteficos sua associaccedilatildeo a alguns bens e
serviccedilos parece ser sintomaacutetica do mesmo fenocircmeno indicado por Santos J (2014) O
uso da palavra roccedila como marca de produtos e serviccedilos parece oferecer uma ideia sobre
a origem e inspirar a confianccedila na busca pela autenticidade entre os consumidores
conforme se veraacute adiante na discussatildeo dos resultados das entrevistas
De acordo com Guedes (2012 p 426) uma marca ldquodeve ser rica em
significados e valores pois eacute atraveacutes dela que a empresa promete e entrega ao cliente
um valor superior ao que o mercado oferecerdquo A autora ressalta ainda que a marca estaacute
ligada a ldquosentimentos emoccedilotildees e sensaccedilotildeesrdquo e deve soar ldquocomo muacutesica para os ouvidos
dos clientesrdquo e destaca que uma marca tambeacutem deve ser sempre ldquoatualrdquo (GUEDES
2012 p 421-422) Esses aspectos permitem pensar que o uso do nome roccedila na marca de
produtos e serviccedilos representa um conjunto de valores e significados para o criador da
marca que denota imagens e sentimentos positivos para o consumidor o que de
alguma forma corrobora com a hipoacutetese de que haveria uma flexibilizaccedilatildeo na fronteira
demarcatoacuteria das tradicionais assimetrias que envolvem o imaginaacuterio sobre o rural e a
sua evocaccedilatildeo por meio da palavra roccedila
Algumas variaccedilotildees da estrutura das marcas tambeacutem chamam a atenccedilatildeo mas
seratildeo tratadas nas discussotildees sobre a anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica que se segue
Quanto ao procedimento de anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica Bardin (1977 p 117) a
define como
A categorizaccedilatildeo eacute uma operaccedilatildeo de classificaccedilatildeo de elementos constitutivos de um conjunto por diferenciaccedilatildeo e seguidamente por reagrupamento segundo o gecircnero (analogia) com os criteacuterios previamente definidos As categorias satildeo rubricas ou classes as quais reuacutenem um grupo de elementos (unidades de registro no caso da anaacutelise de conteuacutedo) sob um tiacutetulo geneacuterico agrupamento esse efetuado em razatildeo dos caracteres comuns desses elementos
Para a anaacutelise categoacuterica ou temaacutetica utilizou-se como corpus o conjunto de
todas as marcas identificadas no INPI com o termo roccedila Esse corpus foi definido dentro
96
dos paracircmetros recomendados por Bardin (1977) relativos agrave exaustividade e agrave
representatividade da amostra Quanto a este ponto embora a amostragem tenha
considerado todas as marcas registradas natildeo se pode precisar em que medida as marcas
com o termo roccedila com solicitaccedilatildeo de registro no INPI representam o universo de marcas
com esse mesmo roacutetulo no Brasil a homogeneidade dos dados sendo todos da mesma
natureza e a pertinecircncia no sentido de suas caracteriacutesticas atenderem agrave proposta da
anaacutelise Apoacutes uma leitura flutuante com o objetivo de ler todas as marcas e capturar as
primeiras impressotildees relacionando-as agraves hipoacuteteses e aos apontamentos teoacutericos
identificou-se as unidades de registro que em geral satildeo formadas de uma a cinco
palavras numa meacutedia de trecircs palavras As marcas aqui podem ser pensadas como
temas por carregarem uma significaccedilatildeo como uma unidade proacutepria para a anaacutelise
Algumas marcas que satildeo compostas por tiacutetulo e subtiacutetulo foram observadas
integralmente As unidades de contexto consideradas foram a deacutecada a classificaccedilatildeo em
produto ou serviccedilo e suas subcategorias
Os criteacuterios que balizaram a criaccedilatildeo das classes de diferenciaccedilatildeo e
posteriormente das categorias seguiu o confronto dos dados empiacutericos revelados pela
proacutepria amostra de marcas com o termo roccedila a partir de uma leitura flutuante com as
questotildees teoacutericas e hipoacuteteses que guiaram esta pesquisa e que permitiram a construccedilatildeo
de inferecircncias Avaliou-se o conjunto das marcas com o termo roccedila de 1965 a 2014
separando-as em quatorze classes segundo suas caracteriacutesticas em comum e
posteriormente reagrupando-as num conjunto de oito categorias As classes de
caracteriacutesticas identificadas nas marcas foram 1) lavouracampo 2) produto
agriacutecolaagropecuaacuterio 3) agroinduacutestria 4) elementos materiais da cultura 5) elementos
simboacutelicos da cultura 6) cultura urbanaestrangeira 7) distinccedilatildeosofisticaccedilatildeo 8)
mercado 9) sentidosimaginaacuteriomemoacuteria 10) tradiccedilatildeoartesanalautecircnticooriginal 11)
naturalpuroverde 12) orgacircnico 13) mineiridade ou falar mineiro e 14)
caipiramatutocaboclo Estas classes foram reagrupadas nas seguintes categorias de
classificaccedilatildeo 1) roccedila como sinocircnimo de ldquocampordquo 2) roccedila como sinocircnimo de ldquoruralrdquo 3)
roccedila como ldquotradiccedilatildeordquo 4) roccedila como apologia agrave ldquonaturezardquo 5) roccedila ldquoromacircntico-
nostaacutelgicardquo 6) roccedila ldquoestilizadardquo 7) roccedila em referecircncia a ldquoMinas Geraisrdquo e 8) roccedila com
alusatildeo ao ldquocaipirardquo
Os criteacuterios que orientaram a categorizaccedilatildeo das marcas foram o leacutexico e o
expressivo O criteacuterio leacutexico buscou o sentido mais comum e o emparelhando dos
97
sinocircnimos e significados proacuteximos Jaacute o criteacuterio expressivo voltou-se para os diferentes
recursos linguiacutesticos com o objetivo de aguccedilar imagens ideias e sentidos no
consumidor Assim agraves vezes modifica-se nas marcas a grafia da palavra usa-se
palavras originaacuterias de outros idiomas giacuterias expressotildees coloquiais cacoetes e etc
Segundo Bardin (1977) para se realizar o processo de criaccedilatildeo de categorias e a sua
respectiva classificaccedilatildeo de unidades de registro deve-se observar a exclusatildeo muacutetua a
homogeneidade a pertinecircncia a objetividade e a fidelidade O reagrupamento das
quatorze classes dentro das oito categorias estaacute ilustrado no quadro abaixo
QUADRO 4 ndash Categorias da anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica Roccedila
sinocircnimo de campo
Roccedila sinocircnimo de rural
Roccedila como
tradiccedilatildeo
Roccedila como
apologia agrave
natureza
Roccedila romacircntico-nostaacutelgica
Roccedila estilizada
Roccedila em referecircncia a Minas Gerais
Roccedila com
alusatildeo ao
caipira Lavoura campo
Elementos materiais da cultura
Artesanal autecircntico original tradiccedilatildeo
Natural puro verde
Sentidos imaginaacuterio memoacuteria
Distinccedilatildeo sofisticaccedilatildeo
Mineiridade ou
expressotildees dos falares mineiros
Caipira
Produto agriacutecola
agropecuaacuterio
Elementos simboacutelicos da cultura
Orgacircnico Cultura urbana
estrangeira
Matuto
Agroinduacutestria Mercado Caboclo
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
Na definiccedilatildeo das classes que formaram a primeira categoria ldquoRoccedila como
sinocircnimo de campordquo considerou-se as referecircncias relativas ao produto em si ou ao
lugar de produccedilatildeo do gecircnero alimentiacutecio Dentro desta categoria foram incluiacutedas trecircs
classes A primeira foi a classe referente ao lugar de origem do produto como ldquoLaacute na
Roccedilardquo 2) a classe referente aos produtos agriacutecolas em si como ldquoMandioca da Roccedilardquo 3)
a classe referente aos produtos da agroinduacutestria processados tradicionalmente no campo
como ldquoQueijo da Roccedilardquo ldquoFarinha da Roccedilardquo ou ldquoCachaccedila da Roccedilardquo Jaacute na segunda
categoria ldquoRoccedila como sinocircnimo de ruralrdquo considerou-se as praacuteticas relativas ao modo
de vida rural Assim agrupou-se nessa classe as marcas que revelavam elementos da
cultura rural como ldquoPanela da Roccedilardquo e elementos simboacutelicos da cultura rural
especialmente aqueles ligados agrave cultura e agrave gastronomia como ldquoFesta na Roccedilardquo e ldquoPatildeo
de queijo da Roccedilardquo A terceira categoria foi denominada ldquoRoccedila romacircntico-nostaacutelgicardquo
Nela considerou-se as indicaccedilotildees dos trabalhos de Anjos e Caldas (2014) Carneiro
98
(2012) Entrena-Duraacuten (2012) Elias (2001) e Williams (2011) para se reunir as marcas
que se relacionassem aos sentidos como o paladar e o olfato e aos processos cognitivos
de imaginaccedilatildeo e de memoacuteria conforme indicou Silva G (2009) Assim foram
catalogadas nessa categoria marcas como ldquoSabor da Roccedilardquo ldquoCheiro da Roccedilardquo
ldquoRecanto da Roccedilardquo A quarta categoria foi denominada de ldquoRoccedila Estilizadardquo Nela
buscou-se abarcar as referecircncias sobre o country e a estilizaccedilatildeo da cultura rural no
Brasil (ALEM 1996 BOURDIEU 2013 DE PAULA 1998 1999 2001) Incluiu-se
assim nesta categoria as marcas que apontavam para o hibridismo entre a cultura rural
e a urbana atraveacutes da utilizaccedilatildeo de palavras de liacutenguas estrangeiras ou das referecircncias
agraves formas de mercado tipicamente urbanas e palavras que sugerissem a sofisticaccedilatildeo e a
distinccedilatildeo Assim foram elencadas nesta categoria marcas como ldquoCachorro Quente da
Roccedilardquo ldquoShopping da Roccedilardquo ldquoLa Fruit da Roccedilardquo ldquoVarejatildeo da Roccedilardquo e ldquoRoccedila Chicrdquo
As demais categorias foram definidas por meio da identificaccedilatildeo de palavras
expliacutecitas nas marcas que se referissem ao tema escolhido ou que lhe fossem correlatos
Assim a quinta categoria foi denominada de ldquoRoccedila como Tradiccedilatildeordquo considerando-se as
classes que tivessem as palavras ldquotradiccedilatildeordquo ldquoautecircnticordquo ldquooriginalrdquo ldquoartesanalrdquo com
base nas discussotildees de Mannheim (1986) Lifschitz (2011) e Taylor (2011) Nela foram
categorizadas marcas como ldquoTradiccedilatildeo da Roccedilardquo ldquoOriginal Palhas da Roccedilardquo ou
ldquoProdutos Artesanais GratildeoCafeacute da Roccedilardquo A sexta categoria foi denominada ldquoRoccedila
como apologia agrave naturezardquo sendo formada pelas classes que continham as palavras
ldquonaturalrdquo ldquoverderdquo ldquopurordquo ou ldquoorgacircnicordquo como nas marcas ldquoRoccedila Verderdquo ldquoRoccedila
Natural produtos orgacircnicosrdquo Essa categoria foi criada a partir das discussotildees de autores
como Abramovay (1994) Anjos e Caldas (2014) Eacuteboli (2007) e Thomas (2010) Na
seacutetima categoria adotou-se a referecircncia de ldquoRoccedila relacionada a Minas Geraisrdquo como
base nas revelaccedilotildees dos dados empiacutericos tendo sido consideradas na definiccedilatildeo da
mesma as discussotildees de Abdala (2007) Arruda (1999) e Vasconcellos (1981) Assim
elencou-se as classes que fizessem referecircncia a Minas Gerais ou ao atributo de ser
mineiro especialmente da comida mineira ou expressotildees que fossem identificadas com
o falar mineiro conforme explicam Gonccedilalves e Silva (2009) Rocha e Ramos (2010)
Assim foram identificadas marcas como ldquoRoccedila Mineirardquo ou ldquoCachaccedila da Roccedila Uairdquo
Por fim a oitava categoria tomou por base as discussotildees sobre a cultura caipira relatada
por Candido (2010) Ribeiro (2006) e Setuacutebal (2005) Considerou-se tambeacutem a
categoria ldquoRoccedila Caipirardquo que englobou classes que contivessem aleacutem da palavra
99
ldquocaipirardquo outras palavras relativas a tipos socioculturais brasileiros como ldquocaboclordquo e
ldquomatutordquo Os exemplos de marcas classificadas nessa categoria satildeo ldquoCaipira da Roccedilardquo
ldquoRoccedila do Caboclordquo e ldquoMatuto Cafeacute da Roccedilardquo A classificaccedilatildeo das marcas nessas
categorias resultou nos seguintes dados
TABELA 6 ndash Categorias das marcas com o nome roccedila ROCcedilA
COMO CAMPO
ROCcedilA COMO RURAL
ROCcedilA COMO
TRADICcedilAtildeO
ROCcedilA COMO
NATUREZA
ROCcedilA ROMAcircNTICO-NOSTAacuteLGICA
ROCcedilA ESTILIZADA
ROCcedilA REFEREcircNCIA
A MINAS GERAIS
ROCcedilA CAIPIRA
DEacuteCADAS QUANTIDADE DE MARCAS EM CADA CATEGORIA
1965-1974 2 - - - - - - -
1975-1984 3 1 - - - - - -
1985-1994 15 3 - 1 3 3
1995-2004 27 11 3 3 8 17 3 1
2005-2014 35 14 3 2 18 32 7 6
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site do INPI no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr
Como fica niacutetido na tabela acima nas duas primeiras deacutecadas com os pedidos
de registros de marcas com o nome roccedila bastante reduzidos as temaacuteticas giraram em
torno das ideias de roccedila como sinocircnimo de campo e de rural A diversidade temaacutetica
surge com o aumento do volume de solicitaccedilotildees de registro para a marca roccedila em
meados dos anos 1980 No dececircnio compreendido entre 1985-1994 aleacutem das marcas
que puderam ser classificadas nas categorias de roccedila como sinocircnimo de campo e rural
surgiram novos nomes que foram nesta anaacutelise identificados nas categorias ldquonaturezardquo
ldquoromacircntico-nostaacutelgicardquo e ldquoestilizadardquo Sublinha-se que foi exatamente nos anos 1980 e
no iniacutecio dos 1990 que emergiram os fenocircmenos de revalorizaccedilatildeo do rural a partir da
preocupaccedilatildeo com a sustentabilidade ambiental e de reestilizaccedilatildeo do rural a partir da
induacutestria cultural marcadamente a sociabilidade country os programas de
entretenimento de temaacutetica rural o auge do sucesso da muacutesica sertaneja e a expansatildeo
das festas de rodeios (ABRAMOVAY 1994 ALEM 1996 ALLONSO 2012 DE
PAULA 1998 1999 2001 EacuteBOLI 2007 OLIVEIRA L 2003 OLIVEIRA A 2009
SILVA G 2009 VEIGA 2004 2006) Nas duas uacuteltimas deacutecadas de 1995 a 2014 as
marcas mantiveram o padratildeo temaacutetico que permitiu que muitas delas pudessem nesta
anaacutelise ser agrupadas nas mesmas categorias que jaacute tinham figurado nos dececircnios
anteriores Devido ao volume de solicitaccedilotildees desse periacuteodo a diversidade tambeacutem se
100
ampliou e deparou-se com marcas que puderam ser associadas agraves categorias ldquotradiccedilatildeordquo
ldquoMinas Geraisrdquo e ldquocaipirardquo Ao contraacuterio da deacutecada anterior na qual as inovaccedilotildees
ficaram por conta da natureza e do romantismo por um lado e do moderno estilizado e
sofisticado por outro nos uacuteltimos periacuteodos analisados as novas ideias orbitam em
torno de perspectivas mais tradicionais do que seria a roccedila Essa perspectiva eacute expressa
na proacutepria categoria tradiccedilatildeo mas tambeacutem na alusatildeo a Minas Gerais agrave sua faceta rural
preteacuterita (ABDALA 2007 VASCONCELLOS 1981) e agrave figura dos tipos
socioculturais caracteriacutesticos da formaccedilatildeo do povo brasileiro especialmente o caipira
mas tambeacutem o caboclo
Poreacutem analisando-se a quantidade de marcas presentes em cada categoria ao
longo das deacutecadas tem-se algumas impressotildees diferentes sobre os usos e significados
do termo roccedila no mercado de bens e serviccedilos conforme demonstra o graacutefico seguinte
101
GRAacuteFICO 5 ndash Quantidade de marcas em cada categoria por deacutecadas
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira a partir de dados coletados no site do INPI
no endereccedilo eletrocircnico wwwinpigovbr
O graacutefico revela que aleacutem das categorias campo e rural estarem presentes nas
cinco deacutecadas seu crescimento tem sido relativamente gradativo e constante Enquanto
as categorias natureza e tradiccedilatildeo tecircm se mantido no mesmo estado reduzido as
categorias romacircntico-nostaacutelgica e estilizada cresceram substantivamente sobretudo a
uacuteltima tendo ultrapassado todas as outras nesse uacuteltimo dececircnio com exceccedilatildeo da
categoria campo E as categorias caipira e Minas Gerais mais recentes tambeacutem
demonstram uma tendecircncia de crescimento embora seus nuacutemeros ainda sejam
pequenos
A diversidade de significados que compotildeem o uso do termo roccedila nos produtos e
serviccedilos na contemporaneidade parece sugerir um jogo de disputas em torno da
autenticidade enquanto compartilhamento de significados socialmente construiacutedos do
Campo (2)
Campo (3)
Campo (15)
Campo (27)
Campo (35)
Rural (1)
Rural (3)
Rural (11)
Rural (14)
Tradiccedilatildeo (3)
Tradiccedilatildeo (3)
Natureza (1)
Natureza (3)
Natureza (2)
Romacircntico-Nostaacutelgico (3)
Romacircntico-Nostaacutelgico (8)
Romacircntico-Nostaacutelgico (18)
Estilizada (3)
Estilizada (17)
Estilizada (32)
Minas Gerais (3)
Minas Gerais (7)
Caipira (1)
Caipira (6)
0 5 10 15 20 25 30 35 40
1965-1974
1975-1984
1985-1994
1995-2004
2005-2014
DEacute
CA
DA
S
102
que seria roccedila Essa disputa divide por um lado a reproduccedilatildeo de usos e significados
historicamente engendrados do termo roccedila como no sinocircnimo de campo e rural
especialmente no que se refere aos produtos alimentiacutecios e bebidas Por outro lado
nota-se a emergecircncia de novos significados para este termo subvertendo portanto as
visotildees cristalizadas em nome de um rural natureza idiacutelico nostaacutelgico e romacircntico Esta
visatildeo entretanto convive com uma apropriaccedilatildeo urbana industrial e sofisticada que
reinventa e estiliza o significado de roccedila E em contraposiccedilatildeo com este uacuteltimo
emergem significados de roccedila que buscam prestigiar elementos ligados agrave tradiccedilatildeo ao
ruacutestico ao local e ao regional expressos na ideia do caipira da tradiccedilatildeo e da
mineiridade
Esses diferentes usos e significados parecem coincidir com determinados
momentos histoacutericos caracteriacutesticos do rural no Brasil O periacuteodo compreendido entre as
deacutecadas de 1960 e 1980 no qual o campo era atrelado agrave produccedilatildeo agriacutecola
(ABRAMOVAY 1994 SILVA J 1997 2001) figura nas poucas solicitaccedilotildees de
registro de marca com a palavra roccedila a maioria de produtos entre estes alimentiacutecios e
significaccedilotildees relacionadas ao campo e ao rural A terceira deacutecada analisada entre
meados de 1980 e meados de 1990 parece ser um periacuteodo de transiccedilatildeo em que
aumentam os nuacutemeros de pedidos de registro para a marca roccedila tanto para produtos
quanto para serviccedilos em vaacuterios setores de atividades e surgem de forma tiacutemida mas
notaacutevel novos significados para o termo entre as marcas aludindo para questotildees da
natureza da nostalgia mas tambeacutem do rural estilizado e hibridizado com o urbano E
nas duas uacuteltimas deacutecadas o mercado de bens e serviccedilos com a marca roccedila parece de
alguma maneira refletir o estado da arte do rural hoje no Brasil Aumentaram
consideravelmente as requisiccedilotildees de registro com essa marca os serviccedilos
especialmente os negoacutecios a gastronomia e a cultura tornaram-se expressivos
revelando a multifuncionalidade do campo mas tambeacutem a presenccedila de uma cultura
rural na cidade aleacutem dos novos significados expressos em novos nomes apontarem para
uma revalorizaccedilatildeo das origens das raiacutezes aleacutem de traduzirem certa diversidade que
contempla o campo e a cidade Uma siacutentese dessa proposiccedilatildeo eacute demonstrada na seguinte
figura
103
FIGURA 8 ndash Evoluccedilatildeo das caracteriacutesticas histoacutericas do campo no Brasil e dos usos e significados da marca roccedila (1960-2015)
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
As interpretaccedilotildees aqui propostas a respeito dos significados culturais que
circulam por meio da produccedilatildeo distribuiccedilatildeo e consumo de bens e serviccedilos com a marca
roccedila elaboradas a partir de uma anaacutelise descritiva e de conteuacutedo desta seratildeo
confrontadas com os significados construiacutedos pelos produtores distribuidores e
consumidores de produtos e serviccedilos com a marca roccedila nas paacuteginas seguintes
24 Procedimentos metodoloacutegicos e anaacutelise das entrevistas e aplicaccedilatildeo de
questionaacuterios
Aleacutem da captaccedilatildeo de dados secundaacuterios efetuou-se nesta pesquisa a busca dos
usos e significados que produtores distribuidores e consumidores de produtos e
serviccedilos com a marca roccedila atribuem a esses bens ao participarem desse circuito Para
tanto foram criados dois modelos de questionaacuterios semiestruturados um com perguntas
direcionadas aos produtores (proprietaacuterios responsaacuteveis ou titulares) e distribuidores
(vendedores) de bens com a marca roccedila e outro orientado aos consumidores dessas
marcas Tambeacutem foi elaborado um roteiro de perguntas para entrevista aberta para ser
utilizado com os produtores quando a situaccedilatildeo permitisse uma entrevista em
profundidade Tanto os questionaacuterios quanto o roteiro de entrevista tinham entre 15 a 19
bull Produccedilatildeo agriacutecola bull Poucas marcas
roccedila bull Marca roccedila
produtos alimentiacutecios
bull Significados da marca campo e rural
1960 a
1980
bull Dualizaccedilatildeo da agricultura
bull Aumento marcas roccedila
bull Produtos e serviccedilos
bull Manteacutem-se significados e surgem novos natureza nostalgia e estilizaccedilatildeo
1985 a
1995
bull Multifuncionalidade do
campo bull Revalorizaccedilatildeo do rural bull Aumento expressivo
marcas roccedila bull Aumento dos serviccedilos
(negoacutecios gastronomia e cultura)
bull Manteacutem-se significados anteriores e surgem novos tradiccedilatildeo caipira mineiridade
1995 a
2015
104
perguntas divididas em trecircs blocos perfil pessoal questotildees sobre produtos e serviccedilos
com a marca roccedila e questotildees sobre o termo roccedila12
Foram realizadas 16 entrevistas abertas e aplicados 54 questionaacuterios totalizando
70 abordagens Foram consultados 36 produtoresdistribuidores (16 deles concederam
as entrevistas abertas e 20 responderam ao questionaacuterio semiestruturado) e 34
consumidores que tambeacutem responderam ao questionaacuterio As entrevistas e questionaacuterios
foram aplicados em trecircs etapas 1) online 2) no Mercado Central de Belo Horizonte-
MG e 3) no municiacutepio de Gonccedilalves-MG antes e durante o 4ordm Festival de Gastronomia
e Cultura da Roccedila Foram 7 produtoresdistribuidores que responderam ao questionaacuterio
online 13 que responderam ao questionaacuterio no Mercado Central e 16 entrevistados em
Gonccedilalves Responderam ao questionaacuterio 15 consumidores no Mercado Central de Belo
Horizonte e 19 no Festival em Gonccedilalves
Inicialmente optou-se pela teacutecnica do e-surveying conforme explicitada por
Vasconcellos e Guedes (2007) que consiste no envio de questionaacuterios via internet seja
encaminhando o formulaacuterio para o e-mail do entrevistado seja disponibilizando-o numa
paacutegina da internet A escolha dessa teacutecnica baseou-se no fato de que os informantes-
chave desta pesquisa ou seja os responsaacuteveis por produtos e serviccedilos com a marca
roccedila identificados na internet localizavam-se em diferentes localidades de vaacuterios
Estados do paiacutes criando um obstaacuteculo em termos de exequibilidade da pesquisa O
questionaacuterio (formulaacuterio eletrocircnico) foi construiacutedo na ferramenta eletrocircnica Google
Docs13 e foi enviado ao e-mail dos proprietaacuteriosresponsaacuteveis pelos bens com marca
12 Os termos eacuteticos das entrevistas e aplicaccedilatildeo de questionaacuterios bem como da observaccedilatildeo participante foram submetidos agrave avaliaccedilatildeo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa da Universidade Federal de Viccedilosa de acordo com as recomendaccedilotildees da Resoluccedilatildeo do Conselho Nacional de Sauacutede CNS 4662012 e aprovado segundo o parecer consubstanciado no 579930 de 11 de abril de 2014 e parecer consubstanciado de emenda no 839592 de 13 de outubro de 2014 A aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios e a realizaccedilatildeo de entrevistas seguiram portanto as recomendaccedilotildees contidas nessa resoluccedilatildeo tendo sido explicado ao participante os objetivos da pesquisa os riscos e benefiacutecios que sua colaboraccedilatildeo acarretaria o uso dos dados e das imagens A concordacircncia com estes termos e o consentimento para a realizaccedilatildeo da entrevista ou aplicaccedilatildeo do questionaacuterio e a produccedilatildeo de fotografias e viacutedeos foram expressas pelos entrevistados assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (em duas vias uma para o pesquisador e outra para o entrevistado) e o Termo de Autorizaccedilatildeo de Uso de Imagem Esses documentos encontram-se no apecircndice desse trabalho para consulta 13 O Google Docs eacute uma ferramenta da empresa de serviccedilos de internet Google que permite a elaboraccedilatildeo de questionaacuterios eletrocircnicos O link ou endereccedilo eletrocircnico do questionaacuterio eacute enviado via e-mail para os respondentes que o acessam Eles podem nesse questionaacuterio escrever as respostas dissertativas em campos especiacuteficos ou clicar nas opccedilotildees de respostas objetivas Ao finalizar o questionaacuterio os dados das respostas ficam armazenados e soacute pode ter acesso a eles o pesquisador com sua senha proacutepria Esses dados satildeo depois exportados para um computador em softwares proacuteprios para processamento de dados como o Microsoft Excel ou o Statistic Package for Social Science (SPSS) Essa ferramenta possui a vantagem de ser raacutepida confiaacutevel gratuita e de faacutecil manuseio para o pesquisador e o entrevistado aleacutem
105
roccedila que constavam da primeira lista elaborada a partir da pesquisa aleatoacuteria feita na
internet que continha 44 indiviacuteduos O envio dos formulaacuterios eletrocircnicos a esta amostra
foi realizado durante os meses de abril e maio de 2014 Foram enviados 37
questionaacuterios para os indiviacuteduos dessa amostra entre aqueles que foram encontrados e
que concordaram em participar da pesquisa Os questionaacuterios ficaram disponiacuteveis para o
entrevistado responder durante cerca de um mecircs e meio e o tempo de retorno dos
respondentes foi de no maacuteximo uma semana Entretanto apenas 7 entrevistados
retornaram seus questionaacuterios respondidos ou seja 19 dos questionaacuterios Embora seja
uma taxa de retorno bastante baixa ela eacute previsiacutevel sendo inclusive considerada uma
das principais limitaccedilotildees da aplicaccedilatildeo de questionaacuterios online quando comparada aos
outros meacutetodos de aplicaccedilatildeo de acordo com Vasconcellos e Guedes (2007) Como
exemplo estes autores citam a pesquisa realizada por Weible e Wallace (1998) na qual
num universo amostral de 800 indiviacuteduos a taxa de retorno de questionaacuterios que foram
enviados por e-mail foi de 24
Com o objetivo de abordar diretamente produtores distribuidores e
consumidores de produtos com a marca roccedila mas que por motivos de exequibilidade
da pesquisa pudessem ser encontrados num mesmo espaccedilo optou-se por selecionar
dois eventos que reunissem essas caracteriacutesticas A partir da lista de produtos e serviccedilos
com a marca roccedila coletada na pesquisa realizada na internet selecionou-se um desses
eventos o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila realizado todos os anos na cidade
de Gonccedilalves em Minas Gerais Aleacutem de atender aos criteacuterios anteriores percebeu-se a
possibilidade de acesso a esse evento para a realizaccedilatildeo da pesquisa a partir do momento
em que a secretaacuteria municipal de Turismo de Gonccedilalves contatada para responder ao
questionaacuterio online descreveu as caracteriacutesticas desse festival e do municiacutepio de
Gonccedilalves revelando uma seacuterie de especificidades que permitiram identificaacute-lo como
uma unidade de anaacutelise bastante ilustrativa para essa pesquisa Entre outras
caracteriacutesticas que seratildeo discutidas detalhadamente no quarto capiacutetulo destaca-se que o
municiacutepio de Gonccedilalves possui uma populaccedilatildeo rural de 724 dos seus 4220
habitantes segundo os dados do Censo Demograacutefico de 2010 e Sinopse do Censo
Demograacutefico 2010 (IBGE 2013 2015) e tem se tornado um atrativo turiacutestico na regiatildeo
de possibilitar que o questionaacuterio seja elaborado conforme os criteacuterios do pesquisador Como desvantagem destaca-se a necessidade de que o respondente tenha acesso agrave internet e um domiacutenio baacutesico do seu uso e as panes eletrocircnicas
106
da Serra da Mantiqueira proacutexima agrave divisa dos Estados de Minas Gerais e Satildeo Paulo
Gonccedilalves possui um conjunto de restaurantes e pousadas estabelecidos no campo
alguns destes administrados pelos agricultores e suas famiacutelias num regime de trabalho
que pode ser considerado de pluriatividade e tambeacutem possuiacutea agrave eacutepoca pelo menos
cinco estabelecimentos com a marca roccedila Durante o contato com a secretaacuteria e pelas
suas respostas no questionaacuterio supocircs-se que a cidade curiosamente havia construiacutedo o
seu capital turiacutestico em torno do conceito de roccedila o que posteriormente se confirmou
no trabalho de campo conforme seraacute demonstrado no capiacutetulo sobre esse evento Por
fim um Festival em que se propotildee promover a gastronomia e a cultura da roccedila sugeriria
tratar-se de um epifenocircmeno do tema estudado tornando-se portanto objeto desta
anaacutelise As entrevistas e a aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios foram realizadas em Gonccedilalves
entre os meses de setembro e novembro de 2014 e as condiccedilotildees de sua realizaccedilatildeo seratildeo
apresentadas detalhadamente no capiacutetulo sobre o Festival
O outro evento selecionado para a pesquisa foi o Mercado Central de Belo
Horizonte em Minas Gerais O Mercado Central foi fundado em 1929 e fica localizado
na regiatildeo central do municiacutepio considerado um dos pontos turiacutesticos e comerciais mais
procurados na capital mineira O Mercado possui cerca de 400 lojas de varejo dos mais
diversos tipos de produtos alguns tiacutepicos do Estado e de outras regiotildees do paiacutes
(MERCADO CENTRAL 2015) entre produtos alimentiacutecios bebidas utensiacutelios e
artesanatos de variadas origens e alguns marcadamente rurais De acordo com
Filgueiras (2006) o Mercado Central natildeo seria somente um diversificado centro
comercial Ele possui segundo o autor valores siacutembolos envolve haacutebitos e costumes
que representariam uma identidade do rural e do urbano e por isso se tornou um espaccedilo
representativo da histoacuteria da cultura e do turismo de Minas Gerais O puacuteblico que
frequenta o Mercado Central eacute formado entre outros por donas de casa representantes
de pequenas empresas trabalhadores do comeacutercio proacuteximo estudantes famiacutelias e
obviamente turistas De acordo ainda com Filgueiras (2006 p 133) o Mercado eacute uma
representaccedilatildeo do imaginaacuterio dos consumidores belo-horizontinos que consideram que
nele as praacuteticas de comeacutercio ainda satildeo tradicionais e ldquoque parece da roccedilardquo por ser
antigo e por envolver relaccedilotildees de ldquorespeito confianccedila amizade aleacutem de oferecer
qualidade seguranccedila tranquilidade originalidade e divertimentordquo Estas caracteriacutesticas
balizaram a escolha do Mercado Central para a aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios mesmo ele
natildeo figurando na referida lista de bens e serviccedilos com a marca roccedila Ainda assim o
107
Mercado possui atualmente dois estabelecimentos com a marca roccedila Os questionaacuterios
foram aplicados no mecircs de outubro de 2014 e as condiccedilotildees de realizaccedilatildeo da pesquisa no
Mercado seratildeo apresentadas detalhadamente no terceiro capiacutetulo desta tese
Os produtores e distribuidores que responderam ao questionaacuterio online ao
impresso e aqueles que concederam entrevistas eram em sua maioria de Belo
Horizonte ou de Gonccedilalves em Minas Gerais (12 e 17 respectivamente) Os outros
respondentes eram de cidades do interior dos Estados de Minas Gerais Satildeo Paulo
Goiaacutes e Distrito Federal um da regiatildeo metropolitana de Vitoacuteria-ES e um de Fortaleza-
CE conforme pode ser visualizado no seguinte graacutefico
GRAacuteFICO 6 ndash Residecircncia dos produtoresdistribuidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
A maioria dos respondentes eacute composta por mulheres (21 entre os 36
entrevistados) e tem como profissatildeo a gestatildeo da empresa ou comeacutercio seguidas pelo
grupo que se declarou atendentebalconistavendedor(a)gerente O restante se dividiu
em aacutereas de atuaccedilatildeo como engenharia arquitetura artesanato artes plaacutesticas docecircncia
jornalismo e domeacutestica nas seguintes proporccedilotildees
Gonccedilalves 17
Belo Horizonte 12
Fortaleza 1
Itajubaacute 1
Poccedilos de Caldas 1
Rio Verde 1
Satildeo Luis do Paraitinga
1
Vila Velha 1
Zona Rural DF 1
108
GRAacuteFICO 7 ndash Profissatildeo dos produtoresdistribuidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
A funccedilatildeo exercida no estabelecimento era majoritariamente a de
proprietaacuterio(a) balconistavendedor(a) gerente e cozinheiro(a)chef O restante se
declarou produtor(a) rural ocupa cargo na gestatildeo puacuteblica municipal diretor(a)
editor(a) artesatildeo(atilde) ou natildeo informou distribuiccedilatildeo que pode ser observada no graacutefico
que se segue
GRAacuteFIC O 8 ndash Funccedilatildeo exercida no estabelecimento pelos produtoresdistribuidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
A faixa etaacuteria ficou relativamente bem distribuiacuteda entre os 20 e os 80 anos com
uma ocorrecircncia maior de produtoresdistribuidores com idade entre 50 e 60 anos A
maioria dos respondentes tinha Ensino Superior completo alguns tendo cursado poacutes-
0
2
4
6
8
10
12
012345678
109
graduaccedilatildeo seguida por aqueles que concluiacuteram o Ensino Meacutedio que possuiacuteam o Ensino
Fundamental incompleto e o Ensino Superior incompleto conforme revelam os graacuteficos
abaixo
GRAacuteFICO 9 ndash Escolaridade dos produtoresdistribuidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
GRAacuteFICO 10 ndash Faixa etaacuteria dos produtoresdistribuidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
Os consumidores abordados que responderam ao questionaacuterio no Mercado
Central e no Festival apresentaram-se igualmente distribuiacutedos entre homens e mulheres
sendo a maioria proveniente da regiatildeo metropolitana de Belo Horizonte e do interior de
Satildeo Paulo O restante estava distribuiacutedo nas capitais de Satildeo Paulo ou do Rio de Janeiro
no interior de Minas Gerais e um em Joatildeo Pessoa-PB conforme se destaca no graacutefico
abaixo
0123456789
0
2
4
6
8
10
12
20 a 30anos
30 a 40anos
40 a 50anos
50 a 60anos
60 a 70anos
70 a 80anos
Natildeoinformou
110
GRAacuteFICO 11 ndash Residecircncia dos consumidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
A maioria dos entrevistados tinha menos de 40 anos de idade e curso superior
completo A ocupaccedilatildeo mais comum foi a de profissional liberal Os Graacuteficos 12 13 e 14
destacam o perfil socioprofissional dos respondentes
GRAacuteFICO 12 ndash Faixa etaacuteria dos consumidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
Regiatildeo Metropolitana de Belo Horizonte
13
Interior de Satildeo Paulo
10
Interior de Minas Gerais
4
Satildeo Paulo 2
Satildeo PauloInterior de
Minas Gerais 2
Interior do Rio de Janeiro
1
Joatildeo Pessoa 1
Rio de Janeiro 1
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
20 a 30
anos
30 a 40
anos
40 a 50
anos
50 a 60
anos
60 a 70
anos
70 a 80
anos
111
GRAacuteFICO 13 ndash Escolaridade dos consumidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
GRAacuteFICO 14 ndash Profissatildeo dos consumidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
Indagou-se a este grupo de respondentes que teve o seu perfil socioprofissional
descrito anteriormente onde eles e a famiacutelia nuclear tinham vivido a maior parte da
vida se no campo ou na cidade e qual a profissatildeo dos pais A maioria destes informou
ter vivido a maior parte da vida na cidade assim como os seus pais Nos graacuteficos
