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SADE, CULTURA E
SUBJETIVIDADE:UMA REFERNCIA INTERDISCIPLINAR
Fe rnando Gonz lez Rey | Jos B i ze r r i l
ISBN 978-85-61990-30-5
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Bras l i a - 2015
SADE, CULTURA ESUBJETIVIDADE:
UMA REFERNCIA INTERDISCIPLINAR
Fe rnando Gonz lez Rey | Jos B i ze r r i l
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REITORIA
ReitorGetlio Amrico Moreira Lopes
Vice-Reitor
Edevaldo Alves da SilvaPr-Reitora AcadmicaPresidente do Conselho EditorialElizabeth Lopes Manzur
Coordenador Curso Mestrado em PsicologiaCarlos Augusto Medeiros
Organizao
Biblioteca Reitor Joo Herculino
Centro Universitrio de Braslia UniCEUB
SEPN 707/709 Campus do CEUB
Tel. 3966-1335 / 3966-1336
Projeto Grfico e DiagramaoAR Design
Sade, cultura e subjetividade : uma referncia interdisciplinar / organizadores,
Fernando Gonzalz Rey, Jos Bizerril. Braslia : UniCEUB, 2015.
164 p.
ISBN 978-85-61990-30-5
1. Sade. I. Centro Universitrio de Braslia. II. Ttulo
CDU: 616-058
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Reitor Joo Herculino
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SUMRIO
APRESENTAO .................................................................................................. 7Os organizadores
A SADENATRAMACOMPLEXADACULTURA, DASINSTITUIESEDASUBJETIVIDADE...........9Fernando Luis Gonzlez Rey
O LUGARDADIFERENARELIGIOSANASSUBJETIVIDADESSOCIAISBRASILEIRASESUASIMPLICAESPARAASADE ........................................................................35Jos Bizerril
CLNICA, SUBJETIVIDADEEEDUCAO: UMAINTEGRAOTERICAALTERNATIVAPARAFORJARUMATICADOSUJEITONOCAMPODASADEMENTAL. ..............................59Daniel Magalhes Goulart
EDUCAOFSICAESADE: NOTASPARAUMDILOGOCOMATEORIADASUBJETIVIDADENUMAPERSPECTIVACULTURAL-HISTRICA............................................ 85Jonatas Maia da Costa
OSSENTIDOSSUBJETIVOSCONFIGURADOSNAEXPERINCIADOCNCER:UMESTUDODECASO .............................................................................................115Valria D. Mori
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6 A sade na trama complexa da cultura, das instituies e da subjetividade
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7Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
APRESENTAO
Os artigos desta coletnea, produzidos a partir de um dilogo entre
psicologia e outras cincias humanas, propem uma leitura de te-
mticas de sade articuladas ao problema das relaes entre sub-
jetividade e cultura. Embora apontem para temas empricos distintos, temcomo ponto comum a interlocuo com a teoria da subjetividade.
A subjetividade entendida, neste contexto, como produo simb-
lico-emocional singular, isto como capacidade humana de gerar sentidos
diante das mais diversas situaes vividas. A teoria prope a indissociabilida-
de entre indivduo e social, rompendo com a clssica fronteira que separaria
a psicologia, como cincia que se ocupa de um indivduo universal a-histri-
co, das cincias sociais, como disciplinas que se ocupam exclusivamente dosprocessos coletivos (sociais, culturais, histricos), desconsiderando a dimen-
so singular da produo humana. Ao mesmo tempo, questiona qualquer
forma de causalidade linear que pudesse explicar a produo subjetiva como
mero efeito do social.
Esta concepo apresenta-se, portanto, como alternativa aos determi-
nismos tanto psicolgicos quanto sociolgicos, pois reconhece uma relaocomplexa entre sujeitos e fenmenos sociais, culturais e histricos.
Os artigos desta coletnea convergem em perceber o tema do ponto de
vista da produo de sade, como decorrente da possibilidade dos sujeitos
produzirem novos sentidos para os dilemas de sua existncia, inclusive para
os processos de adoecimento. Neste sentido, contrastam com perspectivas
ainda comuns nas cincias de sade que focam na patologia, e no enqua-
dramento e reduo de sujeitos a quadros diagnsticos. Alm disso, atentampara a dimenso cultural dos processos de sade e doena, bem como da
prpria produo subjetiva.
Os Organizadores
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9Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
A SADENATRAMACOMPLEXADACULTURA,DASINSTITUIESEDASUBJETIVIDADE
Fernando Luis Gonzlez Rey1
1 Introduo
O presente trabalho visa aprofundar a discusso da sade como produo
simblica, cultural e historicamente organizada por meio de prticas e de pro-
cessos institucionais implicados nos posicionamentos frente a essa importante
qualidade da vida humana, tanto por parte das pessoas, como das sociedades.
Historicamente, cada sociedade em funcionamento em determinado pe-
rodo gerou suas prprias prticas de sade dentro do seu repertrio de expres-
ses culturais. Nesse processo, as prticas de sade foram relacionadas amide a
ritos msticos e religiosos, algo que continua presente at hoje em determinados
setores da populao em todos os pases do mundo, o que no excluiu o uso de
sustncias naturais com recurso de cura, as quais foram especialmente avana-
das em algumas culturas.Ainda que a noo de doena como conjunto de signos e sintomas pass-
veis de observao tenha surgido j na Grcia antiga com os trabalhos de Hip-
crates, foi somente com o advento do capitalismo, apoiado pela Cincia Moder-
na, que se gesta a chamada Medicina Moderna ou Modelo Biomdico ainda
dominante atualmente nas prticas mdicas de todo o mundo. De modo geral,
o objetivo central dessa medicina o combate s doenas adquiridas, ficando o
termo sade reservado para um conjunto de prticas complementares, de cartersecundrio, das que podem participar profissionais diversos.
1 Centro Universitrio de Braslia UniCEUB.
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O modelo biomdico, da mesma maneira que a cincia, no compreende
apenas um saber; ele expresso de complexa trama institucional que relaciona
seus avanos e formas de atuao com interesses de poder, valores e posies
filosficas que definem o funcionamento das instituies da sade. Desse modo,no momento atual do capitalismo conhecido por alguns como financeiro, mas
que eu prefiro chamar como o momento perverso de um capitalismo corrupto,
antidemocrtico e autoritrio tais instituies esto estreitamente associadas
ao grande capital da produo de medicamentos e de tecnologias aplicadas s
prticas de ateno sade.
No entanto, a afirmao anterior no pretende desconhecer os grandes
avanos da Medicina Moderna e sua importncia para a humanidade, tampou-
co pretende se erigir em discurso poltico ineficiente e carregado de fraseologia
pouco reflexiva, padronizadora e alinhada ideologicamente com foras que, no
mundo atual, praticando recursos semelhantes e centrados no poder, pretendem
se opor ao capitalismo oficial por meio de um capitalismo demaggico socia-
lista. Diferentemente disso, o presente artigo procura avanar sobre os proble-
mas, contradies e desafios que as prticas de sade geram no momento atual,
enfatizando a forma com que essas prticas afetam e so afetadas pelos proces-
sos dominantes das subjetividades sociais e individuais no mundo atual. Nessa
perspectiva, cultura, subjetividade e instituies so processos inseparveis, na
medida em que a cultura e as instituies so consideradas como produes
subjetivas que encontram suas formas de objetivao nos sistemas naturalizados
que cada nova gerao enfrenta como o mundo real e que, no curso de suas
prticas e de suas histrias, ser modificado por novos mundos, simbolicamenteengendrados com as novas ferramentas culturais que cada gerao ir produzir
no curso de sua histria. Esses novos mundos aparecem como realidades cons-
titudas por prticas de origem cultural, naturalizadas como reais a partir das
novas formas de subjetivao que elas implicam.
Um exemplo dessas formas naturalizadas de objetivao a cincia que, em
seu momento positivista, pretendeu alcanar a condio de um saber objetivo
capaz de controlar e predizer os processos naturais e humanos iluso que levou
esperana de legitimar sistemas e prticas humanas como cientficos no intuito de
transform-las em supostas verdades. Nesse processo, o positivismo representou
a filosofia da cincia sobre a qual se erigiu o Modelo Biomdico, sobre o qual se
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desenvolveram os fundamentos de prticas que passaram a ignorar as diferenas
culturais e individuais na medicina, procurando as leis objetivas naturais sobre
as quais se poderia explicar, predizer e controlar as doenas emergentes.
2 Os efeitos do positivismo nas prticas mdicas: a substi-
tuio da pessoa e da sade pela nfase na doena
A ideia moderna de patologia, tanto mental como somtica, foi desenvol-
vida sobre fundamentos gnosiolgicos idnticos: as enfermidades representam
conjuntos de sintomas padronizados, definio que implicar a eliminao das
diferenas individuais que se expressam frente a doenas semelhantes, ocultan-
do a necessidade de se desenvolver recursos tericos para explicar os processos
singulares do desenvolvimento das doenas. De maneira geral, os sintomas re-
presentam o fenmeno na definio positivista; representam a forma mensur-
vel, quantificvel e observvel da classificao da patologia.
Desse ponto de vista, o modelo biomdico levou fragmentao mecani-
cista do organismo em rgos atomizados, que representam at hoje o local de
gnese e desenvolvimento da doena na representao dominante desse mode-
lo, sem compreender como esse rgo inscreve-se no funcionamento complexo
da pessoa em que se instala a doena. O corpo foi tratado, trao ainda muito
presente nas prticas mdicas na atualidade, como uma mquina formada por
partes relacionadas, mas com funcionamento independente de cada uma dessas
partes.
