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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 3
E D I TO R I A L
“A segunda pessoa era um parente de Virgília, o Viegas,um cangalho de setenta invernos, chupado e amarelado, quepadecia de um reumatismo teimoso, de uma asma não menosteimosa e de uma lesão de coração: era um hospitalconcentrado. Os olhos porém luziam de muita vida e saúde.”
Esta frase do livro de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cuba”, me foiapresentada pelo grande amigo Marco Akerman, da Faculdade de Medicina do ABC/
SP, em um encontro onde tinha o desafio de discutir sobre a construção de indicadorespara a Promoção da Saúde. Inicio esse editorial com essa frase porque a cada dia ficomais certo que existe mais coisa entre a saúde e a doença do que os nossos conhecimentosbiomédicos possam explicar.
Inegavelmente, o mundo atual vem passando por profundas transformações nosdiversos setores. No da saúde, deparamo-nos com novos desafios que infelizmentemuito pouco o modelo atual de intervenção tem conseguido promover mudanças: aquestão da violência e a prevenção das doenças crônico-degenerativas seriam bonsexemplos.
Este exemplar da revista Sanare é fruto de um trabalho que envolveu diversaspessoas, todas com importantes contribuições e com uma capacidade imensa de construircoletivamente os principais conceitos ligados à Promoção da Saúde.
O principal fator motivador para esse trabalho foi a clareza, por parte dessegrupo, de que a Promoção da Saúde é o principal objetivo da Estratégia de Saúde daFamília. Em outras palavras, o modelo que estamos construindo seria um modelo promotorde saúde, contrapondo-se a outros modelos: curativo, preventivo.
É importante ainda destacar que os textos apresentados nesse exemplar serviramcomo base para a produção de um material a ser entregue ao Ministério da Saúde, eque acreditamos que poderá contribuir bastante para a difusão desses conceitos entreas equipes do Programa Saúde da Família e gestores da saúde.
Agora, penso que apenas devo desejar que as páginas dessa revista possam setransformar em objeto de profundas reflexões e possam assim apresentar algumaspistas sobre a vitalidade e saúde dos olhos de Viegas.
Tomaz Martins JúniorDiretor Presidente da Escola de Formação em Saúde
da Família Visconde de Sabóia/Sobral-CE
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 20034
MARCO CONCEITUAL DA PROMOÇÃO DA SAÚDE NO PSF○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○11Ana Cecília Sucupira
O PROGRAMA DE SAÚDE DA FAMÍLIA: UM COMPROMISSOCOM A QUALIDADE DE VIDA○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○19Márcia Faria Westphal
CIDADANIA, CAMINHO PARA UMA VIDA SAUDÁVEL○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○31Maria Cecília Cordeiro Dellatorre
PROMOÇÃO DA SAÚDE: CONCEITOS E DEFINIÇÕES○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
07Ana Cecília Sucupira e Rosilda Mendes
A BIOÉTICA E A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○15Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto e Geison Vasconcelos Lira
APODERAMENTO○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○27Tomaz Martins Júnior
SUMÁRIO
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 5
RELAÇÃO EDUCATIVA DA EQUIPE DE SAÚDE DAFAMÍLIA COM A POPULAÇÃO○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○35Ausônia Favorito Donato e Rosilda Mendes
TERRITÓRIO: ESPAÇO SOCIAL DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E DE POLÍTICAS○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○39Rosilda Mendes e Ausônia Favorito Donato
MÚLTIPLOS ATORES DA PROMOÇÃO DA SAÚDE○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○43Márcia Faria Westphal
PROMOÇÃO DA SAÚDE, PODER LOCAL E SAÚDE DA FAMÍLIA:ESTRATÉGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS LOCAIS SAUDÁVEIS, DEMOCRÁTICOS ECIDADÃOS - HUMANAMENTE SOLIDÁRIOS E FELIZES○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○51Neusa Goya
A ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA NO BRASIL E A SUPERAÇÃODA MEDICINA FAMILIAR○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○57Tomaz Martins Júnior, Luiz Odorico Monteiro de Andrade eIvana Cristina de Holanda Cunha Barreto
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 20036
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 7
PPROMOÇÃO DA SAÚDE:
CONCEITOS E DEFINIÇÕESHealth Promotion: Concepts and Definitions
A promoção da saúde é mais ampla que a prevenção da saúde. É preciso ampliar a discussão da prevenção para a ótica da
promoção da saúde. Ou seja, mudar a lógica simplista da visão economicista de que é melhor prevenir do que curar para a
concepção do direito de não ter um agravo para o qual já existem conhecimentos e práticas disponíveis, que podem proteger o
indivíduo de ter tal agravo. A concepção anterior reduz o objetivo das ações simplesmente, para ausência da doença. Na verdade,
a promoção da saúde está vinculada à noção de direitos, ou seja, o direito a ter uma vida saudável.
Promoção da saúde; programa saúde da família; Carta de Ottawa.
Ana Cecília SucupiraPediatra Sanitarista
Consultora do Programa Saúde da Família de Sobral
Rosilda MendesEducadora, doutora em saúde pública,
assessora técnica da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo
Health promotion is more extensive than sickness prevention. It is necessary to widen discussion of prevention for the
viewpoint of health promotion. In other words, to alter the simplistic logic of economist vision that it is better to prevent
than to cure in support of the concept of the right to not contract an illness for which already exists knowledge and available
practice, which can protect the individual from contracting such illness. The previous concept reduces the objective of actions
simply, for the absence of sickness. In reality, health promotion is linked to the notion of rights, in other words, the right of
having a healthy life.
Health promotion; family health program; constitution; The Ottawa Charter.
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PROMOÇÃO DA SAÚDE, PREVENÇÃO DE DOENÇAS
Na Constituição de 1988, privilegiam-se as ações de promoção,
proteção e recuperação da saúde, colocando-se essas três
ações em um mesmo plano. Ao se discutir a promoção da saúde no
Programa Saúde da Família (PSF), considerou-se esta como o
objetivo principal dos profissionais do PSF e nomeou-se a
promoção como gênero e a prevenção como espécie. Nesse texto,
será fundamental diferenciar o que se entende por promoção da
saúde, educação em saúde e prevenção.
Há algumas décadas discutia-se nas Faculdades de Medicina
a importância de introduzir a questão da prevenção das doenças.
A partir do modelo de Leawell & Clark, no esquema da História
Natural das Doenças, definiu-se a promoção da saúde como os
cuidados à saúde, em atividades dirigidas à mudança de
comportamentos dos indivíduos, tendo como base as atitudes e
hábitos que caracterizam os diferentes modos de vida. A promoção
ficava restrita ao nível primário. Já a prevenção deveria acontecer
em todos os níveis da História Natural das Doenças, seja prevenindo
a doença ou as suas complicações nos diferentes momentos de
evolução da doença.
A concepção principal que orientava a discussão nas
faculdades estava fundamentada na visão economicista de que "é
melhor prevenir do que curar" "é melhor prevenir do que remediar"
Na verdade, o "melhor" referia-se ao fato de que era mais barato
investir na prevenção do que na cura das doenças. Essa noção foi
incorporada nos currículos médicos, como uma atribuição dos
Departamentos de Medicina Preventiva ou de Saúde Coletiva. A
Clínica remetia para a Medicina Preventiva a discussão das medidas
de prevenção.
A prevenção concebida sob a ótica economicista foi
rapidamente incorporada pelo modelo capitalista, adaptando-se
à lógica do paradigma da biomedicina, gerando a necessidade de
incorporar tecnologia adequada para essas ações. Assim,
desenvolveu-se a prática dos exames de "chekup" e a indústria da
prevenção. Na realidade, o "custo menor" ficava no discurso de
tom moralista, pois cada vez mais foi necessária a incorporação de
exames e procedimentos preventivos. Testes de "screening" para
diferentes doenças foram introduzidos, muitos deles com
procedimentos de baixa especificidade e sensibilidade, sem
evidências suficientes que comprovassem o seu valor preditivo.
Entretanto, deve-se recuperar a importância da prevenção
dos agravos na lógica do direito à saúde, o direito de não ter um
agravo, para o qual já existem conhecimentos e procedimentos
que podem evitar tal agravo. As campanhas de prevenção das
doenças infecciosas são extremamente válidas porque utilizam
conhecimentos e práticas que comprovadamente podem evitar
muitas doenças, sendo efetivas na redução da incidência dessas
doenças. Um exemplo típico são as campanhas de prevenção da
AIDS e as de vacinação. A redução dos agravos em ambos os casos
foi muito importante. A queda da mortalidade infantil, no Brasil,
teve como um dos principais fatores a redução das doenças
imunopreveníveis.
OS LIMITES DA EDUCAÇÃO EM SAÚDE
A educação em saúde é um outro conceito referido na
introdução deste texto, sendo uma das práticas mais antigas,
voltadas principalmente para a prevenção das doenças. No início
do século passado, as campanhas higienistas tinham como um
dos pilares as propostas de educação sanitária. Partia-se do
princípio que as doenças eram decorrentes da ignorância da
população, sendo fundamental educar e ensinar comportamentos
saudáveis para se ter populações sadias. A concepção higienista
foi dominante nas ações da Higiene Escolar desde o final do século
XIX, com medidas que visavam ensinar as crianças comportamentos
saudáveis, que tinham como traço marcante a visão moralista e
preconceituosa das elites sobre as classes populares.
Entretanto, ainda hoje, permanece a idéia de que é importante
e suficiente educar as pessoas para que elas possam adquirir
comportamentos mais saudáveis. Muda-se o discurso. A Carta de
Ottawa fala da importância da capacitação dos atores, para que
identifiquem opções e tomem decisões por hábitos de vida mais
saudáveis, mantendo a idéia de que os atores desconhecem os
hábitos de vida que seriam saudáveis e por isso necessitam de
capacitação. Nessa visão, a adoção de hábitos de vida mais
saudáveis depende apenas de decisões individuais, a partir de um
leque de opções. Persiste a negação das condições materiais de
vida que impedem a grande maioria da população de poder optar
por hábitos de vida mais saudáveis. Culpabiliza-se assim a vítima
por não ter observado melhor os preceitos e ensinamentos da
saúde.
Nos últimos 20 anos, como reflexo da mudança do perfil
epidemiológico com maior predomínio das doenças crônicas e
das causas externas, houve um redirecionamento da atenção à
saúde nos países mais desenvolvidos. Nesse sentido, o modelo
proposto pela promoção da saúde parece mais adequado às novas
realidades de saúde.
A prevenção concebida sob a ótica economicista foi rapidamenteincorporada pelo modelo capitalista, adaptando-se à lógica do
paradigma da biomedicina, gerando a necessidade de incorporartecnologia adequada para essas ações. Assim, desenvolveu-se a prática dos
exames de "chekup" e a indústria da prevenção.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 9
A promoção da saúde enquanto campo conceitual
e de prática vem se desenvolvendo como uma reação à
medicalização da saúde, na sociedade e no interior do
sistema de saúde e tem, no atual contexto, um marco
de referência mais amplo do que o enfoque usado no
esquema da História Natural das Doenças, centrado no
indivíduo, família ou grupos.
As estratégias da promoção da saúde têm seu
desenvolvimento, como movimento ideológico e
social, de forma mais intensa no Canadá, Estados
Unidos e países da Europa Ocidental, com avanços
mais lentos na América Latina e Caribe. As Conferências
Internacionais, a partir da Primeira Conferência de
Promoção da Saúde realizada em Ottawa, em 1986,
têm difundido conceitos básicos que exigem a
revigoração da saúde pública em torno do compromisso
de saúde para todos. As discussões de Ottawa tiveram
como parâmetros a Declaração de Alma-Ata para os
Cuidados Primários em Saúde (1978) e debates
posteriores realizados ao redor do mundo.
DISCUTINDO SAÚDE COMO UM PRODUTOSOCIAL
Os encontros e as conferências subsequentes
relacionados ao tema, especialmente as Conferências
Internacionais realizadas em Adelaide, na Austrália,
em 1988, em Sundsvall, na Suécia, em 1991, em
Jakarta, em 1997 e no México em 2000, procuraram
reafirmar a Conferência de Alma-Ata, ressaltando a
necessidade de se adotar propostas de intervenção
inovadoras e mais abrangentes na implementação de
políticas públicas saudáveis. Definiram, ainda, as
políticas públicas saudáveis como o interesse de todas
as áreas das políticas públicas em relação à saúde e
eqüidade.
Na América Latina a introdução da reconceituação
da Promoção da Saúde e o estabelecimento de
estratégias de desenvolvimento de ações de promoção
da saúde nos países em desenvolvimento, tiveram início
com a Conferência de Promoção da Saúde realizada em
Santa Fé de Bogotá em 1992. A iniqüidade sem
precedentes da América Latina, agravada pela crise
econômica e pelos programas das políticas de ajuste
macroeconômico, a situação política que limita o
exercício da democracia e a participação pela
cidadania, foram considerados fatores determinantes
na deterioração das condições de saúde e vida das
populações latino-americanas.
O que vem caracterizar a promoção da saúde, nos
dias de hoje, é a constatação de que a saúde tem uma
determinação social, portanto está relacionada com a
totalidade da vida. Pode-se afirmar que o enfoque da
Promoção da Saúde é mais amplo e abrangente e é
conseqüente a uma mudança de visão do que é saúde.
A promoção da saúde é considerada um instrumental
conceitual, político e metodológico em torno do
processo saúde-doença, que visa analisar e atuar sobre
as condições sociais que são críticas para melhorar as
condições de saúde e de qualidade de vida (CERQUEIRA
1997; BUSS 1998).
É importante destacar, aqui, alguns pontos: o
primeiro é que começa a se delinear um "novo paradigma
de saúde": a saúde é produzida socialmente. Assim, a
Promoção da Saúde está relacionada a um conjunto
de valores: vida, saúde, solidariedade, eqüidade, de-
mocracia, cidadania, participação, parceria, desenvol-
vimento, justiça social, revalorização ética da vida.
Portanto, relaciona as determinações da saúde às di-
mensões sociais, culturais, econômicas e políticas nas
coletividades para alcançar um desenvolvimento soci-
al mais eqüitativo. Ressalta-se, ainda, a combinação
de estratégias, ou seja, a promoção da saúde demanda
uma ação coordenada entre os diferentes setores soci-
ais, ações do Estado, da sociedade civil, do sistema de
saúde e de outros parceiros intersetoriais. Em suma, a
saúde não é assegurada apenas pelo setor da saúde.
Para a prevenção, evitar a
ocorrência de enfermidade e a
perda do bem estar é o objetivo
final. Para a promoção da saúde
o objetivo contínuo é buscar
expandir o potencial positivo de
saúde, portanto, a ausência de
doenças não é suficiente.
As ações de promoção da
saúde concretizam-se em
diversos espaços, em órgãos
definidores de políticas, nas
universidades e, sobretudo,
... a Promoção da Saúde está
relacionada a um conjunto de valores:
vida, saúde, solidariedade,
eqüidade, democracia, cidadania,
participação, parceria,
desenvolvimento, justiça social,revalorização ética da vida.
Para a promoçãoda saúde o objetivo
contínuo é buscar
expandir o potencial
positivo de saúde,
portanto, a ausência
de doenças não
é suficiente.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200310
localmente, nos espaços sociais onde vivem as pessoas. As cidades,
os ambientes de trabalho e as escolas são os locais onde essas
ações têm sido propostas.
Como a saúde é entendida a partir de seus determinantes
sociais, há de se promover uma responsabilidade social para com
ela. Na formulação de políticas públicas saudáveis, todos os setores
de governo devem direcionar sua atuação tendo como perspectiva
que a saúde é um aspecto essencial da vida, daí a necessidade de
criar parcerias e alianças com todos os setores da sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Buss PM. organizador. Promoção da saúde e a saúde pública : contribuiçãopara o debate entre as escolas de saúde pública da América Latina.ENSP. Rio de Janeiro; 1998.
Cerqueira MT. Promoción de la salud y educacón para la salud: retos yperspectivas. In: Arroyo HV, Cerqueira MT. La promoción de la saludy educación para la salud en América Latina: un análisis sectorial.Puerto Rico: Editorial de la Universidade de Puerto Rico/OPS; 1997.p. 7-47.
Mendes Gonçalves, RB.- Tecnologia e Organização Social das Práticas deSaúde - Hucitec/Abrasco, São Paulo, 1994.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 11
MMARCO CONCEITUAL DA
PROMOÇÃO DA SAÚDE NO PSFConceptual Landmark of Health Promotion in PSF (Family Health Program)
A promoção da saúde deve ser o objetivo principal no trabalho dos profissionais do PSF. Isso implica ir além da resolubilidade
imediata da queixa trazida pelo indivíduo e a necessidade de construir um novo processo de trabalho que permita à
população identificar os problemas e potencialidades, reconhecendo as condições e os fatores envolvidos na produção da queixa,
do sofrimento e da saúde.
Promoção da saúde; programa saúde da família; sistema único de saúde.
Ana Cecília SucupiraPediatra Sanitarista
Consultora do Programa Saúde da Família de Sobral
Health promotion should be the main objective in the practice of PSF professionals. This implies going beyond the
immediate resolubility of the complaint presented by the individual and the necessity to construct a new practice process
that permits the population to identify the problem and potentialities, recognizing the conditions and factors involved in
creating the complaint, of the suffering and health.
Health promotion; family health program; unified health system.
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O NOVO MODELO DE ATENÇÃO À SAÚDE
A aprovação do Sistema Único de Saúde pela Constituição Federal de 1988 forneceu
os princípios para a reorganização da atenção à saúde no Brasil, mas tem sido o
Programa de Saúde da Família a estratégia estruturante que viabiliza a construção de
um novo modelo de atenção à saúde. O modelo que se pretende com a implantação do
PSF, pode ser visto como novo, porque implica uma mudança no modelo existente,
que se torna passado, antigo. Isto não significa dizer que as idéias que fundamentam
o modelo do PSF sejam todas novas. Algumas dessas idéias já estavam presentes, há
algumas décadas, mas obtiveram pouco sucesso, uma vez que eram introduzidas sem
que houvesse uma mudança substancial na orientação do modelo de atenção à saúde.
Não há, portanto, uma negação mecânica do modelo anterior, mas uma negação
dialética, uma superação, na qual se considera o que havia de bom no modelo antigo
e elementos novos são incorporados para a construção do modelo novo. Vale ressaltar
que o PSF pode ser considerado como um novo modelo, porém sua prática ainda não
é nova e reproduz em muitos casos o paradigma biomédico.
A afirmação de que a promoção da saúde deve ser o objetivo principal da Equipe
de Saúde da Família é conseqüente ao ideário de princípios que norteiam a implantação
do PSF e que estão contidos na formulação do SUS. Assim, revendo esses princípios
vamos encontrar os elementos necessários para justificar essa assertiva.
A marca principal do PSF, fundamentada na promoção da saúde, é a mudança de
foco que passa a ser a saúde e não mais a doença. Pensar a saúde, não como a simples
ausência da doença, mas como produto da
qualidade de vida, socialmente determinada,
implica necessariamente, a superação do
paradigma da biomedicina, organicista e a
incorporação de um novo referencial que
considere os aspectos históricos, culturais e
sociais que interferem no modo como deve ser
prestada a atenção à saúde. Nesse novo olhar,
o indivíduo só pode ser compreendido na sua
totalidade se estendermos esse olhar para a
família com a qual ele convive, a moradia como
núcleo de elementos favoráveis ou
desfavoráveis a sua saúde e o cenário da
comunidade e da sociedade que, influenciam
do ponto de vista social e cultural a adoção
de determinados modos de vida.
PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA E PROMOÇÃO DA SAÚDE
Nessa perspectiva, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) tem como cliente a
família, inserida numa comunidade e a saúde dessa família não pode ser objeto de
trabalho apenas da equipe, mas é também, objeto de um conjunto de intervenções da
comunidade e do Estado, enquanto instância de governo. Insere-se, assim,
obrigatoriamente a noção da intersetorialidade no PSF.
Ao ter como objeto principal de trabalho a saúde do indivíduo, da família e da
coletividade, a proposta do PSF é necessariamente centrada na promoção da saúde.
Mas o que se entende por promoção da saúde? Resumidamente, pode-se dizer que é a
atuação nos determinantes da saúde, ou seja, um conjunto de ações assumidas pelos
indivíduos, a comunidade e o Estado com o objetivo de criar condições favoráveis ao
A marcaprincipal do PSF,
fundamentada na
promoção da
saúde, é a
mudança de
foco que passa a
ser a saúde enão mais a doença.
pleno desenvolvimento das potencialidades
humanas. Isso implica intervir coletivamente
visando a qualidade de vida. As condições
favoráveis são criadas individualmente por
meio de atitudes e modos de vida saudáveis,
coletivamente por ações conjuntas da
comunidade ou ainda por intervenções dos
vários setores do governo. Ao se falar em
atitudes e modos de vida mais saudáveis na
promoção da saúde, é preciso ter cuidado para
não se responsabilizar apenas o indivíduo pela
sua própria saúde, portanto, tem que se
colocar a participação da comunidade no
desenvolvimento de uma política saudável,
ou seja, discutir os aspectos individuais dos
modos de vida, a participação coletiva na
gestão das políticas e as desigualdades
estruturais da sociedade que impõem diferenças
no modo de vivenciar a saúde e a doença.
Deduz-se que os atores da promoção da saúde
são vários, ou seja, a promoção da saúde é
uma responsabilidade de toda a sociedade.
Obviamente, a prevenção das doenças
está inserida na promoção da saúde. A
prevenção atua sobre os determinantes da
doença. Assim, as medidas de redução do
número de veículos circulantes nas grandes
cidades, nos períodos em que a qualidade do
ar se torna crítica, tem como objetivo reduzir
a incidência de doenças respiratórias. Já a
proibição da circulação de veículos nos fins
de semana, em algumas ruas, tornando-as áreas
de lazer, tem como objetivo maior possibilitar
às pessoas um espaço para atividades ao ar
livre melhorando a qualidade de vida da
população. Além disso, é uma medida também
preventiva que serve para reduzir doenças
ligadas à qualidade do ar e à vida sedentária.
No dizer de Andrade (2002): "...no PSF a
promoção é gênero e a prevenção é espécie".
A assistência está contida na promoção da
saúde que é uma ação mais ampla que a
... a promoção da
saúde é uma
responsabilidade de
toda a sociedade.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 13
assistência. Mas é fundamental entender que ao se assumir a
promoção da saúde como objetivo principal, ela vai direcionar a
assistência que é prestada na atenção básica e influenciar
diretamente os outros níveis de atenção, uma vez que se concebe
o PSF como estratégia estruturante de todo o sistema.
Em última instância o PSF tem como objetivo a melhora da
qualidade de vida para se ter como produto a saúde. Ora, a pergunta
que se segue é o que se deve entender por qualidade de vida? Que
qualidade de vida se pretende e para quem? São questões cuja
resposta deve ser encontrada a partir de discussões que considerem
os aspectos históricos, culturais e sociais de uma determinada
comunidade.
Uma conseqüência lógica do que foi exposto acima e que
constitui uma idéia-força contida na assertiva inicial é a
necessidade de mudança do processo de trabalho dos profissionais
na unidade de saúde.
A doença, ou melhor, a queixa, tem sido a principal linguagem
de comunicação entre a unidade de saúde e a população. A
demanda trazida é sempre a queixa de um sofrimento, visto sempre
na sua manifestação somática, orgânica. O idoso, em busca de
uma escuta, é atendido pela sua queixa de dores recorrentes. As
manifestações alérgicas são inibidas pela prescrição contínua da
medicação, sem que os alergenos sejam identificados, a doença
sexualmente transmitida é medicada, sem que os profissionais
avaliem as suas repercussões no relacionamento do casal, o
sofrimento psíquico não é percebido e a depressão, a angústia, o
alcoolismo são vistos como doenças orgânicas, portanto, passíveis
de tratamento medicamentoso.
UNIVERSALIDADE, EQUIDADE E INTEGRALIDADE
Essa visão medicalizante do sofrimento foi impondo um modo
específico de funcionamento dos serviços de saúde que se traduziu
no modelo de atenção, definido por Ricardo Bruno (1994), de
queixa/conduta. Os serviços de saúde organizam o atendimento à
demanda na forma do pronto-atendimento, caracterizando o que
Mendes (2001) chama de modelo agudocêntrico. A atenção à
saúde encerra-se com a prescrição da receita, a solicitação de
exames e o encaminhamento para serviços mais especializados.
Reforça-se assim a imagem de ineficiência da atenção básica.
A pressão política pelo acesso ao atendimento nos serviços
de saúde expressa a idéia de que a assistência médica traz saúde
aos indivíduos. O médico, visto como alguém que cura, é o centro
que direciona o modelo de atenção. Os demais profissionais são
acessórios, para os quais são encaminhados os casos que o modelo
biomédico não consegue resolver, transformados quase sempre em
mazelas sociais.
Os princípios do SUS são reinterpretados: a universalidade, a
eqüidade e a integralidade da atenção são entendidas como o
direito de todos à tomografia, à ressonância. O hospital representa
o acesso diferenciado à atenção à saúde. O modelo concentra no
hospital os investimentos sob a pressão da indústria de
equipamentos e farmacêutica. A atenção básica ou primária é vista
como um apêndice do nível terciário.
O esgotamento desse modelo é inevitável. Os países mais
desenvolvidos já redirecionaram a atenção à saúde, fortalecendo a
promoção da saúde. A mudança no perfil epidemiológico, no qual
as doenças infecto-contagiosas vão sendo substituídas pelas
doenças crônicas, degenerativas ou não, e pelos agravos externos
exige mudanças no modelo. Agravos que demandam um outro
enfoque, pois não é a cura o objetivo, mas a prevenção das
complicações e a manutenção da qualidade de vida.
A superação do modelo antigo não invalida os diferentes
níveis de atenção, o hospital, os serviços especializados e as
unidades básicas, mas integra-os no sistema hierarquizado e
regionalizado, tendo como porta de entrada a unidade básica de
saúde, tal como previsto no SUS. O PSF na construção do novo
modelo radicaliza ao priorizar a promoção da saúde e reconhecer a
unidade básica de saúde como a instância de excelência para dar
conta de mais de 80% da demanda. O hospital passa a ser visto
como uma instância de atenção não primária, assumindo sua
vocação de atendimento de alta complexidade, destinado a uma
pequena minoria de casos que irá necessitar dessa modalidade de
atenção.
A questão que se coloca é como construir um novo processo
de trabalho, centrado na perspectiva prioritária da promoção da
saúde. Teoricamente, a construção do PSF tem na sua essência a
filosofia da promoção da saúde ao ter como objeto de atenção a
saúde e não a doença. Entretanto, ao se tratar de um processo de
trabalho em construção é preciso definir o marco teórico e
metodológico para a promoção da saúde nos contornos do PSF. É
importante ainda, discutir o papel dos gestores nesse novo processo
de trabalho.