abaixo eacute possiacutevel verificar a origem dos consumidores e de seus pais
Ensino Teacutecnico
1
Fundamental incompleto
1
Meacutedio completo
6
Poacutes-graduaccedilatildeo 9
Superior completo
16
Superior incompleto
1
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
112
GRAacuteFICO 15 ndash Origem dos consumidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
GRAacuteFICO 16 ndash Origem dos pais dos consumidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
Os consumidores declararam serem oriundos de famiacutelia de profissionais liberais
donas de casa comerciantes e professores(as) entre outras profissotildees Uma minoria
relatou ser descendente de agricultores que viveram a maior parte da vida no campo Ou
seja trata-se de um puacuteblico basicamente citadino mas que busca referecircncias rurais
como consumidor como encontrado no trabalho de Eacuteboli (2007) e Silva G (2009) O
leque das profissotildees dos pais dos consumidores pode ser visto no graacutefico abaixo
Campo 7
Cidade 22
Ambos 5
Campo 2
Cidade 27
Ambos 5
113
GRAacuteFICO 17 ndash Profissotildees dos pais dos consumidores respondentes
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
Assim como foi feito com as marcas de produtos e serviccedilos com o termo roccedila
tambeacutem se implementou uma anaacutelise de conteuacutedo temaacutetica ou categoacuterica analisando-se
separadamente as respostas dos produtores e distribuidores de bens com a marca roccedila
de um lado e dos consumidores de outro As unidades de contexto utilizadas nessa
anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica foram selecionadas no caso dos
produtoresdistribuidores a partir de questotildees sobre os motivos de escolha da marca
roccedila para os bens que comercializam seus significados quais caracteriacutesticas do produto
ou serviccedilo atribuiacuteam agrave ideia de roccedila e sua relevacircncia para o puacuteblico consumidor Nas
respostas dos consumidores selecionou-se para a anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica
unidades de contexto referentes agraves questotildees sobre o haacutebito de consumir
produtosserviccedilos da roccedila sua preferecircncia em relaccedilatildeo a outros seus diferenciais e
significados aleacutem do pedido para citar de que produtosserviccedilos se tratavam Destas
unidades de contexto avaliou-se as unidades de registro relevantes na fala dos
entrevistadosrespondentes que pudessem ser confrontadas com as categorias analiacuteticas
seguindo-se os mesmos criteacuterios utilizados para a anaacutelise das marcas anteriormente
discutida
Tanto os produtoresdistribuidores quanto os consumidores de todas as
localidades afirmaram produzir vender eou consumir como produtos da roccedila ou com
a marca roccedila queijos leite produtos naturaisorgacircnicos frutas legumes cereais e
verduras doces mel rapadura cachaccedila fubaacute farinha objetos de decoraccedilatildeo ou
artesanato carnes (bovina suiacutena aves carne de sol linguiccedila peixes) ovos caipiras
cogumelos bolosbiscoitosquitandas cafeacute aacutegua pura da mina fogatildeo a lenha e lenha
02468
101214
114
Tambeacutem foram citados a cana de accediluacutecar e seus derivados como o etanol o melado o
accediluacutecar mascavo ou ldquoaccedilucratildeordquo aleacutem das jaacute mencionadas rapadura e cachaccedila No ramo
dos hortifruacuteti os mais citados foram couve alface cebolinha aboacutebora chuchu feijatildeo
milho mandioca tomate banana laranja jabuticaba ervas chaacutes e temperos
FIGURA 9 ndash Verduras no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 10 ndash Frutas no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 11 ndash ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo Gonccedilalves-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
115
FIGURA 12 ndash Queijo artesanal no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 13 ndash Cachaccedilas no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 14 ndash Doces no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Embora a pergunta se referisse ao consumo de produtos e serviccedilos os
consumidores citavam apenas os produtos excluindo os serviccedilos que poderiam estar
atrelados agrave marca roccedila seja no ramo da cultura da gastronomia ou do turismo por
exemplo Por outro lado alguns cozinheiros ou chefs tanto do municiacutepio de Gonccedilalves
participantes do Festival quanto de outras localidades descreviam a comida que
116
serviam nos seus restaurantes como ldquocomida da roccedilardquo Eles descreviam-na como aquela
composta por arroz feijatildeo mandioca batata legumes cozidos como a abobrinha o
quiabo o chuchu e a moranguinha mostarda canjiquinha polentaangu frango caipira
carne de porco ou de lata14 paccediloca de carne socada no pilatildeo15 carne de vaca ao molho
tutu de feijatildeo aleacutem do trio torresmo feijatildeo e couve O tempero para eles consistiria
apenas no uso do alho e sal e do cheiro verde (salsa e cebolinha) considerados aqueles
disponiacuteveis nos quintais ou hortas das casas no campo tanto no presente quanto
antigamente As caracteriacutesticas atribuiacutedas pelos cozinheiros ou chefs agrave comida da roccedila
estatildeo diretamente relacionadas ao que classificam como comida mineira tratando-as de
forma anaacuteloga Muitos desses pratos citados coincidem com aqueles descritos por
Abdala (2007) perfazendo o que considera como o ldquotradicionalrdquo e ldquotiacutepico mineirordquo
como os legumes cozidos a couve o torresmo o angu o tutu de feijatildeo e o feijatildeo
tropeiro a paccediloca de farinha com carne e as carnes de porco e frango bem como as
quitandas
Alguns cozinheiros e chefs de restaurantes cafeacutes e lanchonetes em Gonccedilalves
proprietaacuterios de estabelecimentos com a marca roccedila destacam o fato de utilizarem
como mateacuterias-primas dos seus pratos produtos orgacircnicos certificados ou pelo menos
cultivados por eles mesmos ou por agricultores locais sem a utilizaccedilatildeo de insumos
quiacutemicos (agrotoacutexicos) frescos ou minimamente processados conforme atesta o
seguinte relato de uma entrevistada
A gente soacute trabalha com ingredientes e receitas artesanais eacute tudo daqui da regiatildeo Por isso que eacute roccedila eacute o que Gonccedilalves produz Entatildeo o que a gente compra industrializado eacute o miacutenimo soacute o que natildeo eacute produzido na cidade farinha oacuteleo O resto todos os ingredientes satildeo daqui da cidade Satildeo da roccedila de Gonccedilalves Eacute totalmente artesanal A gente desenvolve os nossos produtos com a produccedilatildeo local a nossa salada eacute de um produtor local de orgacircnicos todos os temperos usados satildeo produzidos aqui no nosso quintal Noacutes natildeo podemos dizer que eacute tudo orgacircnico porque nem todos os produtores tecircm esse selo A palavra roccedila traz para o meu empreendimento a garantia eu acho para quem vem consumir de que eacute feito o mais natural possiacutevel o mais fresco possiacutevel o mais verdadeiro possiacutevel Entatildeo a gente tem um
14 A carne de lata ou carne na banha consiste no processo de fritar os pedaccedilos de carne suiacutena e conservaacute-los por alguns meses dentro de uma lata de alumiacutenio imersa na proacutepria banha ou gordura do porco Costumava ser uma praacutetica recorrente entre as famiacutelias camponesas no interior de Satildeo Paulo e Minas Gerais cujo exemplo eacute citado na obra de Antonio Candido (2010) 15 Espeacutecie de farofa feita com pedaccedilos de carne bovina
117
cardaacutepio sazonal vai de acordo com o que a natureza fornece (Proprietaacuteria de restaurante Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Nesta citaccedilatildeo roccedila aparece como um qualificativo de autecircntico daquilo que tem
identidade por ser local artesanal natural e por natildeo ser massificado industrializado
(DORIGON 2008 TAYLOR 2011 WILKINSON 2008) Tambeacutem satildeo relacionados
como produtos da roccedila pelos produtoresdistribuidores bolos broas e biscoitos
chamados de forma geneacuterica em Minas Gerais de quitandas ou quitutes Foram
citados especialmente ldquoa broa de fubaacute de milho o biscoito de forno agrave lenhardquo e ldquoo cafeacute
passado no coador e servido com um pedacinho de rapadurardquo Os produtores artesatildeos
em Gonccedilalves elencam tambeacutem os artesanatos especialmente as cestarias cujas
mateacuterias-primas consideram originaacuterias da roccedila como a palha do milho a fibra da
bananeira o bambu a taquara e a taboa No Mercado Central os distribuidores de
utensiacutelios domeacutesticos peccedilas de decoraccedilatildeo e artesanato assinalam como produtos da
roccedila as panelas de ferro gamelas utensiacutelios em aacutegata ldquoque lembram a avoacuterdquo tachos de
cobre moedores de cafeacute ldquoque lembram siacutetio e fazendardquo decoraccedilotildees para a aacuterea de
churrasqueira e fogatildeo a lenha peccedilas artesanais como por exemplo monjolos cabeccedilas
de boi casinhas da roccedila (espeacutecie de quadro de pequeno porte com montagens que
encenam uma casa rural)
FIGURA 15 ndash Quitandas no Festival de Gonccedilalves-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
118
FIGURA 16 ndash Artesanato e cestaria em Gonccedilalves-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 17 ndash Utensiacutelios em aacutegata no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 18 ndash Panelas de cobre no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
119
FIGURA 19 ndash Gamelas no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 20 ndash ldquoCasinha da roccedilardquo no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Conforme se pode perceber na pesquisa de campo a partir das declaraccedilotildees dos
entrevistadosrespondentes o universo de classificaccedilatildeo de produtos e serviccedilos foi
ampliado uma vez que natildeo se limitou apenas agrave questatildeo da marca roccedila mas tambeacutem aos
produtos considerados genericamente ldquoda roccedilardquo independentemente de ter essa marca
ou natildeo como havia sido inicialmente delineado nesta pesquisa Isto tem uma razatildeo na
perspectiva dos produtoresdistribuidores e consumidores que seraacute explicitada adiante
e se enquadra na discussatildeo a respeito do emergente mercado de produtos alimentares
tradicionais e artesanais (CRUZ MENASCHE 2011 SANTOS J 2014
WILKINSON MIOR 1999)
A aplicaccedilatildeo da anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica agraves respostas dos
produtoresdistribuidores de produtos e serviccedilos com a marca roccedila obedeceu aos
mesmos criteacuterios que orientaram a anaacutelise das marcas conforme jaacute se ressaltou ou seja
partiu-se dos apontamentos teoacutericos para a criaccedilatildeo das categorias classificatoacuterias No
entanto assim como se procedeu na anaacutelise das marcas a elaboraccedilatildeo das categorias
tambeacutem levou em consideraccedilatildeo as ocorrecircncias relativas aos dados empiacutericos Nesse
sentido confirmou-se a interpretaccedilatildeo construiacuteda neste trabalho sobre as marcas com o
120
termo roccedila a partir da anaacutelise de conteuacutedo com as respostas dos produtores
distribuidores e consumidores sobre os usos e significados deste termo nos bens e
serviccedilos Este pareamento permitiu perceber as mesmas tendecircncias entre as duas
anaacutelises com algumas nuances que seratildeo discutidas adiante Em geral as categorias se
repetiram conforme eacute possiacutevel notar nos Quadros 5 e 6 a seguir
QUADRO 5 ndash Categorias dos significados dos produtosserviccedilos com a marca roccedila segundo os produtoresdistribuidores
CAMPO
RURAL
NATUREZA
TRADICcedilAtildeO
ROMAcircNTICO-NOSTAacuteLGICA
MINAS GERAIS
aacuterea rural cultura natureza como funcionava antigamente
nostaacutelgico tiacutepico da alimentaccedilatildeo
mineira siacutetio modo de vida alimento sem
agrotoacutexico tiacutepico canto tranquilo arquitetura
das casas das antigas
fazendas mineiras
antiga fazenda
homem rural alimento sem quiacutemica
comida tiacutepica paz
lavoura cultura do sertatildeo
brasileiro
orgacircnico resgata a origem interiorana
aconchego
agronegoacutecio raiacutezes lembraremete agrave infacircncia
procedecircncia do interior
fartura lembraremete agrave fazenda
simplicidade lembraremete ao interior
ruacutestico lembraremete ao campo
sabor uacutenico lembraremete agrave tranquilidade do
interior
artesanalcaseiro lembraremete agraves feacuterias nas
casas das avoacutes
produccedilatildeo caseira versus
produccedilatildeo industrial
lembraremete agrave eacutepoca em que
morava na fazenda
produccedilatildeo manual
natildeo tem seloroacutetulo
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
121
As categorias das respostas dos produtoresdistribuidores a respeito dos
significados do termo roccedila nas marcas foram as mesmas inferidas para a anaacutelise de
conteuacutedo das marcas feitas anteriormente nos seguintes casos ldquoRoccedila como sinocircnimo
de campordquo ldquoRoccedila como sinocircnimo de ruralrdquo ldquoRoccedila como naturezardquo ldquoRoccedila como
tradiccedilatildeordquo ldquoRoccedila romacircntico-nostaacutelgicardquo e ldquoRoccedila como referecircncia agrave Minas Geraisrdquo As
categorias ldquoRoccedila estilizadardquo e ldquoRoccedila caipirardquo que figuraram no resultado da anaacutelise de
conteuacutedo das marcas natildeo foram identificadas nas respostas dos
produtoresdistribuidores As palavras consideradas para serem inclusas nas categorias
ldquocampordquo ldquoruralrdquo e ldquotradiccedilatildeordquo apresentaram uma maior diversidade que aquelas do
repertoacuterio das marcas A maior variedade do vocabulaacuterio deve-se ao fato de tratarem-se
no caso das entrevistas de gecircneros do discurso simples ou seja oral e complexo ou
escrito no caso das marcas conforme jaacute discutido com base em Bakhtin (2003)
Da mesma forma a anaacutelise de conteuacutedo categoacuterica das respostas dos
consumidores considerou os aportes teoacutericos Poreacutem ao se considerar os dados
empiacutericos notaram-se alguns diferenciais e a emergecircncia de uma gama de significados
que levaram agrave constituiccedilatildeo de novas categorias embora algumas tenham se repetido
conforme ilustra o Quadro 6 abaixo
122
QUADRO 6 ndash Categorias dos significados dos produtosserviccedilos com a marca roccedila segundo os consumidores
NATUREZA TRADICcedilAtildeO ROMAcircNTICO-NOSTAacuteLGICA
LOCAL ORIGEM VALOR
natural eacute melhor que
industrializado
tradicional infacircncia ligaccedilatildeo com o loacutecus
geograacutefico
origem dar valor
menos conservantes
original gostoso produccedilatildeo local
procedecircncia valorizar o pequeno produtor
menos agrotoacutexicos
artesanal cultura local
interior valor que a famiacutelia deu ao
plantar e cuidar da terra
menos quiacutemicos
como foi feito artesanato com a
esteacutetica local
saber de onde vem o industrial natildeo se sabe
confianccedila
natildeo transgecircnico
manuseio sustentar a economia
local
qualidade
ser da terra feito agrave matildeo selo garantia e
rastreabilidade
na cidade grande eacute tudo
embalado
feito pelo proacuteprio
vendedor
informaccedilatildeo preccedilo e
alimento orgacircnico modo simples
e familiar de produzir
fresco confecccedilatildeo com esmero
versus industrial em larga escala
sauacutedesaudaacutevel saborsaboroso
qualidade de vida
puro
energia pura
vidavitalidade
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
Nota-se uma convergecircncia entre produtoresdistribuidores e consumidores ao
classificarem um produtoserviccedilo da roccedila a partir de atributos que os identificam agrave
tradiccedilatildeo ao aspecto natural e a uma visatildeo romacircntica e nostaacutelgica do que significam
esses produtos Entretanto percebeu-se algumas diferenccedilas na classificaccedilatildeo dos
123
produtosserviccedilos da roccedila entre os produtoresdistribuidores e os consumidores
Enquanto os primeiros costumavam justificar a escolha da marca roccedila para seu produto
ou serviccedilo devido ao fato de seu estabelecimento se localizar no campo os
consumidores tendiam a apontar como atributo desses produtos o fato de serem locais
em detrimento da sua identificaccedilatildeo rural O uso do termo local pelos consumidores pode
se referir ao produtoserviccedilo proveniente do campo mas tambeacutem pode se referir agrave
cidade de pequeno porte e vocaccedilatildeo rural ao interior ao regional e agrave identidade
comunitaacuteria De acordo com Lamine (2015) a perspectiva da relocalizaccedilatildeo tem sido
uma alternativa possiacutevel aos sistemas agroalimentares convencionais uma vez que seu
foco reside na relaccedilatildeo direta entre produtores e consumidores embora esta autora teccedila
uma criacutetica aos limites desse paradigma que seratildeo discutidos posteriormente
Os consumidores tambeacutem mencionaram dados que consideram levar em conta
na tomada de decisatildeo para consumir um produto da roccedila tais como preccedilo informaccedilotildees
qualidade confianccedila garantia selo e rastreabilidade Esses dados satildeo considerados
pelos consumidores no julgamento do valor que estatildeo dispostos a pagar pelo produto
principalmente pela forma como foi produzido em termos ambientais sociais e
econocircmicos tratando-se de um processo natildeo soacute de valoraccedilatildeo mas tambeacutem de
valorizaccedilatildeo e reconhecimento de determinadas praacuteticas produtivas nos termos do que
apontaram Baudrillard (1972) e Sahlins (2003) a respeito de como o valor social
determina o valor econocircmico dos bens E assim como jaacute havia sido constatado no caso
da anaacutelise leacutexico-sintaacutetica das marcas com o termo roccedila a origem eou procedecircncia dos
bens satildeo atributos estimados pelos consumidores e estatildeo para estes associados agrave
palavra roccedila e tambeacutem satildeo considerados em termos da valorizaccedilatildeo do que seraacute
consumido como apontou Santos (2014) Nesse sentido aleacutem das categorias ldquoRoccedila
como naturezardquo ldquoRoccedila como tradiccedilatildeordquo e ldquoRoccedila romacircntico-nostaacutelgicardquo jaacute identificadas
nas marcas e nas respostas dos produtoresdistribuidores entrevistados para as respostas
dos consumidores diante dos dados apresentados constituiu-se as categorias ldquoRoccedila
como sinocircnimo de localrdquo ldquoRoccedila como indicaccedilatildeo de origemrdquo e ldquoRoccedila como um valorrdquo
Os produtoresdistribuidores atribuiacuteram ao seu produto ou serviccedilo um roacutetulo
com o uso do termo roccedila referindo-se tambeacutem ao fato de seus estabelecimentos
estarem localizados num siacutetio fazenda no campo no interior ou vinculados agrave lavoura
Nesse caso demonstra-se a reproduccedilatildeo do sentido primaacuterio da palavra roccedila identificado
pelos estudos das Ciecircncias Sociais roccedila como sinocircnimo de lavoura e por metoniacutemia de
124
campo Mas o argumento mais utilizado pelos produtoresdistribuidores foi o de que seu
produto ou serviccedilo teria uma caracteriacutestica ligada ao que se considera como tradicional
revestido de imaginaacuterio e memoacuterias que ganham um tom nostaacutelgico e romacircntico Essa
dimensatildeo nostaacutelgica e romacircntica identificada nas analogias feitas pelos
produtoresdistribuidores em relaccedilatildeo agrave marca roccedila eacute encontrada nos apelos agrave memoacuteria
(pela proacutepria palavra nostalgia e pelas declaraccedilotildees de que roccedila remetelembra a infacircncia
a fazenda o campo o interior as feacuterias na casa das avoacutes) e tambeacutem agrave imaginaccedilatildeo (o
aconchego a tranquilidade e a paz) no sentido de que se projeta a possibilidade de viver
esses estados de espiacuterito no campo nos termos que foram discutidos por Silva (2009) a
respeito dos leitoresassinantes paulistanos da Revista Globo Rural
O apelo agrave tradiccedilatildeo ao saber-fazer artesanal presentes na fabricaccedilatildeo do produto
ou na prestaccedilatildeo do serviccedilo teria assim a pretensatildeo de reviver dimensotildees relativas ao
ldquojeito como era antesrdquo Nesse sentido percebe-se como a tradiccedilatildeo entendida aqui nos
termos de Karl Mannheim (1986) como uma tendecircncia dos indiviacuteduos ou grupos a se
apegar a velhas formas de vida sendo contraacuterio agraves mudanccedilas pode ser percebida na fala
dos produtores ao situarem a produccedilatildeo caseira ou artesanal num patamar hieraacuterquico
superior ao processo industrial Mannheim (1986) tambeacutem aponta para a presenccedila de
elementos maacutegicos da consciecircncia aos quais a tradiccedilatildeo estaria relacionada o que no
caso dos produtoresdistribuidores se expressa na visatildeo romacircntica e nostaacutelgica de que
os bens da roccedila teriam os atributos referentes agrave infacircncia ao campo agrave tranquilidade agraves
lembranccedilas da casa da avoacute ou da vida na fazenda Por outro lado pode-se perceber que
mesmo os produtos ou serviccedilos elaborados de forma industrializada eou sofisticada
tambeacutem eram classificados como tradicionais segundo criteacuterios proacuteprios o que
corrobora com a afirmaccedilatildeo de Lifschitz (2011) a respeito do uso de meios de produccedilatildeo
modernos para criar elementos tradicionais como uma estrateacutegia de resistecircncia poliacutetica
Esse comportamento ficou evidente e pode ser ilustrado pela forma como uma atendente
descreveu os criteacuterios para considerar uma cachaccedila como sendo da roccedila
Satildeo dois tipos de cachaccedila uma de pequena produccedilatildeo de alambique de cidade do interior considerada como cachaccedila da roccedila (artesanal) mas eacute selada e rotulada a outra eacute industrializada utiliza marketing eacute uma empresa grande e a cachaccedila pode ser encontrada em qualquer supermercado pois eacute de larga distribuiccedilatildeo As primeiras tecircm gostinho da cana satildeo armazenadas nos barris de madeiras como baacutelsamo carvalho e umburana Em Salinas-MG haacute mais de 200 alambiques de pequena produccedilatildeo (Atendente de cachaccedilaria do Mercado Central Belo Horizonte outubro de 2014)
125
A contraposiccedilatildeo feita pelos produtoresdistribuidores entre o tradicional e o
industrial passa tambeacutem pela designaccedilatildeo do ldquotiacutepicordquo das raiacutezes e do apelo agraves origens
que tecircm certa conexatildeo com as ideias por eles expressas a respeito do ldquotiacutepico mineirordquo e
da roccedila como uma cultura um modo de vida que representaria o ldquohomem ruralrdquo ou a
ldquocultura do sertatildeordquo Este modo de vida tiacutepico mineiro ou natildeo se pauta para estes
produtoresdistribuidores no saber-fazer que se relacionaria ao fato de estarem
localizados realmente no campo de produzirem em pequena escala com mateacuteria-prima
local com teacutecnicas antigas informadas por saberes populares sem uso de tecnologia
sem rotulagem Essas caracteriacutesticas satildeo traduzidas pela expressatildeo produccedilatildeo
artesanalcaseira que costumam ainda estar relacionadas agraves caracteriacutesticas naturais do
produto ou seja sem uso de insumos quiacutemicos
Assim como apontaram os produtoresdistribuidores os consumidores tambeacutem
sinalizaram como criteacuterio de identificaccedilatildeo de um produto ou serviccedilo da roccedila aqueles
oriundos da produccedilatildeo caseira ou artesanal sempre indicando como seu polo oposto a
produccedilatildeo industrial Nesse sentido uma expressatildeo natildeo esperada que sintetizasse essa
visatildeo foi o fato de principalmente os consumidores considerarem que o uso da marca
roccedila natildeo seria garantia de que o produto fosse realmente da roccedila de acordo com seus
proacuteprios criteacuterios de classificaccedilatildeo Essa visatildeo apareceu de diferentes formas dividindo
os consumidores entre aqueles que i) consideram a marca roccedila o marcador necessaacuterio
para indicar o produto que busca portanto auxiliando a sua identificaccedilatildeo ii) aqueles
que consideram que soacute o fato de existir a marca jaacute indicaria que o produto era resultado
de um processo industrial e portanto natildeo poderia ser classificado como da roccedila iii)
aqueles que natildeo consumiriam um produto com a marca roccedila mas consumiriam um
produto ldquodardquo roccedila e iv) aqueles que ateacute consumiriam um produto com a marca roccedila
mas avaliariam sua origem procedecircncia qualidade e o contexto local Boa parte dos
consumidores e ateacute mesmo alguns produtoresdistribuidores baseados nas preferecircncias
de seus consumidores declararam que para considerarem um produto como original da
roccedila ele natildeo deveria ser embalado rotulado eou ldquoseladordquo Esta era uma forma geneacuterica
dos entrevistados especialmente os consumidores expressarem a sua preferecircncia por
alimentos natildeo industrializados nem mesmo os minimamente processados Identificou-
se nesse caso um contraste entre as preferecircncias dos consumidores e as regulaccedilotildees do
mercado quanto a embalagens rotulagens registro de marcas selos certificaccedilotildees e
fiscalizaccedilatildeo dos oacutergatildeos competentes
126
No Brasil a embalagem e a rotulagem dos alimentos em geral possuem uma
seacuterie de regulamentaccedilotildees que satildeo definidas e fiscalizadas por diversos oacutergatildeos
governamentais tais como a Agecircncia Nacional de Vigilacircncia Sanitaacuteria (ANVISA) por
meio da Resoluccedilatildeo RDC no 2592002 o Ministeacuterio da Sauacutede o Ministeacuterio da
Agricultura Pecuaacuteria e Abastecimento (MAPA) e o Instituto Nacional de Metrologia
Normalizaccedilatildeo e Qualidade Industrial (INMETRO) Foi entendido que o termo ldquoselordquo
conforme relatado pelos consumidores se trata de maneira geral de um tipo de
identificaccedilatildeo na embalagem ou roacutetulo que confere ao produto procedecircncia de origem
qualidade e ateacute mesmo certificaccedilatildeo no caso de um produto orgacircnico O MAPA
desenvolve uma seacuterie de accedilotildees atraveacutes de regulamentaccedilotildees especiacuteficas para cada tipo de
produto com o objetivo de garantir a legitimidade de informaccedilotildees sobre o produto e a
empresa e os padrotildees de certificaccedilatildeo orgacircnica e qualidade da mateacuteria-prima e produccedilatildeo
de acordo com padrotildees oficiais (MAPA 2015)
Acredita-se que os consumidores ao menos aqueles entrevistados nesta
pesquisa dominem minimamente informaccedilotildees a respeito dos padrotildees de inspeccedilatildeo e
qualidade que regem o processo industrial no Brasil e a legitimidade dos dados contidos
nos roacutetulos dos produtos Supotildee-se que sua negaccedilatildeo agraves marcas roacutetulos embalagens
ldquoselosrdquo e de forma intriacutenseca ao produto industrial preterindo-o no lugar do
caseiroartesanal tradicional e natural seja uma criacutetica agrave forma de vida na sociedade
moderna industrial e urbanizada comparando-a a um modo de vida mais simples puro
natural e bucoacutelico assim como relataram Eacuteboli (2007) Elias (2001) Silva (2009) e
Williams (2011) em diferentes contextos e sociedades Nesse sentido a principal
referecircncia dos consumidores a respeito dos produtos da roccedila eacute a sua associaccedilatildeo com a
natureza
A relaccedilatildeo que os consumidores fazem entre o produto da roccedila e a natureza
baseia-se numa contraposiccedilatildeo entre este e o produto industrializado Portanto a
concepccedilatildeo de um produto natural para os consumidores estaacute associada agraves suas
condiccedilotildees de produccedilatildeo ldquosem agrotoacutexicosrdquo ldquosem quiacutemicardquo ldquomenos conservantesrdquo
ldquoorgacircnicordquo ldquonatildeo eacute transgecircnicordquo Por isso as ideias de roccedila como natureza nas respostas
dos consumidores vinham diretamente atreladas agrave tradiccedilatildeo em termos da produccedilatildeo
ldquoartesanalrdquo ldquocaseirardquo ldquofeita agrave matildeordquo ldquoconfecccedilatildeo com esmero ao contraacuterio do
industrialrdquo ldquomodo simples e familiar de produzirrdquo daiacute sua associaccedilatildeo com o local e a
procedecircncia A preferecircncia demonstrada pelos consumidores por consumir um produto
127
ldquoda roccedilardquo em detrimento ao industrializado revela a sua associaccedilatildeo com ideais como
ldquopurordquo ldquovitalrdquo ldquoenergia purardquo ldquofrescordquo pautando-se natildeo soacute por uma preocupaccedilatildeo com
a sauacutede e a qualidade de vida e a conservaccedilatildeo ambiental mas fazendo mesmo um
contraponto agrave sociedade industrial ldquomelhor que o industrialrdquo ldquosabe de onde vem o
industrial natildeo se saberdquo Essas ideias entrelaccedilam-se agrave postura dos consumidores quanto agrave
ldquoconfianccedilardquo ldquooriginalidaderdquo ldquoqualidaderdquo e autenticidade que o produto da roccedila parece
despertar em suas consciecircncias o que determina seu processo de valoraccedilatildeo por meio do
consumo como uma forma de valorizar um determinado modo de vida e de produccedilatildeo
marcado pela ldquosimplicidaderdquo ldquopelo esmerordquo ldquopela forma familiarrdquo pelo ldquofeito agrave matildeordquo
pelo ldquocuidado com a terrardquo e pelo ldquovalor que a famiacutelia deu ao plantar e cuidar da terrardquo
Esses valores que a ldquoproacutepria famiacutelia deu ao plantarrdquo parecem ser transferidos para a
valor(iz)accedilatildeo do produto da roccedila pelo consumidor
Nesse sentido a forte associaccedilatildeo feita pelos consumidores entre o produto
alimentar da roccedila e a natureza encontra correspondecircncia no processo de triangulaccedilatildeo
proposto pelo paradigma dos sistemas agroalimentares territoriais de Lamine (2015)
que reconecta o alimento a agricultura e o meio ambiente O significado de roccedila parece
corresponder a essa triacuteade na visatildeo dos consumidores O que as respostas desses
consumidores traduzem portanto enquanto significado da roccedila eacute a percepccedilatildeo de um
rural natureza nos termos como o descreveram Anjos e Caldas (2014) e Eacuteboli (2007)
que adquire um novo valor a partir de suas novas funccedilotildees ligadas agrave conservaccedilatildeo
ambiental conforme indicam autores como Abramovay (1994) e Entrena-Duraacuten (2012)
engendrando novas dinacircmicas no campo e reinventando o imaginaacuterio de um rural
revalorizado Ao se confrontar as categorias de significados que resultaram da anaacutelise
de conteuacutedo categoacuterica ou temaacutetica sobre as marcas com o termo roccedila e as respostas dos
produtoresdistribuidores e consumidores dessa marca depara-se com o seguinte
quadro que revela a presenccedila dessa categoria e o grau de associaccedilatildeo com cada
significado para cada unidade estudada
128
QUADRO 7 ndash Comparaccedilatildeo das categorias de significados CAMPO RURAL NATUREZA TRADICcedilAtildeO ROMAcircNTICO-
NOSTAacuteLGICA
ROCcedilA
ESTILIZADA
MINAS
GERAIS
CAIPIRA
Marcas +++ ++ + + +++ +++ + +
Produtores
eou
distribuidores
+ + + +++ +++ +
Consumidores +++ +++ +
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira
Desse quadro pode-se inferir que a anaacutelise dos significados das marcas de
produtos e serviccedilos com o nome roccedila revelou que a maior parte delas sugere uma
associaccedilatildeo com a ideia de que roccedila denotava campo no sentido de espaccedilo fiacutesico e
menos fortemente rural no sentido de modo de vida Se por um lado na marca
sugeria-se uma imagem romacircntica e nostaacutelgica por meio da palavra roccedila por outro
tambeacutem se indicava que natildeo era uma roccedila ldquoatrasadardquo ldquojecardquo ldquosubdesenvolvidardquo mas
moderna sofisticada urbanizada traduzida na ideia de uma ldquoroccedila estilizadardquo Entre os
produtores e distribuidores de bens e serviccedilos com a marca roccedila as ideias mais
associadas ao uso dessa palavra no seu ramo de atividades eram aleacutem de romantismo e
nostalgia tradiccedilatildeo especialmente no que tange a uma forma de produzir conforme o
jeito antigo artesanal Entre os consumidores de produtos e serviccedilos com a marca roccedila
ou simplesmente da roccedila os significados mais presentes tambeacutem remetiam agrave tradiccedilatildeo
enquanto modo artesanal e simples de se produzir mas principalmente de natureza
Ao confrontar os significados mais fortemente associados agrave palavra roccedila como
marca de produtos e serviccedilos nas trecircs esferas analisadas pode-se afirmar que o uso dessa
categoria materializada nos objetos de consumo transmitiu como significado
principalmente a origem destes resultado da produccedilatildeo agriacutecola feita no ldquocampordquo Mas
assim como assinala Santos F (2006) a palavra roccedila eacute sinocircnimo de rural mas natildeo de
qualquer rural Aqui tambeacutem ela denotou um produto feito pelos pequenos proprietaacuterios
e suas famiacutelias que produzem conforme um modo de vida que pode ser sintetizado
como ldquorural e tradicionalrdquo marcado pela produccedilatildeo em pequena escala sem uso de
tecnologias que resultam num produto ldquonaturalrdquo e numa relaccedilatildeo proacutepria com a
ldquonaturezardquo que por se diferir do modelo de vida contemporacircneo reveste-se de uma
imagem ldquoromacircntica e nostaacutelgicardquo E se a anaacutelise de indicou um conjunto de marcas que
mesclam a roccedila com o urbano o estrangeiro e a sofisticaccedilatildeo que se traduz como
129
ldquoestilizadardquo pode-se tambeacutem pensar de que maneira esse significado tambeacutem natildeo
sugere que preferir oferecer ou consumir um produto ou serviccedilo da roccedila ldquovindo do
campo natural tradicional e nostaacutelgicordquo denota um ldquoestilordquo recheado de valores
130
3 O MERCADO CENTRAL O CANTINHO DA ROCcedilA NA CAPITAL
MINEIRA
31 O mercado e a nova capital
Conforme jaacute foi exposto um dos loacutecus escolhido para a pesquisa de campo
onde se efetuou a observaccedilatildeo participante e a aplicaccedilatildeo de questionaacuterios a produtores
distribuidores e consumidores de produtos e serviccedilos com a marca roccedila foi o Mercado
Central tradicional mercado de alimentos bebidas e artesanato de Belo Horizonte em
Minas Gerais A histoacuteria do Mercado Central confunde-se com a histoacuteria desta capital
que foi construiacuteda de forma planejada no final do seacuteculo XIX O Mercado eacute hoje
considerado um dos siacutembolos de Belo Horizonte por isso seraacute feita uma breve
explanaccedilatildeo nas proacuteximas paacuteginas sobre a construccedilatildeo da capital mineira e como o
Mercado Central figura na histoacuteria da cidade delineando suas caracteriacutesticas
consideradas relevantes para esta pesquisa
Belo Horizonte capital do estado de Minas Gerais localiza-se na regiatildeo Central
e faz parte da Microrregiatildeo Metropolitana de acordo com as informaccedilotildees
disponibilizadas no site do Estado sob o tiacutetulo Regiotildees de Planejamento (MINAS
GERAIS 2015) composta por 34 municiacutepios conforme constava na seccedilatildeo Regiatildeo
Metropolitana de Belo Horizonte disponiacutevel no site da prefeitura (PREFEITURA
MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE 2015) A populaccedilatildeo de Belo Horizonte era de
2375151 habitantes em 2010 sendo totalmente urbana (IBGE 2015) e somada agrave
populaccedilatildeo da regiatildeo metropolitana perfaz um total de 5414701 residentes segundo as
informaccedilotildees da seccedilatildeo BH em nuacutemeros da paacutegina virtual da prefeitura (PREFEITURA
MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE 2015)
131
FIGURA 21 ndash Localizaccedilatildeo de Belo Horizonte-MG
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira no software QGIS 21 utilizando o banco de dados
ldquoLimitesrdquo da Base Cartograacutefica Vetorial do Brasil (BASE [2007]) disponibilizado pelo portal de mapas do IBGE no endereccedilo
ftpgeoftpibgegovbrmapeamento_sistematicobase_vetorial_continua_escala_250mil Acesso em 04 ago 2015
A cidade de Belo Horizonte foi criada em 1897 para ser a nova capital de Minas
Gerais que ateacute entatildeo se sediava na cidade histoacuterica de Vila Rica atual Ouro Preto A
transferecircncia da capital mineira passou a ser fortemente debatida a partir de 1890
