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CLAUDIA MARIA MILLEK
TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA E O HOMEM DA CABEÇA DE PAPELÃO: UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO DO HERÓI
Monografia de conclusão do curso de História do Setor de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. José Roberto Braga Portella
CURITIBA 2002
Dedico esta monografia de
final de curso à minha mãe,
Felicidade Maria Millek, por
seu apoio, compreensão e
amor.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a professora Cátia Toledo Mendonça pelo auxílio dado a esta
monografia, agradeço também a colaboração de Helder Bello da Veiga e especialmente
o meu muito obrigada a minha orientadora, professora Ana Maria Burmester.
A Condição Humana, 1934. MAGRITTE, René.
SUMÁRIO
Introdução..................................................................................................................01
1. Rio de Janeiro da Virada do Século XIX para o XX.............................................03
1.1 Triste Fim de Policarpo Quaresma......................................................................08
1.2 O Homem da Cabeça de Papelão........................................................................25
1.3 Lima Barreto X João do Rio...............................................................................33
2. O Herói na História e na Literatura......................................................................36
2.1 Major Policarpo Quaresma.................................................................................41
2.2 Antenor – O Homem da Cabeça de Papelão......................................................49
2.3 Quaresma & Antenor..........................................................................................54
Conclusão..................................................................................................................57
Referências Bibliográficas.........................................................................................59
Anexo.........................................................................................................................62
INTRODUÇÃO
Esta monografia propõe-se a fazer um estudo comparativo entre duas obras
literárias, o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e o conto O Homem da
Cabeça de Papelão, tendo como enfoque as seguintes questões: análise e
compreensão dos textos ficcionais, acima citados; contextualização do enredo do
romance e do conto; posicionamento político e social de seus autores, Lima Barreto
e João do Rio; possíveis relações entre os já mencionados textos literários com os
fatos históricos, com a sociedade carioca da virada do século XIX para o século XX
– período em que as obras foram produzidas- e com os assuntos políticos que
cercearam esse período. Além, de todas essas questões, e como cerne da pesquisa, a
figura do herói, presente no romance de Lima Barreto e no conto de João do Rio, é
discutida em termos históricos e literários.
Na realização desses propósitos, fez-se necessário recorrer a uma
fundamentação teórica, voltada para os estudos de história e literatura. Dentre os
autores que discutem essa temática está Ian Watt. Para ele, o romance, ao constituir
um relato completo e autêntico da experiência humana, fornece ao leitor detalhes da
história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e
locais de suas ações. Esses elementos colocam de modo mais agudo que qualquer
outra forma literária o problema da correspondência entre a obra literária e a
realidade que ela imita.1
Assim como Ian Watt, Barthes analisa a relação entre o meio e a obra de arte.
Em sua concepção, a história e a literatura são dois continentes, no sentido de que
um não pode ser encaixado dentro do outro, pois o tempo de mudança não é igual.
Literatura e história não mudam no mesmo ritmo, mas as trocas que elas realizam
são cada vez mais numerosas e mais reconhecidas.2
1 WATT, Ian. Ascensão do Romance. São Paulo: Schwarcz, 1990. Tradução: Hildegard Feist. Companhia das Letras. p. 172 2 BARTHES, Roland. Sobre Racine. Porto Alegre: L & PM, 1987. p. 141
Outro teórico importante que trata da analogia entre história e literatura é
Antonio Candido. Ele entende a literatura como fenômeno de civilização, e como
tal, depende para se constituir e caracterizar do entrelaçamento de vários fatores
sociais. Nesse entrelaçamento é levado em conta a relação arbitrária e deformante
que o trabalho artístico estabelece com a realidade. Ao considerar aos fatores sociais
o papel de formadores da estrutura, o autor vê que tanto eles quanto os psíquicos são
decisivos para a análise literária.
Sob outra perspectiva, Nicolau Sevcenko aponta uma diferença crucial a ser
devidamente considerada pelo historiador que se serve do material literário, a de que
ele ocupa-se da realidade enquanto o escritor é atraído pela possibilidade. Ou seja, o
historiador tem o comprometimento com a construção da história, que deve ser feita
da maneira mais fiel aos fatos, sem distorce-los e muito menos modifica-los. Já o
literato pode utilizar-se dos fatos históricos da maneira que melhor convir para a
produção estética a que está proposto, salvo os romances de crítica social. Os quais
tem em si mesmos um comprometimento em ressaltar alguns aspectos conflitantes
da sociedade. Nesse caso, é preciso ter uma certa sensibilidade e conhecimento para
discernir o que pertence à sociedade retratada e o que é apenas uma alegoria
acrescentada pelo autor.
Tomada tal precaução, Sevcenko diz que a literatura serve como instrumento
para avaliação das forcas e dos níveis de tensão existentes no interior de uma
determinada estrutura social. Segundo ele, os escritores têm em seus temas ,
motivos, valores e revoltas sugeridos por seu tempo.
Todas essas fundamentações foram essenciais para elaboração desta
monografia de final de curso, composta por dois capítulos. No primeiro é feita uma
contextualização do período estudado, analise do romance Triste Fim de Policarpo
Quaresma e do conto O Homem da cabeça de Papelão e estudo dos dois literatos,
Lima Barreto e João do Rio. No segundo capítulo, por sua vez, o enfoque é dado aos
protagonistas das obras e a relação do herói na história e na literatura.
1. RIO DE JANEIRO DA VIRADA DO SÉCULO XIX PARA O XX
Os acontecimentos que cercearam a transição de um século para outro, no
Brasil, estão ligados às transformações ocorridas nos países desenvolvidos. Uma das
mais importantes delas foi a segunda revolução industrial (ou revolução científico-
tecnológica), efetivada entre a última década do século XIX e as primeiras do século
XX. Com ela as descobertas científicas foram aplicadas aos processos produtivos,
possibilitando o desenvolvimento de novos potenciais energéticos, como a
eletricidade e os derivados do petróleo, dando assim origem a novos campos de
exploração industrial, além de desenvolvimentos na área da microbiologia,
bacteriologia e da bioquímica.
Com todo esse avanço, a busca por matérias-primas e a abertura de novos
mercados de consumo se intensificam por todo o mundo. É a hora e a vez do
neocolonialismo, que levou potências industriais a disputarem áreas não colonizadas
e a restabelecer vínculos de dependência com áreas de passado colonial.
Diante disso, as sociedades tradicionais, de economia agrícola, foram
envolvidas pelos ritmos mais dinâmicos da industrialização européia e norte-
americana. Além de serem envolvidas, todo o modo de vida deveria ser enquadrado
aos hábitos e práticas de produção e consumo conforme o novo padrão da economia
de base científico-tecnológica.3
Seguindo esse novo padrão da economia, o Brasil passou por um processo de
transformação, no qual elementos de ordem social, econômica e política modificam-
se e assinalam a transição de uma ordem agrária latifundiária, escravocrata e
aristocrática para uma civilização burguesa e urbana, que inicia a fase preparatória
da industrialização em nosso país. Essas mudanças vinham acompanhadas por dou-
3 SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: História da Vida Privada no Brasil Vol. III. Coordenador geral da coleção NOVAIS, Fernando A.; organizador do volume SEVCENKO, Nicolau. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 12-13.
trinas de libertação filosófica, racionalismo, materialismo, emancipação política e
social, que no Brasil assumiam o sentido nacionalista, abolicionista e republicano.
O republicanismo tomou força em meio a um contexto tumultuado. O
Império brasileiro estava endividado devido ao alto custo dos confrontos bélicos,
especialmente a guerra do Paraguai. Dentro do partido republicano, fundado em
1870, estava uma elite de intelectuais e militares comprometida com a plataforma de
modernização, baseando-se nas diretrizes científicas da Europa e dos Estados
Unidos. Também eram antimonarquistas os ricos fazendeiros produtores de café.
Eles acreditavam que com o advento da República (...) fosse implantado o sistema
federalista, assegurando-lhes não só o controle de seus próprios rendimentos, como
condições de usar seu poder econômico para decidir os destinos da futura ordem
republicana.4
A união de todos esses antimonarquistas culminou na proclamação da
República, que trouxe a abertura da economia aos capitais estrangeiros
(especialmente ingleses e americanos), a permissão para bancos privados emitirem
moeda, bem como a criação de um mercado de ações. Este sofreu a mais
escandalosa fraude especulativa de todos os tempos, recebendo o nome
“Encilhamento”.
Além de tudo isso, a República reforçava a idéia de uma imediata
modernização e industrialização do país, sendo o Rio de Janeiro o propulsor dessa
nova estruturação da sociedade brasileira. A capital da República seguia os moldes
europeus e norte-americanos e o resto do país seguia o exemplo da cidade carioca.
Toda essa remodelação vinha acompanhada de uma nova filosofia, que exigia uma
mudança nos hábitos sociais, nos cuidados pessoais e uma nova estruturação urbana
do Rio de Janeiro. Era preciso modificar as ruelas estreitas que dificultavam a
ligação entre o terminal portuário, eliminar focos de doença e sufocar as crises
4Ibid., p14.
políticas vindas desde a proclamação da República, (...) que haviam não só exaurido
o Tesouro nacional como sustado a entrada de capitais e dificultado a imigração.5
Para resolver todos esses problemas o governo elaborou um plano em três
dimensões: modernizar o porto, realizar o saneamento da cidade e efetivar a reforma
urbana. Para execução foram nomeados o engenheiro Lauro Muller, o médico
sanitarista Oswaldo Cruz e o engenheiro urbanista Pereira Passos. A eles foi dado
total poder para agirem conforme os seus conhecimentos, o que criou segundo
Sevcenko (...) uma situação tripla de ditadura na cidade do Rio. Como era de se
prever, os três se voltaram contra os casarões da área central, que congregavam o
grosso da população pobre.6
Com a demolição dos casarões os menos favorecidos ficaram reclusos as
encostas íngremes dos morros que cercavam a cidade, enquanto as elites se
preocupavam em estar em dia com os menores detalhes do cotidiano do Velho
Mundo. O cosmopolitismo no Rio de janeiro era alimentado pelos navios europeus
que traziam figurino, mobiliárias, notícias sobre peças teatrais e livros mais em
voga, escolas filosóficas predominantes, o comportamento, o lazer, as estéticas,
enfim tudo o que se possa imaginar para tornar a cidade carioca mais “europeizada”.
Nesse momento, a paisagem carioca passa por um processo de
aburguesamento intensivo, com a criação de um espaço público central da cidade,
completamente remodelado, embelezado e ajardinado. Em decorrência disso, a
burguesia carioca abandona as varandas e os salões coloniais pelas avenidas, praças,
palácios e jardins. Uma nova rotina de hábitos se instala, como se todos quisessem
estar em todos os lugares e desfrutar de todas as atrações urbanas ao mesmo tempo.
5 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. I. 6 SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: História da Vida Privada no Brasil Vol. III. Coordenador geral da coleção NOVAIS, Fernando A.; organizador do volume SEVCENKO, Nicolau. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 23.
O dia não bastava para tanta excitação e com os novos lampiões a gás e as
luminárias elétricas a noite foi invadida.7
Sobre esse novo rumo da sociedade carioca acrescenta Sevcenko:
A cidade do Rio de Janeiro abre o século XX defrontando-se com perspectivas extremamente
promissoras. Aproveitado de seu papel privilegiado na intermediação dos recursos da economia
cafeeira e da condição de centro político do país, a sociedade carioca viu acumular-se no seu interior
vastos recursos enraizados principalmente no comércio e nas finanças, mas derivando já também
para as aplicações industriais. Núcleo da maior rede ferroviária nacional (...) fizeram da cidade o
maior centro comercial e o maior centro populacional do país (...). A mudança da natureza das
atividades econômicas do Rio foi de monta, portanto, a transformá-lo no maior centro cosmopolita
da nação, em íntimo contato com a produção e o comércio europeus e americanos absorvendo-os e
irradiando-os para todo o país.8
Esse cosmopolitismo trazia consigo uma parcela de intelectuais e literatos
favoráveis ao novo rumo que o país tomava. Todos se presumiam e diziam
republicanos, na crença ingênua de que a República, para eles (...) bastava à
solução de problemas.9 Eram os produtores da chamada “literatura como sorriso da
cidade”, eles estavam plenamente assimilados a nova sociedade e assumiam o estilo
impessoal da Belle Époque, além de serem dispensados de qualquer função social
significativa. Por estarem a favor do novo regime político era constante a oferta de
empregos burocráticos, cargos de representação, comissões e delegações
diplomáticas. Desta forma eles possuíam estabilidade financeira para dedicarem-se a
literatura descompromissada.
No entanto, outra parcela de literatos seguia o oposto desse
descomprometimento, eles eram contra o cosmopolitismo gerado pelo advento da
República. Esses intelectuais tinham medo que o Brasil viesse a sofrer uma invasão
das potências expansionistas, perdendo sua autonomia e parte do seu território.
7 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. I. 8 Ibid. , cap. I. 9 VERÍSSIMO, José. Vida Literária. In: SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. II.
Espantados com o ritmo delirante com que as grandes potências procediam a
retalhação do globo terrestre, com os quistos de imigrantes inassimiláveis que se
formavam e cresciam em seu território (...) jornalistas, cronistas e escritores
assumiam uma postura de alarme e defesa (...).10Dentre esses literatos preocupados
em fornecer a sociedade uma literatura compromissada, enquanto instrumento de
ação pública e de mudança histórica, estão os dois protagonistas desta monografia:
Lima Barreto e João do Rio.
10 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. II.
1.1TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA
Antes de entrar na obra, Triste Fim de Policarpo Quaresma, é indispensável
tratar de seu autor: Afonso Henriques de Lima Barreto. Um mulato carioca que
nasceu em 1881, vivenciando, ainda em tenra idade, a transição pela qual passava o
país. Com apenas sete anos, quando ingressou na escola pública, assistiu com o pai a
Abolição. Um ano mais tarde, era a proclamação da República que agitava o país, da
qual Lima Barreto manteve repudio desde sua implementação. Da tal história da
República – dirá esse escritor eminentemente memorialista -, só me lembro que as
patrulhas andavam, nas ruas, armadas de carabinas e meu pai foi, alguns dias
depois, demitido do lugar que tinha.11 O pai de Lima Barreto foi sacrificado com a
queda da Monarquia, perdendo o emprego, que, embora modesto, o colocara em
posição de destaque entre os seus colegas de ofício. Isso veio reforçar a posição
política que Lima Barreto iria assumir quando adulto.