Não se limitar a simples resolução imediata da queixa significa
antes de tudo entender a dimensão dessa queixa, para além do que
ela explicita. E mais, significa a compreensão de que a saúde só
poderá ser alcançada se a queixa, o sofrimento, a doença forem
compreendidos nos seus determinantes. É preciso identificar os
condicionantes do sofrimento que se expressam naquele sintoma
manifestado pelo paciente e pensar o problema no espaço do
território, para que possam ser identificadas soluções coletivas. Os
casos de diarréia não podem ser vistos de forma isolada. É necessário
Os princípios do SUS são
reinterpretados: a universalidade, a
eqüidade e a integralidade da
atenção são entendidas como o
direito de todos à tomografia,
à ressonância.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200314
avaliar a ocorrência de outros casos e analisar com a população o
porquê desses casos, discutindo as características dos modos de
vida da comunidade e as condições ambientais que estejam
favorecendo o aparecimento de tantos casos de diarréia. As
soluções encontradas nas discussões dos conselhos locais de saúde
têm muito mais efetividade que as orientações que possam ser
dadas pela equipe de saúde. Um outro aspecto importante desse
modo de trabalhar é evitar que visões preconceituosas da equipe
de saúde tendam a culpar a própria família ou a comunidade pelos
casos de diarréia. Essa postura é freqüente e pode ser exemplificada
em frases do tipo: "a mãe é irresponsável" "o povo é relaxado
mesmo".
Algumas ferramentas são fundamentais na construção desse
novo processo de trabalho da equipe de saúde. Inicialmente, o
trabalho tem de ser visto na perspectiva da co-gestão com a
comunidade. Para isso, é preciso pensar a saúde tanto do ponto
de vista individual quanto coletivo e o desenvolvimento de um
conhecimento específico para trabalhar essas questões. Porém o
fundamental é a mudança de atitude por parte dos trabalhadores
em saúde.
O instrumental epidemiológico dá visibilidade à população
do processo saúde/doença. Entretanto, os conhecimentos
epidemiológicos têm de ser socializados coletivamente. A
comunidade deve participar ativamente da investigação
epidemiológica. Experiências nas quais os conselhos locais de
saúde têm também a função de investigar as mortes por causas
externas, mostram que as informações sobre as causas dessas mortes
são muito mais próximas da realidade, pois são obtidas por quem
está no bairro e conhece a vida do bairro. Além disso, é possível
trabalhar a epidemiologia do potencial de saúde das comunidades,
reconhecendo nas condições e modos de vida da comunidade o
que pode ser feito para a promoção da saúde. Rompe-se com o
modelo da epidemiologia tradicional ligada à doença e de
propriedade dos médicos e enfermeiros, abrindo-se para a
participação das pessoas da comunidade. Essa é uma forma concreta
da população se apropriar das informações sobre o processo saúde/
doença na sua comunidade e construir um diagnóstico das
condições de saúde que permita trabalhar na direção da promoção
da saúde.
Obviamente, duas outras ferramentas estão necessariamente,
incorporadas nesse processo, a territorialização e a ação intersetorial.
A atenção básica territorializada é fundamental e está
instrumentalizada pela adscrição da clientela, prevista no modelo
do PSF. A construção do diagnóstico de saúde da comunidade
implica o conhecimento do território enquanto um espaço vivo
de relações, que produz a saúde e a doença. O processo de
elaboração do diagnóstico epidemiológico, com base territorial
possibilita articular os serviços de saúde com a comunidade e
outros setores da sociedade, principalmente aqueles relacionados
ao ambiente e ao desenvolvimento urbano. A identificação das
condições e fatores envolvidos no processo saúde/doença requerem
a ação intersetorial tanto no reconhecimento do modo de atuação
desses fatores como na sua superação. Os diferentes olhares da
equipe contribuem para trazer uma diversidade maior de elementos
que vão compor o cenário e o processo que levou a um determinado
problema de saúde vivenciado por uma família, por um grupo de
famílias ou por uma comunidade. Essa produção coletiva do
diagnóstico do problema e da discussão em busca de suas soluções
requer uma organização interna da estrutura de trabalho da unidade
que democratiza as competências e ajuda a construir o trabalho
em equipe.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na construção do novo processo de trabalho é necessária a
formação de novos atores, novos no sentido de terem condições
de fazerem a crítica ao paradigma da biomedicina.
Resumindo, a assertiva enunciada no início do texto tem
três idéias-força:
1a : a promoção da saúde deve ser o objetivo principal dos
profissionais do PSF;
2a : é necessário construir um novo processo de trabalho;
3a : o atendimento deve ir além da queixa, ou seja, discutir
os fatores envolvidos na queixa e no sofrimento.
A idéia é que o novo modelo garanta a universalidade, a
equidade, a integralidade, mas com um salto de qualidade, porque
deve estar centrado na comunidade, considerando os aspectos
antropológicos, sociais e culturais da população e tendo sempre
presente o direito à saúde. A participação da população nos
conselhos municipais de saúde e nas instâncias de decisão das
políticas públicas relacionadas à saúde deve ser estimulada
enquanto um exercício da cidadania.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Andrade, LOM, Relatório sobre a "Oficina de Promoção da Saúde noPSF", Documento mimeo, Sobral, 2002.
Mendes Gonçalves, RB, - Tecnologia e Organização Social das Práticasde Saúde. Hucitec/Abrasco. São Paulo, 1994.
Mendes, EV, Grandes Dilemas do SUS. Ed. Casa da Qualidade SalvadorBahia. 2001
Rompe-se com o modelo da
epidemiologia tradicional
ligada à doença e de propriedade
dos médicos e enfermeiros, abrindo-
se para a participação das
pessoas da comunidade.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 15
AA BIOÉTICA E A ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIABioethics and the Family Health Strategy
O Sistema Único de Saúde, conquista do povo brasileiro garantida pela Constituinte de 1988, após anos de luta de inúmeros
cidadãos, tem como princípios norteadores a Universalidade, a Eqüidade, a Acessibilidade e a Participação Social. Podemos
afirmar que todos estes princípios estão de acordo com os da Bioética, ou melhor, se cumpridos, estarão possibilitando a efetivação
dos mais importantes preceitos da Bioética. Também discutiremos no trabalho como a Estratégia de Saúde da Família pode vir e/
ou vem efetuando, na prática, princípios da bioética.
Bioética; sistema único de saúde; estratégia de saúde da família; constituição.
Ivana Cristina de Holanda Cunha BarretoProfa. Assistente da Fac. de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Mestre em Saúde Pública
Geison Vasconcelos LiraMédico, auditor da Coordenação de Controle e Avaliação do município de Sobral
Especialista em Saúde do Trabalhador
The Unified Health System, a conquest of the Brazilian people guaranteed by the 1988 Constituent Assembly, after years
of struggle by innumerous citizens, has as guiding principles Universality, Equity, Accessibility and Social Participation.
We can affirm that all these principles are in accord with those of Bioethics, or better, if fulfilled, will be enabling the bringing
about of the most important precepts of Bioethics. We will also discuss in the task how the Family Health Strategy can turn out
to and/or is turning out to carry out, in practice, principles of bioethics.
Bioethics; unified health system; family health strategy; constitution.
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S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200316
OS PRINCÍPIOS
A Universalidade é o princípio segundo o qual a "Saúde é
direito de todos e dever do Estado". Aqui se pode inferir que
se a Universalidade for efetivada, estar-se-á efetivando a
"beneficência".
A Eqüidade, princípio segundo o qual deve-se tratar
"desigualmente os desiguais", privilegiando com mais
investimentos em saúde as populações menos favorecidas, chega
a ser referida por alguns autores como um dos princípios da bioética
(Berlinguer, 1996). Segundo Berlinguer, pondo em prática a
eqüidade, através de políticas públicas socialmente justas, o estado
estaria contribuindo para que no futuro se alcance senão a
igualdade entre pobres e ricos, a redução das desigualdades.
A acessibilidade, segundo a qual o Estado deve prover fácil
acesso aos serviços de saúde a todos os cidadãos brasileiros, cumpre
também os preceitos bioéticos da beneficência e da eqüidade.
A participação social, preceito constitucional que garante
aos cidadãos brasileiros, através dos Conselhos de Saúde de âmbito
nacional, estadual e municipal, o poder de controlar socialmente
os serviços de saúde, garante o cumprimento do princípio bioético
da "Autonomia", se analisado do ponto de vista da coletividade.
Enfim, poderíamos afirmar: "a Constituição Brasileira, no que
se refere ao capítulo da Saúde, é Bioética".
Como a Estratégia de Saúde da Família pode vir e/ouvem efetuando na prática alguns princípios da bioética?
Tentaremos, nos parágrafos seguintes, discutir como a
Estratégia Saúde da Família vem promovendo os princípios da
bioética no Brasil:
Promovendo eqüidade:
Informações divulgadas por agências internacionais como a
OMS e o UNICEF, dão conta da crescente desigualdade social entre
países industrializados e países em desenvolvimento e
subdesenvolvidos. Hoje chama atenção o abismo entre os países
europeus e da América do Norte, com relação aos países populosos
e pobres da África, Ásia e América Latina. As diferenças na esperança
de vida ao nascer entre um homem pobre da Europa e um igualmente
pobre em um desses países, chega a vinte anos. O Brasil é conhecido
internacionalmente pela grande desigualdade social, sendo que
estas diferenças podem ser observadas entre distintas regiões do
país, como o Sudeste e o Sul com relação ao Nordeste e o Norte,
bem como, entre cidades de um mesmo estado e bairros de uma
mesma cidade. As desigualdades existentes na nossa sociedade já
foram bem evidenciadas por diversos estudos epidemiológicos de
base populacional, do IBGE (2000) e de outros grupos de pesquisa
brasileiros (Victora & Barros) que evidenciaram diferenças na
esperança de vida ao nascer, nas curvas de mortalidade
proporcional, na mortalidade infantil, na mortalidade específica
por causas, na proporção de baixo peso ao nascer e diversos outros
indicadores que demonstram como os menos favorecidos
socialmente têm também menos "saúde".
Mais recentemente, os especialistas em saúde pública tem
denunciado uma nova epidemia no Brasil, "a Epidemia de
Violência", relacionada ao tráfico de armas e drogas. O homicídio
passa ser a principal causa de morte entre os adultos jovens,
principalmente do sexo masculino (IDB, Brasil, 2001). Também
com relação a este indicador os menos favorecidos socialmente
são mais atingidos. A falta de perspectiva no futuro, faz com que
centenas de jovens das favelas e bairros periféricos das grandes
cidades brasileiras ingressem na atividade do tráfico, reduzindo
substancialmente seu tempo de vida.
No interior de todo este quadro social e epidemiológico é
que vem sendo implantada a Estratégia de Saúde da Família (ESF),
as primeiras equipes em cidades de pequeno e médio porte, e, mais
recentemente, em cidades de grande porte, como Curitiba, Belo
Horizonte e São Paulo.
A ESF iniciou sua implantação no Brasil em 1994, precedida
pelo PACS, sendo que um de seus objetivos seria reduzir as
iniqüidades em saúde, descentralizando e tornando mais acessível
a atenção à saúde aos grupos sociais menos favorecidos. Neste
sentido, as equipes de saúde da família foram inicialmente
implantadas justamente na região Nordeste, e dentro desta, nos
municípios do interior, onde o acesso a serviços de saúde foi
historicamente mais difícil que nas capitais. Dentro dos próprios
municípios do interior, organizaram-se equipes nos distritos rurais
mais distantes e carentes, bem como nas favelas urbanas. Como
justificativa recorreu-se ao princípio da eqüidade, que, segundo
Berlinguer, é um mecanismo através do qual os gestores públicos
podem promover igualdade social.
Nos primeiros anos de implantação do PSF e, como forma de
viabilizá-lo, foi utilizado o pagamento de maiores valores para as
consultas médicas e de enfermagem realizadas pelas equipes de
saúde da família, em relação àquelas efetuadas por outros serviços
da própria rede pública e da rede credenciada, ou seja, os
O Brasil é conhecido
internacionalmente pela grande
desigualdade social, sendo que
estas diferenças podem ser
observadas entre distintasregiões do país, como o Sudeste e o
Sul com relação ao Nordeste e o
Norte, bem como, entre cidades de
um mesmo estado e bairros de
uma mesma cidade.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 17
profissionais de saúde da família passaram a receber
remunerações relativamente maiores pelos mesmos
procedimentos realizados em outros serviços. O que os
gestores afirmavam naquele momento é que os
procedimentos realizados pelas equipes de saúde da
família tinham maior transcendência, visto que a
permanência dos profissionais por mais tempo no
serviço, a territorialização, o planejamento local
estratégico e a adscrição de clientela, criavam
condições para um vínculo efetivo entre os profissionais
de saúde e a população, inexistente nos serviços
ambulatoriais tradicionais do país. Muitos profissionais
do setor, bem como segmentos da academia, não
entenderam estas iniciativas, que estavam baseadas
no princípio bioético da eqüidade. Estes incentivos
financeiros vêm sendo mantidos pelo Ministério da
Saúde, que hoje assume a ESF como estruturante do
SUS.
Aumentando a acessibilidade:
Um outro aspecto fundamental da ESF foi o
aumento da acessibilidade. Este fato pode ser
facilmente verificado pelas informações (Machado,
2000) que demostram o aumento acelerado no número
de profissionais dedicados a atenção básica à saúde,
sejam os agentes comunitários de saúde, sejam médicos
e enfermeiros, em todas as regiões do país, e, em
especial, nas regiões menos desenvolvidas. Além deste
fato, o estudo realizado com profissionais de saúde da
família em 1999, com a participação de
aproximadamente 50% dos médicos e enfermeiros
membros de equipes de saúde da família naquele
momento, evidenciou uma maior satisfação destes
profissionais com o seu trabalho. A maioria dos
participantes do estudo identificaram uma melhoria
na relação com os usuários após seu ingresso em equipes
de saúde da família. É de esperar-se que esta melhora
na relação usuário-profissional, sentida pelos últimos,
influencie para uma melhor qualidade da atenção à
saúde e a construção de vínculos afetivos e culturais
entre as equipes de saúde da família e a população por
elas atendida (Machado,2000).
Aumentando a participação social:
A autonomia na perspectiva do coletivo vem
sendo promovida pela ESF. Isto ocorre na medida em
que as equipes facilitam e provocam a organização da
comunidade nos Conselhos Locais de Saúde. Em
inúmeras experiências da estratégia saúde da família
no Brasil, vem-se observando a organização de redes
sociais, como os grupos de interesse (grupos de
caminhada, grupos de gestantes, grupos de mães,
grupos de idosos, grupos de jovens etc.), promovidas
pelas equipes. Estas redes sociais aumentam a
autonomia de cada um de seus membros, assim como,
a autodeterminação coletiva, favorecendo sentimentos
e ações solidárias, bem como o resgate da auto-estima
das pessoas beneficiadas com estas atividades.
Promoção dos princípios da bioética do ponto
de vista do indivíduo pela ESF:
Promovendo o autocuidado / autonomia dos usuários
No âmbito das relações individuais, entre
médico/usuário, enfermeiro/usuário, auxiliar de
enfermagem/usuário e agente comunitário de saúde/
usuário, segundo as diretrizes da estratégia saúde da
família, deve-se estabelecer uma relação de respeito
mútuo, com uma postura democrática do profissional
em relação ao cidadão. O primeiro deve atuar também
como educador, estabelecendo um diálogo com os
usuários que possibilite ao mesmo tomar suas próprias
decisões e ter papel ativo e autônomo em relação a
realização de qualquer procedimento e ou tratamento,
bem como, compreender melhor a determinação do
seu processo de saúde - doença.
O diálogo com a população atendida também se
estabelece na medida em que são conhecidas e
respeitadas práticas vigentes na Cultura Popular, como
a utilização de medicamentos fitoterápicos e a fé nas
lideranças religiosas populares, como as rezadeiras e
curandeiros. Evidentemente, cabe aos profissionais das
equipes de saúde da família alertar a população quando
estas práticas trouxerem riscos para a saúde da
população.
É de esperar-se que esta melhora na
relação usuário-profissional,sentida pelos últimos, influencie para uma
melhor qualidade da atenção à saúde e
a construção de vínculos afetivos e
culturais entre as equipes de saúde
da família e a população por elas
atendida (Machado,2000).
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200318
Utilizando protocolos
A adoção de protocolos clínicos de atenção básica à saúde,
uma das medidas que deve ser implementada na ESF, utilizando-se
como medicamentos e procedimentos pelas equipes, unicamente
aqueles comprovados por evidências científicas, é uma medida
através da qual dois princípios da bioética estão sendo efetivados,
"a beneficência e a não maleficência (primo non nocere)". Neste
sentido, esta prática deve ser estimulada.
Que outros aspectos devem ser observados para que aESF efetue os princípios da bioética?
Intensificação das ações de promoção da Saúde e o estímulo ao
autocuidado e autoconhecimento (princípio bioético da
autonomia).
Apesar dos progressos e ações já empreendidas pelas equipes
de saúde da família no sentido de promover saúde, ao invés de
apenas tratar as doenças, e estimular o autocuidado, é preciso
reconhecer que o paradigma hegemônico de nosso sistema de
saúde ainda é o da "Biomedicina", que compreende a saúde como
sendo "a ausência de doença". As ações das equipes de saúde da
família ainda vêm sendo medidas e acompanhadas com base neste
paradigma e nos indicadores gerados por esta racionalidade, como
os Indicadores de Mortalidade e Morbidade. É preciso criar e
fortalecer dia a dia, a racionalidade da promoção da saúde, que
entende saúde como resultante da qualidade de vida. As equipes
de saúde da família precisam cada vez mais fortalecer as ações que
intervenham na determinação do processo saúde-doença, seja no
sentido mais amplo, o que incluiria ações multisetoriais de políticas
públicas, seja no sentido mais restrito, que pressupõe mudanças
nos hábitos de vida. Estas ações direcionam a população para um
cuidado mais autônomo, desestimulando dependências
desnecessárias com relação aos profissionais de saúde,
medicamentos e exames complementares.
As ações de promoção da saúde, que embutem a capacidade
de alterar fatores intervenientes no processo saúde-doença, têm
um potencial maior para estimular o autocuidado e a autonomia
dos cidadãos, tendo em vista que oportunizam o aprendizado e a
capacidade de cada usuário atuar sobre o referido processo.
A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE DA FAMÍLIAEM LARGA ESCALA: EFETUANDO A ACESSIBILIDADE
No atual momento de implantação da ESF, o limitante mais
importante tem sido a insuficiência dos profissionais de saúde
para efetivação do número de equipes necessárias, tanto do ponto
de vista quantitativo quanto do qualitativo. Isto se aplica
principalmente no que se refere à categoria médica, que é escassa,
sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, e tem formação
preponderantemente para atuar nos serviços hospitalares. A
formação e capacitação de profissionais em quantidade suficiente
e de boa qualidade para estratégia saúde da família, tornam-se
então fatores essenciais para propiciar o acesso deste serviço a
todos os brasileiros que dele necessitam. Alguns autores tem
alertado para a necessidade de formação de profissionais de saúde
da família em larga escala, dado o grande número de equipes já
implantadas e a implantar nos próximos meses, pois só profissionais
adequadamente capacitados poderiam realmente pôr em prática
todos os objetivos da ESF.
Do ponto de vista da formação profissional na graduação, o
Ministério da Saúde deu um grande passo ao propor mecanismos
de financiamento para as Faculdades de Medicina que se
propusessem a realizar transformações curriculares que tornassem
os cursos de graduação em Medicina capazes de formar um
profissional que responda as necessidades do Sistema Único de
Saúde. Desta forma o Ministério atende ao artigo 200 da
Constituição que afirma que cabe ao Sistema regular a formação de
recursos humanos para a saúde.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O SUS e a ESF, estratégia estruturante do primeiro, estão
calcados por princípios jurídicos e normativos bioéticos. Resta
aos gestores de saúde das três esferas do governo, federal, estadual
e municipal, aos profissionais de saúde e aos cidadãos usuários
destes serviços, empreenderem uma luta constante com o objetivo
de efetuá-los na prática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERLINGUER, GIOVANNI. Ética da saúde. Editora Hucitec. São Paulo,1996.136p.
VICTORA, CESAR & BARROS, FERNANDO. Epidemiologia da Desigualdade.São Paulo, HUCITEC, 1988. 187p.
BRASIL. Ministério da Saúde. Rede Interagencial de Informações para aSaúde. Indicadores e Dados Básicos para a Saúde, 2001.
MACHADO, MARIA HELENA. Perfil dos médicos e enfermeiros do Programade Saúde da Família no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde, 2000.146p.
FRANKLIN, A & SOUSA, M.F. Construção Cotidiana, Saúde da Família naprática: os princípios na visão de quem faz. Revista Brasileira deSaúde da Família. Ano II, no. 4, janeiro de 2002. Brasília: Ministérioda Saúde.
BARRÊTO, I.C.H.C.; OLIVEIRA, E.; ANDRADE, L.O.M.A . Residência emSaúde da Família de Sobral: um ano formando profissionais emlarga escala. SANARE: Revista Sobralense de Políticas Públicas, v.2, no. 3, out/dez, 2000.
É preciso criar e fortalecer dia a
dia, a racionalidade da
promoção da saúde, que entendesaúde como resultante da
qualidade de vida.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 19
OO PROGRAMA DE SAÚDE DAFAMÍLIA: UM COMPROMISSOCOM A QUALIDADE DE VIDA
The Family Health Program: a Commitment with the Quality of Life
O Ministério da Saúde, as secretarias estaduais de saúde e os municípios que optaram por reestruturar o modelo de assistência
à saúde e o aparelho formador de pessoal que colabora para viabilizá-lo, via Programa Saúde da Família (PSF), têm
acompanhado, alimentado e enriquecido as discussões relacionadas ao tema qualidade de vida, que é ou deve ser o objetivo final
deste programa. Vários grupos dentro do setor saúde e muitos fora dele tem se dedicado a conceituar qualidade de vida, partindo
ou de revisões da literatura ou de premissas desenvolvidas por teóricos nacionais e/ou internacionais. Vamos apresentar vários
componentes e características do conceito enunciados na literatura e discuti-los a partir de dados de experiências vivenciadas na
prática, no contato com diferentes grupos da população.
Carta de Ottawa; programa saúde da família; qualidade de vida.
Márcia Faria Westphal
Profa. Titular do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Públicada Universidade de São Paulo
The Ministry of Health, state health secretaries and the municipals which opted to restructure the health care model and
the personnel training apparatus that collaborates to make this feasible, via the Family Health Program (PSF), have
accompanied, maintained and enriched discussions related to the quality of life theme, which is or should be the final objective
of this program. Various groups within the health sector and many outside of it have dedicated themselves to evaluate the
quality of life, coming from either published reviews or from premisses developed by national and/or international theoreticians.
We are going to present several components and characteristics of the concepts expressed in publications and discuss them based
on data from experience witnessed in practice, in contact with different groups of the population.
The Ottawa Charter; family health program; quality of life.
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O QUE É QUALIDADE DE VIDA?
Qualidade de vida é "uma construção social, com marca da
relatividade".
Recentemente MINAYO, HARTZ E BUSS (2000), reviram a
literatura e discutiram o conceito não conseguindo conceituá-lo
a não ser "como uma noção polissêmica", "uma construção social,
com a marca da relatividade". Segundo os autores "qualidade de
vida abrange muitos significados, que refletem conhecimentos,
experiências e valores de indivíduos e coletividades que a ele se
reportam em variadas épocas, espaços e histórias diferentes...".
De acordo com esta afirmação, a relatividade tem três fóruns
de referência: o histórico – parâmetros de referência em relação a
qualidade de vida de uma sociedade diferem em diferentes etapas
da história; cultural – valores e necessidades são construídos e
hierarquizados diferentemente pelos povos, revelando suas
tradições; estratificações e classes sociais – o bem estar das camadas
superiores é o padrão aspirado por todos e a passagem de um
limiar a outro se faz na perspectiva de atingir este padrão superior.
QUALIDADE DE VIDA E CONSUMO
No momento atual em que iniciamos um novo século, o
cenário mundial se apresenta como um movimento dinâmico de
globalização no qual surgem, além de novas fronteiras econômicas,
sociais e geográficas, crescentes conflitos culturais, religiosos e
humanos. O Estado tem o seu papel modificado, sendo a ação
governamental agora dirigida quase exclusivamente para tornar
possível às economias nacionais desenvolverem e sustentarem
condições estruturais de competitividade em escala global. O
capitalismo então na sua terceira fase de desenvolvimento, se rege
pelo mercado, baseia-se na flexibilidade em relação aos processos
de trabalho, ao mercado de trabalho, aos produtos e aos padrões
de consumo. Ao mesmo tempo com apoio dos novos sistemas de
comunicação e informação, dos bancos eletrônicos e do "dinheiro
de plástico" estas mudanças expandiram a sociedade de consumo.
O ritmo do consumo acelerou-se em diferentes áreas: vestuário,
ornamentos, decoração, hábitos de lazer, esportes e consumo de
eletrônicos. O consumo de serviços aumentou não apenas o
comércio, as necessidades de educação, saúde, mas grande parte
do capital está sendo aplicado na provisão de serviços efêmeros
que contribuem para alienar a população: diversões, espetáculos,
hapennings, reality shows.
Todas estas mudanças acentuaram a instabilidade dos
princípios temporais que organizam a vida. Assim, neste novo
século, as condições que favorecem positivamente o mercado,
como o consumo, são vistas como boas, como positivas. O mundo
de hoje nega o sistema, o coletivo, para afirmar o indivíduo, o
diferente, o atípico. O homem não participa mais com as massas na
política, mas dedica-se ao seu cotidiano, ao seu mundo. Envolve-
se com as minorias, com as pequenas causas, com as metas pessoais
e a curto prazo.
Dentro deste contexto, o conceito de qualidade de vida –
"padrão de consumo" – está se tornando hegemônico e a um passo
de adquirir "significado planetário" (MINAYO, HARTZ E BUSS, 2000).
"Conforto, prazer, boa mesa, moda , utilidades domésticas,
viagens, carro, televisão, telefone, computador... entre outras
comodidades e riquezas"... são valores do mundo ocidental,
urbanizado, rico e muitas pessoas se mobilizam para adquirí-los,
muitas vezes a qualquer custo (CARDOSO IN: HERCULANO 1998;
MINAYO, HARTZ E BUSS, 2000).
Justamente por existirem formas de conceituar qualidade de
vida, como a já mencionada, isto é, consumo como sinônimo de
qualidade de vida, do nosso ponto de vista, uma abordagem
eticamente enganosa e alienante da população é necessário um
trabalho de recuperação de valoress. Se considerarmos ainda o
argumento do relativismo cultural, e de todo aporte da discussão
que a literatura nos trás, é necessário estimular valores de
solidariedade e justiça social, entre os profissionais do programa
de saúde da família, para que possam combater a indiferença em
relação à marginalização, a exclusão, à fome e à doença, problemas
que estão na raiz dos conflitos, da violência e da má qualidade de
vida da população.