impulsionada pela Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em 1889 num contexto poliacutetico e
intelectual marcado pelo republicanismo e federalismo e pautado no discurso positivista
de ldquoordem e progressordquo ldquoliberdaderdquo ldquociecircnciardquo ldquomoralidaderdquo ldquohigienismordquo e
ldquoracionalidaderdquo numa tentativa de romper com o passado histoacuterico escravocrata
monarquista e arcaico (BRAGA 2010 FILGUEIRAS 2006)
Embora algumas justificativas de mudanccedila da capital mineira centravam-se nas
limitaccedilotildees impostas pela topografia e pela arquitetura de Ouro Preto que traziam
obstaacuteculos a obras de saneamento e expansatildeo urbana conforme Borsagli (2010) autores
como Braga (2010) Filgueiras (2006) e Souza e Chaves (2011) ressaltam as disputas
poliacuteticas e de poder que envolveram a transferecircncia do centro poliacutetico-administrativo de
Minas Gerais No seacuteculo XIX a vida econocircmica na regiatildeo de Ouro Preto havia passado
132
por uma readaptaccedilatildeo devido agrave decadecircncia da exploraccedilatildeo de ouro enquanto outras
regiotildees do Estado como a Zona da Mata e o Sul prosperavam por meio da produccedilatildeo
agriacutecola surgindo nesses espaccedilos lideranccedilas poliacuteticas que contrabalanccedilavam o poder
centralizado na capital Nesse sentido a distacircncia e as limitaccedilotildees de comunicaccedilatildeo e
transporte dificultavam a integraccedilatildeo e o intercacircmbio entre as regiotildees proacutesperas e o
centro poliacutetico administrativo mineiro motivando a proposta de mudanccedila da capital
pelo grupo que ficou conhecido como ldquomudancistasrdquo Num primeiro momento havia o
desejo de sediar a capital do Estado em cidades pertencentes agraves regiotildees da Zona da Mata
e Sul intenccedilatildeo que natildeo foi concretizada jaacute que o planejamento de mudanccedila da capital
apresentou como soluccedilatildeo a construccedilatildeo da nova sede no Arraial Curral Del Rey na
regiatildeo central do Estado (BRAGA 2010 FILGUEIRAS 2006 SOUZA CHAVES
2011) Aleacutem dessas motivaccedilotildees Braga (2010) aponta para a existecircncia jaacute nos fins do
seacuteculo XIX de um desejo de preservaccedilatildeo do patrimocircnio histoacuterico e cultural no Brasil
cujo foco inicial era Ouro Preto defendido principalmente pelos representantes do ldquonatildeo-
mudancismordquo ou seja pelo grupo que lutava contra a mudanccedila da capital de Ouro
Preto
A nova capital Belo Horizonte chamada na eacutepoca de Cidade de Minas foi
inaugurada em 1897 sendo a primeira capital planejada no Brasil De acordo com
Filgueiras (2006) o primeiro Mercado Municipal de Belo Horizonte foi construiacutedo em
1900 para suprir o abastecimento da cidade que ateacute entatildeo era feito pelas colocircnias
agriacutecolas que existiam nos arredores da capital pelo comeacutercio ambulante e pelas
mercearias da iniciativa privada de secos e molhados Apesar deste mercado ter sido
ampliado em 1913 para atender agrave demanda crescente devido ao aumento da populaccedilatildeo
em 1920 a cidade passou por uma crise de abastecimento o que gerou pressotildees
puacuteblicas pela garantia da oferta de produtos alimentiacutecios na cidade conforme aponta a
mesma autora Neste contexto em 1929 criou-se o novo Mercado no local onde se
encontra o atual Mercado Central visando resolver estes problemas de abastecimento
bem como as condiccedilotildees de ldquohigienerdquo e esteacutetica precarizadas no antigo mercado
Visando ainda incentivar uma maior ocupaccedilatildeo do centro da cidade o Mercado foi
estrategicamente construiacutedo na regiatildeo central num quarteiratildeo onde se localizava um
antigo campo de futebol proacuteximo agrave Praccedila Raul Soares entre as ruas Goitacazes
Curitiba Santa Catarina e Avenida Augusto de Lima o que lhe confere oito entradas
133
distintas tambeacutem possibilitadas pelo seu formato labiriacutentico (SARAIVA CARRIERI
SOARES 2014)
Na deacutecada de 1930 o novo Mercado Municipal ofertava no atacado e no varejo
frutas verduras carnes e laticiacutenios enquanto na deacutecada seguinte conforme ressalta
Filgueiras (2006) jaacute se destacava a sua diversificaccedilatildeo de produtos Nos anos 1950 o
mercado ainda era o principal centro de abastecimento de hortifrutigranjeiros no
atacado e no varejo da cidade mas jaacute apresentava uma dificuldade de atendimento agrave
demanda sempre ampliada em virtude do crescimento populacional exponencial Aleacutem
disso o Mercado jaacute refletia os problemas urbanos das grandes cidades na jovem Belo
Horizonte congestionamento nos arredores aglomeraccedilatildeo de ambulantes e vendedores
e problemas de infraestrutura e higiene (FILGUEIRAS 2006) A autora tambeacutem
destaca o fato de que nessa deacutecada foi inaugurado o primeiro supermercado da capital
Todos esses problemas levaram a prefeitura agrave decisatildeo de privatizar o Mercado
Municipal em 1964 O mercado foi comprado pelos proacuteprios comerciantes que nele
atuavam atraveacutes da formaccedilatildeo de uma cooperativa passando a se chamar desde entatildeo
Mercado Central Abastecimentos e Serviccedilos SC Belo Horizonte (ALVES 2012)
FIGURA 22 ndash Fachada do Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Em atendimento agraves exigecircncias da licitaccedilatildeo de venda do mercado pela prefeitura
a cooperativa realizou uma seacuterie de reformas neste entre 1967 e 1975 cujo maior
destaque eacute a sua cobertura perdendo seu aspecto de feira livre e tornando-se mais
parecido com um galpatildeo embora seu formato labiriacutentico tenha sido mantido
(FILGUEIRAS 2006) O Mercado continuou passando por reformas ao longo dos anos
e segundo Costa (2006) as melhorias agora satildeo direcionadas para a oferta de
134
seguranccedila comodidade acessibilidade logiacutestica administraccedilatildeo e sistemas de
comunicaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo das suas accedilotildees institucionais
Para Filgueiras (2006) aleacutem da privatizaccedilatildeo e das transformaccedilotildees fiacutesicas foi
tambeacutem na deacutecada de 1960 que teria comeccedilado a se instituir um imaginaacuterio sobre o
Mercado Central como um ponto de encontro e um espaccedilo acolhedor que jaacute contrastava
com a agitaccedilatildeo da cidade Pois nas deacutecadas seguintes o Mercado Central passou a
conviverconcorrer com a abertura de novos supermercados e com a criaccedilatildeo da Central
de Abastecimento de Minas Gerais SA (CEASA) nos anos 1970 com o primeiro
shopping center e grandes redes de abastecimento (Carrefour Extra) nos anos 1980
aleacutem de competir com os comeacutercios varejistas dos bairros desde as primeiras deacutecadas de
sua existecircncia (FILGUEIRAS 2006) Estes desafios teriam levado o Mercado Central a
sobreviver ressignificando suas funccedilotildees tornou-se tambeacutem espaccedilo de encontro lazer
turismo e cultura na capital aleacutem de abastecimento alimentar encerrando portanto
valores culturais mineiros expressos nos alimentos na gastronomia e no artesanato
(AGUIAR 2012)
Assim para Filgueiras (2006) na deacutecada de 1990 e iniacutecio dos anos 2000 o
Mercado Central teria deixado de ser um protagonista comercial de Belo Horizonte e
teria em contrapartida se tornado um patrimocircnio um marco simboacutelico que representa
os valores a cultura e os aspectos simboacutelicos do mineiro e em especial do belo-
horizontino Para a autora em parte isto se deveu agrave accedilatildeo da Prefeitura de Belo
Horizonte que em ocasiatildeo das comemoraccedilotildees do centenaacuterio da cidade em 1997
promoveu a apropriaccedilatildeo do Mercado Central como ponto turiacutestico da cidade e espaccedilo
simboacutelico da memoacuteria e da cultura mineira e belo-horizontina Desde entatildeo o puacuteblico
do Mercado teria crescido exponencialmente da meacutedia de trecircs mil visitantes diaacuterios em
1998 para a meacutedia de 26 mil frequentadores diaacuterios em 200516 (FILGUEIRAS 2006)
Autores apontam desde entatildeo o Mercado Central como um espaccedilo que reserva
aspectos da cultura e da memoacuteria mineira mas tambeacutem de relaccedilotildees sociais tradicionais
marcadas pela informalidade pela descontraccedilatildeo pela sociabilidade e pelo acolhimento
reproduzindo modos de vida passados e que remetem ao rural e agrave roccedila (COSTA 2006
FILGUEIRAS 2006 NETTO 2012) Segundo Filgueiras (2006 p 114) o Mercado
teria elementos que ldquoassociados agrave memoacuteria e agrave cultura regional conferem-lhe tambeacutem
16 Segundo reportagem veiculada no jornal Hoje em Dia em 2012 a meacutedia de puacuteblico do Mercado Central era de 14 milhatildeo por mecircs o que daria uma meacutedia de 46500 visitantes diaacuterios (CORREcircA 2012)
135
um forte caraacuteter luacutedico transformando-o numa espeacutecie de museu que guarda vestiacutegios
ainda vivos do mundo rural e de outros tempos e modos de vidardquo A autora ressalta que
o Mercado se destaca natildeo soacute pela venda de produtos tradicionais mas tambeacutem pelas
relaccedilotildees sociais nele estabelecidas entre vendedores e consumidores e entre os proacuteprios
frequentadores que reproduziriam aspectos ldquode antigamenterdquo
Ainda hoje a localizaccedilatildeo central do Mercado e seu caraacuteter tradicional satildeo reconhecidos como os dois pilares de sustentaccedilatildeo da sua importacircncia para a cidade Suas caracteriacutesticas ldquopopularesrdquo ou ldquotiacutepicasrdquo natildeo se resumem agraves mercadorias mas estatildeo tambeacutem relacionadas a uma praacutetica de comeacutercio onde o reconhecimento do outro a informalidade e a conversa ainda estatildeo presentes Aleacutem disso eacute recorrente a associaccedilatildeo do Mercado com haacutebitos e costumes que lembram o mundo rural o cotidiano da roccedila [] (FILGUEIRAS 2006 p 105 grifo da autora)
Nesse sentido Filgueiras (2006) destaca que numa pesquisa realizada em 1999
pela Empresa Municipal de Turismo (BELOTUR) ligada agrave Secretaria de Cultura
Turismo e Esportes de Belo Horizonte o Mercado Central era o ponto turiacutestico mais
reconhecido pelos belo-horizontinos Alguns autores afirmam que o Mercado figura
como uma forma de se ldquorevisitar a cultura mineira seus queijos seus doces a
hospitalidade e a interioridade o sossego a devoccedilatildeo religiosa e o apego agraves tradiccedilotildeesrdquo
(SOARES et al 2007 p 5) No site do Governo do Estado de Minas destaca-se que
no Mercado os produtos mais procurados satildeo a goiabada a cachaccedila da roccedila e o famoso
queijo de Minas conforme a mateacuteria Mercado Central (MINAS GERAIS 2015)
Conforme se ressaltou no capiacutetulo anterior o queijo foi um dos bens mais lembrados
pelos entrevistados como um produto da roccedila O Mercado Central eacute um grande
distribuidor desse produto jaacute que Netto (2012) constatou em pesquisa realizada em
2009 a existecircncia de cerca de 30 queijarias que vendiam no varejo aproximadamente
18 toneladas do queijo artesanal mineiro por semana Trata-se dos queijos artesanais
feitos com leite cru elaborados por agricultores de base familiar vindos especialmente
das cidades mineiras de Araxaacute Satildeo Roque de Minas (Serra da Canastra) Serro e Serra
do Salitre
No contexto contemporacircneo de acordo com Alves (2012) o Mercado Central
possui mais de 400 lojas de diversos ramos varejistas consideradas como micro e
pequenas empresas que empregam 2200 pessoas das quais 197 seriam funcionaacuterios do
proacuteprio Mercado A oferta de produtos eacute diversificada alimentos ervas e produtos
136
naturais bebidas utensiacutelios domeacutesticos decoraccedilatildeo artesanato moacuteveis drogaria
animais de estimaccedilatildeo alimentaccedilatildeo entretenimento confecccedilatildeo dentre outros negoacutecios
(ALVES 2012)
De acordo com Filgueiras (2006) a grande maioria dos frequentadores do
Mercado eacute proveniente da proacutepria capital e quase metade o frequenta semanalmente A
autora ressalta que o puacuteblico que o visita nos dias uacuteteis da semana direciona-se
prioritariamente ao comeacutercio hortifrutigranjeiro e aos bares e restaurantes Nos finais de
semana ressalta o movimento nos bares e restaurantes e o aumento do puacuteblico elitizado
residente na Zona Sul aacuterea nobre de Belo Horizonte Embora os autores consultados
destaquem a diversidade do puacuteblico que frequenta o Mercado sendo esta inclusive
uma de suas caracteriacutesticas mais ressaltadas para valorizar seu caraacuteter acolhedor eacute
possiacutevel notar a presenccedila de um puacuteblico tambeacutem de renda meacutediaalta mesmo nos dias
uacuteteis da semana Nesse sentido Costa (2006) destaca como os preccedilos dos produtos
tendem a ser elevados em virtude da sua diversidade e qualidade natildeo oferecendo
portanto um perfil de mercado popular de forma generalizada De acordo com autores
como Filgueiras (2006) o puacuteblico tiacutepico do Mercado eacute composto por donas de casa
trabalhadores e comerciantes da regiatildeo central estudantes famiacutelias e personalidades
como poliacuteticos e intelectuais
Este eacute um perfil consensual a respeito do Mercado Central de Belo Horizonte
apresentado pelos autores que se dedicaram a estudaacute-lo e foi basicamente a realidade
identificada nesta pesquisa durante o trabalho de campo Em seguida no entanto seratildeo
apresentadas as peculiaridades referentes a esta pesquisa sobre a circulaccedilatildeo de bens com
a marca roccedila no Mercado Central
32 A observaccedilatildeo participante e a aplicaccedilatildeo de questionaacuterios no Mercado
Central
O Mercado Central foi escolhido para a aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios aos
consumidores e distribuidoresprodutores de produtos e serviccedilos da roccedila levando-se em
consideraccedilatildeo os apontamentos da literatura a respeito de como esse estabelecimento
dentre tantos outros disponiacuteveis eacute emblemaacutetico do consumo cultural das
representaccedilotildees do rural e da roccedila particularmente dentro das possibilidades de
137
realizaccedilatildeo da pesquisa Embora natildeo possuiacutesse muitos estabelecimentos com a marca
roccedila propriamente constatou-se a existecircncia de um mercado de produtos artesanais e
naturais eminentemente associados agrave roccedila pelos consumidores e distribuidores no
Mercado
FIGURA 23 ndash Produto com marca ldquoRoccedilardquo no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
O trabalho de campo revelou ainda de forma natildeo esperada um conjunto de
outros estabelecimentos no entorno do Mercado na regiatildeo central de Belo Horizonte
que utilizava a categoria roccedila como marca Em uma das visitas para a coleta de dados
no Mercado foi possiacutevel visualizar do ocircnibus as bancas de uma feira livre de verduras
com o nome ldquoDireto da Roccedilardquo numa rua da Aacuterea Hospitalar do Bairro Santa Efigecircnia
na regiatildeo central da cidade Da mesma forma na rodoviaacuteria de Belo Horizonte no
centro da capital no segundo piso onde se localizam vaacuterios postos e estabelecimentos
de serviccedilos encontra-se uma feira de produtos artesanais chamada ldquoArmazeacutem da Roccedilardquo
Os artigos agrave venda neste espaccedilo satildeo peccedilas de artesanato de ceracircmica madeira
tecelagem e produtos como doces mel licores e fitoteraacutepicos
Ambos ldquoDireto da Roccedilardquo e ldquoArmazeacutem da Roccedilardquo fazem parte de um programa
de poliacutetica social da Secretaria Municipal Adjunta de Seguranccedila Alimentar e
Nutricional da Prefeitura de Belo Horizonte que tem por objetivo facilitar o escoamento
da produccedilatildeo agriacutecola e agroindustrial de pequenos e meacutedios agricultores do interior de
Minas Gerais A iniciativa promove agrave populaccedilatildeo da cidade acesso a alimentos frescos e
saudaacuteveis produzidos com ldquoteacutecnicas ecologicamente sustentaacuteveisrdquo cuja qualidade eacute
monitorada pela secretaria a preccedilos menores Uma das caracteriacutesticas do programa eacute
eliminar os intermediaacuterios possibilitando a comercializaccedilatildeo direta entre produtores e
consumidores As barracas da feira ldquoDireto da Roccedilardquo estatildeo instaladas em ldquopontos
estrateacutegicosrdquo nos diferentes bairros da cidade e cada uma eacute assumida por um produtor
138
As bancas satildeo montadas em 21 endereccedilos em 5 regiotildees diferentes da cidade em
diversos dias da semana cujos locais podem ser conferidos na paacutegina virtual do
Programa Direto da Roccedila no site da prefeitura (PREFEITURA MUNICIPAL DE
BELO HORIZONTE 2015) Segundo reportagem no site Brasil de Fato (MAIS
2015) de abril de 2015 a Secretaria ainda pretenderia criar mais 30 pontos para o
programa ldquoDireto da Roccedilardquo Jaacute o ldquoArmazeacutem da Roccedilardquo dispotildee de duas lojas uma na
rodoviaacuteria jaacute mencionada e a outra no Bairro Satildeo Paulo proacutexima a um shopping
center na regiatildeo Nordeste da cidade Seus produtos satildeo provenientes de cidades
pequenas da mesorregiatildeo Metropolitana de Belo Horizonte como Satildeo Joaquim de
Bicas Itaguara Esmeraldas Ouro Preto e Paraopeba segundo informaccedilotildees do
atendente da loja da rodoviaacuteria
No Mercado Central uma das primeiras abordagens foi feita agrave recepcionista do
Posto de Informaccedilotildees Turiacutesticas da Belotur num balcatildeo localizado estrategicamente no
portatildeo 1 da Avenida Augusto de Lima entrada principal do Mercado Entre as
respostas do questionaacuterio e as informaccedilotildees uacuteteis agrave realizaccedilatildeo da observaccedilatildeo participante
a recepcionista informou a existecircncia de um restaurante self-service nos arredores do
Mercado chamado ldquoCozinha da Roccedilardquo Para aleacutem do Mercado Central loacutecus da
observaccedilatildeo participante e da aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios foi possiacutevel se deparar com
trecircs estabelecimentos que faziam alusatildeo agrave roccedila localizados na regiatildeo central de Belo
Horizonte espaccedilo de intensa circulaccedilatildeo de pessoas e concentraccedilatildeo de uma gama de
estabelecimentos comerciais e de serviccedilos
FIGURA 24 ndash Restaurante ldquoCozinha da Roccedilardquo no centro de Belo Horizonte-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
A visita aos estabelecimentos no Mercado Central para aplicar os questionaacuterios
foi feita a partir das indicaccedilotildees da recepcionista de Turismo do Mercado de quais eram
os stands e produtos mais procurados pelos frequentadores como ldquoda roccedilardquo Baseou-se
139
tambeacutem numa lista preacutevia das lojas existentes no Mercado especialmente queijarias
hortifrutigranjeiros cachaccedilarias lojas de artesanato e utilidades domeacutesticas entre
outras Nessa ocasiatildeo aplicou-se os questionaacuterios a vendedores gerentes e proprietaacuterios
das lojas de comeacutercio de alimentos bebidas artesanatos ou utensiacutelios domeacutesticos
Responderam ao questionaacuterio os responsaacuteveis por trecircs queijarias uma cachaccedilaria dois
hortifruacutetis um comeacutercio de alimentos em geral (comercializam aleacutem de queijos doces
farinaacuteceos massas secos e molhados) e um de fubaacutes duas lojas de artesanato e
utensiacutelios domeacutesticos aleacutem do restaurante vizinho ao mercado com a marca roccedila e a
recepcionista do posto de informaccedilotildees turiacutesticas do Mercado somando 12
questionaacuterios Aleacutem destes responderam ao questionaacuterio 15
consumidoresfrequentadores do Mercado Central
Entre aqueles comerciantes que se recusaram a responder ao questionaacuterio as
principais justificativas dadas eram de que natildeo vendiam produtos da roccedila ou que
vendiam produtos artesanais mas natildeo da roccedila ou ainda que natildeo vendiam produtos
sem ldquoselordquo Essas recusas aconteceram em algumas queijarias e podem ter sido
motivadas pelo simples fato de natildeo utilizarem o termo roccedila na identificaccedilatildeo de seus
produtos apropriando-se de outros vocaacutebulos para isso como a palavra ldquoartesanalrdquo
Mas diante das respostas de outros comerciantes e dos proacuteprios consumidores jaacute
discutidas no capiacutetulo anterior nas quais muitas vezes os produtos da roccedila eram por
eles considerados justamente aqueles ldquosem selordquo ou ldquosem roacutetulordquo acredita-se que a
recusa a responder ao questionaacuterio tambeacutem pode ter sido motivada pelo receio quanto agrave
fiscalizaccedilatildeo da venda desses produtos
A abordagem aos consumidores para a aplicaccedilatildeo de questionaacuterios foi feita de
forma aleatoacuteria poreacutem em alguns corredores estrateacutegicos para identificar os indiviacuteduos
adequados aos objetivos da pesquisa Embora os estabelecimentos no Mercado Central
natildeo estivessem situados de forma setorizada deliberadamente havia alguns corredores
que concentravam mais lojas de um mesmo ramo que outros Assim inicialmente
algumas entrevistas foram feitas no corredor ldquoK21rdquo17 que fica numa das entradas do
Mercado entre os portotildees da Rua Padre Belchior e da Avenida Amazonas Neste haacute
uma concentraccedilatildeo de lojas que vendiam utilidades domeacutesticas artesanatos tecidos e
cestarias entre outros Nele era possiacutevel apreciar os visitantes observando de maneira
17 No site do Mercado Central eacute possiacutevel visualizar o mapa de seus corredores e a localizaccedilatildeo de suas lojas no endereccedilo httpmercadocentralcombrlojas Acesso em 09 set 2015
140
absorta as vitrines das lojas de artesanato que segundo alguns dos depoimentos
ldquolembram as coisas da roccedila a casa da avoacuterdquo Os olhares dos consumidores se
entretinham nessas vitrines diante dos tecidos de chita dos quadros de cozinhas da roccedila
em miniatura dos berrantes garrafas de peacutes de boi e de vaacuterios tipos de utensiacutelios
domeacutesticos como panelas de barro pedra ferro aacutegata gamelas e tachos de cobre
comumente utilizados no passado nas casas do campo Um desses consumidores que
concordou em participar da pesquisa declarou que visitava o Mercado Central toda
semana porque o fazia se lembrar da roccedila onde viveu quando crianccedila numa cidade do
interior Enquanto aguardava a filha em um compromisso no centro da cidade este
entrevistado disse que costumava ldquopassar o tempordquo no Mercado
FIGURA 25 ndash Canecas em aacutegata
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 26 ndash Doces embalados no tecido de chita
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
141
FIGURA 27 ndash Peacutes de boi
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 28 ndash Berrantes
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 29 ndash Gaiolas
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
142
FIGURA 30 ndash Corredor de artesanato tecelagem e cestaria
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 31 ndash Panelas de barro
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 32 ndash Panelas de pedra
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Assim como foi relatado no capiacutetulo anterior a proprietaacuteria de um desses
estabelecimentos que vendiam utilidades domeacutesticas no Mercado Central afirmou que
143
os consumidores buscavam estes utensiacutelios para utilizarem nas aacutereas de churrasqueira e
fogatildeo a lenha nas casas de campo siacutetio ou mesmo em cozinhas das casas e
apartamentos da cidade com decoraccedilatildeo inspirada na cultura rural Esta entrevistada
relatou que para os consumidores a aquisiccedilatildeo de tais artigos ldquolembravam a avoacute a vida
no siacutetio na fazendardquo Muitos consumidores que responderam ao questionaacuterio relataram
ter tido experiecircncias de passar as feacuterias durante a infacircncia na casa dos avoacutes tios ou
parentes ldquono siacutetiordquo ldquona fazendardquo ldquona roccedilardquo ldquono interiorrdquo Alguns em menor
frequecircncia declararam que eles ou os pais tinham morado ldquona roccedilardquo Essas
experiecircncias que os entrevistados identificaram com a roccedila teriam sido marcadas pela
cultura rural ldquobrincar com os porquinhos as galinhas e as vacasrdquo ldquocurral terra outro
sotaque outros diaacutelogos outro cotidianordquo e pareciam constituir uma memoacuteria repleta
de nostalgia e romantismo
Na infacircncia passava as feacuterias na roccedila satildeo as melhores lembranccedilas o curral o leite ao peacute da vaca o meu tio tinha um engenho Pisar no chatildeo comida feita na hora a gente era pobre de dinheiro mas rico de amor carinho e respeito (Aposentada Belo Horizonte outubro de 2014)
Nesse sentido parecia haver um conjunto de identificadores no Mercado
Central que era associado agrave roccedila pelos consumidores como se pode notar nas citaccedilotildees
ldquosomos da roccedilardquo ou ldquosomos caipirasrdquo quando abordados para participarem da pesquisa
ainda que seu local de residecircncia fosse definido como urbano em Belo Horizonte O
outro espaccedilo escolhido para a aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios aos consumidores dentro do
Mercado Central foi no corredor ldquoP10rdquo entre os corredores ldquoH15rdquo e ldquoI17rdquo situados na
aacuterea mais central do Mercado Tratava-se de um trecho de corredor com entrada para
apenas duas lojas facilitando os procedimentos de aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios por ter
uma aglomeraccedilatildeo menor de pessoas e menos ruiacutedos embora a circulaccedilatildeo de pessoas
fosse minimamente satisfatoacuteria para permitir as abordagens Aleacutem disso esse corredor
ficava numa esquina proacutexima a um conjunto de queijarias facilitando o contato com
consumidores atraiacutedos pelos produtos da roccedila Este eacute outro aspecto que permitiu a
identificaccedilatildeo dos consumidores com um conjunto de significados que relacionavam
com a roccedila a partir do consumo de um determinado produto o queijo artesanal mineiro
De acordo com um jovem proprietaacuterio de uma queijaria no Mercado quando
questionado se o uso da marca roccedila seria um diferencial do produto ele afirmou que
144
ldquoSim pois lembra a infacircncia o interior o pessoal mais velho faz essas referecircncias
quando veem o produto como por exemplo o queijo cabacinha que era produzido
antigamenterdquo
FIGURA 33 ndash Queijo cabacinha defumado
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Muitos dos consumidores que responderam ao questionaacuterio nesse corredor
carregavam uma sacola com um queijo e faziam questatildeo de mencionaacute-lo no decorrer da
pesquisa para ilustrar seus argumentos ldquoEstava comprando queijo da roccedila Compro
toda semana na mesma queijariardquo (Aposentado Belo Horizonte outubro de 2014)
Muitos consumidores durante a aplicaccedilatildeo do questionaacuterio costumavam justificar o que
tinham ido comprar no Mercado para elucidar a temaacutetica da pesquisa ldquoComprei um
mancebo18 e estou procurando jabuticabas mas natildeo encontrei Sinto falta da oferta de
alguns produtos como a rapadura batidardquo (Aposentada Belo Horizonte outubro de
2014) Outro consumidor entrevistado jaacute finalizada a aplicaccedilatildeo do questionaacuterio
retornou para contar que queria comprar figos mas natildeo estava conseguindo encontrar
nenhum ldquoigual aos da roccedilardquo19 conforme gostaria
A performance dos consumidores no Mercado Central apresentava-se numa
linha intermediaacuteria entre o supermercado e o shopping center natildeo era apressado e
objetivo como no primeiro nem tatildeo displicente como no segundo Nesse sentido
Costa (2006) estabelece uma diferenciaccedilatildeo entre o Mercado Central e as feiras livres e
shopping centers sublinhando que a peculiaridade do Mercado estaacute no fato de ser um 18 Em Minas Gerais usa-se o vocaacutebulo mancebo para se referir a uma pequena estrutura de madeira utilizada para apoiar o coador de cafeacute embaixo do qual se apoia o bule ou xiacutecara para amparar a bebida que escoa do coador Eacute um utensiacutelio domeacutestico que costumava ser muito usado nas casas no campo antigamente A entrevistada fez alusatildeo a ele como um produto tiacutepico da roccedila 19 Provavelmente o consumidor se referia aos figos colhidos ainda verdes utilizados para fazer compotas e doces em calda ldquocomo na roccedilardquo Ele supostamente soacute havia encontrado os figos maduros proacuteprio para o consumo in natura
145
estabelecimento privado onde as pessoas se comportam como no espaccedilo puacuteblico
sobretudo pela informalidade O comportamento dos consumidores sugeria a impressatildeo
de estarem a passeio caminhando sem pressa e observando as vitrines e balcotildees muitos
estavam acompanhados num pequeno grupo de duas ou trecircs pessoas O ritmo no
Mercado contrasta com o da cidade e assim o destaca Filgueiras (2006)
Entre suas quatro paredes nada mais haveria daquele cotidiano veloz mecacircnico anocircnimo e violento Ao cruzarem os portotildees de entrada as pessoas se despiram de sua armadura blaseacute tornando-se curiosas atentas aos pequenos detalhes dispostas ao reconhecimento agrave conversa agrave confraternizaccedilatildeo As pessoas natildeo teriam ali pressa Aliaacutes natildeo se deve ir ao Mercado com pressa A diversidade social supostamente atrai natildeo amedronta [] Ali as pessoas natildeo seriam as mesmas Ou ainda o Mercado seria outra cidade (FILGUEIRAS 2006 p 136 grifo da autora)
Havia tambeacutem aqueles que caminhavam sozinhos empurrando um carrinho de
compras com uma lista na matildeo Alguns se recusaram a responder ao questionaacuterio
alegando pressa e era possiacutevel perceber alguns caminhando a passos largos Alguns
autores como Filgueiras (2006) ressaltam que alguns frequentadores do Mercado
trabalham proacuteximos deste no centro e circulam ldquode passagemrdquo por ele na ida ou na
volta ao trabalho Esta autora inclusive destaca como o Mercado se tornou desde a
deacutecada de 1990 um espaccedilo de encontro e lazer para os belo-horizontinos que
frequentam seus bares e restaurantes seja no intervalo do trabalho para o almoccedilo ou ao
fim da tarde para um happy hour
Nos corredores onde havia bares a qualquer hora do dia podia-se cruzar com
grupos de pessoas em peacute em frente ao balcatildeo do bar conversando entusiasticamente
enquanto tomam uma cerveja e apreciam um petisco ou ldquotira-gostordquo Essa cena de lazer
e tempo livre nos dias uacuteteis da semana em horaacuterio comercial contrasta com o trabalho
dos seguranccedilas uniformizados e dos carregadores que passam empurrando carrinhos de
transporte e armazenamento de mercadorias pelos corredores que embora natildeo sejam
estreitos assim se tornam em virtude do aglomerado de pessoas Nesse contexto o
Mercado reflete um jogo entre o cotidiano e o extra cotidiano o ordinaacuterio e o
extraordinaacuterio (DAMATTA 1997) onde tempo de trabalho e tempo de lazer disputam
o espaccedilo e refletem numa mesma configuraccedilatildeo o modo de vida rural e urbano
conforme apontava Rambaud (1973) a respeito de como o tempo era administrado em
cada uma dessas culturas
146
Dentro do Mercado a experiecircncia em relaccedilatildeo ao tempo era sentida como
diferente daquela vivida ldquolaacute forardquo A cidade era vista como proporcionando a vivecircncia
de outra cultura urbana moderna Alguns autores como Filgueiras (2006) relatam o
funcionamento do Mercado Central em Belo Horizonte como um microcosmo um
espaccedilo de refuacutegio da cidade e de seu cotidiano que tambeacutem foi constatado nesta
pesquisa Nas paacuteginas seguintes tenta-se demonstrar como no Mercado os jogos destes
e de outros pares de opostos ficam evidentes
33 O Mercado Central e seus pares de opostos a cidadelaacute fora a roccedilaaqui
dentro
As entrevistas realizadas apontaram para um primeiro par de opostos
complementares capital versus interior que se repetiu ao longo da pesquisa no Mercado
e se confirmou posteriormente na anaacutelise dos dados pelos softwares Alceste e NVivo
que seraacute discutido no capiacutetulo 5 O depoimento de uma das consumidoras entrevistadas
residente em Belo Horizonte foi emblemaacutetico neste sentido Para ela o Mercado
Central lembrava o interior de modo que quando nele ingressava tinha a sensaccedilatildeo de
que havia deixado ldquoa cidade laacute forardquo e teria entrado ldquono interiorrdquo O uso da expressatildeo
ldquointeriorrdquo pela entrevistada remetia num primeiro plano genericamente agraves cidades de
pequeno porte do interior de Minas Gerais ou de qualquer outro Estado no Brasil de
cultura rural Por isso o Mercado contrastava com a cidade ldquolaacute forardquo em termos do
ritmo de circulaccedilatildeo das pessoas dos sons das cores das relaccedilotildees sociais possiacuteveis de se
estabelecer ali
Num segundo plano percebeu-se que a entrevistada tambeacutem usava o termo
ldquointeriorrdquo para se referir agraves memoacuterias passadas e agraves sensaccedilotildees de seguranccedila e proteccedilatildeo
que o Mercado lhe provocava Afirmava que laacute fora na cidade ficava ldquoa bagunccedilardquo e
dentro do Mercado ldquoa tranquilidaderdquo Esta entrevistada relatou que jaacute teria passado um
dia inteiro dentro do Mercado passeando por ele de forma distraiacuteda e que na
adolescecircncia costumava frequentaacute-lo com os amigos apoacutes a escola Essa declaraccedilatildeo
entre outras relatadas pelos consumidores revela como o Mercado eacute identificado por
muitos dos seus frequentadores com um ldquorefuacutegio nostaacutelgicordquo tal como se referiu
Filgueiras (2006) utilizando uma expressatildeo de Canclini (1997)
147
Os contrastes do seu ldquoclimardquo com o da cidade ocorreriam por conta natildeo soacute dos
objetos agrave venda jaacute citados e ilustrados nas paacuteginas anteriores mas tambeacutem pelas
experiecircncias sensoriais que o Mercado proporcionava Dentro do seu espaccedilo natildeo se
ouve o barulho do tracircnsito intenso do seu entorno no centro da cidade As lojas de
hortifruacuteti pimentas flores artesanatos utensiacutelios domeacutesticos aleacutem do tom terroso do
seu piso e dos tijolos de cobogoacute proporcionaram uma experiecircncia visual bastante
colorida que evidentemente contrasta com o visual das ruas nos arredores marcado
pelo concreto A experiecircncia olfativa dentro do Mercado tambeacutem eacute notaacutevel aromas
densos de especiarias e temperos perfumes das refeiccedilotildees preparadas nos bares e
restaurantes aleacutem do cheiro das raccedilotildees dos animais domeacutesticos de pequeno porte que
satildeo vendidos neste estabelecimento Aleacutem de ser possiacutevel degustar almoccedilo lanches e
petiscos nos seus bares e restaurantes tambeacutem pode-se experimentar frutas nos stands
de hortifruacutetis Destaca-se ainda conforme a passagem de Filgueiras (2006) acima as
formas de sociabilidade diferenciadas que podem ser ativadas dentro do Mercado
FIGURA 34 ndash Corredor no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
148
FIGURA 35 ndash Queijos
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 36 ndash Utensiacutelios domeacutesticos
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 37 ndash Flores e pimentas
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Nestes termos os respondentes do questionaacuterio tanto os consumidores quanto
os distribuidores costumavam associar a roccedila ao interior ou identificar os produtos da
roccedila como aqueles provenientes do interior Agrave exceccedilatildeo do proacuteprio Mercado Central natildeo
costumavam identificar a roccedila agrave cidade de Belo Horizonte a despeito de vaacuterios
estabelecimentos de serviccedilos localizados no centro jaacute mencionados que fazem
149
referecircncia agrave roccedila Apesar de habitualmente alguns belo-horizontinos descreverem a
cidade como uma ldquoroccedila granderdquo entre os respondentes dos questionaacuterios natildeo havia uma
percepccedilatildeo da cultura rural do modo de vida da roccedila relacionados agrave Belo Horizonte
Durante a aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios a expressatildeo utilizada por um consumidor
residente da cidade foi ldquoBH eacute uma roccedila grande Todo mundo se conhecerdquo Assim