Esses episódios servem não apenas para situar Lima Barreto no quadro
histórico em que iria exercer a sua ação de romancista e de escritor militante, mas
também para assinalar o contraste que, desde cedo, marcaria a atitude de
inconformismo, quase que de rebelado, do afilhado do Visconde de Ouro Preto.
Foi ele um apagado amanuense do Ministério da Guerra, freqüentador assíduo de botequins,
alcoólatra com mais de uma passagem pelo hospício, um homem por assim dizer à margem da
sociedade. No entanto, esse fracassado foi um grande escritor. E a obra que deixou assegurou-lhe o
título não contestado de ‘romancista da primeira República’. Todos ou quase todos, os principais
eventos da República estão nos seus romances, não como simples descrições, fotografias sem alma
de acontecimentos históricos. Mais que caricatura, desenho ou pintura, o que ele fez foi penetrar
fundo na ambiência de toda uma época, revelando por inteiro a sua mentalidade, o seu substractum
social e humano.12
11 BARRETO, Lima. In: Lima Barreto. BARBOSA, Francisco de Assis. Col. Nossos Clássicos. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1960. p. 05. 12 Ibid., p.06.
Triste Fim de Policarpo Quaresma é um exemplo dessa incrível capacidade
de Lima Barreto. Ele conseguiu absorver todos os impasses, problemas e costumes
do nosso país e fez deles mais do que pano de fundo para seu enredo, os utilizou
enquanto determinantes de seu romance.
Além dos fatores sociais, políticos e humanos Lima Barreto recheou suas
obras com elementos de sua própria vida. Essa autobiografia surge em meio a
notações ou conotações realistas para pequenas particularidades ocasionais da vida
de seus personagens, nunca foi tomada como peso ponderal da motivação da obra
por força de seu egoísmo ou sequer do seu egocentrismo. Pode-se reconhecer, ao
contrário, que ao tomar dados autobiográficos em algumas de suas obras Lima
Barreto estava reconhecendo e estava consciente do quanto de injustiça à sociedade
gestava em seu ventre em relação aos menos favorecidos, que, através do crivo de
Lima, eram transportados para o mundo da literatura.13
Apesar dessa preferência, não eram só os oprimidos que habitavam as páginas
dos romances e contos de Lima, certos políticos e certos literatos eram retratados
enquanto caricaturas de líderes e de intelectuais. Dessa forma, através de
personagens-símbolos, o autor traçou todo o panorama da mentalidade burguesa,
predominante no Brasil, nos primeiros trinta anos da nossa vida republicana.
Ao revelar essa mentalidade burguesa, ao utilizar a autobiografia e ao
penetrar na ambiência de toda uma época, retratando acontecimentos históricos,
Lima Barreto estabelece uma linha muito tênue entre ficção e realidade, sendo muito
difícil, senão impossível, delimitar na maioria de seus romances e contos a fronteira
entre elas. Para elucidar esses levantamentos é interessante pensar na obra
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, que contempla a luta contra o preconceito
de cor, contra a mediocridade triunfante, contra uma falsa concepção de imprensa e
literatura, acompanhada da experiência da vitória, à custa de transgredir toda a
ordem e do sacrifício da própria dignidade humana. Um livro que revela muito do
drama do próprio Lima Barreto, através do seu herói negro, pobre e humilde, mas
orgulhoso na luta desigual que enfrentou contra tudo e contra todos.
Menos autobiográfico mas fortemente vinculado aos primeiros anos da
República Triste Fim de Policarpo Quaresma, foi publicado em 1915, cinco anos
depois de aparecer em folhetim no Jornal do Comércio, um dos mais importantes do
Rio de Janeiro do início do século. A respeito da recepção do livro na sociedade
carioca escreveu o próprio Lima Barreto:
Meu livro, o Policarpo, saiu há quase um mês. Só um jornal falou sobre ele três vezes (de sobra). Em
uma delas, Fábio Luiz assinou um artigo bem agradável. Ele saiu nas vésperas do Carnaval.
Ninguém pensava em outra coisa. Passou-se o Carnaval e Portugal teve a cisma de provocar guerra
contra a Alemanha. As folhas não se importavam com outra coisa senão com o gesto comicamente
davidinesco de Portugal. Enchiam colunas com notícias como esta: ‘A esquadra portuguesa foi
imobilizada (...)’. E não tem tempo de falar no meu livro, os jornais, estes jornais do Rio de Janeiro.
O Policarpo Quaresma (...). Emendei-o como pude e nunca encontrei quem o quisesse editar em
livro. Em fins de 1915, devido a circunstâncias e motivos obscuros, cismei em publicá-lo. Tomei
dinheiro daqui e dali (...). Os críticos generosos só se lembravam diante dele do D. Quixote (...).14
Nesse livro Policarpo Quaresma é o protagonista da história, (como não
poderia deixar de ser devido ao título da obra), um visionário, ingênuo cujo espírito
ufanista, que alimenta seus sonhos, é o mesmo que anima os primórdios da
República. Essa apoiada no positivismo que via nas conquistas da ciência o caminho
para o progresso, coloca uma questão de ressonância mundial, num momento em
que na Europa se formam os Estados nacionais modernos, como construir a nação e
remodelar o Estado brasileiro.
As tentativas e soluções para resolver essa questão imposta pela República,
como já foi dito, em nada agradaram o filho do tipógrafo João Henriques de Lima
Barreto. Ele utilizou-se da literatura para revelar suas insatisfações políticas (não
deixando, é claro, de contemplar a estética e a ficção, elementos essenciais de um
13 HOVAISS, Antônio. In: Vida Urbana Artigos e Crônicas. BARRETO, Lima. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1956. 14 BARRETO, Lima. Diário Íntimo. São Paulo: Ed. Mérito S. A., 1953. p.126.
romance), fazendo obra atual e atuante, do seu tempo e do seu meio, literatura
militante, como ele mesmo disse.
Em Triste Fim de Policarpo Quaresma essa militância e a oposição aos frutos
advindos da República transparecem em diversos momentos do romance. O mais
evidente deles recai sobre a figura de seu protagonista: Major Policarpo Quaresma,
cuja descrição já revela muito da crítica social presente no romance. Ele vestia-se de
forma elegante e pomposa. Vestia-se sempre de fraque, preto, azul, ou de cinza, de
pano listrado, mas sempre de fraque, e era raro que não se cobrisse com uma
cartola de abas curtas e muito alta (...)15. Dessa forma, ele se enquadra as novas
exigências vindas com a modernização do Rio de Janeiro: (...) a criação de uma lei
de obrigatoriedade do uso de paletó e sapatos para todas as pessoas, sem distinção
(...). O objetivo do regulamento era por ‘termo a vergonha’ e à imundice
injustificáveis dos em mangas-de-camisa e descalços nas ruas da cidade.16 A
vestimenta do personagem pode ser entendida como caracterização da República
como um todo. Já que ela pedia toda a pompa e circunstância, seguindo o modelo
europeu.
Outro exemplo de crítica social, dentro do romance em questão, recai sobre a
figura do militar, que se faz presente em diversos personagens. O primeiro deles é o
próprio protagonista do enredo, Major Policarpo Quaresma:
Logo aos dezoito anos quis fazer-se militar; mas a junta de saúde julgou-o incapaz. Desgostou-se,
sofreu, mas não maldisse a Pátria. O ministério era liberal, ele se fez conservador e continuou mais
do que nunca a amar a ‘terra que o viu nascer’. Impossibilitado de evoluir-se sob os dourados do
exército, procurou a administração e dos seus ramos escolheu o militar. Era onde estava bem. No
meio de soldados, de canhões, de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de
fuzis e termos teóricos de artilharia (...).17
15 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997. p. 20. 16 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. I. 17 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997. p.22.
Entretanto, o título de Major atribuído a Quaresma não passava de uma
fraude: Quaresma então explicou porque o tratavam por major. Um amigo,
influência no Ministério do Interior, lhe tinha metido o nome numa lista de guardas-
nacionais, com esse posto. Nunca tendo pago os emolumentos, viu-se, entretanto,
sempre tratado major, e a coisa pegou.18 Dessa forma, parte da corrupção a que os
militares estavam envolvidos aflora por todo o romance, num sentido de denúncia e
crítica. O narrador demonstra esse posicionamento através das histórias envolvendo
os militares, bem como através dos atos deles próprio enquanto personagens do
texto, como o caso do major Quaresma.
Outro personagem que representa a instabilidade e a fragilidade da força
militar brasileira recebia o nome de contra-almirante Caldas, uma figura patética que
apesar do grande interesse nos assuntos militares quase nunca conseguia colocá-los
em prática:
(...) assunto de legislação militar. O contra-almirante era super interessado. Na Marinha, por pouco
que não fazia pedant com Albernaz no Exército. Nunca embarcara, a não ser na guerra do Paraguai,
mas assim mesmo por muito pouco tempo. (...) Certa vez, quando era já capitão-tenente, deram-lhe
um embarque em Mato Grosso. Nomearam-no para comandar o couraçado Lima-Barros. Ele lá foi,
mas, quando se apresentou ao comandante da flotilha teve notícia de que não existia no rio Paraguai
semelhante navio. (...) O Lima-Barros tinha ido a pique, durante a guerra do Paraguai. Embora
absolvido, nunca mais entrou em graça dos ministros e dos seus generais. Todos o tinham na conta
de parvo, de um comandante de opereta que andava à cata de seu navio pelos quatro pontos
cardeais.19
Em decorrência, talvez, desse deboche e das frustradas tentativas de exercer
seu cargo é que o contra-almirante Caldas não hesitava em revelar as irregularidades
que cerceavam a organização militar, como na seguinte afirmativa feita por ele ao
major Inocêncio: É curiosa essa coisa das administrações militares: as comissões
são merecimento, mas só as dá aos protegidos.20
18 Ibid. p. 134. 19 Ibid. p. 45-46. 20 Ibid. p. 45.
Outro personagem que representa a figura do militar, dentro do romance, é o
general Albernaz que, assim como o contra-almirante Caldas, é apresentado,
também, de maneira nada honrosa. O general nada tinha de marcial, nem mesmo o
uniforme que talvez não possuísse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma
única batalha (...). Os seus hábitos eram de um bom chefe de seção e a sua
inteligência não era muito diferente de seus hábitos. Nada entendia de guerras, de
estratégia, de tática ou de história militar(...).21
Ainda, ao referir-se ao General Albernaz, o narrador revela uma das essências
do livro, pois atribui a uma pessoa detentora de um cargo militar a capacidade para
realizar as mais incríveis façanhas: O altissonante título de general, que lembrava
coisas sobre-humanas dos Césares, dos Turennes e dos Gustavos Adolfos, ficava
mal naquele homem plácido, medíocre, bonachão, cuja única preocupação era
casar as cinco filhas e arranjar pistolões para fazer passar o filho nos exames do
colégio Militar.22 Nessa relação entre o militar e atos de destaque é impossível não
pensar em Quaresma, cujo desempenho do início ao final da trama está ligado a
gestos eloqüentes, ousados e em alguns momentos “sobre-humano”.
Um desses gestos está relacionado à figura do presidente da República, que
também era militar, Marechal Floriano Peixoto. Este compõe com exatidão o
período em que o romance é ambientado, entre 1891 e 1894. Quaresma entrega-se a
defender a pátria que, segundo ele julgava, estava sendo ameaçada pela revolta
contra o presidente. O qual simbolizava ao protagonista além de um “um governo
forte” a própria República. Para defender sua nação o Major foi capaz de se expor a
perigos dos quais sua irmã o lembrava, na esperança de que ele desistisse:
Fizera Dona Adelaide mil objeções à sua partida; mostrara-lhe os riscos da luta, da guerra,
incompatíveis com a sua idade e superiores à sua força; ele, porém, não se deixava abater, fizera pé
21 Ibid. p. 31. 22 Ibid. p. 31-32.
firme, pois sentia, indispensável, necessário que toda a sua vontade, que toda a sua inteligência, que
tudo o que ele tinha de vida e atividade fosse posto à disposição do governo, para então! ... oh!23
Quaresma realmente se colocou a disposição, sendo encaminhado ao batalhão
patriótico. Aproveitando a oportunidade de estar tão próximo ao presidente, o Major
ingenuamente escreve um memorial a Floriano, contando todos os atos que
deveriam ser feitos para que a agricultura progredisse. Nele expunham-se as medidas
necessárias para o levantamento da agricultura e mostravam-se todos os entraves,
oriundos da grande propriedade, das exações fiscais, da carestia de fretes, da
estreiteza dos mercados e das violências políticas.24
Com essa questão da agricultura Lima Barreto reforça ainda mais o aspecto
social de seu Triste Fim de Policarpo Quaresma. Já que esse era um tema deixado
de lado pela República. Afinal de contas, ela é cosmopolita e moderna, voltada para
a vida urbana e não para a rural. No momento em que a República esquece o meio
rural, Lima Barreto como bom anti-republicano o exalta e o lembra. Sobre essa
realidade afirma Sevcenko: Para o interior e para as populações rurais, o abandono
era absoluto; (...) Se registra na consciência intelectual a idéia de duas sociedades
antagônicas e dessintonizadas no Brasil: a sociedade rural (campo indolente) a
sociedade urbana (cidade industriosa).25
Dentro desse espírito, em nada surpreende a reação do Marechal Floriano
quanto aos pedidos e idéias de Quaresma presentes em seu memorial:
Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este país. (...) desde que se corrijam os erros de uma
legislação defeituosa e inadaptável às condições do país, Vossa Excelência verá que (...) em vez de
tributários, ficaremos com a nossa independência feita (...). Aquele falatório de Quaresma (...). O
presidente aborrecia-se. Num dado momento disse: -Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a
enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse.26
23 Ibid. p. 128. 24 Ibid. p. 128. 25 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. V. 26 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997. p. 149-150.
