Uma rosa para Emily

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conto de William Faulkner

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Quando Miss Emily Grierson morreu, toda a nossa cidade compareceu ao enterro: os homens ematenoaessaespciedecarinhorespeitosoquesetempor ummonumentotombado; asmulheresmovidaspelacuriosidadedever ointerior desuacasa, ondeningumentraranosltimos de! anos, e"ceto um velho negro, ao mesmo tempo co!inheiro e #ardineiro$Eraumcasaroquadrado, demadeira, outrorabranco, decoradodecpulas, de%lechas, debalc&es, no estilo pesadamente %r'volo da poca de ()*+, situado na rua que #, tinha sido a maisdistinta da cidade$ Mas as garagens e as debulhadoras de algodo, multiplicando-se em derredor,acabaram por %a!er desaparecer at os nomes augustos daquele bairro$ . casa de Miss Emily era anica, levantando sua decrepitude teimosa e %aceira acima dos vag&es de algodo e das bombasde gasolina$ Emily tinha ido #untar-se aos representantes daqueles nomes augustos, no cemitrioadormecido sob os cedros, onde #a!iam entre os tmulos en%ileirados e an/nimos, dos soldados da0nio e dos 1on%ederados mortos no campo de batalha de 2e%%erson$3iva, Miss Emily %ora uma 4tradio, umdever e umaborrecimento: espcie de obrigaoheredit,ria, pesando sobre a cidade desde o dia em que, em ()56, o 1oronel 7art8ris 9o pre%eitoque bai"ou o decreto proibindo :s negras sa'rem : rua sem avental; a isentara do pagamento deimpostos, iseno de%initiva, que datava da morte de seu pai$ ncia pr8pria, pre%eriareembolsar dessa maneira$ 78 um homem da gerao e com as idias do 1oronel 7art8ris poderiater imaginado semelhante coisa, e s8 uma mulher poderia ter acreditado$Quando a gerao seguinte, com suas idias modernas, deu, por sua ve!, pre%eitos e intendentesmunicipais, essa concesso provocou alguns descontentamentos$ ?o primeiro dia do ano, dirigirama Miss Emily uma noti%icao de impostos$ @evereiro chegou, sem tra!er resposta$ Enviaram-lheuma carta o%icial, pedindo-lhe para passar, quando pudesse, no gabinete do delegado$ ?a semanaseguinte, o pr8prio pre%eito lhe escreveu, o%erecendo-se para ir, em pessoa, : sua casa, ou paramandar busc,-la no seu carro particular$ Aecebeu, como resposta, uma %olha de papel de %eitioarcaico, escrita com tinta desbotada, numa letra mida e %luente, comunicando-lhe que no sa'amais de casa$ . noti%icao d> pagamento de imposto vinha inclusa, sem coment,rios$= 1onselho Municipal reuniu-se em sesso e"traordin,ria$ 0ma delegao dirigiu-se : sua casa ebateu naquela porta que nenhum visitante transpusera desde que, oito ou de! anos antes, MissEmily dei"ara de dar li&es de pintura em porcelana$ =s membros da delegao %oram introdu!idosnum saguo escuro, de onde uma escada se pro#etava para as sombras ainda mais que espessasdo andar superior$ Bavia em tudo um cheiro de poeira, de guardado, de coisas que nunca sousadas-umcheirodemo%oeumidade$ =negrocondu!iu-osaosalo, demobili,riopesado,%orrado de couro$ Quando o negro abriu as cortinas de uma das #anelas, viram que o couro estavaestalado, descascando e, ao se sentarem, uma nuvem leve de p8 subiu-lhe preguiosamente emvolta das co"as ese espalhou em c'rculos vagarosos,desenrolando-se,desagregada, na nicarstia de sol$ ?um cavalete de moldura dourada, perto da lareira, via-se o retrato a carvo do paide Miss Emily$Cevantaram-se : sua entrada$ Era uma mulher!inha pequena e gorda, vestida de preto, com uma%ina corrente de ouro descendo-lhe do