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Anais – I Congresso de América Colonial – Historiografia, Acervos e Documentos Laboratório de Estudos Americanos – LEA Campinas, agosto 2017
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Tiahuanaco: Pacarina dos povos andinos. As visões dos cronistas coloniais.
Fortunato Pastore1
Outras coisas mais há que dizer desta Tiaguanaco, que passo por não me deter,
concluindo que eu tenho para mim que esta antiguidade é a mais velha de todo o
Peru; e assim, se tem que antes que os incas reinassem, por muito tempo, estavam
feitos alguns destes edifícios; porque eu ouvi índios afirmarem que os incas fizeram
os grandes edifícios de Cuzco pela forma como eles viram o muro ou parede que
encontramos nesta cidade; e até mesmo dizem mais: os primeiros incas fizeram sua
corte e nela se assentaram em Tiaguanaco.
(CIEZA DE LEÓN, 2005 [1553]: 265).
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.
A pretensão deste texto é apresentar as descrições que os cronistas coloniais
realizaram sobre as construções da cidade pré-incaica de Tiahuanaco (também escrita
Tiwanaku), sede de uma fulgurante civilização que dominou o ambiente andino meridional
(basicamente, o altiplano boliviano-peruano ou a meseta de Collao) entre os séculos VII e XI,
período temporal definido pelos arqueólogos como “Horizonte Médio” e “Intermédio Tardio”,
este a partir do ano 900. A cultura de Tiahuanaco, sobretudo a sua força religiosa, penetrou e
influenciou as regiões do extremo norte do Chile e do noroeste da Argentina.
Como as descrições dos cronistas referem-se, igualmente, ao sítio tiahuanacano como
local de nascimento de muitos dos mitos de criação dos povos andinos, geralmente em
associação ao lago Titicaca, situado vinte e dois quilômetros ao norte da cidade, a escolha do
título deste trabalho não poderia estar desvinculada da ideia andina de Pacarina, forma
castelhanizada da palavra quéchua paqariy, local de origem. As pacarinas de muitos povos
andinos estão associadas a locais como covas, mananciais e cavernas. O lago Titicaca,
evidentemente, é um local muito citado em muitos destes mitos de criação e a grande cidade
civilizacional próxima ao mesmo, Tiahuanaco, aparece sempre em destaque.
Contudo, as descrições são contraditórias e sobrepostas, oferecendo uma oportunidade
para coloca-las aqui de forma ordenada, relacional e comparativa, em uma tentativa de
planificar um quadro explicativo mais crítico e abrangente das narrativas dos séculos XVI e
XVII sobre a grande cultura do Portal do Sol.
NOMENCLATURAS DE TIAHUANACO.
1 Professor do Curso de História da UFMS, Campus Três Lagoas. Doutor em História da América.
Anais – I Congresso de América Colonial – Historiografia, Acervos e Documentos Laboratório de Estudos Americanos – LEA Campinas, agosto 2017
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Um dos primeiros problemas que um interessado no tema tiahuanacano depara-se é,
exatamente, a nomenclatura a ser utilizada para se referir ao seu objeto de pesquisa, dada a
interminável e inconclusiva lista de termos que a crônica e a historiografia alocaram ao centro
cerimonial do altiplano Titicaca.
A lista da tabela abaixo, montada por Federico Diez de Medina (LEWIS, 2005: 35),
permite vislumbrar a amplitude da contenda.
Autor Denominação Significado
Bravo, Carlos Inti huahaun jake Homens Filhos do Sol.
Lizárraga, B. de Taipicala Pedra no Meio.
Cuneo Vidal, R. Tia huañuc Mortos Sentados.
Diaz Romero, B. Titihuahuanacu Os Filhos do Jaguar.
Durán, Juan Tiy-huana-co Casas Subterrâneas.
Escobari, Isaac Thia huaña jake Homens da Costa Seca.
Falb, Rodolfo Tia, ahua, yacu, ana Água e água.
Garcilazo Tiay huanaco Senta-te, Guanacu.