Com tal receptividade Policarpo Quaresma fica desapontado:
Aquela recepção de Floriano às suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu entusiasmo e
sinceridade nem tampouco a idéia que ele fazia do ditador. (...) vinha esbarrar com um presidente
que o chamava de visionário, que não avaliava o alcance de seus projetos, que os não examinava
sequer (...). Era pois para sustentar tal homem que deixava o sossego de sua casa e se arriscava nas
trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de
morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles (...), pelo enriquecimento do
país, o progresso do país, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural?27
Nesse momento mais uma vez a voz de Lima Barreto ecoa em seu romance.
Ele traz para o leitor toda a sua visão em relação à política do governo do Marechal
Floriano. Num outro trecho do livro fica mais explícita a crítica, pois é o narrador
quem lamenta a ingenuidade de Quaresma em relação ao presidente:
O seu entusiasmo por aquele ídolo político era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta de
enérgico, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país, (...). Entretanto, não
era assim. Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano
uma qualidade predominante: tibieza de ânimo, e no seu temperamento, muita preguiça. Não a
preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida(...). Pelos lugares que
passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações de seus cargos.28
Essa descrição do marechal Floriano é bastante significativa: fisicamente, a
figura do presidente é vulgar e desoladora; moralmente, é a imagem do preguiçoso,
do que não tem idéias e nem amor pelo trabalho. Dessa forma é impossível não
compreende-la enquanto crítica social, por parte de Lima Barreto, que em nada
estava satisfeito com o governo de Floriano. As mazelas do governo republicano,
27 Ibid., p.155-156. 28 Ibid., p. 130.
Lima não se cansa de causticá-las por toda a sua obra.29
Sobre esse posicionamento declara Sevcenko: A crítica renitente de Lima
Barreto era para: o Jacobinismo, o positivismo (enquanto corrente política e não
filosófica), o florianismo, o herminismo e o republicanismo exaltado. Todos
concorriam para uma forma de governo ultra centralizada por fermentos
anticlericais e antilusitanos. O que chocava o escritor era o caráter de discurso
fechado dessas ideologias, que tinham por virtude dividir os homem em
correligionários e inimigos.30
Além de tudo isso, o Marechal Floriano Peixoto era um militar, como o
próprio título declara. E sendo assim, inevitavelmente seria julgado pelo crivo do
filho de Dona Amália Augusta. Lima Barreto deixa claro sua antipatia aos militares
em seu Diário Íntimo:
(...) à Secretaria da Guerra. O que me aborrece mais na vida é a secretaria. Não é pelos
companheiros, não é pelos diretores. É pela ambiência militar, onde me sinto deslocado e em
contradição com a minha consciência. (...). Demais, o meu feitio é tão oposto àquela atmosfera de
violência, de opressão, de bajulação, que me enche de revolta.31
Diante esse desabafo é impossível não relacionar a vida profissional –
enquanto funcionário da Secretaria da Guerra – de Lima Barreto a de seu
personagem, major Policarpo Quaresma que, no início do romance, também
desempenhava tal função. E não é só isso, o sentimento do criador e da criação, em
relação ao emprego, era bem similar. Na ficção o narrador relata da seguinte forma o
cotidiano do Major: E desse modo ele ia levando a vida, metade na repartição, sem
ser compreendido, e a outra metade em casa, também sem ser compreendido.32 Na
“vida real” de Lima Barreto, um estudioso do assunto, Moisés Gicovate, diz que o
autor dividia seu tempo entre o enfado da repartição e as agruras de um lar
29 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. V. 30 ibid., cap. V. 31 BARRETO, Lima. Diário Íntimo. São Paulo: Mérito S. A., 1953. P. 118. 32 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997. p.24.
infeliz.33 Assim, fica clara a relação entre o cotidiano e as experiências de Lima com
a elaboração de alguns personagens. Através dos quais era revelado de maneira mais
verossímil os mais diversos meios. Já que, transportar para a ficção elementos
proeminentes do lugar onde o próprio autor trabalha geram maior credibilidade aos
relatos feitos sobre tal meio.
Não foi só em Triste Fim de Policarpo Quaresma que o funcionarismo
público foi exposto, Lima transportou para os seus romances algumas figuras que
aí [Secretaria de Guerra] conhecera, fixando com ironia o tipo de trabalho
burocrático.34 Em Gonzaga de Sá o personagem Augusto Machado se confunde
com o próprio romancista quando fala do trabalho:
(...) senti bem que todos nós nascemos para empregado público. Foi a reflexão que fiz, ao me julgar
tão em mim, quando, após a posse e o compromisso ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade
na mesa que determinaram (...). Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos [ a mesma idade de Lima
Barreto, ao ingressar no funcionalismo] (...) julguei nascido para o ofício de auxiliar o Estado, com a
minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua missão de regular a marcha e a atividade
da nação.35
Além dos personagens ligados ao funcionarismo público, muitos outros e das
mais diversas áreas e camadas sociais habitaram as páginas dos romances de Lima
Barreto.
A visão da cidade que Lima Barreto apresenta é tão ampla que nela cabem representantes de todos os
grupos sociais: presidentes, ditadores, militares, honestos ou desonestos doutores, moças de Botafogo
(...), meninas de subúrbio, poetas empobrecidos, músicos não reconhecidos, prostitutas infelizes ou de
sucesso, aposentados, donas-de-casa, vagabundos, bêbados e loucos. Mas são aqueles que a sociedade
rejeita que constituem o centro do relato nos romances e contos, a eles se colocando a visão condutora
do narrador.36
33 GICOVATE, Moisés. Lima Barreto. Uma Vida Atormentada. São Paulo: Melhoramentos. p. 24. 34 Ibid. p. 24. 35 BARRETO, Lima. Gonzaga de Sá. In: BARBASO, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de janeiro: Civilização Brasileira S. A, 1952. p. 112-113. 36 RESENDE, Beatriz. Lima Barreto: A Opção pela Marginália. In: SCHWARZ, Roberto. (org.). Os Pobres na Literatura Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983. p.75.
Em Triste Fim de Policarpo Quaresma também existe a presença de
indivíduos que estão à margem da sociedade. Entre eles estão o músico
incompreendido Ricardo Coração dos outros, a “preta velha” Maria Rita uma ex-
escrava, e o empregado do sítio Sossego Anastácio. Através desses três personagens,
Lima Barreto evoca problemas sociais presentes no Rio de Janeiro de sua época,
mas que infelizmente ainda fazem parte da nossa sociedade. O primeiro deles diz
respeito à incompreensão aos artistas, Ricardo Coração dos Outros por causa de seu
violão nunca obteria respeito e posição dentro da sociedade, já que a reação contra
a serenata é centrada no instrumento que a simboliza: o violão. Sendo por
excelência o instrumento popular (...) o violão passou a significar, por si só, um
sinônimo de vadiagem.37
Já o segundo problema refere-se a questão racial do negro, que
particularmente influenciou a vida do próprio Lima Barreto, e, por isso, fez parte de
alguns de seus romances, Doera-lhe profundamente o comentário infeliz de um
colega veterano, ao saber o seu nome. ‘Vejam só!’ disse ele, ‘um mulato ter a
audácia de usar o nome do Rei de Portugal!38. Em Triste Fim de Policarpo
Quaresma um dos personagens secundários que trazem a questão racial é a ex-
escrava, Maria Rita: (...) a preta velha, talvez com grandes saudades do tempo em
que era escrava e ama de alguma grande casa, farta e rica (...)39 Nesta narrativa é
clara a ironia do autor, tão característica a sua obra, sendo até comparado, por isso, a
Machado de Assis. Esse tom de ironia não se repete na descrição de um “preto
africano”, muito pelo contrário a ela é dado um caráter fúnebre:
Era uma singular situação, a daquele preto africano, ainda certamente pouco esquecido das dores do
seu longo cativeiro, lançando mão dos resíduos de suas ingênuas crenças tribais, resíduos que tão a
37 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. I. 38 GICOVATE, op. cit., p.19. 39 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997. p.34.
custo tinham resistido ao seu transplante forçado para terras de outros deuses – e empregando-os na
consolação dos seus senhores de outro tempo.40
Outra maneira do narrador transmitir a situação do negro é também relevante
de se tratar, pois em dois momentos distintos do romance a cor constitui um
agravante a condição social dos personagens: Aborrecia-se com o rival, por dois
fatos: primeiro: pelo sujeito ser preto; e segundo por causa de suas teorias (...). teve
pena daquela pobre mulher, duas vezes triste na sua condição e na sua cor.41
O último problema, mas não menos importante, engloba além dos infortúnios
do caboclo a questão da pobreza como um todo. Esta foi agravada pela remodelação
da capital carioca por Pereira Passos, dos casarões no centro da cidade a população
pobre foi jogada para as encostas dos morros. Lima Barreto descreve o novo habit
dos menos favorecidos, quando relata a chegada de Quaresma à casa da ex-escrava,
Maria Rita:
O tempo estivera seco e por isso se podia andar por ele. Para além do caminho, estendia-se a vasta
região de mangues, uma zona imensa, triste e feia, que vai até ao fundo da baía e, no horizonte,
morre ao sopé das montanhas azuis de Petrópolis. Chegaram à casa da velha. Era baixa, caiada e
coberta com as pesadas telhas portuguesas. Ficava um pouco afastada da estrada.42
Quanto ao caboclo percebe-se a intenção de Lima em exaltar a cultura
popular do homem rural: -Sabes o que estou fazendo, Anastácio? -Não “sinhô”. -
Estou vendo se choveu muito. -Para que isso, patrão? A gente sabe logo “de olho’’
quando choveu muito ou pouco... Isso de plantar é capinar, pôr a semente na terra,
deixar crescer e apanhar... (...) -Não é assim, “seu majó”. Não se mete a enxada
pela terra a dentro. É de leve, assim43. Apesar disso, não era só a exaltação que fazia
parte do entendimento que Lima tinha do meio rural, Lima Barreto perscrutando a
vida das cidades e dos subúrbios, faz refluir entretanto a sua preocupação para a
40 Ibid., p. 152. 41 Ibid., p. 69 e 85. 42 Ibid., p. 33. 43 Ibid., p.77.
população rural do país, que ele sempre encarou como núcleo vital por
excelência da nação e cujo triste destino ele procurou mitigar.44
A indignação do autor transparece, além disso, através de uma personagem
feminina do romance. Olga em estadia no campo vê toda a miséria que o cerca: O
que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza
das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ela tinha dos
roceiros idéia de que eram felizes, saudáveis e alegres.45. Tal alienação pode ser
entendida como uma crítica geral à população e ao governo por não voltarem os
olhos para um ramo da sociedade tão importante à economia do país.
Todos esses problemas sociais que acompanham o desenrolar do romance,
refletem a realidade de uma grande massa, mas dizem respeito a uma pequena
parcela de personagens em Triste Fim de Policarpo Quaresma, pois a grande
maioria dos personagens do livro encontram-se em posição de maior destaque
dentro da sociedade. A respeito disso o próprio Lima declarou a Revista dos
Tribunais, sobre o meio em que se passa o romance:
Na classe média. Não posso sair dela. Tinha mesmo vontade de sair, mas não me é possível. Por
exemplo, eu desejava fazer um livro em que entrasse um presidente da República, como Sr.
Venceslau Brás, que tem uma sala de cinematógrafo e um gramofone em palácio. Não era bem que
eu o comparasse a Luís II, da Baviera, com o seu teatro para ele só, a ouvir Wagner? Hein? Mas
como te dizia... desde o meu Isaías Caminha, que só trato de obedecer à regra do meu Taine: a obra
de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. É este o meu escopo. Vim para a
literatura com todo o desinteresse e com toda a coragem. O fim da minha vida são as letras. Eu não
peço delas senão aquilo que elas me podem dar: glória! (...) Não quero ser deputado, não quero ser
senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis, não lhes peço
gloríolas, peço-lhes coisa sólida e duradoura. E posso falar de cadeira, porque se eu quisesse ter essas
histórias, as teria de sobra. Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas me vão dar
44 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. VI. 45 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997. p. 102.
muita coisa. É o que me faz viver mergulhado nos meus desgostos, nas minhas mágoas, nos meus
arrependimentos...46
A partir disso, pode-se perceber, com clareza, a importância que a literatura
tinha na vida de Lima Barreto. Foi através dela que o autor deixou o registro de sua
missão, cumprida apesar de todas as contrariedades, além de ter feito dela
instrumento e fim de sua ação. O filho do almoxarife conseguiu utilizar a literatura
através do retrato maciço e condensado do presente, carregado do máximo de
registros e notações dos vários níveis em que o saber de seu tempo permitia captar e
compreender o real. A realidade, diria Lima Barreto, parafraseando o seu idolatrado
Dostoievsky, é mais fantástica do que tudo o que a nossa inteligência possa
fantasiar. Através desse método contundente, o autor podia transmitir direta e
rapidamente aos seus leitores a sua concepção e o seu sentimento relativo aos
eventos que o circundavam.47
Em complementação a isso diz Bernardo de Mendonça:
Em ambas as perspectivas a história de Lima Barreto é sabidamente valiosa: de um lado, por se situar,
com uma intercionalidade acirrada pelas circunstâncias, no centro das trocas entre literatura e vida –
em auto exposição que se expandiu do texto para as ruas onde apresentou, a um Rio de Janeiro
paroquial, a crítica ao dia-a-dia da cidade e do país e o desaprumo do corpo após a longa ronda pelos
bares; de outro, por não apenas protagonizar mas contar, com raro detalhamento narrativo, o ponto-de-
vista do perdedor no conflito entre arte e mercado.48
A discussão em torno da literatura invade o romance, Lima Barreto realmente
trazia para seus textos os mais diversos elementos, que compõem uma sociedade,
dos quais ele tinha a necessidade de expor seu pensamento e sua crítica. Em Triste
Fim de Policarpo Quaresma há exemplos dessa metaliteratura:
46 BARRETO, Lima. Diário Íntimo. São Paulo: Mérito S. A., 1953. p. 128. 47 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. V. 48 MENDONÇA, Bernardo de. ( Org. ).Lima Barreto. Um Longo Sonho do Futuro – Diários, Cartas, Entrevistas e Confissões Dispersas. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993. p. 15.
(...) nas imediações morava um literato, teimoso cultivador dos contos e canções populares do Brasil.