Nesse sentido, o positivismo implicou a naturalizao do corpo e a doenafoi tratada fora do contexto das prticas culturais e dos processos de subjetivao
da pessoa afetada. Essa tendncia apoiada na naturalizao de um saber que
histrico e cultural por definio e, portanto, relativo, pretende at hoje alcanar
solues universais para problemas que vo mudando em sua prpria natureza
e que exigem o desenvolvimento permanente de novas hipteses e caminhos
de pesquisa capazes de acompanhar essas mudanas e gerar novas formas de
inteligibilidade sobre os processos envolvidos na sade e nas doenas. Porm,
a definio epistemolgica positivista se associa com duas caractersticas domi-
nantes do capitalismo: a produo de instrumentos cada vez mais caros e sofis-
ticados para as diferentes prticas humanas, bem como a tendncia irrefrevel
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ao consumo, caractersticas inseparveis entre si e que encontraram importante
lugar nas prticas cientficas e na subjetividade social dominante de nossa poca
regida pelo mercado.
O instrumento na pesquisa cientfica representou o artefato capaz deoferecer respostas sobre o problema estudado sem a interferncia da subjetivi-
dade do cientista, representando verses cada vez mais sofisticadas e sutis do
princpio da neutralidade que caracterizou o positivismo e que serviu para o
ocultamento da forte carga ideolgica do saber cientfico. O instrumentalismo
tpico da cincia moderna, em que o instrumento representou uma forma de
apreender um saber objetivo sobre o mundo, afastou a medicina progressiva-
mente da clnica tradicional, centrada em exame profundo e singular do pa-
ciente. Nesse sentido, a medicina foi se associando a profissionais cada vez mais
passivos, com menos preparao para a formulao de hipteses diferenciadas
sobre os pacientes e mais dependentes dos resultados das tcnicas cada vez mais
sofisticadas de diagnstico.
O carter progressivamente mais sofisticado dos instrumentos permitiu a
deteco cada vez mais precoce dos transtornos, o que levou a tratamentos em
fase inicial de doenas, que, como o cncer, em perodos histricos anteriores,
s eram detectadas em momentos avanados algo que reduzia sensivelmente
as possibilidades de cura e a qualidade de vida dos pacientes. Essa vantagem,
porm, tambm se traduz no aprofundamento da separao outorgada entre o
sintoma localizado no rgo e o funcionamento do organismo como um todo.
Os recursos tecnolgicos culminaram em procedimentos muito sofisticados de
deteco nos rgos, no entanto, incapazes de fornecer informaes sobre ascomplexas formas de organizao e funcionamento do rgo dentro de configu-
raes especficas dos mltiplos sistemas que, de forma simultnea, aparecem no
funcionamento humano.
As diversas cincias, mais especificamente a biologia e as neurocincias, tm
conseguido importantes avanos na compreenso do funcionamento celular dife-
renciado das doenas. Porm, a complexidade do funcionamento do corpo frente
aos processos simblicos que caracterizam a existncia social humana at hoje
profundamente desconhecida, o que tem levado impossibilidade da produo de
saberes sobre diversos aspectos sumamente relevantes para os processos de sade.
O tema da subjetividade, totalmente excludo da epistemologia positivista
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com sua pretensa definio objetiva e natural do ato de saber, tambm ficou ex-
cludo da prtica e da instituio mdica dentro da qual os psiclogos passaram
a ter funes complementares ao saber mdico, marcando participao cada vez
menor nas pesquisas sobre a gnese, o desenvolvimento e a modificao dos pro-cessos associados s doenas. At os dias de hoje, a subjetividade amplamente
confundida com o subjetivismo, embora se tratem de dois conceitos completa-
mente diferentes. Enquanto o subjetivismo representa a nfase em uma gnese
intrapsquica dos fenmenos humanos de maneira separada de outras condies
da vida, a subjetividade qualidade especfica dos processos e fenmenos huma-
nos nas condies da cultura, algo inseparvel das condies de vida da pessoa,
ainda que no seja uma expresso direta e linear dessas condies.
A subjetividade, sendo qualidade geral dos processos humanos tanto indi-
viduais como sociais (GONZLEZ REY, 2002) est presente tambm de forma
geral nos processos de desenvolvimento da sade humana, assim como na gne-
se, desenvolvimento e mudana dos diferentes tipos de doenas. Porm, como
nos diz Bendelow (2009, p. 8),A medicina no possui um marco conceitual que lhe permita re-
lacionar os diferentes nveis de compreenso relacionados com asade humana, desde os genes, passando pela fisiologia, psicolo-gia, famlia, comunidade e sociedade.
A ausncia desse marco conceitual , entre outras coisas, a expresso da
diviso artificial das cincias imposta pelo positivismo, levando fragmentao
da prpria cincia. Nesse processo, ao invs de promover contribuies para a
produo de conhecimentos que impliquem diversas reas do saber frente a um
fenmeno complexo o que seria o caminho para a transdisciplinaridade as
diversas especialidades procuram seu micro objeto diferenciado em relao s
outras cincias que tratam do mesmo assunto. al micro objeto tem sido em
grande medida o foco que levou ao advento da psicologia da sade, no intuito
de criar o seu prprio espao dentro de objeto universalmente dominado pelo
saber mdico. Essa concepo uma das formas naturalizadas de realidades cul-
turalmente geradas, como o chamado objeto das cincias especficas.
O instrumentalismo crescente da medicina e sua dependncia das evi-dncias empricas levou no comeo dos anos 90 criao do termo medicina
baseada em evidncia. Essa forma de fazer medicina, dominante ainda atual-
mente na instituio mdica, tambm tem recebido fortes crticas pelo seu car-
ter reducionista, que se apoia em concepo unicausal da doena, excluindo sua
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compreenso multicausal. (ONELLI, 1998).
Essa medicina centrada no diagnstico com instrumentos cada vez mais
eficientes e custosos, orientada de forma progressiva pela medicalizao, encon-
tra forte estmulo para as suas pesquisas nas mesmas grandes transnacionais dosmedicamentos das quais so os principais usurios. Esse processo culmina na
centralizao de pesquisas naquelas doenas cujo tratamento mais lucrativo,
deixando de lado doenas prprias das populaes economicamente menos fa-
vorecidas, como o paludismo e a dengue, que so verdadeiros flagelos das popu-
laes mais carentes em todo o mundo. O desenho dessa medicina no expressa
apenas a hegemonia de um posicionamento epistemolgico, mas torna-se de
fato fenmeno social com mltiplas consequncias sociais e polticas; a medici-
na torna-se em suas formas mais refinadas e exclusivas prtica excludente qual
somente tm acesso s elites.
A medicina baseada em evidncia segue a tradio de manter o rgo como
o lcusda doena, ignorando completamente o modo de vida, a qualidade ambiental
e a qualidade da vida pessoal e relacional das pessoas. Unido a isso, o carter gerador
dos complexos sistemas de organizao vital das pessoas so ignorados, aparecendo
a doena como resultado de causas externas pontuais, como j era definida por Pas-
teur e Koch no sculo XIX e princpios do sculo XX, respectivamente.
De modo geral, a evoluo do conceito de doena como conjunto de sin-
tomas tem evoludo para crescente patologizao de comportamentos singula-
res, que, ao serem concebidos como afastados da mdia comportamental de um
grupo humano, so classificados como patolgicos, evitando-se outras leituras
sobre o sentido poltico e institucional desses comportamentos. Nesse sentido,o diagnstico clnico frente crescente identificao de comportamentos con-
cretos como patolgicos, transforma-se em meio de controle e higiene social,
atribuindo carter patolgico a comportamentos que expressam, pela sua confi-
gurao subjetiva, outros significados tanto sociais como individuais.
3 A considerao do social e da subjetividade na medicina:
apontando para uma nova viso da doena
O tema da subjetividade como vem se desenvolvendo em nossa linha te-
rica e epistemolgica desde uma perspectiva cultural-histrica (GONZLEZ
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REY, 2005; MIJANS MARNEZ, 2005), e que hoje aparece em importantes
obras e linhas de pesquisa no Brasil (ACCA, 2005; NEUBERN, 2005; COE-
LHO, 2012; ANDRADE, 2005; MORI, 2012; et al.), representa uma forma de
tratar o tema, fugindo da estreita psicologizao dos primeiros intuitos de pro-curar causas psicodinmicas para doenas com sintomas que estavam fora do
mental, como ocorreu nos incios da psicossomtica psicanaltica. A subjetivi-
dade, em sua definio cultural-histrica, aparece como qualidade dos processos
humanos nas condies da cultura. Nesse sentido, trata-se sempre de fenmeno
historicamente situado. Portanto, definida a partir do carter simblico-emocio-
nal da experincia humana, a subjetividade vai alm da compreenso intraps-
quica, ntima e individual qual o termo ficou associado na Modernidade.
Longe de ser atributo intrnseco mente humana, a subjetividade repre-
senta uma qualidade especfica dos processos humanos presente em todos os
processos e atividades humanas, desde o corpo, at as mais diversas formas de
prticas e instituies sociais. Um dos valores heursticos dessa definio de sub-
jetividade para a psicologia e para as cincias humanas de forma geral que ela
acrescenta qualidade presente em todos os processos humanos e que, por longo
tempo, foi excluda das tendncias hegemnicas das cincias humanas: a produ-
o simblico-emocional humana sobre o mundo vivido. al processo terminou
por ocultar as relaes recursivas entre o social, o institucional e a cultura
processos que tm lcusprprios nas prticas humanas, mas que se configuram
de forma recproca em todas as atividades e sistemas humanos, entre os quais
est a sade.