Mesmo considerando e valorizando o relativismo histórico e
cultural, outros autores deste século, especialmente ligados à
ciências sociais e filosofia vem discutindo formas de conceituar
qualidade de vida, a partir de universais da cultura e atendimento
de necessidades de sobrevivência.
Qualidade de vida contempla aspectos relacionados as
condições materiais de vida e à subjetividade nas relações dos
homens entre si e com a natureza.
O homem não participa mais com
as massas na política, mas
dedica-se ao seu cotidiano, ao
seu mundo. Envolve-se com as
minorias, com as pequenascausas, com as metas pessoais
e a curto prazo.
Qualidade de vida contempla aspectos relacionados as condições
materiais de vida e à subjetividade nas relações dos homens entre si
e com a natureza.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 21
A leitura dos textos destes autores sobre a
determinação da qualidade de vida permitiu observar
uma tensão constante entre o fato da mesma estar
relacionada a fatores objetivos, tais como as condições
materiais necessárias à sobrevivência (status sócio-
econômico, renda, habitação, acesso à agua pura,
saneamento básico, educação, emprego ou trabalho e
outros) ou a fatores subjetivos tais como a necessidade
de se relacionar com outras pessoas, formar identidades
sociais, sentir-se integrado socialmente e em harmonia
com a natureza, atitudes, percepções, sentimentos,
religião, crenças, tendência política, avaliação que o
indivíduo faz da sua qualidade de vida). Há autores
que expressaram posições radicalizadas relacionadas a
valorização de um dos dois fatores (DUBOS, 1970,
ANDREWS & WITNEY, 1976, BERLIGUER, 1983, COIMBRA,
1985, ROCHE, 1990, CROCKER, 1993, HERCULANO,
1998). Para SÉTIEN a qualidade de vida deveria atender
a dimensões objetivas e subjetivas, mas sob a ótica
coletiva e não individualizada, relacionada a satisfação
global dos grupos, comunidades ou sociedades
priorizando o bem estar social.
A partir do crescimento do movimento
ambientalista na década de 70, a maior parte da
literatura consultada, entretanto, segue uma tendência
preponderante da consideração de dois tipos de fatores
na constituição de um conceito orientador de ações:
os aspectos humanos e os ambientais. A perspectiva
ambientalista acrescenta o questionamento dos
modelos de bem estar predatórios, agregando
fortemente às preocupações anteriores, a visão da
ecologia humana (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS
SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1992;
CONFERÊNCIA PAN – AMERICANA SOBRE SAÚDE E
AMBIENTE NO DESENVOLVIMENTO HUMANO
SUSTENTÁVEL, 1995).
PRÉ-REQUISITOS PARA A SAÚDE E AQUALIDADE DE VIDA
No campo da saúde, o discurso da qualidade de
vida, embora bastante inespecífico e generalizante,
existe desde o nascimento da medicina social, nos
séculos XVIII e XIX. Nos últimos anos esta discussão
tem no conceito de Promoção de Saúde e nos textos
básicos das Conferências Internacionais desta área sua
fonte inspiradora. Segundo o nosso entendimento a
Carta de Ottawa que sintetiza as conclusões da I
Conferência Internacional de Promoção de Saúde
enfatiza também aspectos humanos e ambientais, a
objetividade e a subjetividade em conjunto, como pré-
requisitos para qualidade de vida e saúde de indivíduos
e coletividades. Os pré-requisitos para os quais chamou
a atenção foram: a paz; posse de uma habitação, que
atenda à necessidade básica de abrigo, adequada em
termos de dimensões por habitante, condições de
conforto térmico e outras; acesso a um sistema
educacional eficiente, em condições que favoreçam a
democratização da informação e formação dos cidadãos;
disponibilidade de alimentos em quantidade suficiente
para o atendimento das necessidades biológicas,
promoção do crescimento e desenvolvimento das
crianças e adolescentes e reposição da força de trabalho;
renda suficiente para o atendimento às necessidades
básicas e pré-requisitos anteriores; recursos renováveis
garantidos por uma política agrária e
industrial voltada para as necessidades
da população e o mercado interno e
não somente exportação e
importação, ecossistema preservado e
manejado de forma sustentável – (OPAS,
1996, STROZZI & GIACOMINI, 1996).
As recomendações desta Carta na
prática das equipes de Saúde da família
é que farão a diferença destes em
relação aos programas tradicionais e
que garantirão a mudança de
paradigma, de práticas e de resultados.
A discriminação deste pré-requisitos,
nesta perspectiva ampliada da saúde
não permite mais a restrição das ações
relacionadas a resolução das questões
da qualidade de vida, ao setor saúde.
Clama as diferentes instituições e os
diferentes atores sociais a verificar
como a sociedade está satisfazendo
as necessidades básicas da população,
a distribuição de bens e serviços, as
carências decorrentes de iniqüidades.
A qualidade de vida também é
desenvolvimento de capacidades
humanas básicas e com a participação dos grupos
populacionais
Uma discussão atual e com potencial para
questionar este fluxo hegemônico é o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) de autoria de
Nussbaum e Sen e o conceito subjacente a ele. Esses
autores influenciados pelos conceitos e a ética de
Aristóteles e os conceitos de Marx, elaboraram uma
concepção da "existência e do florescimento humano"
e a partir disto propuseram a forma atual de
desenvolvimento do Índice (CROCKER, 93). Dentro
desta perspectiva ética do desenvolvimento, definem
... I Conferência
Internacionalde Promoção de
Saúde enfatizatambém aspectos
humanos e
ambientais, a
objetividade e a
subjetividade em
conjunto, como
pré-requisitos
para qualidadede vida e saúde de
indivíduos e
coletividades.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200322
qualidade de vida a partir de dois conceitos: "capacidade", que
representa as possíveis combinações de potencialidades e situações
que uma pessoas está apta a "ser" ou "fazer" e "funcionalidade" –
que representa partes do estado de uma pessoa – as várias coisas
que ela faz ou é. Para os autores então, qualidade de vida pode ser
avaliada em termos de "capacitação para alcançar funcionalidades
elementares – alimentar-se, ter abrigo, saúde – e as que envolvem
auto respeito e integração social – tomar parte na vida da comunidade".
A capacitação dependerá de muitos fatores e condições,
inclusive da personalidade do indivíduo, mas principalmente de
acordos sociais e de participação da população. Com este enfoque
os autores privilegiam a análise política e social das privações –
valorizando as oportunidades reais que as pessoas tem a seu favor.
Nesta perspectiva "qualidade de vida não deve ser entendida com um
conjunto de bens, confortos e serviços, mas através destes, das
oportunidades efetivas das quais as pessoas dispõe para ser e se
realizar no passado e no presente"... e no futuro (HERCULANO,
1998).
Nesta perspectiva o bem estar ou a melhoria da qualidade de
vida, a possibilidade de ser ou de se realizar depende de uma opção
política de desenvolvimento a partir da democratização da socieda-
de. Uma opção política para obtenção de acordos sociais seria a
ética da solidariedade, que consiste em um esforço de mudança
do Estado em sua relação com a sociedade que se expressa pela
formação de novas modalidades de parceria entre a sociedade e o
governo para resolução dos grandes e complexos problemas que
vivemos. O processo de democratização complementarmente se
propõe a, através da educação, ampliar as possibilidades da cole-
tividade influenciar nas decisões que dizem respeito à ela e parti-
cipar na vida comunitária se disponibilizando como coletividade,
a ser influenciado por ações passadas e presentes.
QUALIDADE DE VIDA, HÁBITOS E ESTILOS
Ainda, para podermos encontrar o caminho mais adequado
para tratar a questão da qualidade de vida no mundo atual, em
função de um novo modelo de desenvolvimento, é necessário
colocar em questão uma assertiva, um componente muito presente
em programas do setor saúde e em programa de "qualidade na
empresa". A concepção a ser discutida é a que encara a depreciada
relação ser humano/natureza, como decorrente basicamente dos
comportamentos inadequados dos indivíduos, buscando adentrar
o campo das forças que determinam estes comportamentos, para
modificá-los. A mudança de comportamento ou de estilo de vida
surge como uma importante estratégia para a consecução da
qualidade de vida. Na medida em que não se consegue modificar o
comportamento "deletério à saúde" ou qualidade de vida de um
indivíduo ou de uma coletividade, transforma-se a vítima, que
geralmente vive condições adversas de vida, em culpada por não
querer assumir um estilo de vida considerado "de qualidade",
"saudável", e por conseqüência não ter um padrão de saúde
adequado.
CONCLUSÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE QUALIDADEDE VIDA
Em síntese, um conceito de qualidade de vida orientador de
ações deve considerar a relatividade histórica, cultural e social.
Neste início de século, a complexidade que ele representa em um
mundo também difícil e complexo, reflete a organização política
e social do momento e do passado recente com todas sua dinâmica.
Não representa somente a possibilidade de consumir bens duráveis
e não duráveis, fundamentais para a sobrevivência e os supérfluos,
nem depende exclusivamente dos indivíduos assumirem estilos de
vida saudáveis. Integra muitas dimensões, tantas decisões políticas
quantas estiverem interferindo no nosso desenvolvimento
econômico, social e humano e tantas condições políticas, de vida
e trabalho quantas forem necessárias para que possa vir a ser
empregado como substrato de uma crítica em profundidade a um
estilo de desenvolvimento vigente, que valoriza o indivíduo e o
consumo que ele pode gerar. O movimento pela qualidade de vida
neste momento não é considerado apenas um modismo, mas um
movimento de indagação sobre o futuro, onde a desigualdade
está presente de forma contundente.
Enfim conceituar qualidade vida, tentando resgatar o
princípio ético da vida, como o fizeram os participantes da
Conferência de Ottawa é fundamental (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2001). Uma conceituação deste tipo, estimula as diferentes
instituições e os diferentes atores sociais a verificar como a
sociedade está satisfazendo as necessidades básicas da população,
a distribuição de bens e serviços, as carências decorrentes de
iniqüidades e da falta de oportunidade de adquirir conhecimentos
orientadores de práticas mais saudáveis.
... a ética da solidariedade, que
consiste em um esforço de
mudança do Estado em sua
relação com a sociedade que
se expressa pela formação de
novas modalidades de parceria
entre a sociedade eo governo para resolução dos
grandes e complexosproblemas que vivemos.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 23
Este trabalho entretanto não é fácil. Geralmente os
profissionais de saúde têm seus valores pessoais e profissionais e
como pertencem a uma classe diferente da população em geral,
em função do relativismo do mesmo já mencionado, têm
dificuldade de entender, a partir dos discursos da população os
seus conceitos de qualidade de vida e agem preconceituosamente
em relação à priorização que a população dá às suas necessidades
e seus sonhos.
Para exemplificar isto temos uma história verídica a contar.
Certa vez em uma cidade pequena do interior de São Paulo, a
universidade trabalhando junto ao Departamento de Saúde local
na implementação do SUS e seus princípios, levou a efeito um
levantamento de necessidades junto a grupos organizados da
população do município e o lazer apareceu como uma ação
prioritária a ser atendida pelo governo local, juntamente com a
oferta de capacitação profissional para os adolescentes fora do
horário escolar.
O Serviço de Saúde local neste momento em expansão, estava
com dificuldades de conseguir verba da prefeitura para a extensão
dos serviços de atenção à saúde da comunidade e o prefeito,
desonesto e interessado em superfaturar obras, aproveitou a
oportunidade para começar a construção de um ginásio local de
esportes. O chefe do Departamento de Saúde não quis negociar e
inclusive considerou problemática a ação da universidade que
havia interferido negativamente na negociação de verbas para a
saúde. O chefe do Departamento do Serviço de Saúde levou a
efeito investigações que comprovaram a desonestidade do prefeito
e este foi colocado em disponibilidade, tendo o ginásio de esportes
ficado com suas obras paradas por muitos anos. Naquele tempo,
1990 ainda não se discutia Promoção de Saúde e tudo ficou como
distorção da pesquisa e ação enganosa do Prefeito. Somente em
2000 este ginásio ficou pronto e em uso. Não sabemos se agora a
comunidade tem lazer neste local.
Hoje, revendo esta questão ficaram comprovadas duas coisas,
que nós profissionais de saúde perguntamos à comunidades seus
interesses, mas na maior parte das vezes não ouvimos e não
entendemos ou não conseguimos dialogar com pessoas que tem
pontos de vista diferentes dos nossos. Fazemos aquilo que
tecnicamente consideramos correto do ponto de vista
epidemiológico e de técnicas de gestão, ignorando o que ouvimos,
considerando que a população não sabe o que melhor para ela, ou
melhor não sabe o que precisa para melhorar suas condições e
qualidade de vida. As soluções exclusivamente técnicas as vezes,
podem não ser acertadas, porém isto não quer dizer que o técnico
tenha que se omitir, bem como a população também precisa
participar das decisões porque é ela que vive o dia a dia, no
território geográfico e de relações. É ela que conhece a história e
que a partir de seu mundo aspira ter tudo aquilo que a mídia lhe
apresenta como valor. É ela que não tem condições para mudar
seus estilos de vida e torná-los mais saudáveis, é ela não tem água,
que não tem esgoto e local para colocar o lixo para ser recolhido.
É ela que vive o stress do trabalho, do desemprego, da fome, da
habitação acanhada e da falta de espaço para fugir de todas estes
problemas.
Hoje a partir do conceito de Saúde e das estratégias de
Promoção da saúde, nosso horizonte se amplia, mas o risco do
preconceito continua. Vários grupos começam a colocar na mesa
seus pontos de vista, discutir e argumentar, técnicos e população
e negociar soluções, compreendendo que os valores e as
necessidades são relativos, que os comportamentos necessitam de
condições para serem modificados e que a síntese cultural deve ser
buscada para que a solução seja a mais acertada possível.
A identificação dos problemas e a consciência da causalidade
fortalece os grupos e segmentos da população e colabora para a
organização dos mesmos no sentido de que planejem e
implementem iniciativas saudáveis que colaborem para a melhoria
das condições de vida e trabalho e para que se reunam para
advogar junto ao Estado, as condições necessárias à garantia dos
direitos humanos básicos e para trabalhar de forma articulada e
parceira com ele para a resolução dos problemas do país.
A QUALIDADE DE VIDA E O PROGRAMA SAÚDE DAFAMÍLIA
Uma estratégia adotada para implementar o Sistema Único
de Saúde (SUS) é o Programa de Saúde da Família, que deve se
responsabilizar por atender às demandas relacionadas ao
diagnóstico e tratamento de doenças das famílias que vivem no
território onde a mesma atua, identificar e promover o controle
dos fatores de risco destas doenças e desenvolver atividades, para
que os pré-requisitos sintetizados na Carta de Ottawa para saúde e
qualidade de vida da população sejam atendidos.
Ações individuais, coletivas, com base na ética da
solidariedade e que busquem a sustentabilidade e respeito nas
relação do homem com a natureza precisam ser programadas e
desenvolvidas. O programa de saúde da família tendo uma atuação
mais ampla poderá dar uma contribuição importante para a mudança
de modelo e atendimento das necessidades da população.
Há, entretanto, uma demanda de trabalho para os
profissionais de saúde envolvidos nos programas de Saúde da
Família que é, por assim dizer, adicionada à demanda tradicional.
No campo da prática, ao mesmo tempo em que o profissional deve
dar conta de tarefas tradicionais, sobretudo as de caráter técnico,
Ações individuais, coletivas, com base na ética da solidariedade e que
busquem a sustentabilidade e respeito nas relação do homem com a
natureza precisam ser programadas e desenvolvidas.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200324
necessita compreender o que é trabalhar pela
qualidade de vida hoje. Mais do que isso, deve
ser preparado, com o conhecimentos e a
habilidades para a interlocução, para se dirigir
a um público mais amplo do que fazia
tradicionalmente, e principalmente, para
incorporar em suas tarefas e aptidões o universo
político que o rodeia. Há uma demanda extensa
por parte de um público, até certo ponto
incomum, para o profissional que se insere
neste campo de trabalho.
A interdisciplinaridade e a interse-
torialidade, condição básica para a resolução
dos complexos problemas de qualidade de
vida, trazem dificuldades que lhe são inerentes
e desafios que não são novos (BUSS, 1996).
Aqui talvez resida o maior desafio e grande
parte da missão da equipe de saúde da família
e dos profissionais que a integram,
especialmente no atual estágio de construção
em que o modelo se encontra e no
enfrentamento dos complexos problemas do
mundo contemporâneo.
Os profissionais, para desempenhar o
papel de promotores da qualidade de vida,
devem ser capazes de fazer uma avaliação crítica
da realidade, serem autônomos e aptos ao
diálogo técnico e leigo com os mais variados
setores. Devem ainda estar habilitados a
desempenhar atividades antes não requeridas,
como a atuação política junto a grupos
populacionais, institucionais e órgãos de
administração pública.
As Unidades de PSF e seus profissionais
responsáveis têm que se preocupar com a
apresentação e as interações que ocorrem no
seu ambiente interno. O ambiente dos serviços
de saúde nem sempre representam aquilo que
se ensina para a população nos atendimentos
domiciliares ou nas unidades. Nem sempre o
ambiente dos mesmos favorece o bem estar
físico, mental, social e espiritual dos seus
profissionais, dos seus funcionários e muito
menos usuários durante a permanência nas suas
dependências.
O clima de competição entre os
profissionais e ou funcionários, a mudança da
relação espaço/tempo tanto para profissionais
como para funcionários vem favorecendo a
criação e permanência do estresse, violência e
outros problemas de origem emocional em
... cada
Unidade de
Saúde da Família e
sua equipe,
precisa se
conscientizarde sua
responsabilidade
em relação à
qualidade de
vida das pessoas
que convivem nas
suas dependências,
no dia a dia,
e assumir
concretamente
um projetointerdisciplinar,
intersetorial e
ético para ser
desenvolvido com
este objetivo,
dentro e fora da
Unidade.
suas dependências. A carga psicológica do
trabalho, muitas vezes juntamente com o baixo
salário e riscos de acidentes do trabalho
introduzem a necessidade de análise da
organização do trabalho e prescrição
tecnológica inerente à saúde do trabalhador.
Os ambientes administrativos, de
atendimento e laboratórios criados sem
preocupação com o bem estar dos indivíduos
que os freqüentam, fazem-nos pensar em
abordagem ambiental interna para as áreas,
com controle atmosférico de poluentes
químicos e biológicos, controle de som e
iluminação.
Muitas práticas realizadas nas Unidades
de saúde se caracterizam por manter o statu
quo, por desenvolver pouca consciência social,
por tentar instigar comportamentos
inaceitáveis, mais do que encorajar as pessoas
a mudar a sociedade e por culpar a vítima por
seus comportamentos inadequados. O que
existe de positivo ou de mudanças
correspondem a esforços isolados e algumas
unidades e baseada em uma visão parcial do
que seja qualidade de vida ou de qual seja a
contribuição da mesma para sua transformação.
Para uma contribuição efetiva para o
tema, cada Unidade de Saúde da Família e
sua equipe, precisa se conscientizar de sua
responsabilidade em relação à qualidade de
vida das pessoas que convivem nas suas
dependências, no dia a dia, e assumir
concretamente um projeto interdisciplinar,
intersetorial e ético para ser desenvolvido com
este objetivo, dentro e fora da Unidade (BUSS,
2000).
A QUALIDADE DE VIDA MENSURADAEM TODOS OS SEUS ASPECTOS
A qualidade de vida como um objetivo a
ser atingido por Programas de Promoção de
Saúde como o Programa de Saúde da Família,
precisa mensurar seus resultados e
compreendê-los para melhorar constan-
temente suas possibilidade de melhorar as
condições de vida e trabalho da população,
em conjunto com outras iniciativas existentes
nas comunidades onde atuam.
O índice de desenvolvimento humano
proposto por Sen & Naussbaum, o IDH
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 25
(CROCKER, 93), mensura a qualidade de vida obtida a
partir de vários modelos de desenvolvimento
utilizados do primeiro, ao terceiro mundo. Apura não
só o desenvolvimento da produção a partir de dados
do PIB per capita, mas verifica a expectativa de vida
ao nascer que afere as possibilidades de adoecimento
na população e a alfabetização que contabiliza o
acesso a escolarização. Contudo, falham do ponto de
vista de muitos autores, por não incorporarem a
dimensão ambiental, o que possibilitaria a percepção
sobre o estado do ecossistema, muito importante,
especialmente nos dias de hoje, com a urbanização e
a industrialização, degradando a qualidade de vida
nas cidades. Falham também por não incluir indicadores
e metodologias qualitativas de pesquisas que dêem
conta dos aspectos subjetivos e da complexidade do
conceito.
Outros indicadores precisam ser criados pelos
programas de Saúde da Família pensando
principalmente na relatividade cultural e estrutural do
conceito, como também será importante participar do
jogo de construção de indicadores e mensuração a
partir de um conceito que considere o contexto sócio-
econômico-cultural, a história, as condições objetivas
de vida e as potencialidades de uma população que
vive em um território.
Os indicadores devem ser objetivos suficiente,
que sejam capazes de indicar problemas e
potencialidades e capaz de subsidiar sugestões para a
implementação de políticas, que garantam uma ordem
social mais eqüitativa de distribuição de riqueza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Caso não seja feito este esforço, a identificação
de problemas e a criação de propostas transformadoras
em qualquer ambiente serão ingênuas e parciais e a
possibilidade de demonstrar a eficiência do programa
será muito pequena. Hoje é possível contabilizar o que
foi feito e alguns indicadores de resultados em função
de redução de índices de incidência e prevalência de
doenças, bem como de mortalidade. Mas não é possível
verificar impacto em termos de melhoria da qualidade
de vida, de saúde, que é a proposta da Promoção da
Saúde. Caso não se faça este esforço de construção de
indicadores, esta proposta de "Programa Saúde da
Família" serão marginalizados de interesses vitais do
processo decisório, pois as autoridades e a sociedade
necessitam que suas atividades tenham sua efetividade
em relação a melhoria da qualidade de vida comprovada,
se possível em números.
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Os indicadores devem ser objetivos
suficiente, que sejam capazes de indicar
problemas e potencialidades e capaz
de subsidiar sugestões para a
implementação de políticas, que
garantam uma ordem social mais
eqüitativa de distribuição de riqueza.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200326
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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 27
AAPODERAMENTO
Empowerment
Inicialmente, esse texto tem a ousadia de propor a adoção de um novo termo para o “objeto” que ele tratará. O termo
“empoderamento”, reconhecidamente um neologismo da língua inglesa, do termo “empowerment”, no português gera um
desconforto ideológico. Empoderar seria “dar poder a”. Nessa concepção, uma pessoa detentora de poder compartilha o seu poder
com alguém partindo de um desprendimento, podendo da mesma forma “tirar esse poder” quando lhe convier. O objeto aqui
tratado é outro. Trata-se de um processo de reconhecimento do poder existente, ainda não exercido, mas disseminado na
estrutura social que não escapa a nada e a ninguém. Se o poder é um elemento da sociedade, apoderamento, “ad-poderamento”,
significa “trazer o poder mais próximo de si”, o que está mais de acordo com a idéia que será trabalhada. Essa dinâmica só pode
ser entendida com base na dialética consenso/conflito, competência profissional/sabedoria leiga, instituições hierárquicas/
círculos comunitários.
Empoderamento; modelo biomédico; saúde pública; programa saúde da família; promoção da saúde.
Tomaz Martins JúniorDiretor Presidente da Escola de Saúde da Família Visconde de Sabóia
Initially, this text has dared to propose the adoption of a new term for the "object" with which it will deal. The term
"empoderamento", recognizably a neologism of the English language, from the word "empowerment", in Portuguese
generates an ideological discomfort. To empower would be "to give power to". From this concept, a person holding power shares
his power with someone parting with it as a release, being able in the same way "to take away this power" whenever convenient
for him. The object dealt with here is another one. It is about a process of recognizing the power already existing, not yet
exercised, but disseminated within the social structure that does not exclude anything or anyone. If the power is an element
of society, empowerment, "ad-poderamento", means "to bring power closer to oneself", which is more in agreement with the
idea that it will be developed. This dynamic can only be understood based on the dialectics of consensus/conflict, professional
competence/lay wisdom, and hierarchic institutions/communitarian groups.
Empowerment; biomedical model; public health; family health program; health promotion.
s i n o p s e○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○
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S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200328
HISTÓRIA DO PODER
O desconforto ideológico para o termo "empoderamento" é fortalecido pela
tendência histórica à dominação, em que o poder exercido por um grupo
minoritário, comanda o majoritário. Nessa relação de poder, a participação social nos
processos políticos é considerada como uma concessão dos poderosos, que se sentem
no direito inclusive de delimitar o espaço dessa participação: concessão, sob controle,
de poder. Essa relação de dominação fica bastante evidente em toda a América Latina,
continente onde se registram as maiores desigualdades.
Fazendo uma análise histórica das relações de poder no Brasil, podemos destacar
que sempre existiu uma forte relação de dominador/dominado. Tal característica esteve
presente na relação colonizador-colonizado (português e os povos indígenas), repetiu-
se de forma também bastante cruel na cultura colonial escravocrata, na relação entre
oligarquias rurais e imigrantes, ganha nova roupagem nos regimes populistas dos anos
50 e 60, e segue-se nos anos da ditadura militar, mais uma vez com fortes traços de
crueldade.
A partir dos anos 70 percebe-se o início de um processo de democratização
desencadeado pela mobilização e pressão da sociedade civil e política. Com a
substituição dos regimes militares pelos regimes civis, os movimentos sociais cresceram
em número, ganharam visibilidade e têm promovido mudanças na cultura política
brasileira. Mudanças essas baseadas numa visão de direitos sociais coletivos de grupos
sociais oprimidos e/ou discriminados, o que tem promovido uma importante discussão
da necessidade de mudanças no papel do Estado e da sua relação com a sociedade.
Nos dias de hoje, esse conceito vem sendo incorporado pela saúde pública no
campo da promoção da saúde. Esse novo enfoque fundamenta-se em uma compreensão
de saúde relacionada a um conjunto de valores: solidariedade, cidadania, participação,
revalorização ética da vida. Portanto, relaciona as determinações de saúde ao impacto
das dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas. Segundo Kuhn, essa mudança
de paradigma caracteriza o abandono relativamente abrupto dos modelos teóricos
prevalecentes, dos protocolos experimentais e de hipóteses proeminentes, com vistas
a adotar uma visão radicalmente nova da realidade.
A MODÉSTIA NO SABER
Nesse "novo movimento" da Saúde
Pública, o conceito de saúde encontra-se
significantemente afetado pela necessidade
que cada um tem de controlar sua própria vida
e pela quantidade de poder ou de falta de
poder que a pessoa julga ter. Por essa razão,
dedica uma especial atenção ao conceito de
fortalecimento, como uma das principais
estratégias de promoção de saúde. Sem dúvida,
essencial à noção de fortalecimento, encontra-
se o conceito de poder, definido por Weber
como a capacidade que o indivíduo tem de
fazer com que os outros façam aquilo que ele
deseja, por meio da persuasão ou da coerção.