Gutiérrez, J. R. Thia huañaco Borda ou Costa Seca.
Kramer, Pedro Es nombre aimará Que se deve Buscar.
López, V.F. Tia huañuk Luz Moribunda.
Paredes, M. R. Huina-marca Que Engoliu o Povo.
Posnansky, A. Huiñymarca Cidade Eterna.
Salas, B. F. Aymar-Apu Capital Aimará.
Sanjinés, F. de M. Huayna-marca Cidade Nova.
Taborga M., Monseñor Tiaihunabku Lugar da Água do Deus Onipotente.
Villamil de Rada Tihuanaca Isto é de Deus.
Os arqueólogos encontraram vestígios de cinco substratos no local do centro
tiahuanacano (KOLATA, 1993 e 2003; e PONCE SANGINÉS, 1981 e 1995)2, o que equivale
dizer que existiram cinco configurações urbanas diferentes no mesmo lugar, porém em
momentos distintos. O nome original da primeira capital de Tiahuanaco, de onde o lendário
chefe Huyustus guiava o seu povo, seria Chucara, “Casa do Sol” (na língua puquina, segundo
ANELLO OLIVA, 1998 [1631]: 60) ou Taypikala, “Pedra no Meio” (em aimará, segundo
COBO, 1990 [1653]: 100).
2 Toda vez que a referência não indicar a página, significa que a informação citada encontra-se em várias
passagens da obra ou, ainda, que se trata da ideia geral do trabalho ou do autor, o que geralmente aconteceu aqui.
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Nas crônicas, muitas vezes, aparece grifado como Tiáguanaco ou Tiguanaco, porém o
termo mais comum é Tiahuanaco, significando em aimará “Lugar das Pedras Paradas”
segundo Federico Diez de Medina (LEWIS, 2005: 35) e é assim que será tratado aqui.
A questão linguística é, igualmente, um ponto candente da historiografia sobre
Tiahuanaco. Qual seria o idioma desta civilização? O proto-aimará, o puquina, e o uru-
chipaya são as opções. O quéchua somente irá aumentar a sua influência posteriormente, com
o desenrolar da dominação incaica.
O boliviano Carlos Ponce Sanginés não aceita a versão do peruano Alfredo Torero,
que considera a língua de Tiwanaku como sendo a puquina (TORERO, 1970 e 1987).
Segundo Ponce, Tiwanaco era uma cultura multiétnica e plurilinguística, pois ali se falava o
aimará, o quéchua, o uru e o puquina, sendo o primeiro destes o dominante (PONCE
SANGINÉS, 1981 e 1995).
A disputa parece estar ancorada em rivalidades nacionalistas contemporâneas (Bolívia
e Peru) que não ajudam muito a esclarecer a questão, mas o arqueólogo norte-americano Alan
Kolata (KOLATA, 1993) postula uma posição parecida com a de Ponce Sanginés e,
possivelmente, era isto mesmo que deveria compor a estrutura linguística da cultura de
Tiahuanaco.
Ainda no quesito linguístico, vale destacar a obra do século XVII, “Rituale, seu
Manuale Peruanum” (publicada, originalmente, em Nápoles no ano de 1607), do frei
franciscano Luís Jerónimo de Oré (ORÉ, 1607). A obra é o único vestígio textual relevante da
língua puquina – já extinta – e representa a tradução do catequismo católico em castelhano,
com seus rituais de batismo, casamento, penitência, eucaristia e unção dos enfermos, para os
idiomas quechuá, aimará e Puquina (!).
DESCRIÇÕES DE TIAHUANACO.