O subjetivo especifica um tipo de processo que emerge como qualidadeda cultura, sendo parte dela e produzido nos espaos sociais diferentes dentro
dos quais culturas diferentes se desenvolvem de forma simultnea dentro de um
mesmo tempo histrico. Os processos simblico-emocionais que atravessam as
realidades humanas e suas formas de organizao e desenvolvimento levaram
em nossos trabalhos definio de uma lgica configuracional que impede a re-
duo do subjetivo a elementos ou entidades dadas e, ao mesmo tempo, impede
identificar o subjetivo dentro de uma viso holstica como identificao integra-
dora do todo. O subjetivo um sistema, mas nunca representando toda a sub-
jetividade, nem da pessoa nem de espao social particular; o subjetivo sistema
enquanto configurao atual de processo que se organiza no curso da ao e no
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curso da histria de vida das pessoas e de seus espaos sociais, alimentando-se
das mltiplas produes simblico-emocionais que caracterizam as experincias
dessas pessoas e dos diferentes espaos sociais em que vive em momentos hist-
ricos e contextos diferentes da vida individual e social. Foi dessa representaomais geral de sistema como organizao em processo, com plasticidade para se
reorganizar no curso da ao, que o conceito de configurao subjetiva da expe-
rincia humana tomou vida.
A ideia de configurao nos permite superar algumas das limitaes de
muitos dos conceitos historicamente privilegiados nas cincias do homem e que
as cincias naturais superaram na construo terica de sistemas no humanos
de qualidades diversas, como por exemplo, os conceitos de estruturas dissipativas
(PRIGOGINE, 2004) e de princpio da incerteza(HEISENBERG, 1995), assim
como muitos outros conceitos cujos desdobramentos e articulaes levaram
fundamentao de uma nova representao de mundo, com mltiplas conse-
quncias epistemolgicas, s quais tm convergido na emergncia da eoria da
Complexidade e da Epistemologia da Complexidade.
A subjetividade se inscreve dentre os temas que ganham inteligibilida-
de terica no campo da complexidade (MIJANS MARNEZ, 2005) e que se
caracterizam por no ser suscetveis de medidas imediatas de seus processos
e formas de organizao; sistemas em que o momento atual de sua existncia
parte de sua organizao dominante presente, que no representam soma de
elementos, mas qualidades intrnsecas de novos tipos de unidade em seu fun-
cionamento; sistemas em que as causas iniciais de um processo nunca so res-
ponsveis pelo estado final desse mesmo processo; sistemas que no tm causasestticas definidas a priori. Essas caractersticas gerais aos sistemas complexos
demandam mudanas epistemolgicas essenciais para a produo de conheci-
mento sobre eles. A sade um exemplo de sistema complexo, todavia, o avano
sobre conceitos que especifiquem o funcionamento saudvel de um sistema vivo
no encontra-se disponvel na Medicina Moderna, na qual, como foi dito, o sa-
ber atual sobre sade humana est centrado na doena.
Historicamente, por tambm se associar ao modelo biomdico, a psicolo-
gia tem-se centrado no estudo das doenas (FOUCAUL, 2000) e atualmente, a
tendncia a classificar os comportamentos que se afastam dos critrios norma-
tivos como patolgicos, nas diversas reas da atividade humana, leva progres-
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sivamente medicalizao de comportamentos que tm uma gnese subjetiva
implicada em determinado sistema de relaes e eventos sociais. Essa tendncia
massiva voltada para a patologizao dos comportamentos concretos evidente
na evoluo progressiva dos sistemas de entidades gnosiolgicas que norteiamgrande parte do trabalho dos psiclogos clnicos, como o caso do Diagnostic
and Statistical Manual of Mental Disorders(DSM), cuja ltima e mais ampla ver-
so o DSM-V.
Na dcada de 1960, surgiu nos Estados Unidos, uma psicologia da sa-
de que, com embasamento comportamental e posteriormente cognitivo, orien-
tou-se ao estudo dos comportamentos saudveis e s formas de sua estimulao
(MEICHENBAUM, 1977; LAZARUS; FOLKMAN, 1984). al psicologia da sa-
de de orientao cognitiva centrou-se no estudo do estresse e em sua relao
com diferentes tipos de doena e problemas de sade. Desse modo, essa aborda-
gem no considerava traos da pessoa, nem seus comportamentos concretos na
busca por explicar transtornos que j na literatura dos anos cinquenta do sculo
XX se associaram a padres especficos de comportamento como, por exemplo,
os padres A e B do comportamento coronrio.
Embora a psicologia cognitiva tenha avanado na compreenso relacional
sobre a gnese do estresse e sobre a compreenso de como as experincias vivi-
das afetavam as emoes da pessoa, suas concluses se sustentam sobre posies
fortemente racionalistas, apoiando-se no esquema sujeito-objeto, a partir do
qual, as influncias externas tm ou no carter estressante nelas mesmas. Desse
ponto de vista, tais influncias podem ser evitadas pela pessoa por meio de es-
tratgias cognitivo-intencionais a partir da avaliao dessas influncias externas,as quais foram identificadas na literatura com o conceito de enfrentamento ou
coping (LAZARUS; FOLKMAN, 1984; LAZARUS, 1999). Essa psicologia no
conseguiu avanar na explicao do carter gerador da pessoa e das emoes que
prejudicam a sade, nem compreender o que distinguia essas emoes de outras
que resultam benficas para a sade. A ideia de que uma influncia externa po-
deria ser ameaadora pelo seu carter inerente bem como que o dano poderia
ser evitado segundo o tipo de enfrentamento desenvolvido pela pessoa ante ela,
ainda que enfatizando a relao da pessoa com essa influncia externa, expres-
sava uma viso muito reducionista do envolvimento da pessoa nesse processo,
o qual ficava reduzido ao processo de enfrentamento definido como processo
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intelectual, intencional e consciente. Nesse sentido, Lazarus (1999, p. 19) afirma:Para alguns a mediao cognitiva se refere sobretudo ao signi-ficado subjetivo, um termo que ainda parece incomodar algunspsiclogos. Realmente, minha prpria perspectiva, que se centrana valorizao do indivduo, no uma autntica fenomenologia.
Minha postura, em geral, que as pessoas percebem e respondems realidades da vida mais ou menos exatamente do contrriono poderiam sobreviver nem florescer. Porm, tambm contem-pla metas e crenas pessoais em suas percepes e a-percepes e,de alguma maneira, todos vivemos na iluso.
Na citao anterior, o autor, que j vinha evoluindo em suas posies
cognitivas e positivistas mais ortodoxas desde trabalhos anteriores (LAZARUS;
FOLKMAN, 1984), embora no consiga superar o aspecto distintivo da psicolo-
gia cognitiva de pensar que as pessoas respondem a realidades da vida de formasemelhante frente s realidades vividas (posio esta que est na base de sua de-
finio de enfrentamento/coping), o autor abre reflexo que claramente lhe apro-
xima da subjetividade como ontologia da condio humana, quando no final
do pargrafo reconhece que de alguma maneira, todos vivemos na iluso. Esse
viver na iluso reconhecer o carter gerador, criativo da dimenso subjetiva
humana, o qual no se subordina a realidades externas, mas que, pelo contrrio,
produz constantemente processos diferenciados de subjetivao frente a essas
realidades.
A teoria da subjetividade que desenvolvemos, diferena das posies
da psicologia cognitiva no campo da sade, parte do carter singular das confi-
guraes subjetivas geradoras de processos simblico-emocionais mltiplos, os
quais definimos como sentidos subjetivos. al proposio conceitual desdobra-
se na considerao do transtorno como consequncia do desenvolvimento deuma configurao subjetiva que, produzida em determinado momento da vida
da pessoa, vai se desdobrando em novos processos e sentidos subjetivos que ter-
minam no permitindo novas expresses da pessoa, fixando-lhe no sofrimento.
Essa definio supera a ideia ainda dominante na literatura e na psicologia da
sade de que os transtornos esto definidos por emoes especficas e universais
pelo seu contedo. Compartilhamos com Lazarus (1999) a ideia de que o termo
psicossomtico para designar certo tipo de transtorno no pertinente na medi-da em que todo transtorno psicossomtico (GONZLEZ REY, 1993). A defini-
o do fenmeno psicossomtico surgiu na teoria psicanaltica no momento que
se pensou existirem transtornos somticos que poderiam ser explicados comple-
18 A sade na trama complexa da cultura, das instituies e da subjetividade
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tamente por determinada dinmica intrapsquica, assim como props Freud no
caso das histerias de converso.
As definies de sentido subjetivo e configurao subjetiva, sobre as quais
se sustentam as categorias de subjetividade social e individual nesta perspectivaterica, tm as seguintes implicaes para o estudo do subjetivo na sade humana.
No existe relao direta entre comportamento e configurao subjetiva
que possa ser generalizada como base desse comportamento. odo comporta-
mento expressa uma configurao subjetiva singular, da qual fazem parte sen-
tidos subjetivos gerados na prpria trama relacional dentro da qual se gera o
comportamento. Por exemplo, o dficit de ateno e hiperatividade, rtulo to
comum hoje para explicar os problemas que uma criana apresenta na escola,
nunca uma condio intrnseca da criana, mas sim um conjunto de compor-
tamentos subjetivamente configurados que integram sentidos subjetivos gerados
em diferentes espaos e momentos da vida da criana, assim como na diversida-
de de contextos de sua vida atual, dentre eles, o da sala de aula.
No existe nenhum contedo ou dinmica intrapsquica que, de forma
universal, possa se considerar como causa de um tipo de transtorno, seja ele pela
sua forma de expresso somtica ou mental.