como esse entrevistado os residentes da capital mineira costumam fazer essa associaccedilatildeo
entre Belo Horizonte e a roccedila exatamente para mencionar que haveria uma rede de
interconhecimento na cidade apesar do tamanho consideraacutevel de sua populaccedilatildeo20 Aleacutem
disso acredita-se que a existecircncia de estabelecimentos de produtos e serviccedilos da roccedila no
centro da cidade parece sugerir a presenccedila da roccedila como cultura em Belo Horizonte
Nesse sentido a proprietaacuteria do restaurante com a marca roccedila nas proximidades afirmou
que a manutenccedilatildeo do nome e do estilo do estabelecimento associado agrave roccedila era devido
agrave sua localizaccedilatildeo proacuteximo ao Minascentro e ao Mercado Central onde aflui um
conjunto de turistas e visitantes que eram atraiacutedos pelo serviccedilo gastronocircmico tiacutepico ldquoda
roccedilardquo em plena capital
Nesses termos a roccedila era o interior numa perspectiva relativa e relacional
conforme apontado na hipoacutetese desta pesquisa e contrastava com a realidade do modo
de vida urbano vivenciado na capital (LIMA 1999) Assim o ponto de vista eacute relativo
porque a roccedila era o ldquooutrordquo ldquooutro sotaque outro cotidiano outros diaacutelogosrdquo ldquoproacuteximo
agrave naturezardquo ldquoisoladardquo ldquono matordquo Objetivamente associavam a roccedila agraves pequenas
cidades do interior que julgavam possuir uma cultura rural e natildeo necessariamente agrave
vida no campo em si mesmo Formavam portanto um par capital versus interior que
pode encerrar as tradicionais relaccedilotildees assimeacutetricas de diferenciaccedilatildeo social discutidas no
primeiro capiacutetulo a respeito da categoria roccedila quando esta eacute utilizada para inferiorizar
contendo as ideias de atraso carecircncia e subdesenvolvimento que marcaram e ainda
marcam a perspectiva sobre o rural no Brasil e em outros paiacuteses tambeacutem (ENTRENA-
DURAacuteN 2012 OLIVEIRA 2003) Assim embora a forma como as populaccedilotildees
urbanas veem o rural possa estar mudando rumo a uma revalorizaccedilatildeo especialmente no
que tange agrave identificaccedilatildeo que fazem entre o campo a natureza e as possibilidades de
qualidade de vida que este pode proporcionar ndash e esta pesquisa tem constatado este
20 Supotildee-se que esse tipo de declaraccedilatildeo de que Belo Horizonte eacute uma ldquoroccedila granderdquo onde todos se conhecem seja mais comum na regiatildeo Centro-Sul aacuterea mais antiga tradicional e elitizada com residentes de renda meacutedia alta
150
processo ndash o perspectivismo binaacuterio entre capital versus interior cidade versus campo
parece ainda prevalecer De acordo com Allonso (2012) e Oliveira (2009) havia ateacute o
iniacutecio do seacuteculo XX uma dicotomia entre o litoral e o sertatildeo ou seja entre as grandes
cidades litoracircneas como Rio de Janeiro Salvador e Recife e todo o interior do Brasil
que englobava os diferentes tipos sociais e as diferentes culturas no amaacutelgama
sertatildeocaipira
Mas a contraposiccedilatildeo entre a capital e as pequenas cidades do interior feita pelos
entrevistados no Mercado toca num dilema ainda natildeo resolvido pelos pesquisadores
brasileiros acerca do status das pequenas cidades no debate entre o rural o urbano
Segundo Wanderley (2009) os pequenos municiacutepios permanecem agraves margens do
interesse dos pesquisadores e para preencher esta lacuna a autora desenvolve um
estudo a respeito dos pequenos municiacutepios do Estado de Pernambuco Na referida
pesquisa Wanderley (2009) considera como pequenos municiacutepios aqueles cuja
populaccedilatildeo urbana natildeo ultrapassa os 20000 habitantes Em termos analiacuteticos a autora
considera a trama social e espacial e a trajetoacuteria de desenvolvimento especiacuteficas dos
municiacutepios complementadas pelas dimensotildees como o exerciacutecio das funccedilotildees urbanas a
intensidade do processo de urbanizaccedilatildeo a presenccedila do mundo rural o modo de vida
dominante e a sociabilidade local (WANDERLEY 2009 p 317-318) A partir desses
criteacuterios a autora afirma que seria possiacutevel distinguir os municiacutepios entre
preponderantemente urbano preponderantemente rural ou intermediaacuterio
A criacutetica de Wanderley (2009) que encontra alguma correspondecircncia nas
perspectivas de Abramovay (2009) e Veiga (2003) seria de que nos pequenos
municiacutepios no Brasil com menos de 20 mil habitantes que em 1994 equivaliam a
726 dos municiacutepios no paiacutes vive a maior parte da populaccedilatildeo rural brasileira Veiga
(2003) ao simular no Brasil o criteacuterio adotado pela Organizaccedilatildeo para a Cooperaccedilatildeo do
Desenvolvimento Econocircmico (OCDE) que considera urbana uma localidade com
densidade demograacutefica acima de 150 habkm2 constatou que apenas 411 dos 5507
municiacutepios brasileiros em 2000 poderiam ser considerados urbanos (VEIGA 2003 p
65) Abramovay (2009) por sua vez destaca que mais de 70 dos municiacutepios
brasileiros possuem uma comissatildeo de desenvolvimento rural e que parte dos municiacutepios
com maior iacutendice de desenvolvimento humano eacute eminentemente rural e critica o fato de
haver ldquo[] um viacutecio de raciociacutenio na maneira como se definem as aacutereas rurais no Brasil
o qual contribuiria decisivamente para que estas aacutereas fossem assimiladas
151
automaticamente a atraso carecircncia de serviccedilos e falta de cidadaniardquo (ABRAMOVAY
2009 p 21)
Os autores se referem ao Decreto-Lei no 311 de 1938 que define como cidade
todo municiacutepio que tenha uma sede administrativa Aleacutem disso segundo Veiga (2003)
eacute prerrogativa das Cacircmaras Municipais indicarem as delimitaccedilotildees urbanas e rurais das
cidades Segundo este autor a partir de 1991 o IBGE delineou uma tipologia para
definir as aacutereas urbanas e natildeo urbanas sendo trecircs categorias de aacutereas urbanas
(classificadas em urbanizadas natildeo-urbanizadas e urbanas isoladas) e quatro de aacutereas
rurais (classificadas em extensatildeo urbana povoado nuacutecleo e outros) No entanto
Abramovay (2009) argumenta que esta definiccedilatildeo do IBGE contribuiria para uma visatildeo
de ldquonatureza residualrdquo do rural uma vez que as aacutereas rurais seriam aquelas situadas fora
do urbano e natildeo em sua relaccedilatildeo com as cidades
Por outro lado as cidades pequenas e mesmo o campo natildeo estariam imunes agraves
transformaccedilotildees advindas da sociedade urbana considerando-se que esta envolveria um
modo de vida passiacutevel de superar as fronteiras fiacutesicas entre cidade e campo
transformando ambos e mudando tambeacutem a sua relaccedilatildeo (SOBARZO 2010) Para esta
autora na sociedade urbana as atividades desenvolvidas no campo utilizariam cada vez
mais a tecnologia e o emprego do conhecimento cientiacutefico possibilitando uma nova
organizaccedilatildeo territorial novos haacutebitos de vida e de consumo bem como novas relaccedilotildees
interpessoais Na interpretaccedilatildeo que Sobarzo (2010) faz de Lefebvre (2008) o campo e
suas atividades produtivas seriam assim transformados segundo as caracteriacutesticas da
sociedade urbana Diminuiriam as diferenccedilas culturais de modos de vida e de produccedilatildeo
entre campo e cidade o que natildeo significaria entretanto que o campo deixaria de existir
Percebe-se portanto que as perspectivas dos entrevistados a respeito do que
seria o interior a sua vinculaccedilatildeo agrave roccedila e sua contraposiccedilatildeo agrave cidadecapital insere-se
num debate teoacuterico que possui muitas facetas a respeito de como o rural e o urbano
como modos de vida se transformam se entrelaccedilam e se deslocam entre os campos e as
cidades ambos tambeacutem muito diversos em estruturas e funccedilotildees
Por outro lado os consumidores que identificavam o interior associado agrave roccedila
com o Mercado Central o viam como uma ilha dentro da capital a qual podiam
adentrar donde se pode perceber o caraacuteter relativo do termo roccedila E a alusatildeo agrave
subjetividade que a palavra interior tambeacutem denotava era descrita pelos entrevistados
nos estados de espiacuterito que utilizavam para expor o que era a roccedila e o que o consumo de
152
seus produtos proporcionava aconchego paz tranquilidade e sossego Embora a
referecircncia agrave nostalgia como significado para o termo roccedila tenha aparecido pouco nas
abordagens feitas no Mercado Central eacute possiacutevel identificaacute-la por meio das alusotildees a
tais estados de espiacuterito bem como nas menccedilotildees agrave memoacuteria jaacute comentadas
anteriormente Estes significados que os entrevistados atribuem agrave roccedila podem ser
interpretados em termos de uma construccedilatildeo nostaacutelgica conforme a descreve Silva
(2009) Para esta autora o sonho miacutetico dos leitores da Revista Globo Rural residentes
em Satildeo Paulo de possuir uma casa no campo se compunha de trecircs movimentos a
criacutetica ao presente e ao modelo de sociedade no qual viviam o apelo agrave memoacuteria e agraves
lembranccedilas de um passado idiacutelico e por fim a projeccedilatildeo de um futuro diferente a partir
da aquisiccedilatildeo de uma casa no campo
Assim como Filgueiras (2006) identificou o Mercado Central como um ldquorefuacutegio
nostaacutelgicordquo para os moradores de Belo Horizonte pode-se ver no sonho da casa no
campo e no consumo da Revista Globo Rural destacados por Silva (2009) a mesma
fuga real ou imaginaacuteria da vivecircncia urbana para outro tipo de experiecircncia vinculada a
um modo de vida rural Nesse sentido Elias (2001) ressalta como o romantismo
construiacutedo em torno da vida no campo da natureza e de um passado idealizado tem
conexatildeo com o processo de ecircxodo rural urbanizaccedilatildeo e industrializaccedilatildeo das sociedades
Segundo Martins (2000 p 6) ldquo[] o rural pode subsistir como visatildeo de mundo como
nostalgia criativa e auto defensiva como moralidade em ambientes moralmente
degradados das grandes cidades como criatividade e estrateacutegia de vida []rdquo Conforme
se verificaraacute no capiacutetulo 5 deste trabalho esta visatildeo romacircntica do que seja a roccedila
associada agrave natureza e agraves cidades pequenas do interior foi constatada mais intensamente
entre os participantes da pesquisa oriundos de Belo Horizonte e tambeacutem da capital de
Satildeo Paulo
No capiacutetulo 1 pocircde-se perceber como as populaccedilotildees urbanas tendem a construir
uma imagem idiacutelica e romantizada do rural em diferentes contextos sociais e tempos
histoacutericos distintos como o demonstraram aleacutem de Elias (2001) Carneiro (2012) para
quem a revalorizaccedilatildeo do rural por parte dos citadinos seria interpretada em termos de
uma ldquoruralidade idiacutelicardquo Oliveira (2003) no caso brasileiro e Williams (2011) no caso
inglecircs Anjos e Caldas (2014) tambeacutem exaltam como a revalorizaccedilatildeo do rural nesse
novo milecircnio se reflete nas mudanccedilas das representaccedilotildees sociais do rural cujas duas
153
ldquoideias-forccedilardquo que a expressam satildeo o idiacutelio rural e o rural como sinocircnimo de natureza
Nas palavras dos autores
O rural idyll eacute indubitavelmente uma das imagens que mais sobressaem numa representaccedilatildeo social que emerge no acircmago de uma sociedade marcada pelo que se convencionou chamar de poacutes-produtivismo e pelo peso crescente assumido pelos valores poacutes-materialistas Nesse contexto o rural eacute hodiernamente retratado dentro de uma visatildeo romacircntica como um retiro idiacutelico que exprime a densidade dos valores simboacutelicos que leva impliacutecita esta noccedilatildeo Eacute o lugar ldquorefuacutegio da modernidaderdquo e manifestaccedilatildeo expliacutecita de atavismos despertados em amplos setores de uma sociedade que anseia o (re)encontro com o tradicional o autecircntico o exoacutetico o singular (ANJOS CALDAS 2014 p 63-64 grifo dos autores)
Da mesma forma como os autores asseveram que o rural tem se constituiacutedo
como um lugar de ldquorefuacutegio da modernidaderdquo paralelamente num contexto objetivo e
microssocioloacutegico o Mercado Central se constitui num ldquorefuacutegio nostaacutelgicordquo um
microcosmo da roccedila para os moradores da capital mineira conforme apontou Filgueiras
(2006) e se constatou nesta pesquisa Os dois outros fenocircmenos apontados por Anjos e
Caldas (2014) quais sejam o consumo de produtos agroalimentares tradicionais e
autecircnticos chamados por eles de ldquosinais distintivos de mercadordquo e a identificaccedilatildeo do
rural como sinocircnimo de natureza tambeacutem apareceram nas respostas dos entrevistados no
Mercado Central na mesma loacutegica de oposiccedilatildeo agrave sociedade urbana Ora a natureza
aparecia isolada em associaccedilatildeo agrave roccedila ora compunha a triacuteade produtos
naturaisartesanaiscaseiros que eram diretamente contrapostos aos produtos
industrializados
A associaccedilatildeo entre o campo e a natureza tem sido gestada de maneira peculiar na
sociedade moderna especialmente a partir do desenvolvimento do capitalismo agraacuterio e
da consolidaccedilatildeo da vida urbana-industrial Thomas (2010) e Williams (2011)
demonstraram o delineamento dessa relaccedilatildeo entre campo e natureza para o caso da
Europa e em especial da Inglaterra num periacuteodo marcado pela transiccedilatildeo da era feudal
agrave moderna desde os anos 1500 ateacute o iniacutecio dos anos 1900 se considerarmos as duas
obras em conjunto Estes autores demonstraram como uma nova sensibilidade em
relaccedilatildeo ao mundo natural foi se desenvolvendo na Inglaterra agrave medida que se
avanccedilavam no campo as teacutecnicas racionais modernas No seacuteculo XVIII segundo
Williams (2011) o desenvolvimento desse capitalismo agraacuterio teve como
correspondecircncia uma ideologia do melhoramento da transformaccedilatildeo e da organizaccedilatildeo da
154
terra O campo que se cultuava nessa eacutepoca natildeo era aquele identificado com o aacuterduo
trabalho agriacutecola das famiacutelias rurais mas um campo transformado em paisagem para a
contemplaccedilatildeo visto como natureza local de refuacutegio e aliacutevio em relaccedilatildeo agrave sociedade
urbana um campo portanto idealizado Williams (2011) destaca como os
melhoramentos trazidos pelo capitalismo agraacuterio tambeacutem impactaram a relaccedilatildeo do
homem com a natureza de forma praacutetica e esteacutetica com efeito na invenccedilatildeo da paisagem
cujos iacutecones se traduziam nos parques e jardins e no desenvolvimento das teacutecnicas de
paisagismo O interesse voltava-se para o campo domesticado tanto no caso da
agricultura tecnificada quanto da paisagem ambos dominados e organizados pelo
homem em termos cientiacuteficos e racionais No Brasil Eacuteboli (2007) retrata como o campo
eacute representado na induacutestria do entretenimento no caso no programa de televisatildeo Globo
Rural sob uma perspectiva que denominou de ldquorural naturezardquo que segundo ela deu
lugar ao ldquorural agriacutecolardquo a despeito do programa ser elaborado a princiacutepio para o
puacuteblico de agricultores Para a autora o sucesso do programa com o puacuteblico urbano natildeo
agriacutecola deve-se agrave apresentaccedilatildeo do campo e da natureza domesticados pela teacutecnica
palataacuteveis agrave esteacutetica e agrave contemplaccedilatildeo tiacutepicas da classe meacutedia urbana
De acordo com Williams (2011) a natureza selvagem e indocircmita natildeo fazia parte
deste processo com exceccedilatildeo da literatura que exultava a beleza da natureza intocada e
pura A natureza dominada pelos processos teacutecnicos passa a ser objeto de interesse de
turistas e cientistas Thomas (2010) ressalta como o desenvolvimento da Botacircnica e da
Zoologia transformaram as formas de classificaccedilatildeo dos animais e plantas o que
contribuiu entre outros elementos para a mudanccedila na relaccedilatildeo entre o homem e o
mundo natural Nessa perspectiva comeccedilaram a emergir noccedilotildees de indulgecircncia pelos
animais e praacuteticas como o vegetarianismo na sociedade europeia moderna Mas estas
novas sensibilidades com os animais e plantas entram em contradiccedilatildeo com o
desenvolvimento de uma economia essencialmente materialista que explora os recursos
naturais dominando e transformando a natureza de uma forma sem precedentes de
acordo com Thomas (2010)
Nesse sentido embora a sensibilidade com a natureza e a sua associaccedilatildeo ao
campo tenham sido desenvolvidas concomitante agrave constituiccedilatildeo da sociedade moderna
somente nos meados dos anos 1970 a 1990 ocorreram mudanccedilas efetivas na Europa em
relaccedilatildeo agraves funccedilotildees do campo na conservaccedilatildeo da biodiversidade Alguns autores como
Abramovay (1994) e Anjos e Caldas (2014) atribuem essa nova vocaccedilatildeo do campo
155
relacionada agrave natureza agraves mudanccedilas implementadas na Poliacutetica Agriacutecola Comum (PAC)
na Europa entre os anos 1970 e 1990 que estabeleceram praacuteticas de desenvolvimento
rural centradas na conservaccedilatildeo ambiental no turismo rural no lazer e na valorizaccedilatildeo
dos modos de vida e praacutetica locais dos rurais
Conforme Anjos e Caldas (2014) baseados nos estudos de Gray (2000) a PAC
no final dos anos 1950 e iniacutecio de 1960 centrava-se completamente na agricultura
visando garantir sua eficiecircncia e produtividade de forma protecionista tentando superar
a escassez de alimentos vivenciada no periacuteodo da Segunda Guerra Mundial Nas
deacutecadas posteriores contudo como consequecircncia das praacuteticas adotadas os paiacuteses
europeus depararam-se com o problema da superproduccedilatildeo de alimentos cujo
crescimento natildeo foi acompanhado pela demanda dos mercados consumidores Esse
excedente estava diretamente atrelado ao incremento produtivo garantido pela adoccedilatildeo
das tecnologias garantidas pela Revoluccedilatildeo Verde Aleacutem disso comeccedilaram a serem
constatados os impactos ambientais causados por este modelo de agricultura situaccedilatildeo
que foi exposta pelo Relatoacuterio Bruntdland publicado em 1987 e que segundo
Abramovay (1994) teve efeitos praacuteticos na poliacutetica agriacutecola dos paiacuteses de capitalismo
avanccedilado
A partir do final dos anos 1980 e iniacutecio de 1990 segundo os autores consultados
as poliacuteticas da PAC passaram a desvincular agricultura e campo e a propor iniciativas de
desenvolvimento rural que giravam em torno da conservaccedilatildeo ambiental do
reconhecimento da cultura rural local e da garantia de renda combatendo a pobreza rural
das famiacutelias agricultoras (ABRAMOVAY 1994 ANJOS CALDAS 2014) Assim a
representaccedilatildeo do rural e suas praacuteticas poliacuteticas correlatas deslocaram a visatildeo sobre o
campo do eixo da produccedilatildeo e passaram a considerar as suas possibilidades enquanto
espaccedilo de consumo Para Anjos e Caldas (2014) essas transformaccedilotildees corresponderiam
tambeacutem ao enfoque territorial que teria sido valorizado em detrimento ao setorial
Neste contexto o Brasil sediou a Conferecircncia das Naccedilotildees Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento na cidade do Rio de Janeiro-RJ em 1992 a ECO-92 que
deu prosseguimento agraves propostas do Relatoacuterio Bruntdland Entretanto de acordo com
Lamine (2012) as iniciativas para o desenvolvimento rural sustentaacutevel especialmente
na forma de poliacuteticas puacuteblicas se consolidaram de forma institucional neste paiacutes nos
anos 2000 por meio da criaccedilatildeo do Ministeacuterio do Desenvolvimento Agraacuterio (MDA) e do
PRONAF Em seguida novas medidas foram criadas voltadas para a agricultura
156
alternativa agrave convencional pelo reconhecimento oficial do cultivo e comercializaccedilatildeo da
agricultura orgacircnica em 2003 por meio da Lei no 10831 e mais recentemente em
2010 pela constituiccedilatildeo da Poliacutetica Nacional de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural
(PNATER) em forma de Decreto-Lei no 12188 fundamentada numa perspectiva
agroecoloacutegica Destaca-se ainda os investimentos em ensino e pesquisa sobre
agroecologia especialmente com a formaccedilatildeo de Programas de Poacutes-graduaccedilatildeo em
universidades puacuteblicas conforme argumenta Lamine (2012)
Mas segundo Lamine (2012) apesar da institucionalizaccedilatildeo dos modelos de
agricultura alternativa ndash sobretudo o modelo agroecoloacutegico ndash ocorrer no Brasil
somente nos anos 2000 eles jaacute vinham sendo implementados por movimentos sociais
que os defendiam como via para a produccedilatildeo familiar numa accedilatildeo contra hegemocircnica agrave
modernizaccedilatildeo agriacutecola dos anos anteriores implementada no contexto da ditadura
militar brasileira A autora cita o caso da agroecologia brasileira pelo fato desta articular
a triangulaccedilatildeo entre agricultura alimentaccedilatildeo e meio ambiente que destaca como
fundamentais na perspectiva que propotildee qual seja de sistemas agroalimentares
territoriais Nesse sentido os entrevistados no Mercado Central ao articularem a
categoria roccedila com a perspectiva da natureza mediada pela figura emblemaacutetica do
produto da roccedila como um produto naturalartesanalcaseiro parecem associaacute-los agraves
praacuteticas da agricultura sustentaacutevel Os entrevistados associam esse modelo de
agricultura aos pequenos agricultores de base familiar que possibilitariam a oferta de
um alimento ldquosaudaacutevelrdquo ldquopurordquo e ldquovitalrdquo que lhes garante qualidade de vida e sabor
Mencionam ainda a confianccedila na forma como os alimentos foram cultivados ldquosem
agrotoacutexicosrdquo ldquonatildeo transgecircnicordquo ou feitos ldquode forma manualrdquo ldquocom carinhordquo gerada
pela possibilidade de identificar sua origem ldquosaber de onde vem o industrial natildeo se
saberdquo tudo isso traduzido na expressatildeo roccedila Nota-se em suas declaraccedilotildees uma visatildeo
sobre o campo como um espaccedilo privilegiado do ambiente natural e enquanto tal
adequado agraves praacuteticas ambientais conservacionistas Essa visatildeo tambeacutem parece passar
pela importacircncia que a alimentaccedilatildeo ocupa na adoccedilatildeo de um modo de vida considerado
saudaacutevel pelas classes meacutedias e altas urbanas
Assim conforme jaacute foi salientado no capiacutetulo anterior um dos pares de opostos
relativo aos produtos e serviccedilos da roccedila mais frequente nas respostas dos consumidores
e distribuidores no Mercado Central era do produto naturalartesanalcaseiro versus
produto industrial Os entrevistados identificavam esse produto naturalartesanalcaseiro
157
como um produto da roccedila da mesma forma que Dorigon (2008) relata a associaccedilatildeo feita
pelos consumidores entre os produtos alimentares tradicionais e os ldquoprodutos coloniaisrdquo
na regiatildeo Oeste do Estado de Santa Catarina e assim como Menasche (2010) menciona
a relaccedilatildeo entre o produto natural e o produto rural no Rio Grande do Sul Desta forma
o rural parece ter se tornado um atributo de valorizaccedilatildeo positiva para identificar os
produtos alimentares tradicionais ou produtos locais no Brasil (CRUZ MENASCHE
2011 NEUGEBAUER 2014 SANTOS J 2014)
Tais produtos alimentares tradicionais compotildeem um nicho de mercado que tem
se ampliado e que abarca desde frutas verduras leguminosas e cereais cultivados com
teacutecnicas de agricultura sustentaacutevel ateacute os bens historicamente processados pelas
agroinduacutestrias de pequenos agricultores familiares para o autoconsumo englobando
queijos doces geleias compotas conservas cachaccedila vinhos licores rapadura melado
accediluacutecar mascavo massas bolos patildees biscoitos e carnes embutidas entre outros Nesse
sentido os termos ldquoprodutos da roccedilardquo ou ldquoprodutos coloniaisrdquo seriam apenas variaccedilotildees
regionais no Sudeste Bahia Goiaacutes e Paranaacute no caso do primeiro e Santa Catarina e
Rio Grande do Sul no segundo de um mercado de produtos alimentares tradicionais
conforme designaccedilatildeo de Santos J(2014) ou produtos locaisprodutos da terra conforme
Cruz e Menasche (2011) Essa valorizaccedilatildeo dos produtos rurais tidos como naturais
tradicionais e artesanais no Brasil seguiria uma tendecircncia jaacute constatada na Europa
conforme relata Santos J (2014)
Segundo Aguilar Criado Anjos e Caldas (2011) elementos como paisagens arquitetura festas e gastronomia se tornam pilares que sustentam o novo arranjo do desenvolvimento rural principalmente na Europa a partir do qual estaacute se desenvolvendo uma nova marca a do produto rural cuja importacircncia reside em suscitar elementos como tradiccedilatildeo histoacuteria e natureza (SANTOS 2014 p 24)
Nesse sentido Cruz e Menasche (2011) apoiadas em Goodman (2003)
atribuem a emergecircncia dessa valorizaccedilatildeo de produtos rurais naturais e artesanais na
Europa a dois fatores O primeiro jaacute apresentado nos paraacutegrafos anteriores seria fruto
do redirecionamento da poliacutetica agriacutecola antes produtivista e setorial para a
multifuncionalidade e o desenvolvimento rural A segunda estaria atrelada agraves crises
relacionadas a episoacutedios de contaminaccedilatildeo de alimentos na induacutestria agroalimentar entre
os anos 1980 e 1990 como a ldquovaca louca na Inglaterra colza na Espanha dioxinas na
Beacutelgica e galinhas no Brasil entre outrosrdquo exemplificados por Santos J (2014 p 20)
158
Estes eventos teriam gerado desconfianccedila e prudecircncia nos consumidores quanto aos
produtos agroindustriais produzidos em larga escala aleacutem do conhecimento dos
impactos ambientais e das mudanccedilas das caracteriacutesticas organoleacutepticas dos alimentos
(SANTOS J 2014)
Tais acontecimentos teriam contribuiacutedo para fomentar uma ldquoansiedade urbana
contemporacircnea frente aos alimentosrdquo de acordo com Cruz e Menasche (2011)
Neugebauer (2014) e Santos (2014) baseadas no princiacutepio da incorporaccedilatildeo de Fischler
(1993) A contrapartida de tal sentimento seria portanto a busca por alimentos
considerados saudaacuteveis puros naturais artesanais e caseiros associados agraves praacuteticas
tradicionais de produccedilatildeo e processamento que possuem forte viacutenculo com a histoacuteria a
cultura e o territoacuterio e em muitos casos com o rural Assim Neugebauer (2014)
citando o estudo de Cristoacutevatildeo (2002) a respeito do caso portuguecircs destaca o que este
chamou de ldquonovas procurasrdquo relacionadas a um sentimento de nostalgia que acomete as
populaccedilotildees urbanas direcionando-as em busca de modos de vida natildeo urbanos
considerados de raiz autecircnticos originais Da mesma forma Menasche (2010 p 207)
cita Eizner (1995) para o caso francecircs a respeito da busca por ldquoimagens de sabores
perdidosrdquo Como consequecircncia dessas mudanccedilas destaca-se a oferta crescente de
alimentos produzidos com base na agricultura orgacircnica a valorizaccedilatildeo de produtos locais
e as iniciativas de comeacutercio justo conforme constata-se na seguinte afirmaccedilatildeo
Goodman (2003) [] considera que o atual momento histoacuterico indica deslocamento da padronizaccedilatildeo e da loacutegica de produccedilatildeo de mercadorias em massa em direccedilatildeo agrave qualidade alicerccedilada em confianccedila tradiccedilatildeo com base no local em produtos ecoloacutegicos e novas formas de organizaccedilatildeo econocircmica (CRUZ MENASCHE 2011 p 98)
Estas autoras ressaltam ainda que motivaccedilotildees puramente individuais tambeacutem
podem estar no cerne do consumo de produtos naturaisartesanaiscaseiros como a
preocupaccedilatildeo com a sauacutede e a fruiccedilatildeo de acordo com o estudo de Barbosa (2009) Neste
caso a preocupaccedilatildeo com a sauacutede natildeo se limitaria aos ideais de bem-estar medicalizaccedilatildeo
e longevidade mas tambeacutem com a esteacutetica do corpo assim como a fruiccedilatildeo se
relacionaria agrave possibilidade de consumir algo exclusivo e estilizado Mas os ideais
individuais podem de acordo com Cruz e Menasche (2011) se aglutinarem em accedilotildees
coletivas que impactam na politizaccedilatildeo do consumo assim como na rastreabilidade dos
produtos Exemplos dessas mudanccedilas satildeo o comeacutercio justo e os produtos eacuteticos e
159
ecoloacutegicos no caso da politizaccedilatildeo e de origem e trajetoacuteria na cadeia produtiva em
termos da rastreabilidade (BARBOSA L 2009 citado por CRUZ MENASCHE
2011)
No caso dos produtos da roccedila aqui estudados e das descriccedilotildees que lhe foram
feitas por consumidores e distribuidores no Mercado Central a sua peculiaridade
residiria no fato jaacute relativamente explorado no capiacutetulo anterior de que estes o
consideravam como aquele produto ldquosem embalagemrdquo ldquosem roacutetulordquo sintetizado
especialmente na expressatildeo mais frequente ldquosem selordquo Este produto da roccedila sem selo
era apontado como o par oposto ao produto industrial num jogo de disputa de sentidos
que Lifschitz (1995) atribui ao padratildeo alimentar ldquoalternativordquo constituiacutedo por grupos
vegetarianos macrobioacuteticos entre outros Nesse jogo opera a negaccedilatildeo do seu oposto o
padratildeo alimentar industrial assim como opotildee a marca agrave identificaccedilatildeo da origem Nesse
sentido a marca distintivo do produto que eacute visualizado por meio da embalagem e seu
roacutetulo parece ser negada por ter seu sentido associado ao processo industrial e seria um
dos elementos que corromperiam o seu atributo artesanalcaseiro Denotativo dessa
visatildeo conforme foi visto no capiacutetulo anterior eacute a declaraccedilatildeo de alguns consumidores
entrevistados de que natildeo consumiriam um produto que portasse a marca roccedila porque
em sua concepccedilatildeo o fato de ser embalado ter roacutetulo e marca registrada jaacute o remeteria a
um processo urbano e industrial
A ecircnfase de muitos consumidores e distribuidores no Mercado Central sobre o
fato de um produto da roccedila para ser considerado original e autecircntico natildeo seria
embaladorotuladoselado insere os bens que veiculam o termo roccedila aqui estudados no
mercado informal de produtos tradicionais conforme indicam Dorigon (2008 2010)
Santos J (2014) Wilkinson (2008) e Wilkinson e Mior (1999)
Contudo eacute importante destacar a diferenccedila entre o setor informal e o ilegal
conforme Wilkinson e Mior (1999) uma vez que o uacuteltimo envolve a produccedilatildeo e
circulaccedilatildeo de produtos proibidos enquanto o primeiro abarca os bens cujos processos
de produccedilatildeo natildeo se enquadram nos padrotildees de regulaccedilatildeo vigentes Os autores definem o
mercado informal como o conjunto de atividades que natildeo adotam as normas e
regulamentaccedilotildees que prevalecem num determinado momento no setor em que operam
Os principais descumprimentos da norma relacionam-se agraves questotildees trabalhistas agraves
instalaccedilotildees onde se produz e agraves teacutecnicas sanitaacuterias Wilkinson e Mior (1999) afirmam
que para alguns autores a informalidade tanto pode estar relacionada agrave pobreza quanto
160
ser uma reaccedilatildeo criativa agraves burocracias estatais Destacam que o setor informal
ldquoconfunde-serdquo com as meacutedias e pequenas agroinduacutestrias nas quais se enquadram os
produtos alimentares tradicionais em que operam os atores tradicionais pouco
capitalizados
No caso da cadeia produtiva leiteira no Brasil os autores Wilkinson e Mior
(1999) afirmam que se tratava de uma atividade tradicional que a partir das
regulamentaccedilotildees do setor pelo Estado entre 1980 e 1990 passou a ter o atributo de
informal Nesse sentido Santos J (2014) comenta como a legislaccedilatildeo exige o
cumprimento das mesmas normas de produtores muito diferentes especialmente em
termos de escala e objetivos da produccedilatildeo No caso dos produtores de queijo artesanal
mineiro produzido no Serro a autora identificou produtores que faziam por dia cinco
quilos de queijo e aqueles que produziam mais de cem quilos diaacuterios deste derivado
laacutecteo
Por outro lado os autores consultados apontam para a importacircncia do setor
informal da agroinduacutestria especialmente a partir dos anos 1990 Para Wilkinson e Mior
(1999 p 31) nas cadeias de consumo popular o setor informal ocupa 40 da oferta de
leite 50 da carne bovina e de 10 a 20 das carnes brancas Santos (2014) afirma
que em Minas Gerais estima-se que haja 30 mil produtores de queijo segundo dados
fornecidos pela Empresa Mineira de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural (EMATER)
Destes segundo esta autora apenas 305 estavam cadastrados no Instituto Mineiro de
Agropecuaacuteria (IMA) responsaacutevel pela concessatildeo do selo de fiscalizaccedilatildeo estadual A
autora cita ainda duas pesquisas realizadas no Rio Grande do Sul onde se constatou na
primeira numa amostra de 50 agroinduacutestrias que 604 delas tinham alguma
pendecircncia no serviccedilo de inspeccedilatildeo sanitaacuteria (OLIVEIRA PREZOTTO VOIGT 2002
citado por SANTOS 2014) Na segunda pesquisa com uma amostra de 106
empreendimentos familiares 72 operavam informalmente no que tange agraves normas
sanitaacuterias (PELLEGRINI GAZZOLA 2008 citado por SANTOS 2014) Dorigon
(2008) cita ainda um estudo realizado em Santa Catarina por Oliveira Schmidt e
Schmidt (1999) que constatou que das 1116 Induacutestrias Rurais de Pequeno Porte (IRPP
conforme nomenclatura utilizada pelos autores) 79 delas estavam organizadas
informalmente
Wilkinson e Mior (1999) entretanto identificam a importacircncia das
agroinduacutestrias para a produccedilatildeo familiar que tem encontrado desde os anos 1990 uma
161
estrateacutegia de reinserccedilatildeo no mercado por meio da produccedilatildeo artesanal voltada para nichos
que pagariam por estes bens preccedilos-precircmios Segundo os autores esses produtos
artesanais tecircm substituiacutedo nos empreendimentos familiares a produccedilatildeo de commodities
que eram produzidas na cadeia agroindustrial de integraccedilatildeo contratual vigente desde os
anos 1960 Poreacutem a partir dos anos 1990 esta cadeia produtiva estaria passando por
uma reestruturaccedilatildeo que estaria excluindo os pequenos produtores via concentraccedilatildeo e
especializaccedilatildeo De acordo com Wilkinson e Mior (1999) essa reestruturaccedilatildeo estaria
relacionada agraves mudanccedilas nos padrotildees de competitividade causadas por vaacuterios fatores
entre eles a ldquoliberalizaccedilatildeo desregulamentaccedilatildeo e integraccedilatildeo regionalrdquo que teriam
motivado uma maior tecnificaccedilatildeo controle da qualidade das mateacuterias-primas aumento
da escala e sofisticaccedilatildeo nos padrotildees de demanda (WILKINSON MIOR 1999 p 30)
Estes autores citam como exemplo as mudanccedilas na cadeia produtiva do leite nos anos
1990 e Dorigon (2008) exemplifica o caso da suinocultura no Oeste de Santa Catarina
As dificuldades de acesso e manutenccedilatildeo das pequenas produccedilotildees familiares nos
mercados agriacutecolas convencionais as mudanccedilas nos padrotildees de consumo alimentar e as
criacuteticas ao modelo de agricultura dominante e seus impactos ambientais propiciaram a
inserccedilatildeo destas em novos mercados apoacutes os anos 1990 de acordo com Wilkinson
(2008) Estes novos mercados satildeo tanto aqueles de nicho notadamente os de produccedilatildeo
orgacircnica quanto mercados solidaacuterios artesanais e de produtos de qualidades especiais
A inserccedilatildeo dos produtores familiares nesses mercados tem sido possiacutevel segundo os
autores devido agrave persistecircncia dos mercados locais de proximidade e ao reconhecimento
da reputaccedilatildeo de seus produtos nessas redes de proximidade Associado a isso pelos
fatores apontados acima os aspectos tradicionais da pequena produccedilatildeo tecircm se
transformado em valores de mercado conforme atestam estes pesquisadores
Nesse sentido Wilkinson (2008) ressalta que na Ameacuterica Latina haacute uma