Tiahuanaco está localizada nas terras altas, 3.850 metros acima do nível do mar, e
distante setenta e dois quilômetros da capital administrativa da Bolívia, La Paz. Muito do que
conhecemos hoje sobre Tiahuanaco deve-se ao trabalho de inúmeros arqueólogos, entre eles
Carlos Ponce Sanginés e Alan Kolata, que durante dois séculos levantaram as características
de Tiahuanaco como um grande centro urbano (por exemplo, ALBARRACÍN-JORDÁN,
1996; ESCALANTE MOSCOSO, 1997; JANUSEK, 2004; KOLATA, 1993 e 2003;
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KOLATA e PONCE SANGINÉS, 1992; PONCE SANGINÉS, 1981 e 1995; e VRANICH,
1999).
Durante seu auge no “Horizonte Médio”, Tiahuanaco foi a maior cidade da América
do Sul, com uma área de cinco ou seis quilômetros quadrados, onde residiam trinta ou
quarenta mil pessoas. Elas viviam ao redor do núcleo interno, composto por templos, praças e
palácios reais (vide Figura do Sítio de Tiahuanaco nos Anexos, na página 11). Uma das
principais representações monumentais da cidade é a pirâmide de Akapana (“Redemoinho” ou
“Pequeno Furação”), com forma de meia Chakana (Cruz Andina) e que tinha quase dezoito
metros de altura (KOLATA, 1993; MANZANILLA, 1992; e VRANICH, 1999). Ao norte da
pirâmide de Akapana encontram-se a Kalasasaya (“Pedra Erguida”) e o Templete Semi-
subterrâneo, estruturas que formam o núcleo principal de Tiahuanaco (PONCE SANGINÉS,
1981). Distante quase um quilômetro da área central aparece à estrutura de Puma Punku, que
tem como base uma plataforma em forma de T, cuja extensão ultrapassa a da pirâmide de
Akapana, atingindo cento e cinquenta metros de cada lado (ESCALANTE MOSCOSO, 1997;
KOLATA, 1993; e VRANICH, 1999). Esta área básica de complexos monumentais estava
cercada por unidades residenciais construídas com materiais mais perecíveis, geralmente
adobe, e que formavam a maioria dos edifícios na cidade (JANUSEK, 2004; KOLATA, 1993
e 2003; e PONCE SANGINÉS, 1981).
Atualmente, apenas 8% do que foram as construções de Tiahuanaco podem ser
observadas, isto é, restaram somente ruinas. Séculos de depredação, saques e descaso público
e privado destruíram o que pode ter sido a mais impressionante sede cultural e religiosa pré-
incaica. Em solo boliviano isto é certeza. As ruinas de Tiahuanaco, mesmo assim, são
fascinantes e em estágios menos degradados ou, então, no auge da sua potência, as
construções deveriam impactar positivamente que as visse (vide Mapa de Tiahuanaco nos
Anexos, na página 12).
Falando em potência, outro item muito discutido sobre a Civilização/Estado de
Tiahuanaco é se ela promoveu e depois exerceu um domínio militar na região, como vieram a
fazer os incas posteriormente. As relações, pacíficas ou não, com a “cultura” Wari (ou Huari),
do sudeste do Peru, entram igualmente no âmbito desta polêmica (GOLDSTEIN, 2005;
ISBELL e KAULICKE, 2001; JANUSEK, 2004; KOLATA, 2003; e STANISH, 1992).
Quanto ao sítio urbano de Tiahuanaco, propriamente dito, os cronistas já o
encontraram abandonado, mas as condições do mesmo eram melhores do que as de hoje,
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sendo assim, as descrições coloniais permitem visualizações que complementam aquelas
aferidas pelas investigações arqueológicas contemporâneas.
Provavelmente o primeiro europeu a colocar os olhos sobre as magníficas ruínas de
Tiwanaku e escrever sobre as mesmas, embora em breve descrição, tenha sido o espanhol
Pedro Cieza de León, na época da sua viagem de 1549, apenas alguns anos depois da chegada
do primeiro encomendero espanhol na região (Juan Varagas, com quem Cieza conversou
sobre a cidade e com os nativos); pelo menos, é dele a primeira obra escrita sobre o sítio.