Os conceitos de sentido subjetivo e configurao subjetiva integram a
emoo cultura a partir da inseparabilidade do emocional e o simblico, rela-
o que integra o corpo a todos os processos de subjetivao humana, com suas
correspondentes consequncias para a compreenso da sade e do adoecimento.
A partir dos conceitos de sentido subjetivo e configurao subjetiva, o
social deixa de ser uma dimenso externa pessoa para ser considerado comosubjetivamente configurado, o que permite transcender uma viso descritiva do
social e compreend-lo pelas configuraes subjetivas geradas pelas pessoas e
os espaos sociais em que elas vivem. As consequncias do social para a vida
humana sempre esto atravessadas pelos processos de subjetivao das pessoas
implicadas nas tramas sociais.
A partir das consideraes anteriores, que especificam a relevncia da de-
finio de subjetividade defendida neste captulo, falar de uma definio biop-
sicossocial da sade ou da doena perde todo sentido, na medida em que cada
um desses fenmenos, ainda que mantendo um lcus especfico, integra-se nes-
ses diferentes nveis por meio de mltiplas configuraes em que cada um des-
19Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
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ses nveis nunca aparece como sendo externo aos outros. Dessa forma, no se
pode patologizar processos que expressam dinmicas sociais que precisam ser
compreendidas no sentido de iniciar qualquer ao de mudana com as pessoas
ou grupos envolvidos nessas dinmicas sociais. A definio do subjetivo numaperspectiva cultural-histrica integra intensamente o sujeito individual numa
definio em que o cultural e o social so partes fundamentais das configuraes
subjetivas desse sujeito, o que definitivamente leva superao da dicotomia
entre o social e o individual nas cincias humanas.
O conceito de configurao subjetiva capaz de apreender em sua com-
plexa integrao qualitativa a diversidade de processos da vida social das pessoas
por meio dos sentidos subjetivos singulares que essas pessoas geram nas suas di-
ferentes atividades. O social, em toda sua diversidade e extenso, s passvel de
se tornar inteligvel s cincias humanas por meio da diversidade de produes
subjetivas singulares das pessoas que partilham uma trama social. Assim, por
exemplo, com base no estudo das configuraes subjetivas implicadas nas ati-
vidades escolares de uma criana com Sndrome de Down, podero ser geradas
hipteses sobre o funcionamento escolar e as relaes da criana dentro da esco-
la, assim como sobre as produes simblicas que constituem esse espao social.
Uma instituio, ou um cenrio social qualquer, s aparece em sua rele-
vncia para as pessoas nas configuraes subjetivas das pessoas que partilham
esses espaos sociais. O significado de uma realidade vivida para a pessoa re-
sultado no das intenes e discursos explcitos que dominam esse espao social,
mas de desdobramentos e elementos indiretos do funcionamento desses espaos
sociais que no so inteligveis somente pela aparncia emprica desse contex-to. Nesse sentido, a subjetividade um conceito subversivo, pois permite juzos
sobre aspetos do funcionamento social que permanecem ocultos s prticas e
discursos dominantes de qualquer realidade social. Os efeitos de uma dinmica
social sobre o indivduo e os grupos dependem de configuraes subjetivas que
esto alm das conscincias individuais dos afetados. Esse fato j foi destacado
pela teoria das representaes sociais e pelo construcionismo social, no entanto,
a diferena entre essas teorias e a teoria cultural-histrica da subjetividade o
lugar central que esta ltima atribui ao sujeito e s suas configuraes subjetivas;
o sujeito representa um momento de tenso e ruptura em relao aos processos
normativos e sociais dominantes de natureza discursiva.
20 A sade na trama complexa da cultura, das instituies e da subjetividade
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A ideia de configurao est presente na forma em que diversos autores
criticam o modelo patologizante da medicina atual, enfatizando a excessiva
produo de mltiplos rtulos que invadem todas as esferas da vida social, desde
a escola at as empresas produtivas. Discutindo as implicaes do rtulo hi-peratividade e transtornos de ateno, Bendelow (2009, p. 76). escreve:
Ainda que os meninos superem o nmero de meninas com essediagnstico numa proporo de 4:1 (ela se refere ao diagnsticode hiperatividade e transtornos de ateno), esta distribuio degnero raramente considerada na literatura cientfica e na inves-tigao. Na vida ocidental contempornea, as famlias geralmentetm poucos filhos, mas isso pode ser argumentado pelo fato deque nas sociedades materialistas altamente competitivas tem cres-cido as expectativas sobre o sucesso das crianas na vida moderna,
especialmente no campo das atividades escolares, e esse o casodo Reino Unido, onde os meninos so menos propensos ao suces-so escolar que as meninas, o que se exacerba desde uma anlise degnero ou classe (mas menos claro desde quando se considera adimenso tnica).
precisamente esse tipo de anlise apresentado por Bendelow (2009) que
adquire destaque com os conceitos de sentido subjetivo e configurao subjetiva.
A complexa teia dos processos da vida social, com toda a sua carga ideolgica
que so parte dos processos sade-doena, pode ser trabalhada por meio doconceito de configurao subjetiva. Isso permite analisar a qualidade das pro-
dues sociais no mbito relacional da pessoa por meio do tipo de produes
simblico-emocionais (sentidos subjetivos) que se geram nesse sistema de re-
laes, expressas pela diversidade de condies, discursos e lugares sociais de
cada pessoa, instituio e grupo humano. A presena que a autora d ao gnero
e classe, em sua anlise, no predomnio masculino de crianas com dficit de
ateno e hiperatividade excelente exemplo de uma dimenso do transtorno
que est fora do foco biomdico de tratamento, mas que sem o qual aes essen-
ciais na ateno sade, como as de preveno e promoo, no poderiam ser
desenvolvidas.
O destaque da dimenso subjetiva dos processos de sade-doena comea
a ter espao importante na prpria medicina, sobretudo, em pases como a Ingla-
terra, que mantm um sistema de sade de profundas razes liberais e socialistas
orientadas ao atendimento gratuito e geral da populao. A chamada medici-
na baseada nos valores (VBM), desenvolvida dentro da prtica mdica (FUL-
FORD; DICKENSON; MURRAY, 2002), ope-se ao carter apenas cientfico do
exerccio mdico, propondo uma prtica que resgate os aspetos subjetivos rela-
21Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
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22 A sade na trama complexa da cultura, das instituies e da subjetividade
cionais das pessoas atendidas, descentrando-se da doena e colocando no centro
do atendimento a pessoa doente.
Em nossa linha de pesquisa sobre a configurao subjetiva das doenas
crnicas e sobre os processos educativos nas prticas de sade, desenvolvidas noCentro Universitrio de Braslia (UniCEUB) a na Universidade de Braslia (UnB),
respectivamente, tem sido evidenciada a complexidade das configuraes subje-
tivas das doenas crnicas de uma forma geral, assim como a pouca ateno aos
processos de modo de vida e desenvolvimento humano nas instituies de sade
(MORI; GONZLEZ REY, 2010; GONZLEZ REY, 2011; GOULAR, 2013).
No esteio desses trabalhos, as consideraes tericas desenvolvidas nes-
se captulo tm importantes implicaes para repensar as prticas de sade na
forma em que elas vm sendo desenvolvidas pelas instituies de sade. Dentre
essas implicaes, gostaria de destacar as seguintes:
- A integrao dos processos teraputicos orientados ao tratamento de
problemas de sade com os processos mais gerais do desenvolvimento e com o
modo de vida das pessoas. Questes centrais como o uso do tempo, as atividades
desenvolvidas pelas pessoas, a qualidade dos seus sistemas de relacionamento e
o desenvolvimento de novos processos de socializao e realizao pessoal de-
vem receber uma ateno especial na projeo de sade e na realizao dos pro-
gramas de tratamento no mbito da sade.
- Os trabalhos desenvolvidos em nossas linhas de pesquisa evidenciam
a necessidade de transcender os diagnsticos orientados a compreender as pa-
tologias para passar a enfatizar a compreenso das configuraes subjetivas das
doenas, procurando configuraes subjetivas sadias que permitam a ao ativada pessoa no controle das doenas crnicas e no desenvolvimento de recursos
que lhes permita uma vida ativa, afastando a condio de paciente, no apenas
em seu relacionamento com as instituies de sade, mas na sua prpria iden-
tidade.
- Avanar teoricamente na explicao da gnese e desenvolvimento das
emoes humanas, procurando o desenvolvimento de novas explicaes capa-
zes de integrar as emoes como processos subjetivos, inseparveis das confi-
guraes subjetivas de todas as atividades e formas de expresso humanas, com
o funcionamento do corpo. nessas complexas configuraes diferenciadas e
singulares que a emoo aparece como aspecto importante na gnese e desenvol-
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23Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
vimento, tanto das doenas, como dos processos associados sade.
4 Das teorias do estresse compreenso das configuraes
subjetivas dos processos associados com a sade e a doena
Com o desenvolvimento da psicologia da sade, o conceito de ansiedade
como categoria central para a compreenso dos transtornos psquicos na clnica
deu passo ao conceito de estresse, que comeou a ser usado como central na
explicao de transtornos que, sendo tradicionalmente objetos da prtica e do
saber mdico, ficaram timidamente confinados a uma rea da clnica definida
como psicossomtica. Porm, a psicologia da sade, diferena da clnica em
algumas de suas mais importantes perspectivas tericas, foi desenvolvida essen-
cialmente desde duas perspectivas, comportamental e cognitiva, as quais apa-
receram como enfoque cognitivo-comportamental em algumas das tendncias
dedicadas a esse campo. O predomnio desses dois enfoques separou essa nova
rea emergente da psicologia das tendncias do pensamento clnico, reproduzin-
do o mesmo esquema fragmentrio e excludente que tem caracterizado a matriz
de desenvolvimento da psicologia de forma geral.