importante associaccedilatildeo positiva entre a agroinduacutestria rural e os valores atribuiacutedos agrave
ldquocomida caseirardquo e aos alimentos ldquosem aditivosrdquo mais que os atributos de ldquoqualidades
superioresrdquo e territoacuterios comuns na Franccedila e na Itaacutelia por exemplo Estes valores
atribuiacutedos pelo mercado agrave pequena produccedilatildeo agriacutecola na Ameacuterica Latina segundo o
autor estariam apoiados em outros valores como a produccedilatildeo artesanal a proteccedilatildeo
ambiental (no caso dos orgacircnicos) e social pela sua base familiar Alguns desses
valores foram constatados nas respostas dos consumidores e distribuidores no Mercado
Central associados agrave sua concepccedilatildeo sobre os produtos da roccedila
162
Pelo que foi exposto ateacute o momento pode-se inferir que os produtos e serviccedilos
que se vinculam agrave categoria roccedila seja informalmente ou por meio da marca fazem parte
desse novo mercado apontado pelos autores No caso da categoria roccedila este mercado se
constitui em torno da produccedilatildeo e consumo de produtos agriacutecolas por meio de teacutecnicas
de agricultura sustentaacuteveis de produtos agroindustriais tradicionalmente feitos de
maneira caseira e artesanal pelas famiacutelias agricultoras pela gastronomia de comida da
roccedila tambeacutem chamada de caseira ou mineira e por alguns produtos que podem ser
considerados especiais em virtudes de seus marcadores histoacutericos culturais e
territoriais Embora natildeo se tenha identificado nesta pesquisa a formaccedilatildeo de redes de
comeacutercio justo ou solidaacuterio envolvendo os produtos da roccedila constatou-se certa
disponibilidade entre alguns consumidores para se pagar preccedilos-precircmio a estes
produtos
Deve-se ressalvar entretanto que o mercado de produtos e serviccedilos com o termo
roccedila tem se demonstrado nesta pesquisa bastante difuso havendo algumas iniciativas
coletivas seja por meio de movimentos sociais ou poliacuteticas puacuteblicas de inserccedilatildeo no
mercado sem haver contudo nenhum tipo de regulamentaccedilatildeo do que seja um produto
da roccedila Isto possui algumas implicaccedilotildees por um lado o mercado informal eacute
caracterizado conforme Wilkinson e Mior (1999) pela ausecircncia ou natildeo cumprimento
de normas e regulamentos e esta tem sido a tocircnica dos produtos alimentares artesanais e
pode-se afirmar com base no que foi exposto anteriormente que eacute exatamente o que o
caracteriza enquanto tal inclusive segundo a classificaccedilatildeo de seus agentes de mercado
Nesse sentido uma vasta gama de produtos e serviccedilos inclusive industriais se apropria
do termo roccedila especialmente na iniciativa privada e isto pocircde ser percebido nas
solicitaccedilotildees de registro de marcas no INPI dificultando as inferecircncias a respeito do que
seja esse mercado embora os dados desta pesquisa tenham permitido ateacute o momento
fazer algumas siacutenteses propositivas para a caracterizaccedilatildeo desse mercado Por outro lado
tentativas de regulamentaccedilatildeo de produtos e serviccedilos com o termo roccedila podem implicar
em processos de concentraccedilatildeo e exclusatildeo de pequenos e meacutedios estabelecimentos que
veiculam este termo conforme alertam Dorigon (2008) e Santos (2014) para os casos
dos produtos coloniais em Santa Catarina e para os queijos artesanais em Minas Gerais
e no Rio Grande do Sul
Tendo sido feitas essas ressalvas acredita-se que o mercado de produtos e
serviccedilos com o termo roccedila tem expressado nesta pesquisa parte do panorama que
163
envolve os sistemas agroalimentares especialmente na valorizaccedilatildeo da sustentabilidade e
da tradiccedilatildeo assim como as facetas do desenvolvimento rural no Brasil voltadas para
um campo que natildeo se define somente pela agricultura mas tambeacutem pelas atividades
natildeo-agriacutecolas Aleacutem disso o uso do termo roccedila nos produtos e serviccedilos tem permitido
ateacute aqui vislumbrar algumas interfaces das relaccedilotildees entre os modos de vida urbano e
rural especialmente a partir de suas profundas transformaccedilotildees no Brasil e no exterior a
partir dos anos 1980 Ateacute o momento esses dados tecircm apontado para uma revalorizaccedilatildeo
do rural especialmente no que tange agrave sua vocaccedilatildeo sustentaacutevel identificada na
agricultura alternativa ao modelo convencional produtivista e na oferta de serviccedilos de
lazer e turismo bem como uma alternativa ao modo de vida urbano por meio de
segundas moradias ou dos neorrurais As verificaccedilotildees feitas ateacute aqui tecircm indicado que o
termo roccedila tem sido uma categoria-chave que embora polissecircmica tem permitido
compreender algumas facetas desse novo rural brasileiro
34 As categorias roccedila no Mercado Central
Neste capiacutetulo foi realizado um esforccedilo para apresentar os aspectos relacionados
aos usos e significados da categoria roccedila na circulaccedilatildeo de bens e serviccedilos no Mercado
Central de Belo Horizonte A interpretaccedilatildeo aqui apresentada a respeito de como os
signos referentes agrave roccedila se revelaram no Mercado e no centro da cidade agrave sua volta
basearam-se nas apreensotildees possiacuteveis da observaccedilatildeo participante e da aplicaccedilatildeo de
questionaacuterios aos produtores distribuidores e consumidores de produtos e serviccedilos da
roccedila ou com a marca roccedila no Mercado Central Nesse sentido no capiacutetulo 5 seratildeo
apresentados os mesmos dados a respeito dos usos e significados do termo roccedila poreacutem
submetidos a uma anaacutelise mais apurada por meio da Anaacutelise Estatiacutestica Textual e de
Categorizaccedilatildeo
Por meio da descriccedilatildeo que se efetivou neste capiacutetulo pode-se verificar como as
categorias de significados em torno do vocaacutebulo roccedila construiacutedas nos capiacutetulos
anteriores resultado do confronto entre os aportes teoacutericos e os dados empiacutericos
coletados sobre as solicitaccedilotildees de registro de marcas com o termo roccedila no INPI se
aplicam aos usos e significados de roccedila identificados no Mercado
164
Inicialmente pode-se perceber que o pressuposto de que a categoria roccedila eacute
relativa e relacional se evidenciou na forma como os produtores distribuidores e
consumidores no Mercado identificavam a roccedila Nesse sentido a roccedila era o ldquooutrordquo
expresso sobretudo como o interior ou as pequenas cidades aleacutem das alusotildees ao
isolamento e ao mato o que demonstra seu caraacuteter relacional Essas percepccedilotildees eram
construiacutedas no esquema de pares de opostos que contrapunham a capital ao interior
referido como roccedila Embora os entrevistados estivessem cercados de estabelecimentos e
produtos com apelo agrave roccedila no centro da capital natildeo costumavam associar esta agrave ideia
de roccedila salvo algumas exceccedilotildees Mas a categoria tambeacutem era usada de forma relativa
ao identificarem o proacuteprio Mercado Central como um espaccedilo onde podiam acessar a
cultura tiacutepica das pequenas cidades do interior na sua concepccedilatildeo por meio de produtos
alimentares artesanais ou naturais ndash identificados como da roccedila ndash de utensiacutelios
domeacutesticos e artesanato e das proacuteprias sociabilidades ali estabelecidas O Mercado era
portanto o cantinho da roccedila na capital levando-se em consideraccedilatildeo a associaccedilatildeo que
faziam entre roccedila e cidades pequenas do interior
Em termos das categorias de significado nota-se portanto que os entrevistados
natildeo associavam a roccedila agrave cultura rural ou ao campo de forma direta Ao inveacutes disso
vinculavam-na ao interior agraves cidades pequenas Essa percepccedilatildeo de uma cultura tiacutepica de
pequenas cidades que classificavam como da roccedila era carregada de romantismo e
nostalgia jaacute que a performance possibilitada ao se frequentar o Mercado Central estava
carregada de subjetividades com memoacuterias da infacircncia e idealizaccedilotildees de um passado e
um modo de vida idiacutelico Aleacutem disso a roccedila como natureza foi bastante evidenciada
especialmente na forma como classificam os produtos da roccedila como artesanais
caseiros puros e naturais conforme se discutiu na seccedilatildeo anterior A oferta e o consumo
destes produtos e serviccedilos considerados artesanais caseiros e tradicionais tinham um
forte viacutenculo com a visatildeo da roccedila como tradiccedilatildeo embora tenha havido poucas
referecircncias a essa palavra enquanto tal Pode-se afirmar no entanto que a tradiccedilatildeo eacute um
discurso frequentemente mobilizado pela gestatildeo do Mercado Central e pela gestatildeo
puacuteblica de Belo Horizonte e do Estado de Minas Gerais como emblemaacutetico das culturas
belo-horizontina e mineira da histoacuteria e identidade do povo mineiro conforme se
verificou na literatura sobre o Mercado Nesse sentido a ideia de tradiccedilatildeo e cultura
mineira tiacutepica desse Estado eacute apropriada e institucionalizada pelo Mercado Central
Nesse contexto houve vaacuterias menccedilotildees agrave roccedila como sinocircnimo da cultura mineira talvez
165
pela interaccedilatildeo entre o gecircnero do discurso complexo no sentido dado a este por Bakhtin
(2003) constituiacutedo pelos enunciados oficiais do Mercado e da gestatildeo puacuteblica local e o
gecircnero do discurso simples principalmente dos agentes que trabalhavam no Mercado e
compartilhavam com a instituiccedilatildeo tal visatildeo Alguns dos produtores ou distribuidores
entrevistados associavam a roccedila agrave cultura mineira enquanto outros justificavam tal
associaccedilatildeo ao fato de uma possiacutevel migraccedilatildeo campo-cidade em Minas Gerais que
levavam os consumidores a identificar a roccedila com o seu passado ldquono interiorrdquo ou no
campo Assim no primeiro caso a proprietaacuteria de um restaurante afirmou que a roccedila
significava ldquoA cultura mineira o alimento o acolhimento a comida caseira o fogatildeo a
lenha cozinhar com calmardquo (Proprietaacuteria de restaurante Belo Horizonte outubro de
2014) Esta declaraccedilatildeo da entrevistada estaacute em consonacircncia com a perspectiva de
Morais (2004) para quem o discurso sobre a mineiridade envolve tambeacutem o sentimento
de nostalgia relativo a situaccedilotildees familiares expressos por meio da gastronomia e a
ldquoarterdquo que a envolve desde os ingredientes que compotildeem os pratos a sua disposiccedilatildeo e o
ambiente no qual a comida eacute saboreada marcado pela comunhatildeo em volta do fogatildeo E
afirmava que a arquitetura do restaurante ldquolembrava um casaratildeo mineirordquo conforme
pode ser notado nas seguintes imagens
FIGURA 38 ndash Interior do restaurante
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
166
FIGURA 39 ndash Lavabo do restaurante
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 40 ndash Detalhe da arquitetura do restaurante
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
No segundo caso os entrevistados faziam afirmaccedilotildees como ldquoO mineiro eacute ligado
agrave roccedila jaacute viveu conhece gosta de coisas que o lembram do tempo que viveu com a
famiacutelia e os pais na roccedilardquo (Proprietaacuterio de loja de utilidades domeacutesticas Belo
Horizonte outubro de 2014) ou ainda ldquoMinas tem um peacute na roccedila as pessoas veem do
interior para a cidade grande e depois querem voltarrdquo (Proprietaacuteria de loja de utilidades
domeacutesticas Belo Horizonte outubro de 2014) Ambas as declaraccedilotildees foram feitas por
proprietaacuterios de lojas de artesanato e utensiacutelios domeacutesticos onde segundo eles os
consumidores procuravam por estes objetos-siacutembolos que ldquolembravam a roccedilardquo
Conforme jaacute se elucidou no capiacutetulo anterior autores como Abdala (2006
2007) Arruda (1999) e Morais (2004) ao refletirem sobre o sentido do termo
mineiridade buscam elucidar os elementos que ligam a cultura do Estado e sua relaccedilatildeo
com o modo de vida rural Para Arruda (1999) a mineiridade enquanto estilo de vida
167
em termos de praacuteticas e comportamentos do mineiro foi forjada em dois contextos
histoacutericos distintos o primeiro situado no apogeu da mineraccedilatildeo no seacuteculo XVIII o
segundo teria surgido para a autora apoacutes o decliacutenio da base mineradora iniciando o que
chamou de ldquoruralizaccedilatildeordquo da economia nos seacuteculos XIX e XX Para Arruda (1999) esta
ldquoruralizaccedilatildeordquo seria responsaacutevel pelo enraizamento dos aspectos sociais e culturais em
Minas Gerais Assim como Arruda (1999) Abdala (2006) tambeacutem destaca estes dois
periacuteodos histoacutericos que no caso de sua pesquisa teriam sido a origem e a composiccedilatildeo
da culinaacuteria tiacutepica mineira Segundo esta autora se naquele primeiro momento a
tradiccedilatildeo culinaacuteria mineira foi marcada pela escassez de alimentos em funccedilatildeo da
ocupaccedilatildeo da matildeo-de-obra na mineraccedilatildeo e das maacutes condiccedilotildees da estrada num segundo
momento a maior disponibilidade de alimentos teria possibilitado novos haacutebitos
alimentares novas receitas e novos preparos de alimentos que teriam determinado em
consequecircncia a caracterizaccedilatildeo dos mineiros como hospitaleiros O periacuteodo da
ldquoruralizaccedilatildeordquo para Abdala (2006) marcou a concentraccedilatildeo da vida econocircmica poliacutetica e
social da regiatildeo nas fazendas Nesse caso ao equiparar roccedila e mineiridade os
entrevistados estariam de alguma forma aludindo agrave vida no campo aos modos de vida
rural que teriam marcado boa parte da populaccedilatildeo mineira entre os seacuteculos XIX e iniacutecio
do XX ainda que de maneira natildeo deliberada
Quanto agraves outras categorias de significaccedilatildeo da roccedila caipira e da roccedila estilizada
estas natildeo foram citadas durante a aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios A primeira
considerando-se o que foi constatado na anaacutelise das marcas com o termo roccedila
apresentada no capiacutetulo anterior seria ainda de uso recente enquanto gecircnero do discurso
complexo ou seja apropriada de maneira formal pelo marketing e pelo mundo dos
negoacutecios embora jaacute fosse utilizada no campo do discurso simples para descriminar
produtos como ovos e galinhas ldquoovos caipirasrdquo e ldquogalinha caipirardquo Nesse sentido o
termo caipira como correlato da roccedila em produtos e serviccedilos natildeo foi imediatamente
mencionado pelos entrevistados Por outro lado pode-se refletir a respeito do estigma
que tal termo expressa historicamente no Brasil conforme se expocircs no capiacutetulo 1 a
respeito dos processos de diferenciaccedilatildeo social entre o rural e o urbano
Quanto agrave roccedila estilizada se ela natildeo foi percebida pelos entrevistados ela pocircde
ser notada em alguns aspectos no Mercado Central Ela se expressou nos usos que os
consumidores davam aos objetos e alimentos da roccedila comprados para decorar cozinhas
urbanas de arquitetura intencionalmente ruacutestica para cozinhar pratos especiais ou
168
mesmo por meio do preccedilo que se paga numa cachaccedila que mesmo sendo artesanal da
roccedila por isso mesmo possui alto valor no mercado ou em algum elemento decorativo
com valor agregado Aleacutem disso a ressignificaccedilatildeo da roccedila em elementos urbanos
esteacuteticos e sofisticados pode ser percebida nas imagens do restaurante ilustradas nas
paacuteginas anteriores ou do estabelecimento com o sugestivo nome de ldquoRoccedila Capitalrdquo
FIGURA 41 ndash Fachada do ldquoRoccedila Capitalrdquo no Mercado Central
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
O quadro abaixo sintetiza a percepccedilatildeo durante a observaccedilatildeo participante no
Mercado Central das referecircncias dos entrevistadosrespondentes agraves categorias de
significado do termo roccedila e as expressotildees correlatas que algumas vezes substituiacuteram o
uso das categorias aqui sugeridas
QUADRO 8 ndash Siacutentese das categorias de significado roccedila no Mercado Central Campo Rural Natureza Romacircntico Tradiccedilatildeo Minas Gerais Caipira Estilizada
- - + + - + - - Interior e cidades
pequenas Produtos
caseiros e artesanais
Ovos caipira eou
galinha caipira
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
169
4 O FESTIVAL DE GASTRONOMIA E CULTURA DA ROCcedilA DE GONCcedilALVES ldquoAQUI A ROCcedilA Eacute A RAINHArdquo
41 A cidade de Gonccedilalves
A cidade de Gonccedilalves estaacute localizada no sul do Estado de Minas Gerais na
mesorregiatildeo Sul e Sudoeste na microrregiatildeo de Pouso Alegre conforme descrito na
seccedilatildeo Mesorregiotildees e Microrregiotildees do site do Estado (MINAS GERAIS 2015)
fazendo divisa com os municiacutepios mineiros de Paraisoacutepolis Sapucaiacute-Mirim e
Camanducaia e com o municiacutepio paulista de Satildeo Bento do Sapucaiacute Gonccedilalves
portanto se situa na divisa entre os Estados de Minas Gerais e Satildeo Paulo na Serra da
Mantiqueira localizada numa regiatildeo turiacutestica cujos polos principais satildeo a cidade de
Campos do Jordatildeo o distrito de Monte Verde (pertencente ao municiacutepio de
Camanducaia) o Circuito das Malhas e Circuito das Aacuteguas (BARBOSA R 2014
PINTO 2014 PREFEITURA MUNICIPAL DE GONCcedilALVES 2015)
170
FIGURA 42 ndash Localizaccedilatildeo de Gonccedilalves-MG
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira no software QGIS 21 utilizando o banco de dados
ldquoLimitesrdquo da Base Cartograacutefica Vetorial do Brasil (BASE [2007]) disponibilizado pelo portal de mapas do IBGE no endereccedilo
ftpgeoftpibgegovbrmapeamento_sistematicobase_vetorial_continua_escala_250mil Acesso em 12 ago 2015
171
FIGURA 43 ndash Vista panoracircmica da cidade de Gonccedilalves-MG
Fonte Roberto Torrubia
O municiacutepio tinha uma populaccedilatildeo de 4220 habitantes em 2010 sendo que
724 vivem no campo (IBGE 2015) A aacuterea territorial eacute de 1897 km2 com relevo
acidentado 80 montanhoso com altitudes entre 949 e 1970 metros de acordo com
Barbosa R (2014) banhada pelo Rio Capivari pertencente agrave Bacia do Rio Sapucaiacute-
Mirim o que possibilita a formaccedilatildeo de vaacuterias cachoeiras e picos que fazem parte dos
atrativos turiacutesticos da cidade (PINTO 2014) O clima eacute tropical de altitude e a
vegetaccedilatildeo eacute remanescente de Mata Atlacircntica mas com grande presenccedila do pinheiro do
Paranaacute (Araucaacuteria angustifolia) o que a caracteriza como Floresta Ombroacutefila Mista de
acordo com Aun (2012) e tambeacutem se configura como atrativo turiacutestico no inverno pelo
ldquoclima de montanhardquo que proporciona ao visitante
172
FIGURA 44 ndash Vista do Bairro dos Remeacutedios
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 45 ndash Cachoeira do Simatildeo no Bairro Retiro
Fonte Roberto Torrubia
O municiacutepio de Gonccedilalves eacute relativamente recente tendo sido instalado em 1ordm de
marccedilo de 1963 apoacutes sua emancipaccedilatildeo da cidade de Paraisoacutepolis ocorrida em 30 de
dezembro de 1962 por meio da Lei Estadual no 2764 (PINTO 2014) Este autor a
partir de suas pesquisas documentais afirma que a localidade de Gonccedilalves teria se
formado no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX devido a uma promessa religiosa feita
por Policarpo Teixeira Almeida Queiroz Juacutenior de doar seis alqueires de terra da
Fazenda do Rio Manso na divisa entre os Estados de Satildeo Paulo e Minas Gerais de sua
propriedade para a construccedilatildeo de uma Capela a Nossa Senhora das Dores caso fosse
curado de uma doenccedila que lhe acometera por volta do ano de 1878 A capela teria sido
erguida de taipa e sapeacute de acordo com Pinto (2014) mas devido agraves disputas por
heranccedila ela teria sido transferida por volta do ano de 1897 para as margens do Rio
Capivari onde hoje se situa a Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores da cidade de
Gonccedilalves Neste terreno agrave eacutepoca residiam trecircs irmatildeos de sobrenome Gonccedilalves
trabalhadores rurais pobres de origem cafuza A partir de entatildeo a capela teria sido
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mencionada como Capela das Dores dos Gonccedilalves (PINTO 2014) O nome de
Gonccedilalves denominaria o povoado que foi elevado agrave categoria de distrito no ano de
1902 (BARBOSA R 2014) A heranccedila do nome permanece no municiacutepio e para Pinto
(2014) a promessa religiosa e a construccedilatildeo da capela ecoam como um discurso
fundador da cidade de Gonccedilalves e fundamentam um discurso religioso que se associa agrave
identidade desta
FIGURA 46 ndash Igreja de Nossa Senhora das Dores centro de Gonccedilalves-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
De acordo com Barbosa R (2014) e Pinto (2014) Gonccedilalves eacute um municiacutepio
ldquotipicamente ruralrdquo que foi caracterizado por uma ldquoeconomia essencialmente agraacuteriardquo
ateacute meados dos anos 1980 A partir de 1990 e mais intensamente a partir de 2005
emergiram uma seacuterie de atividades do setor de turismo que transformaram as condiccedilotildees
socioeconocircmicas da cidade Assim segundo Pinto (2014) ateacute os anos 1980 a
agropecuaacuteria foi a principal atividade econocircmica da cidade cuja produccedilatildeo era destinada
principalmente ao autoconsumo das famiacutelias produtoras Este autor afirma que
historicamente a cidade produz milho feijatildeo cenoura e mais recentemente aleacutem
destes batata banana e hortifruacuteti O autor tambeacutem cita a agricultura orgacircnica
desenvolvida nos uacuteltimos anos e destaca a produccedilatildeo de artesanato com a fibra da
bananeira e de geleias e doces com as frutas Pinto (2014) tambeacutem ressalta a produccedilatildeo
de pecuaacuteria leiteira suiacutenos aves truta mel tijolos cachaccedila e moacuteveis artesanais Este
autor sublinha ainda que as propriedades agropecuaacuterias satildeo de pequeno e meacutedio porte
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Ao se verificar esses dados no Censo Agropecuaacuterio de 2006 disponibilizado pelo IBGE
observa-se que o municiacutepio de Gonccedilalves possuiacutea agravequela eacutepoca no total 255 unidades
de estabelecimentos agropecuaacuterios ocupando 6046 hectares (CENSO 2006a 2006b)
Dividindo-se a aacuterea total ocupada pelos estabelecimentos agropecuaacuterios pelo nuacutemero de
unidades obteacutem-se uma aacuterea meacutedia de 2370 hectares menor que o moacutedulo fiscal do
municiacutepio estabelecido em 30 hectares (CANAL DO PRODUTOR 2015)
De acordo com Barbosa R (2014) ateacute o ano de 1980 a agricultura praticada no
campo de Gonccedilalves ocupava os topos de morros encostas e ateacute mesmo a beira de rios
e ribeirotildees e aleacutem do autoconsumo o excedente era comercializado na aacuterea urbana de
Gonccedilalves Paraisoacutepolis e Satildeo Bento do Sapucaiacute Essas cidades tambeacutem recebiam a
produccedilatildeo de leite de Gonccedilalves em seus laticiacutenios e cooperativas Segundo este mesmo
autor a deacutecada de 1980 em Gonccedilalves foi marcada por um processo de compra e
arrendamento de terras por grandes produtores das cidades de Maria da Feacute e Cambuiacute
tambeacutem no sul de Minas para a plantaccedilatildeo de batata e cenoura adotando um modelo
convencional de agricultura com a utilizaccedilatildeo de agrotoacutexicos degradaccedilatildeo ambiental e
aumento dos niacuteveis de produtividade no curto prazo de acordo com o estudo de
Kurebayashi (2002 citado por BARBOSA R 2014) Esse periacuteodo eacute bastante citado
pelos agricultores entrevistados nesta pesquisa como uma condiccedilatildeo em que enfrentaram
duras jornadas de trabalho e pouca recompensa financeira conforme declarou a
proprietaacuteria de um restaurante no campo do Bairro Rural Terra Fria ldquoA gente plantava
tinha lavoura de cenoura lavoura de pecircssego aiacute depois foi preciso abandonar Natildeo dava
preccedilo mais natildeo tinha condiccedilatildeo mais E por causa daqui ter muita montanha nada se
mexia com trator era tudo braccedilal era tudo no braccedilordquo
Entretanto entre os anos de 1980 e 1990 essa situaccedilatildeo foi se modificando e a
atividade agropecuaacuteria convencional foi sendo substituiacuteda pela atividade turiacutestica e pela
agricultura orgacircnica especialmente na regiatildeo mais alta da cidade conforme atesta a fala
de um proprietaacuterio de restaurante residente na sede municipal
Antes o povo vivia de roccedila de milho e feijatildeo mas pouco porque a terra aqui eacute montanhosa Entatildeo surgiu a cenoura porque na eacutepoca haacute trinta ou quarenta anos atraacutes cenoura soacute produzia nesse chatildeo aqui em Gonccedilalves no municiacutepio de Camanducaia e Maria da Feacute Vinha caminhatildeo da Bahia para buscar cenoura aqui na eacutepoca Depois de uns doze anos pra caacute que foi abrindo pra turista foram jogando pra escanteio as lavouras A cidade transformou principalmente a aacuterea rural Eu que sou daqui agraves vezes passo trecircs ou quatro meses sem ir para esse lado da Terra Fria a gente fica assustado de ver as
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construccedilotildees como mudou Entatildeo hoje da cidade pra cima no sentido da Terra Fria 90 95 do povo trabalha de caseiro a mulher toma conta da casa e o rapaz toma conta da propriedade O povo hoje da aacuterea rural vive tranquilo aqui soacute natildeo tem serviccedilo quem natildeo quer trabalhar (Proprietaacuterio de restaurante Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Enquanto Pinto (2014) assinala como causa provaacutevel dos fracassos da
agricultura no municiacutepio as sucessivas crises econocircmicas dos anos 1980 Aun (2012) e
Barbosa R (2014) apoiado em Kurebayashi (2002) apontam como um dos fatores
importantes para o decliacutenio do cultivo convencional de batata e cenoura a criaccedilatildeo da
Aacuterea de Proteccedilatildeo Ambiental Fernatildeo Dias (APA Fernatildeo Dias) no ano de 1997 A APA
Fernatildeo Dias eacute uma unidade de conservaccedilatildeo de uso sustentaacutevel que segundo Barbosa R
(2014) impotildee limites ao uso e ocupaccedilatildeo do solo com restriccedilatildeo ao pastoreio intensivo e
proibiccedilatildeo de uso de agrotoacutexicos e biocidas (KUREBAYASHI 2002 citado por
BARSOSA 2014) e da exploraccedilatildeo madeireira (AUN 2012) Segundo estes autores o
territoacuterio do municiacutepio de Gonccedilalves estaacute totalmente dentro dos limites da APA Fernatildeo
Dias que foi criada para compensar o impacto ambiental causado pela duplicaccedilatildeo da
rodovia BR-381 Fernatildeo Dias (AUN 2012) Para Barbosa R (2014) a criaccedilatildeo desta
APA foi um dos fatores responsaacuteveis pela modificaccedilatildeo da paisagem rural do municiacutepio
pelas limitaccedilotildees que passou a impor agrave degradaccedilatildeo ambiental O autor constata a partir
das informaccedilotildees dos moradores da cidade que a aacuterea coberta por mata atualmente jaacute
seria bem maior que haacute 30 anos
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FIGURA 47 ndash Localizaccedilatildeo de Gonccedilalves na APA Fernatildeo Dias
Fonte Elaborado por Lidiane Nunes da Silveira no software QGIS 21 utilizando o banco de dados
ldquoLimitesrdquo da Base Cartograacutefica Vetorial do Brasil (BASE [2007]) disponibilizado pelo portal de mapas do IBGE no endereccedilo
ftpgeoftpibgegovbrmapeamento_sistematicobase_vetorial_continua_escala_250mil Acesso em 12 ago 2015
Kurebayashi (2002 citado por BARBOSA 2014) e Aun (2012) apontam como
alternativas para a ocupaccedilatildeo e a geraccedilatildeo de renda a partir das proibiccedilotildees e restriccedilotildees agrave
agropecuaacuteria e silvicultura convencionais o desenvolvimento da agricultura orgacircnica e
biodinacircmica e do turismo sustentaacutevel Assim descreve Kurebayashi hoje residente em
Gonccedilalves
O que eacute melhor ambientalmente Vocecirc tem que viabilizar o desenvolvimento das pessoas vocecirc natildeo pode coibir e falar ldquoNatildeo vocecirc natildeo cresce mais entatildeo preservardquo E o turismo eacute um parceiro se vocecirc tiver poliacuteticas puacuteblicas se vocecirc tiver um controle sobre isso Ele eacute um parceiro porque ele traz dinheiro vivo as pessoas veem querem ver o que vocecirc sabe fazer ele natildeo quer que vocecirc mude ele quer que vocecirc seja quem vocecirc eacute E a questatildeo do meio ambiente para uma cidade como Gonccedilalves que estaacute inteirinha dentro de uma APA o cara natildeo precisa fazer um uso intensivo da terra vocecirc natildeo pode usar toda a terra porque tem o rio trinta metros cinquenta metros da nascente mas eu posso fazer uma casinha aqui eu alugo essa casinha eu vendo ovo para o hoacutespede jaacute vendo no preccedilo de consumidor eacute diferente eu vendo queijinho eu vendo uma goiabada Esse visitante
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taacute me deixando dinheiro vivo na hora eu natildeo vou esperar seis meses pra receber entatildeo eu posso ficar mais tranquilo com a minha plantaccedilatildeo aqui Se alguma coisa der errado eu tenho um pano de fundo aiacute eu faccedilo comida o turista vem comer a minha comida aiacute ele gosta da minha comida gosta do meu cafeacute da manhatilde (Proprietaacuteria de estabelecimento de produtos alimentiacutecios Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Neste contexto a partir dos anos 2000 emergiu em Gonccedilalves um conjunto de
agricultores que iniciaram as praacuteticas de agricultura de base ecoloacutegica na parte alta da
cidade onde antes havia o exerciacutecio da agropecuaacuteria convencional Hoje o conjunto
mais expressivo dessa agricultura de base ecoloacutegica eacute o grupo ldquoOrgacircnicos da
Mantiqueirardquo uma empresa de ldquoSociedade Comercial por Quotas de Responsabilidade
Limitadardquo formada por 10 produtores que se uniram para obter a certificaccedilatildeo orgacircnica
coletiva e facilitar o processo de comercializaccedilatildeo dos produtos (AUN 2012)
Inicialmente o grupo era certificado pelo Instituto Biodinacircmico (IBD) atualmente pelo
ECOCERT e eacute responsaacutevel pela venda de cerca de cem cestas para Satildeo Paulo aleacutem de
cerca de 5 ou 6 empresas que compram no atacado e pela comercializaccedilatildeo no varejo na
proacutepria cidade especialmente para os turistas e neorrurais durante a feira semanal
(AUN 2012) Aleacutem do ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo haacute outros agricultores orgacircnicos
certificados que trabalham de forma autocircnoma e aqueles que praticam agricultura com
base ecoloacutegica poreacutem sem a certificaccedilatildeo incluindo aqueles que o fazem para o
autoconsumo
Na outra via destaca-se o desenvolvimento do turismo em Gonccedilalves desde
meados de 1990 e mais densamente em meados de 2005 que se apresenta como uma
alternativa de emprego e renda para os agricultores e para a cidade como um todo
modificando as condiccedilotildees de vida conforme ressalta Barbosa R (2014)
A atividade turiacutestica modificou a vida no municiacutepio gerando emprego e renda evitando o ecircxodo da populaccedilatildeo e modificando o panorama da zona rural onde vive a maior parte da populaccedilatildeo gonccedilalvense Comeccedilando na deacutecada de 1990 e acelerando-se a partir da primeira metade do seacuteculo XXI notadamente a partir da pavimentaccedilatildeo da estrada de acesso em 2005 comeccedilaram a ser abertas pousadas restaurantes comeacutercio de moacuteveis ruacutesticos e artesanais lojas de roupas e artesanato empoacuterios gastronocircmicos empresas de fabricaccedilatildeo de conservas e geleias escritoacuterios de arquitetura e engenharia e receptivos de turismo denotando a formaccedilatildeo de uma Aglomeraccedilatildeo Produtiva Local de Turismo A formaccedilatildeo de uma estrutura local de governanccedila de turismo a partir da criaccedilatildeo de uma Diretoria Municipal de Turismo do Conselho Municipal de Turismo e do surgimento de
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uma associaccedilatildeo de empresaacuterios intitulada Associaccedilatildeo Proacute-Turismo de Gonccedilalves ndash SERRACcedilAtildeO possibilita o desenvolvimento de um Arranjo Produtivo Local de Turismo (BARBOSA R 2014 p 98-99)
De acordo com a pesquisa de Barbosa R (2014) a primeira pousada foi criada
na cidade em 1995 e somente em 1999 foram criadas mais seis Entre 2000 e 2005
foram inauguradas 12 pousadas e de 2005 ateacute 2011 foram 13 perfazendo um total de
32 estabelecimentos desse tipo aleacutem de 60 chaleacutes e casas de aluguel A maioria das
pousadas 27 delas se situa na aacuterea rural da cidade e 20 pertencem a proprietaacuterios
oriundos principalmente de Satildeo Paulo embora alguns residam em Gonccedilalves
Interessante observar que a expansatildeo da rede hoteleira em Gonccedilalves foi mais
expressiva a partir de 2005 justamente quando ocorreu a pavimentaccedilatildeo da principal
rodovia de acesso a cidade a MG-173 como destacou Barbosa R (2014) Esse fato eacute
recorrente na fala dos moradores como um grande marco que impulsionou o turismo e
diminuiu uma espeacutecie de ldquoisolamentordquo na qual vivia a cidade Nesse sentido o impulso
inicial das atividades turiacutesticas parece ter sido feito por turistas oriundos
especialmente da capital paulista e do Vale do Paraiacuteba que compraram terrenos no
campo de Gonccedilalves para a construccedilatildeo de casas de veraneio de aluguel e pousadas
Muitos agricultores jaacute sofrendo as primeiras consequecircncias do decliacutenio das lavouras de
batata e cenoura venderam parte de suas terras a esses entrantes Obviamente a
especulaccedilatildeo imobiliaacuteria e o aumento do preccedilo da terra eacute uma realidade desde entatildeo na
cidade especialmente na parte ldquoaltardquo regiatildeo montanhosa de temperatura amena e
coberta pelos pinheiros do Paranaacute por isso a mais valorizada do ponto de vista do
turismo
Aleacutem das pousadas Barbosa R (2014) lista 38 estabelecimentos de
alimentaccedilatildeo dos quais 16 estatildeo na aacuterea rural duas agecircncias receptivas de turismo que
oferecem as atividades de ecoturismo e turismo de aventura trecircs estabelecimentos para
equitaccedilatildeo e um de lazer e entretenimento aleacutem de uma gama de estabelecimentos de
produtos e serviccedilos que atendem aos turistas e moradores como lojas de artesanato de
vestuaacuterio empoacuterios ateliecircs e serviccedilos de massagem Este autor afirma que o Plano
Municipal de Desenvolvimento Sustentaacutevel de Gonccedilalves 20092010 definiu trecircs tipos
de turismo praticados na cidade o Turismo Rural o Ecoturismo e o Turismo de
Aventura
Avaliando a relaccedilatildeo entre o turismo e o desenvolvimento local os dados
apresentados por Barbosa R (2014) revelam as transformaccedilotildees sociais e econocircmicas
179
proporcionadas pelas mudanccedilas das atividades agropecuaacuterias para o turismo entre os
anos 2000 e 2010 Um dos primeiros impactos revelados pelo autor eacute o crescimento
populacional desde os anos 1991 enquanto nos anos anteriores desde 1970 a cidade
registrava um ecircxodo da ordem de 17 de seus habitantes Inclusive registrou-se o
crescimento da populaccedilatildeo rural entre 1991 e 2000 O Iacutendice de Desenvolvimento
Humano (IDH) Municipal elevou-se em 1899 entre 2000 e 2010 (de 0574 para
0683) iacutendice de elevaccedilatildeo acima dos niacuteveis estadual e nacional conforme constatado
por Barbosa R (2014) Seu estudo revela que a renda meacutedia per capita cresceu 3039
no mesmo periacuteodo embora seja menor que os valores estadual e nacional e diminuiacuteram
os iacutendices de pobreza extrema e de desigualdade social O autor ressalta que a taxa de
desocupaccedilatildeo da populaccedilatildeo economicamente ativa diminuiu embora muitos estejam
ocupados no mercado informal Jaacute as taxas de ocupaccedilatildeo por setor de atividade e a
participaccedilatildeo de cada um destes no Produto Interno Bruto (PIB) Municipal estudados
por Barbosa R (2014) revelam as transformaccedilotildees pelas quais passaram a cidade de