Vejamos um exemplo do que ele grifou:
A vila de Tiaguanaco, e os edifícios enormes e antigos que se vê lá, não é
cidade muito grande, mas é famosa pelas grandes construções e certo que é uma
notável coisa para ver. Perto das câmaras principais está uma colina artificial,
montada sobre grandes fundações de pedra. Depois desta colina, estão os ídolos de
pedra de figura humana, muito primamente feitos e com as feições formadas; tanto
que parece que foram feitas pelas mãos de grandes artífices ou maestros; são tão
grandes que parecem pequenos gigantes, e vê-se que tem forma de longas vestes,
diferenciadas das que vemos dos naturais destas províncias; nas cabeças parecem ter
o seu ornamento (CIEZA DE LEÓN, 2005 [1553]: 285).
Os ídolos referidos são, com certeza, os monólitos conhecidos hoje como Bennett,
Ponce, Fraire etc.. A cultura de Tiahuanaco elaborou, além da arquitetura monumental, uma
escultura lítica gigante e complexamente iconográfica, como os grifos marcados nos Portais
do Sol e da Lua. Também se destacou pela produção têxtil estilizada e ricamente decorada. A
cerâmica e pequenos produtos artesanais em madeira, osso e metais (ouro, prata, cobre e
bronze, cuja metalurgia eles foram os inventores no cone sul) aparecem em vários pontos da
região central do continente, demostrando quão ampla e influente foram a economia e a
religião tiahuanacanas.
A “colina artificial” citada na terceira linha é a pirâmide de Akapana. Os povos
andinos chamavam as suas pirâmides escalonadas de Ushnu. Alguns anos depois, Bernabé
Cobo também descreve a pirâmide como um “terraplano de quatro ou cinco estados de altura,
o que parece uma colina, erigido em grande fundação de pedra” (COBO, 1990 [1653]: 196).
Akapana, devido a sua posição de edificação-mor, pede mais “narrativas coloniais”.
Tiahuanaco, cujos grandes e surpreendentes edifícios, merece que se diga alguma
coisa. É assim entre outras obras que estão neste lugar, que são de admirar, uma
delas é um morro ou uma colina artesanal, tão alta (para ser feita por homens) que
causa admiração (...) a maior admiração que causa é imaginar que forças humanas
puderam levá-las para onde estão, sendo, como é verdade que em uma grande
distância de terra não há blocos ou pedreiras onde eles pudessem ter retirado àquelas
pedras (GARCILASO DE LA VEGA, 2005 [1609]: I, 131).
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Todas essas descrições foram feitas anos depois da procura dos espanhóis pelos
tesouros secretos dos templos andinos, por isso é viável que Akapana já tivesse perdido a(s)
camada(s) de revestimento de topo, tendo sido vítima das ações dos saqueadores. As mais
recentes reconstruções arqueológicas a descrevem como tendo, originalmente, sete níveis
escalonados (ESCALANTE MOSCOSO, 1997; MANZANILLA, 1992; e NAIR &
PROTZEN, 2000).
Uma citação maior merece a estrutura conhecida como Puma Punku (Porta do Puma,
anteriormente chamada de Porta da Água, Una Punku). É um edifício escalonado em três
plataformas, logo, outra Ushnu em Tiahuanaco, além de Akapana. Apesar de ter altura e
dimensões menores do que Akapana, possuía tanta importância, ou mais, que a Ushnu maior,
uma vez que ali, provavelmente, eram recebidos os peregrinos e os representantes das terras
distantes.
A descrição foi realizada pelo padre Bernabé Cobo, no século XVII.