Uma das consequncias mais fortes dessa orientao cognitivo-compor-
tamental foi colocar no centro de ateno processos parciais, sem avanar numa
teoria sobre o sujeito desses processos. Ainda que alguns enfoques cognitivos
em particular a poderosa linha representada por R. Lazarus (1999) e seus co-
laboradores tenham conseguido transcender os enfoques comportamentais
estticos, que associavam a doena e a prpria definio de estresse com traoscomportamentais padronizados das pessoas (como o Padro A e B de compor-
tamento coronrio), e tenham passado a destacar a importncia do relaciona-
mento da pessoa com o evento vivido como o aspecto central para entender as
consequncias das influncias externas para a sade, de fato tais enfoques cog-
nitivos no conseguiram transcender o esquema sujeito-objeto (S-O), no qual
a influncia externa definida em seu carter para o sujeito pelo seu prprio
contedo, sem considerar seus mltiplos sentidos possveis e singulares para o
sujeito. Nesse esquema, o sujeito fica definido pelo conjunto de recursos cogni-
tivos que capaz de usar em seu enfrentamento com essa experincia, recursos
tidos como resultados da avaliao consciente e intencional que acontecem por
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meio de percepo da pessoa sobre a experincia externa.
Desse modo, na perspectiva cognitiva, o indivduo definido dentro de
um esquema reativo e seus recursos psicolgicos so apresentados mais como
formas de reagir frente ao que aparece dado externamente do que como formasde criao subjetiva da experincia vivida. Nessa representao, so desconhe-
cidas as complexas produes simblico-emocionais que em nossa perspectiva
terica aparecem representadas pelos conceitos de sentido subjetivo e configu-
rao subjetiva. As experincias humanas, desde o posicionamento que defende-
mos no presente captulo, no constituem reao pontual a influncias ou even-
tos externos, mas sim uma produo subjetiva configurada subjetivamente no
prprio processo de viver uma experincia.
O conceito de produo subjetiva se diferencia da ideia de enfrentamento
(coping) pelo fato de que uma produo subjetiva no identificvel por um tipo
de comportamento externo mensurvel, no uma reao, mas uma produo
da pessoa que precisa ser construda dentro de um conjunto de expresses muito
diversas dessa pessoa, cujo efeito e consequncias nunca so imediatos, j que
no dedutvel do momento presente da experincia vivida. Por exemplo, uma
paciente com cncer que se recusa a fazer a radioterapia como um procedimento
complementar mastectomia que lhe foi realizada, no pode ser explicado por
um significado universal, como por exemplo, a to usada falta de adeso ao
tratamento ou negao da situao vivida; um caso como esse sempre dever
ser analisado de forma singular, pois esse comportamento pode ser indicador
de mltiplos e diversos sentidos subjetivos. Precisamente, um paciente emerge
como sujeito no processo de viver sua doena quando no se subordina de formaacrtica ao instrumentalismo centrado no procedimento que caracteriza a prti-
ca clnica mdica hegemnica.
Optar por um tratamento no apenas um posicionamento frente a um
sintoma ou uma possibilidade futura em relao evoluo de uma doena, mas
representa tambm uma filosofia frente vida e morte, um posicionamento em
relao a ns mesmos como seres humanos, uma expresso de nossa identidade
frente a uma situao nova que vai ter implicaes definitivas em nossas vidas,
entre as quais, a morte no necessariamente a pior para muitas das pessoas que
enfrentam esse desafio. A identificao de um caminho como o verdadeiro e o
melhor representa o desconhecimento da subjetividade humana, sistema ine-
24 A sade na trama complexa da cultura, das instituies e da subjetividade
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25Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
rente ao processo de objetualizao que define o paciente o que representa
um valor ideolgico-institucional do modelo biomdico dominante, e no uma
definio da cincia. Muitos exemplos de pacientes que vivem com fora e res-
ponsabilidade as suas decises de no acompanhar as prescries mdicas tmaparecido em nossas pesquisas e no necessariamente suas decises tm tido
consequncias piores para a qualidade de vida com relao queles que optaram
pelo tratamento mdico indicado.
O posicionamento que se apoia na teoria da subjetividade no represen-
ta apenas uma postura terica, epistemolgica e metodolgica, mas tambm, e
de maneira muito importante, um posicionamento frente prtica profissional,
assim como um posicionamento tico-poltico que se ope a objetualizao
do paciente frente ao procedimento. A verdade humana nunca pode ser situada
fora da pessoa que vive um processo; a nica verdade frente a uma condio da
existncia humana so os sentidos subjetivos que se configuram no processo de
viver essa experincia e que so inseparveis de histrias e contextos atuais de
seus protagonistas.
O estresse no representa um tipo de reao definida pela natureza do
evento externo, nem pode ser definido por um tipo de processo frente ao evento
vivido. Quando Lazarus (1999) afirmou que no se poderia avanar no tema do
estresse sem avanar numa teoria sobre as emoes, sem dvida ele estava num
momento muito importante de reviso e reflexo sobre os prprios posiciona-
mentos que tinha desenvolvido em momentos anteriores de sua obra:[...] quando as emoes esto presentes, inclusive aquelas de tompositivo, com frequncia tambm se produz estresse, ainda que
no sempre. Dada essa interdependncia, curioso que se tenhamdesenvolvido duas literaturas diferentes, como se o estresse notivesse nada a ver com as emoes e as emoes nada tivessem aver com o estresse. Os eruditos e os cientistas se interessam peloestresse e a teoria e pesquisa sobre o seu manejo e tendem a des-conhecer as teorias e pesquisas sobre as emoes e o mesmo acon-tece com os que estudam as emoes (LAZARUS, 1999, p. 47).
O autor toca uma questo central do uso dos conceitos na psicologia; a
pobreza que caracteriza a produo de teoria na psicologia, resultado da he-
gemonia epistemolgica do positivismo, o que tem levado ao desenvolvimentode sistemas de procedimentos de avaliao e interveno sobre processos pon-
tuais e concretos que terminam sendo separados da pessoa devido ausncia
de construes tericas que permitam compreender esses processos como parte
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26 A sade na trama complexa da cultura, das instituies e da subjetividade
de sistemas complexos, mltiplos e em movimento. precisamente essa nfase
no carter mltiplo, diferenciado e em processo dos sistemas dentro dos quais
os processos subjetivos se geram, o que nos tem levado definio da categoria
de configurao subjetiva. Por meio desse conceito, torna-se possvel romper, deforma definitiva, com a produo de sistemas universais que terminam levando
a uma metafsica do sistema, a qual impede a assuno da teoria como pro-
cesso progressivo de produo de hipteses que, no seu desenvolvimento, tem
momentos qualitativos de ruptura definidos pelas novas construes tericas do
pesquisador, aportando assim novas alternativas construo terica.
Desde o nosso ponto de vista, nem as emoes nem o estresse em si po-
dem ser o centro de uma teoria, pois ambos so processos que se organizam em
sistemas que esto para alm dos limites desses conceitos. Ambos os fenme-
nos expressam configuraes subjetivas que ultrapassam a relao imediata da
pessoa com os eventos externos imediatos de seu cotidiano. A inseparabilidade
entre emoes e processos simblicos, que caracteriza a configurao subjetiva
das emoes, culmina na impossibilidade terica de se fundar uma teoria sobre
as emoes como processo psquico separado dos processos simblicos, o que
j nos remete a um tipo de fenmeno diferente da prpria emoo. essa in-
tegrao simblico-emocional que temos definido com o conceito de sentido
subjetivo.
Enquanto o sentido subjetivo aparece no processo da ao como unidade
simblico-emocional da experincia vivida, unidade que integra, na fugacidade
de um momento, a histria do sujeito e o contexto atual da experincia vivida, a
configurao subjetiva o sistema que se organiza no movimento dos sentidossubjetivos e que se organiza no processo da ao. No existem sentidos subjeti-
vos hegemnicos a priorique norteiam o curso da ao; os sentidos subjetivos
representam o lado subjetivo de toda ao humana e a sua configurao somente
acontece no curso dessa ao.
Ainda que as configuraes subjetivas da personalidade tenham uma es-
tabilidade superior em relao quelas que se organizam continuamente no cur-
so da ao, das quais essas configuraes subjetivas da personalidade so parte
inseparvel por meio dos sentidos subjetivos que emergem nesse processo, as
configuraes subjetivas da personalidade no definem a ao, sendo apenas
constituintes de sua configurao subjetiva. A personalidade no uma estrutu-
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27Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
ra esttica de contedos, mas sim uma organizao complexa de configuraes
cuja expresso se singulariza de maneira diversa nas aes do sujeito em diferen-
tes contextos. A congruncia dos sentidos subjetivos diversos que a personali-
dade gera no curso das configuraes subjetivas da ao um tema que deve seraprofundado em nossas diferentes linhas de pesquisa no momento atual.
O tipo de emoes que afetam a sade no pode se separar de sua con-
figurao subjetiva, o que constitui processo importante de conhecimento para
qualquer ao psicolgica orientada mudana, desde as psicoteraputicas at
as pedaggicas, ou de ao institucional e comunitria. A sade no se afeta pela
emoo em si, como durante muito tempo se pretendeu relacionar por meio da
associao direta entre tristeza ou agressividade e certos transtornos; as emoes
ganham relevncia na explicao dos processos de sade por meio dos sentidos
subjetivos produzidos pela pessoa que as expressa. Por exemplo, a expresso de
emoes agressivas que permitem ao sujeito transcender uma situao de humi-
lhao, possivelmente sero mais saudveis do que os mltiplos sentidos subjeti-
vos que se configuram no sentimento de humilhao.