O fortalecimento de uma comunidade se dá
no processo de reconhecimento daquilo que a
afeta e da capacidade de ter acesso ao poder,
de forma a transformar a sua realidade.
Com a substituição
dos regimesmilitares pelos
regimes civis, os
movimentossociais cresceram
em número,
ganharam
visibilidade e
têm promovido
mudanças na
cultura políticabrasileira.
O movimento de promoção da saúde
reforça a necessidade de compartilhar o poder,
o "poder com". Isso envolve a noção de
parceria entre profissionais e indivíduos ou
comunidades, para superar o relacionamento
mais tradicional e hierárquico do fornecedor/
cliente.
Na nossa sociedade, é ainda difundido e
aceito pelo senso comum, a relação existente
entre o possuir conhecimento, o saber algo e
o poder. Mesmo quando consideramos outros
elementos materiais, o saber ocupa espaço
importante na hierarquia que o senso comum
constrói ordenando quem pode mais ou quem
pode menos. O "poder dizer sobre" (isto é ter
um saber) legitima o "prescrever para" o outro
e colocá-lo sob controle. Entretanto, nessa
nova visão da promoção da saúde esse
"prescrever para" a transformação da realidade
implica a valorização de uma outra forma de
saber: o conhecimento dos problemas da
realidade em que vivem. Nessa perspectiva os
"não instruídos" podem participar dessa
relação de poder, ocupando uma posição
importante por possuir um conhecimento.
É importante que a comunidade perceba
que atuando com base em um modelo de
atenção à saúde de base biomédica, é possível
que os profissionais se sintam detentores de
todo o conhecimento considerado como
necessário para garantir a ausência de doença
de uma população. A aplicação desse modelo
biomédico ao longo dos anos tem fortalecido
a postura autoritária dos profissionais, "os
O fortalecimento de
uma comunidade se dá no
processo de
reconhecimento daquilo
que a afeta e da
capacidade de ter acesso
ao poder, de forma a
transformar a sua
realidade.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 29
instruídos", na sua relação com os "não instruídos". A nova relação,
com base na promoção à saúde, parte da consciência do profissional
de reconhecer a sua incapacidade de resolver os principais
problemas de saúde da população. Os problemas mais prevalentes
são de tamanha complexidade que o saber clínico (biomédico)
mostra-se bastante insuficiente para promover mudanças. Portanto,
para um novo modelo que consiga promover a saúde da população
é importante que o profissional reconheça a amplidão de
conhecimentos necessários para a promoção da saúde, e dentro
dessa amplitude a importância do conhecimento adquirido pela
vivência, reconhecido aqui como instrumento de apoderamento
da população.
CONSTRUINDO A PROMOÇÃO DA SAÚDE
O apoderamento de uma comunidade não se dá de forma
espontânea, mas pressupõe a percepção por parte de seus membros
das formas de como esse poder se realiza e se dissemina na
sociedade. A não percepção das formas de realização do poder é
percebida pela comunidade como ausência de poder. O processo
de apoderamento requer o desenvolvimento de uma mobilização
social que promova a participação das pessoas, das organizações e
das comunidades nas decisões. Esse processo deve partir da
percepção da capacidade que a população tem de transformar a
informação ou o conhecimento, o que pressupõe então uma relação
educativa, troca de conhecimentos entre profissionais e população,
gerando a produção de novos conhecimentos.
Há de se ressaltar entretanto que apenas o reconhecimento
da falta de poder e o conhecimento dos mecanismos de poder
existentes não são suficientes, pela forma como a sociedade se
encontra organizada. Existe uma impermeabilidade nas estruturas
de poder, que para ser rompida requer a capacidade de aglutinação:
um processo de apoderamento coletivo que extrapola o
apoderamento individual e que é conseguido a partir da capacidade
de aglutinar pessoas ou grupos que comungam com uma mesma
visão de mundo, as mesmas aspirações, interesses e motivações.
Esse processo de aglutinação deve ser norteado por princípios
como o respeito às pessoas e aos espaços de convivência, à
solidariedade, à transformação, na perspectiva da construção
coletiva de realidades saudáveis.
Na evolução do conceito de promoção da saúde, a Carta de
Ottawa trabalha com o conceito de apoderamento ao definir
Promoção da Saúde como o "processo de capacitação da
comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e
saúde, incluindo uma maior participação no controle deste
processo".
A Declaração de Sundsvall, ao enfatizar o tema Ambientes
Saudáveis à Saúde, também identifica como uma das estratégias
fundamentais para a ação em saúde pública "capacitar comunidade
e indivíduos a ganhar maior controle sobre sua saúde e ambiente,
através da educação e maior participação nos processos de tomada
de decisão". A Declaração de Jacarta reconhece que a promoção
da saúde efetua-se pelo e com o povo, e não sobre e para o povo
e que para melhorar a capacidade das comunidades e promover a
saúde, é preciso que as pessoas tenham direito de voz e mais
acesso ao processo de tomada de decisão e às habilidades e
conhecimentos essenciais para efetuar a mudança.
Entretanto, é importante reconhecer que a relação entre
profissionais e população não deve ser um processo educativo de
mão única: profissional que ensina e população que aprende. A
promoção da saúde deve ser entendida como um campo de
conhecimento ainda em construção que prioriza a relação dialógica
entre o conhecimento dos profissionais e o da comunidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Promover a mudança para um modelo com base na promoção
da saúde é uma tarefa árdua da Estratégia Saúde da Família.
Entretanto, esse deve ser o seu objetivo principal. Assim, os
profissionais têm um papel importante em promover um diálogo
entre as informações importantes sobre a promoção da saúde, já
sistematizadas, com aquelas tão importantes quanto as primeiras,
fruto da vivência da comunidade e que por isso guarda uma relação
com a sua cultura, com o seu modo de viver. Para isso, é necessário
que reconheçam a impossibilidade de resolver os atuais problemas
de saúde de uma população apenas com os conhecimentos
biomédicos, evidenciando assim, a necessidade de dialogar
continuamente com a comunidade. O reconhecimento da
necessidade desse processo dialógico é vital para o processo de
apoderamento da população.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANDEIAS, N.M.F. Promoção em saúde, a nova ciência normal. 1999 inmimeo.
FERREIRA, J.R. & BUSS.P.M. Atenção Primária e promoção da saúde inPromoção da Saúde. Ministério da Saúde.
Brasília, 2001.
Organização Mundial da Saúde, Carta de Ottawa, 1986.
Organização Mundial da Saúde, Carta de Sundsvall, 1991.
Organização Mundial da Saúde, Carta de Jacarta, 1997.
WESTPHAL, M.F. Participação e cidadania: aplicação à proposta depromoção de saúde. In mimeo.
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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 31
CCIDADANIA, CAMINHO
PARA UMA VIDA SAUDÁVELCitizenship, the Road to a Healthy Life
Intersetorialidade para uma cidadania participativa. Essa é a base para a atuação do dia-a-dia das equipes do saúde da família,
que devem pautar suas atividades no diálogo mediador com os atores sociais locais e seguimentos institucionais ou não, na
busca da garantia e reconhecimento dos direitos da comunidade. Assim, estimulando práticas de saúde e soluções de problemas
comuns.
Cidadania; equipe de saúde da família; intersetorialidade; promoção da saúde.
Maria Cecília Cordeiro DellatorreMédica sanitarista
Mestre em Saúde ColetivaDocente de Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina de Marília
Intersectoriality for participative citizenship. This is the basis for the day-to-day actuation of the family health
teams, which should direct their activities into mediating dialogue with the local social performers and institutional
followings or not, in the search for guarantee and recognition of community rights. In this way, stimulating health practices
and solutions to common problems.
Citizenship; family health team; intersectoriality; health promotion.
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CAUSAS E EFEITOS
Uma pesquisa feita por estudantes de enfermagem e Agentes
Comunitários de Saúde (ACS), em três microáreas de uma
unidade básica de saúde, mostrou as dificuldades das pessoas em
cumprirem a recomendação de fazerem caminhadas. Cerca de 70%
havia recebido esta recomendação, porém, de todos entrevistados,
apenas 30% caminhavam. Uma das dificuldades apontadas foi o
estado das calçadas (esburacadas, com desníveis, cheias de
entulho), das ruas de moradia e para o bairro como um todo. Dos
que receberam a recomendação, 30% já havia sofrido queda recente,
74% das quais nas calçadas, 15,6% em buracos nas ruas e 5,2%
atropelados por bicicletas e 5,2% porque sentiram tontura.
Esta justificativa para não caminhar, não seguir a orientação
recebida, é colocada com freqüência pelas pessoas. Talvez não
diretamente para o médico, mas para o ACS. Outras razões
impeditivas, ou que dificultem as caminhadas, podem gerar
constrangimentos e não serem colocadas tão facilmente. A lista
pode ser interminável como não ter sapatos confortáveis, não ter
roupas adequadas, não ter companhia ou, ainda, a "urina solta", a
flatulência, os calos, a sede, o entusiasmo e a vontade que somem
na hora de sair de casa.
Outra ordem de razões: não podem deixar os netos sozinhos,
têm compromissos de trabalho em casa, têm pessoas dependendo
delas, por problemas físicos e/ou mentais, têm medo de desafetos
e /ou marginais...
São muitas as variáveis explicitadas, ou não explicitadas,
que podem levar a que a aparente simples recomendação de fazer
caminhadas não "possa" ser cumprida.
O ACS que cobra com insistência passa a ser evitado, mesmo
o médico ou enfermeiro da equipe.
As desculpas evasivas do paciente não são aceitas, o que
pode levar até ao abandono de todo o tratamento. Por parte da
equipe, pode se iniciar um discurso de invalidação da clientela do
tipo: "a gente cansa de falar, mas não ligam", "só querem remédios
e exames", "não entendem que é para o bem deles", "ignorantes e
irresponsáveis"... As conseqüências podem ser o desânimo com o
trabalho, a valorização apenas dos que aderiram, deixando de lado
os "desanimados, desinteressados", o uso de medidas um tanto
autoritárias, com certa dose de chantagem emocional ou mesmo
material, recursos vários, para que as "metas" sejam cumpridas.
Relativizando as dificuldades externadas, o reconhecimento
de que as pessoas só participam quando se sentem realmente
envolvidas e quando dispõem de clareza e condições para ultrapassar
as barreiras que se interpõem ao cumprimento do recomendado
pela ESF.
COMUNICAÇÃO PARA A CIDADANIA
As condições ou barreiras tanto podem ser individuais como
coletivas. A busca de soluções e apoio pode ser parte das funções
da Equipe de Saúde da Família (ESF), mas também pode ser do
executivo, legislativo, judiciário, associação do bairro, da esfera
municipal, estadual ou federal. Muitas vezes a própria ESF ou seus
coordenadores podem pretender ser a "síntese da intersetorialidade"
e tentar dar conta de tudo. Ser um pouco terapeuta ocupacional,
monitor de lazer, líder de mutirões, diplomata e negociador com
as diferentes estâncias de poder local, cozinheiro, hortelão,
fornecedor de roupas e comida. Enfim, tentar preencher uma
infinidade de lacunas de responsabilidades e/ou direitos sociais e
até mesmo civis. Como saber e dar conta das limitações da ESF,
quais as responsabilidades da sociedade, do(s) governo(s) ou do
estado?
Murilo de Carvalho cita uma pesquisa feita em 1997, no Rio
de Janeiro, onde ficou demonstrado a precariedade do
conhecimento dos direitos civis, políticos e sociais. A pesquisa
mostrou que 57% dos entrevistados não sabiam mencionar um só
direito, sendo que só 12 % mencionaram algum direito civil.
Como pode, então, a ESF dar conta desde as caminhadas,
que não são feitas por conta dos buracos nas calçadas, das unhas
compridas do pé, da falta de creches, de espaços e cuidadores para
deficientes físicos e mentais, o direito ou não à aposentadoria, à
renda, ao trabalho, saneamento, moradia, alimentação, educação,
lazer, que são todos determinantes e/ou condicionantes da saúde,
sem se transformar em "síntese da intersetorialidade"?
Não pretendendo ser "resumo" dos direitos sociais, civis e
políticos, ou "rascunho" de cidadania.
O primeiro ponto essencial é a certeza de estar existindo
comunicação entre a ESF e os que moram no bairro, no território
da unidade.
A busca de soluções e apoio pode
ser parte das funções da Equipede Saúde da Família (ESF), mas
também pode ser do executivo,
legislativo, judiciário, associação do
bairro, da esfera municipal,
estadual ou federal.
São muitas as variáveis explicitadas, ou não explicitadas, que podem
levar a que a aparente simples recomendação de fazer caminhadasnão "possa" ser cumprida.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 33
Quando a equipe começa a perceber que invalida
parte da comunidade, rotulando-a como a "que não
entende", que é "acomodada", é um primeiro sinal de
alerta.
Durante define a "linguagem como atividade
humana complexa que permite aos homens representar
as realidades mantendo estreita relação com o
pensamento. Através da linguagem é possível a
representação, a regulação do pensamento e da ação,
e a comunicação de idéias, pensamentos e intenções".
Se a linguagem do ACS com a comunidade vai se
burocratizando, escravizando as metas e programas
rígidos, o risco de não estabelecer um diálogo e sim
um monólogo constrangedor, é muito grande. Um
recurso de fala muito utilizado é o de diminutivos,
infantilizada, um arremedo de comunicação. Ela é
ensurdecedora, de mão única, não transmite
pensamentos, sequer intenções.
No caso da ESF pretender desempenhar um papel
mediador, estimulador de práticas que busquem saúde,
precisa decodificar os fatores impeditivos, debatê-los
com pequenos grupos já mobilizados, procurando
estabelecer novos vínculos, ou reforçar antigos que
estejam fragilizados, entre os que apresentam problemas
comuns.
Voltando ao exemplo, quem pode ajudar o outro
a cortar as unhas dos pés, quem pode tratar os calos,
quem pode dar o braço na caminhada, ficar e cuidar do
neto ou do sobrinho deficiente?
D'Incao e Roy alertam sobre o papel mediador,
para que "a intervenção permita que novas relações se
construam sobre a autonomia das pessoas no direito
de se exprimir e de negociar livremente as soluções
dos problemas que lhes são comuns". Alerta, ainda,
sobre o "cuidado de não permitir que as pessoas se
alienem", transferindo, no caso a ESF, suas
responsabilidades. A ESF deve informar, questionar,
debater práticas que garantam a saúde e, reenviando a
cada questão, o sentido e conseqüências das escolhas
efetuadas.
Partindo desta relação mediadora, de respeito,
segue-se a intermediação para o significado de direito,
iniciando pelo direito à saúde, que é, e deve ser do
conhecimento de toda a equipe do PSF.
CIDADANIA PARTICIPATIVA
Para garantir o direito à saúde, que outros direitos
devem ser assegurados, quais instâncias têm a função
de garanti-los, quais organizações (ONGs) estão
disponíveis para apoiar este debate, que secretarias
municipais podem e devem ser acionadas, quais outras
instituições, como a promotoria pública , as
companhias de saneamento, etc.?
A ESF deve ser cuidadosa nesta função, não
avocando todos os encaminhamentos, saídas e
soluções, pois corre o risco de se constituir em nova
fonte de alienação, reproduzindo pela mediação os
comportamentos de dominação, cooptação e/ou
populistas.
É essencial que na Unidade de Saúde da Família
(USF) cada morador do bairro tenha uma relação de
cidadania e que isto seja aclarado, levando a uma
cidadania participativa.
A relação cidadã é explicitada no tratamento
respeitoso, chamando cada um por seu nome próprio,
respeitando horários, cumprindo compromissos
assumidos, explicando ou explicitando as
intercorrências que não permitiram a função de servir
ao público. Estabelecendo e negociando regras claras,
buscando garantir sempre normas de negociação nas
situações de conflito. Sposati e colaboradores
enfatizam a necessidade de interiorização "pelos
quadros da administração pública, não apenas o sentido
do direito, mas o dever, da necessária oferta
universalizante dos serviços". Na questão das
negociações, a autora sugere que se componha parceria
com a sociedade que garanta negociações democráticas
e co-participativas, alterando-se, assim, a prática
tutelar e manipuladora.
O ESTABELECIMENTO DA RELAÇÃO CIDADÃ ÉA BASE PARA A CONSTRUÇÃO DE UMPROCESSO EDUCATIVO
O processo educativo que leve em conta algumas
das qualidades indispensáveis – "qualidades não são
algo com que nascemos ou que encarnamos por decreto
ou recebemos de presente" – contidas na Quarta Carta
de Paulo Freire: "Humildade – qualidade que exige
coragem, confiança em nós mesmos, respeito a nós
mesmos e aos outros. Reconhecer ... ninguém sabe
É essencial que na Unidade de Saúde da
Família (USF) cada morador do bairrotenha uma relação de cidadania e que
isto seja aclarado, levando a uma
cidadania participativa.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200334
tudo; ninguém ignora tudo (...). A humildade ajuda a jamais
deixar-me prender no circuito de minha verdade. Um dos auxiliares
fundamentais da humildade é o bom senso que nos adverte
estarmos próximos, com certas atitudes de ir mais além do limite a
partir do qual nos perdermos"; "Tolerância não é, porém, posição
irresponsável de quem faz o jogo do faz-de-conta. Ser tolerante
não é ser conivente com o intolerável, não é acobertar o
desrespeito, não é amaciar o agressor, disfarçá-lo. A tolerância é a
virtude que nos ensina a conviver com o diferente"; e
"Segurança... demanda competência científica, clareza
política e integridade ética."
A linguagem, a relação cidadã, as qualidades de educador, a
compreensão dos membros da comunidade como pessoas presas
nas múltiplas realidades coletivas que determinam suas condições
de vida, mas que podem fazer, como propõe D'Incao e Roy, "a
escolha de se encolher sobre si mesmo, de se resignar, mas também
pode ser a escolha de se unir aos outros para transformar sua
própria condição e a de todos" que vivem as mesmas questões.
Cabe aos mediadores, isto é, a ESF "encontrar o caminho para
ajudar cada um desses homens e mulheres a conquistar sua
autonomia e a escolher livremente, unidos a outros e,
conjuntamente, enfrentar tudo que lhes pesa em comum".
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É função essencial da ESF fornecer dados e estudos
epidemiológicos sobre a área. Torná-los público para subsidiar as
reivindicações, a busca de soluções, para organizar e mobilizar o
debate, pode ser um ponto de partida para a construção da
cidadania, para a promoção da saúde.
Enfim, a ESF precisa cumprir o papel de mediador, de
"alfabetizador" no Direito à Saúde, em cidadania, buscando, assim,
caminhos para uma vida saudável.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Carvalho JM. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2001.
D'Incao MC, Roy G. Nós, cidadãos: Aprendendo e ensinando a democracia.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
Durante M. Alfabetização de adultos: leitura e produção de textos.Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
Freire P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo:Olho d'Água, 1993.
Origassa MC, Shinohara E, Dellatorre MCC. "Caminhe": as dificuldadesdos idosos em seguir esta recomendação. In: 52º Congresso Brasileirode Enfermagem [CD ROM]; 2002 ; Curitiba.
Sposati AO, Falcão MC, Fleury S. Os direitos dos desassistidos sociais.4ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.
... "encontrar o caminho para
ajudar cada um desses homens e
mulheres a conquistar sua
autonomia e a escolher
livremente, unidos a outros e,
conjuntamente, enfrentar tudo que
lhes pesa em comum".
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 35
RRELAÇÃO EDUCATIVA
DA EQUIPE DE SAÚDE DAFAMÍLIA COM A POPULAÇÃO
Educative Relationship of the Family Health Team with the Population
A Promoção da Saúde em seu sentido mais amplo revela alguns componentes dentre os quais podemos citar: a ação
intersetorial, o fortalecimento da participação social e a afirmação do papel ativo da população no que se refere ao acesso,
apreensão e apropriação de conhecimentos, que a possibilitem a fazer escolhas "saudáveis" e obter maior controle sobre sua
própria saúde e sobre o seu ambiente. Esse último aspecto, o papel ativo da população, constitui-se em nosso objeto de reflexão,
uma vez que na estratégia de Saúde da Família, embora seja um dos mais relevantes é contraditoriamente muito pouco debatido.
Promoção da saúde; participação social; programa saúde da família; educação.
Ausônia Favorito DonatoEducadora, doutora em saúde pública, diretora técnica de serviços do Instituto de Saúde da Secretaria de
Estado da Saúde de São Paulo
Rosilda MendesEducadora, doutora em saúde pública, assessora técnica da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo
Health Promotion in its wider sense reveals some components from which we can cite: intersectorial action, the
strengthening of social participation and the affirmation of the population's active role where it refers to
access, perception and appropriation of knowledge, which enables it to make "healthy" choices and obtain greater
control over its own health and over its environment. This final aspect, the active role of the population, is
constituted in our consideration objective, seeing that in the Family Health strategy, though it may be one of the
most relevant, it is contradictorily very little debated.
Health promotion; social participation; family health program; education.
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PROMOÇÃO DA SAÚDE E EDUCAÇÃO
Para que a Promoção da Saúde alcance o que se propõe a primeira condição é que
os participantes nela envolvidos assumam que estão compartilhando de uma ação
educativa. E, como toda ação educativa, aliás, toda ação humana, traz embutida uma
intenção, cabe à equipe de Saúde da Família explicitar de que intenção se trata.
A segunda condição, que complementa a primeira, é eleger a direção, dentre as
várias possíveis, (voltaremos a esta questão) da ação que se pretende realizar, bem
como das etapas que devem ser percorridas para atingirmos o que nos propusemos. Por
desnecessário que seja, é sempre oportuno relembrar que nada disso é possível sem um
planejamento coerentemente detalhado de todo o processo.
Não se trata de deter-se unicamente na dimensão técnica da ação educativa, ou
seja, de ressaltar a importância dos objetivos, estratégias, conteúdos, recursos e
avaliação, pois ela não nos levará muito longe.
Concretamente, como isto tem ocorrido na educação em saúde?
No geral, entende-se que há, por um lado, a presença de técnicos que detém
determinados conhecimentos elaborados, prontos, acabados, cientificamente
comprovados e sistematizados, e por outro, a população, desprovida de conhecimentos.
Portanto o que deve ser feito é muito simples: os técnicos "passam" os conhecimentos
que possuem para a população que não os possui.
E damo-nos por satisfeitos e felizes. Nós, técnicos, com a sensação do dever
cumprido e a população deveras agradecida pelos conhecimentos recebidos e pelo
empenho que demonstramos.
Como todos sabemos, é sempre preciso avaliar o processo e o produto de nosso
fazer educativo. E, se o fizermos, o que teremos?
Muitas vezes observamos que as pessoas após conversarem com as equipes de
saúde acabam por repetir certos termos, certas expressões, certos princípios e até
certos conceitos.
Entretanto, precisamos estar atentos, pois pode ser, e na maioria dos casos é, um
tipo de aprendizagem que reproduz idéias, símbolos, mas não os decodifica, isto é,
não consegue relacioná-los com a sua vida e com seus saberes anteriores. São idéias,
símbolos ou mesmo conceitos que são
repetidos, mas que nada significam, que não
têm sentido. É uma aprendizagem mecânica.
Como ilustração, desse tipo de
aprendizagem e, desta vez, saindo do campo
da saúde, podemos lembrar o caso de crianças
que, em muitas cidades brasileiras assumem o
papel de guias turísticos. Podemos dizer que
eles sabem verbalizar muitas idéias a respeito
das várias características da cidade, isto é
aprenderam para poder se comunicar com os
turistas. Entretanto, podemos observar
também que, o mais das vezes, se lhes fizermos
algumas perguntas no decorrer de sua narrativa
tentando relacionar alguns dados
mencionados, elas invariavelmente retornam
para o início da sua fala e a repetem
integralmente. Por quê? É um caso de
esquecimento? Não, elas adquiriram o que aqui
denominamos de aprendizagem mecânica.
MECANIZAÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃODA REALIDADE
Passemos a outro caso concreto, ocorrido
com uma pediatra. Quando essa profissional
indagou a uma mulher se ela havia lavado as
mãos, fervido o bico da mamadeira e a chupeta,
ela orgulhosamente respondeu que sim. E a
seguir guardou o bico da mamadeira e a
chupeta, cuidadosamente fervidos, na mesma
sacola onde havia colocado a fralda usada do
seu nenê! O paradoxo é notável.
Houve uma ação educativa, a aluna
aprendeu, tanto que reproduziu as ações que
lhe foram ensinadas, mas por não entender os
princípios que as fundamentavam, o resultado
em termos da promoção da saúde foi nulo!!
Como poderíamos explicar tão fragoroso
fracasso?
Se não há porque duvidar-se da
competência técnica dos técnicos e nem da
possível incoerência do planejamento, só nos
resta pensar no modelo de educação escolhido.
Com muita calma, pois este é um
momento delicado, recordemos que no tipo
de educação considerado acima, tínhamos os
técnicos, detentores do saber e a população,
desprovida deles e que o fulcro da ação
educativa consistia na transferência de
conhecimentos de uns para outros.
Claro que se a população só recebe
informações, o máximo que pode fazer com
elas é repeti-las. Daí o fracasso.
Ou seja, o tipo de educação escolhida
tende necessariamente para manutenção, a
estagnação, a domesticação e alienação. E
frise-se que não se trata de uma escolha
idiossincrática, mas, pautada em visões e
concepções de projeto social, de ser humano,
de aprendizagem, de educação, e do modo de
ver-se o mundo.
Essa concepção de educação tem sido
contraditada pela concepção crítica da
educação que pretende ser uma educação para
a mudança, para a transformação, para a
conscientização, para a libertação.
Esta nova concepção que dá suporte aos
movimentos de educação popular em saúde,
se contrapõe a essa visão por entender que, na
relação do profissional da saúde com a
população, necessariamente ambos se
modificam, porque ambos são percebidos como
Muitas vezes
observamosque as pessoas
após conversarem
com as equipesde saúde acabam
por repetircertos termos,
certas
expressões,
certos princípios e
até certos
conceitos.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 37
portadores e produtores de conhecimentos distintos.
Esses conhecimentos podem e devem ser comparados
e confrontados resultando em novos conhecimentos.
Nessa relação educativa a produção de um
conhecimento é coletiva, processual, o que significa
dizer que, o conhecimento deve ser construído
continuamente.
Vale dizer que na Estratégia de Saúde da Família,
a relação da equipe com a população, deve ser
necessariamente aprofundada para que se constitua
numa relação educativa que permita que todos os
envolvidos, se descubram como sujeitos não apenas
no processo educativo, mas no processo de vida. Qual
o significado das pessoas se tornarem sujeitos? Significa
tomarem consciência de sua prática social, isto é, o
que fazem, vivem, aprendem e sentem no seu dia-a-
dia, e por que dessa forma e não de outra?