Foram a ele. Era um velho poeta que teve sua fama aí pelos setenta e tantos, homem doce e ingênuo
que se deixara esquecer em vida, como poeta, e agora se entretinha em publicar coleções que ninguém
lia, de contos, canções, adágios e ditados populares.49
Nessa passagem Lima Barreto transporta para um personagem secundário suas
aflições em relação ao descaso pela literatura. Mas é interessante notar que o tal
poeta, mesmo que tarde, teve sua fama. Esta que Lima Barreto tanto buscou em
vida, mas que só a obteve após a morte.
Já em outro trecho do livro a literatura aparece como vítima de alguns literatos
incapazes: A “réclame” já não bastava; o rival a empregava também. Se ele tivesse
um homem notável, um grande literato, que escrevesse um artigo sobre ele e a sua
obra, a vitória estava certa. Era difícil encontrar. Esses nossos literatos eram tão
tolos e viviam tão absorvidos em coisas francesas(...).50 Essa constatação revela o
oposto do que, para Lima, deveria ser o homem de letras. Ele que teve sua própria
concepção de arte, acreditava que ela era sinônimo de verdade e sinceridade e que
essa deveria ser a forma de transmitir aos outros as emoções.
A partir disso, seus personagens eram criados, ora absorvendo os sentimentos e
angustias, ora lhe iam na alma e ora através de declarada transposição de pessoas
reais da sociedade carioca para as páginas dos romances. Em Recordações do
Escrivão Isaías Caminha até João do Rio aparece retratado no personagem Raul
Gusmão.
(...) Isaías Caminha (...) tratando-se de um livro que punha a nu as mediocridades de meio jornalístico,
em personagens mal disfarçados, silenciaram os jornais (...). Medeiros e Albuquerque servia o
primeiro crítico a tratar dele, na A Notícia. Apesar de reconhecer que Lima Barreto ‘começa pelo fim,
aparece como um escritor feito’, chega à conclusão de que se tratava de um ‘mau romance e um mau
49 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997. p. 35. 50 Ibid., p. 69.
panfleto’. O crime de Lima Barreto fôra tentar destruir falsos deuses. No dia seguinte, escreve carta ao
crítico, defendendo a sua obra.51
Através dessa obra, é evidente a intenção de satirizar o Correio da Manhã,
com isso Lima Barreto esperava produzir impacto, seu desejo era de escandalizar.
Nesse livro, declarou um ataque furioso aos donos da política, aos mandarins da
literatura e do jornalismo, a todos os que representam, na sua visão de revoltado
contra a vida, uma barreira intransponível.
Além da crítica explícita feita por Lima, recebe destaque também sua
linguagem, que inovou e chocou, sendo acusado pelos puristas de desleixo em
relação à linguagem, quando não de subscritor. O que o criador de Clara dos Anjos
fazia era passar para o papel literalmente a fala dos personagens, com o uso da
linguagem coloquial, -Tá ‘nas foias’, sim sinhô 52 e de estrangeirismo, -‘Per la
madonna!’ Alemão é língua, agora esse acujelê, ‘ecco’!53. Esse respeito à fala da
personagem é um modo de revelar seu nível sócio-econômico, cultural e também
suas origens. Dessa forma, é evidente a conexão entre os conteúdos da obra e sua
linguagem. Adotando como recursos literários a mistura de estilos e a linguagem
despojada, o autor garantia a seus textos a eficácia pretendida. Por um lado,
revestia os personagens populares e as vítimas da abominação social de uma
dignidade superior e universal, e de outro, assegurava a mais ampla difusão de sua
obra e de seus ideais.54
Por outro lado, toda essa inovação servia como crítica a linguagem casta e
empolada, as quais Lima Barreto hostilizava abertamente. Para ele as preocupações
gramaticais e estilísticas levavam à deturpação da naturalidade dos personagens,
bem como a fantasia dos cenários. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma essa
crítica fica clara na seguinte passagem:
51 GICOVATE, op. cit., p. 29. 52 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997.p. 116. 53 Ibid., p. 58. 54 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. V.
De fato, ele estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para o clássico um grande artigo
(...). O seu último truc intelectual era este do clássico. Buscava nisto uma distinção, uma separação
intelectual desses meninos por aí que escrevem contos e romances nos jornais. Ele, um sábio, e
sobretudo, um doutor, não podia escrever da mesma que eles.55
Para finalizar esta breve análise sobre Triste Fim de Policarpo Quaresma é
indispensável tratar da modernização do Rio de Janeiro, que tanto abalou as
estruturas da sociedade contemporânea a Lima Barreto e que inevitavelmente estão
presentes em seu romance em forma de crítica. Já que ele colocou-se em posição
radicalmente contra a forma como se processava, afinal por um lado havia os
homens ricos, os agentes imobiliários, os pseudo-urbanistas, que se empenhavam em
loteamentos para valorizar e especular, não estando preocupados com a natureza, só
pensavam em ganhar dinheiro, à custa dos favores da prefeitura. E por outro lado
havia os arrabaldes e subúrbios em pleno estado de desolação: Os subúrbios do Rio
de Janeiro são a mais curiosa coisa em matéria de edificação da cidade (...). Nada
mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado.56
A urbanização, as relações sociais, os problemas políticos e culturais, enfim
inúmeros questões de relevância foram tratadas pelo mulato carioca, em Triste Fim
de Policarpo Quaresma. Obra considerada por muitos críticos como a mais bem
acabada em toda a sua produção artística. Apesar disso tudo, Lima Barreto só obteve
a tão desejada glória nas letras depois de sua morte, tendo em vida apenas
frustrações e revoltas por não conseguir o devido reconhecimento da sociedade.
55 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997.p 137. 56 Ibid., p. 83.
1.2 O HOMEM DA CABEÇA DE PAPELÃO
João do Rio, o autor de O Homem da Cabeça de Papelão, nasceu no Rio de
Janeiro em 5 de agosto de 1881. Ele era filho do professor de mecânica e
astronomia, Dr. Alfredo Coelho Barreto, do qual herdou o gosto pelo saber e pela
filosofia, e de D. Florência Cristóvão dos Santos Barreto, que possuía uma alegria e
um egocentrismo de atriz, traços que o filho carregou consigo por toda a vida.
A carreira de João do Rio começou quando ele tinha apenas 17 anos no jornal
Cidade do Rio, mas é em 1900, em outro jornal, Gazeta de Notícias, que sua
popularidade jornalística se expande. Outro jornal em que ele trabalhou foi O País e
o último, que o próprio Paulo Barreto fundou em 1920, A Pátria. Este o autor dirigiu
por um ano, sendo interrompido pela morte que o carregou, ao sair da redação, de
volta para casa, dentro de um táxi.
Uma vida curta mas cheia das mais incríveis façanhas e inovações, a começar
pelo abandono de seu verdadeiro nome: João Paulo Alberto Coelho Barreto. O
pseudônimo João do Rio, com o qual assinava suas reportagens, tomou conta de
Paulo Barreto, que foi aos poucos deixando de existir, para dar lugar a um homem
de múltiplas facetas.
A primeira dessas facetas está ligada ao próprio jornalismo, no qual João do
Rio não apenas inovou como deixou sua marca registrada para toda uma futura
geração de repórteres. Antes dele a crônica era feita dentro de um gabinete fechado,
ele inovou indo para as ruas, para captar a alma encantadora das ruas, e com isso
trouxe para imprensa da época um tipo de personagem que não a freqüentava. João
do Rio mostrou o outro lado da cidade, com seus macumbeiros, ciganos, amoladores
de faca, o pessoal que cantava de madrugada em lugares esquisitos. Com isso ele
trouxe todo o comportamento da sociedade aparentemente desimportante. Para
transportar essa realidade João do Rio freqüentava desde os lugares mais
marginalizados, como uma penitenciária para entrevistar um criminoso, até os
lugares mais sofisticados, para contar as fofocas do baile do fim de semana. Enfim,
ele introduziu a reportagem moderna, interessada nos aspectos sociais e humanos da
vida urbana.
A segunda faceta do filho do Dr. Alfredo Coelho Barreto diz respeito a sua
própria condição enquanto ser humano, a de uma pessoa extremamente ousada em
tudo o que fazia. A começar por sua aparência, que revelava um total
descomprometimento com as formalidades da sociedade carioca do final do século
XIX e início do século XX. Ao usar o rosto raspado num período em que todo o
homem, com exceção dos padres, usava barba ou bigode, e ao vestir roupas
extravagantes, como o colete cor de cereja que certa vez usou no municipal e por
isso recebeu inúmeras vaias, João do Rio de forma nenhuma passava desapercebido.
Além de tudo isso, ele ainda era mulato e homossexual e por isso carregava consigo
todo o preconceito de uma época.
Apesar de todas essas características, que já chamavam a atenção, João do
Rio era também flâneur, cuja definição ele próprio descreve no livro Alma
Encantadora das Ruas:
Flanar (...) é ser vagabundo, é refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao
da vadiagem, da vagabundagem, talvez flanar é a distinção de perambular com inteligência, nada
como o inútil para ser artístico, daí desocupado flâneur ter sempre em mente dez mil coisas
necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas, flanar hei por aí de manhã, de
dia, a noite, flanar.57
A última faceta de João do Rio, mas não menos importante, é a de literato.
Nessa função ele escreveu romance, contos e peças teatrais, os quais, segundo Luís
Martins, exalam um perfume capitoso de sensualismo e decadência, um pouco de
orientalismo esquisito e preciso, há mesmo riqueza e, por vezes, exuberância.58
Esses elementos, tão peculiares, na verdade significavam uma abordagem inédita e
curiosa da homossexualidade, já que, raramente, pode-se encontrar na literatura
57 RIO, João. Alma Encantadora das Ruas. IN MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. 58 MARTINS, op.cit. p.12.
brasileira tal posicionamento. Dessa forma, aquilo que pode parecer futilidade em
João do Rio deveria ser visto como uma busca desenfreada por uma estilística
homossexual. Esse estilo que foi profundamente influenciado pela vivência de
marginal que ele teve e que revela uma literatura do ponto de vista da margem.
Além desse estilo inovador, o autor de As Religiões no Rio também tratava de
um tema um tanto específico: a ficção científica. Tal assunto é visto como
premonição no conto O Dia de um Homem em 1920, escrito em 1910. Nessa obra o
autor se antecipa ao tempo, inventando o rádio, a televisão, a navalha elétrica, as
vitaminas, o táxi-aéreos e outras maravilhas da técnica contemporânea; e chega a
pressentir os cérebros eletrônicos. Se houvesse uma máquina de pensar? Mas ainda
não há.59
Esse conto, sem sombra de dúvida, é uma das criações mais surpreendentes
da literatura brasileira. Apesar disso, a importância e a contribuição de João do Rio
para a arte literária vão muito além disso, entrando na questão social e política,
retratada em sua ficção, da sociedade carioca de seu tempo. Em decorrência disso,
na obra de João do Rio é difícil distinguir onde termina o jornalismo e começa a
literatura; ele conseguia realizar, freqüentemente, um acordo entre as duas formas
de atividade intelectual.60 E ao realizar essa tarefa tinha como cenário, como
matéria, como assunto permanente à cidade do Rio de Janeiro, o seu mundo literário.
Com isso, sua obra constituiu um dos mais minuciosos, vivos e válidos dos retratos
de uma época, através dos múltiplos aspectos da vida carioca. Ele tinha a
preocupação do fato social, do documento humano. O que ele viu, registrou,
comentou e tentou analisar foi o meio e o momento em que viveu (...). Paulo Barreto
– até no teatro, no romance e no conto – foi sobretudo o cronista, o cronista de um
momento, de uma atmosfera social (...).61
59 RIO, João do. O Dia de um Homem em 1920, In Vida Vertiginosa. IN MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. p.73. 60 BROCA, Brito. . IN MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 11. 61 MARTINS, op. cit. p. 14 e 16.
Quanto ao gênero romance, João Paulo Alberto Coelho Barreto escreveu apenas um:
A Correspondência de uma Estação de Cura, em 1918. Já no teatro sua contribuição
foi um pouco maior, com as tramas: A Bela Mme, Vargas e Eva. Sobre o papel desse
autor nas peças teatrais, a respeitável crítica de teatro, Bárbara Heliodoro afirma: Ele
tem como uma das melhores características o diálogo, que ele consegue fazê-lo de
forma a ter graça carioca, sob todos esses aspectos o João do Rio é um valor a ser
muito respeitado pela nossa dramaturgia.62 Apesar de todas essas obras, o gênero
que mais foi produzido por João do Rio foi o conto, com os seguintes livros: Dentro
da Noite, A Mulher e os Espelhos, Rosário de Ilusões e O Bebê de Tarlatana Rosa.
Ao mencionar todas essas obras é impossível não falar da linguagem utilizada
pelo autor. Para Carmen Lúcia Tindó Secco:
O estilo de João do Rio, cheio de metáforas que semanticamente denotam o brilho e o gosto pela
ostentação, cheio de rebuscamentos, de floreios verbais, de torneios de frase, pode ser chamado de art-
nouveau (...). Literariamente, o discurso de João do Rio (...) combina os termos clínicos da linguagem
científica própria do Naturalismo (...). Apropria-se de símbolos freqüentemente utilizados pelos
simbolistas e decadentes, como a morte e a noite (...). A noite em João do Rio representa (...) o
submundo.63
Ainda dentro do discurso de João do Rio encontra-se a continuidade a uma
forma acadêmica da produção literária, uma linguagem bacharelesca, cheia dos
modismos literários e do vocabulário científico. Além disso, ele recorre
freqüentemente aos estrangeirismos ( fashion, high life, snob, smart ) ao emprego de
paradoxos, bem como ao uso de adjetivos e de expressões, que se opõem às noções
de vulgaridade de comum e de banal e, por isso, sugerem as idéias de aristocracia,
de elite e de luxo.64
62 Documentário GNT – exibido em setembro de 2001. 63 SECCO, Carmen Lúcia Tindó. Morte e Prazer em João do Rio. Rio de Janeiro: Instituto Estadual do Livro, 1997. p. 28. 64 Ibid. , p. 43.