Porm, um dos aspetos que deve enriquecer a pesquisa sobre os aspe-
tos subjetivos da sade o conhecimento sobre a forma em que essa produo
emocional participa dos complexos processos biolgicos, bioqumicos, eltricos
e energticos do organismo humanismo, o que presumo que tampouco seja um
cenrio para frmulas universais. O avano sobre esses importantes aspetos tem
sido obstaculizado por prticas assistenciais pautadas pela medicalizao das
doenas, processo estimulado pela segunda principal indstria do mundo de
hoje, a farmacutica, unicamente superada em lucros pela produo de arma-mentos (BENDELOW, 2009).
A fora econmica da indstria dos medicamentos um fato que, em uma
subjetividade social fortemente orientada pelos processos de lucro nesse mo-
mento de desenvolvimento do capital financeiro, define os rumos da cincia e da
instituio mdica, com os quais contribui com fortes financiamentos. Esse fato
no tem apenas papel diretivo do desenvolvimento do modelo tecnolgico-ins-
trumental de ateno sade; ele, o que ainda mais preocupante, tem papel
essencial nas representaes sociais e nos valores dominantes dos profissionais
da sade e da prpria instituio de sade. Atualmente, a tendncia ao lucro
que se observa na medicina brasileira s comparvel que domina a medicina
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28 A sade na trama complexa da cultura, das instituies e da subjetividade
norte-americana, cuja situao precria tem aparecido com nitidez em todas as
contradies, crises e revelaes que tm acompanhado o programa de reformas
nesse setor empreendido pelo presidente Obama e conhecido como Obamacare.
Dessa espcie de consrcio capital da indstria farmacutica-cincia positivis-ta-modelo biomdico, um scio importante termina sendo o prprio governo,
cujos membros esto assegurados por planos de sade altamente custosos, que
lhes permite o acesso aos mais caros hospitais privados de seus pases.
to velada a violao dos direitos sociais no que se refere sade da po-
pulao que inclusive muitos governos que se auto-definem de esquerda, como
o atual governo do Brasil, procuram um balano de sua gesto no combate po-
breza pela elevao unilateral do consumo dessas populaes, desconsiderando
nessas anlises a qualidade das relaes no atendimento sade e a qualidade da
educao. Em poucas palavras, a medicina-elite do Brasil de hoje um verdadei-
ro deboche dignidade humana.
A inter-relao saber, cultura e instituio de sade ganha grande fora
no mundo ocidental atual e diferena da indstria do armamento, que por
definio representa recurso de poder e dominao, alheia a toda definio de
valores, a sade representa um dos direitos humanos e civis universais, portanto,
inalienvel de todo ser humano. Porm, sua converso numa empresa econmi-
ca poderosa, centrada no lucro, converte a sade em um dos espaos de excluso
mais intensos da humanidade. Frente a isso, longe de surgir uma forte resposta
social, poltica e cientfica de oposio a essa orientao ao lucro das instituies
de sade, o que surge uma inrcia complacente dos governos e de muitas das
instituies dominantes da sociedade dentre elas, a prpria cincia e centrosde ensino superior e de pesquisa so bons exemplos, que, longe de questionar
as representaes hegemnicas que se derivam do funcionamento desse comple-
xo industrial-financeiro-assistencial, fortalece-o ainda mais.
Nesse espao institucional dominante na subjetividade social do mundo
ocidental de hoje, as cincias se subordinam ao poder das grandes transnacio-
nais do medicamento e das tecnologias mdicas, que so as que financiam a
maior parte das pesquisas no campo da medicina. Esse fato influencia fortemen-
te na ausncia de pesquisas sobre fatores promotores de sade, entre os quais
teriam lugar as pesquisas dos processos subjetivos associados com a sade e a
gnese das doenas.
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29Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
Conceitos como os defendidos neste captulo, que no levam a resultados
universais e que obrigam a uma produo de conhecimentos que sempre implica
as variaes singulares dos prprios modelos tericos em desenvolvimento no
curso das pesquisas, no resultam atrativas aos financiadores da pesquisa biom-dica atual. A medicina foge do singular e procura protocolos de base estatstica
para todos os procedimentos, o que faz de muitos mdicos aplicadores de pro-
tocolos profissionais, em lugar de um pesquisador sobre os processos singulares
que afetam as pessoas que estudam. O singular desconsiderado na representa-
o objetual que orienta as prticas da medicina apoiadas no modelo biomdico.
Nesse contexto, a psicologia no pode ser uma ferramenta servil e secundria do
desenvolvimento desse modelo dominante, mas uma alternativa subversiva aos
princpios que dominam a ao institucional das prticas assistenciais no campo
da sade atualmente.
Os paradigmas e epistemologias sobre os quais se desenvolve a cincia no
podem ser acusados de reacionrios de forma a-histrica e universal. O carter
conservador ou no de um paradigma ou de um posicionamento epistemolgico
vai depender da forma em que sua expresso contribui ao desenvolvimento de
aspetos que, num determinado contexto, representam claramente a omisso de
outros aspectos cuja excluso prejudica os objetivos buscados pelo processo de
produo de saber numa rea, em determinado momento histrico-social con-
creto. precisamente a partir dessa anlise que se pode considerar conservador
e pouco tico o positivismo baseado apenas em dados quantitativos sobre o qual
se legitimam os medicamentos, excluindo outros processos e prticas que, po-
dendo ser teis ao tratamento e preveno de doenas, no so considerados napesquisa cientfica.
Na cincia de hoje, sabe-se que o conhecimento est sempre em processo,
enfrentando barreiras e desdobramentos imprevistos. No entanto, na cincia so-
bre a qual se apoia a indstria do medicamento, as pesquisas orientadas a acom-
panhar o uso extensivo de um medicamento, uma vez que este tenha entrado ao
mercado, so inexistentes, pois isso implica altos custos e pouco lucro. O mais
importante, uma vez que um medicamento consegue se inserir no mercado,
tirar a maior quantidade de dinheiro a partir dele e centrar todas as pesquisas no
novo medicamento que deve chamar a ateno do mercado alguns anos depois.
O processo idntico ao mercado de carros ou computadores:o novo substitui
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30 A sade na trama complexa da cultura, das instituies e da subjetividade
o velho e o converte em desejvel. odavia, na sade, como em outras reas do
consumo, este passa a ser consumido pelas populaes mais pobres, sem que elas
possam contar com novos saberes que poderiam minimizar o impacto negati-
vo do medicamento, ou conhecer bem em que pessoas seu efeito seria melhor.A cincia que responde ao impacto do produto no mercado e no a um saber
progressivo que permita explicar o funcionamento dos complexos processos que
caracterizam uma expresso de sade ou uma doena, sempre estar longe de
avanar de forma consistente sobre esses processos.
A ideia de configurao subjetiva, frente a esse panorama to sombrio
no campo da sade, tem relevncia no s cientfica, mas tica e poltica, pois
a partir da definio de sistemas configuracionais que no pretendem dar con-
ta do funcionamento holstico da questo tratada, mas da organizao atual do
sistema frente aos processos de seu funcionamento num contexto especfico, tor-
na-se possvel gerar inteligibilidades sobre os processos de sade e doena no
por meio de causalidades universais e evolues teleolgicas a partir do Estado
atual da pessoa, mas como processos vivos afetados por uma multiplicidade de
fatores, dentre eles, as produes subjetivas das pessoas. A ideia de configurao
nos remete a desdobramentos e imprevistos no desenvolvimento dos sistemas
complexos, nos quais as causas iniciais no representam nunca as explicaes
definitivas dos resultados ulteriores do desenvolvimento de um sistema. Dessa
forma, o conceito de configurao nos coloca frente a um sistema parcial, por
meio do qual podemos explicar um conjunto de processos e suas formas de or-
ganizao, que, sem compreender as intrincadas relaes dos elementos que se
organizam nessa configurao no caso da subjetividade, os sentidos subje-tivos no poderamos gerar inteligibilidade sobre o tipo de questo que nos
interessa estudar. A mobilidade e capacidade de reorganizao das configuraes
subjetivas fazem dela modelo interessante para pensar o uso dos conceitos na
gnese e desenvolvimento dos processos de sade e adoecimento.
5 Alguns comentrios finais
1) A psicologia da sade emerge como campo de prtica profissional e de
pesquisa nos anos sessenta, a partir de uma aproximao comunidade como
objeto de prticas de sade importadas da medicina e que rapidamente se expres-
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31Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
saram nos estudos de uma rea reconhecida pela APA (American Psychological
Association) e definida como Psicologia Comunitria da Sade. A partir dessa
definio inicial, abriu-se caminho para uma tendncia orientada ao controle,
educao e mudana de comportamentos presumivelmente associados com asade. Na sua emergncia, a psicologia da sade expressou o vis comportamen-
talista que dominava, ainda nos anos sessenta, o contexto da psicologia norte-a-
mericana. Pelo fato de essa dcada ter sido tambm a que marcou a revoluo
cognitiva nessa psicologia, muito rapidamente os posicionamentos cognitivos e
cognitivo-comportamentais comearam a dominar os trabalhos nessa rea.
2) O carter pragmtico-instrumental dos conceitos que dominaram a
psicologia da sade marcou distanciamento entre esse campo emergente e o de-
senvolvimento da psicologia clnica; enquanto os enfoques psicodinmicos na
clnica centraram-se na ansiedade e na sua gnese intrapsquica, o conceito de
estresse passou a ser o centro das representaes e prticas associadas com a
psicologia da sade. A diferena entre os enfoques dominantes entre um campo
e outro no permitiu compatibilidade entre os avanos de ambas as reas. A pior
dessas consequncias esteve, a meu ver, no pouco desenvolvimento terico na
psicologia da sade.