Nesse aspecto é importante lembrar-se que os
agentes locais de saúde que compõem a equipe de
Saúde da Família são pessoas da própria comunidade e
assim sendo, possuem uma história de vida semelhante
a das pessoas da população. Dito de outro modo,
possuem valores, crenças, credos, tabus,
conhecimentos, preconceitos em relação a saúde
similares a da população com a qual vai trabalhar. Com
isso pretende-se dizer que esses trabalhadores
necessitam de oportunidades planejadas para o
exercício da reflexão constante sobre o seu fazer
cotidiano para tornarem-se conscientemente atores e
possibilitadores de situações de ensino-aprendizagem
para que outros se tornem sujeitos.
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
Nesse sentido, é fundamental, que a equipe de
Saúde da Família na sua prática educativa considere as
opiniões diferentes, os vários jeitos de ver as coisas e
perceba que as experiências são heterogêneas porque
são vivenciadas de modos diferentes, por diferentes
sujeitos e em momentos históricos diferentes. Cabe
enfatizar que coerentemente aqui adotamos uma
concepção problematizadora do processo ensino-
aprendizagem, isto é, que considera educandos e
educadores como sujeitos concretos desse processo,
ou seja, esses sujeitos são percebidos como seres
que sabem, sabem que sabem, sabem porque
sabem, sabem como sabem, e sabem dizer a terceiros
o que sabem e não menos importante, agem
conseqüentemente aos seus saberes.
Em outras palavras, estão conscientes de que são
capazes de construir e reconstruir o seu próprio
conhecimento. E, isto só é possível quando se considera
suas experiências anteriores como elementos
fundamentais e desencadeadores de novos
aprendizados. Só assim é possível no nosso entender, a
aquisição de uma aprendizagem significativa.
O que implica a população construir o seu
conhecimento?
Construir o seu conhecimento significa que a
população, diante de um problema gerado por uma
situação que o seu conhecimento ainda não explica,
se valha das informações disponíveis para elaborar e
socializar uma explicação que, mesmo já existente, passa
a ser a sua explicação para o fenômeno. Trata-se de
atribuir significado às novas informações, ou seja,
articulá-las ao já conhecido, transformando-o.
Salta aos olhos, portanto, a necessidade de
conhecermos o que a nossa população já sabe e o que
ela ainda não sabe. Assim, se oferecermos a ela
problemas que o seu saber não sabe, o que ela sabe
poderá, pelo seu esforço intencional de saber,
transformar-se no que ela ainda não sabe.
Mais uma outra idéia que gostaríamos de ver aqui
pensada é a que se refere a uma outra dimensão presente
na relação educativa entre os componentes da equipe
... na Estratégia de Saúde da Família, a relação da equipe com a
população, deve ser necessariamente aprofundada para que se constitua
numa relação educativa que permita que todos os envolvidos, se
descubram como sujeitos não apenas no processo educativo, mas no
processo de vida.
... é fundamental, que a equipe de Saúdeda Família na sua prática educativaconsidere as opiniões diferentes, osvários jeitos de ver as coisas e perceba queas experiências são heterogêneasporque são vivenciadas de modos diferentes,por diferentes sujeitos e em momentoshistóricos diferentes.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200338
de Saúde da Família com a população: a dimensão humana
constitutiva dessa relação. É uma relação autoritária, democrática,
horizontal?
Novamente é uma questão de escolha. Defende-se aqui, no
sentido de se reafirmar o papel ativo da população na Promoção
da Saúde, uma relação democrática, isto é, que percebe, entende
e respeita as diferenças. Isso só é possível no nosso entender, com
o diálogo entre os protagonistas da ação.
Uma observação que se faz necessária, é a de que não estamos
de forma alguma dizendo que o diálogo implica necessariamente
consensos, visões harmoniosas sobre as coisas. A idéia de conflito
está sempre presente pois, como já dito, saberes desiguais, uma
vez que são procedentes de fontes diferentes, estão
permanentemente em confronto. Ressaltamos que o confronto
propicia aprendizados.
E, A CONVERSA PÁRA AQUI?
Para finalizar o texto, mas não a problemática, apresentamos
uma última idéia, não menos importante: aprender e conhecer
fazem parte do "ser cidadão". Para além do conhecimento utilizado
pela população em suas escolhas "saudáveis", considera-se que o
acesso ao conhecimento sistematizado, acumulado pela
humanidade é de seu direito enquanto cidadã, garantido inclusive
pelas leis, referentes a educação. Isto fornecerá elementos à
população para uma participação ativa na vida de sua cidade -
afinal resgata-se aqui, o sentido primordial da palavra cidadão:
aquele que vive, usufrui e intervém plenamente nas questões vitais
de sua cidade.
A idéia de conflito está
sempre presente pois,
como já dito, saberes
desiguais, uma vez
que são procedentes de
fontes diferentes,
estão permanentemente
em confronto.
Ressaltamos que o
confronto propicia
aprendizados.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 39
TERRITÓRIO: ESPAÇOSOCIAL DE CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADES E DE POLÍTICASTerritory: The Social Period of Construction of Identities and Policies
A intenção de enfocar a relação da saúde com a totalidade da vida, encontra amparo na Constituição Federal Brasileira de
1988, no capítulo sobre Saúde, que a define no sentido positivo. Aproximando-a das proposições relativas à qualidade de
vida, a saúde deve ser observada a partir da interlocução com outras áreas, buscando a integralidade da ação social. As políticas
de saúde que vêm sendo delineadas, desde então, têm reafirmado o pressuposto da descentralização e a importância do espaço
local ou território, considerado como cenário de integração de diversos sujeitos sociais para o desenvolvimento da saúde e de
constituição e construção da cidadania.
Território; programa saúde da família; cidadania; geografia.
Rosilda MendesEducadora, doutora em saúde pública, assessora técnica da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo
Ausônia Favorito DonatoEducadora, doutora em saúde pública, diretora técnica de serviços do Instituto de Saúde da Secretaria de
Estado da Saúde de São Paulo
The intention of tackling the relationship of health with the totality of life, encounters support in the Brazilian Federal
Constitution of 1988, in the chapter on health, which defines it in positive sense. Bringing it close to the proposals
relating to quality of life, health should be observed from inter-discussion with other areas, seeking the integrality of social
action. The health policies which have been outlined, since then, have reaffirmed the presupposition of decentralization and
the importance of local space or territory, considered as an integration scenario of diverse social subjects for the development of
health and the constitution and construction of citizenship.
Territory; family health program; citizenship; geography.
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IDENTIFICANDO O TERRITÓRIO
O espaço deve se constituir o lugar da promoção da saúde, por
meio da promoção da solidariedade, onde vários sujeitos
sociais – profissionais da saúde e de outros setores, movimentos
populares, organizações não governamentais, conselhos, dentre
outros, e o Estado – atuam coletivamente com a intenção de
promover a melhoria das condições de vida e saúde.
Se tivermos como referência o Programa de Saúde da Família,
cabe-nos, nesse momento, uma indagação: qual é o significado
da discussão sobre espaço social – território na implantação de
equipes de Saúde da Família?
Numa primeira aproximação podemos afirmar que o processo
de apropriação do território pela equipe do Programa de Saúde da
Família, permite conhecer as condições em que os indivíduos
moram, vivem, trabalham, adoecem e amam a depender do segmento
social em que se situam. Esse conhecer implica assumir o
compromisso de responsabilizar-se pelos indivíduos e pelos espaços
onde esses indivíduos se relacionam. A adscrição da clientela
naUnidade de Saúde não é uma mera regionalização formal do
atendimento, mas um processo necessário para definir relações de
compromisso. Quer se enfatizar, que este é um pré-requisito
fundamental, imprescindível para se elaborar estratégias de ação
cuja relevância social possa alterar tais condições.
É preciso que se considere, no entanto, que existem diferentes
leituras acerca do espaço-território, que acabam por determinar as
formas e o sentidos das intervenções.
Tendo isto em consideração é nossa intenção explicitarmos
o conceito de espaço local ou território, e ao fazê-lo nos colocamos
como questões: por meio de quais entendimentos, de quais
concepções este conceito tem sido abordado?
Segundo o léxico, local é limitado a uma região e, território
à área de um país, estado, província ou cidade. No entanto, a
maioria das pessoas usa indistintamente as palavras local, região,
área e território atribuindo-lhes o mesmo significado quando se
trata da delimitação de um espaço geográfico.
Na Geografia há no mínimo duas correntes de pensamento
que apreendem de forma distinta a questão do espaço.
A primeira o apreende de forma naturalizada, como um espaço
físico que está dado, onde o ambiente em que vivemos é alguma
coisa externa à vida da sociedade. Para os defensores de tal
concepção são os critérios geofísicos e/ou geopolíticos que
delimitam os espaços – estes, dados pelos interesses do Estado,
onde o social é mais uma variável – que vão definir o território,
área, região ou localidade.
Esta concepção, ao ser adotada pelo setor saúde, por exemplo,
na delimitação de área de responsabilidade de uma equipe de
Saúde da Família, definiria apenas um local onde se opera a base
do sistema, isto é, o número de famílias a ser considerado, a
localização dos equipamentos de saúde e outros, o número de
equipes por área de abrangência, distribuição da população por
faixa etária, dentre outras variáveis. Tal abordagem limita-se a uma
descrição estática do espaço onde deve atuar a Equipe de Saúde
da Família.
Essa concepção de apropriação de espaço naturalizado,
previamente estabelecido, presta-se, ou melhor, é eficaz, quando
adotamos a concepção de saúde apoiada no modelo biomédico
que a considera como ausência de doença e, esta definida como
alteração fisio-patológica. Portanto, também naturalizada,
biologizada e, ao tratar o social o faz reduzindo-o a um conjunto
de características individuais, os chamados "fatores sociais", não
assumindo o dinamismo da construção do espaço como processo
social.
Há uma releitura do espaço. Nesta, a apreensão do espaço
delimitado em território (área, região ou localidade) é uma
construção decorrente do processo histórico resultante da ação
de homens concretos e em permanente transformação. É também
um espaço histórico, uma vez que revela as ações passadas e
presentes. Sendo território uma construção, é produto da dinâmica
onde tencionam-se as forças sociais em jogo. Uma vez que essas
tensões e conflitos sociais são permanentes, o território nunca
está pronto, mas sim em constante transformação. Ao mesmo tempo
que território é um resultado, é também condição para que as
relações sociais se concretizem. E, sendo construído no processo
histórico é historicamente determinado, ou seja, pertence a uma
O espaço deve se constituir o
lugar da promoção da saúde, por
meio da promoção da
solidariedade, onde vários
sujeitos sociais (...) atuam
coletivamente com a intenção de
promover a melhoria das
condições de vida e saúde.
... o processo de apropriação
do território (...) permite
conhecer as condições em que os
indivíduos moram, vivem,
trabalham, adoecem e amam adepender do segmento social
em que se situam.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 41
dada sociedade, de um dado local, que articula as forças
sociais de uma determinada maneira.
Como resultado deve-se entender o modo como
ao longo do tempo foi se organizando a vida local
definindo, por exemplo, o tipo de equipamentos sociais
e onde eles estão situados; as características das
habitações e o modo como elas se dispõem e abrigam as
pessoas; a circulação dos meios de transportes; a
utilização dos espaços e equipamentos como praças,
clubes sociais, escolas, igrejas, delegacias, entre outros.
A partir dessas considerações, fica evidente a
necessidade da Equipe de Saúde da Família conhecer a
história dos indivíduos, do seu território de
responsabilidade e como esse território se insere na
dinâmica da cidade. Qual a história da Unidade de Saúde,
das pessoas que freqüentam aquele serviço de saúde e a
partir daí entender as representações da comunidade
sobre a unidade. O modo como os indivíduos na
comunidade vêem a unidade determina a especificidade
das relações que se estabelecem entre a comunidade e
os serviços de saúde. Por outro lado, os profissionais da
Equipe de Saúde da Família têm suas próprias
representações sobre a clientela as quais definem os tipos
de ações de saúde a serem desenvolvidas e como elas
devem ser realizadas.
É preciso destacar que nessa concepção, a
superfície solo e as características geofísicas são apenas
uma das dimensões do território e que as características
geo-humanas não são consideradas como variáveis
isoladas, fragmentadas, mas com a complexidade de um
espaço construído pelas forças sociais. Assim, ao adotarmos
esta concepção no Programa de Saúde da Família, sabe-se
que o território estará em permanente processo de
reconstrução, de redefinição e de transformação. Cabe,
portanto, às equipes de Saúde da Família um constante
processo de conhecimento e desvelamento da realidade –
território vivo – onde atuam, no sentido, já dito de
transformação.
O LUGAR NA GEOGRAFIA
Uma outra noção relevante é a
de que o território contém inúmeros
lugares; e lugar, é um conceito-chave
da Geografia. Nessa porção do
espaço, é onde se desenvolve a trama
das relações sociais de cada
indivíduo, e que produz a
identificação com o lugar. O
significado de cada lugar é dado
pelo seu uso: lugar de produzir ou
lugar de consumir; lugar de adoecer
e lugar de curar; lugar de amar e
lugar de lutar (CARVALHO, 2001).
Nessa visão, esses espaços
locais são concebidos como algo concreto, sínteses de
múltiplas determinações, campos privilegiados de ação,
que podem permitir a implementação de iniciativas
inovadoras, com a inclusão de diversos sujeitos locais no
estabelecimento de políticas. O Programa de Saúde da
Família ao ser pensado nessa lógica possibilita a
participação cotidiana dos cidadãos na gestão pública e
no controle das condições que podem interferir na sua
saúde e da coletividade onde vivem e trabalham. É
necessário, que os sujeitos se apoderem do território, o
que implica um processo de identificação com os diferentes
lugares e as particularidades históricas e políticas desses
lugares, possibilitando assim uma participação mais
efetiva. É, portanto, o espaço de aprendizado e conquista
de cidadania.
Pode-se nesse momento reforçar o entendimento
do conceito de território trazendo a idéia de que o
território constitui-se como "ator" e não apenas como um
"palco". Significa entendê-lo no seu papel ativo, ou seja,
como um espaço que dinamiza as relações, que integra
culturalmente e que se converte em um lugar de respostas
... o território nunca está
pronto, mas sim em constante
transformação. Ao mesmo
tempo que território é um
resultado, é também
condição para que as
relações sociais se
concretizem. E, sendo
construído no processo
histórico é historicamente
determinado, ou seja, pertence
a uma dada sociedade, de
um dado local, que articula as
forças sociais de uma
determinada maneira.
O significadode cada lugar é
dado pelo seu uso:
lugar de
produzir ou lugar
de consumir;
lugar de adoecer e
lugar de curar;
lugar de amar e
lugar de lutar.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200342
possíveis aos propósitos sociais, econômicos, políticos e culturais
de nossa época (CASTELLS e BORJA,1996; SANTOS e SILVEIRA 2001).
CONCEITUANDO CIDADANIA
Assim, como o fizemos para o conceito de território, o faremos
em relação ao conceito de cidadania.
A cidadania como princípio político-ideológico da
igualdade, é individualizante. Todos – isto é, cada um – são iguais
perante a lei. A medicina anátomo-clínica também é
individualizante. A medicina individual dirá que a tuberculose,
por exemplo, é a mesma em todos os indivíduos tuberculosos,
reduzindo a doença à sua dimensão biológica, deixando de fora
todas as variáveis como não essenciais, inclusive a dimensão social
de cada indivíduo. Em um só movimento, portanto, a clínica
anátomo-patológica se alia ao individualismo político-ideológico
que se alia a apropriação naturalizada do espaço que é a forma
mais concreta de realização do princípio da igualdade.
Entretanto, a cidadania também pode ser concebida numa
outra leitura, não mais considerada como um estado pleno de
direitos. É sim entendida como uma conquista, fruto de um processo
de aprendizado, expresso diferentemente segundo as classes e
frações de classes sociais. A questão da cidadania hoje é recolocada
em todos os setores da sociedade ao nosso entender decorrente
da conjuntura política.
Apropriar-se do território nessa perspectiva e utilizá-lo
efetivamente implica implementar projetos que tenham por
princípio a "inovação democrática" que responde à participação
dos cidadãos, à cooperação social, à integração das políticas
urbanas, à participação e formulação de políticas públicas. Este
aspecto merece atenção, especialmente porque a inclusão de amplos
setores da sociedade civil na formulação, implementação e controle
das políticas, tem conseqüências muito importantes para o
desenvolvimento de projetos sociais. No Brasil, este processo é
muito recente e tem relação com o processo de democratização.
Historicamente, os atores sociais advindos de grupos comunitários
e associações sempre estiveram à margem da definição de políticas
públicas, sob forte gerência de um Estado burocrático, com tradição
política paternalista e clientelista. Esse processo exige, contudo,
reconhecer a existência de campos de negociação e conflitos na
prática cotidiana (IANNI 1996).
Reforçando as concepções descritas diríamos que esse espaço
representa muito mais que uma superfície geográfica, ou seja, para
compreender o território deve-se levar em conta a interdependência
e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e
o seu uso, que inclui a ação humana, isto é o trabalho e a política.
Desta forma, defronta-se com o território vivo, vivendo em
permanente construção (SANTOS E SILVEIRA 2001).
Nessa perspectiva, deve-se conceber a saúde enquanto
expressão de um fenômeno coletivo e este não mais entendido
como um todo homogêneo.
Nessa outra concepção apreendemos a saúde e a doença
enquanto processo socialmente determinado e coletivo. Como já
afirmado, os indivíduos vivem, adoecem e morrem diferentemente
segundo sua inserção nas classes e frações de classes sociais.
Retomando o exemplo da tuberculose, ela não é a mesma em
todos os indivíduos tuberculosos, pois embora tendo em comum
o mesmo agente etiológico, a determinação social para a
manifestação da doença é distinta para diferentes pessoas, assim,
por exemplo, ela é diferente num jovem executivo e em um jovem
morador da periferia de um grande centro urbano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar, lembramos que nos discursos da saúde coletiva
tem-se reiterado a questão da exclusão. A esse propósito podemos
afirmar que o território é o espaço por excelência onde podemos
perceber, apreender, sentir, identificar, mas, o que é mais importante,
intervir nas condições e vivências objetivas de exclusão, construindo
condições de inclusão.
Esse processo supõe participação, pois estar incluído significa
não só condições materiais, mas, sobretudo, democracia, cidadania
e felicidade (SPOSATI 2001).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTELLS ME, BORJA J. As cidades como atores políticos. Novos Estudos1996; (45): 152-166.
CARVALHO CAJ. "O Território da Saúde: uma análise de seus componentes."In [www.escola.org/geografia/saude/territorioesaude.html],novembro de 2001.
IANNI O. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;1996.
SANTOS M e SILVEIRA ML O Brasil: território e sociedade no início doséculo XXI. Rio de Janeiro e São Paulo, Ed. Record, 2001.
SPOSATI A. Pela inclusão na política de saúde. XI Conferência Municipalde Saúde de São Paulo. 2001.
... deve-se conceber a saúde
enquanto expressão de um
fenômeno coletivo e este
não mais entendido como um
todo homogêneo. (...) os indivíduos
vivem, adoecem e morrem
diferentemente segundo sua
inserção nas classes e
frações de classes sociais.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 43
MMÚLTIPLOS ATORES
DA PROMOÇÃO DA SAÚDEMultiple Performers in Health Promotion
Em 1986, realizou-se a VIII Conferência Nacional de Saúde em Brasília, primeira aberta a participação de vários segmentos da
sociedade, inclusive os setores populares. As conclusões deste evento deram origem ao Capítulo de Saúde da Constituição
Federal de 1988, onde ficou estabelecido o conceito norteador do Sistema Único de Saúde – “saúde como resultante de condições
de vida e trabalho” e um estado coletivo “que pode ser alcançado através de políticas econômicas e sociais”. O reconhecimento
da múltipla determinação do processo saúde doença nos faz reconhecer, que a saúde se produz socialmente e que todo trabalho
relacionado com este objetivo deve ser realizado através dos múltiplos atores sociais e das redes de apoio social. Este artigo indica
como reconhecer estes atores e como articular as ações desenvolvidas por outros setores.
Sistema único de saúde; doença; carta de Otawa; promoção da saúde.
Márcia Faria WestphalProfa. Titular do Departamento de Prática de Saúde Pública da
Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo
In 1986 the 8th National Health Congress was held in Brasília, the first open to participation from the various segments of
society, including popular sectors. The conclusions from this event gave origin to the Chapter on Health in the 1988 Federal
Constitution, where the guiding concept of the Unified Health System was established – “health as a result of living and
working conditions” and a collective state “which can be reached through economic and social policies”. The recognition of
multiple determination of the health/sickness process made us realize, that health is produced socially and all practice related
to this objective should be carried out through the multiple social performers and the networks of social support. This article
indicates how to recognize these performers and how to articulate the actions developed by other sectors.
Unified health system; sickness; The Ottawa Charter; health promotion.
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S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200344
CONCEITUANDO A HISTÓRIA
O conceito oficial de saúde – hegemônico (até hoje) – era "ausência de doença" e
as ações para obtê-la eram a assistência médica de competência da Previdência
Social, que tinha circunscrita sua ação aos trabalhadores de carteira assinada. Ações
preventivas, universais, eram de competência de outro setor do governo, o Ministério
da Saúde, a Saúde Pública, situação que concretizava a dicotomia prevenção/cura.
Naquele momento, o Brasil vivia uma crise previdenciária e as condições para
manter a assistência médica para os integrantes do sistema eram quase inexistentes. No
mesmo momento, estava em curso o processo de redemocratização do país e as camadas
populares exigiam outras soluções que permitissem diminuir as iniqüidades acentuadas
durante o período de ditadura. Os resultados obtidos com um sistema de saúde dual
e fragmentado, como o anterior à constituição, não correspondiam aos investimentos
feitos. Fazia-se necessária e urgente a racionalização dos serviços de saúde via Sistema
Único de Saúde, sendo que este Sistema foi regulamentado e passou a funcionar a
partir da Lei 8080 de 1990. Assistência universal à saúde e seu financiamento foram o
grande mote dos defensores do Sistema e das lutas por melhoria dos níveis de saúde no
Brasil. A iniciativa de promover mudanças macroestruturais, junto com outros setores
de governo foi iniciada pelas lideranças do movimento sanitário ainda na década de
80, no sentido de, através de ações intersetoriais e políticas, interferir nas condições
de vida e saúde da população. Nos anos 90, porém, as forças políticas mudaram e esta
estratégia foi deixada de lado.
O conjunto dos atores do Sistema Único de Saúde, portanto ficaram restritos aos
profissionais e técnicos da saúde, funcionários e agentes que garantem a atenção e
prevenção das doenças e a população que participa através de seus representantes nos
"conselhos gestores" e conselhos municipais e estaduais de saúde.
Do outro lado do mundo, ainda nas décadas de 70 e 80, os países do norte
enfrentavam outras situações de crise – a crise do Estado de Bem Estar – que vários
países europeus e americanos (do norte), haviam adotado e que equilibrava as tendências
de aumento das iniqüidades naqueles países. Aos poucos os Estados começaram a
sentir-se esgotados e incapazes de atender a todas as necessidades da população,
através dos benefícios e auxílios estabelecidos anteriormente. Os perfis demográficos
e de saúde se modificaram tornando impossível ao Estado sozinho dar conta da
assistência médica, assistência ao desemprego e outros.
Diante desta crise os responsáveis pelo setor saúde foram
obrigados a fazer uma reflexão e sentiram que sua visão de
saúde precisava ser ampliada, dada a interferência
biológica, bem como econômica, na causalidade do
processo saúde e doença. Com a queda do socialismo
ficou mais evidente a influência de outras condições: das
políticas globais, nacionais e locais, das mudanças sociais,
das diferenças culturais e étnicas e até religiosas na origem
das doenças e causalidade de mortes. Em
decorrência desta ampliação do conceito foi
necessário rever as estratégias para promover a
saúde, ampliando as preocupações para além
da assistência a saúde.
Colocar a Saúde no centro do processo
de tomada de decisões, como um critério para
a definição de políticas e ações passou a ser
uma necessidade básica e o movimento
predominante na Europa e em parte do
continente americano.
Foi a partir de 1986, também, alguns
anos depois desta discussão ter se iniciado
nos países em desenvolvimento, que ocorreu
a Primeira Conferência Internacional de
Promoção de Saúde em Otawa, no Canadá. Neste
foro recuperou-se o sentido ético da vida
tentando reverter os efeitos já sentidos da
globalização em curso e da revolução
tecnológica e do mundo do trabalho. Saúde
foi considerada como resultado da melhoria
da qualidade de vida e dependente de várias
condições: paz, educação, alimentação, posse
de habitação digna, renda, ecossistema
sustentável e outros. Valores de equidade e
justiça social foram considerados
imprescindíveis para que esta tarefa se
efetivasse.
Várias Conferências, declarações e cartas
que sintetizam as conclusões e recomendações
de outras Conferências Internacionais de
Promoção de Saúde, se seguiram nos últimos
15 anos. A partir da concepção de saúde,
definida na Carta de Otawa, na qual esta prática
esta fundamentada, define compromissos para
a implementação da Promoção de Saúde, que
extrapolam o setor saúde e exigem parcerias
com outros setores de governo – políticos,
sociais, econômicos, culturais, ambientais,
educacionais e de saúde no sentido estrito.
Fazia-se necessário convocar outras forças
sociais para participar deste movimento de
Assistência universal à saúde e seu
financiamento foram o grande mote dos
defensores do Sistema e das lutas por
melhoria dos níveis de saúde no Brasil.
Várias Conferências, declarações ecartas que sintetizam as conclusões e
recomendações de outras Conferências
Internacionais de Promoção de Saúde,
se seguiram nos últimos 15 anos.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 45
ampliação das estratégias de Promoção da Saúde. Era
necessário fortalecer a capacidade de convocação do
setor saúde para mobilizar recursos na direção da
produção social da saúde, estabelecendo
responsabilidades dos diferentes atores sociais em seus
efeitos sobre a saúde.
Esta estratégia que havia sido a vertente inicial
da Reforma Sanitária Brasileira, só portanto começou a
ser recuperada, na década de noventa, mais
precisamente depois de 1995, a partir da introdução
do ideário da Promoção da Saúde no Brasil.
As estratégias para incentivar a melhoria das
condições de saúde passaram a incluir a advocacia de
Políticas Públicas que garantam a eqüidade e favoreçam
a criação de ambientes e opções saudáveis; o
estabelecimento de mecanismos de negociação entre
setores sociais e institucionais; o fortalecimento da
capacidade da população para participar nas decisões
que afetam sua vida e para optar por estilos de vida
saudáveis; o estímulo ao diálogo dos saberes diversos;
o reconhecimento ou melhor a inclusão como
trabalhadores e agentes de saúde responsáveis por
viabilizar ações de atenção e promoção de saúde de
populações.
Os atores da Promoção da Saúde tornaram-se
potencialmente muitos e na medida em que novos
atores se sentiram envolvidos, ou melhor incluídos
neste novo movimento, passaram de atores a sujeitos
desta nova prática.
QUAIS SÃO OS ATORES DA PROMOÇÃO DASAÚDE? QUEM DEVEM SER OS ATORESPROTAGONISTAS DESTE NOVO MOVIMENTO?