Quanto ao emprego dos paradoxos João do Rio é influenciado por Oscar
Wilde, de quem foi um dos primeiros leitores e vulgarizadores no Brasil. Além
disso, todo o estilo dândi e art-nouveau do escritor inglês são assimilados pelo
escritor carioca. Apesar de tudo isso e apesar de usar o método da ironia crítica do
autor de The Picture of Dorian Gray, bem como usar a ironia e a decadência que
aparecem nas comédias francesas do fim de século, João do Rio não procurou
retratar a sociedade inglesa nem à francesa. Ele utilizou os mesmos recursos: de
ponto de vista, do culto da frase pronta, da frase de efeito, da brincadeira sofisticada,
mas retratando uma sociedade muito brasileira.
Nessa tarefa de retratar a nossa sociedade, João do Rio assume o papel de
cronista dentro da ficção, e assim sendo transporta para algumas de suas obras a
caótica estrutura social e política de sua época. Um exemplo disso é o conto O
Homem da Cabeça de Papelão, retirado do livro Rosário de Ilusões, de 1919. Nesta
obra o protagonista é Antenor, um personagem cíclico, que no início do conto
chama a atenção de todos por ser um homem justo e por ter um defeito horrível:
Antenor só dizia a verdade.65 No decorrer da história, por influência e por ser tão
duramente criticado pelas pessoas de seu convívio, a começar por sua mãe, Antenor
modifica-se, ele passa a agir como todos os “cidadãos de respeito”. Antenor não
pensava. Antenor agia como os outros.66 E foi dessa forma que o rapaz conseguiu
toda a admiração e prestígio da sociedade da capital do país do Sol.
Essa metáfora é uma nítida menção ao Rio de Janeiro, que na época de João
do Rio era a capital do Brasil. Dessa forma, sem mencionar explicitamente a
sociedade carioca, o autor tem mais liberdade para expor suas idéias. Como a crítica
feita pelo narrador do conto às influências européias sobre o nosso país:
65 RIO, João do. O Homem da Cabeça de Papelão. IN : MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 170. 66 Ibid., p. 175.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente
em idéias e práticas. (...) havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para
matar tempo, cabarés fatigados, jornais, bondes, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a
Bôlsa, o Gôverno, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia
pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a
habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de um imenso bom-senso. Bom-Senso! Se não
fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom-Senso! (...) Enquanto usara calções, os
amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês
com convicção, mesmo falando mal.67
Através desse relato, o narrador critica os mecanismos das dependências
culturais que dominavam a sociedade brasileira. Nesse contexto a própria
modernização do Rio ou o civiliza-se são equivalentes a uma europeização dos usos
e costumes. Existe, assim, um clima de bovarismo, porque as elites “vivem” uma
ficção, passando a agir segundo os valores culturais de Paris e de Londres.68
A partir dessa influência o discurso de João do Rio, enquanto projeto estético
e ideológico, insere-se dentro de um processo de conhecimento e interpretação da
realidade urbano do Rio, de forma a criticar a elite burguesa que se pautava por
modelos culturais franceses. Isso fica ainda mais claro na construção dos próprios
personagens, que se encontram descaracterizados e que desejam e agem segundo os
modelos culturais importados. A moda para eles (personagens) existe como negação
do próprio corpo e do “ser brasileiro”. Em O Homem da Cabeça de Papelão todos
os personagens secundários agem dessa forma, sendo Antenor, apenas no início do
conto, o único a negar toda a falta de autonomia presente na sociedade.
Todos esses elementos, apresentados por João do Rio, demonstram a sua
importância enquanto revelador da sociedade carioca: (...) compreende-se que, para
ele, uma das poucas saídas fosse lastimar o prosaísmo do novo século. Isso explica
67 Ibid., p. 169-170. 68 SECCO, op. cit., p. 25.
a obsessão pela decadência que acabou transformando esse Autor numa testemunha
hoje indispensável à compreensão da fisionomia social e urbana do Brasil daquele
período. 69
Tal fisionomia é enriquecida através do fascínio pela massa selvagem, que
João do Rio gostava de freqüentar, de refletir e de transcrever em sua obra,
colocando-se ao nível da marginalidade. (...) miséria anônima das ruas, denunciou
as condições miseráveis do proletariado na época e condenou a injustiça social.70
Esses temas rechearam as obras de João do Rio, em O Homem da Cabeça de
Papelão, apesar de ser um conto e por isso ter uma linguagem muito mais objetiva e
direta, o autor não ignorou a marginalidade nem as péssimas condições a que um
trabalhador era submetido. No trecho: De modo que estes eram mendigos e
parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas
restrições ao parasitismo71, João do Rio expõe sua crítica em relação aos
estrangeiros, que vinham para o Rio de Janeiro ocupar o lugar do povo nativo. Já em
relação aos trabalhadores o autor expõe algumas das dificuldades que eles
enfrentavam: _ Então quer ser vagabundo? _ Quero trabalhar, _ vem dar na mesma
coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e
posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando _ é vagabundo.72
Outro elemento que recebeu a dura crítica do filho de D. Florência Cristóvão dos
Santos Barreto foi a industrialização. No conto O Homem da Cabeça de Papelão são
exatamente as cabeças de papelão, que tornam os homens relapsos e corruptos, as
produzidas pela fábrica: _ As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações
por série. Vendem-se muito.73
Além disso o conto abrange questões políticas como a disputa de interesses
entre os políticos: Foi eleito deputado por todos e, especialmente, pelo presidente
69 RESENDE, op. cit., p. 69. 70 MARTINS, op. cit., p. 14. 71 RIO, João do. O Homem da Cabeça de Papelão. IN : MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. p.169. 72 Ibid., p. 171. 73 Ibid., p. 176.
da República _ a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria
outro.74 Outro foco de crítica era o apadrinhamento, que cerceava toda a sociedade:
Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel, você tem tudo nas mãos.
Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.75
Apesar de todo o enfoque social e político, o conto possui outras riquezas
indispensáveis de serem comentadas. A primeira delas diz respeito ao realismo
mágico, que engloba desde o protagonista tirar a sua própria cabeça de lugar e
entregá-la a relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão para ser
“consertada”, até o uso da cabeça de papelão. Martins explica esse recurso como
uma forma que João do Rio tinha de chocar seu leitor: Em seus contos – alguns dos
quais primorosos e todos, pelo menos, interessantes – Paulo Barreto procura a nota
impressionante do estranho e do monstruoso, numa evidente preocupação de chocar
o leitor.76
Por fim tem-se o espaço onde o conto é desenvolvido, em João do Rio o local
em que se passa a ação é muito significativo, já que essa acontece em sua grande
maioria em lugares públicos e em dias festivos. Esse detalhe aparentemente
irrelevante é de grande importância para a análise da ação, pois a vida íntima dos
personagens não se dá como tradicionalmente acontece na literatura, ou seja, em um
ambiente fechado ou em um quarto, por exemplo, ela acontece sim em público. Em
O Homem da Cabeça de Papelão não é diferente, o próprio clímax do conto é na rua
do centro da cidade.
Ainda sobre esse assunto, Carmen Lúcia Tindó Secco afirma: (...) cafés,
bares, hotéis, salões de recepção, clubes. Tais espaços implicam ‘não-
permanência’, ‘passagem’, ‘trânsito’. Deste modo, metaforizam todo o espaço de
‘transição’ em que se encontrava essa sociedade do início do século.77
74 Ibid., p. 175-176. 75 Ibid., p. 171. 76 MARTINS, op. cit., p. 12. 77 SECCO, op. cit., p. 34.
1.3 LIMA BARRETO X JOÃO DO RIO
Lima Barreto e João do Rio nasceram no mesmo ano, 1881, e na mesma
cidade, Rio de Janeiro, tendo, portanto, a mesma época e o mesmo cenário como
enfoques principais de suas obras. Dentro deste contexto, a República foi um dos
temas utilizados e criticados pelos dois autores. Em Triste Fim de Policarpo
Quaresma, como já foi citado, o novo sistema político e as conseqüências advindas
dele são freqüentemente expostos ao leitor de forma irônica e como um alerta. Já em
João do Rio é em uma crônica, Zé-Pereira, que a República fica submissa ao crivo
do autor. (...) o Zé-Pereira é símbolo da República e o carnaval domina o ano
inteiro. O narrador desta crônica satiriza, então, os princípios liberais que surgem
como o sistema republicano, julgando-o responsável pela crescente massificação e
vulgarização dos hábitos e costumes que antes pertenciam à elite.78
Apesar desse posicionamento político semelhante, os dois literatos,
convivendo no mesmo espaço e no mesmo tempo, não mantinham um bom
relacionamento. Na verdade, havia um certo confronto entre os dois. Isso fica claro
no livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha, nele João do Rio, com o nome
de Raul Gusmão, é um dos personagens satirizados e até ridicularizados dentro do
romance:
(...) o Raul Gusmão (...). Toda a sua pessoa se movia, se esforçava extraordinariamente; todos os seus
músculos entravam em ação, toda a energia da sua vida se aplicava em articular os sons e sempre,
quando falava, era como se falasse pela primeira vez, como indivíduo e como espécie. (...) tanto mais
que nos tratou, a mim e ao padeiro, com tal desdém, com tal superioridade que fiquei entibiado,
esmagado, diante do retrato, que dele fiz infinamente, de um grande literato, universal e aclamado,
espécie de Balzac ou Dickens, apesar de seus guinchos de Pithecantropus. (...) e, por fim, cheio de
insolência (...) chamou o caixeiro e encomendou meio cálice de peppermit e uma dose de xerez.
Simulando não perceber o nosso espanto. (...) ao traçar estas linhas, estou a vê-lo erguer-se da cadeira
com visível esforço, (...), com o corpanzil encostado à bengala vergada (...) eu não podia adivinhar que
78 SECCO, op. cit., p. 45.
o Rio contivesse exemplar tão curioso do gênero humano, uma desencontrada mistura de porco e de
símio adiantado, ainda por cima jornalista ou coisa que o valha (...).79
Toda essa crítica dirigida a João do Rio é confirmada pelo próprio Lima
Barreto em uma de suas cartas ao “estimado Antônio”:
Rio, 3 de abril de 1909. Querido Antônio (...) O tal de Paulo Barreto chegou. Falou a respeito do
livro ao João. Não achas engraçado que ele se tivesse lembrado do caso? Surpreendeu-me que ele
soubesse do assunto do livro. Não me incomodei com a história. Sabes bem como o Paulo é covarde
de toda a natureza. Ele imaginou no primeiro momento que se tratasse de alguma pergunta sem
alcance, mas, tendo sabido que era um livro, arrependeu-se e correu ao João para ver se a maciava a
cousa. Gostei até, porque justifica os deboches que lhe faço.80
Com esse transporte, declarado, de pessoas reais, da sociedade carioca, para a
ficção, Lima Barreto recebeu inúmeras repressões, seu gesto foi visto, por alguns
críticos da época, como pobreza literária. Em relação a isso, o autor defendeu-se
dizendo: Na questão dos personagens há uma simples questão de momento. Caso o
livro consiga viver, dentro de curto prazo ninguém mais se lembrara de apontar tal
ou qual pessoa conhecida como sendo tal ou qual personagem.81
Por essa breve resposta, pode-se perceber o desejo que motivou toda a vida de
Lima Barreto, ter glória nas letras, mas que infelizmente, em vida, nunca a
alcançou. Esse insucesso pode ser visto como justificativa para tanto desprezo em
relação a João do Rio. Pois este, ao contrário de Lima, fez parte da Academia
Brasileira de letras, escreveu o livro As Religiões do Rio, que se tornou um best-
seller; enfim, teve em vida todo o reconhecimento da sociedade, inclusive em seu
funeral. Nesse, em 1921, Paulo Barreto recebeu as maiores homenagens póstumas
que a capital brasileira já havia presenciado, mais de cem mil pessoas, em uma
cidade com população total de pouco mais de um milhão de habitantes, foi a seu
79 BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997. p. 54-56. 80 BARRETO, Lima. Um longo sonho do futuro: diários, cartas, entrevista e confissões dispersas. (Org.) MENDONÇA, Bernardo. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993. p. 214-215. 81 Ibid., p. 239.
enterro. Apesar disso tudo o autor do conto O Homem da Cabeça de Papelão foi
sendo esquecido. A morte trouxe para João do Rio o esquecimento, enquanto Lima
Barreto com ela teve toda a fama e o reconhecimento que tanto buscou em vida.
Apesar dessa oposição, João do Rio e Lima Barreto tinham um
posicionamento similar em relação ao papel da literatura. Os dois autores
produziram obras que além de retratarem uma época específica eram também
atuantes. Lima fazia o que Sevcenko chamou de Literatura como missão,
comprometida com a realidade e com o social. João do Rio, por sua vez, desenvolvia
uma espécie de Literatura de resistência se opondo ao movimento de repressão da
sua sociedade, transportando, dessa forma, a marginalidade para o meio literário.
2. O HERÓI NA HISTÓRIA E NA LITERATURA
No imaginário coletivo a figura do herói aparece como símbolo de esperança,
sendo ele capaz de, magicamente, fundir todas as múltiplas partes que compõem a
realização de um ideal de libertação e emancipação de um país, de uma classe social,
de uma etnia, de grupos religiosos e de uma infinidade de instituições e
agrupamentos sociais.
Essa admiração pelos heróis, segundo Paulo Miceli, vem de longa data,
quando – pelo que se acredita ser uma especial proteção dos deuses – uns poucos
começaram a se destacar, da imensa multidão de anônimos, para conduzir o destino
coletivo, de acordo com sua aparente superioridade.82
Além disso, é importante ressaltar que esse destaque não pode ser
compreendido como algo inato ao ser considerado especial. Antes de tudo, o herói
tem uma finalidade moralista, servindo para avaliar e dirigir capacidades e condutas:
(...) os cristãos apresentam seus santos como modelos de virtude, os militares fazem
o mesmo com alguns comandantes, os revolucionários com seus líderes, etc...83 E
dessa forma, portanto, ele nada mais é do que uma criação, mantida por interesses e
intenções múltiplas e quase nunca transparentes.Na nossa história os heróis e os
grandes feitos não são heróis e grandes senão na medida em que acordam com os
interesses das classes dirigentes, em cujo benefício se faz a história oficial.84
Além de definir o herói, os seus construtores também podem decidir quem
será o bandido, ou quem será lembrado com mais ou com menos consideração.Uma
vez estabelecidos os procedimentos fundamentais de distribuições das honrarias, nos
critérios de avaliar o mérito e valorizar os homens e os seus feitos, o processo flui
naturalmente ao longo da história, como se fosse a coisa mais correta do mundo.