3) O carter instrumental dos modelos dominantes na psicologia da sade
levou os pesquisadores a se centrarem nos processos individuais, com noes
comportamentais de preveno e promoo, que deixaram fora os complexos
processos socioeconmicos e institucionais que so inseparveis das tendncias
dos modelos tericos, das tendncias epistemolgicas e das prticas que domi-
nam o mainstreamdo modelo biomdico hoje. O destaque subjetividade comoproduo cultural e social historicamente situada compreende alternativa para
as representaes sociais dominantes hoje sobre os processos de sade-adoeci-
mento, mas tambm compreende alternativa terica frente ao individualismo
naturalizado que caracteriza o crescente processo de despersonalizao, medi-
calizao e patologizao que define as prticas assistenciais hegemnicas no
campo da sade.
4) Como se defende no curso deste captulo, os paradigmas epistemo-
lgicos, assim como as filosofias em geral, expressam carter conservador ou
transformador segundo as consequncias de seus princpios frente a processos
culturais e historicamente situados. Nesse sentido, a orientao positivista de
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32 A sade na trama complexa da cultura, das instituies e da subjetividade
muitas pesquisas mdicas e farmacuticas no momento atual profundamente
conservadora, na medida em que levam a legitimar prticas de saber condizentes
com o modelo de lucro dirigido hoje pela indstria de produo de medicamen-
tos e das tcnicas mdicas. O capital define o que se pesquisa e at como se pes-quisa, o que implica abandono da pesquisa sobre os efeitos dos medicamentos e
das tecnologias, uma vez que eles entram no mercado, assim como culmina na
omisso daquelas pesquisas orientadas a outros processos envolvidos nos esta-
dos de sade-doena que no so lucrativos.
5) Em vrios trabalhos anteriores, referi-me psicologia no campo da
sade mais do que psicologia da sade, precisamente pelas grandes limitaes
que encontrei no tipo de pesquisas realizadas nessa rea e em seus conceitos do-
minantes. No intuito de aprofundar essa discusso, este trabalho apontou para
algumas dessas lacunas e buscou avanar em caminhos alternativos de pensa-
mentos capazes de articular complexamente sade, cultura e instituies sociais.
Est aberto o debate.
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O LUGARDADIFERENARELIGIOSANASSUBJETIVIDADESSOCIAISBRASILEIRASESUAS
IMPLICAESPARAASADE
Prof. Dr. Jos Bizerril1
1 Relevncia e possibilidades de dilogo entre psicologia e
(outras) cincias sociais
Como contribuio ao debate sobre as articulaes complexas entre sub-
jetividade, sade e cultura, meu ponto de partida neste captulo um aporte
que transcenda os limites rgidos das reas disciplinares e busque territrios defronteira, pontes e possibilidades de dilogo, ainda que provisrias.
A relevncia desta interlocuo pode se justificar pelo exemplo dos auto-
res fundadores das cincias humanas, todos eles familiarizados com os debates
das reas afins do conhecimento, vigentes em sua poca (SEGAO, 2003). Alm
disso, o reconhecimento contemporneo da complexidade do mundo sugere es-
foros conjugados para compreender novos fenmenos que no foram mapea-
dos pelos autores clssicos das diversas disciplinas e cuja inteligibilidade no seesgota em nenhum aporte terico disciplinar em particular. rata-se de fazer o
caminho inverso ao da consolidao de nossas disciplinas, que foi caracterizado
pelo estabelecimento de rgidas fronteiras e identidades, restringindo a abran-
gncia de seus interesses e os espaos de interlocuo.
Durante o sculo XX, a histria da constituio da psicologia, da sociolo-
gia e da antropologia como disciplinas acadmicas aponta, em suas tendncias
dominantes, para uma separao entre o interesse pelos fenmenos humanos
individuais e coletivos. Um ponto indicador da consolidao dessa demarcao
1 Centro Universitrio de Braslia UniCEUB
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36 O lugar da diferena religiosa nas subjetividades sociais brasileiras e suas Implicaes para a Sade
de fronteiras disciplinares est em uma conferncia proferida por Mauss (2003)
para a Sociedade Francesa de Psicologia, nos anos 20 do sculo XX. Nela, esse
importante fundador das cincias sociais atribui o estudo dos fenmenos daconscincia individual psicologia e da conscincia coletiva s cincias sociais,
ao mesmo tempo em que pontua a interdependncia entre esses dois campos de
fenmenos e as contribuies recprocas oferecidas pelas duas disciplinas en-
to nascentes. Certamente o carter heterogneo da psicologia como campo do
conhecimento2demanda que qualquer afirmao desse tipo precise ser devida-
mente matizada.
medida que nossas disciplinas se consolidavam no espao acadmico,progressivamente estabeleceu-se um interdito separando o interesse pelo estudo
do que individual, reservado psicologia, e o que coletivo, territrio das cin-
cias sociais (SEGAO, 2003; LAOUR, 2005). Figurar essa diviso mais perti-
nente a uma definio fundamentalmente clnica e experimental de psicologia,
ainda assim dentro de uma concepo de psicologia centrada nos fenmenos
individuais. Incluir a psicologia social nesse quadro implicaria outros desdobra-
mentos desta anlise3.
Lamentavelmente, em minha prpria experincia docente em um curso
de psicologia e em convivncia cotidiana com estudantes e colegas da rea, de-
paro-me com certa frequncia com uma representao de psicologia, segundo a
qual a psicologia social pertenceria com mais propriedade sociologia do que ao
universo das teorias psicolgicas e ao mesmo tempo, com a afirmao, resistente
a todas evidncias em sentido contrrio, de que uma perspectiva histrico-cul-tural em psicologia deveria figurar exclusivamente nos campos correlatos psi-
2 al situao torna controversas suas definies de cincia, de objeto, mtodo e propsito, emfuno do sistema terico e da rea de atuao.
3 Estou ciente que essa distino ou diviso do trabalho intelectual entre nossas disciplinas questionvel, sobretudo tanto a partir do aporte da psicologia social, quanto da proposta deuma psicanlise dos textos culturais (Segato, 2003), sem falar das contribuies da produoem cincias humanas nas ltimas dcadas, de autores to diversos como Bauman, Butler, Eri-bon, Gonzlez Rey, Latour, Rose, Segato, ouraine, entre outros, que tm apontado tanto umnexo entre novas condies sociais, novas configuraes culturais e novas subjetividades cole-tivas, quanto problematizado a dicotomia entre sujeito e sociedade, bem como entre psique ecultura. Contudo, isso no invalida a constatao de que a histria oficial de nossas disciplinas,ao menos em suas tendncias dominantes, foi marcada pela tentativa de traar fronteiras entreum domnio, sociocultural, e outro, psicolgico, da experincia humana.
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37Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
cologia social, visto supostamente no possuir valor ou aplicabilidade clnicas.
endo essa realidade como parte do quadro para uma polmica e dilogo
implcitos nessa comunicao, argumento, como j fizeram previamente outros
autores (por exemplo, MAUSS, 2003; SEGAO, 2003; GONZLEZ REY, 2004),que preciso haver dilogo em nossas reas, porque os fenmenos que estu-
damos so intrinsecamente interdependentes: subjetividade individual e social,
cultural e psquico, conscincia individual e conscincia coletiva, entre outras
formulaes. A diviso do ser humano em estratos biolgico, psicolgico, so-
cial e cultural um efeito poltico-terico da histria de nossas disciplinas, pois
concretamente qualquer ser humano simultaneamente organismo, sujeito, ator
social e nativo de um universo cultural em particular, conforme argumentou
Geertz (1989) ao propor uma concepo sinttica de ser humano, por oposio
clssica concepo estratigrfica. Estudar qualquer um desses aspectos, isola-
damente, como nos acostumamos a fazer a partir dos olhares disciplinares esta-
belecidos, ter uma compreenso parcial e talvez perigosamente reduzida dos
fenmenos humanos. No entanto, a despeito disso, a tarefa comum de formular
uma teoria geral que explique as relaes complexas entre fenmenos fisiol-
gicos, psicolgicos, sociais e culturais, proposta por Mauss (2003) s cincias
sociais e psicologia no incio do sculo passado, ainda est por ser realizada,
sobretudo se baseada em um dilogo autntico e no em formas mais ou menos
explcitas de imperialismo disciplinar.
Para finalizar esse tpico, menciono alguns exemplos contemporneos de
um dilogo bem-sucedido entre as reas: a formulao na psicologia de uma teo-
ria da subjetividade, preocupada em romper as dicotomias indivduo-sociedadee objetivo-subjetivo (GONZLEZ REY, 2012); a tentativa de Geertz (2001) de
demonstrar a indissociabilidade de mente e cultura; a proposta de Segato (2003),
no contexto de um dilogo entre psicanlise lacaniana e antropologia ps-es-
truturalista, de culturalizar o sujeito, ao invs de supor uma instncia psqui-
ca a-histrica e transcultural; a teoria ator-rede, conforme proposta por Latour
(2005). Outro exemplo desse tipo de contribuio so os insightsde autores de
sociologia, como Bauman (2008) e ouraine (2003); de estudos culturais, como
Sibilia (2012); bem como de filsofos como Lipovetsky (2007), com relao
constituio social das angstias e subjetividades contemporneas. E alm disso,
a leitura que Rose (2011) faz da psicologia como uma tecnologia de subjetivao
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38 O lugar da diferena religiosa nas subjetividades sociais brasileiras e suas Implicaes para a Sade
nas sociedades democrticas que, por meio de sua expertise, forjou um certo
tipo de subjetividade normativa nas sociedades modernas.