A melhoria da qualidade de vida da população
em países em desenvolvimento como o Brasil não se
fazem sem o papel preponderante e protagônico do
Estado, pois as necessidades de construção de
condições de infra-estrutura ainda são muito grandes
e a sociedade civil, com suas instituições públicas e
privadas não pode dar conta das tarefas sozinha. O
ator fundamental, sujeito da Promoção da Saúde,
portanto continua sendo o Estado e não somente o
setor saúde, mas todos os setores de governo, de forma
articulada de preferência, constituindo uma ação
intergovernamental pela melhoria da qualidade de vida.
O compromisso de modificar e potencializar as
condições determinantes da saúde e qualidade de vida
e de estabelecer políticas públicas saudáveis no sentido
de atingir este objetivo implica uma abordagem mais
complexa, devendo ser compreendida como uma
formulação inovadora tanto do conceito de saúde
quanto do conceito de Estado e de seu papel perante
a sociedade. Assim sendo, a nova concepção de Estado,
de que estamos falando, estabelece a centralidade de
seu caráter público e o compromisso com o interesse
público e com o bem comum.
Neste contexto, é possível superar a idéia de
políticas públicas como iniciativas exclusivas do
aparelho estatal. Serão sempre
elaboradas e pactuadas em fóruns
participativos onde estarão presentes
os diversos atores sociais,
representando múltiplos interesses e
necessidades sociais, outros setores
sociais e áreas de conhecimento. Esta
pactuação não exime o Estado de seus
compromissos.
O fato de se adotar uma
perspectiva global para a análise da
questão saúde e não só do setor saúde,
indica a necessidade de uma primeira
ampliação dos atores sociais que se
envolvem com as questões de saúde e
qualidade de vida. Não mais só o
Estado, nem só o setor saúde são
envolvidos, mas profissionais,
intelectuais e a população em geral
cada uma representando o seu grupo
de conhecimento ou interesse (BUSS,
2000).
Finalmente, em relação à
participação da sociedade civil neste
processo de construção social da
saúde é necessário fazer algumas
considerações sobre suas formas de
organização na contemporaneidade,
no sentido de chamar a atenção para
algumas condições que podem
interferir na possibilidade de
estabelecer parcerias e alianças e
mesmo articular setores e iniciativas
com as propostas de Promoção da
Saúde, a partir de valores de equidade
e justiça social, ampliando mais uma
vez o número e a qualidade dos
parceiros nas ações de Promoção da
Saúde e melhoria da qualidade de
vida.
Destacam-se como formas de organização da
sociedade civil internamente no país, neste início de
século, os movimentos de redemocratização do país e
as reformas institucionais, sendo que ambos têm grande
afinidade com os objetivos da Promoção da Saúde.
A melhoria da
qualidade de vida
da populaçãoem países em
desenvolvimento
como o Brasilnão se fazem sem
o papelpreponderante e
protagônico do
Estado, pois as
necessidades de
construção de
condições de infra-
estrutura ainda
são muitograndes e a
sociedade civil,com suas
instituições
públicas e
privadas não pode
dar conta das
tarefas sozinha.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200346
Externamente, a queda do socialismo como utopia e as
mudanças tecnológicas e na organização social do trabalho mudam
o cenário dos movimentos e iniciativas de organização da
sociedade. Merece destaque como inovação, o surgimento de
práticas políticas articulatórias das ações localizadas, de redes de
movimentos e iniciativas de organização comunitária. Já se inicia
no país um movimento de articulação de iniciativas e movimentos
que têm reforçado as ações particularizadas. A forma de integração
que temassumido tem sido orgânica e não formal, e mecânica
como foi tentado anteriormente (Scherer Warren, 1993 e 1999;
Inojosa, 2000; Westphal & Mendes, 2000; Teixeira & Paim, 2000).
O reconhecimento das limitações das análises macro e
microsociais permitiu o entendimento das formas de organização
da sociedade enquanto práticas sociais em construção, locais,
mas que não podem ser entendidas no seu verdadeiro sentido a
não ser quando relacionadas ao que acontece no mundo global. A
busca das interconexões de sentido entre o local (comunitário) e
o global (supranacional, transnacional), o reconhecimento da
pluralidade social e cultural e da possibilidade de
intercomunicação mesmo na diversidade entre iniciativas ou
movimentos tem indicado, por um lado, formas de recomposição
do tecido institucional, conducente à democratização e à equidade.
Esta iniciação em uma nova cultura política – das parceiras e
alianças – tem obrigado muitos líderes locais a alargarem as suas
visões e juntarem forças em frentes unificadas de ação.
As redes de movimentos feministas, ecopacifistas e os
movimentos de base, o novo sindicalismo urbano e rural, o
movimento dos sem-terra e outros estão reconhecendo a
necessidade de articulação e de ampliar sua representação efetiva
através dos partidos políticos para dar andamento a um projeto
mais global de democratização da sociedade, no qual a melhoria
da qualidade de vida e saúde se inserem.
Uma outra visão contrária e oposta é aquela de que a
sociedade civil, no momento atual, não mais se mobiliza. Vem, ao
contrário, assumindo a forma de "massa", um todo inorgânico de
individualidades, de manifestações atomizadas, de condutas de
crise, constituindo antimovimentos, que agem sem intermediação
do Estado (Zermeno, 1989 In: Scherrer Warren, 1993). Ganham
importância, nos interstícios da modernização, em meio aos
avanços tecnológicos os bandos de jovens, grupos de delinqüentes
ou outros grupos de violência organizada, chegando a formar um
poder paralelo concorrendo com o Estado, adotando formas ilegais
de reação ao aumento da pobreza, da insegurança. Será que a
sociedade civil está totalmente anômica, está realmente se
tornando uma massa amórfica? Serão estes atores da Promoção da
Saúde? Devem estes serem banidos do processo, para proteger o
restante dos atores?
Os partidários da primeira visão, a de que os movimentos, as
instituições e iniciativas devem ser articuladas em redes, para
atingir objetivos comuns, sugerem um novo
esforço de pesquisa para ampliação de
conhecimentos e experiências sobre as
potencialidades e dificuldades de integração
com outros movimentos e outras iniciativas
de inclusão, considerando a realidade interna
do país e as forças externas. Este
conhecimento deve ser buscado pelos
profissionais envolvidos com a Promoção da
Saúde e incorporado em suas estratégias.
Tentativas de articulação da Promoção da
Saúde com o movimento ecológico, a mais
forte utopia deste século, e outros,
representantes da herança mais genuína da tendência progressista,
que se movimentam entre o protesto, a resistência não violenta e
a desobediência civil (David Thoreau, Gandhi e Martin Luther King)
por exemplo, é uma das experiências a serem tentadas e um caminho
possível para fortalecimento da rede social pela melhoria da
qualidade de vida. Entretanto, a convivência em meio a conflitos
e contradições, quando se escolhe enfrentar a diversidade não
pode ser desconsiderada. A negociação, com ganhos e perdas
durante o processo e a dificuldade e até a impossibilidade de
chegar a um consenso, equilíbrio e a uma produção social são
expectativas de dificuldades, que devem os profissionais, técnicos,
agentes e os segmentos da população estarem dispostos a enfrentar.
A idéia de rede, segundo Scherer Warren (1993):
"implica pensar, desde o ponto de vista epistemológico, na
possibilidade de integração de diversidade". Distingue-se da idéia de
unicidade totalizadora, comum em interpretações do marxismo
positivista acerca da necessidade de articulações das lutas sociais. A
análise em termos de "redes de movimentos" implica buscar as formas
de articulação entre local e global, entre particular e o universal,
entre o uno e o diverso, nas interconexões das identidades dos atores
com o pluralismo. Enfim trata-se de buscar os significados dos
movimentos sociais num mundo que se apresenta cada vez mais como
interdependente, intercomunicativo, no qual surge um número cada
vez maior de movimentos de caráter transnacional, como os de direitos
humanos, pela paz, ecologistas, feministas, étnicos e outros...
Merece destaque como inovação, o
surgimento de práticas políticas articulatórias
das ações localizadas, de redes de movimentos
e iniciativas de organização comunitária.
Já se inicia no país um movimento de articulação
de iniciativas e movimentos que têm
reforçado as ações particularizadas.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 47
Os compromissos com os princípios humanistas,
opção do SUS e da Promoção da Saúde, de acordo com
as Conferências Internacionais, poderão permitir a
comunicação, a articulação, o intercâmbio e a
solidariedade entre os atores sociais individuais e
coletivos, que ao se integrarem ao movimento pela
melhoria da saúde e qualidade de vida se tornarão
sujeitos na consecução destes objetivos.
OS MÚLTIPLOS ATORES/ SUJEITOS DAPROMOÇÃO DA SAÚDE E OS PROGRAMAS DESAÚDE DA FAMÍLIA
Este novo conceito, esta nova forma de pensar a
saúde, pode transformar as estratégias tradicionais de
enfrentar os problemas de saúde e a sua causalidade, a
partir das potencialidades existentes no território de
responsabilidade do setor saúde, de um Distrito, uma
Unidade de Saúde ou uma equipe de saúde da família.
O pessoal de saúde conhecendo as condições
que os indivíduos moram e trabalham, os outros atores,
instituições e as outras iniciativas existentes no local,
poderá intervir na causalidade do processo saúde/
doença, por exemplo da mortalidade infantil,
envolvendo outros setores de governo e da sociedade
civil na identificação, análise e resolução das suas
causas, como a deficiência de saneamento básico, as
deficiências de habitação e outras condições de infra-
estrutura urbana, emprego e renda da família,
alimentação e outros. Estes setores a partir de um
diagnóstico compartilhado poderão definir objetivos
comuns e proporem estratégias articuladas de ação
coletiva.
Se realmente a proposta for produzir saúde
socialmente, todos os atores do território devem
participar das ações, pois a tarefa será não só o
atendimento ao doente ou à doença, mas a minimização
gradativa dos efeitos das causas primeiras dos
problemas. Os atores que estão aqui mencionados não
são só indivíduos isolados, as organizações não
governamentais, o setor privado de comércio, serviços
e indústrias - como locais de trabalho - e outros setores
de governo como a escola, outras instituições ou
melhor, o município como um todo. Como já foi
mencionado, esta integração de atores individuais e
coletivos não é tarefa fácil uma vez que a sociedade é
fragmentada e o individualismo é um valor do mundo
contemporâneo, globalizado. Há que enfrentar a
diversidade, respeitar pluralidade de valores e encontrar
caminhos conflituosos para construir acordos e
parcerias.
O território é diferente de espaço geográfico. É
um espaço de relação como já foi discutido em outro
capítulo. Neste sentido ele é dinâmico e está em
constante transformação. Os atores que vivem, militam
ou atuam precisam ser reconhecidos como parceiros,
com quem os profissionais de saúde tem que estar em
contato constante, trabalhando juntos por sua
iniciativa ou por iniciativa dos outros setores ou
instituições. Entre a necessidade
de reconhecer a importância das
parcerias e resolver as dificuldades
para concretizá-las vai uma grande
distância e muito tempo e
persistência para efetivar esta
ação.
Os profissionais, técnicos e
agentes dos programas de saúde
da família podem ser as escolas
dos bairros, preocupadas em
construir uma escola saudável,
escola de qualidade, escola aberta
à comunidade por exemplo, ou
em resolver problemas comuns
como o da violência, a Dengue, o
uso de drogas e a gravidez precoce
de seus adolescentes. Se os
objetivos comuns e afinidades
forem encontrados a tarefa já se
torna mais fácil e possível.
O setor privado, pode ser um
parceiro potencial, que da mesma
forma pode querer melhorar as
condições de trabalho de seus
funcionários e/ou querer cuidar do
meio ambiente relacional ou
externo do entorno da empresa.
Pode querer exercer sua
responsabilidade social em
conjunto com outros aliados e
outras iniciativas que surgem na
comunidade, fortalecendo as
ações já em curso, de promover a
distribuição dos lucros da
empresa, promovendo a distribuição da renda na região.
Esta é uma situação difícil de ser encontrada, mas não
impossível e, em sendo reconhecida pode favorecer a
formação de rede de organizações que objetivam a
Promoção da saúde.
A reunião solidária de todos parceiros
representativos, governo, organizações não governa-
mentais, sociedades privadas, líderes comunitários,
Os profissionais,
técnicos e agentes
dos programas de
saúde da famíliapodem ser as
escolas dos
bairros, preocupadas
em construir uma
escola saudável,
escola de qualidade,
escola aberta àcomunidade por
exemplo, ou em
resolver problemas
comuns como o da
violência, a
Dengue, o uso de
drogas e a
gravidez precoce de
seus
adolescentes.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200348
movimentos sociais, em ação no espaço de uma cidade,
potencializam a probabilidade de desenvolvimento de um projeto
município saudável, desde que objetivem o desenvolvimento de
planos de ação locais para a Promoção da Saúde e meio ambiente,
e que haja um compromisso das autoridades locais de abrirem um
canal de participação para a sociedade civil no processo de tomada
de decisões relacionadas ao plano de desenvolvimento local
integrado.
A defesa da saúde e da Promoção da Saúde junto a políticos
e movimentos sociais pode conduzir à adoção mais rápida e em
maior profundidade das estratégias de Promoção de Saúde: elaborar
políticas públicas saudáveis, construir ambientes de apoio à
Promoção da Saúde, fortalecer a ação comunitária, desenvolver
habilidade e por em prática a reorganização dos serviços de saúde
com novas práticas como o Programa de Saúde da Família (SANTOS
& WESTPHAL, 1999; WESTPHAL, 2000).
O programa de Saúde da Família, estratégia estruturante do
setor saúde, objeto deste trabalho, que identifica problemas, fatores
de risco, causas de problemas, as potencialidades das famílias e do
bairro para enfrentá-los, pode ser ponto de partida para a
articulação de vários atores pela melhoria das condições de saúde
locais. Hoje em dia quase todos os locais que se tem notícia, tem
iniciativas comunitárias em curso com os mais diferentes objetivos.
Aos atores locais, militantes e funcionários envolvidos em
programas de saúde da família, precisam articular suas ações para
potencializar seus efeitos, seja para interferir na saúde como
qualidade de vida de uma população, seja para resolver questões
relacionadas à doenças e fatores de risco.
Todos os territórios alternam momentos de maior intensidade
de problemas e maior calmaria e é necessário manter esta articulação
dos diferentes atores e iniciativas locais para caminhar para uma
situação mais permanente de trabalho participativo pela saúde e
qualidade de vida. A forma de articulação pode variar, mas a
organização social em redes sociais, são a forma como as sociedades
mais desenvolvidas, têm se organizado para conhecer e intervir em
realidades complexas, como as que o SUS tem que dar conta, em
um mundo globalizado e caótico como este
que se descortina no início deste século
(JUNQUEIRA, 2000; WESTPHAL & MENDES,
2000).
Rede social é entendida como "campo
presente em determinado momento,
estruturado por vínculos entre indivíduos,
grupos e organizações construídos ao longo do tempo" (MARQUES,
1999: 46).
Os vínculos que as equipes de Saúde da Família, os projetos
municípios saudáveis e outras estratégias de Promoção da Saúde
têm que desvendar são de diversas naturezas, podem ter sido
construídos intencionalmente ou não e estão em constante
interação e transformação.
A análise de rede para o entendimento da realidade social é
muito apropriada para os que trabalham na perspectiva da
Promoção da Saúde e que têm uma percepção da realidade social
como uma complexidade. A formação de uma articulação, de um
conjunto de relações de redes tanto pessoais como organizacionais,
é também fundamental para a Promoção da Saúde.
O reconhecimento da posição dos atores nessas redes é
importante para os profissionais do Programa de Saúde da Família,
pois suas práticas positivas e valores podem contribuir para
advocacia de melhores condições e as
necessárias para apoiar estilos de vida e
construção de ambientes de apoio à
Promoção da Saúde.
As óticas das certezas, que marca o
pensamento positivo, já não funcionam e
precisam ser substituídas por outra que
considera as interações dinâmicas e as
transformações.
O SUS como projeto político, construído por grupos que
acreditam na construção de uma sociedade mais justa e equânime
e o Programa de Saúde da Família, uma das estratégias estruturantes
para atingir este objetivo, com base em uma visão global do
processo saúde e doença, necessita incorporar os múltiplos atores,
para torná-los sujeitos do processo. O próprio programa constitui-
se de vários atores, que tendem a formar uma rede de profissionais
e pessoal de saúde que interage com organizações, pessoas,
interesses em um determinado local e que se inter-relacionam e
interdependem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de mudança das condições de Saúde via Programa
de Saúde da Família, deve contribuir para transformar as relações
sociais dos profissionais com a população em relações de
solidariedade, aproximando a sociedade de si mesma e das decisões
que lhe interessam e que lhes dizem respeito. Indivíduos inseridos
em redes sociais, podem ser alertados para a possibilidade de
articular suas agendas sociais as de saúde e a partir daí transformar
O programa de Saúde da Família, estratégia
estruturante do setor saúde (...) pode ser ponto
de partida para a articulação de vários atores
pela melhoria das condições de saúde locais.
O processo de mudança das condições de
Saúde via Programa de Saúde da Família, deve
contribuir para transformar as relações
sociais dos profissionais com a população...
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 49
sua relação com o SUS, passando de objetos, a sujeitos responsáveis
pela consecução de melhores níveis de saúde, dentre eles o de
garantir seus direitos de cidadania.
A questão – múltiplos atores da Promoção da Saúde – está
relacionada portanto, aos seus princípios e também aos do SUS
com os quais na maioria das vezes se confunde. Nada mais pode ser
tratado de uma forma individual neste mundo globalizado, onde
predominam problemas complexos, sob pena de tudo permanecer
como está. As relações dos atores que se dá via redes de relações e
redes de compreensão da realidade são mais efetivas no
desvendamento dos problemas e facilitam a atuação sobre eles.
A ação coletiva em rede da qual participam múltiplos atores
do governo e da sociedade civil, envolvendo especialmente as
ONGs, que estão exercendo um papel importante na nossa
sociedade, justifica não só o Programa de Saúde da Família como
estratégia para melhorar os níveis de saúde, através da diminuição
da pobreza, mas principalmente como um caminho do SUS, como
colaborador essencial na direção do alcance dos ideais de equidade
e justiça social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SCHERRER - WARREN, I Redes de movimentos sociais. São Paulo: EdiçõesLoyola, 2a ed. Brasil, 1996. 143pp.
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INOJOSA, R.M. Saúde: esgarçamento e reconstituição da rede social.Revista de Administração Pública 34(6): 105-116, Nov. Dez, 2000.
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TEIXEIRA, C.F. & PAIM, J.S. Planejamento e programação de açõesintersetoriais para a promoção da saúde e da qualidade de vida.Revista de Administração Pública 34(6): 63-80, Nov. Dez, 2000.
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THOREAU, A desobediência civil. São Paulo. Cultrix, 1975.
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MARQUES, E.C. Redes sociais e instituições na construção do Estado eda permeabilidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Anpocs,14 (41): 45-67, 1999.
A ação coletiva em rede da qual
participam múltiplos atores do
governo e da sociedade civil (...)
justifica não só o Programa de
Saúde da Família como estratégia
para melhorar os níveis de saúde,
através da diminuição da
pobreza, mas principalmente como
um caminho do SUS, como
colaborador essencial na direção do
alcance dos ideais de equidade e
justiça social.
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ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 51
PPROMOÇÃO DA SAÚDE, PODER
LOCAL E SAÚDE DA FAMÍLIA:ESTRATÉGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS
LOCAIS SAUDÁVEIS, DEMOCRÁTICOS E CIDADÃOS -HUMANAMENTE SOLIDÁRIOS E FELIZES
Health promotion, Local Power and Family Health: strategies for theconstruction of healthy local places, democrats and citizens - humanely united and fortunate
A partir da Constituição Brasileira de 1988, o município é fortalecido enquanto espaço local privilegiado para a vivência de
processos políticos democráticos e para o desenvolvimento de políticas públicas que respondam, plenamente, as necessida-
des de seus cidadãos. Nesse contexto, é fundamental o estabelecimento de estratégias que venham a contribuir com a formação
de cenários políticos favoráveis ao desenvolvimento local e ao bem estar integral do indivíduo. O presente artigo, além de discutir
as temáticas do espaço e do poder local, reafirmando sua relevância atual, propõe que estratégias como a Promoção da Saúde e
o Saúde da Família sejam implementados no município, por apresentarem grande potencial de transformação das relações e da
constituição do poder local em prol da construção de espaços locais saudáveis, democráticos e cidadãos, humanamente solidários
e felizes.
Espaço local; poder local; desenvolvimento local; estratégia saúde da família; promoção da saúde.
Neusa GoyaAssistente Social, Especialista em Sistema Local de Saúde,
Assessora Técnica da Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Sabóia de Sobral edo Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Ceará
From the 1988 Brazilian Constitution, the municipal is strengthened while local space privileged for the existence of
democratic political processes and for the development of public policies that respond, fully, to the needs of citizens. In this
context, it is fundamental to establish strategies that proceed to contribute with the formation of favorable political scenarios
towards local development and the integral well-being of the individual. This current article, apart from discussing the themes
of space and local power, reaffirming its current relevance, proposes that strategies such as Health Promotion and Family Health
be implemented in the municipal, for they might present great potential for the transformation of relationships and of the
constitution of local power for the benefit of the construction of healthy local spaces, democrats and citizens, humanely united
and fortunate.
Local space; local power; local development; family health strategy; health promotion.
s i n o p s e○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○
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k e y w o r d s○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
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"Saúde é a harmonia do ser humano comele mesmo, com a natureza e com osoutros em busca de tranqüilidadeespiritual." Ensinamento dos índios andinos
COMPREENDENDO A LÓGICA DA GLOBALIZAÇÃO E DOESPAÇO LOCAL
A discussão mundial, hoje, encontra-se centrada na importância
do espaço global, o que não significa, conforme o economista
Ladislau Dowbor, considerar a inexistência e grande relevância do
espaço local uma vez que "a globalização não é geral (...). Se
olharmos o nosso cotidiano, desde a casa onde moramos, a escola
de nossos filhos, o médico para a família, o local de trabalho, até
os hortifrutigranjeiros da nossa alimentação cotidiana, tratam-se
de atividades de espaço local e não global."
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a humanidade convive
com "produtos globais", como o automóvel, equipamentos de
informática e outros, inseridos em uma lógica de produção
econômica e social globalizada e, ao mesmo tempo, encontra-se
inserida em uma outra racionalidade determinada pelo espaço
local. Para Dowbor, é necessário que haja uma substituição da
idéia de que "tudo se globalizou". É preciso que haja uma "melhor
compreensão de como os diversos espaços do nosso
desenvolvimento se articulam, cada nível apresentando seus
problemas e oportunidades e a totalidade representando um
sistema mais complexo".
O cenário que ora se coloca, de sociedades complexas
integradas por espaços globais e locais, ao contrário do que se
possa pensar, não é contraditório. A ordem de problemas hoje
postos, que vão desde a
pobreza extrema de parcela
significativa da população
mundial até a deterioração
e comprometimento do
meio ambiente e da vida na
Terra, impõem a lógica de
que muitas das soluções
devem ser iniciadas e
praticadas no espaço local.
As populações locais devem
estar convencidas de que
somente a partir de sua
participação direta pode-se
modificar, mesmo que
gradativamente, cenários
nacionais, mundiais.
Aliado a isso, tem-se
o fato das mudanças fre-
qüentes ocorridas na socie-
dade moderna requererem
maior agilidade na condução, desenvolvimento e ajuste das polí-
ticas. As estruturas centrais de poder não conseguem mais atender
a este desafio com a devida eficiência. Tratam-se de estruturas
pesadas, altamente burocratizadas, que não dão conta de impri-
mir, através das políticas globais, respostas às exigências postas
pelas situações complexas hoje vivenciadas. Assim, as estruturas
de poder tendem a ser descentralizadas para os espaços locais,
possibilitando o desenvolvimento de processos mais democráti-
cos, que venham atender às necessidades sentidas pelos cidadãos.
MAS O QUE É MESMO ESPAÇO LOCAL?
Espaço local é um espaço de vida. Para Dowbor, o espaço
local, no Brasil, é o município, "mas é também o bairro, o quarteirão
em que vivemos". É o espaço onde as pessoas vivem, seu cotidiano,
constituindo-se, dessa forma, como o espaço mais próximo do
cidadão, com um grande potencial de transformação das relações
sociais que nele se estabelecem.
A perspectiva é de assegurar relações sociais que
proporcionem, no espaço local, o efetivo exercício da cidadania.
Para isso, o espaço local deve ser um espaço favorável à implantação
e ao desenvolvimento de processos democráticos, não só do ponto
de vista representativo, como também, participativo e
redistributivo, seja do capital econômico como do social.
Assim, inscreve-se no espaço local o exercício da cidadania,
possibilitando ao cidadão movimentar-se para ter acesso aos seus
direitos básicos e fomentando processos de participação nas
decisões sobre o seu desenvolvimento pessoal e do espaço onde
vive.
É importante salientar que o desenvolvimento proposto é
compreendido a partir de uma visão holística e integradora, onde
o homem é mais um elemento na teia da vida, constituída por
vários outros elementos e sistemas vivos. Além disso, há que se ter,
no conceito de desenvolvimento, a percepção ecológica que o
situa como um processo que deva satisfazer as necessidades do
As populações
locais devem
estar convencidas
de que somente a
partir de sua
participaçãodireta pode-se
modificar,
mesmo que
gradativamente,
cenáriosnacionais,
mundiais.
... inscreve-se no espaço local o
exercício da cidadania,
possibilitando ao cidadão
movimentar-se para ter acesso aos
seus direitos básicos e
fomentando processos de
participação nas decisões sobre
o seu desenvolvimentopessoal e do espaço onde vive.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 53
homem e demais seres vivos sem, contudo,
comprometer os recursos ambientais.
Nesta perspectiva, processa-se uma modificação
qualitativa do entendimento e construção do que venha
a ser desenvolvimento, que deixa de estar centrado na
lógica econômica e produtiva. As atividades econômicas
deixam de ser fim e passam a ser meio. O fim, ou o
objetivo central dos processos de desenvolvimento é o
bem estar pleno e integral dos cidadãos. É a sua qualidade
de vida no espaço que habita. É a sua felicidade. É a
possibilidade de construção de espaços e entornos
saudáveis, ecologicamente protegidos e preservados para
as vidas futuras.
O MUNICÍPIO, O TERRITÓRIO, O BAIRRO, ACOMUNIDADE, O QUARTEIRÃO: ESPAÇOSLOCAIS DE CONSTRUÇÃO DO PODER LOCAL
A Constituição Brasileira de 1988 é um marco
histórico normativo dos mais significativos. A partir
de sua instituição, são dadas as bases legais para se
processar a reforma no Estado brasileiro. O desenho
político-organizacional do Estado passa a ser orientado
por princípios como a descentralização política-
administrativa, a desconcentração e a municipalização
de serviços básicos.