Gonccedilalves nos uacuteltimos anos de uma economia agriacutecola para outra centrada no turismo
ainda que seus dados comparem apenas os anos de 2000 e 2010 Nesse sentido o
conjunto de pessoas ocupado na agropecuaacuteria passou de 4170 em 2000 para
3680 em 2010 enquanto no setor de serviccedilos essa taxa cresceu de 2480 para
3508 O PIB municipal cresceu 17630 no periacuteodo descontada a inflaccedilatildeo e os
serviccedilos seriam responsaacuteveis por 68 do PIB em 2010 (era de 62 em 2000) enquanto
a agricultura contribuiu com 2115 (era de 29 em 2000) (BARBOSA R 2014) Tais
mudanccedilas evidenciadas por este autor em Gonccedilalves na uacuteltima deacutecada parecem
corroborar o fenocircmeno apontado por Kageyama (2004) do desenvolvimento de uma
intersetorialidade nas pequenas cidades (e mesmo no campo) que contribui para
constituir nesses espaccedilos uma camada de classe meacutedia Essa nova dinacircmica tambeacutem
estaria relacionada de acordo com Kageyama (2004) agrave acessibilidade dos habitantes
das metroacutepoles agraves pequenas cidades vistas por estes como opccedilatildeo de lazer descanso e
proximidade da natureza fato que parece se aplicar ao caso de Gonccedilalves
especialmente devido agrave sua proximidade a cidades como Satildeo Paulo e Satildeo Joseacute dos
Campos por exemplo
Observa-se portanto que o decliacutenio da agricultura convencional a criaccedilatildeo da
aacuterea de proteccedilatildeo ambiental a conversatildeo de alguns produtores agrave agricultura de base
ecoloacutegica e a emergecircncia das atividades turiacutesticas se constituiacuteram em um marco
180
divisoacuterio na histoacuteria recente do municiacutepio de Gonccedilalves na passagem da deacutecada de
1980 para a de 1990 dando origem a uma nova configuraccedilatildeo socioeconocircmica e espacial
agrave cidade a partir dos anos 2000 Essas mudanccedilas refletem num microcosmo as
transformaccedilotildees que tecircm caraterizado o campo numa perspectiva macro conforme
discutidas por Abramovay (1994) Entrena-Duran (2012) Silva J (1997 2001) Pires
(2004) entre outros Estes autores apontam para o esgotamento do modelo agriacutecola
produtivista em vaacuterias partes do mundo por volta dos anos 1980 motivados pela crise
de superabastecimento e pelos paulatinos questionamentos em torno dos problemas
ambientais O cenaacuterio posterior eacute composto pelas novas funccedilotildees do campo na sociedade
poacutes-fordista especialmente aquelas ligadas agrave conservaccedilatildeo ambiental e ao lazer turismo
e moradia como experiecircncias para citadinos e algumas vezes como opccedilotildees de vida
Essas transformaccedilotildees poderiam sugerir ldquoo fim do ruralrdquo em Gonccedilalves ou
soarem como uma perspectiva evolucionista de superaccedilatildeo de uma etapa agriacutecola Mas o
que se destaca neste municiacutepio e se revelou como um objeto de estudo relevante para
esta pesquisa eacute a forma como esse rural sobrevive e eacute reinventado na cultura nos
siacutembolos no modo de vida nos produtos e serviccedilos ofertados na cidade Estes parecem
ser ldquoo carro cheferdquo do turismo rural na cidade que oferta aos visitantes a roccedila como um
bem um valor um capital turiacutestico Assim bem o descreve a Diretora de Turismo da
cidade ao responder ao questionaacuterio sobre o uso da palavra roccedila como marca
Porque dois terccedilos da populaccedilatildeo de nossa cidade moram na zona rural os restaurantes mais procurados tambeacutem ficam na roccedila Gostamos de moda de viola cavalo carro de bois carne na banha torresmo frango caipira biscoito assado no forno de barro fogatildeo de lenha e nossos visitantes tambeacutem gostam pois Gonccedilalves eacute uma cidade que vive em primeiro lugar do turismo e em segundo da plantaccedilatildeo de banana [Roccedila] significa simplicidade com qualidade em tudo que fazemos Nossa comida eacute muito saborosa gostamos de receber todos na cozinha e ningueacutem passa por nossa casa sem entrar para um cafezinho e uma boa conversa Nosso povo gosta de ldquoprosearrdquo como dizem os mais antigos Temos orgulho de morar na roccedila pois temos qualidade de vida verduras frescas sem agrotoacutexicos ovos colhidos assim que a galinha anuncia a postura leite tirado todos os dias carne dos porcos que criamos E compartilhamos com nossos visitantes esta vida ldquoRoccedilardquo eacute sinocircnimo de fartura sabores uacutenicos produtos sem agrotoacutexicos A uniatildeo de tudo isso em meio agrave natureza torna o nome ldquoRoccedilardquo um sinocircnimo de renovaccedilatildeo de energias para quem vive nas grandes cidades (Diretora de Turismo Gonccedilalves-MG abril de 2014)
181
Essa perspectiva de que a roccedila figura como um atrativo turiacutestico em Gonccedilalves
tambeacutem eacute atestada por uma proprietaacuteria de um restaurante nesta cidade que inclusive
utiliza o termo roccedila no nome de seu estabelecimento ao ser indagada sobre o que o uso
desse termo como marca significava
O que significa roccedila para noacutes Roccedila deixou de ser soacute o nome de um canteiro de plantas e verduras e a palavra passou a ter um conceito cultural Eacute um modo de vida Eacute onde a gente estaacute E Gonccedilalves hoje eacute uma cidade que tem exatamente isso o que atrai as pessoas aqui A cultura da roccedila Noacutes natildeo temos lojas maravilhosas natildeo temos um comeacutercio natildeo temos shopping Temos atrativos naturais mas natildeo eacute bem isso que as pessoas vecircm buscar Tem uma parte do puacuteblico que vem atraacutes de cachoeiras mas um pouco o que as pessoas procuram satildeo produtores locais Aquela pessoa que trocou a vida que tinha como empresaacuterio como executivo por fazer queijos e hoje vive de fazer queijos Eacute uma mudanccedila cultural Eacute a busca da roccedila eacute a busca das raiacutezes E hoje o turismo de Gonccedilalves vive dessa cultura da cultura da roccedila que eacute o que a gente vende eacute o que a gente vive Tem elementos antigos que satildeo usados ainda aqui hoje por exemplo os carros de boi as pessoas usam para puxar milho Eacute como se o tempo tivesse parado neste lugar E hoje eacute isso que atrai as pessoas Agora por exemplo muitos dos donos desses carros hoje vivem de outras coisas vendem terras natildeo vivem mais de puxar o carro mas preserva aquilo como uma cultura para os filhos para os netos (Proprietaacuteria de restaurante Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
FIGURA 48 ndash Carro de boi
Fonte Roberto Torrubia
Alguns desses aspectos revelam indiacutecios do que se identificou como uma roccedila
ligada agrave tradiccedilatildeo ao campo e sua produccedilatildeo agriacutecola bem como a uma cultura rural
especiacutefica Mas tambeacutem eacute possiacutevel perceber como em Gonccedilalves outros significados
de roccedila satildeo reelaborados como a roccedila ldquoestilizadardquo presente nos pratos reinventados e
restaurantes sofisticados nos serviccedilos de recorte urbano e naqueles inspirados em
culturas estrangeiras nos nomes dos estabelecimentos que brincam com as palavras e as
182
origens Nota-se ainda associaccedilotildees entre roccedila e natureza sem fugir aos aspectos de
nostalgia e romantismo Esses usos e significados do termo roccedila no Festival de
Gastronomia e Cultura da Roccedila bem como na vida cotidiana dos habitantes de
Gonccedilalves e de quem a frequenta fundamentaram a escolha daquele evento como
objeto de anaacutelise desta pesquisa e seratildeo apresentados ao longo deste capiacutetulo
42 A observaccedilatildeo participante as entrevistas e os ldquobastidoresrdquo do Festival
Em Gonccedilalves foram realizadas trecircs visitas A primeira entre os dias 23 de
setembro e 1ordm de outubro de 2014 consistiu numa fase exploratoacuteria em que foi feito
contato pessoal com a diretora de Turismo e sua equipe que forneceram as informaccedilotildees
demandadas sobre a cidade e o Festival aleacutem de terem sido mediadores das entrevistas
Durante essa primeira estadia foram realizadas as 16 entrevistas abertas com os
produtores e distribuidores de produtos e serviccedilos da roccedila especialmente aqueles que
participam diretamente do Festival Nessa ocasiatildeo foram entrevistados nove
proprietaacuterios de comeacutercio de alimentos e de restaurantes ou cozinheiroschefs que
participam ou jaacute participaram de alguma ediccedilatildeo do Festival (dois deles com restaurantes
com a marca roccedila) trecircs proprietaacuterios de estabelecimentos com a marca roccedila a ex-
diretora de turismo e dois conselheiros do Conselho Municipal de Turismo que foram
responsaacuteveis pela criaccedilatildeo do Festival agrave eacutepoca e uma proprietaacuteria de pousada
Durante esse periacuteodo de dez dias de estadia foi possiacutevel tambeacutem acompanhar os
preparativos para o Festival Agrave sugestatildeo da diretora de Turismo acompanhou-se o
fotoacutegrafo e a equipe do Departamento Municipal de Turismo e Cultura nas visitas aos
restaurantes e estabelecimentos para a criaccedilatildeo das fotografias dos pratos que seriam
servidos na quarta ediccedilatildeo do Festival para a ediccedilatildeo do guia gastronocircmico Assim teve-
se a oportunidade de visitar a maioria dos restaurantes ou estabelecimentos participantes
desta ediccedilatildeo do Festival conhecer os pratos que seriam servidos a histoacuteria dos
participantes e seu envolvimento com o turismo em Gonccedilalves bem como realizar as
entrevistas Contou-se com a mediaccedilatildeo do fotoacutegrafo na maior parte dos casos que jaacute
conhecia a maioria dos envolvidos no Festival fazendo as devidas apresentaccedilotildees e
tambeacutem da proacutepria diretora do Departamento de Turismo e de servidores deste Aleacutem
183
disso participar dos bastidores da organizaccedilatildeo do Festival nesta ocasiatildeo possibilitou
observar o processo de composiccedilatildeo do cenaacuterio para as fotografias podendo-se
apreender alguns aspectos dos significados da categoria roccedila em Gonccedilalves e que eram
expressos no Festival Retornou-se agrave Gonccedilalves para acompanhar o Festival nos dias 31
de outubro 1ordm 2 7 8 e 9 de novembro de 2014 ou seja em dois finais de semana
seguidos com atraccedilotildees divididas entre as sextas os saacutebados e os domingos No Festival
realizou-se a observaccedilatildeo e a aplicaccedilatildeo dos questionaacuterios aos
consumidoresfrequentadores durante estes dois finais de semana
Na primeira visita a Gonccedilalves em setembro de 2014 foi possiacutevel vivenciar
uma experiecircncia parecida com aquela descrita sobre o Mercado Central de Belo
Horizonte o apelo agrave roccedila estava por todo o caminho ateacute se chegar ao campo objeto de
estudo Ao longo da estrada com destino agrave Gonccedilalves partindo-se de Belo Horizonte
na rodovia BR-381 ndash Fernatildeo Dias sobretudo entre as cidades mineiras de Lavras e Trecircs
Coraccedilotildees notou-se uma seacuterie de estabelecimentos comerciais agrave beira da estrada que
anunciavam a venda de ldquoprodutos da roccedilardquo ou tinham roccedila no seu nome Tratavam-se
de lanchonetes restaurantes e mercados geneacutericos As placas no geral indicavam
ldquoprodutos da roccedilardquo e algumas mais especiacuteficas revelavam a oferta dos seguintes
produtos frango caipira doces queijos comida caseira cafeacute moiacutedo na hora linguiccedila
ldquopinga da roccedilardquo licor de pequi costela assada panela de pedra pimenta arroz doce
coalhada salaminho ldquodeliacutecias do milhordquo ldquomel purordquo ldquomanteiga caseirardquo ldquocafeacute da
roccedilardquo e ldquocafeacute da roccedila moiacutedo na horardquo Notou-se tambeacutem as placas do Restaurante
ldquoTrem da Roccedilardquo I e II tratando-se evidentemente do mesmo estabelecimento
localizado em dois lugares diferentes que tambeacutem anunciava a venda de doces queijos
curau pamonha almoccedilo caseiro e tapetes de couro Em algumas dessas placas as
descriccedilotildees aludiam aos ldquoprodutos da roccedilardquo mas tambeacutem a ldquoprodutos mineirosrdquo ou a
ldquorestaurante mineirordquo Chegando-se agrave rodoviaacuteria da cidade de Itajubaacute onde se tomaria
outra conduccedilatildeo rumo agrave Gonccedilalves deparou-se com a loja ldquoDireto da Roccedilardquo Tratava-se
de uma parceria entre a EMATER e a Prefeitura que disponibilizava numa loja da
rodoviaacuteria a venda de produtos agriacutecolas ou da agroinduacutestria das famiacutelias agricultoras
da regiatildeo Nela vendem-se biscoitos geleias queijos iogurte coalhada banana ovos
conservas bolos artesanatos doces panos de prato crochecircs telhas pintadas
184
FIGURA 49 ndash Boneca decorativa na loja ldquoDireto da Roccedilardquo rodoviaacuteria de Itajubaacute-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 50 ndash Boneco decorativo na loja ldquoDireto da Roccedilardquo rodoviaacuteria de Itajubaacute-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
A estrada entre Itajubaacute e Gonccedilalves eacute ladeada por siacutetios e fazendas Apoacutes o
municiacutepio de Paraisoacutepolis toma-se a estrada em direccedilatildeo a Gonccedilalves onde numa
planiacutecie comeccedilam a surgir os siacutetios e bairros rurais que compotildeem sua configuraccedilatildeo
socioespacial especialmente o Lambari Sobe-se entatildeo a Serra e comeccedilam a aparecer
na paisagem as araucaacuterias e rochas (Pedra do Cruzeiro) e os primeiros indiacutecios do setor
de turismo receptivo de turismo siacutetios com produccedilatildeo orgacircnica lojas de artesanato e
produtos alimentares e as primeiras placas indicando hoteacuteis e pousadas rurais
185
A cidade na sede urbana onde vivem aproximadamente 1100 dos seus 4220
habitantes (IBGE 2013) tem uma paisagem tiacutepica das pequenas cidades do interior de
Minas Gerais uma Igreja Catoacutelica na praccedila central com jardins e bancos uma
predominacircncia de casas em detrimento de preacutedios ruas calccediladas de blocos que
circundam esta praccedila As particularidades de Gonccedilalves vatildeo se revelando aos poucos a
serra ao seu redor onde se avista gado pastando por um lado e por outro a floresta de
pinheiros Pelas ruas circulam cavalos e charretes conduzidos por senhores com chapeacuteu
que aparentam retornar do campo Com menos frequecircncia eacute possiacutevel presenciar tratores
e ateacute mesmo carros de boi passando pela cidade ndash fato recorrentemente comentado pelos
moradores e visitantes que o ressaltam como uma preciosidade histoacuterica mais rara de se
ver em outras cidades Na hora da missa o alto-falante da Igreja executa muacutesicas
religiosas possiacuteveis de se ouvir por quase toda parte da cidade assim como tambeacutem eacute
usado para fazer anuacutencios comunicando o falecimento de algueacutem por exemplo
Tambeacutem eacute possiacutevel ouvir a muacutesica vinda dos ensaios da Lira Nossa Senhora das Dores
Durante os dias uacuteteis da semana vecirc-se circulando apenas os moradores da
cidade sendo menos frequente a presenccedila de turistas Nesse sentido o comeacutercio local
cujos clientes principais satildeo os residentes da cidade funciona normalmente nos dias
uacuteteis enquanto os estabelecimentos voltados ao turismo ficam fechados especialmente
nos primeiros dias uacuteteis da semana A experiecircncia do tempo que se pode vivenciar
durante os dias uacuteteis da semana em Gonccedilalves especialmente nos dias comuns do
calendaacuterio turiacutestico ou festivo quando natildeo haacute eventos especiais eacute bastante particular Eacute
possiacutevel perceber no cotidiano dos locais que a execuccedilatildeo das tarefas natildeo parece ser
marcada pela acircnsia nem pelo compromisso com um horaacuterio rigidamente governado
Ainda assim observa-se um funcionamento aparentemente normal natildeo se percebendo
negligecircncias Um exemplo nesse sentido eacute a ldquoTerccedila Folgadardquo quando numa terccedila-
feira alguns amigos se reuacutenem para cavalgar pelo campo de Gonccedilalves durante o dia
todo apreciando a paisagem e a equitaccedilatildeo parando apenas para almoccedilar geralmente em
algum restaurante dos bairros rurais e para degustar algum aperitivo e tocar
instrumentos
Esse passeio eacute realizado uma vez ao mecircs sempre numa terccedila-feira Segundo um
de seus participantes e entusiastas um agricultor orgacircnico natural de Gonccedilalves o
objetivo da ldquoTerccedila Folgadardquo eacute aleacutem de promover a confraternizaccedilatildeo e a ludicidade
justamente subverter os padrotildees que organizam o cotidiano na sociedade moderna
186
dividindo o tempo de trabalho e o tempo de lazer caracteriacutesticos da cultura urbana
conforme bem o descreve Rambaud (1973) A ideia de ldquodesacelerarrdquo o modo de vida
que caracteriza a ldquoTerccedilardquo tambeacutem eacute citada num dos textos de apresentaccedilatildeo dos guias
gastronocircmicos do Festival
Poreacutem um passeio mais atento pela cidade revela traccedilos de outros modos de
vida em Gonccedilalves Na praccedila principal em frente agrave referida Igreja observa-se uma
placa indicando ser um espaccedilo de Wifi Zone ou seja haacute sinal de rede sem fio de internet
de acesso livre e gratuito aos cidadatildeos e visitantes naquela aacuterea
FIGURA 51 ndash Wifi Zone na praccedila de Gonccedilalves-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Entre as casas residenciais e o comeacutercio tiacutepico tambeacutem se identificam
restaurantes pizzarias bistrocircs bares cafeacutes casas de chaacute padarias lanchonetes
empoacuterios ateliecircs lojas de decoraccedilatildeo espaccedilos de terapias corporais e massagens
receptivos de turismo de aventura e ecoturismo Estes estabelecimentos possuem
aspectos de distinccedilatildeo e sofisticaccedilatildeo na sua decoraccedilatildeo e adaptaccedilotildees na arquitetura (tiacutepica
da cidade) reaproveitando suas caracteriacutesticas simples e acolhedoras nos produtos e
serviccedilos ofertados nos apelos da identidade visual na performance dos atendentes e
em alguns casos nos preccedilos
Nos finais de semana a diversidade social de Gonccedilalves eacute ressaltada pela
chegada dos visitantes e dos moradores de segunda residecircncia De acordo com a diretora
de Turismo e alguns proprietaacuterios de restaurantes entrevistados os visitantes dividem-se
entre os turistas que passam todo o final de semana ou uma semana toda no caso da
alta temporada e os chamados excursionistas que vindos de cidades proacuteximas agrave
Gonccedilalves como Pouso Alegre Poccedilos de Caldas e Itajubaacute no sul de Minas e Satildeo Joseacute
dos Campos no Vale do Paraiacuteba Paulista passam o dia na cidade almoccedilam passeiam e
187
retornam para seu local de origem no final do dia Haacute ainda aqueles que possuem casas
de veraneio em Gonccedilalves mas residem em outros municiacutepios sobretudo na capital
paulista e afluem para a cidade nos finais de semana acompanhados de familiares e
amigos Alguns entrevistados afirmaram que no inverno eacute comum a visita de casais
jovens que identificam na cidade as condiccedilotildees para uma viagem romacircntica enquanto
nos meses mais quentes satildeo mais comuns as famiacutelias com filhos Haacute um conjunto de
visitantes que aluga casas e chaleacutes para a estadia enquanto outros se hospedam nas
pousadas especialmente no campo
O fluxo de visitantes nos finais de semana transforma o ritmo e o tempo na
cidade muitos restaurantes bistrocircs lojas e ateliecircs ficam abertos pelas ruas trafegam
motocicletas e veiacuteculos proacuteprios para trilhas modelos de traccedilatildeo 4x4 aleacutem de carros de
luxo A transformaccedilatildeo da dinacircmica da cidade entre os dias uacuteteis da semana e os finais
de semana ou feriados foi comentada por um entrevistado natural e residente em
Gonccedilalves ldquoA cidade aqui eacute gostosa Aqui soacute perde o estilo roccedila no fim de semana ou
feriado prolongado Aiacute eacute um carro atraacutes do outro gente buzinando na rua pra pedir
passagem Mas assim dia de semana eacute gostoso tranquilo tranquilordquo Segundo a antiga
e a atual diretora de Turismo do municiacutepio seria difiacutecil precisar a quantidade de
visitantes que circulam pela cidade especialmente devido agravequeles de segunda residecircncia
que possuem casas no campo natildeo sendo possiacutevel registrar seus deslocamentos como
atesta o seguinte relato
Mas eu acredito que nos feriados maiores Reveillon Carnaval Corpus Christi a cidade dobra de populaccedilatildeo pra natildeo dizer que triplica Porque o movimento daqui natildeo eacute por exemplo como em Campos [do Jordatildeo] ou Monte Verde que vocecirc chega na zona urbana no centro comercial e vecirc aquele grande movimento Aqui o centro fica cheio o que natildeo eacute difiacutecil porque ele eacute pequenininho soacute que o movimento maior eacute no rural eacute na roccedila O que a gente sempre percebe por exemplo laacute na pousada eacute o movimento na estrada natildeo para mas vocecirc natildeo consegue mensurar (Ex-diretora de Turismo Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Assim a observaccedilatildeo tambeacutem permite perceber que o movimento de pessoas que
se vecirc na cidade natildeo traduz nitidamente aquele que acontece no campo Essa suspeita
torna-se mais aguccedilada ao se visitar a feira de produtos orgacircnicos organizada pela
empresa ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo jaacute mencionada anteriormente A feira ocorre aos
saacutebados pela manhatilde num galpatildeo numa rua agrave saiacuteda da cidade rumo aos bairros rurais
188
considerados como aqueles que concentram a maior parte das atividades turiacutesticas Na
feira assiste-se ao fluxo de turistas e moradores de segunda residecircncia vindos da
direccedilatildeo dos bairros rurais para onde retornam diretamente apoacutes as compras Uma
comerciante entrevistada afirmou nesse sentido que a feira de orgacircnicos podia
funcionar como um ldquotermocircmetrordquo sobre o movimento de turistas nos finais de semana
ou seja como uma estimativa da quantidade de visitantes que a cidade recebe em
determinado momento jaacute que seria um ponto de atraccedilatildeo destes
O conhecimento dos bairros rurais foi possiacutevel graccedilas ao acompanhamento da
equipe do Departamento de Turismo e do fotoacutegrafo na produccedilatildeo das imagens feitas para
o Guia Gastronocircmico do Festival Acompanhou-se a equipe durante trecircs dias de visita
aos restaurantes lanchonetes empoacuterios e agricultores participantes da quarta ediccedilatildeo do
Festival distribuiacutedos entre os bairros rurais e o centro na sede urbana da cidade Foi
possiacutevel observar a paisagem conhecer a nova organizaccedilatildeo socioespacial dos bairros a
partir da expansatildeo do turismo bem como conhecer e conversar com os atores sociais
que compotildeem a diversidade social de Gonccedilalves
A cidade possui aleacutem da sede urbana mais de 20 bairros rurais onde se
concentram 724 da sua populaccedilatildeo entre os agricultores naturais do municiacutepio e os
neorrurais Os bairros distribuem-se espacialmente entre o que costumam chamar de
ldquoparte altardquo e ldquoparte baixardquo da cidade que corresponde aos planos mais altos nas
encostas da serra onde tambeacutem se localiza a sede urbana no primeiro caso e agrave planiacutecie
na base da serra no segundo Esses detalhes podem ser observados no seguinte mapa
ilustrado elaborado por Roberto Torrubia
189
FIGURA 52 ndash Mapa ilustrado de Gonccedilalves-MG
Fonte Roberto Torrubia
190
No primeiro dia visitou-se conforme a programaccedilatildeo do Departamento de
Turismo para a elaboraccedilatildeo das fotos alguns restaurantes e bares localizados no centro
da cidade e outros nos bairros rurais ldquode baixordquo especialmente no Bairro Lambari e
Trecircs Barras Conforme jaacute se ressaltou nesses bairros rurais ainda predominam as
atividades agriacutecolas especialmente o cultivo de bananas havendo menor incidecircncia das
atividades turiacutesticas Como se trata de uma aacuterea mais plana e com a paisagem agriacutecola
por vezes predominando sobre a paisagem natural a exploraccedilatildeo do espaccedilo para lazer
turismo e fruiccedilatildeo eacute mais limitada O nuacutemero de casas de veraneio ou para aluguel para
os turistas tambeacutem eacute menor em comparaccedilatildeo agrave ldquoparte altardquo da cidade Contudo haacute bares
comeacutercios de alimentos agriacutecolas orgacircnicos e agroindustriais de artesanato receptivo
de turismo pizzaria e pousadas nesta regiatildeo tambeacutem Alguns desses bares inclusive
visitados para a produccedilatildeo fotograacutefica situam-se agrave margem das estradas vicinais dos
bairros rurais e atendem majoritariamente agraves necessidades da populaccedilatildeo local mas
tambeacutem recebem um afluxo de turistas
Tais estabelecimentos reproduzem os aspectos das ldquovendasrdquo tambeacutem
conhecidas como mercearias ou empoacuterios tiacutepicos do campo em tempos passados
Vendem-se secos e molhados e presta-se o serviccedilo de bar com a venda de bebidas e
ldquopetiscosrdquo ndash alguns inclusive foram os pratos do Festival porccedilatildeo de linguiccedila de porco
caseira com farinha de milho panquecas ndash com o tradicional balcatildeo de atendimento
onde se sentam os clientes aleacutem de se acomodaram em mesas ou bancos na porta A
pizzaria e a agroinduacutestria orgacircnica visitadas satildeo estabelecidas no proacuteprio siacutetio dos
proprietaacuterios em espaccedilos que satildeo a extensatildeo de suas casas Em ambos combinam-se a
produccedilatildeo agriacutecola familiar e as atividades voltada agrave recepccedilatildeo dos turistas para prestaccedilatildeo
de serviccedilo no caso do restaurantepizzaria e para a venda de produtos no caso de
geleias orgacircnicas certificadas Enquanto a famiacutelia proprietaacuteria da pizzaria eacute natural de
Gonccedilalves e vivia no campo da produccedilatildeo agriacutecola familiar a agroinduacutestria de geleia eacute
de propriedade de uma famiacutelia de nova residecircncia tendo morado a maior parte da vida
em Satildeo Paulo e ido para Gonccedilalves apoacutes a aposentadoria No caso das ldquovendasrdquo haacute uma
predominacircncia de frequentadores moradores dos proacuteprios bairros rurais ou daqueles da
proximidade mas tambeacutem se identifica a visita de turistas
Durante a composiccedilatildeo do cenaacuterio para a foto com o prato que seria colocado agrave
venda no Festival por cada estabelecimento foi possiacutevel observar de que forma o grupo
191
envolvido classificava os elementos que fariam parte da imagem relativa ao que seria
ldquoda roccedilardquo ou natildeo
Assim utilizava-se os objetos disponiacuteveis na casa ou estabelecimento que jaacute
faziam parte da decoraccedilatildeo do ambiente ou eram de uso domeacutestico Dessa forma onde
havia fogatildeo a lenha de alvenaria dispunha-se o prato sobre sua cauda de forma que no
segundo plano da fotografia aparecessem as labaredas Tambeacutem se privilegiava
quando o prato era disposto nas mesas ou balcotildees uma toalha de chita ou de algodatildeo
cobrindo-a compondo a base do prato assim como um suporte de prato tecido com a
folha de bananeira Utilizava-se tambeacutem conforme a disponibilidade dos utensiacutelios o
bule e xiacutecara em aacutegata porque de outro material como alumiacutenio ldquoeacute muito moderno
natildeo combinardquo Tambeacutem se utilizava para compor a fotografia um pequeno carro de boi
em artesanato de madeira
Como o tema da quarta ediccedilatildeo do Festival era o milho em algumas ocasiotildees ele
tambeacutem compunha o segundo plano das fotografias agraves vezes o milho em espiga e as
palhas secas outras vezes os gratildeos crus em uma concha (comumente usada em
armazeacutens para pegar cereais a granel) cozido ou o fubaacute numa vasilha de ceracircmica No
restaurante do centro da cidade o cenaacuterio escolhido para captar as imagens foi o jardim
do estabelecimento privilegiando-se o uso de mesa de madeira e prato de ceracircmica para
compor a fotografia Na pastelaria no centro da cidade o que poderia parecer um tiacutepico
estabelecimento urbano revela suas nuances com a roccedila como o tema do Festival era o
milho o recheio do pastel era o curau Enquanto os clientes eram atendidos na
pastelaria o filho do proprietaacuterio tocava uma viola para o deleite dos frequentadores
No trajeto que se percorria pelas estradas ateacute os bairros rurais ou nos proacuteprios
estabelecimentos os comentaacuterios sobre o cenaacuterio que tinham como mote a temaacutetica da
pesquisa a roccedila eram feitos para ilustrar e demonstrar o que entendiam sobre o termo
as galinhas soltas pelo quintal das casas o bezerro o chiqueiro e seu cheiro
caracteriacutestico eram ldquocoisas de roccedilardquo Assim como o ldquovaral de linguiccedilardquo teacutecnica de
defumaccedilatildeo da linguiccedila caseira que depois de produzida ldquodescansardquo ou ldquocurardquo
pendurada num varal sobre o fogatildeo a lenha para defumar num quarto fechado Esta
inclusive foi uma das atraccedilotildees de uma das ldquovendasrdquo do bairro que foram apresentadas
no trabalho de campo como ldquocoisa da roccedilardquo
No segundo dia visitou-se restaurantes na parte ldquoaltardquo de Gonccedilalves
especialmente nos bairros rurais Satildeo Sebastiatildeo das Trecircs Orelhas Terra Fria e Juncal
192
aleacutem de ter-se retornado a outro bar no Bairro Lambari na parte ldquobaixardquo da cidade No
Bairro Satildeo Sebastiatildeo das Trecircs Orelhas tambeacutem caracterizado pelas atividades turiacutesticas
o objeto da fotografia foram os patildees integrais orgacircnicos de um empoacuterio Enquanto o
Juncal possui uma paisagem formada por siacutetios lembrando bastante um campo
tradicional embora seja muito arborizado a Terra Fria eacute um dos bairros rurais bastante
explorados pelo setor turiacutestico devido agrave sua altitude agrave presenccedila de cachoeiras picos
rochosos e florestas de araucaacuterias Dois restaurantes visitados nesse dia no Bairro Terra
Fria se caracterizavam como siacutetios de agricultores familiares que devido agrave proximidade
de suas terras e sua residecircncia agraves rochas a ldquoPedra do Fornordquo e a ldquoPedra Chanfradardquo
tornaram-se importantes pontos de atraccedilatildeo turiacutestica As famiacutelias que antes viviam da
produccedilatildeo agriacutecola construiacuteram restaurantes anexos agraves suas casas e passaram a ofertar
aos visitantes ldquocomida caseirardquo feita e servida no fogatildeo a lenha caracterizada
principalmente pela carne de lata o tutu de feijatildeo e a couve No Bairro do Juncal
visitou-se um restaurante que poderia ser caracterizado como uma ldquonova geraccedilatildeordquo dos
restaurantes da roccedila de Gonccedilalves trecircs irmatildes jovens originaacuterias de pequenas famiacutelias
agricultoras do proacuteprio bairro investiram seus conhecimentos sobre a cozinha da roccedila
recebida da famiacutelia e abriram o restaurante
FIGURA 53 ndash Pedra Chanfrada no Bairro Terra Fria vista do Restaurante Ao Peacute da Pedra
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
193
FIGURA 54 ndash Restaurante Trecircs Irmatildes no Bairro Rural do Juncal
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
A composiccedilatildeo das fotografias nesses restaurantes tambeacutem privilegiou o uso do
fogatildeo a lenha como segundo plano depositando-se o prato em sua cauda ou a mesa de
madeira agrave mostra ou como fundo a toalha de algodatildeo quadriculada e a toalhinha
confeccionada em crochecirc Os efeitos decorativos eram aqueles que estivessem ao
alcance das matildeos um galho de flor de pereira uma galinha drsquoangola artesanal
FIGURA 55 ndash Prato do Restaurante Ao Peacute da Pedra
Fonte Roberto Torrubia
194
No terceiro dia e uacuteltimo dia que se acompanhou a equipe21 visitou-se o Bairro
dos Venacircncios um bairro tradicionalmente conhecido e visitado pelos turistas devido agraves
suas casas antigas de taipa e pilatildeo construiacutedas haacute mais de um seacuteculo mas que tambeacutem
se caracteriza pela moradia dos antigos agricultores familiares dentre os quais alguns
tambeacutem se dedicam agraves atividades turiacutesticas Neste dia tambeacutem se conheceu no Bairro
Rural Dona Luciana um dos siacutetios que desenvolvem a agricultura orgacircnica vinculada agrave
empresa ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo assim como dois restaurantes e uma lanchonete
do centro da cidade O restaurante do campo caracteriza-se tambeacutem por uma famiacutelia de
agricultores que construiu o restaurante anexo agrave sua residecircncia e serve aos consumidores
a ldquocomida caseirardquo feita e servida no fogatildeo a lenha
FIGURA 56 ndash Restaurante da Vilma no Bairro dos Venacircncios
Fonte Roberto Torrubia
Nos restaurantes e na lanchonete da cidade percebeu-se a ressignificaccedilatildeo das
caracteriacutesticas da ldquocomida da roccedilardquo utilizando-se os mesmos ingredientes tiacutepicos
embora natildeo se possa negligenciar que o uso do milho presente em todos os pratos era o
alimento tema daquela ediccedilatildeo do festival Ao mesmo tempo utilizava-se algumas
teacutecnicas proacuteprias da alta gastronomia ou com elementos tiacutepicos de uma cozinha mais
urbana moderna ou globalizada Ainda assim na composiccedilatildeo de uma das fotos
apareceu no segundo plano a mesa de madeira a palha e o milho cozido aleacutem da
farinha
Dos restaurantes bares e estabelecimentos de produtos alimentares que natildeo
foram visitados juntamente com a equipe fotograacutefica mas cujas imagens figuram no
21 A equipe formada pelo fotoacutegrafo e um servidor do Departamento de Turismo continuou realizando as fotografias no quarto dia mas natildeo foi possiacutevel acompanhaacute-los devido agraves entrevistas jaacute agendadas para este dia
195
Guia Gastronocircmico do Festival observou-se que algumas seguiam esse mesmo padratildeo
na composiccedilatildeo dos elementos ldquoque lembram a roccedilardquo a mesa em madeira os pratos e
vasilhas de ceracircmica a palha de milho Alguns poreacutem focavam apenas na imagem do
prato sem elementos figurativos enquanto outros denotam uma perspectiva mais
sofisticada com a decoraccedilatildeo do restaurante ao fundo e o acompanhamento de taccedilas de
vinho por exemplo
No saacutebado pela manhatilde conforme jaacute foi relatado ocorria a feira de produtos
orgacircnicos que foi visitada para observaccedilatildeo e entrevistas A feira era composta pelos
produtores certificados que participavam da empresa ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo mas
tambeacutem abrigava outros vendedores de produtos agroindustriais de produccedilatildeo ecoloacutegica
como geleias antepastos mel e artesanato em geral Quanto aos orgacircnicos no dia
visitado estavam disponiacuteveis agrave venda folhas morango rabanete beterraba cenoura
gengibre ervas Quanto aos outros produtos tratavam-se de patildees geleias patecircs
orgacircnicos artesanatos como patchwork e sabonetes queijo e mel orgacircnicos e doces A
feira ocorria em um galpatildeo agraves margens do rio num local cercado pela paisagem natural
na saiacuteda da cidade As mesas e balcotildees satildeo enfeitadas com toalhas de chita e a parede do
barracatildeo com cestaria
FIGURA 57 ndash Feira ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Ao lado funcionava o Cafeacute na Roccedila num antigo estaacutebulo onde os
frequentadores da feira podiam se socializar tomar um cafeacute ou suco e degustar bolos e
tortas feitos com ingredientes orgacircnicos ou naturais Aleacutem de uma cozinha moderna
(que parece ter sido construiacuteda seguindo os padrotildees sanitaacuterios vigentes) o restante da
decoraccedilatildeo eacute ruacutestica composta de uma fornalha mesas e bancos de madeira enfeites
como cabeccedila de boi e cabaccedilas aleacutem de algumas poltronas feitas de pneus reciclados
196
FIGURA 58 ndash ldquoCafeacute na Roccedilardquo na Feira ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 59 ndash Interior do ldquoCafeacute na Roccedilardquo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Em frente ao cafeacute no jardim foi construiacutedo um parquinho infantil com
brinquedos e balanccedilos feitos tambeacutem de pneus reciclados que inclusive estavam agrave