2 A questo Cultural
A introduo do tema da cultura no debate sobre subjetividade requer
um exame cuidadoso de implicaes desse conceito polissmico, central para a
teoria antropolgica, visto que impacta diretamente a concepo de ser humano
e consequentemente a definio de processos psicolgicos, tanto os que foram
classicamente definidos como bsicos, quanto aqueles mais complexos, da or-
dem da subjetividade.
O argumento de Geertz (2001) de que mente e cultura so indissoci-
veis, ecoa a discusso pioneira de Mauss (2003) de que conscincia individual
e coletiva esto indissociavelmente conectadas e o argumento de Segato (2003),
inspirado em Spiro, antroplogo de inspirao psicanaltica, de que a instncia
moral individual, encarnada pelo conceito psicanaltico de supereu, deriva da
ordem moral da sociedade, ao mesmo tempo em que a reproduo social depen-
de de incontveis decises individuais e da reiterao cotidiana de padres em
conformidade com as normas sociais, como afirmou Weber, eminente clssico
da sociologia.
Ao tratar do conceito antropolgico de cultura e de sua introduo no
debate transdisciplinar sobre subjetividade, preciso atentar para algumas de
suas nuances e implicaes, sob pena de que a psicologia se aproprie de uma
formulao conceitual anacrnica, j bastante questionada entre profissionais deantropologia.
Embora o conceito semitico de cultura ainda tenha alguma vigncia, h ob-
jees a fazer a certos pressupostos e implicaes desse conceito. Em sua clebre for-
mulao, Geertz (1989) define cultura como sistema simblico pblico, por oposi-
o a uma definio objetivista cultura como comportamento observvel mas
tambm a seu oposto, que defino, na falta de um termo melhor, como idealista, cul-
tura como ideias dentro da cabea de algum. Para o autor, cultura seria justamente
o cdigo socialmente compartilhado que d significado ao humana e possibilita
a comunicao, no um fato intrapsquico nem um mero comportamento.
H evidentes vantagens na proposta de Geertz (1989), por contraste com
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39Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
a excessiva profuso de significados contraditrios que o termo cultura havia
adquirido at ento. Ainda assim, essa formulao padece implicitamente de al-
gumas das mesmas limitaes que caracterizaram as formulaes anteriores, o
que arrisca tornar a definio semitica de cultura tambm demasiado esttica,homogeneizante e reificada.
Por um lado, a pressuposio implcita que a cultura um sistema coeren-
te e autocontido; um obstculo anlise cultural, em particular nas sociedades
ditas complexas, tarefa que demanda modelos tericos que permitam a apresen-
tao de realidades heterogneas e em mutao. Criticando os pressupostos de
holismo e consistncia que informam os conceitos clssicos de cultura, Barth
(2000) redefine a cultura como sistema catico, formado por diversas correntes
de tradies culturais. Isto , tendncias culturais relativamente estveis e du-
rveis, disponveis em um mesmo territrio como sistemas concorrentes pelos
quais grupos e mesmo indivduos podem ser afetados simultaneamente. Des-
se modo, a anlise de uma parte no pode ser apresentada como compreenso
abrangente do todo, nem tampouco a complexidade da vida social em suas con-
dies objetivas pode ser reduzida a enumerao de padres abstratos ideais.
Para o autor, os significados dos smbolos culturais no so fixos, mas resultam
do encontro entre smbolos, atores sociais e contextos de significao. A cultu-
ra teria carter distributivo, isto , no est distribuda homogeneamente entre
os nativos4. Consequentemente, os pontos de vista dos atores sociais devem ser
percebidos como posicionamentos e no como voz annima e consensual da
cultura. Em um texto publicado nos anos seguintes, Barth (2000) desenvolve sua
crtica s conceitualizaes de tipo totalizante e holista, apresentando a culturacomo sistema aberto, catico e marcado pela contestao, pela multiplicidade
de vozes posicionadas, em cujo contexto qualquer nvel provisrio de consenso
se constitui na experincia social compartilhada, em vez de o consenso figurar a
priori, antecedendo qualquer observao etnogrfica.
Nessa mesma linha de raciocnio, evocaria tambm o clssico argumento
de Wagner (2010), segundo o qual a cultura uma inveno. Em dois sentidos:
4 Utilizo uma definio mnima de nativo, distante de uma leitura etnicizante e exotizante dotermo, simplesmente como membro pleno do grupo social que tema de investigao, nonecessariamente o membro de uma comunidade tradicional de carter local. Nesse sentido,nativo no necessariamente sinnimo de indgena ou aborgene.
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40 O lugar da diferena religiosa nas subjetividades sociais brasileiras e suas Implicaes para a Sade
uma inveno conceitual da antropologia e uma inveno vivida, produzida pe-
los nativos. Por meio do conceito de cultura, a antropologia distingue huma-
nos e no humanos, ao mesmo tempo que interpreta as diferenas entre grupos
humanos. Como ferramenta intelectual, o conceito traz inteligibilidade ao caosda experincia de pesquisa de campo. Mas tambm, a cultura, entendida como
fenmeno particular, uma inveno cotidiana dos atores sociais que, partindo
de um repertrio simblico coletivo, (re)inventam seus prprios mundos para
habit-los5. Do mesmo modo que nos argumentos citados acima, o compartilha-
mento cultural sempre objeto de disputa.
Uma outra crtica correlata formulada por Clifford (1999) ao pressupos-
to de localidade e consequentemente de pureza da cultura, que nos faz imaginar
os nativos isolados e fixados em territrios fechados, sem experincia intercultu-
ral. Culturas aparecem metaforicamente como territrios fechados, dotados de
essncias e os nativos aparecem como sujeitos idnticos que encarnam essncias
culturais. Para Clifford (1999), pensar nesses termos se torna insustentvel se
percebemos o carter de hibridismo e interculturalidade constitutivo de todos os
sistemas culturais, bem como o acirramento dos contatos e trocas entre culturas
em funo dos recentes processos de globalizao. Isso sem considerar o fato de
que os nativos que foram interlocutores dos antroplogos tm biografias com-
plexas e experincias reflexivas de contato intercultural.
Em suma, as reflexes de Barth, Wagner e Clifford, mencionadas acima, podem
ser teis para oferecer psicologia uma representao mais complexa e dinmica dos
fenmenos culturais6que so um elemento constitutivo dos processos subjetivos.
Em linhas gerais, a crtica de Latour (2005) sociologia do social 7,aplica-se tambm a uma noo reificada de cultura. Assim, pode ser produtivo
pensar uma cultura especfica como o ponto de chegada da anlise, o resultado
5 Nesse ponto do argumento, tambm percebo paralelos teis com o argumento da teoria da subje-tividade: o sujeito se constitui socialmente, mas por meio de sua ao constitui e modifica o social.
6 Por questes de espao, abstenho-me deliberadamente de explorar um outro debate acerca doconceito de cultura e da prtica etnogrfica. Com a proposta explcita de recuperar o corpo,com seus sentidos, movimentos e afetos, pode-se falar de uma virada fenomenolgica (JACK-SON, 1996; CSORDAS, 2008) ou sensualista (SOLLER, 1997; HOWES, 2003) na antropolo-gia, em contraposio aos debates ps-estruturalistas sobre o discurso e ps-modernistas sobrea textualidade etnogrfica.
7 Isto , aquelas formas de sociologia que tratam o social como uma fora ou substncia quepermitiria explicar os fenmenos. E que, para explic-los, elimina ou deslegitima todos os seusaspectos constitutivos que no possam ser reduzidos ao social.
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41Sade, cultura e subjetividade: uma referncia interdisciplinar
de uma investigao que apresente sua configurao em movimento, em vez de
pens-la como a explicao aprioripara um fenmeno que ainda no foi descri-
to e compreendido.
Outra questo, de ordem mais emprica, a constatao do carter multi-cultural, e intercultural, das sociedades globalizadas. Isto , uma noo monoltica
de cultura insuficiente para descrever a realidade do campo de atuao profissio-
nal da psicologia ou da antropologia no Brasil, mesmo em situaes em que no se
trata de alteridade marcada, exemplificada por minorias tnicas, como os grupos
indgenas. Uma definio mnima de sociedade multicultural seria aquela em que
coexistem diferentes comunidades culturais (HALL, 2003). Mais do que a existn-
cia simultnea de grupos dotados de culturas ou subculturas distintas, penso que
no Brasil deparamo-nos com uma pluralidade de correntes de tradies culturais,
segundo o conceito proposto por Barth (2000), coexistindo de forma contraditria
nos mesmos espaos sociais. Esta uma ideia que recuperarei no exemplo etno-
grfico apresentado mais adiante.
Uma noo relevante e complementar ideia de sociedade multicultural
o fenmeno do hibridismo cultural (HALL, 2003; CLIFFORD, 1999) decorrente
de situaes de interculturalidade. A formao de sistemas culturais hbridos de-
corre de fatores globais, mas tambm de encontros complexos na esfera local.
O uso das aspas proposital, diante da pertinncia da crtica de Latour (2005)
a essa dicotomia. Ele argumenta que na interao face a face esto tambm pre-
sentes agncias que atuam distncia, e que o contexto mais amplo s pode ser
invocado de modo legtimo quando possvel rastrear uma articulao contnua
entre locais e demonstrar como alguns stios se tornam hegemnicos em relaoaos demais.
Neste sentido, a cultura brasileira poderia ser apresentada como mosai-
co de diversas correntes de tradies culturais, um agregado de tradies diver-
sas, modernidade verncula8e ps-modernidade9, bem como de novas formas
hbridas, resultantes de combinaes inusitadas entre elas. Esse arranjo comple-
8 Isto , reinvenes diversas que as naes perifricas fizeram
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