A lógica de funcionamento do Estado muda.
O município, através do governo local, fortalece-
se enquanto instância de elaboração e execução de
políticas públicas, incorporando, assim, competências
e autoridade antes legada a administração federal ou
estadual.
No processo de democratização e garantia efetiva
da cidadania, o município é compreendido como o
espaço local privilegiado para dar respostas
institucionais às necessidades sentidas pela população.
Conforme Dowbor, "80 ou 90% das ações que
concernem as nossas necessidades do dia-a-dia, como
a construção e gestão das escolas, a organização das
redes comerciais e financeiras, a criação das infra-
estruturas de saúde, a preservação do meio ambiente,
as políticas culturais e tantas outras, podem ser
resolvidas localmente, e não necessitam de intervenção
de instâncias centrais de governo, que tendem a
burocratizar o processo". Mesmo as ações que por sua
amplitude extrapolam o âmbito municipal, podem ser
melhor encaminhadas por uma rede de municípios
regionais do que pelo governo central, afirma Dowbor.
O município reveste-se, então, de uma
importância vital. Tanto por estar legitimamente e
legalmente investido de competências vinculadas à
vida dos cidadãos e ao desenvolvimento do espaço
em que vivem e morrem, como por caracterizar-se como
local de mudança qualitativa das relações estabelecidas
entre os homens e as instâncias de poder. A partir de
um governo democrático, instituído no município,
podem ser proporcionadas condições adequadas para
a realização de uma gestão participativa, aberta e
fomentadora do poder local, exercido por organizações
comunitárias, sociais, políticas, entre outras.
PARTICIPAÇÃO SOCIAL E PLANEJAMENTO:FERRAMENTAS DE CONSTRUÇÃO DO PODERLOCAL E DE FORTALECIMENTO DACOMUNIDADE NAS RELAÇÕES DE PODERLOCAL
Satisfatoriamente, constata-se que as
comunidades, mediante processos de conscientização
onde os cidadãos assumem sua condição de sujeitos
históricos, estão cada vez mais se articulando e
intervindo na organização dos espaços em que vivem,
numa demonstração clara da força que representam no
contexto do poder local. A organização comunitária
assume, nesse sentido, um importante papel de agente
impulsionador do desenvolvimento.
O exercício do poder local
torna possível ao cidadão tomar
em suas mãos o destino do lugar
onde vive, fortalecendo a esfera
comunitária. A participação é
assim, um instrumento básico do
poder local, através do qual os
indivíduos manifestam-se en-
quanto sujeitos do espaço em que
vivem, planejando e decidindo.
Na configuração do poder
local, entre outros, são protago-
nistas, por um lado, os governos
municipais e, por outro, a
sociedade civil, representada por
diferentes formas de organização.
Ambos apresentam potencial de
transformação social, cabendo a
cada um o desempenho de papéis
específicos, mas que podem
somar-se nos processos de tomada de decisão sobre a
organização, o funciona-mento e o desenvolvimento
do espaço local.
O poder local não se constitui, nesse sentido,
como sendo a expressão de forças políticas que intervêm
na "cosmética urbana". "Trata-se de um eixo estratégico
de transformação da forma como tomamos as decisões
A participaçãoé assim, um
instrumento básico
do poder local,
através do qual os
indivíduosmanifestam-se
enquanto sujeitosdo espaço em que
vivem, planejando
e decidindo.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200354
que concernem o nosso desenvolvimento econômico e social", conforme assegura
Ladislau Dowbor.
Identifica-se, assim, na lógica da construção e funcionamento do poder local a
qualificação da participação social não apenas sobre a ótica da democracia meramente
representativa mas, também, participativa e redistributiva.
Dessa forma, não se tem apenas a democratização das decisões mas,
fundamentalmente, a oportunidade concreta de fazer com que estas, a partir do
planejamento municipal, possam corresponder às reais necessidades da população.
Isto é a alma do poder local: garantir, através da participação comunitária e de sua
intervenção, seja no planejamento ou nas instâncias de poder e pactuação municipal,
os caminhos para a superação dos problemas e necessidades sociais.
Além destes aspectos, ainda de acordo com Dowbor, a participação comunitária
também funciona como mecanismo de regulação das diferentes políticas e atividades.
As medidas que geram impacto social, necessariamente, apresentam controle social,
ou seja, são reguladas e construídas por meio da participação comunitária.
Neste contexto, os conselhos municipais e locais assumem hoje um significado
mais do que relevante. Além de representarem, na organização do Estado, as novas
estruturas formais de poder local, oriundas dos processos de descentralização e
municipalização das diferentes políticas públicas, essas instâncias, por tratarem-se de
instâncias paritárias, podem também vir a ser espaços de formação de consensos e
pactuação e não somente de decisão.
Na perspectiva da pactuação, as decisões não são tão somente votadas, mas
compartilhadas, co-responsabilizadas entre as diferentes forças que integram os
conselhos municipais e locais, potencializando, nesse sentido, a perspectiva de
construção coletiva e participativa de acordos
e decisões em prol do desenvolvimento. Além
disso, há que se destacar essas instâncias como
espaços favoráveis ao "apoderamento" dos
diferentes atores e representações sociais.
Outra ferramenta do poder local é o
planejamento – já mencionado anteriormente.
É importante situar que na discussão ora
apresentada, o processo de planejamento,
necessariamente, deve ser democrático,
descentralizado, participativo e representativo
das várias forças políticas que compõem o
espaço local, seja ele o município, bairro,
comunidade, território. Os cidadãos,
exercendo sua cidadania, devem não só
apresentar suas reivindicações e necessidades
sentidas mas, principalmente, tomar decisões
sobre como resolvê-las. Porém, o planejamento
não deve restringir-se às decisões sobre como
suprir necessidades. O processo de
planejamento, enquanto ferramenta do poder
local, deve viabilizar aos cidadãos, seja
individualmente ou coletivamente, o exercício
de sonhar. Acreditar que é possível construir
desejos futuros sobre como deve ser o espaço
onde ele vive, trabalha, ama e morre.
Isto é a alma do
poder local:
garantir, através
da participação
comunitáriae de sua
intervenção, seja
no planejamento
ou nas instâncias
de poder e
pactuaçãomunicipal, os
caminhos para
a superação dos
problemas e
necessidades
sociais.
A SAÚDE NO ESPAÇO LOCAL TECIDANAS RELAÇÕES DE PODER LOCAL
A saúde em seu conceito "ampliado" e
"positivo" encontra-se vinculada diretamente
à qualidade de vida das pessoas. Qualidade de
vida que além de garantir o acesso do cidadão
aos seus direitos constitucionais, possibilite
a este vivenciar seu desenvolvimento
integralmente – em uma visão holística e
ecológica, em harmonia com a natureza.
Qualidade de vida que promova o
desenvolvimento equilibrado e sustentável do
espaço onde vive o cidadão.
Saúde pressupõe, assim, a existência de
ambientes harmônicos, saudáveis,
participativos e democráticos, abertos a todas
as manifestações e possibilidades de
construção e contribuição das várias forças
políticas e atores sociais, em uma expressão
clara do poder local em âmbito local.
Nesse sentido, construir as condições
necessárias para que as pessoas, nos espaços
onde vivem, possam ter saúde – física, mental
e espiritual – é um desafio. Desafio que deve
ser assumido por todos cidadãos, movidos por
uma consciência coletiva de reconhecimento
do outro como um ser humano semelhante a
si mesmo, tornando-se construtores da saúde
de sua coletividade no espaço em que vivem.
Coloca-se, dessa forma, a relevância da
apropriação, por todos os atores sociais, do
conhecimento e vivência do espaço e poder
local. Somar esforços para fazer acontecer a
saúde implica em conhecer, intervir, relacionar-
se com as representações do poder local no
espaço local.
Saúde pressupõe, assim,
a existência de
ambientes harmônicos,
saudáveis, participativos
e democráticos (...) em
uma expressão clara
do poder local em
âmbito local.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 55
A PROMOÇÃO DA SAÚDE: DESENHANDO UMANOVA LÓGICA DE VIDA E SAÚDE NOCONTEXTO DO PODER LOCAL
A visão de saúde, aqui desenvolvida, não tem
como ser construída nos marcos teóricos que amparam
a doença. Necessário se faz trilhar novos caminhos e
incorporar novas estratégias. A promoção da saúde é o
caminho que possibilita a construção da saúde dos
cidadãos. Falar de promoção da saúde é reconhecer o
protagonismo do cidadão diante da construção da
sua saúde e da saúde de seu próximo. É possibilitar ao
cidadão, não no sentido de concessão mas de
conquista efetiva porque consciente, a apropriação de
conhecimentos que garantam a si e a comunidade onde
vive o aprendizado do saber cuidar-se. O aprendizado
do saber construir ambientes e formas cotidianas de
viver saudavelmente. É construir a autonomia cidadã,
tanto do indivíduo como das organizações
comunitárias.
Nesse sentido, desenvolver ações ou iniciativas
locais tendo como guia a promoção da saúde,
oportuniza o estabelecimento de uma nova lógica de
relacionamento no contexto do poder local. Os atores
sociais, integrantes ou não das diferentes organizações
comunitárias, adquirem poder (conhecimento) para
intervir e para desenvolver seu autocuidado, de sua
coletividade e do ambiente onde vive. Assim, o exercício
de convivência nas relações estabelecidas no poder
local é democratizado. Os conhecimentos e os saberes
são compartilhados e a construção das condições para
a saúde passa a ter o caráter de responsabilidade social
e não apenas governamental.
Assim, a renovação da dinâmica social no espaço
local, proporcionada pela ótica da promoção da saúde,
requer a revisão do papel do governo municipal,
enquanto responsável direto pela elaboração e
execução das políticas públicas, entre elas a do setor
Saúde. Além de revisar e imprimir seu novo papel, os
governos municipais precisam, também, pautar novas
diretrizes governamentais, destacando-se aqui a
intersetorialidade, a descentralização e a participação
social.
No que concerne a Secretaria da Saúde, além de
dar conta da organização dos serviços assistenciais,
coloca-se a tarefa, ou melhor dizendo, o desafio de
processar estratégias promocionais que orientem a
execução de ações em prol da saúde e da melhoria
qualitativa do local onde vivem os cidadãos.
SAÚDE DA FAMÍLIA: A ESTRATÉGIA DEFORTALECIMENTO DO ESPAÇO E DO PODERLOCAL
O Saúde da Família constitui-se como uma das
principais estratégias, instituídas pelo setor Saúde,
para desencadear, fomentar e contribuir, no espaço
local, com o desenvolvimento de processos favoráveis
à construção da saúde e de ambientes saudáveis e
harmônicos, na relação homem-natureza.
A Estratégia Saúde da
Família, enquanto organizadora da
atenção primária, apresenta
grande potencial para instituir um
novo modelo de atenção à saúde,
que tenha como enfoque central
não mais o indivíduo, a doença,
e sim, a promoção da saúde no
território de sua responsabilidade.
"Considerado como estratégia
estruturante dos sistemas
municipais de saúde, o Programa
Saúde da Família (PSF) tem
demonstrado potencial para
provocar um importante
movimento de reordenamento do
modelo vigente de atenção",
afirma Heloísa Machado de Sousa,
Coordenadora do Departamento
de Atenção Básica do Ministério
da Saúde, aos leitores da Revista
Brasileira de Saúde da Família.
Nessa perspectiva, o Saúde
da Família caracteriza-se como
uma estratégia de fortalecimento
do espaço e poder local, à medida
que, expandindo sua atuação para
além da doença e assistência,
encontra na dinâmica do território vivo, a possibilidade
de mobilização e organização de seus moradores e
demais atores, de forma a exercitar com a população o
poder de decisão sobre as suas necessidades concretas,
com vistas a aquisição de ambientes e entornos sãos e
modos de viver saudáveis.
A utilização pelas equipes de saúde da família de
ferramentas como a territorialização em saúde, a
adscrição das famílias sob sua responsabilidade, o
cadastramento familiar, o planejamento participativo,
a participação comunitária no Conselho Local de Saúde,
entre outras instâncias, potencializam mudanças
significativas no território e nas relações ali
estabelecidas.
A Estratégia Saúdeda Família, enquanto
organizadora da
atenção primária,
apresenta grande
potencial para
instituir um novomodelo de atenção à
saúde, que tenha
como enfoquecentral não mais o
indivíduo, a doença,
e sim, a promoção da
saúde no
território de sua
responsabilidade.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200356
A partir da adscrição das famílias é estabelecido o seu vínculo
com a unidade básica de saúde, o que não traduz apenas a
organização do sistema mas representa uma nova lógica de
relacionamento entre os serviços e os profissionais de saúde e a
comunidade. A unidade está inserida no território e a população
vinculada a esta unidade apropria-se dela como um espaço seu de
direito. Ou seja, há uma aproximação dos serviços e profissionais
com a comunidade.
Ainda nesta ótica, o fato das equipes de saúde da família
trabalharem e responsabilizarem-se por um território e pela saúde
das pessoas ali residentes, implica, também, no estabelecimento
de vínculos. Implica na vivência de processos de reconhecimento,
valorização e incorporação daquele território como espaço permeado
por necessidades sociais que requerem respostas, sob pena de não
viabilizar a qualidade de vida e saúde de seus moradores. Espaço
que precisa ser cuidado, protegido, promovido no sentido de vir a
ser saudável, solidário, fraterno e feliz.
Além disso, trabalhar no território possibilita aos profissionais
de saúde da família constituírem-se como parte integrante das
relações nele estabelecidas. Assim, as equipes acabam sendo uma
força emergente no poder local. Como tal, apresentando um enorme
potencial para estimular e fomentar novas formas de viver e ser na
perspectiva da promoção da saúde.
Novas práticas e iniciativas, no enfoque da promoção da
saúde, podem, portanto, ser experimentadas. Não é à toa, que a
tendência mundial das sociedades é de estabelecer redes. Redes
humanas construídas por pessoas que se aproximam por
apresentarem problemas ou desejos comuns e, diante da
apropriação da idéia de que são capazes de se apoiarem, de se
auto-ajudarem ou, então, de construírem coletivamente seus
sonhos, acabam por formar uma rede. Redes sociais de solidariedade
que se fortalecem em meio a relações de cuidado, proteção,
desenvolvimento humano, amor e felicidade. É a instalação de
uma nova ordem de sentimentos e de ética.
Dessa forma, as ações cotidianas desenvolvidas pelas equipes
de saúde da família podem, na perspectiva da promoção da saúde,
ser impulsionadoras e promotoras de transformações das mais
profundas, porque trabalham com o homem e o ambiente em sua
totalidade. As ações das equipes de saúde da família saem, assim,
do âmbito da prestação de serviços de saúde individualizados ou
até coletivizados, caminhando para a transformação positiva do
espaço e das relações desenvolvidas no território. Nesse processo,
ganha corpo a participação social que, por sua vez, dá consistência
ao exercício da democracia e cidadania, manifestada nas diferentes
instâncias participativas e representativas.
Assim, falar ou escrever sobre as possibilidades que estão
postas para fazer o Saúde da Família ir além do que é hoje, colorindo
os espaços e as relações de poder local com as tintas da cidadania,
do prazer de bem viver em ambientes alegres e saudáveis, não é um
sonho. Ou, se assim o for, que o seja com toda a força da Saúde e
da Vida. Afinal como disse o grande pensador, Lenin, "sonhos,
acredite neles".
À idéia dos sonhos é preciso acrescer a felicidade. Não se
conjuga vida, sem saúde e felicidade. Daí porque a importância do
Saúde da Família, na ótica da promoção da saúde, incorporar no
seu dia-a-dia o cuidado com a felicidade.
A FELICIDADE E A PROMOÇÃO DA SAÚDE
Felicidade. Segundo Dalai Lama "... a motivação da nossa
vida é a felicidade". Ser feliz é um dos grandes objetivos perseguidos
pelas pessoas. Para cada um, a felicidade tem um rosto, um jeito
de ser e de sentir. A felicidade apresenta, portanto, uma face
subjetiva.
Uma face que espelha a identidade da pessoa. Identidade
construída em um lugar, em um espaço local que pode ser chamado
de município, território, comunidade, bairro, quarteirão, grupo,
família... A compreensão essencial é a de que as pessoas formam e
vinculam sua identidade a um espaço local vivo, permeado por
relações sociais, humanas, relações vivenciadas cotidianamente.
Espaço local vivo porque, também, construído a partir da cultura,
dos valores e das tradições de um povo, incorporados e
redesenhados localmente.
É importante destacar que mesmo inscrita no campo da
subjetividade, a busca ou a realização da felicidade, para Dalai
Lama, não leva "ao egoísmo, ao ensimesmamento". Ao contrário,
a felicidade manifesta-se positivamente nos espaços locais, gerando
benefícios nas relações estabelecidas: "... à medida que começarmos
a identificar os fatores que levam a uma vida feliz, estaremos
aprendendo como a busca da felicidade oferece benefícios não só
ao indivíduo, mas à família do indivíduo e também a sociedade
como um todo."
Portanto, a felicidade, ao contrário do que muitos possam
imaginar ou até pensar, é um estado de ser e estar ou até de vir a
ser, por demais valioso. Pessoas felizes ou em busca de felicidade
apresentam um maior potencial de exercer coletivamente o poder
local em prol da construção de espaços de vida saudáveis, humanos
e cidadãos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LAMA, Dalai e CUTLER, Howard C. A Arte da Felicidade: Um manual paraa vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DOWBOR, L. Da globalização ao Poder Local: a Nova Hierarquia dosEspaços, In: Pesquisa e Debate, PUC-SP, Vol. 7, número 1(8), 1996
______. O que é o Poder Local. Coleção Primeiros Passos, São Paulo:Brasiliense, 1995.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Revista Brasileira de Saúde da Família, ano II,nº 04, p.66.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 57
AA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA
NO BRASIL E A SUPERAÇÃODA MEDICINA FAMILIAR
The Family Health Strategy in Brazil and the surpassing of familiar medicine
A Estratégia Saúde da Família é uma proposta estruturante na construção de um novo modelo de atenção que seja mais
adequado às atuais necessidades sociais de saúde, e que consiga dar respostas às complexas relações do processo saúde-
doença da sociedade atual. Esse artigo tenta demonstrar a pertinência de considerá-la uma superação do modelo médico de
família, bastante difundido em vários países.
Estratégia saúde da família; medicina familiar; modelos assistenciais em saúde; atenção básica ; sistema único de saúde.
Tomaz Martins JúniorOdontólogo, mestrando em Gestão e Modernização de Políticas Públicas, Diretor Presidente da Escola de
Formação em Saude da Família Visconde de Sabóia, Sobral/CE.
Luiz Odorico Monteiro de AndradeMédico, mestre em Saúde Pública pela UFC e doutorando pela UNICAMP. Professor da Faculdade de
Medicina da UFC/Sobral, Ceará, Secretário de Desenvolvimento Social e da Saúde de Sobral, Ceará.
Ivana Cristina de Holanda Cunha BarretoMédica, mestre em Saúde Pública pela UFC , Professora da Faculdade de Medicina da UFC/Sobral, Ceará,
Coordenadora da Residência em Saúde da Família de Sobral.
The Family Health Strategy is a structural proposal in the construction of a new care model that may be more suitable to
current social health needs, and which succeeds in providing answers to the complex relationships of the health-sickness
process of present society. This article tries to demonstrate the pertinence of considering it as surpassing the family doctor
model, quite widespread in several countries.
Family health strategy; familiar medicine; health assistance models; basic care; Unified Health System.
s i n o p s e○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○
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a b s t r a c t○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○
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p a l a v r a s - c h a v e○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
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k e y w o r d s○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
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○
○
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200358
INTRODUÇÃO
Uma dúvida surge hoje em muitos debates dos profissionais
dedicados a Estratégia Saúde da Família (ESF) e a Medicina
Familiar (MF) no Brasil. Seriam os dois modelos de organização de
serviço idênticos? Teriam os mesmos propósitos?
Os que defendem que ESF e MF são a mesma coisa, com base
nisto, também defendem que o médico de família deve ter uma
pós-graduação em Medicina de Família, com programa específico,
e em espaço separado dos outros profissionais de nível superior
membros da equipe de saúde da família. Os que defendem a idéia
de que a ESF supera a medicina familiar e tem suas especificidades,
defendem que atuação em equipe interdisciplinar é imprescindível
para o sucesso da ESF e, portanto, todos os profissionais membros
da equipe de saúde da família devem ser formados em conjunto no
nível da pós-graduação, quando já dominam o núcleo básico de
conhecimentos de suas respectivas profissões.
Neste artigo, tentaremos fundamentar a nossa hipótese de
como e porque a ESF supera o modelo de medicina familiar.
Inicialmente é importante destacar que o conceito de
"modelo" utilizado não tem uma relação direta com modelagem,
portanto não é um conjunto de normas, regras, ideal a ser copiado.
Neste artigo, utiliza-se o conceito de modelo descrito por Ricardo
Bruno: "é a construção de consistência prática entre objetos de
trabalho, instrumentos e a ação do agente do trabalho, para que
o processo possa efetivamente objetivar-se em um produto".
O produto desse novo modelo de atenção à saúde deve ser
portanto respostas concretas aos atuais problemas de saúde, e
considera-se que para isso o mesmo deve ter como paradigma o da
construção social da saúde (contrapondo-se ao paradigma
dominante: biologista, centrado na doença, na hegemonia médica,
na atenção médica e na utilização intensiva de tecnologia).
Analisando a organização do processo de trabalho do modelo
Médico de Família, verifica-se que traz importantes contribuições
para esse processo de mudança: a organização do sistema tendo
uma rede de médicos de família como a porta de entrada,
fortalecimento e universalidade da atenção primária, integração
da atenção preventiva e curativa, garantia de acesso da população
aos serviços de saúde, entre outras.
Entretanto, percebe-se que a sua construção ainda tem a
biomedicina como principal campo de conhecimento e que o seu
processo de trabalho ainda guarda uma hegemonia do profissional
médico em relação aos outros profissionais.
A proposta da Estratégia Saúde da Família não nega a
importância desses conhecimentos ou da prática clínica. Busca
promover reflexões profundas sobre a organização atual do processo
de trabalho em saúde e sua questionável aplicabilidade ao modelo
atual de sociedade.
Esta adequação entre modelo de atenção à saúde e modelo
de sociedade pode ser percebida nas diferentes experiências vividas
ao longo da história da humanidade. Quando analisamos os
diferentes modelos de atenção à saúde numa perspectiva histórica,
percebemos que eles se relacionam com a ideologia predominante
em cada sociedade, e nesse contexto, a sua forma de pensar o
processo saúde-doença.
A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS PROCESSOS DE TRABALHONOS MODELOS DE ATENÇÃO À SAÚDE
O sentido do trabalho está ligado a uma aplicação de energia
para promover a transformação de uma realidade, ou em outras
palavras, satisfazer um carecimento. Dessa forma, poderíamos
considerar um eterno ciclo: carecimento – processo de trabalho –
carecimento... (lembrando, é claro, que esse segundo carecimento
será sempre diferente do primeiro, pois faz parte de uma realidade
transformada).
Esse carecimento, entretanto, deve ser visto não como uma
necessidade pessoal, ou mesmo uma necessidade pessoal
"socializada". É importante caracterizá-lo como uma "necessidade
da sociedade". Os indivíduos, ao estabelecer um conjunto de
relações, constituem uma sociedade. Ela própria passa a ser
possuidora de necessidades acima das necessidades dos indivíduos.
Essas necessidades são determinadas pela leitura da realidade
com base no conjunto de conceitos, valores, pela visão de mundo
presente nessa sociedade. No campo da saúde, essas necessidades
estão relacionadas de forma estreita com a atitude dessa sociedade
ante o corpo humano e seus valores relativos à saúde e à doença.
Passeando pela história da humanidade, percebe-se que nas
civilizações primitivas a doença guardava uma relação com o
sobrenatural. Portanto, para a cura das doenças era necessário
promover uma mediação entre os homens e o universo, o que era
conseguido pelo xamã ou sacerdote, figuras capazes de falar e
entender as linguagens das coisas. Para isso, utilizavam terapêuticas
baseadas em práticas mágico-religiosas.
A civilização greco-romana, rompendo com esses conceitos
e práticas, passa a construir outras explicações para as doenças,
dando a elas um caráter natural (fenômeno da própria natureza -
teoria humoral). Assim, o processo de trabalho do médico grego
A proposta da Estratégia Saúde
da Família não nega a importância
desses conhecimentos ou da
prática clínica. Busca promover
reflexões profundas sobre a
organização atual do processo
de trabalho em saúde e sua
questionável aplicabilidade ao
modelo atual de sociedade.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 59
consistia praticamente em ajudar as forças naturais.
Tanto esse médico hipocrático, como o pequeno artesão
que mais tarde passou a ser o cirurgião-barbeiro
procuravam restabelecer, cada um de sua maneira, o
reequilíbrio da natureza.
Na Idade Média, a idade das trevas, a doença
voltou a ser vista como uma entidade com vida própria,
portanto, sobrenatural. Passou a ser a provação, o preço
a ser pago pelo paraíso. Assim, prevaleceu a assistência
aos doentes, entendida aqui como a expectância,
acompanhamento solidário do transe do sofrimento
para a morte e para a vida eterna e surgiram os mosteiros
com acomodações especialmente destinadas à pessoa
doente – o hospital.
O renascimento comercial a partir do século XV
promoveu profundas alterações na estrutura
socioeconômica. O acúmulo de capital com as grandes
navegações, a exploração colonial e a crise do regime
feudal deram início ao período de transição para o
capitalismo, estabelecendo uma nova relação entre os
homens através do trabalho.
Além das grandes navegações, as cortes das
monarquias absolutas promoveram as novas
investigações científicas, criando novas formas de vida
intelectual (mais próximas da Antigüidade clássica). O
conhecimento dogmático da Igreja não foi mais aceito
e deram lugar, no caso do setor saúde, ao início do
desenvolvimento da medicina científica.
Ganham destaque, em meados do século XIX, as
teorias desenvolvidas por Pasteur a respeito dos
microorganismos e o desenvolvimento da biologia
como ciência que fizeram com que a explicação sobre
as causas das enfermidades passasse a ser atribuída a
agentes microbianos.
A medicina muda como ciência mas também como
profissão. Segundo Navarro ela adota os mesmos
princípios ideológicos do capitalismo: o liberalismo e
o individualismo. Fica bastante evidente a relação entre
as novas relações sociais e a organização do processo
de trabalho da medicina quando percebe-se o
desenvolvimento de uma visão mecanicista no trato
com o indivíduo. Semelhante ao que passa a ocorrer
nos diversos setores da sociedade, o corpo humano é
dividido em diversos sistemas e órgãos e a doença
passa a ser vista como um desequilíbrio entre essas
partes de um mesmo corpo. Surge a especialidade como
uma forma de divisão horizontal do trabalho em saúde.