venda para os clientes que podiam contatar o artesatildeo que os fazia O nome do
playground era ldquoParquinho da Roccedilardquo Durante a feira tambeacutem ficava disponiacutevel agrave
demanda dos frequentadores um espaccedilo para a realizaccedilatildeo de massagens
FIGURA 60 ndash ldquoParquinho da Roccedilardquo na Feira ldquoOrgacircnicos da Mantiqueirardquo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
197
Ao longo dessa primeira estadia em Gonccedilalves aleacutem de outras entrevistas
realizadas tambeacutem se acompanhou em alguns momentos a preparaccedilatildeo da
infraestrutura para a realizaccedilatildeo do Festival Este tem sido realizado no Clube Recreativo
no centro da cidade Enquanto na primeira ediccedilatildeo ele foi realizado no espaccedilo aberto do
clube de acordo com as entrevistas nos dois eventos seguintes o Festival foi realizado
na rua em frente ao Clube tendo sido montado uma estrutura de tendas para isso Nesta
quarta ediccedilatildeo que se acompanhou a Prefeitura realizou reformas e ampliou o espaccedilo
de circulaccedilatildeo na aacuterea aberta do clube possibilitando a realizaccedilatildeo do Festival neste
ambiente As outras visitas seguintes foram feitas na ocasiatildeo do Festival para observaacute-lo
e aplicar os questionaacuterios aos frequentadoresconsumidores e os detalhes da observaccedilatildeo
seratildeo descritos a seguir
43 O 4ordm Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila de Gonccedilalves
O Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila em Gonccedilalves eacute realizado desde
2011 anualmente de maneira que foi possiacutevel acompanhar a sua quarta ediccedilatildeo no ano
de 2014 O Festival eacute realizado geralmente entre a segunda quinzena de outubro e a
primeira semana de novembro natildeo havendo uma data fixa contudo De acordo com
alguns dos responsaacuteveis pela criaccedilatildeo do Festival em 2011 que foram entrevistados para
esta pesquisa entre eles a antiga diretora de Turismo um membro do Conselho
Municipal de Turismo (COMTUR) e um voluntaacuterio da organizaccedilatildeo o Festival teria sido
criado para atrair o puacuteblico na eacutepoca de baixa temporada turiacutestica de Gonccedilalves Aleacutem
disso jaacute se vislumbrava na antiga gestatildeo de turismo da cidade a organizaccedilatildeo de um
evento nos moldes dos jaacute consagrados festivais de gastronomia que na visatildeo da ex-
diretora entrevistada estariam se expandindo nos uacuteltimos anos22 Aleacutem disso um dos
objetivos da criaccedilatildeo do Festival era um mecanismo entre outros de valorizaccedilatildeo da
cultura local especialmente dando visibilidade aos restaurantes da roccedila e agrave sua comida
tiacutepica conforme atestam os depoimentos das entrevistadas
22 No site da Secretaacuteria de Turismo e Cultura do Governo do Estado de Minas Gerais o Calendaacuterio de Eventos Turiacutesticos do Estado contabilizou 85 eventos no ano de 2013 (MINAS GERAIS 2013)
198
E aiacute eu comecei a conversar muito com [a proprietaacuteria de uma pousada e o chef de um restaurante] e ele sempre falando que a gente tinha que fazer alguma coisa E dentro das reuniotildees do COMTUR do Conselho Municipal de Turismo a gente comeccedilou a discutir entatildeo resolvemos vamos fazer um evento de gastronomia Mas quando essa ideia foi ser levada pra frente a primeira coisa que a gente falou foi que a gente queria um festival de gastronomia diferente do que jaacute existia Porque a gente queria fazer uma coisa voltada pra nossa cultura pra fortalecer os restaurantes locais [] E tanto eacute que o foco nosso na eacutepoca principalmente no primeiro festival foi fortalecer estes restaurantes foi tentar encontrar formas estruturas para melhorar o que eles jaacute tinham pra otimizar e pra fazer valer a pena que eles viessem pra cidade Entatildeo a gente comeccedilou a perceber que o retorno maior que eles ganham no festival natildeo era financeiro eacute o que vem depois A gente conseguiu principalmente no primeiro festival vaacuterias miacutedias Globo Rural TV Globo Rural Revista EPTV Sul de Minas (Ex-diretora de Turismo Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Entatildeo quando a gente pensou no Festival de Gastronomia eu pensei assim gastronomia dentro do turismo o turismo gastronocircmico eacute o mais legal de todos [O turista voltado para a gastronomia] eacute um cara consciente eacute um cara que viaja entatildeo ele valoriza ele viaja pra conhecer ele natildeo viaja pra encontrar o que ele jaacute espera ele quer conhecer o que vocecirc sabe fazer E ele eacute um elemento cultural que fortalece e valoriza a cultura local [] Entatildeo quando a gente pensou no Festival de Gastronomia a gente fez discussotildees dentro do COMTUR um dos posicionamentos do COMTUR naquela eacutepoca da gestatildeo natildeo era soacute meu era da gestatildeo era ldquoBom o que a gente pode fazer Nosso trabalho pode ser de fortalecimento de valoraccedilatildeo do que eacute roccedilardquo Porque as pessoas precisam saber que isso eacute rico eacute baacuterbaro eacute lindo e ela [pessoa da roccedila] poder ganhar dinheiro com aquilo (Ex-conselheira do COMTUR Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Nesse sentido o modelo de Festival construiacutedo a partir das reuniotildees do
COMTUR com a colaboraccedilatildeo dos proprietaacuterioschefscozinheiros dos restaurantes e
estabelecimentos participantes diferia-se de alguns eventos tiacutepicos na opiniatildeo das
entrevistadas Segundo elas o Festival de Gonccedilalves natildeo seria um concurso que
promoveria a concorrecircncia do melhor prato ao contraacuterio os restaurantes e demais
estabelecimentos apenas exporiam e venderiam seus preparos Outro criteacuterio
estabelecido foi o de que somente os restaurantes de Gonccedilalves participariam evitando-
se a participaccedilatildeo de restaurantes e chefs de outras cidades ou Estados como acontece
em festivais gastronocircmicos tiacutepicos que promovem a eleiccedilatildeo de melhor
pratochefrestaurante Assim a elaboraccedilatildeo do Festival visaria valorizar a cultura e a
199
gastronomia da roccedila bem como priorizar a participaccedilatildeo dos restaurantes em Gonccedilalves
considerados ldquoda roccedilardquo mas cuja adesatildeo estaria aberta a todos os estabelecimentos da
cidade localizados no centro urbano ou pertencentes a proprietaacuterios residentes fora do
municiacutepio No entanto a temaacutetica tendia a ser respeitada pelos restaurantes mais
requintados que satildeo convidados a elaborar pratos simples com seu ldquotoque especialrdquo
Outra caracteriacutestica observada foi a de que os pratos de todos os restaurantes deveriam
ser ofertados a um preccedilo padronizado durante o Festival que na quarta ediccedilatildeo foi de
R$ 1300 devendo cada estabelecimento elaboraacute-lo em termos de ingredientes e
tamanho da porccedilatildeo adequados ao valor cobrado Mas na sede do proacuteprio restaurante o
preccedilo do prato seria livre podendo-se inclusive incrementar o serviccedilo com entrada
sobremesa bebidas e logo agregando valor
O estabelecimento e a obediecircncia a tais regras do Festival teriam tido como
efeito segundo as entrevistadas tanto a garantia da participaccedilatildeo da populaccedilatildeo da cidade
entre o puacuteblico consumidor quanto a promoccedilatildeo da sociabilidade entre os chefs e
cozinheiros dos diferentes restaurantes que no cotidiano natildeo costumavam ter a
oportunidade de frequentar os estabelecimentos dos colegas ainda que fossem parentes
e residissem perto segundo relatou a ex-diretora Assim as entrevistadas comentaram
ter presenciado as trocas de pratos entre os cozinheiros e chefs a troca de informaccedilotildees
bem como parentes vizinhos e familiares que iam ao Festival prestigiar o restaurante
dos entes Foi possiacutevel presenciar algumas dessas situaccedilotildees durante a observaccedilatildeo do
Festival quando os chefs e cozinheiros propunham trocar seus pratos para degustaccedilatildeo
Os chefs e cozinheiros incorporavam assim traccedilos da cultura camponesa relativos ao
dar e retribuir vinculando-os a um circuito de reciprocidades semelhantes agravequele da
vida em comunidade Este caraacuteter familiar e os laccedilos de solidariedade que se
estabeleciam no Festival tanto entre os responsaacuteveis pelos estabelecimentos como
entre os parceiros ou entre o puacuteblico que os frequentava dava ao evento segundo as
entrevistadas o ambiente da vida em vizinhanccedila Nestes relatos as contradiccedilotildees e
conflitos quase natildeo eram comentados
Soacute aconteceu depois que a gente fez o Festival de Gastronomia de a pessoa de um restaurante comer a comida de outro restaurante aqui porque e agraves vezes eacute ateacute parente no momento que estatildeo trabalhando [natildeo podem ir ao restaurante do outro] e no dia seguinte ningueacutem taacute trabalhando e aiacute natildeo daacute pra se conhecer E essa foi a [oportunidade] Ah trocava prato ldquoAh olha meu pratordquo ldquoAh depois eu mando o meurdquo troca troca se experimentou o [prato] de todo mundo sabe
200
Todo mundo vai laacute ldquoAh eu vim comer o seu pratordquo sabe Conheceu trocou aprenderam trocaram informaccedilotildees por isso que o Festival tambeacutem nunca teve caracteriacutestica de concurso e isso era uma coisa que noacutes deixamos claro natildeo pode ser concurso natildeo vamos concorrer um com o outro vamos valorizar Um dia se quiser ter um concurso [] que nem esses modelos que tem por aiacute mas natildeo eacute esse o momento o momento eacute de valoraccedilatildeo Qualquer que seja o que eu faccedilo o que vocecirc faz tem que ser valorizado (Ex-conselheira do COMTUR Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Outro aspecto relacionado agrave sociabilidade ressaltado pelos entrevistados estava
relacionado agrave sua proacutepria organizaccedilatildeo As limitaccedilotildees impostas pelo orccedilamento puacuteblico
disponiacutevel para a organizaccedilatildeo do Festival teriam sido superadas com o uso da
criatividade inovaccedilatildeo e o capital social construiacutedo entre os participantes do Festival As
famiacutelias amigos e voluntaacuterios colaboravam com alguns aspectos relativos agrave
infraestrutura apoio e decoraccedilatildeo da festa improvisando o uso de materiais disponiacuteveis
o que por um lado dava a conotaccedilatildeo desenhada para o mesmo de aparentar
simplicidade como uma forma de remeter agraves caracteriacutesticas das ldquocoisas da roccedilardquo
Tambeacutem se percebeu o acionamento do capital social por meio do suporte de
instituiccedilotildees e empresas que apoiavam o Festival em troca de publicidade ou da
oportunidade de participar da festa As mesas e bancos utilizados na quarta ediccedilatildeo do
Festival por exemplo foram emprestadas pela Paroacutequia e pelo carpinteiro de uma
cidade vizinha No uacuteltimo domingo do Festival o carpinteiro e sua esposa foram ao
evento para participar e degustar os pratos O fato do Festival se constituir em uma
atraccedilatildeo turiacutestica de Gonccedilalves parecia despertar nos colaboradores o desejo de
participar ativamente do Festival pelo prestiacutegio mas tambeacutem pela satisfaccedilatildeo em
frequentar a cidade Assim relata a ex-diretora de Turismo
E realmente olha o primeiro festival foi muito mais coraccedilatildeo do que profissatildeo Eu falo que a gente tava num momento do COMTUR muito abenccediloado o conselho era muito unido todo mundo arregaccedilou as mangas literalmente e deixou os afazeres de lado [] E tudo assim eram voluntaacuterios eram pessoas que deixavam as coisas e iam [ajudar] Ateacute a estrutura do primeiro ano a gente natildeo tinha muitos recursos a gente natildeo tinha nem ideia do puacuteblico entatildeo a gente foi fazendo e as coisas foram acontecendo meio que naturalmente a gente fala que quando a gente estaacute com boa intenccedilatildeo as coisas caminham para o lado do bem para o caminho certo E foi um sucesso neacute [] E envolveu a famiacutelia todo mundo vinha e ajudava decorava as barracas a gente fazia plaquinhas E por mais que a gente tente planejar as coisas ficam pra uacuteltima hora tem que ir atraacutes de ldquonatildeo sei o quecircrdquo mas eu
201
acho que eles receberam muito bem a ideia 95 dos restaurantes que eram da roccedila participaram que era o grande objetivo nosso E eu acho que pra eles foi uma motivaccedilatildeo foi um resgate da autoestima que agraves vezes fica meio escondida por conta do corre corre do dia a dia [] E o festival a gente sempre teve a preocupaccedilatildeo de fazer um ambiente e fazer valores que fossem acessiacuteveis para o pessoal da cidade Entatildeo no domingo era uma deliacutecia porque a gente via que muitas donas de casa natildeo faziam o almoccedilo elas iam almoccedilar no festival em famiacutelia Porque a gente sempre partia do pressuposto de que pra cidade ser boa pro turista antes ela tem que ser muito boa pros moradores [] Entatildeo como os restaurantes eram daqui e na cidade todo mundo eacute parente a gente percebia que as pessoas iam pra prestigiar porque a comadre estava laacute porque a avoacute estava participando (Ex-diretora de Turismo Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
O aspecto participativo na elaboraccedilatildeo do Festival foi destacado pelas
entrevistadas natildeo somente a respeito da montagem da infraestrutura do evento mas
tambeacutem durante a idealizaccedilatildeo da primeira festividade bem como nas discussotildees sobre
as ediccedilotildees seguintes Os debates se davam no acircmbito das reuniotildees do COMTUR com a
participaccedilatildeo dos responsaacuteveis pelos estabelecimentos partiacutecipes de cada ediccedilatildeo e havia
certo orgulho em ressaltar a atuaccedilatildeo dos restaurantes da roccedila nesse processo que de
outra forma devido agraves dificuldades de transporte comunicaccedilatildeo e cultura poliacutetica
poderiam ter ficado alijados da inclusatildeo na organizaccedilatildeo do Festival Nas palavras da ex-
diretora de Turismo
Os donos desses restaurantes da roccedila foram com a gente pra Satildeo Paulo eles participavam das reuniotildees eles davam opiniatildeo Entatildeo o Festival foi construiacutedo por eles por todo mundo natildeo foi um projeto que o COMTUR ldquopegourdquo e fez A gente [COMTUR] direcionou mas a construccedilatildeo mesmo foi coletiva eu acho que foi por isso que a gente conseguiu realmente manter essa identidade e reforccedilar (Ex-diretora de Turismo Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
A quarta ediccedilatildeo do Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila de Gonccedilalves foi
realizada em dois finais de semana A programaccedilatildeo foi desenvolvida em uma praccedila de
alimentaccedilatildeo nomeada de ldquoPraccedila dos Sabores e Saberesrdquo Cada restaurante participante
ocupava um stand composto pelo fogatildeo mesa e um armaacuterio decorado onde ofertavam
a comida Alguns jaacute a traziam pronta ou preacute-preparada do seu proacuteprio restaurante
outros a cozinhavam neste espaccedilo As mesas para acomodaccedilatildeo dos frequentadores
estavam dispostas no centro da praccedila de alimentaccedilatildeo As mesas e os bancos eram
202
extensos coletivos induzindo os consumidores a partilharem as mesas de forma a
promover a sociabilidade a conversa e o conviacutevio
FIGURA 61 ndash Mesas e stands no 4o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Na ediccedilatildeo que se acompanhou a praccedila de alimentaccedilatildeo foi montada numa aacuterea
aberta que foi coberta com tendas de um lado do salatildeo de festas do Clube Recreativo
onde havia uma porta independente para a entrada do outro lado tambeacutem uma aacuterea
semiaberta com porta de entrada independente disponibilizaram-se os stands de
artesanato de produtos alimentares processados como geleias bolos patildees e de
divulgaccedilatildeo do Slow Food ldquoConviacutevio Terras Altas do Sapucaiacuterdquo No centro ficava o salatildeo
de festas onde acontecia a maior parte das apresentaccedilotildees culturais e que podia ser
acessado por ambos os lados graccedilas agraves suas portas laterais As aacutereas abertas tambeacutem se
comunicavam por um corredor atraacutes do salatildeo onde ficava o caixa do Festival
FIGURA 62 ndash Salatildeo de festas do Clube Recreativo de Gonccedilalves-MG
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
203
FIGURA 63 ndash Stand de Slow Food ldquoConviacutevio Terras Altas do Sapucaiacuterdquo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
A programaccedilatildeo cultural foi composta por apresentaccedilotildees musicais que
privilegiavam os artistas regionais ou locais tocando preferencialmente MPB muacutesica
caipira de viola mas tambeacutem muacutesica sertaneja e forroacute especialmente agrave noite quando o
puacuteblico se dispunha a danccedilar Ofertavam-se ainda oficinas workshops palestras e dias
de campo que variavam conforme a ediccedilatildeo da festa Na quarta versatildeo houve oficina de
gastronomia de fusatildeo com queijos de ovelha e cervejas artesanais e na segunda ediccedilatildeo
conforme material de divulgaccedilatildeo consultado aleacutem desta mesma oficina houve outras
de vinho coqueteacuteis melado iogurte caseiro bolos biscoitos broas receitas sem adiccedilatildeo
de accediluacutecar artesanato com fibra de bananeira entre outras As palestras na segunda
ediccedilatildeo (cujo folder com a programaccedilatildeo foi consultado) versavam sobre temas como
turismo rural agroecologia desenvolvimento rural sustentaacutevel composiccedilatildeo nutricional
de gastronomia de raiz e dia de campo nos siacutetios de agricultura orgacircnica certificada
FIGURA 64 ndash Oficina de queijos de ovelha e cervejas artesanais ndash Gastronomia de fusatildeo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
204
Algumas apresentaccedilotildees que fizeram parte da programaccedilatildeo cultural davam
visibilidade a aspectos tradicionais da cultura local como a apresentaccedilatildeo da Congada
Satildeo Benedito o Desfile de Carros de Boi e os proacuteprios grupos musicais jaacute mencionados
com artistas locais ou de cidades vizinhas Algumas apresentaccedilotildees tambeacutem estavam
ligadas aos programas sociais e culturais desenvolvidos pela gestatildeo municipal com
apresentaccedilotildees musicais infantis como a Lira Infantil e o Grupo Infantil de Flauta da
escola municipal do Grupo de Melhor Idade IONG ou a exposiccedilatildeo de artesanato do
projeto de inclusatildeo de pessoas com necessidades especiais o PINGO
Segundo os relatos nas ediccedilotildees anteriores do Festival realizava-se um preacute-
lanccedilamento no ldquoEspaccedilo Minas Geraisrdquo em Satildeo Paulo-SP um centro de referecircncia de
negoacutecios e promoccedilatildeo do turismo e da cultura mineiros (PROGRAMA DE TURISMO
DE NEGOacuteCIOS E EVENTOS DE BELO HORIZONTE 2015) na Avenida Paulista
quando se apresentava agrave imprensa e a formadores de opiniatildeo o evento visando sua
divulgaccedilatildeo na miacutedia Tambeacutem se costumava realizar no primeiro dia do evento de cada
ediccedilatildeo a sexta-feira agrave noite uma celebraccedilatildeo privada de cortesia destinada a
convidados ilustres colaboradores do Festival e tambeacutem a imprensa e formadores de
opiniatildeo Na quarta ediccedilatildeo natildeo houve o preacute-lanccedilamento em Satildeo Paulo nem o evento para
convidados sendo o primeiro dia a sexta-feira aberto ao puacuteblico para a
comercializaccedilatildeo dos pratos
A primeira ediccedilatildeo do Festival natildeo teve uma temaacutetica especiacutefica centrando-se
apenas no nome do evento Na segunda ediccedilatildeo o tema foi ldquoA comida da vovoacuterdquo Nos
dois uacuteltimos anos o Festival privilegiou temaacuteticas relativas aos produtos agriacutecolas
tiacutepicos da regiatildeo ou da cultura rural utilizados como mateacuteria-prima na cozinha da roccedila
Assim em 2013 o tema foi ldquoUai noacutes temos banana tameacutemrdquo num jogo de linguagem
que utilizou uma expressatildeo de interjeiccedilatildeo tiacutepica do falar mineiro ldquouairdquo e uma paraacutefrase
da composiccedilatildeo musical ldquoYes noacutes temos bananardquo de Braguinha famosa na voz da
cantora brasileira Carmem Miranda O logotipo dessa ediccedilatildeo tambeacutem se apropriou da
bandeira de Minas Gerais de forma que ao redor de um triacircngulo amarelo cujas cores
remetem agrave fruta distribuem-se os trechos da frase em cada lado do poliacutegono de maneira
que a palavra ldquotameacutemrdquo (corruptela de ldquotambeacutemrdquo) ficasse em sua base em alusatildeo agrave
mesma posiccedilatildeo da palavra tamen na bandeira do Estado A escolha do tema privilegiou
uma das maiores produccedilotildees agriacutecolas do municiacutepio na atualidade a banana que
tambeacutem se constituiacutea em objeto de celebraccedilatildeo em Gonccedilalves no mecircs de janeiro No ano
205
de 2014 o tema escolhido foi ldquoSabores do Milho da Roccedilardquo Nestas duas uacuteltimas
ediccedilotildees portanto os restaurantes deveriam elaborar os seus pratos utilizando esses
ingredientes na sua composiccedilatildeo respectivamente
FIGURA 65 ndash Cartaz de divulgaccedilatildeo do 1o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila
Fonte Departamento de Turismo e Cultura de Gonccedilalves e COMTUR
FIGURA 66 ndash Cartaz de divulgaccedilatildeo do 2o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila
Fonte Departamento de Turismo e Cultura de Gonccedilalves e COMTUR
206
FIGURA 67 ndash Guia Gastronocircmico do 3o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila
Fonte Departamento de Turismo e Cultura de Gonccedilalves e COMTUR
Diagramaccedilatildeo ilustraccedilatildeo e fotografia Roberto Torrubia
FIGURA 68 ndash Cartaz de divulgaccedilatildeo do 4o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila
Fonte Departamento de Turismo e Cultura de Gonccedilalves e COMTUR
No quadro que se segue eacute possiacutevel ver um resumo do cardaacutepio ofertado na 4ordf
ediccedilatildeo do Festival com os seus respectivos chefs e restaurantes
207
QUADRO 9 ndash Menu do 4o Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila PRATO DESCRICcedilAtildeO RESTAURANTE LOCAL CHEFCOZINHEIRO
Paccediloca de pilatildeo agrave mineira
Paccediloca de pilatildeo arroz tutu de feijatildeo lombo
torresmo polenta frita linguiccedila
Ao Peacute da Pedra Bairro Rural Terra Fria
Eni Ribeiro e Sandra Ribeiro
Carne de lata com polenta
Carne de lata tutu de feijatildeo arroz e polenta
Restaurante da Vilma
Bairro Rural dos
Venacircncios
Vilma Rosa
Janelim de Mio Bolinho de milho recheado de queijo
canastra e milho verde acompanhada de batida de milho com cachaccedila
Janelas com Tramela
Centro Seacutergio Mota Flaacutevia Silva e Elaine Tobias
Mil folhas de polenta caipira com ragu de rabada com
ora-pro-noacutebis
Polenta ragu de rabada e ora-pro-noacutebis
Noacute de Pinho Bairro Rural Retiro
Caio Dias
Espaguete caseiro ao molho de milho
Espaguete caseiro com creme de milho verde e cestinha de parmesatildeo
com milho fresco
Rosa Madeira Centro Yoshikazu Awata e Adriana Souza
Nhoque de milho Nhoque de farinha de milho com molho de
queijo meia cura
Cozinha do COMTUR
- Luiz Fernando Boacnin
Milheirinho com queijo
Arroz feijatildeo couve torresmo angu com queijo carne de lata
Restaurante Trecircs Irmatildes
Bairro Rural do Juncal
Viviane Tatiane e Cristiane
Trem Batildeo Bolinho de milho farofa de milho arroz feijatildeo
pernil
Restaurante Zeacute Oviacutedeo
Bairro Rural Terra Fria
Gloacuteria de Paula
Bem Mineiro Arroz tutu de feijatildeo couve refogada costela
de porco e ovo frito
Restaurante e Pizzaria
Varandinha
Bairro Rural Lambari
Greuza
Tico Tico no Fubaacute Bolo cremoso de fubaacute com sorvete de creme ou milho verde e calda de
geleia de erva doce
A Senhora das Especiarias
Centro Fernanda Kurebayashi
Fuzaquinha Caipira
Broinha de fubaacute gratinada com queijo meia cura creme de milho verde e frango desfiado com
ervas aromaacuteticas
Forneria da Roccedila Centro Elenira Arakilian
Tempuraacute Daki Tempuraacute com milho e legumes molho chutney de cebola picante com
shoyo
Bar Libertas Patildeo e Circo
Centro Dani Lima Fernanda Kurebayashi e Luiz
Quirerinha Quirerinha com carne suiacutena ou vegetariana lombo assado no bafo com arroz branco ou agrave grega salada de feijatildeo fradinho e creme de
milho
Lanchonete e Restaurante Carlatildeo
Lanches II
Centro Carlos Silva
Panquecas Panqueca de frango com milho de lombo molho e
queijo de pizza ou panqueca doce
Bar do Zezeacute Bairro Rural Lambari
Isabela Torres
Pastel de curau Pastel de curau de truta Pastelaria do Maneacute Centro Maneacute Salete Gisele e
208
defumada ou de camaratildeo Samuel Geleias Geleias molhos
temperos queijo iogurte doce de leite broa de milho cremosa patildeo de queijo e produtos in
natura
Siacutetio Trecircs Barras Bairro Rural Trecircs Barras
Maria Joseacute Andrade
Linguiccedila Caseira Porccedilotildees de linguiccedila de porco caseira com farinha
de milho
Venda do Ditatildeo Bairro Rural Atraacutes da Pedra
Maria Helena
Fonte Elaborado e adaptado por Lidiane Nunes da Silveira com base no Guia Gastronocircmico do 4ordm Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila (projetado pelo Departamento de Turismo e Cultura de
Gonccedilalves COMTUR com diagramaccedilatildeo ilustraccedilatildeo e fotografias de Roberto Torrubia)
Em linhas gerais os pratos servidos nesta ediccedilatildeo do Festival poderiam ser
classificados em trecircs grupos No primeiro se enquadravam os pratos dos ldquorestaurantes
da roccedilardquo que serviam variaccedilotildees do que se podia considerar como a comida ldquotiacutepicardquo e
ldquotradicionalrdquo mineira nos moldes descritos por Abdala (2007) Primeiramente porque a
autora constatou que a partir dos anos 1980 o que era considerado o prato tiacutepico e
tradicional em Minas passou a ser elaborado nas casas apenas em finais de semana ou
ocasiotildees festivas estando relativamente ausentes nas rotinas alimentares domeacutesticas
Isto em decorrecircncia 1) do aumento do nuacutemero de mulheres no mercado de trabalho 2)
porque teria havido segundo Abdala (2007) um deslocamento desse cardaacutepio tiacutepico e
tradicional mineiro das casas do mundo privado para o mundo puacuteblico dos
restaurantes Alguns pratos tiacutepicos do periacuteodo colonial se encontravam representados no
menu do Festival tutu de feijatildeo couve torresmo angu farofa paccediloca de farinha com
carne lombo ou pernil assados e canjiquinha (quirerinha) de milho com carne de porco
O arroz a carne de vaca e as quitandas como o patildeo de queijo e a broa de fubaacute
provenientes do uso do leite queijo e ovos tambeacutem faziam parte segundo Abdala
(2007) do tiacutepico e tradicional mineiro embora tenham sido incorporados aos padrotildees
alimentares no seacuteculo XIX quando se tornaram mais abundantes
Nesse caso as quitandas e os lanches servidos no Festival fariam parte de um
segundo grupo identificado nos pratos do menu Eles eram servidos por empoacuterios que
fabricavam suas proacuteprias geleias na cidade permitindo combinaccedilotildees tradicionais como
a broa ou bolo de fubaacute ou milho e o patildeo de queijo com uma geleia de sabores variados
Estes empoacuterios tambeacutem expunham seus produtos para a comercializaccedilatildeo nos stands
durante o Festival e costumavam ser um atrativo do turismo gastronocircmico na cidade A
oferta de bolos biscoitos patildees de queijo broas e roscas chamados no Festival de
209
ldquoquitutesrdquo tambeacutem eram disponibilizadas pelas ldquoquituteirasrdquo tradicionais que viviam
nos bairros rurais e vendiam tais produtos rotineiramente Entre estes quitutes a
populaccedilatildeo local destacava a broa de pau-a-pique feita de fubaacute de milho e accediluacutecar e
assada na folha de bananeira em forno de barro como a quitanda tiacutepica da regiatildeo No
cotidiano os quitutes costumavam ser assados em fornos de barro caracteriacutestica
ressaltada pelos moradores como especiais e tradicionais No Festival a organizaccedilatildeo
buscou representar esse cotidiano tendo construiacutedo jaacute na primeira ediccedilatildeo do Festival
em 2011 uma fornalha e um fogatildeo a lenha na aacuterea externa das dependecircncias do Clube
para serem utilizados pelas quituteiras durante o evento As quituteiras vinham de suas
residecircncias nos bairros rurais especialmente Dona Dita (do Sertatildeo do Cantagalo e
apontada pelos moradores da cidade e organizadores do evento como uma das
quitandeiras mais tradicionais de Gonccedilalves) e preparavam biscoitos e patildees de queijo agraves
vistas dos frequentadores que assistiam ao processo como uma atraccedilatildeo cultural do
Festival Os quitutes eram assados na fornalha e consumidosvendidos ainda quentes
assim que retirados do forno Todo o processo de aquecimento da fornalha de assar e
retirar os quitutes era assistido pelos frequentadores do Festival Alguns quitutes eram
preparados em casa e vendidos no Festival pelas quituteiras embora uma delas
preparasse o cafeacute na hora utilizando o fogatildeo a lenha Algumas tambeacutem vendiam
produtos da confeitaria moderna como pudins e bombons degustados como
sobremesas pelos comensais
FIGURA 69 ndash Fornalha e fogatildeo a lenha
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
210
FIGURA 70 ndash Broa de pau-a-pique
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 71 ndash Quituteiras Dona Dita Aline e Cida
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Havia tambeacutem os pratos natildeo tiacutepicos que utilizavam teacutecnicas proacuteprias da
cozinha contemporacircnea ou receitas inspiradas na gastronomia de outros paiacuteses
especialmente as massas Ainda assim a temaacutetica do Festival centrada no milho
direcionava os restaurantes e bares ao uso do ingrediente ldquotiacutepicordquo mineiro assim como
se percebia a reelaboraccedilatildeo de outros ingredientes tradicionais ainda que natildeo fossem
obrigatoacuterios ou re-atualizaccedilotildees de teacutecnicas inspiradas na cozinha mineira da roccedila Por
outro lado foi curioso observar como os pratos considerados como da roccedila e tiacutepicos
mineiros eram tambeacutem uma variaccedilatildeo regional cultural e histoacuterica do prato mais
comumente consumido pelos brasileiros no cotidiano ou seja o arroz o feijatildeo e a
carne Segundo a pesquisa sobre os haacutebitos alimentares feita por Barbosa (2007) o
arroz com feijatildeo que se identifica como uma comida que faz parte da rotina dos
brasileiros entraria menos frequentemente nas refeiccedilotildees de finais de semana ou nas
ocasiotildees festivas No Festival o arroz com feijatildeo eram celebrados e degustados como
pratos identitaacuterios assim como os pratos tipicamente mineiros Nesse caso obviamente
211
a forma de preparo diferia a comida da roccedila da comida de rotina jaacute que o feijatildeo destes
restaurantes geralmente era o ldquotuturdquo e a carne ldquode latardquo apresentados como tendo
processos de cocccedilatildeo especiais Estes pratos tiacutepicos remetiam os consumidores agraves ideias
de frescor carinho no preparo de memoacuteria e nostalgia que a comida caseira mineira e
da roccedila lhes despertava
A exposiccedilatildeo do artesanato agrave venda no Festival tambeacutem fazia uso da
performance tecendo-se num tear manual durante o evento Aleacutem da tecelagem crocheacute
e patchwork vaacuterios expositores tinham agrave venda pinturas esculturas artesanato em
palha de milho e fibra de bananeira habituais na regiatildeo aleacutem de cabaccedilas e
reaproveitamento de materiais como garrafas plaacutesticos e caixas de foacutesforo Algumas
peccedilas artesanais foram utilizadas como elemento decorativo aleacutem de outros
instrumentos tiacutepicos do trabalho no campo o carro de boi a sela o balaio a lata de
leite produtos como o milho crioulo e objetos da cultura rural como raacutedios antigos
FIGURA 72 ndash Tear
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 73 ndash Artesanato em palha de milho
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
212
FIGURA 74 ndash Sela e balaios
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 75 ndash Carro de boi e milho
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 76 ndash Raacutedio antigo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
213
Como jaacute foi comentado anteriormente cada stand de restaurante tambeacutem fazia
sua decoraccedilatildeo normalmente remetendo aos elementos decorativos de seu
estabelecimento Segundo a ex-diretora de Turismo o uacutenico aparato decorativo sugerido
para todos os stands era o armaacuterio que poderia ser ornamentado livremente Por fim a
identidade visual possibilitada respectivamente pelo logotipo do Festival e da ediccedilatildeo
integravam o ambiente por meio de banners brochuras de programaccedilatildeo e os cartazes
que identificavam os estabelecimentos e seu cardaacutepio
FIGURA 77 ndash Armaacuterio decorativo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 78 ndash Detalhe decorativo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
214
FIGURA 79 ndash Detalhe decorativo
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
As apresentaccedilotildees culturais conforme jaacute se destacou anteriormente procuravam
privilegiar a muacutesica brasileira especialmente o que os entrevistados organizadores do
Festival consideravam como muacutesica de raiz ou seja muacutesica caipira de viola e artistas
regionais As apresentaccedilotildees ocorriam nas noites das sextas-feiras nas tardes e noites dos
saacutebados e nas tardes dos domingos de Festival Nas noites de sexta-feira da 4a ediccedilatildeo
apresentaram-se o ldquoGrupo de Viola Alma Caipirardquo e a ldquoMusicaterapia de Aloiacutesio
Beckerrdquo que eram tidos pelos organizadores como apresentaccedilotildees dentro de um
formato contemporacircneo e de raiz assim como os shows das tardes dos saacutebados e
domingos que contaram com a ldquoBanda Legacyrdquo ldquoAna Juacutelia Voz e Violatildeordquo a dupla
ldquoCampo Belo e Companheirordquo e ldquoCatireiros da Mantiqueirardquo grupo ldquoFarofa Mineirardquo
coral ldquoLinda Juventuderdquo Nas noites de saacutebado os shows tinham caraacuteter mais popular e
danccedilante com apresentaccedilotildees do ldquoForroacute do Marcatildeordquo ldquoLucas Barros amp Vitalrdquo ldquoTiatildeo amp
Paulinho e Bandardquo Aconteceram ainda apresentaccedilotildees musicais realizadas pelas
crianccedilas ldquoLira Infantilrdquo e pelos idosos ldquoOrquestra de Panelasrdquo executada pelo Grupo
da Terceira Idade IONG No domingo de encerramento do Festival aconteceu o Desfile
de Carros de Boi com cerca de 25 carros de Gonccedilalves e cidades da regiatildeo
215
FIGURA 80 ndash Dupla Campo Belo e Companheiro e Catireiros da Mantiqueira
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
FIGURA 81 ndash Desfile de Carros de Boi
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Na estimativa dos organizadores cerca de cinco mil pessoas visitaram o Festival
nos dois finais de semana na ediccedilatildeo de 2014 (COSTA 2014) Os consumidores que
responderam ao questionaacuterio no primeiro final de semana eram a maioria da capital
de Satildeo Paulo enquanto que no segundo os frequentadores declararam ter vindo de
cidades mais proacuteximas como Satildeo Joseacute dos Campos no Estado de Satildeo Paulo Pouso
Alegre e Paraisoacutepolis no Estado de Minas Gerais A circulaccedilatildeo de frequentadores e
consumidores variava ao longo do dia sendo mais intensa a partir do horaacuterio do
almoccedilo apoacutes o meio-dia diminuindo ao final da tarde e aumentando novamente agrave noite
Aparentemente o puacuteblico diurno caracterizava-se por uma maioria de turistas enquanto
agrave noite havia uma maior concentraccedilatildeo da populaccedilatildeo local Tambeacutem parecia haver
algumas diferenccedilas na apreciaccedilatildeo das atraccedilotildees a maioria do puacuteblico que prestigiava as
apresentaccedilotildees culturais especialmente agrave noite era formada pelos moradores de
216
Gonccedilalves enquanto os atrativos gastronocircmicos aleacutem de serem apreciados pelos
residentes contavam com o consumo por parte dos turistas e moradores de segunda
residecircncia