... Vê-se por inteiro o piso em mosaico de uma só peça suntuosa e muito
boa, que devia ser o templo ou a parte principal dele. Tem de comprimento este piso
cento e cinquenta e quatro pés, e de largura quarenta e seis; as lajes são todas de uma
grandeza estranha; eu as medi, e a maior tem trinta e dois pés de comprimento, dez e
seis de largura, e seis de espessura ou de canto; as outras são um pouco menores,
algumas têm trinta pés e outras são menores, mas todas de grandeza rara; elas são
tão suaves e lisas como uma mesa bem planejada e com muitas obras e molduras nas
laterais. Não existem no presente paredes levantadas sobre este piso de pedra; mas
das muitas pedras bem lavradas que estão caídas ao redor, em que se veem pedaços
de portas e janelas, pode-se inferir que ele estava cercado por paredes muitos
curiosas (COBO, 1990 [1653]: II, 195).3
Diego de Alcobaza, missionário e companheiro de Garcilaso de la Vega (escritor dos
relatos de Alcobaza sobre Tiahuanaco), visitou as ruínas do, segundo ele, templo coberto da
plataforma superior do Puma Punku, o mesmo que “...os nativos dizem que aquela casa, o
templo de pumapunku, e os demais edifícios eles tinham dedicado ao Criador do Universo.”
(GARCILASO DE LA VEGA, 2005 [1609]: I, 131).
Por sua vez, Cieza de León teve a clara impressão de que Puma Punku foi abandonado
antes de ser concluído: “E nota-se pelo que se vê destes edifícios, que não se acabaram de
fazer...” (CIEZA DE LEÓN, 2005 [1553]: 283).
3 Um pé equivale a 30,48 centímetros.
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Outro aspecto que provocou espanto nos cronistas foi o peso dos blocos (o Portal do
Sol tem doze toneladas) e das pedras (as com a forma de H e com encaixe intercambiável, de
Puma Punku, chegam ao número absurdo de cem toneladas), sobretudo porque eles sabiam
que os locais não possuíam ferramentas de ferro e, muito menos, transporte com rodas para
entalharem o material lítico e movê-lo de lugares distantes quilômetros do sítio principal.
“O trabalho é estranho e para espantar; e não usavam a mistura, nem tinha ferro ou aço
para cortar e esculpir pedras ou máquinas ou instrumentos para trazê-los, e todas que estão
aqui são tão polidamente lavradas, que em muitas partes se vê a junta de umas com as outras.”
(ACOSTA, 1954 [1590]: 251).
MITOS COSMOGÔNICOS.
Vale dizer que muitos dos mitos de criação ou, mais propriamente, mitos
cosmogônicos, recolhidos dos cronistas retratam um deus criador, Viracocha (Contiti
Huiracocha Pacha Yachachic, “Senhor Criador do Mundo”), muito similar ao ideário
católico, o que torna suspeita a descrição quase universal que os mesmos fazem do mesmo
tema. Todavia, como, em algumas versões, aparece o deus Tunupa, um demiurgo anterior a
Viracocha e do fundo cultural e religioso aimará, pode-se admitir que existisse um mito de
criação andino com estas características.
Cabe destacar, igualmente, que as crônicas eram revistas e “controladas” pelo governo
espanhol e, sobretudo, pela Inquisição, muito forte nos séculos XVI e XVII, e bastante
preocupada com as colônias devido às “idolatrias” locais.
De qualquer forma, a ênfase aqui é retratar, nas descrições coloniais, a centralidade do
sítio de Tiahuanaco como polo gerador de luz e de vida no contexto dos povos da região.
Nos tempos antigos dizem ser a terra e províncias de Piru escuras e que nela não
havia nenhum fogo ou dia e que havia neste tempo certas pessoas ali, essas pessoas
tinham certo senhor que mandava nelas e os nomes destas pessoas e de seu senhor
os nativos não se recordam. E nestes tempos em que a terra era toda de noite dizem
que saiu de uma lagoa que é desta terra do Peru, na província que dizem sua Colla
suyo um senhor que chamaram Contiti Viracocha (comumente é chamado de Tici
Viracocha), o qual trouxe consigo certo número de pessoas, número que não
lembram, e depois de ter saído da lagoa foi para um local próximo desta lagoa, que
onde é hoje uma aldeia chamada Tiaguanaco... (BETANZOS, 1987 [1557]: 07-08).