82 MICELI, Paulo. O Mito do Herói nacional. São Paulo: Contexto, Coleção Repensando a História, 3a.Edição, 1991. p. 10 83 Ibid. p. 10 84 PRADO, Caio Júnior. Evolução Política do Brasil. IN MARTINEZ, Paulo. Heróis Vencidos. São Paulo: Contexto, 1996. Introdução.
Isso só ocorre, segundo Paulo Martinez, (...) porque os valores culturais impostos
pelos de cima foram aceitos e adotados pelos debaixo.85
Ao serem construídos pelas classes dirigentes os heróis podem assumir dois
posicionamentos: o de manter a ordem vigente ou modificá-la a fim de implantar
uma nova. No caso brasileiro as modificações ocorreram, na maioria dos casos, no
sentido desejado pelos que detinham a ordem anterior, e os seus principais feitos
consistiram em lutar contra os que pretendiam implantar sistemas diferentes na
organização social e na distribuição do poder econômico e político.
Apesar de ser construído é dado ao herói – enquanto indivíduo e não
enquanto expressão de uma pequena parcela privilegiada – a responsabilidade:
(...) pela indicação dos caminhos da humanidade e dos papéis que são destinados aos demais,
distribuindo ensinamentos e pregando sua moral num espaço onde é perigoso entrar e quase sempre
proibido especular ou ser indiscreto. O herói é herói e ponto final. Discutir seu papel é pôr em
questão a Pátria, a Religião, as Forças Armadas, a Revolução, o Partido – enfim, todas essas coisas
sagradas e intocáveis, respeitosamente grafadas com inicial maiúscula e inscritas, com força de herói,
na consciência das pessoas.86
Outro elemento “sagrado” e que está intimamente ligado ao heroísmo é a
Nação, já que (...) antes de qualquer coisa, o herói da história deve simbolizar a
nação.87 Nação essa que depende da criação constante para que possa durar e para
que as pessoas possam acreditar nela, bem como em seus heróis.
Além disso, através desses heróis, toda uma ideologia é transportada para
milhares de pessoas, que acreditam no poder de tais seres. Isso acontece de forma
similar na literatura, quando os literatos se utilizam do personagem, elemento que
mais poder tem sobre a ação dramática, para exprimirem pensamentos, ideais,
condutas; e desta forma transportar para a literatura toda a emoção da vida real. (...)
a personagem (...) é o elemento mais atuante, mais comunicativo, na arte novelística
85 MARTINEZ, Paulo. Heróis Vencidos. São Paulo: Contexto, 1996. Cap. I. 86 MICELI, op. cit., p. 10-11. 87 Ibid. p. 12
moderna, como se configurou nos séculos XVIII, XIX e começo do XX; mas que só
adquire pleno significado no contexto, e que, portanto, no fim de contas a
construção estrutural é o maior responsável pela força e a eficácia de um
romance.88
Apesar do personagem ser o cerne do texto literário, ele não pode existir
separado das outras realidades que encarna, que ele vive, que lhe dão vida. Com o
personagem herói não é diferente, ele também é, de certa forma, submetido ao
contexto imaginário em que está inserido. Além disso, o herói ficcional muitas vezes
é construído a partir do contexto real.
No decorrer da história da literatura isto fica evidente em certos movimentos
literários. No Barroco, por exemplo, o herói vive em conflito, devido aos confrontos
entre os valores humanistas, o gosto pelas coisas terrenas, às satisfações mundanas e
carnais; trazidos pelo Renascimento e os valores espirituais advindos da Contra-
Reforma. Já no Romantismo o herói é aquele que representa a identidade brasileira,
com a idenpendência política essa busca é acentuada, sendo o índio o eleito, o herói
genuinamente brasileiro. Outra manifestação do contexto real de uma sociedade
interferindo na elaboração do personagem herói é vista no que os literatos
denominam Realista. Movimento estético em que o herói é problemático, ele não é
idealizado, ele é apresentado com seus defeitos e suas limitações.
Com esses exemplos, pode-se perceber como é complexa a elaboração de um
personagem, em especial a do herói, que é uma figura tão presente no imaginário da
coletividade. Além disso, é importante ressaltar que a nossa interpretação dos seres
vivos é mais fluída, variando de acordo com o tempo ou as condições de conduta.
No romance, podemos variar relativamente a nossa interpretação da personagem;
mas o escritor lhe deu, desde logo uma linha de coerência fixada para sempre,
delimitando a curva da sua existência e a natureza de seu modo-de-ser.89
88 CANDIDO, Antonio. A personagem do Romance. In: ROSENFELD, Décio de Almeida Prado; GOMES, Paulo Emilio Salles. A Personagem de Ficção. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1992. p.54.
Essa “linha de coerência”, estabelecida pelo autor, é quem conduz a natureza
do personagem. Quando, por exemplo, o escritor está interessado em traçar um
panorama de costumes, a personagem dependerá provavelmente de sua visão dos
meios que conhece, e da observação de pessoas cujo comportamento lhe parece
significativo. Já, ao contrário, se ele está interessado menos no panorama social do
que nos problemas humanos, como são vividos pelas pessoas, o personagem tenderá
a exagerar, a complicar-se, destacando-se com a sua singularidade sobre o pano de
fundo social.90
Enfim, o elemento humano, seja ele ficcional, enquanto personagem ou real,
enquanto pessoa, é o foco principal tanto da história quanto da literatura. Dessa
forma é geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício
(ou não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em
que o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária.91
Já em relação ao herói é mais complicado atribuir, a medida em que ele entra
em cena num determinado texto, sua veracidade ou não. Isso acontece devido à
similaridade em que são concebidos. O herói da ficção é elaborado como um
personagem, moldado por um determinado escritor de forma a desempenhar da
melhor maneira a ação dramática. E o herói histórico é construído de modo a atender
aos interesses das classes dirigentes. Apesar do objetivo ser diferente, ambos são
criados, seja pelo literato ou pelos condutores da nação.
Outro elemento que aproxima o personagem-herói da pessoa-herói diz
respeito à relação que eles possuem com o contexto em que estão inseridos. No
romance a construção é estrutural, personagem e meio se fundem; na história
acontece o mesmo: A medida de valor dos homens não se faz somente pelas
qualidades intrínsecas de cada indivíduo, pois eles devem ser analisados segundo a
89 Ibid. p.58-59. 90 Ibid. p.74. 91 ROSENFELD, Décio de Almeida. Literatura e Personagem. In: CANDIDO, Antonio; GOMES, Paulo Emilio Salles. A Personagem de Ficção. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 23
perspectiva do que apresentaram socialmente no momento histórico em que
viveram, quais as causas que abraçaram e quais foram as suas contribuições.92
Além disso, ainda existe a conexão entre o real e o imaginário, que podem se
confundir, levando seus personagens e protagonistas à fusão. No texto literário isso é
representado pela verossimilhança, que no romance depende da possibilidade de um
ser fictício comunicar a impressão da mais legítima verdade existencial. Podemos
dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de
relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestado através da personagem, que é a
concretização deste.93
Já no texto histórico essa fusão pode ser vista em algumas figuras “ilustres”
como Tiradentes, que é condenado a escalar o patíbulo, ser enforcado e esquartejado
para ressuscitar a cada comemoração e, infinitamente, cumprir idêntico e trágico
destino, transformando-se numa espécie de morto-vivo, empregado para manter a
força simbólica da nação. Sua trajetória é contada e recontada como uma peça
teatral, sua existência, sua ideologia e suas atitudes são conduzidas, criadas, enfim
romanceadas.
Apesar dessa fusão ocorrer, ela não pode ser a essência de um texto literário e
muito menos de um texto histórico. No romance o vínculo com a vida, o desejo de
representar o real, apesar de serem condicionais para seu pleno funcionamento, e
portanto do funcionamento dos personagens, não são independentes, eles necessitam
de um critério estético de organização interna. Se esta funciona, aceita-se inclusive o
que é inverossímil.
92 MARTINEZ, Paulo. Heróis Vencidos. São Paulo: Contexto, 1996. Introdução. 93CANDIDO, Antonio. A personagem do Romance. In: ROSENFELD, Décio de Almeida Prado; GOMES, Paulo Emilio Salles. A Personagem de Ficção. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1992. p.55
2.1 MAJOR POLICARPO QUARESMA
O protagonista de Triste Fim de Policarpo Quaresma passou por algumas
transformações ao longo da narrativa, decorrentes da força de seus próprios ideais.
Num primeiro momento, Quaresma é apresentado ao leitor como um homem
extremamente metódico e ritualista; que de forma pacata e tranqüila vive a vida:
A vizinhança já lhe conhecia os hábitos e tanto que, na casa do Capitão Cláudio, onde era costume
jantar-se aí pelas quatro e meia, logo que o viam passar, a dona gritava à criada: ‘Alice, olha que são
horas; o Major Quaresma já passou’. E era assim todos os dias, há quase trinta anos. Vivendo em
casa própria e tendo outros rendimentos além de seu ordenado, o Major Quaresma podia levar um
trem de vida superior aos seus recursos burocráticos, gozando, por parte da vizinhança, da
consideração e respeito de homem abastado. 94
Apesar dessas características serem tão marcantes em Quaresma, ele sofre
interferências que provocam a primeira mudança de atitude do personagem, que foi
percebida, primeiramente, por sua afilhada Olga:
A afilhada notou que Quaresma tinha alguma coisa demais. Falava agora com tanta segurança, ele
que antigamente era tão modesto, hesitante mesmo no falar – que diabo! Não, não era possível...
Mas,quem sabe? E que singular alegria havia nos seus olhos – uma alegria de matemático que
resolveu um problema, de inventor feliz!95
Tal percepção não era infundada, Quaresma havia articulado um plano que o
fazia sentir como se fosse um verdadeiro herói. Herói enquanto protetor e salvador
da nação. Esse plano visava resolver a enorme preocupação do protagonista em
relação a cultura genuinamente brasileira, demonstrada, no início da trama, pela
busca da verdadeira música brasileira. Quaresma lança então uma petição, na qual
declara que (...) a emancipação política do país requer como complemento e
94 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997.p19 95 Ibid., p.39
conseqüência a sua emancipação idiomática. Dessa forma o personagem propõe a
abolição da língua portuguesa, emprestada ao Brasil, em favor do tupi-guarani,
língua originalíssima (...) criação de povos que aqui viveram e ainda vivem (...)96.
Nesse momento Quaresma demonstra seu primeiro ato patriótica, que,
isoladamente, já faz jus ao título, concebido por muitos críticos, de “patriota-
visionário”. Junto com esse patriotismo, o personagem possuía outras características,
como o desinteresse material: A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro
andavam à matroca. Para ele, nada disso tinha existência e importância.97 Esse
desinteresse era aos olhos do narrador um ponto louvável: Desinteressado de
dinheiro, de glória e posição (...). É raro encontrar homens assim, mas os há e,
quando os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais
simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na
felicidade da raça.98 Com tal discurso fica claro o olhar de Lima Barreto através de
seu narrador.
No entanto, esse posicionamento, em relação ao dinheiro e a posição social, é
exclusivo do narrador, pois a sociedade em que Quaresma estava inserido
consideraria como ato de desatino tal desapego. Um desatino que não o conduziu ao
hospício mas que também não o impediu de para lá ser encaminhado. Seu tupi-
guarani, como língua oficial, e a proposta de retomada dos costumes indígenas,
como cumprimentar as pessoas chorando como faziam os tupinambás, foram
elementos que causaram a certeza, entre os membros da sociedade carioca,
contemporâneos do protagonista, da pouca sanidade do Major: - Obrigado. Sabe de
uma coisa, general? – O que é? – O Quaresma está doido. (...) – Aquele homem do
violão. Já está na casa de saúde... – Eu logo vi, disse Albernaz, aquele requerimento
era de doido.99
96 Ibid., p. 52-53 97 Ibid.., p. 63 98 Ibid., p. 54 99 Ibid., p. 50
Através do internamento de Quaresma novamente o olhar de Lima Barreto
transparece: Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais
semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser
após.100 Tal observação, feita pelo narrador, aproxima a situação vivida por
Policarpo da que foi vivida por Lima Barreto, também internado em manicômio.
Com essa proximidade com a loucura, inevitavelmente, o protagonista passa por
uma segunda mudança, que vem acompanhada de um segundo empreendimento: a
agricultura. Através dela Quaresma retoma seu patriotismo:
Em toda a parte – não acha, meu padrinho? – há terras férteis. – Mas como no Brasil, apressou-se ele
em dizer, há poucos países que as tenham. Vou fazer o que tu dizer: plantar, criar, cultivar o milho, o
feijão, a batata inglesa... Tu irás ver as minhas culturas, a minha horta, o meu pomar – então é que te
convencerás como são fecundas as nossas terras! (...) Não lhe voltou a alegria que jamais teve, mas a
taciturnidade foi-se com o abatimento moral, e veio-lhe a atividade mental cerebrina, por assim dizer,
de outros tempos.101
O novo empreendimento do protagonista, assim como seu entusiasmo foram
novamente sufocados, devido a inexperiência do empreendedor, o abandono do
governo, o baixo lucro e a quantidade exacerbada de impostos. O sonho do sítio
“sossego”, assim como o desejo de provar as excelentes qualidades de nosso país
são aniquilados pela dura realidade.
Apesar de mais uma derrota, Policarpo Quaresma resiste bravamente em
função de seu ideal maior: a nação, o país, a pátria. Por esse ideal e por possuir a
convicção da condição privilegiada do Brasil entre as nações é que Quaresma se
lança em um novo cometimento para reformar o país: a política, que o conduzirá a
seu “triste fim”, através da adesão incondicional ao “governo forte” do Marechal
Floriano Peixoto.