Nesse sentido enquanto as expressotildees culturais musicais pareceram ter
despertado processos identificadores na populaccedilatildeo local a gastronomia pareceu ter
maior apelo entre os turistas funcionando como um marcador social da diferenccedila De
acordo Bourdieu (2013) a alimentaccedilatildeo se constitui num campo onde se pode operar os
mecanismos de gosto e apreciaccedilatildeo de forma a construir distinccedilotildees de classe Collaccedilo
(2013) tambeacutem destaca como o proacuteprio conceito de gastronomia tende a ser atrelado agraves
noccedilotildees de ldquobom gostordquo distinccedilatildeo e processo civilizatoacuterio tal como o apontou Elias
(1993 2011) Todavia o que interessa observar eacute que estas noccedilotildees de refinamento e
distinccedilatildeo satildeo recodificadas socialmente mediante um processo de valorizaccedilatildeo do
campo e do rural que satildeo invocados para ressignificar a tradiccedilatildeo as praacuteticas culinaacuterias
da cozinha regional a natureza e os alimentos que remetem ao consumo dos tempos de
outrora Collaccedilo (2013) destaca como a partir dos anos 1980 esta valorizaccedilatildeo das
culturas alimentares regionais se acentua Elas passam a ser pensadas em termos de
localidade contrapondo-se agrave perspectiva de ameaccedila agrave dissoluccedilatildeo de suas caracteriacutesticas
particulares mediante os processos de globalizaccedilatildeo A autora destaca como para
Johnston e Baumann (2009) o consumo de comidas populares tambeacutem teria se tornado
um processo de distinccedilatildeo
Consumir o popular tambeacutem eacute parte do que se considera gastronomia pois realccedila o conviacutevio com a diversidade valor em alta no mundo contemporacircneo e revela uma habilidade de lidar com o diferente Mas neste ponto seria interessante retomar a discussatildeo anterior na verdade este consumo da diferenccedila perpetua e manteacutem as fronteiras sob controle uma vez que eacute um consumo delimitado esporaacutedico exoacutetico e de certa maneira descontextualizado da loacutegica que organiza determinada cozinha No fundo seria um controle da diferenccedila mantida em seu lugar e valorizada no discurso da gastronomia (COLLACcedilO 2013 p 212)
Ou seja a valorizaccedilatildeo das cozinhas regionais na gastronomia e pelos seus
adictos seria perpassada por ambiguidades Ao mesmo tempo em que promove a
experiecircncia da alteridade tambeacutem aciona os marcadores sociais da diferenccedila Dias
(2009) embora em texto jornaliacutestico que natildeo aponte as evidecircncias do argumento
tambeacutem ressalta como a valorizaccedilatildeo dos produtos tradicionais ao inveacutes de referendar a
217
histoacuteria a tradiccedilatildeo e o territoacuterio aleacutem dos valores de sustentabilidade proteccedilatildeo da
biodiversidade e justa remuneraccedilatildeo de pequenos produtores pode servir como um
processo de distinccedilatildeo social Por outro lado Collaccedilo (2013) tambeacutem sugere que o
interesse pela gastronomia por parte de amadores e apreciadores pode estar relacionado
a uma acircnsia de afirmaccedilatildeo e reconhecimento da individualidade diante da fragmentaccedilatildeo
da vida contemporacircnea o que poderia ser percebido na identificaccedilatildeo com a culinaacuteria
tradicional de raiz pela busca de uma origem Esse processo de busca de
identificadores por meio da gastronomia tambeacutem pode estar relacionado com certas
tendecircncias na culinaacuteria contemporacircnea que apontam para os processos afetivos
relacionados agrave comida como o Comfort Food e o Soul Food conforme apontam
Lauand e Chasseraux (2012) Estas satildeo perspectivas que refletem sobre o mecanismo
que a comida tem de novamente promover a nostalgia os apelos sentimentais e da
memoacuteria especialmente de uma infacircncia feliz mesmo que idealizada Tais experiecircncias
alimentares estariam invariavelmente ligadas agrave ldquocomida da vovoacuterdquo agrave ldquocomida de matildeerdquo agrave
vida domeacutestica e familiar
Da mesma forma movimentos como o Slow Food tecircm arregimentado seguidores
e proposto reflexotildees a respeito das escolhas alimentares privilegiando os alimentos
locais guiando-se pela triacuteade de princiacutepios do alimento bom com ecircnfase no sabor e no
prazer de comer limpo incentivando o consumo de alimentos cultivados sem
agrotoacutexicos e sem riscos ambientais e justo beneficiando a remuneraccedilatildeo adequada
especialmente aos pequenos produtores bem como o custo razoaacutevel aos
consumidores23 Nesse sentido a gastronomia parece refletir algumas mudanccedilas tiacutepicas
da sociedade poacutes-fordista da mesma forma que elas tecircm sido aqui identificadas em
termos dos usos e significados da categoria roccedila
Essas mudanccedilas que apoacutes 1970 acentuam as configuraccedilotildees sociais em torno do
consumo deslocando o eixo da produccedilatildeo podem se refletir tambeacutem no campo do
consumo de alimentos Por um lado a necessidade de se produzir novas formas de
distinccedilatildeo social por meio dos haacutebitos alimentares pode ter insuflado nas camadas da
elite urbana o interesse pelos produtos caseiros artesanais e tradicionais valorizando
culinaacuterias simples em detrimento ao refinado como forma de se diferenciar da ascensatildeo
da classe meacutedia que passam a fazer parte de forma mais ampla da sociedade de
23 Informaccedilotildees disponiacuteveis no material impresso de divulgaccedilatildeo do Slow Food distribuiacutedo durante o Festival pela representante do Conviacutevio Terras Altas do Sapucaiacute
218
consumo como indicam Neacuteri (2012) e Pochmann (2012) Esses processos de
diferenciaccedilatildeo ao lado das questotildees de classe tambeacutem se fundam no comportamento
tiacutepico de espaccedilos com altos graus de urbanizaccedilatildeo como a regiatildeo metropolitana de Satildeo
Paulo origem da maior parte dos turistas e moradores de segunda residecircncia em
Gonccedilalves
Por outro lado o apelo a uma culinaacuteria simples de raiz como a da comida da
roccedila pode estar ligado a este mesmo processo de urbanizaccedilatildeo que no Brasil se deu de
forma acelerada entre os anos 1950 e 1980 de acordo com Brito e Pinho (2012)
especialmente devido agrave migraccedilatildeo campo-cidade o que faz com que o imaginaacuterio rural
seja ainda muito presente em geraccedilotildees de migrantes e seus descendentes nos grandes
centros urbanos Pode-se destacar ainda que as mudanccedilas no campo do consumo que
se constituem como caracteriacutesticas da sociedade poacutes anos 1970 (MILLER 1987
PORTILHO 2005) e aqui sublinha-se a gastronomia e os haacutebitos alimentares em geral
parecem estar permeadas de ambiguidades se pode haver uma re-atualizaccedilatildeo do
processo de distinccedilatildeo em curso tambeacutem parece haver um processo de politizaccedilatildeo e
ambientalizaccedilatildeo do consumo nos termos propostos por Portilho (2005) e que pode ser
percebido na temaacutetica aqui estudada por meio da associaccedilatildeo entre roccedila e natureza pelo
consumo de produtos naturais e em Gonccedilalves pelo espaccedilo conquistado pela
agricultura orgacircnica e movimentos como o Slow Food Na proacutexima seccedilatildeo seratildeo
examinadas as relaccedilotildees entre os significados da categoria roccedila em Gonccedilalves e a
diversidade de grupos sociais que compotildeem o campo deste municiacutepio
44 As categorias roccedila em Gonccedilalves
Nos guias gastronocircmicos da 3ordf e 4ordf ediccedilotildees do Festival de Gastronomia e Cultura
da Roccedila de Gonccedilalves o texto de apresentaccedilatildeo fazia referecircncia agrave roccedila como ldquoa rainhardquo
numa alusatildeo ao poema de Manuel Bandeira Vou me embora pra Pasaacutergada conforme
pode ser visto no trecho a seguir
Bem vindo a Gonccedilalves aqui vocecirc eacute amigo do Rei Mas que rei eacute esse Eacute mais uma rainha a Roccedila Na roccedila tudo eacute diferente o leite vem da vaca o ovo da galinha a batata daacute no tempo certo e a banana soacute vai granar no tempo dela Tempo esse sim o rei O tempo eacute no final o
219
mais importante da vida Entatildeo quando aqui chegar fique tranquilo que ganharaacute tempo de vida a comida eacute boa as matas satildeo verdes as cachoeiras lindas Afora isso muacutesica e poesia por todo lado e essa gente simples e simpaacutetica que se chama mineiro (PREFEITURA MUNICIPAL DE GONCcedilALVES 2014)24
Conforme jaacute foi ressaltado no iniacutecio deste capiacutetulo e na introduccedilatildeo deste
trabalho em Gonccedilalves havia a percepccedilatildeo de alguns agentes da gestatildeo de turismo e
patrimocircnio bem como de alguns indiviacuteduos da iniciativa privada de que a roccedila eacute um
capital turiacutestico no municiacutepio que se revela como um atrativo para o visitante e eacute
explorada na sua publicidade agraves vezes de forma expliacutecita como bem o representa o
Festival de Gastronomia e Cultura da Roccedila Mas na vivecircncia cotidiana conforme se
pocircde notar por meio da observaccedilatildeo participante a categoria roccedila tambeacutem eacute veiculada a
todo momento fazendo parte portanto natildeo soacute do gecircnero do discurso complexo
relacionado aos mecanismos oficiais e institucionais de divulgaccedilatildeo do turismo local
mas tambeacutem do gecircnero do discurso simples nos enunciados produzidos na interaccedilatildeo
verbal cotidiana dos residentes (BAKHTIN 2003)
Para compreender os usos e significados da categoria roccedila em Gonccedilalves eacute
preciso observar a diversidade social local e identificar a quais grupos sociais os
entrevistados pertencem Os entrevistados podem ser classificados basicamente em trecircs
grupos indiviacuteduos naturais de Gonccedilalves que viveram a maior parte da vida no
municiacutepio seja no campo ou na cidade no qual se inclui a maioria dos proprietaacuterios de
restaurantes da roccedila Um segundo grupo eacute formado por pessoas naturais de Gonccedilalves
mas que passaram parte dos uacuteltimos anos vivendo em outro municiacutepio para estudar ou
trabalhar mas retornaram agrave cidade e nela vivem e trabalham No terceiro grupo como
se pode supor enquadram-se os indiviacuteduos naturais de outros municiacutepios que passaram
parte de suas vidas em outras cidades notadamente em sociedades mais urbanizadas
que Gonccedilalves mas escolheram se mudar e viver nesta cidade Estes grupos seratildeo
denominados aqui de ldquoantigos residentesrdquo ldquoregressosrdquo e ldquonovos residentesrdquo
respectivamente Destaca-se contudo que os termos antigos ou novos residentes natildeo se
referem ao tempo de moradia dos indiviacuteduos em Gonccedilalves que pode ser relativamente
longo nos dois casos mas agrave origem deles onde nasceram foram socializados as
profissotildees que adotavam Tambeacutem se enfatiza que essa categorizaccedilatildeo visa apenas a
24 Natildeo haacute referecircncia do autor do texto
220
facilitar o entendimento as condiccedilotildees reais de vida dos sujeitos entrevistados satildeo mais
complexas Portanto os criteacuterios para caracterizaacute-los aqui satildeo as escolhas de partir ou
ir para Gonccedilalves Apesar dos ldquonovos residentesrdquo se enquadrarem tambeacutem nas
configuraccedilotildees sociais que autores como Giuliani (1990) e Entrena-Duraacuten (2012)
identificam como neorrurais optou-se aqui por natildeo utilizar tal conceito para defini-los
uma vez que suas inserccedilotildees em Gonccedilalves eram muito diversas Alguns atuavam na
agricultura jaacute outros desenvolviam atividades natildeo-agriacutecolas Em comum tinham o fato
de terem escolhido morar no campo
Feitas tais observaccedilotildees destaca-se que em Gonccedilalves foi possiacutevel identificar
todas as categorias relativas aos usos e significados do termo roccedila jaacute descritas no
capiacutetulo 2 Enquanto algumas categorias foram notadas de forma mais contundente e se
apresentavam mais densamente no discurso da populaccedilatildeo de Gonccedilalves outras eram
menos niacutetidas mas efetivas Assim destaca-se que com base na observaccedilatildeo participante
e nas entrevistas aos residentes em geral em Gonccedilalves a categoria roccedila era bastante
associada ao ldquocampordquo e ao ldquoruralrdquo bem como agravequilo que poderia ser considerado seu
extremo oposto ou seja a roccedila ldquoestilizadardquo categoria esta bastante negligenciada na
maioria das entrevistas e questionaacuterios aplicados tanto em Belo Horizonte quanto em
Gonccedilalves Associada agrave roccedila como sinocircnimo de ldquoruralrdquo apareceram ainda que menos
frequentemente a alusatildeo agrave ldquotradiccedilatildeordquo agrave ldquoMinas Geraisrdquo e agrave cultura ldquocaipirardquo bem como
uma forma de se referir a elas a depender do caso ldquoromacircnticardquo e ldquonostaacutelgicardquo E
embora a questatildeo da ldquonaturezardquo fosse evidente em Gonccedilalves a sua associaccedilatildeo com a
categoria roccedila era menos oacutebvia o que natildeo significa que natildeo fosse perceptiacutevel aos olhos
dos entrevistados
O uso do termo roccedila como sinocircnimo de ldquocampordquo foi notado em Gonccedilalves
tanto na sua organizaccedilatildeo socioespacial quanto no discurso dos moradores do municiacutepio
Conforme jaacute se salientou nas paacuteginas anteriores 724 (IBGE 2015) da populaccedilatildeo de
Gonccedilalves vivia no campo distribuiacutedos em mais de vinte bairros rurais Neles as
famiacutelias rurais distribuiacuteam-se nos siacutetios de suas propriedades relativamente proacuteximos
A diretora de Turismo afirmou que alguns bairros carregavam o sobrenome das famiacutelias
que ocupavam tal espaccedilo originariamente como por exemplo o Bairro dos Venacircncios
ou o Bairro dos Neves mas tambeacutem havia relatos de famiacutelias proprietaacuterias de um bairro
inteiro embora este natildeo carregasse o sobrenome da famiacutelia como relata uma
entrevistada ldquoMeu pai nasceu num bairro aqui quando desce a serra no Bairro Trecircs
221
Barras eacute o segundo bairro Eu nasci e criei ali E a minha matildee no Sertatildeo do Cantagalo
o meu avocirc era dono daquilo tudo laacuterdquo (Proprietaacuteria de pousada Gonccedilalves setembro de
2014)
Embora natildeo se tenha tido a oportunidade de aprofundar a investigaccedilatildeo sobre a
vida social nos bairros rurais destaca-se que uma das caracteriacutesticas marcantes a este
respeito que pocircde ser notada foram as festas religiosas catoacutelicas em homenagem aos
santos padroeiros de cada bairro que marcavam um calendaacuterio de eventos da cidade
Estas festas eram especialmente prestigiadas pela populaccedilatildeo local mas tambeacutem
pareciam atrair alguns turistas sobretudo aqueles que possuiacuteam propriedades nestes
bairros aqui denominados de segundos residentes mas que em Gonccedilalves eram
chamados genericamente de turistas pela populaccedilatildeo local No relato abaixo eacute possiacutevel
compreender alguns detalhes das festas nos bairros rurais
Eacute festa na Igreja [] Faz leilatildeo tem o bingo leitoa frango assado e os brindes que o povo daacute pra festa entatildeo tem bingo toda noite [] Tem missa procissatildeo muacutesica de artista regional mais eacute o sertanejo eacute a viola [] Todos os bairros tecircm festa acho que satildeo 23 Tem a igreja o padroeiro e trecircs dias de festa na aacuterea rural De maio a setembro eacute festa toda semana Ali nos Remeacutedios tem a festa do Remeacutedio a festa do Satildeo Joaquim e do Satildeo Sebastiatildeo que eacute no asfalto embaixo Logo mais agrave frente tem a festa do Satildeo Laacutezaro e laacute na Barra tem outra festa de Nossa Senhora quatro festas soacute ali Depois tem no [Bairro] Atraacutes da Pedra Ribeiratildeozinho nos Piquiras Satildeo sete festas soacute nesse pedaccedilo aiacute Depois tem no Mundo Novo tem no Cantagalo tem no Satildeo Sebastiatildeo Venacircncios Terra Fria e Campestre Satildeo quatro festas aqui pra cima Tem um uacutenico lado que soacute tem uma festa que eacute a festa do Satildeo Joatildeo Os turistas que tecircm propriedade nessas aacutereas rurais frequentam gostam de festa Aqui no Bairro dos Venacircncios na primeira segunda-feira de agosto eacute a festa eacute a festa que tem mais gente faz o triacuteduo faz novena e quermesse Eacute muita leitoa assada frango assado e cachaccedila Todo ano tem um casal que eacute o festeiro que organiza essas festividades (Proprietaacuterio de restaurante Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
222
FIGURA 82 ndash Igreja de Nossa Senhora dos Remeacutedios no Bairro Rural dos Remeacutedios
Fonte Lidiane Nunes da Silveira
Os bairros nesse sentido reproduziam os laccedilos de parentesco reciprocidade e
sociabilidade no campo constituindo-se em micro organizaccedilotildees sociais que tendiam a
recompensar as perspectivas de isolamento que costumavam ser apontadas como
caracteriacutesticas do campesinato brasileiro historicamente Pocircde-se notar portanto a
persistecircncia de tais bairros rurais em termos demograacuteficos sobretudo bastante
expressivos Estes pareciam corresponder agraves configuraccedilotildees dos bairros rurais descritos
por Queiroz (1973) Moura (1978) e Candido (2010) a respeito do campesinato
brasileiro especialmente na regiatildeo de cultura caipira nas terras paulistas apontados por
Moura (1978) para o caso de Minas Gerais numa regiatildeo proacutexima a Gonccedilalves no
municiacutepio de Itajubaacute Destaca-se a dinacircmica desses bairros rurais hoje em Gonccedilalves
uma vez que todos os ldquonovos residentesrdquo entrevistados e alguns dos ldquoregressosrdquo
moravam no campo nesses bairros aleacutem da pesquisa de Barbosa R (2014) ter
demonstrado que apoacutes um periacuteodo de queda da populaccedilatildeo rural em Gonccedilalves entre os
anos de 1970 a 1990 ela teria voltado a crescer ateacute os anos 2000 e se mantido
praticamente estaacutevel ateacute 2010 (BARBOSA R 2014 p 77)
A roccedila era tomada ainda como sinocircnimo de ldquolavourardquo especialmente entre os
ldquoantigos residentesrdquo que viviam no campo e se dedicavam agrave agricultura e hoje satildeo
proprietaacuterios de restaurantes eou pousadas na sua propriedade Entretanto estes se
referiam agrave roccedila em diferentes sentidos entre eles como um sinocircnimo de campo e mais
amplamente de rural num processo de metoniacutemia em que roccedila como lavoura se
transformava no espaccedilo e em toda a organizaccedilatildeo social que a abrigava Entre a
populaccedilatildeo de ldquoantigos residentesrdquo que natildeo vivia no campo alguns tendiam a usar o
termo roccedila para se referir agrave lavoura especialmente entre aqueles cujas atividades
223
profissionais natildeo estavam diretamente ligadas ao turismo mas agrave prestaccedilatildeo de serviccedilos
na sede urbana ou mesmo agrave agricultura orgacircnica Entre estes era comum a referecircncia ao
fato de que as roccedilas ldquonatildeo existem maisrdquo ou de que os agricultores tecircm se dedicado mais
agraves atividades turiacutesticas em detrimento agraves roccedilas Tais percepccedilotildees se referiam
obviamente agrave raacutepida conversatildeo de atividades pela qual passou Gonccedilalves e seus
campocircnios diminuindo a participaccedilatildeo da agricultura nas atividades econocircmicas da
cidade e aumentando o setor turiacutestico conforme tambeacutem destacou o estudo de Barbosa
R (2014) Tais transformaccedilotildees trouxeram mudanccedilas visiacuteveis agrave dinacircmica do campo e da
cidade do municiacutepio de Gonccedilalves mas tambeacutem ao modo de vida de muitos residentes
nos bairros rurais conforme seraacute visto adiante
Uma das entrevistadas que se enquadrava no grupo de ldquoantigos residentesrdquo que
vivia na cidade relatou seu passado no campo e o trabalho da famiacutelia dedicado agrave
agricultura Nesse relato estabeleceu uma diferenciaccedilatildeo entre roccedila agricultura e
lavoura Enquanto a primeira era o espaccedilo de cultivo de milho feijatildeo e arroz as duas
uacuteltimas se referiam especialmente agraves plantaccedilotildees de cenoura e batata tiacutepica na regiatildeo
no passado conforme jaacute se destacou em outro momento Enquanto a roccedila era cultivada
para o autoconsumo a lavoura de cenoura e batata era produzida para a comercializaccedilatildeo
sendo no caso da sua famiacutelia feita em terra arrendada Esse relato coaduna com as
discussotildees teoacutericas a respeito da roccedila nas teorias do campesinato discutidas no primeiro
capiacutetulo tanto em termos das espeacutecies cultivadas quanto ao destino a elas dado assim
como pela oposiccedilatildeo entre a roccedila e a lavoura (MOURA 1978 WOORTMANN
WOORTMANN 1997)
Outro aspecto que merece ser ressaltado a respeito da categoria roccedila como
sinocircnimo de campo em Gonccedilalves foi o fato de os residentes ldquonovosrdquo ldquoantigosrdquo ou
ldquoregressosrdquo dos bairros rurais ou da sede urbana se referirem ao seu siacutetio sua
residecircncia seu bairro rural ou ao campo propriamente dito como roccedila Expressotildees
como ldquosou nascido e criado na roccedilardquo ldquomoro na roccedilardquo ldquoaqui na roccedilardquo ldquoviver na roccedilardquo
ldquoo povo da roccedilardquo ouvidas recorrentemente em Gonccedilalves permitiram constatar o uso
do termo roccedila como sinocircnimo de ldquocampordquo De maneira complementar a roccedila era
utilizada como sinocircnimo de ldquoruralrdquo e desta vez ela englobava natildeo soacute a vivecircncia no
campo o trabalho na lavoura mas a cidade como um todo Muitos aspectos materiais
ou simboacutelicos ligados agrave cultura rural foram evidenciados no Festival e jaacute comentados
anteriormente como tiacutepicos do rural Estes elementos iam desde a produccedilatildeo das
224
imagens dos pratos para o Guia passando pela gastronomia pelas apresentaccedilotildees
culturais ateacute a decoraccedilatildeo do evento sejam eles ferramentas de trabalho ou utensiacutelios
domeacutesticos
Mas um aspecto mais sutil do rural e que recebeu destaque principalmente nas
entrevistas concedidas pelos ldquonovos residentesrdquo foi a sociabilidade e a constituiccedilatildeo de
relaccedilotildees sociais mais sedimentadas Os entrevistados ldquonovos residentesrdquo destacaram
como a hospitalidade e as relaccedilotildees de interconhecimento faziam de Gonccedilalves um local
especial para ser escolhido para viver e que davam ao municiacutepio esse aspecto de roccedila
Algumas entrevistadas ldquonovas residentesrdquo mencionaram o fato de viverem sozinhas em
suas casas no campo mas natildeo se sentirem solitaacuterias pela possibilidade de visitar as
pessoas e serem recebidas ldquocom um cafezinho uma broa quentinhardquo mesmo sem se
conhecerem Nestes depoimentos o modo de vida ldquomais simplesrdquo tambeacutem foi apontado
como um valor positivo especialmente pelo fato de natildeo ter que se preocupar com a
aparecircncia para ser identificado e reconhecido nas redes de relaccedilotildees Esse fato foi
comentado por algumas mulheres ldquonovas residentesrdquo que viveram em cidades como a
capital de Satildeo Paulo ou Satildeo Joseacute dos Campos-SP que viam na vida simples da roccedila
uma vantagem em natildeo ter que se preocupar em adequar a imagem pessoal a um padratildeo
esteacutetico rigidamente estabelecido nas sociedades urbanas modernas a manicure a
escova no cabelo a maquiagem o salto alto
O aspecto da humildade tambeacutem foi ressaltado por uma ldquoantiga residenterdquo que
vivia no campo proprietaacuteria de um restaurante como um atributo ldquodo povo da roccedilardquo
que natildeo teria mudado apesar de toda a modernidade que agora fazia parte ldquoda roccedilardquo
Nesse sentido os ldquoantigos residentesrdquo proprietaacuterios de restaurantes no campo foram
unacircnimes em ressaltar as transformaccedilotildees proporcionadas pela oportunidade de ocupaccedilatildeo
e renda gerada pelo turismo no campo de Gonccedilalves A mesma entrevistada que
mencionou a humildade do povo da roccedila tambeacutem ressaltou como o atendimento aos
frequentadores do restaurante de origem urbana teria contribuiacutedo para sua desenvoltura
e o aprendizado em lidar com os serviccedilos de atendimento assim como de seus colegas
Vaacuterios desses proprietaacuterios de restaurantes tambeacutem comentaram como o acesso a uma
renda possibilitava que as pessoas da cidade e da regiatildeo pudessem frequentar os
restaurantes e excursionar pelos pontos turiacutesticos de Gonccedilalves Assim relatou uma
entrevistada ldquoEacute mais o turismo neacute E hoje praticamente 90 do pessoal da regiatildeo vive
do turismo Aqui mesmo a gente tem um pessoal vizinhos deve ter umas dez casas
225
todo mundo trabalha para o turista entatildeo todo mundo estaacute empregado pelo pessoal de
forardquo (Proprietaacuteria de restaurante Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Outros entrevistados tambeacutem destacaram como o aumento da oferta de serviccedilos
na cidade introduziu principalmente nos jovens a oportunidade da escolha e da
projeccedilatildeo de vida sem que para isso fosse preciso abandonar o municiacutepio
definitivamente
Eu costumo falar que dentro de dez anos a cidade de Gonccedilalves se transformou totalmente Mas o que eu acho mais bacana eacute que ela se transformou ela trouxe qualidade de vida para os moradores principalmente ela trouxe uma perspectiva e uma expectativa muito melhor porque hoje as pessoas as crianccedilas que moram na zona rural tecircm condiccedilotildees de sonhar e de concretizar aquilo Elas conseguem estudar elas conseguem ter uma profissatildeo moram fora ou voltam a morar aqui por opccedilatildeo (Ex-diretora de Turismo Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Barbosa R (2014) jaacute havia identificado em seu estudo o aumento da renda e da
ocupaccedilatildeo (embora em muitos casos informal) na populaccedilatildeo de Gonccedilalves e a
diminuiccedilatildeo da pobreza extrema e da desigualdade social apoacutes o ano 2000 Este autor
tambeacutem menciona como a venda de terrenos pelos agricultores aos ldquonovos residentesrdquo
ou moradores de segunda residecircncia teria possibilitado mais um acesso vantajoso agrave
renda nos uacuteltimos anos Este fato tambeacutem foi mencionado por alguns entrevistados
relatado como um negoacutecio que teria proporcionado melhorias na condiccedilatildeo de vida e na
propriedade rural especialmente se se considerasse a elevaccedilatildeo do preccedilo da terra na aacuterea
turiacutestica mais valorizada De acordo com a diretora de Turismo o acesso de muitos
agricultores jaacute idosos agrave aposentadoria rural tambeacutem teria mudado suas condiccedilotildees de
trabalho uma vez que puderam adquirir por meio da compra muitos dos itens que
antes eram plantados para garantir o autoconsumo aleacutem de adquirirem insumos e
implementos que facilitariam o trabalho agropecuaacuterio Exemplifica como muitos
agricultores trocaram a produccedilatildeo de leite pela bananicultura a compra do milho antes
plantado para alimentar os cavalos o uso deste animal de transporte e do proacuteprio carro
de boi como hobby e natildeo mais para o trabalho aacuterduo
Eu me lembro do compadre dizer que depois que ele parou de trabalhar com vaca parou de tirar leite e resolveu fazer plantaccedilatildeo de banana ele tem mais qualidade de vida porque ele natildeo precisa trabalhar saacutebado domingo acordar tatildeo cedo hoje ele consegue
226
programar a vida dele (Diretora de Turismo Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Algumas dessas mudanccedilas sentidas principalmente pelos ldquoantigos residentesrdquo
foram comentadas durante uma confraternizaccedilatildeo apoacutes uma sessatildeo de fotografia num
dos bares dos bairros rurais A equipe do Departamento de Turismo e a famiacutelia rural
teceram comparaccedilotildees entre as utilidades domeacutesticas de ldquoantigamenterdquo e os
eletrodomeacutesticos ldquomodernosrdquo e como a substituiccedilatildeo de um pelo outro acarretou
mudanccedilas no modo de vida cotidiano As conclusotildees apontaram para a conveniecircncia de
se viver na tranquilidade e sossego do campo mas com o conforto ldquoda cidaderdquo
Referiam-se principalmente ao acesso a serviccedilos baacutesicos como a energia eleacutetrica e aos
eletrodomeacutesticos o que rendeu um comentaacuterio anedoacutetico que sintetizava as novas
representaccedilotildees sobre o campo no Brasil uma servidora municipal do Departamento de
Turismo contou que as crianccedilas na escola costumam desenhar a casa no campo
atualmente substituindo a habitual chamineacute e sua fumaccedila por uma antena de TV por
assinatura a Sky
As comparaccedilotildees entre o tradicional e o moderno o antigo e o atual que
permeavam e permeiam a vida rural renderam algumas percepccedilotildees a respeito do que
seria a roccedila ldquotradicionalrdquo mas tambeacutem alguns comentaacuterios carregados de ldquonostalgiardquo
No centro da discussatildeo a respeito da ldquotradiccedilatildeordquo estava o fogatildeo a lenha da mesma
maneira que sua importacircncia como representaccedilatildeo social do rural jaacute havia sido notada
nas fotografias dos pratos preparadas para o Guia Gastronocircmico mencionada
anteriormente Assim comentou-se a respeito de alguns alimentos e teacutecnicas de cocccedilatildeo
que eram desenvolvidas ldquoantigamenterdquo para a conservaccedilatildeo dos alimentos devido agrave
ausecircncia de geladeira forno micro-ondas ou mesmo o fogatildeo a gaacutes que permitissem
procedimentos considerados por eles mais faacuteceis de manejar O fogatildeo a lenha possuiacutea
centralidade pela possibilidade de defumar e ldquocurarrdquo alguns alimentos como a linguiccedila
ou a carne de porco e de assar bolos mesmo com a ausecircncia do forno que segundo os
relatos natildeo eram comuns nos ldquoantigosrdquo fogotildees a lenha Assim desenvolvia-se a teacutecnica
de assar o bolo numa panelinha na boca do fogatildeo cuja tampa era coberta com brasa
Por outro lado a teacutecnica de defumaccedilatildeo da linguiccedila caseira ainda eacute desenvolvida pelos
proprietaacuterios do bar que a comercializam tendo sido um dos pratos servidos nesta
ediccedilatildeo do Festival
227
A analogia entre a categoria roccedila e ldquoMinas Geraisrdquo jaacute foi destacada quanto agraves
caracteriacutesticas da comida tanto neste capiacutetulo quanto no capiacutetulo 3 No entanto natildeo se
pode deixar de reforccedilar a associaccedilatildeo entre a comida mineira a comida caseira e a
comida da roccedila estabelecida sobretudo pelas cozinheiras ou chefs dos restaurantes em
Gonccedilalves Jaacute se detalhou as caracteriacutesticas dessa comida mineira anteriormente e natildeo
seraacute necessaacuterio repeti-lo neste momento Mas a associaccedilatildeo entre roccedila e cultura mineira
ia aleacutem da comida sendo apontada em Gonccedilalves com algumas particularidades A
primeira delas foi que a cultura mineira era pensada ressaltada e valorizada como um
atrativo turiacutestico sobretudo em relaccedilatildeo a Satildeo Paulo Aleacutem de a cidade estar muito
proacutexima ao Estado paulista tendo como um dos seus polos de influecircncia municiacutepios
como Campos do Jordatildeo Satildeo Joseacute dos Campos e a proacutepria capital do Estado de Satildeo
Paulo os entrevistados foram unacircnimes em afirmar que a grande maioria dos turistas
era proveniente desses locais Assim o contraponto ficava por conta da comparaccedilatildeo
entre o modo de vida em uma cidade de pequeno porte ou mesmo rural como
Gonccedilalves e em um grande centro urbano
Mas a comparaccedilatildeo tambeacutem ficava por conta dos realces agraves caracteriacutesticas do que
se convencionou chamar de ldquomineiridaderdquo como a hospitalidade e a simplicidade Em
Gonccedilalves os limites de tais caracteriacutesticas do que seria essa cultura mineira
especialmente vivenciada no campo ou nas pequenas cidades do interior se imiscuiacuteam
no que poderia se chamar de cultura rural ou ainda do que se tem proposto ateacute aqui de
roccedila Em segundo lugar sublinha-se que a caracteriacutestica do ldquoser mineirordquo era mais
notada pelo ponto de vista dos ldquonovos residentesrdquo especialmente vindos de Satildeo Paulo
como revela o seguinte depoimento
[] mas eu acho isso um valor Se algueacutem falar que eu sou da roccedila ndash eu jaacute ldquomineireirdquo o suficiente neacute ndash porque pra mim Minas eacute roccedila Do triacircngulo que eacute Rio Satildeo Paulo e Minas [] os dois Rio e Satildeo Paulo satildeo muito ligados ao urbano Minas eacute o interior eacute pra dentro natildeo tem praia natildeo tem litoral ele eacute roccedila Mas eacute muito legal ser roccedila [] mas por isso que tem que ter o valor em si natildeo vamos nos transformar numa Finlacircndia neacute Finlacircndia brasileira Suiacuteccedila brasileira Gente Noacutes somos roccedila noacutes somos mineiros isso eacute um valor Vamos ser Minas Venha para Minas Minas eacute isso aqui oh (Proprietaacuteria de estabelecimento de produtos alimentiacutecios Gonccedilalves-MG setembro de 2014)
Nesse depoimento a sinoniacutemia era entre Minas Gerais roccedila e rural aleacutem das
referecircncias ao interior e ldquopra dentrordquo A identificaccedilatildeo entre Minas Gerais e a
228
ldquoruralizaccedilatildeordquo jaacute foi discutida num outro momento segundo Abdala (2006) e
Vasconcellos (1981) mas conveacutem ainda destacar uma percepccedilatildeo jaacute notada entre os
respondentes em Belo Horizonte a respeito do interior Aqui como laacute o interior
utilizado no discurso dos entrevistados fazia menccedilatildeo natildeo soacute agrave caracteriacutestica espacial em
contraponto ao litoral por exemplo mas tambeacutem agrave subjetividade e agrave introspecccedilatildeo
complementado pela expressatildeo ldquopra dentrordquo
Por outro lado a associaccedilatildeo entre a categoria roccedila e a cultura mineira tambeacutem
era comentada fazendo-se menccedilotildees agrave categoria ldquocaipirardquo particularmente tambeacutem a
partir do ponto de vista dos ldquonovos residentesrdquo O termo ldquocaipirardquo nesse sentido
tambeacutem era utilizado para se ressaltar a simplicidade e a hospitalidade destacando-se
portanto como um valor sem a conotaccedilatildeo pejorativa com que o vocaacutebulo poderia ser
usado Curiosamente tais ldquonovos residentesrdquo que ressaltavam essa caracteriacutestica para o
termo roccedila eram de Satildeo Paulo Estado na concepccedilatildeo de Ribeiro (2006) e Candido
(2010) onde teria sido gestada a cultura caipira Nesse caso a percepccedilatildeo da cultura da
roccedila enquanto uma cultura caipira natildeo oporia Minas Gerais e Satildeo Paulo embora ainda
permita a contraposiccedilatildeo desta cultura ao modo de vida tiacutepico da capital paulista ou dos
grandes centros urbanos
Assim como jaacute foi ressaltado anteriormente alguns aspectos da roccedila como
sinocircnimo de ldquoruralrdquo eram evidenciados em Gonccedilalves em consonacircncia com a discussatildeo
da ldquotradiccedilatildeordquo do autecircntico cuja imagem aleacutem do carro de boi orgulhosamente
apontado pela populaccedilatildeo local como uma atraccedilatildeo turiacutestica era o fogatildeo a lenha e os
sentidos que evocava sendo inclusive o elemento central dos restaurantes da roccedila
onde se fazia e se servia a comida Nesse sentido uma das ex-conselheiras de Turismo
ressalta como a cultura da roccedila permeava a gastronomia e assim era considerada na
elaboraccedilatildeo do Festival o modo de fazer seus utensiacutelios e ingredientes Os restaurantes
da roccedila eram assim incentivados a reproduzir o modo de fazer tiacutepico cotidiano os
ingredientes do quintal o fogatildeo a lenha a panela de ferro a colher de pau Outro
aspecto ressaltado durante a observaccedilatildeo participante e que de alguma forma se
confunde entre o ldquoruralrdquo e o ldquotradicionalrdquo por ser um hiacutebrido entre representaccedilotildees
trabalho rural e modo de vida seriam as galinhas soltas pelo quintal os bezerros a
ordenha das vacas e a criaccedilatildeo de porcos aleacutem de animais de estimaccedilatildeo como gatos e
cachorros Este uacuteltimo aspecto era revelado de forma difundida mas ressaltado
especialmente pelos ldquonovos residentesrdquo e ldquoregressosrdquo Estes narravam o cuidado com os