Os cronistas frequentemente evocaram o sítio de Tiwanaku como referência para a
criação do ser humano e do mundo. De acordo com os textos coloniais, os habitantes que
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povoaram o lugar foram todos convertidos em estátuas de pedra gigantes, que ainda podem
ser vistas no local abandonado (BETANZOS, 1987 [1557]: 12; COBO, 1990 [1653]: 100-107
e MOLINA, 1989 [1575]: 51-52). Nas versões de Garcilaso de la Vega e de Santa Cruz
Pachacuti, a conversão da população de pedra de Tiahuanaco veio como uma punição do
Deus Viracocha/Tonapa porque, no primeiro caso, eles apedrejaram até a morte um viajante
(que era, na verdade, uma divindade disfarçada; GARCILASO DE LA VEGA, 2005 [1609]:
III; 185-189) e, no segundo caso, porque ele foi ignorado durante um grande festival (SANTA
CRUZ PACHACUTI, 1995 [1613]: 13).
Em outras versões como, por exemplo, em Bernabé Cobo (1990 [1653]), José de
Acosta (1954 [1590]), e Sarmiento de Gamboa (2007 [1572]), uma primeira Humanidade
(igualmente ressoando o Gênesis Bíblico) foi destruída por um dilúvio (o Uno Pachacuti
andino) e renascida com o “deus criador”; que surgindo das águas do lago Titicaca
“arquitetou”, em Tiahuanaco, o Sol, a Lua, as Estrelas e evidentemente, o Tempo.4
"Como quer que seja, dizem os índios que com aquele seu dilúvio se afogaram todos
os homens e contam, que do grande lago Titicaca saiu um Viracocha, que fez sede em
Tiaguanaco, onde se veem hoje ruínas e peças de edifícios antigos muito estranhos...”
(ACOSTA, 1954 [1590]: 53). Um dado importante relevado neste trecho, além da questão
diluvial, refere-se ao fato de Tiahuanaco, depois do cataclismo torrencial, ter se tornado o
local de moradia telúrica da própria deidade formadora.
"... e fizeram em Tiaguanaco edifícios, cujas ruínas se veem agora, para morada de
Viracocha, seu criador,..." (SARMIENTO DE GAMBOA, 2007 [1572]: 62). Sarmiento, logo
depois de detalhar a criação em Tiahuanaco, fala que Viracocha enviou as pessoas para
preencherem as terras do mundo, mas que estas, antes de partirem, construíram a cidade para
ser a residência do seu "Criador".
E deixando (Wiracocha), a ilha (Titicaca), atravessou a lagoa para o continente e
levando em sua companhia os dois servos que tinha retido foram para um lugar, que
agora chamam Tiaguanaco, que é na província de Collasuyo, e neste lugar esculpiu e
desenhou em algumas lajes muito grandes todas as Nações que pensava criar (...)
Outros afirmam que esta criação, o Viracocha fez do site de Tiaguanaco, onde havia
formado no início, alguns grupos de jayanes (gigantes) e parecendo-lhe
desproporcionais, os tornou a fazer com sua estatura - era Viracocha, segundo
dizem, de disposição média como as nossas - e formados, deu-lhes espírito, e que
dali partiram a povoar as terras (SARMIENTO DE GAMBOA, 2007 [1572]: 64).
4 Na versão de Molina, ele diz que o sol e a lua foram criados em Tiahuanaco e, desde ali, ambos os astros se
dirigiram para a ilha Titicaca, de onde se elevaram ao espaço (MOLINA, Cristóbal de. 1989 [1575]: 52).
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Nestes trechos, Gamboa parece tentar explicar os entalhes e gravuras dos portais de
Tiahuanaco, bem como os monólitos que ali se encontram. Além da informação de que
Viracocha tinha altura média, para os padrões humanos.
Tiahuanaco como local “viracocho” por excelência também pode ser visualizado e
reafirmado pelos escritos de O Cuzquenho: “E continuando esta fábula, dizem que no
momento em que o Criador estava em Tiahuanaco, porque dizem que esta foi sua sede
principal, e é por isso que lá existem alguns soberbos edifícios de grande admiração...”