Ressalta-se que essa visão individualista, ao
culpabilizar o indivíduo pela doença, harmoniza-se
com a ideologia capitalista, absolvendo o meio
ambiente econômico e político da responsabilidade
na origem da enfermidade.
Surgiram também novas necessidades sociais,
emergentes com o capitalismo. No campo específico
da saúde, essas necessidades poderiam ser apresentadas
resumidamente em: 1- controlar a ocorrência de doença
(vista como incapacidade de trabalhar) e 2 - recuperar
a força de trabalho incapacitada pela doença.
De início, todo o processo de trabalho em saúde
era possível de ser desempenhado por um único
trabalhador: o médico, sendo que esse
desempenhava papéis ora mais
intelectuais, ora mais manuais. O
hospital passa a ser numa visão
moderna, local de trabalho para esse
profissional, mas também como
instrumento de trabalho, possibi-
litando-o dar respostas às duas
necessidades apresentadas acima.
A complexidade do hospital
moderno transformou o médico em um
trabalhador coletivo, onde desem-
penhava o papel mais intelectual
(diagnóstico e definição terapêutica).
Dentre os outros profissionais
presentes nessa forma de trabalho
coletivo estava o enfermeiro, que
surgiu com funções relativamente
"mais manuais", associadas ao
processo terapêutico. Mais tarde o
trabalho do enfermeiro também se
dividiu, ficando esse com as atividades
mais intelectuais da "parte manual"
da atenção à saúde e deixando para
seus auxiliares as partes "menos intelectuais". Essa
divisão vertical passou a conviver com uma outra
divisão, horizontal, que comporta dois tipos de
expressão: a especialização da profissão (médicos
especializados em partes dos processos diagnósticos e
terapêuticos) e a criação de outras profissões com áreas
de atuação complementares: o odontólogo, o
fonoaudiólogo, o terapeuta ocupacional, o
fisioterapeuta, o psicólogo, o assistente social, o
educador físico etc. É importante ressaltar que toda
essa organização do processo de trabalho guarda uma
relação bastante estreita com a organização do
trabalho na sociedade industrial.
... o corpohumano é dividido
em diversossistemas e órgãos
e a doença passa a
ser vista como um
desequilíbrioentre essas partes
de um mesmo
corpo. Surge a
especialidadecomo uma forma
de divisãohorizontal do
trabalho em saúde.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200360
OS DESAFIOS DA ESTRATÉGIA SAÚDE DAFAMÍLIA FRENTE AO ATUAL MODELO
Vários são os desafios colocados hoje para a
implantação da Estratégia Saúde da Família. Destaca-
se nesse contexto a estruturação da atenção básica,
entendida aqui como a viabilização do acesso universal
e, acima de tudo, a superação das várias limitações
que o atual modelo implantado no país não conseguiu
resolver.
É importante avaliar que o
modelo de atenção à saúde ainda
hegemônico, de base biomédica,
conseguiu alcançar um certo impacto
na morbidade e mortalidade da
população. Esta afirmativa fica
bastante clara quando evidenciamos
uma inegável mudança do perfil
epidemiológico da população
brasileira, com considerável redução,
seja proporcional como também em
números absolutos da mortalidade por
doenças infecto-contagiosas (pre-
dominante no passado) e um
aumento da importância das doenças
crônico-degenerativas e das causas
externas de morbidade e mortalidade.
Entretanto, surge aqui a
necessidade de avaliar alguns
aspectos. Se de um lado o impacto do
modelo hegemônico é inegável, é
igualmente correto afirmar que ele não
conseguiu avanços no que diz respeito
à democratização do atendimento e
dos resultados. Basta observarmos o
atual estágio de nossa transição de
perfil epidemiológico, onde con-
vivemos com um crescimento da forma
de adoecer e morrer de países mais
desenvolvidos e ao mesmo tempo com
problemas básicos, já perfeitamente
resolvidos pelo modelo biomédico,
como a diarréia, a tuberculose, a hanseníase, as
infecções respiratórias agudas. Tal fato pode ser
explicado pela incapacidade percebida nesse modelo
de garantir a universalização da atenção à saúde.
Outro importante aspecto que deve ser
considerado é o novo desafio que surge com essa
mudança do perfil epidemiológico. Para a prevenção,
tratamento e cura das doenças mais prevalentes no
que ousadamente poderíamos chamar de antigo perfil
epidemiológico, são necessários instrumentos e
conhecimentos bastantes específicos da prática
biomédica. É interessante deixar claro que não pode
ser ignorada a importância de aspectos como a
educação, moradia, hábitos na evolução dessas
doenças. Entretanto, os instrumentos disponibilizados
a partir da prática biomédica, como vacinas, melhoria
tecnológica dos fármacos, avanços tecnológicos da
prática médica, conseguiram inclusive minimizar o
impacto desses fatores sociais na morbidade e
mortalidade da população. Como exemplo, vale a pena
citar a redução da mortalidade infantil conseguida em
várias cidades e estados brasileiros, sem entretanto
promover uma mudança na desigualdade social.
Quando analisamos o novo perfil epidemiológico
(aqui mais uma vez correndo o risco de um excesso de
ousadia), observamos que a prática biomédica não
dispõe de instrumentos e capacidades eficazes para
mudança da realidade. Qual a real capacidade desse
modelo de reverter o crescimento de óbitos e agravos
provocados por causas externas? Quais os instrumentos
que o profissional médico tem disponível para evitar
um suicídio, um homicídio ou um acidente,
considerando que para atingir esse objetivo é premente
a mudança de comportamento? E sabemos que o
simples conhecimento não tem se mostrado muito
eficiente para esse propósito. Igualmente, quais os
instrumentos disponibilizados pelo modelo biomédico
para prevenir as doenças crônico-degenerativas senão
apenas o conhecimento da sua evolução e fatores
predisponentes. Mas uma vez, sendo propositadamente
repetitivo, essa prevenção passa acima de tudo pela
mudança comportamental, onde apenas o
conhecimento não tem se mostrado muito eficaz.
Diante do exposto, fica evidente que para a
superação das várias limitações que o atual modelo
implantado no país não conseguiu resolver, surgem
dois importantes desafios: um deles seria o aumento
da cobertura, com vistas a garantir a universalização
da atenção à saúde; o outro seria uma mudança do
modelo de atenção à saúde.
Temos hoje a experiência de várias cidades
brasileiras que conseguiram construir uma rede de
Unidades Básicas de Saúde, o que de certa forma
garantiu um considerável avanço no enfrentamento
do primeiro desafio apresentado. De outro lado, temos
que aceitar o tão pouco que conseguiu-se avançar na
mudança do modelo de atenção à saúde, o que faz
com que o modelo biomédico ainda guarde, em larga
escala, a hegemonia da atenção à saúde.
Neste artigo procuramos estabelecer algumas
comparações entre o modelo clássico de Unidades
Básicas de Saúde e a Estratégia Saúde da Família.
... convivemoscom um
crescimento da
forma de
adoecer e morrer
de países mais
desenvolvidos e ao
mesmo tempo com
problemasbásicos, já
perfeitamente
resolvidos pelo
modelo biomédico,
como a diarréia, a
tuberculose, a
hanseníase, as
infecçõesrespiratórias
agudas.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 61
Conceito de Saúde:
O modelo clássico tem como alicerce o conceito de saúde
como ausência de doença, e a Estratégia Saúde da Família conta
como conceito fundante a saúde como qualidade de vida. Conceitos
como esses são historicamente construídos. São frutos de um
processo de construção coletiva da forma de pensar e agir de uma
sociedade, e portanto, incorporados de forma profunda por essa
população. Para que seja viabilizado um processo de transformação,
é imprescindível que se estabeleça um novo processo social.
O primeiro passo para atingir esse objetivo é criar a
possibilidade dessa sociedade vivenciar esse novo conceito. Para
isso, é inegável a potencialidade surgida com a democratização
do acesso aos serviços. Entretanto, apenas isso não é suficiente. É
necessário que os profissionais de saúde consigam implantar a
nova lógica que norteia a construção desse conceito, o que aponta
para duas limitações do processo. Uma delas seria a própria
formação/conscientização desses profissionais para essa nova
prática. O outro seria a pressão social para o atendimento das
demandas, que é importante ressaltar, geradas a partir do conceito
clássico de saúde.
Quanto à formação, reverte-se o desafio para a classe
acadêmica. Com a implantação de uma nova consciência revertida
em mudanças significativas nos currículos de formação dos
profissionais de saúde, é perfeitamente possível neutralizar a
primeira limitação. Quanto à segunda, é necessário a maestria
desses profissionais para promoverem esse processo de transição.
Infelizmente, para isso não existe uma receita, mas talvez uma boa
estratégia seria a incorporação gradativa de práticas inovadoras
nas unidades básicas de saúde, permitindo que a população tenha
contato com ações norteadas pelo novo conceito de saúde. Essa
incorporação gradativa, e com o impacto positivo dessas novas
ações gerarão, sem dúvida alguma, novos elementos na construção
coletiva do conceito de saúde. Assim, talvez a única receita que
existe é a necessidade da paciência histórica.
Clientelismo x direito de cidadania:
O modelo clássico construiu suas práticas centrado, muitas
vezes, na prática clientelista, onde a prestação de serviços de
saúde é realizada como um favor e não como um direito de
cidadania. Reverter esse aspecto no imaginário da população talvez
seja um pouco menos complicado que a mudança de conceito
apresentada anteriormente.
Essa afirmativa é apresentada partindo-se da constatação de
que essa é uma discussão bastante atual não apenas no setor
saúde, mas em todos os setores da sociedade. Após alguns anos de
castração do direito dos cidadãos de participar ativamente da
política, percebemos claramente alguns avanços na relação entre
a sociedade e a administração, infelizmente em alguns aspectos,
ainda de forma isolada e regionalizada. Vem aumentando ao longo
dos anos a conscientização da sociedade quanto à importância da
garantia dos direitos e deveres de cidadania. Vem igualmente
crescendo uma nova consciência do papel do Estado, não mais
como mero provedor de necessidades de seus clientes (população)
e sim como coordenador de um difícil processo de desenvolvimento
de uma sociedade mais justa, mais farta e mais fraterna.
Cabe uma melhor consciência dos profissionais de saúde
desse importante processo, para que o mesmo norteie a sua prática,
além de um estímulo à participação social no planejamento,
execução e avaliação de suas ações.
Indivíduo x coletivo
O modelo clássico tem como centro de sua atenção o
indivíduo. Tal fato norteou todo o processo de formação dos
profissionais. Mesmo o modelo de Medicina Familiar, que avançou
em alguns aspectos ao modelo hospitalocêntrico, ainda considera
o indivíduo como o foco principal da atenção à saúde. Desta
forma descreveu LIMA (2001):
"Assim desenvolveu-se ao longo do século XIX uma divisão do
modelo assistencial, em contraposição ao modelo ontológico
dominante surgiu um modelo fisiológico ou ecológico, em que o
indivíduo era o centro das atenções. Buscava-se aí um equilíbrio
entre a análise dos quadros clínicos com o hospedeiro, entendendo-se
os fatores que predispunham ao desenvolvimento das doenças de
formas diversas em diferentes pessoas. Este modelo passou a ser o
centro do programa de saúde da Inglaterra, sendo depois levado a
vários outros países, entre os quais Cuba e Canadá, são os mais
estudados, um por ter um sistema com boa resposta apesar da falta de
recursos e o outro por ser o que tem o melhor índice de satisfação de
usuários aliado a uma excelente saúde da população."
Já na Estratégia de Saúde da Família, têm-se ressaltado que
as equipes devem concentrar sua atenção no "coletivo" (ANDRADE
& MARTINS JÚNIOR, 1999).
Reverter o foco de atenção dos profissionais de saúde do
indivíduo para o coletivo é outro grande desafio, pois requer a
Vem igualmente crescendo uma
nova consciência do papel do
Estado, não mais como mero
provedor de necessidades de seus
clientes (população) e sim como
coordenador de um difícilprocesso de desenvolvimento de uma
sociedade mais justa, mais
farta e mais fraterna.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200362
incorporação de novos instrumentos ainda não muito comuns nas
práticas médicas e de outras profissões da área de saúde atualmente.
Talvez o principal deles seria a epidemiologia. A epidemiologia
é indispensável para a saúde coletiva assim como a clínica o é para
o modelo clássico de atenção à saúde. A epidemiologia é que
permite o diagnóstico de saúde-doença de uma população, primeiro
passo para a percepção do "prognóstico" e estabelecimento de
uma "terapêutica". Outro desafio, sem nenhuma dúvida é no
estabelecimento de uma "terapêutica" (estratégia) que promova
uma melhoria do quadro, o que somente poderá ser conseguido
com a utilização de bases de dados epidemiológicos no
planejamento e programação das ações, aplicando-se o princípio
da eqüidade priorizando as famílias ou grupos com maior risco de
adoecer e morrer.
Processo Saúde-doença
O modelo clássico centra sua atenção na pessoa doente. Tal
fato é perfeitamente justificável pela potencialidade dos
instrumentos e conhecimentos utilizados em sua prática para atingir
a reversão desse quadro.
A Estratégia Saúde da Família tem como centro de sua atenção
a pessoa saudável, o que não poderia ser diferente pelo conceito
de saúde utilizado e já apresentado neste artigo. Entretanto, há
de se reconhecer a enorme dificuldade para promover essa mudança.
Se para o trato com a pessoa doente existem instrumentos e
conhecimentos já comprovadamente eficientes, para a atenção à
pessoa saudável é necessário criar novos instrumentos e novos
conhecimentos, o que talvez possa ser facilitado com o próximo
conceito a ser apresentado.
Profissional médico x equipe interdisciplinar
O predomínio do profissional médico nas intervenções geradas
pelo modelo clássico é bastante evidente. Entretanto, resgatando
a discussão apresentada na introdução deste artigo, com a mudança
do perfil epidemiológico que vem sendo observada e a necessidade
de centrar a atenção na pessoa saudável, é indispensável a
incorporação de novos conhecimentos oriundos de outras
disciplinas do próprio setor saúde, como também de outros setores
como a sociologia, a antropologia, as ciências sociais, a urbanística,
a comunicação, apenas como alguns exemplos. Apenas com
intervenções onde haja predomínio da atuação de uma equipe
interdisciplinar é que será possível dar respostas concretas no
enfrentamento do complexo quadro de morbi-mortalidade atual.
Em outras palavras, em sua atuação na Estratégia Saúde da
Família, e para que esta possa ter sucesso, cada profissional membro
da equipe (médico, enfermeiro, odontólogo), deve utilizar-se do
cabedal de conhecimentos e ferramentas de sua profissão, mas
deve necessariamente estar disposto a construir um novo campo
de conhecimento, este comum a todas as profissões atuantes na
ESF, já que possui um mesmo objeto de conhecimento: a população
a ser atendida. Este campo, interdisciplinar, está em construção e
será tanto mais enriquecido e aprofundado, quanto mais tempo
empregarmos para construi-lo e entendê-lo (Figura 1).
... é indispensável aincorporação de novos
conhecimentos oriundos de
outras disciplinas do próprio setor
saúde, como também de outros
setores como a sociologia, a
antropologia, as ciências sociais, a
urbanística, a comunicação,
apenas como alguns exemplos.
Para enfrentamento e superação do complexo quadro
nosológico atual, torna-se necessária a humildade do profissional
de saúde (em especial do médico) de reconhecer a sua incapacidade
de sozinho atingir esse objetivo, e a consciência dos outros
profissionais e setores do seu papel na construção desse processo.
Hospital x Rede Hierarquizada
O modelo clássico, tem como seu principal centro de atenção
o hospital. Tal fato é explicável quando consideramos que sua
prática é centrada na pessoa doente, com um atendimento
predominantemente individualizado. Para o bom exercício dessa
prática, o hospital é a estrutura que fornece uma maior capacidade
estrutural e tecnológica. Entretanto, quando avalia-se a nova prática
FIGURA 1 - A CONSTRUÇÃO DA
INTERDISCIPLINARIDADE NO SAÚDE DA FAMÍLIA
MÉD
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E SOCIA
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EUTA
PSICÓLOG@DENTISTA
EDUCADOR FÍSICO
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T. OCUPACIO
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CAMPOCOMUM
Andrade, L. O. M. 2000.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 63
gerada pela Estratégia Saúde da Família percebe-se que o melhor
local de intervenção é o mais próximo possível da população
assistida, permitindo uma convivência e um maior conhecimento
das relações que são estabelecidas em cada território e que geram
as formas de adoecer e morrer da população assistida.
No caso da medicina familiar, muitos programas que se
propõem a formar o especialista em medicina de família em todo o
mundo, ocupam a maior parte do tempo do profissional em
formação, em atividades intra-hospitalares. Na prática, os egressos
destes programas de residência tem muito mais um perfil de clínico
geral e internista, do que propriamente de um profissional preparado
para enfrentar os problemas complexos da atenção primária de
saúde.
A supervalorização da estrutura hospitalar faz parte também
da cultura da "população leiga", até mesmo porque essa comunga
do mesmo conceito de doença (o que já foi tratado nesse artigo).
Outro aspecto importante é que a Estratégia Saúde da Família não
nega a importância do hospital. Ela apenas avança em uma melhor
categorização de demandas e necessidades, e assim passa a ter um
importante papel na organização dessa demanda, viabilizando a
existência de uma rede hierarquizada de atendimento e a melhoria
do acesso aos níveis secundário e terciário de atenção à saúde
para aqueles que de fato necessitam.
Demanda expontânea x demanda organizada
A base do atendimento no modelo clássico é a demanda
expontânea. Com a incorporação dos novos conceitos dentro da
Estratégia de Saúde da Família é importante ter a clareza da
necessidade de uma estruturação em torno da demanda organizada.
Esse aspecto torna-se de extrema importância quando são
apresentados desafios como centrar a atenção na pessoa saudável
e garantir a equidade, priorizando os grupos de maior risco de
adoecer e morrer. A demanda expontânea surge
a partir de uma percepção individual da
necessidade de um serviço de saúde,
perfeitamente compatível com o modelo
clássico, e que não pode ser ignorado pelos
serviços de saúde. Ao estabelecer como centro
da atenção a pessoa saudável, vista como parte
de um coletivo, promove-se uma nova forma de
perceber as demandas e consequentemente a
necessidade de sua organização.
É importante ressaltar que esse aspecto é bastante importante
para viabilização da rede hierarquizada proposta.
OS DESAFIOS ATUAIS DA ATENÇÃO À SAÚDE:
Na sociedade atual percebemos uma necessidade do consumo
de serviços de assistência à saúde. O alto desenvolvimento
tecnológico tem imprimido à prática médica e à sua relação com
o paciente uma retomada de um componente mágico na medicina
atual. O profissional e o paciente desenvolvem um processo de
mitificação da tecnologia, onde o primeiro, muitas vezes a utiliza
mesmo desconhecendo a intimidade de sua estrutura e o segundo
desenvolve uma crença ilimitada nessas técnicas.
A implementação desse modelo tem alcançado o seu apogeu
mas também o seu questionamento em relação ao efetivo impacto
na saúde da população, além do incremento exagerado de custos.
Surge nas últimas décadas a necessidade de consumo daquilo
que parece negar a doença: saúde vista como qualidade de vida.
Nesse contexto, destacamos a questão da dieta, dos exercícios
físicos, dos remédios protetores, dos estilos de vida saudáveis,
entretanto ainda com uma roupagem individualista.
O intenso processo de urbanização e seu reflexo na situação
de saúde da população tem promovido constantes fracassos do
modelo clínico individual, no que se refere à sua capacidade de
efetivamente promover mudanças nesse quadro. Isso tem gerado
uma tentativa de mudança de atuação do sistema, voltando-se
para o coletivo e assumindo um papel mais de promotor de saúde
e menos de curador. Se o momento "mais intelectual" do trabalho
no modelo clínico individual, o diagnóstico clínico e a prescrição
terapêutica sobre o indivíduo está concentrado no médico, nessa
nova forma de atuação do sistema o diagnóstico pára a ser sobre
o coletivo, assim como a terapêutica.
O principal produto desse novo processo de trabalho passa a
ser a transformação de "necessidades de consumo individual" em
uma postura ativa e mediatamente social em relação ao andamento
humano da vida. Os profissionais para atuarem de forma competente
nesse novo modelo, devem ter a capacidade de facilitar essa
transformação social. Isto se dá a partir de um compartilhamento
de poder, do reconhecimento da importância de outros
conhecimentos e da necessidade de construção de novas práticas
para a efetivação de um modelo que tem a saúde como qualidade
de vida.
Assim, se o modelo clínico individual tem a biomedicina
como a fonte de conhecimentos para sua organização, quais campos
de conhecimento são necessários para esse novo modelo? Os
conhecimentos biomédicos, sem dúvida alguma continuam a ser
importantes, porém são insuficientes para a construção das novas
práticas que possibilitem o diagnóstico e a prescrição sobre o
coletivo.
Reconhece-se nessa proposta a interseção de vários campos
de conhecimento. Dentre esses vários campos de conhecimento,
O principal produto desse novo processo de
trabalho passa a ser a transformação de
"necessidades de consumo individual" em uma
postura ativa e mediatamente social em
relação ao andamento humano da vida.
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200364
destaca-se um de grande importância: o profundo conhecimento
das dinâmicas das comunidades que convivem no seu cotidiano
com os problemas de saúde. Esse conhecimento somente pode ser
adquirido pela vivência, e portanto, a fonte desse conhecimento
é a própria comunidade.
É importante reconhecer ainda outros conhecimentos para
esse diagnóstico e intervenção coletiva para a promoção da saúde
da população. Os profissionais que possuem esses conhecimentos
como campo específico de seu processo de formação não podem
ser vistos como marginais ao processo de trabalho do setor saúde.
Esse talvez seja um outro avanço significativo da Estratégia Saúde
da Família em relação ao Modelo Médico de Família.
Deve-se reconhecer que o médico diante das mudanças das
formas de intervenção na Estratégia Saúde da Família, passa a
competir em pé de igualdade com os outros profissionais no que
diz respeito à fragilidade de suas habilidades e conhecimentos.
Por isso, não deve existir uma relação de hegemonia desse
profissional em relação aos outros, mas sim deve-se reconhecer
que os conhecimentos do campo específico de outros profissionais
são fundamentais para a construção desse novo modelo. Deve ser
viabilizado um diálogo entre os profissionais, não negando a
importância de campos específicos de conhecimento, mas pelo
contrário, valorizando-os como importantes para o
desenvolvimento de um processo reflexivo, gerador de mudanças.
Além disso, deve-se reconhecer a existência de um campo comum
de conhecimento, percebendo-o como espaço privilegiado de
construção de novas práticas.
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ALMEIDA, M.; FEURWERKER, L. et all. A educação dos profissionais desaúde na América Latina. HUCITEC. São Paulo, 1999.
CANESQUI,A.M. et all. Ciências Sociais e saúde para o ensino médico.FAPESP. São Paulo, 2000.
GONÇALVES, R.B.M. Práticas de saúde: processos de trabalho enecessidades. Cadernos CEFOR. São Paulo, 1992.
NAVARRO,V. Classe social, poder político e o Estado e suas Implicaçõesna medicina in Ciências sociais 1. ENSP/FIOCRUZ - ABRASCO. Rio deJaneiro, 1983.
Relatório Final do I Seminário de Experiências Internacionais em Saúdeda Família. Ministério da Saúde. Brasília, 1999.
ROSEN, G. Uma história da saúde pública. HUCITEC. São Paulo, 1994.
SILVA JR, A.G. Modelos tecnoassistenciais em saúde: o debate no campoda saúde coletiva. HUCITEC. São Paulo, 1998.
Reconhece-se nessa
proposta a interseção de
vários campos de
conhecimento. Dentre
esses vários campos de
conhecimento, destaca-se
um de grandeimportância: o profundo
conhecimento das
dinâmicas das
comunidades que convivem
no seu cotidiano com os
problemas de saúde.
ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 2003 - S A N A R E 65
Tornar sã, em latim, SANARE é uma revista do município de Sobral (Ceará),
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ESTRUTURA DO TRABALHO
·Título do Trabalho
Em português e em inglês – corpo 14 pontos com, no máximo, 80 caracteres,
nome(s) do(s) autor(es), e referência à instituição a que pertence(m).
·Resumo
Todos os trabalhos em português deverão trazer o resumo composto por no
máximo 150 palavras. A versão em inglês (abstract) deve acompanhar a original.
O resumo deve ser elaborado com informações claras quanto ao objetivo do
trabalho, metodologia empregada, os resultados obtidos e suas principais
conclusões. Não fazer uso de abreviaturas.
·Unitermos
São palavras ou expressões que o autor deve utilizar para ajudar na identificação
do conteúdo redigido (em português e em inglês).
·Texto
Em todos os trabalhos para publicação, o texto deve ter organização de
reconhecimento fácil, com títulos e subtítulos que reflitam essa organização.
O texto deve ser conciso. No caso de artigos originais o texto deverá
apresentar: Introdução, Métodos, Resultados, Discussão e Conclusão. Mas
todos os textos devem apresentar Introdução, Discussão e Conclusão, além
do título e subtítulos.
·Referências Bibliográficas
É fundamental a todo tipo de trabalho.
As referências deverão estar localizadas no final dos trabalhos, conforme os
exemplos abaixo para:
Livros
BOOG, M.C.F. Alimentação natural: pós e contras. São Paulo. IBRASA, 1985.132P.
Capítulo de livro
Amâncio, O.M.S. Requerimentos nutricionais, In NÓBREGA, F. J. de.
Desnutrição: Infra-uterina e pós-natal. 2ed. rev. atual. São Paulo.
Panamed, 1986.p.19-32 .
Artigos de periódicos
DUTRA DE OLIVEIRA, J. E. ; MARCHIN, J. S. A balanced diet does not have to
contaum meat. World Health Forum, Geneva, v.12, n.3, p.261, maio/jun.
1991.
SORENSEN, J. ; KANG, S. K. ; TORRES, T. J. et al. Status of prospective clinical
trial on in-ciram bugdes. J. Dent., Rev., v.71, p.533. (resumo n.142).
Dissertação e Teses
WOLKOFF, D. B. A revista de nutrição da PUCCAMP: análise de opinião de seus
usuários. Campinas: (s.n), 1994. 131p.
Dissertação (mestrado em biblioteconomia) - Faculdade de Biblioteconomia,
PUCCAMP, 1994.
Trabalhos apresentados em congressos ou similares
THOMPSON, N. LILLO P, ANDRADE, P. R. The crescent probien of DST: adolescent.
Abstracts of the XXV American Pediatries Congress. Iohahio, 1991, 104.
ENDEREÇO PARA ENCAMINHAMENTO DE TRABALHOS
A/C Monica Torres
Escola de Saúde da Família Visconde de Sabóia
Av. John Sanford, 1320 - Bairro Junco - Sobral/CE
CEP 62030-000 - Fone/Fax: (88) 614.5570 / 614.5520
e-mail: sanare@sobral.org
INSTRUÇÕES AOS AUTORES○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
S A N A R E - ANO IV, N.1, JAN./FEV./MAR. 200366
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