100 Ibid., p. 63 101 Ibid., p. 74-75
Essa adesão se refletiu na revolta de 6 de setembro, na qual Quaresma lutou
para defender o governo do Marechal. Durante o combate, o protagonista deparou-se
com acontecimentos que o deixaram confuso em relação as atitudes do presidente:
Não se pudera conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a esmo, para
uma carniçaria distante, falava fundo a todos os seus sentimentos; pusera diante dos seus olhos todos
os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a sua solidariedade humana; e ele
escrevera a carta com veemência, com paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou
claro, franca e nitidamente.102
Essa carta foi endereçada a Floriano, que como resposta prontificou-se de
que Quaresma seria preso. Neste momento o personagem reflete sobre sua vida e
sobre o seu patriotismo:
Era de conduta tão irregular e incerta o Governo que tudo ele podia esperar: a libertação ou a morte,
mais esta que aquela (...) Iria morrer (...). E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela
atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e quere-la muito, (...). Gastara a sua mocidade nisso,
a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o
premiava, como ela condecorava? Matando-o (...). Não brincava, não pandegara, não amara(...).
Desde os 18 anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades.
(...) Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!103
Essa tomada de consciência pode ser compreendida como um alerta à
República. Já que os três momentos distintos vividos pelo protagonista: o cultural,
que compõe a identidade de um povo; o econômico, do qual um país sobrevive e o
político que comanda e dirige a nação são articulados de forma exaltada e otimista.
O que revela um tipo de nacionalismo que pode ser constatado como dado sócio-
cultural próprio de uma certa mentalidade de otimista dos primórdios da República,
102 Ibid., p. 174 103 Ibid., p. 174-175
a conquista redentora, carregada de promessas que cedo começam a se mostrar
inviáveis, como os projetos de Quaresma, continuando a marginalizar a crescente
massa do povo. Ou seja, o sistema republicano, tão aclamado pelos adeptos mais
afoitos, e também aclamado por alguns personagens dentro do romance: O tenente
não era feroz nem mau, antes bom e até generoso, mas era positivista e tinha da sua
República uma idéia religiosa e transcendente. Fazia repousar nela toda a
felicidade humana e não admitia que a quisessem de outra forma que não aquela
que imaginava boa.104é o grande herói que Lima Barreto tenta desmistificar, um
herói que, na visão do autor, não possuía bases sólidas para sustentar e proteger a
nação brasileira.
No decorrer do romance essa desmistificação acontece ora pela exaltação ao
Império: -Você viu o imperador, o Pedro II ... Não havia jornaleco, pasquim por aí,
que o chamasse de ‘banana’ e outras coisas ... (...) E era um bom homem, observou
o almirante. Amava seu país...105 e ora pelo relato da fraqueza de caráter dos
republicanos:
Clarimundo fora um republicano histórico, agitador, tribuno temido, no tempo do Império; após a
República, porém, não apresentava a seus pares do Senado nada de útil e benfazejo. Embora assim, a
sua influência ficara sendo grande; e, com diversos outros, era chamado de patriarca da República.
Há anos próceres republicanos uma necessidade extraordinária de serem gloriosos e não esquecidos
pelo futuro, a que eles se recomendam com teimoso interesse.106
Ao passo em que a figura de herói da República é desconstruída, o heroísmo
de Quaresma é posto em prova. Lima Barreto elaborou seu protagonista de forma a
instigar o leitor, para que este tire suas próprias conclusões em relação ao
personagem, que em certos momentos é exaltado como herói e que em outros é
taxado como louco incorrigível.
104 Ibid., p. 122 105 Ibid., p. 117 106 Ibid., p. 168
Para decifrar essa questão é necessário observar todas as atitudes do Major, a
começar por seu nacionalismo exacerbado (ufanista). É inegável a busca incessante
de Quaresma pela legitimidade de nossa terra, ela transparece em diálogos:
(...) alguém, suspirando, disse: ‘Ah! Meu Deus! Quando poderei ir à Europa!’O major não se
conteve(...) falou fraternal e persuasivo: ‘Ingrato! Tens uma terra tão bela, tão rica, e queres visitar a
dos outros!’(...) – Senhor doutor, o Brasil é o país mais fértil do mundo, e o mais bem dotado e as
suas terras não precisam ‘empréstimos’ para dar sustento ao homem.107
em pensamentos: A convicção que sempre tivera de ser o Brasil o primeiro país do
mundo e o seu grande amor à Pátria eram agora ativos e impeliram-no a grandes
cometimentos. Ele sentia dentro de si impulsos imperiosos de agir, de obrar e de
concretizar suas idéias.108; em atitudes: Ficara Quaresma a um canto vendo entrar
um e outro, à espera que o presidente o chamasse (...). Falou em primeiro lugar a
uma comissão de senhores que vinha oferecer o seu braço e o seu sangue em defesa
das instituições e da pátria.109; e na própria vida do personagem, pela sua dedicação
em comprovar a superioridade de nossa pátria.
Apesar de todo esse patriotismo, e diante a seriedade com que Policarpo
Quaresma repugnava toda e qualquer coisa vinda de fora do nosso país é
interessante perceber algumas atitudes que contrariam todo esse xenofobismo. A
primeira delas diz respeito a seu compadre Coleoni, que teve sucesso na vida graças
a ajuda recebida pelo Major:
E não ficou nisto só: emprestou-lhe também dinheiro. Vicente Coleoni pôs uma quitanda, ganhou
uns contos de réis, fez-se logo empreiteiro, enriqueceu, casou, veio a ter aquela filha, que foi levada à
pia pelo seu benfeitor. Inútil é dizer que Quaresma não notou a contradição entre as suas idéias
patrióticas e o seu ato.110
107 Ibid., p. 24 e 104 108 Ibid., p. 30 109 Ibid., p129 110 Ibid., p. 38
Essa contradição acontece em outros momentos do romance, como no
seguinte trecho em que um nativo da roça se queixa do abandono do governo para os
brasileiros em benefício dos alemães e dos italianos: - Terra não é nossa... E
‘frumiga’? ... Nós não ‘tem’ ferramenta... isso é bom para italiano ou ‘alamão’, que
governo dá tudo... Governo não gosta de nós...111 Coleoni era italiano e foi ajudado
por Quaresma, uma total incoerência com os princípios de Lima Barreto: Para Lima
o imigrante significaria o desprezo e o desapego para os nacionais.112 Além do que,
o escritor era contra a República, que exaltava o cosmopolitismo e que buscava na
Europa o modelo para a instauração do estado brasileiro moderno. Quaresma
representa, nesse sentido, uma oposição à República, mas uma oposição fraca e
volúvel, capaz de se deixar seduzir facilmente. Ou seja, Lima, em Triste Fim de
Policarpo Quaresma faz uma pessimista (para sua concepção enquanto anti-
republicano) previsão em relação à República, ela se instauraria e não encontraria
forças suficientes para reprimi-la.
Quaresma que seria o herói anti-republicano, além de ter um ‘triste fim’,
totalmente derrotado, vivência, neste momento final de sua existência, a mais
avassaladora das incoerências em relação ao seu exacerbado patriotismo, estando o
Major preso, seus antigos amigos lhe viram as costas, temendo uma reação do
governo. No entanto, sua afilhada Olga, filha do italiano Coleoni, é a única pessoa
que lutou até o final pela liberdade e pela vida de seu padrinho:
Olga falou aos contínuos, pedindo ser recebida pelo marechal. Foi inútil. (...) – Quem, Quaresma?
Disse ele. Um traidor! Um bandido! (...) Ela nem esperou o fim da frase.(...) teve vergonha de ter ido
pedir, de ter descido do seu orgulho e ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o seu
pedido. Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente.113
111 Ibid., p. 103 112 SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1995. Cap. III 113 BARRETO, op. cit., p.182
Em outros momentos do romance, também é feita analogia entre a figura de
Quaresma e a idéia de herói, enquanto um ser que se sacrifica em busca de um ideal
maior: (...) não havia um caminho [de salvar Quaresma]. Ele tinha que ir para o
posto de suplício, tinha que subir o seu Calvário, sem esperança de ressurreição.114
A relação de Quaresma com a idéia de heroísmo vai além dessa analogia. Ela
engloba desde a queixa sobre a falta de heróis nacionais, (...)imaginação nacionais,
mendigas de heróis e grandes homens.115; a efemeridade com que pessoas são
aclamadas como heróis, Houve um em Niterói que teve o seu quarto de hora de
celebridade. (...) os jornais ocuparam-se com ele, fizeram-se subscrições a seu
favor. Um herói! Passou a revolta e foi esquecido(...)116 e a decepção diante os
covardes que eram aclamados como heróis: A pátria que quisera ter era um mito;
era um fantasma criado por ele no silêncio de seu gabinete. Nem a física, nem a
moral, nem a intelectualidade, nem a política que julgava existir, havia. A que
existia de fato, era a do Tenente Antonio, a do doutor Campos, a do homem do
Itamarati.117
114 Ibid., p. 180 115 Ibid., p. 131 116 Ibid., p. 145 117 Ibid., p. 175
2.2 ANTENOR – O HOMEM DA CABEÇA DE PAPELÃO
Antenor, assim como o Major Policarpo Quaresma, passa por uma
transformação, que modifica todo o ritmo da narrativa. Essa transformação é movida
pelos ideais da sociedade do ‘país do sol’, na qual o protagonista não conseguia se
adaptar: (...) Antenor apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista.
Êsse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre
em desâcordo com a norma dos seus concidadãos.118 Por conta desse desapego a
família do personagem o via “como a própria revolução”, e os empregadores
atribuíam a Antenor a fama de perigoso, insuportável, desobediente e anarquizador.
Depois de toda essa constatação é importante descrever quais eram as atitudes
do protagonista que lhe geraram tais adjetivos. A primeira diz respeito ao trabalho:
(...) Antenor passou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias emprêsas industrias. Ao
cabo de um, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor ? Êle não tinha
exigência, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre –
qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas
companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o
aturavam. (...) Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez (...). Tem a mania de fazer mais que
os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. (...) O patrão do último
estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor: - A perigosa mania de seu filho é
por em prática idéias que julga próprias. (...) Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias
eram os que mais falavam. 119
118 RIO, João do. O Homem da Cabeça de Papelão. IN : MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 170 119 Ibid., p.172-173
Assim sendo, honestidade e iniciativa eram características mal vistas no país
do bom-senso, palavra que se repete seis vezes dentro do conto e que revela toda a
crítica e ironia de João do Rio em relação a hipocrisia reinante na sociedade fictícia,
e que também se estende à sociedade carioca da passagem do século XIX para o
século XX.
Outra atitude do protagonista que contribuiu para sua exclusão social era a
sua sinceridade. Êle via os êrros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via.120
Com isso, Antenor conseguiu a antipatia de todos, desde os amigos; Era-lhe
impossível ter amigos, por muito tempo, porque êsses só o eram enquanto não o
tinham explorado.121 , até os familiares os parentes, porém, não o cumprimentavam
mais.122. A única pessoa que ainda tolerava o rapaz era sua própria mãe: Uma só
coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a manda-lo embora:
Antenor, nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente,
incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos.123 Apesar
dessa “compreensão”, a mãe de Antenor o alertava, na expectativa de que o rapaz se
transformasse: - É da tua má cabeça, meu filho. (...) – A tua cabeça não regula.124
A última atitude do protagonista, considerada inadequada aos padrões da
sociedade da “capital do sol” diz respeito ao amor, apaixonado pela empregada,
Antenor achava justo casar-se com a moça: Todos viram nisso mais uma prova do
desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria
Antônia foi condicional. – Só caso se o senhor tomar juízo. – Mas que chama você
juízo? – Ser como os demais.125 Neste momento, o personagem se convence da
necessidade de mudança. O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em
arranjar a má cabeça, estava convencido.126
120 Ibid., p.173 121 Ibid., p.173 122 Ibid., p.173 123 Ibid., p.170 124 Ibid., p.174 125 Ibid., p.174 126 Ibid., p. 174
Nessa busca, Antenor deixa sua “má cabeça” no “conserto” e passa a usar
uma cabeça de papelão, a qual lhe proporciona uma total transformação, tornando-o
adequável à sociedade da “capital do país do sol”:
Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava pôquer com o ministro da
Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A
respeitável de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. (...) Antenor
não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria
Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a
– propondo um concubinato que não o desmoralizasse.127
Essa imitação, ser como todos da sociedade a qual se está inserido, é uma das
questões mais relevantes no conto. Sobre essa temática afirma Carmem Lúcia Tindó
Secco:
O esnobismo se encontra dentro da esfera do desejo triangular, na medida em que o esnobe não
deseja segundo ele próprio, mas segundo um outro que ele tomou por modelo. (...) Como esnobes,
eles se deixam fascinar pela opinião do outro (...) estes personagens esnobes não procuram afirmar
sua diferenças em termos de originalidade, mas buscam uma aparência de poder, mostrando que
pertencem a uma classe superior e requintada (...) eles tentam uma identificação com os grupos
socialmente privilegiados para poderem alcançar status.128
Antenor, ao se enquadrar na sociedade, perde toda a sua originalidade e se
transforma em um esnobe, adquirindo, com isso, ascensão social.
Essa passagem só é possível através da presença de um elemento mágico, a
cabeça de papelão, que se constitui enquanto máscara para o personagem realizar o
seu desejo: “tomar juízo”. Segundo Carmem Lúcia Tindó Secco, esse é um recurso
muito utilizado por João do Rio: Estes personagens ‘vivem’, portanto, um pseudo-
romantismo, incorporando a si próprios uma identidade fictícia e desempenhando
127 Ibid., p.175 128 SECCO, op. cit., p. 53-54
um papel que não se coaduna com a realidade.129
Ou seja, Antenor se mascara para ser aceito dentro da sociedade em que vive,
e com isso ele assume o papel de herói, de maneira distinta, nas duas fases de sua
vida, descritas no conto. Em um primeiro momento ele é o estereotipo de bondade, o
herói que se sacrifica em beneficio de uma causa maior : o bem comum. Êle ia fazer
o bem, mas mostrava o que ia fazer. (...) Antenor tentou tudo, juvenilmente, na
cidade.130 Em um segundo momento ele é o herói construído pelos detentores do
poder: Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de
concordar no nome do novo senador, que fôsse o expoente da norma, do bom-senso.