(MOLINA, 1989 [1575]: 53).
Molina aproveita a referencia de Tiahuanaco para dizer que ali foram nomeados, para
os humanos, tudo sobre os seres da criação: "Eles também dizem nesta mesma fábula, que em
Tiahuanaco, onde dizem que fez todas as pessoas, fez todas as diferenças de aves, animais,
cobras e outros animais nocivos e que foi ali que definiu para os humanos os nomes e as
características das aves e animais e demais animais nocivos" (MOLINA, 1989 [1575]: 52).
E como bom sacerdote cristão que é, Molina descreve a criação dos seres em barro e
não em pedra como dizem os povos originários.
Em Tiahuanaco, o Criador, wiracocha, começou a fazer as pessoas e nações
aqui nesta terra de aflição; e fazendo de barro cada Nação, pintando os trajes e
vestidos que cada um havia de trazer e ter, e aqueles que haviam de ter cabelos
apareciam com cabelos e aqueles que deveriam ter o cabelo cortado, tinham-no
cortado, e que concluído, a cada nação deu uma língua que haviam de falar e os
cantos que tinham de cantar e sementes e alimentos que tinham de plantar
(MOLINA, 1989 [1575]: 52).
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Os objetivos básicos a serem apresentados aqui eram dois: uma visualização das
descrições das estruturas do centro cerimonial de Tiahuanaco feitas pelos cronistas e o
desenrolar dos mitos cosmogônicos relacionados ao mesmo sítio histórico andino. Mais que
uma interpretação, a ideia era, simplesmente, apresentar as falas dos observadores coevos;
logo, deixamos os cronistas falarem.
Outro aspecto pretendido foi o de realizar uma abordagem, ainda que sumária, das
temáticas e das discussões já arroladas pela historiografia sobre Tiahuanaco. Neste sentido,
uma passagem pelas obras mais recentes ou mais relevantes sobre o assunto foi, igualmente,
efetuada. As obras citadas não estão restritas, apenas, ao campo histórico, mas inserem-se em
Anais – I Congresso de América Colonial – Historiografia, Acervos e Documentos Laboratório de Estudos Americanos – LEA Campinas, agosto 2017
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uma abordagem mais multidisciplinar, com trabalhos de antropologia, arqueologia, etnologia,
linguística, religião, arquitetura e arte.
Por fim, e não menos importante, uma das intenções deste escrito é a de chamar
atenção para um período/civilização pouco abordados no Brasil. Os estudos andinos estão
muito concentrados no período/cultura inca ou, quando eles recuam no tempo, é para
abordarem culturas “peruanas” (situadas no atual território do país Peru) e muito antigas,
como Chavín de Huantar ou Caral-Supe (que está chamando mais atenção por ser a
descoberta mais recente na área e por ser a mais antiga civilização da América do Sul).
Afinal, o povo que construiu estas magníficas edificações também criou uma das
matrizes culturais das nações andinas – os mitos de criação, ali centrados, reforçam muito esta
ideia. As “Pedras Paradas e Erguidas”, que sobressaem no Meio do caos primordial, em
Tiahuanaco são, e continuarão a ser, um testemunho lítico espetacular da grandeza dos povos
originários para elaborarem obras materiais e simbólicas no mesmo nível das melhores
contribuições que povos de outros continentes fizeram na História da Humanidade.
FONTES UTILIZADAS:
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ANELLO OLIVA, Giovanni. 1998 [1631]. Historia del reino y provincias del Perú y vidas de
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SARMIENTO DE GAMBOA, Pedro. 2007 [1572]. The History of the Incas. Austin:
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12
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Acesso em 05/07/2017.
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Anais – I Congresso de América Colonial – Historiografia, Acervos e Documentos Laboratório de Estudos Americanos – LEA Campinas, agosto 2017
13
Fonte: http://www.am-sur.com/am-sur/peru/gs/Campos/04_kulturen-ESP.html
Acesso em 05/07/2017.
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