O nome de Antenor era cotado.131 Antenor é o típico herói descrito por Paulo
Martinez, o que existe para beneficiar a elite dominante:
A grande maioria dos principais heróis da história brasileira é constituída de homens que dominavam
as estruturas elitistas da sociedade. Não tem sentido o argumento de que este ou aquele saiu de
origens humildes e subiu os degraus da fama pelos méritos pessoais apenas. Esse tipo de argumento
forma o substrato ideológico com o qual se procura legitimar as injustiças praticadas na distribuição
do poder. Nenhum humilde se tornou herói nacional de primeiro nível lutando contra injustiças: só os
que se puseram a serviço delas.132
Diante essa dubiedade, em relação ao caráter heróico do personagem, João do
Rio, no final do conto, faz uma dura crítica: E, em vez de viver no País do Sol um
rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais
admirável – um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que
conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.133 Ou seja, a honestidade, a bondade e
a originalidade não eram qualidades no País do Sol mas sim defeitos, já que elas não
faziam parte da rotina da esmagadora maioria. Enfim, o diferente é motivo de
129 Ibid., p. 51 130 RIO, João do. O Homem da Cabeça de Papelão. IN : MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. p.173 131 Ibid., p.175 132 MARTINEZ, Paulo. Heróis Vencidos. São Paulo: Contexto, 1996. Cap.V 133 RIO, op. cit., p. 178
preconceito, sentimento esse do qual o próprio João do Rio foi vítima e o qual ele
soube ironizar em O Homem da Cabeça de Papelão com maestria.
2.3 QUARESMA & ANTENOR
Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, assim como em O Homem da
Cabeça de Papelão o ambiente da narrativa é o mesmo, o Rio de Janeiro, bem como
a época retratada, a virada do século XIX para o século XX. Com isso, temas são
compartilhados entre os dois textos, como por exemplo as influencias européias em
nosso país. Além desses temas, Lima Barreto e João do Rio construíram, em tais
obras, protagonistas que em suas essências possuem muitas similaridades.
A primeira delas, e a mais abrangente, refere-se a idéias de um homem,
totalmente integrado nos moldes da sociedade carioca e usufrutuário das vantagens
concedidas à elite local, capaz de se abster de todos esses privilégios em prol de um
ideal maior. Este é o caso do Major Policarpo Quaresma, (...) o Major podia levar
um trem de vida superior aos seus recursos burocráticos, gozando, (...) da
consideração e respeito de homem abastado.134, no entanto ele é marginalizado em
três momentos da narrativa: com o seu requerimento, considerado fruto de uma
mente insana; com a sua preferência em não entrar na política, quando todas as
facilidades lhe eram dadas e com a sua oposição as atitudes do presidente Marechal
Floriano. Tudo isso só ocorre, porque o personagem possue princípios
Desinteressado de dinheiro, de glória e de posição (...)135e ideais – valorização dos
elementos nacionais, buscando o bem comum- que contrariam os interesses da
mesma elite que o contempla num primeiro momento.
Em relação a Antenor o processo é o mesmo. O personagem tem todas as
possibilidades para obter prestígio na sociedade, (...) Antenor (...) devia seguir os
trâmites legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público
(...)136, entretanto ele segue o rumo oposto, Ele via os erros, as hipocrisias, as
134 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997.p.19 135 Ibid., p. 54 136 RIO, João do. O Homem da Cabeça de Papelão. IN : MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. p171
vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem.137, que o conduziria, assim como
Quaresma, à margem da sociedade.
Outro elemento, constituinte da personalidade de cada protagonista era o
pensar, verbo que nos remete a algo inato ao ser humano, mas que, dentro das
narrativas, é visto como inusitado e negativo: Entre outras coisas, Antenor pensava
livremente por conta própria. Assim a família via chegar Antenor como a própria
revolução (...)138; - O major, hoje, parece que tem uma idéia, um pensamento muito
forte. – Tenho, filho, não de hoje, mas de há muito tempo. -É bom pensar, (...)
consola. – Consola, talvez; mas faz-nos também diferentes dos outros, cava abismos
entre os homens...139
Além dessas similaridades, Antenor e Quaresma foram julgados pela
sociedade, em que estavam inseridos, como doidos: (...) ficou provado que Antenor
era apenas doido furioso.140; (...) a suspeita de que Quaresma estivesse doido foi
tomando foros de certeza.141A partir dessa constatação, os dois foram submetidos a
“tratamentos”, Quaresma foi conduzido a uma casa de saúde: (...) Pinel e Esquirol,
meditando sobre o angustioso mistério da loucura; subira outra escada encerada
cuidadosamente e fora ter com o padrinho lá em cima, triste e absorvido no seu
sonho e na sua mania. (...) Só o nome da casa metia medo. O hospício!142Antenor,
por sua vez, teve um tratamento não tão convencional como o do Major: - E o
137 Ibid., p.173 138 Ibid., p.170 139 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997.p.61 140 RIO, João do. O Homem da Cabeça de Papelão. IN : MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. p.171 141 BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 16ª edição. São Paulo: Ática, 1997.p. 59 142 Ibid., p.62
senhor fica com a minha cabeça? – Se a deixar. – Pois aqui a tem. Conserte-a.143, o
personagem deixa a cabeça no conserto e passa a usar uma cabeça de papelão.
Para Antenor, a substituição de sua cabeça por outra de papelão foi o
tratamento mais adequado, já que, com isso ele consegue se adaptar à sociedade do
“país do sol”: Os parentes, porém, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo
em recordar o tempo em que Antenor era maluco. Antenor não pensava. Antenor
agia como os outros.144Já para Quaresma, o resultado do tratamento não foi o
esperado e o aceitado pela sociedade carioca; e é essa a grande diferença entre os
dois protagonistas. Quaresma é considerado até o final do romance um homem
desequilibrado, chegando a morrer por seus ideais, enquanto Antenor se adapta ao
sistema e usufrui dele todas as vantagens, tornando-se (...) um dos elementos mais
ilustres do País do Sol (...) com uma cabeça de papelão.145
143 RIO, João do. O Homem da Cabeça de Papelão. IN : MARTINS, Luís. João do Rio. Uma Antologia. Rio de Janeiro: Sabiá. p.175 144 Ibid., p.175 145 Ibid., p.175
CONCLUSÃO
Ao usar o texto literário como fonte histórica, novas abordagens são
possibilitadas ao historiador que se serve de tal material. Dentre elas, compreender
como um certo literato, que usa como contexto em sua obra, o mesmo período em
que vive, transmite para um texto ficcional elementos similares, quando não iguais,
da sociedade em que está inserido. Além disso, a forma como o autor expõe, bem
como o enfoque por ele dado a certos fatos e a certos detalhes servem como indícios,
para que o historiador assimile quais as intenções do texto em questão, e com isso
ele possa reconstruir partes do passado.
Essa tarefa adquire mais precisão quando é feita uma comparação entre
autores contemporâneos, que escrevem textos literários embasados no mesmo
período histórico. Dessa forma, tem-se além do estilo individual de cada literato,
conduzindo a ação dramática para o fim que ele deseja, maneiras diferentes de
retratar um mesmo contexto, e até uma mesma sociedade específica. Tudo isso,
possibilita uma abrangência maior dos períodos retratados.
Sendo assim, a análise comparativa entre Triste Fim de Policarpo Quaresma
e O Homem da Cabeça de Papelão gerou os seguintes resultados: tanto o romance
quanto o conto, ao referir-se a sociedade carioca da virada do século XIX para o
século XX, a compreendem como um sistema conduzido pelos detentores do poder,
que o utilizam de forma concordante aos seus interesses particulares. Nessa
sociedade não há espaço para ideais heróicos, que pensem no bem coletivo, bem
como não há espaço para honestidade, caráter e desapego aos bens materiais.
Com isso, conclui-se a intenção dos autores de tais obras, Lima Barreto com
sua “literatura como missão” pretende desmascarar a corrupção existente na capital
carioca. Por sua vez, João do Rio, com sua literatura de resistência, demonstra as
mazelas da sociedade, desmistificando a áurea europeizada que dominava o nosso
país. Todos esses elementos são importantes para o historiador conseguir reconstruir
o passado; são detalhes, ideologias, posicionamentos políticos que revelam parte da
estrutura de um determinado período histórico.
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Tradução : Hildegard Feist. Companhia das Letras.
O HOMEM DA CABEÇA DE PAPELÃO
JOÃO DO RIO No País que chamavam do Sol, apesar de chover, às vêzes, semanas inteiras, vivia
um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem
jornalista. Absolutamente sem importância social.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o
menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a
capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e
tôdas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram capital. De modo que
êstes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso
mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no
centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários também.
Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o
tempo, cabarés fatigados, jornais, bondes, partidos nacionalistas, ausência de
conservadores, a Bôlsa, o Govêrno, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim
tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade
com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente,
possuidor de imenso bom-senso. Bom-senso! Se não fôsse a capital do País do Sol, a
cidade seria a capital do Bom Senso!
Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era
exceção mal vista. Êsse rapaz, filho de boa família ( tão boa que até tinha
sentimentos ), agira sempre em desacôrdo com a norma dos seus concidadãos.
Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito
horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a
verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-
lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no
jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções,
os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol
todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto,
Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por
conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os
mestres indignavam-se porque êle aprendia ao contrário do que ensinavam; os
amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.
Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo
embora: Antenor, nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era
escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos
maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para ao mendigos e
corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido
furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência
dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os trâmites legais de
um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista,
deixando à atividade da canalha estrangeira o resto – os interêsses congregados da
família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aquêles que se
fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a
faca serve para cortar o que é nosso para nós. Antenor, diante da evidência, negou-
se.
- Ouça! - bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco
importa! Mas seja bacharel! Bacharel, você tem tudo nas mãos. Ao lado de um
político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.
- Mas não quero ser nada disso.
- Então quer ser vagabundo?
- Quero trabalhar.
- Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três
coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo
trabalhando – é vagabundo.
- Eu não acho.
- É pior. É um tipo sem bom-senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os
outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.
Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para
trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar.
Acendendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor
passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias emprêsas industriais.
Ao cabo de um, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Êle
não tinha exigência, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro,
cheio de idéias. Até alegre – qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a
inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos,
se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando
um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o
empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de
despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por quê? É
tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!
Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:
- É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do
serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...
O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de
Antenor:
- A perigosa mania de seu filho é pôr em prática idéias que julga próprias.
- Prejudicou-o, Sr. Praxedes?
- Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom-senso. Depois, mesmo que
seu filho fôsse águia, quem manda na minha casa sou eu.
No País do Sol o comércio é uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso,
insuportável, desobediente, anarquizador, não pôde em breve obter emprêgo algum.
Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam.
Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham de raiva. E se Antenor
sentia a triste experiência do êrro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no
convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe
impossível ter amigos, por muito tempo, porque êsses só o eram enquanto não o
tinham explorado.
Antenor ria. Antenor tinha saúde. Tôdas aquelas desditas eram para êle
brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua,
sem interêsse, chocava-se à razão dos outros ou com interêsses ou prêsa à sugestão
dos alheios. Êle via os êrros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Êle ia
fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor
tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o
ainda.
- É doido, mas bom.
Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o
comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num
colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçada a
retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor
de bonde. Em tôdas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa
hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque êle pensava, sentia,
dizia outra coisa diversa.
- Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...
- É da tua má cabeça, meu filho.
- Qual!
- A tua cabeça não regula.
- Quem sabe?
Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração
apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira da
sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos
viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo
geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.
- Só caso se o senhor tomar juízo.
- Mas que chama você juízo?
- Ser como os demais.
- Então você gosta de mim?
- E por isso é que só caso depois.
Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores
desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua do centro da cidade,
quando seus olhos descobriram a tabuleta de uma “relojoaria e outros maquinismos
delicados de precisão”. Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
- Traz algum relógio?
- Trago a minha cabeça.
- Ah! Desarranjada?
- Dizem-no, pelo menos.
- Em todo caso, há tempo?
- Desde que nasci.
- Talvez imprevisão nas montagens das peças. Não lhe posso dizer nada sem
observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças, como os relógios, para
regular bem...
Antenor atalhou:
- E o senhor fica com a minha cabeça?
- Se a deixar.
- Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...
- Claro! Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
- Regula?
- É de papelão! – explicou o honesto negociante.
Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão e saiu para a
rua.
Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer
com o ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão
bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer
mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porém, estimavam-no, e os
companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.
Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar.
Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônio tremia de contentamento vendo
Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a – propondo um
concubinato que não o desmoralizasse. Outras Marias ricas, de posição, eram da
opinião da primeira Maria. Êle só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama
crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da
Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da
República – a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro.
A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado,
amava a sua terra. Era o modêlo da felicidade. Regulava admirávelmente.
Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na
dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fôsse o expoente da norma,
do bom-senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de
automóvel pelas ruas centrais, para tomar o pulso à opinião, quando os seus olhos
deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.
- Bolas! E eu esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o
relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar tôda vida com
uma cabeça de papelão!
Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
- Há tempos deixei aqui uma cabeça.
- Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde
que ia desmontar a sua cabeça.
- Ah! Fêz Antenor.
- Tem-se dado bem com a de papelão?
- Assim...
- As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por série. Vendem-
se muito.
- Mas a minha cabeça?
- Vou buscá-la.
Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
- Aqui está.
- Consertou-a?
- Não.
- Então, desarranjo grande?
O homem recuou.
- Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho
igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará
no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo das idéias, é o equilíbrio
de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de
exposição, uma cabeça de gênio hors-concours.
Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
- Faça então o obséquio de embrulhá-la.
- Não a coloca?
- Não.
- V. Ex.ª faz bem. Quem possui uma cabeça assim, não a usa todos os dias.
Fatalmente dá na vista.
Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.
- Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez
prejudique.
- Qual! V. Ex.ª terá a primeira cabeça.
Antenor ficou sêco.
- Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é
a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e
relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu
continuo com a de papelão.
E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não
conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável – um dos elementos mais ilustres
do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.
(1925 – IN: Rosário de Ilusões)
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