pescoo at a cintura, onde desaparecia no c8s da saia$Dinhaaossaturapequenaedelicada; talve!, por isso, oqueemoutrapessoaseriaapenasgordura, parecia, nela, obesidade$ Eava a impresso de estar inchada, como um cad,ver muitotempo submerso numa ,gua estagnada; tinha, mesmo, de um a%ogado, a carne l'vida e balo%a$7eusolhos, perdidosnasintumesc>nciasdesua%ace, lembravamdoispedacinhosdecarvoen%iados numa bola de massa e iam de um rosto a outro, enquanto os visitantes e"punham o caso$?o mandou que sentassem$ 1onservou-se, apenas, emp no limiar da sala, e esperoutranqFilamente que o porta-vo! se interrompesse, balbuciando$ Ento, puderam ouvir o tic-tac dorel8gio invis'vel, preso na ponta de sua corrente de ouro$7ua vo! era seca e %ria:G ?o tenho impostos a pagar em 2e%%erson$ = 1orenel 7art8ris me e"plicou isso$ Dalve! um dossenhores possa consultar os arquivos da cidade e dar satis%a&es aos demais$G Mas n8s o %i!emos$ ?8s somos as autoridades no munic'pio, Miss Emily$ . senhora no recebeu anoti%icao assinada pelo delegadoHG 7im, recebi um papel G disse Miss Emily$ G Dalve! ele se considere realmente o delegadoI ?otenho impostos a pagar em 2e%%erson$G Mas no h,, nos livros, nada que o possa provar$ 3e#a a senhoraI J preciso que n8sIG Krocurem o 1oronel 7art8ris$ ?o tenho impostos a pagar em 2e%%erson$G Mas, Miss Emily GG Krocurem o 1oronel 7art8ris$ 9Bavia quase de! anos que o 1oronel 7art8ris estava morto; G ?otenho impostos a pagar em 2e%%erson$ DobeL G = negro apareceu$ G .companha estes cavalheiros$.ssim ela os venceu irremediavelmente, como #, lhes vencera os pais, trinta anos antes, a respeitodo cheiro$ sbarbasgrisalhaseumrapa!moo,membro da nova gerao$G . coisa muito simples G disse o moo$ G Mandem$ lhe di!er para limpar a casa$ E>em-lhe umcerto pra!o para obedecer e, se ela noIGEeusmelivre, senhorL Ge"clamouo2ui!7tevens$ Quer entodi!er aumasenhora, nasbochechas, que ela cheira malH.ssim, na noite seguinte, de madrugada, quatro homens atravessaram o gramado do #ardim deMiss Emily e, como assaltantes, rondarama casa, %are#ando os alicerces de ti#olos e osrespiradouros do poro, enquanto um deles, com um saco nos ombros, %a!ia, com regularidade, ogesto do semeador$ .rrombaram a porta da adega, que salpicaram de cal, assim como todas asdepend>ncias$ Quando, de volta, atravessaramo gramado, uma #anela, at ento sombria,iluminou-se de repente e viram Miss Emily sentada : contralu!, ereta, r'gida, im8velcomo um'dolo$ .travessaram em sil>ncio o gramado, metendo-se por entre as sombras das ac,cias quemargeavam a rua$ Eepois de uma ou duas semanas, o cheiro desapareceu$s dias, quando os pastores e osmdicos iam v>-la, tentando persuadi-la a dei"ar dispor do cad,ver$ Mas, no momento em queestavam resolvidos a recorrer : Cei e : %ora, ela cedeu, e enterraram-lhe o pai a toda pressa$?o se disse, ento, que estava louca$ Kensamos que tinha agido como devia$ Cembr,vamo-nos detodos os moos que seu pai a%astara, e sab'amos que, achando-se sem nada, ela deveria agarrar-se :quele que a despo#ara de tudo, como em geral acontece$Esteve muito tempo doente$ Quando tornamos a v>-la, tinha os cabelos cortados, o que a %a!iaparecer uma menina e lhe dava uma vaga semelhana com os an#os dos vitrais de igre#a G umamistura de tr,gico e sereno$. cidade acabava #ustamente de %irmar o contrato para pavimentao das caladas e, no vero queseguiuamortedeseupai, comearamostrabalhos$ .companhiaconstrutoratrou"enegros,mulas e m,quinas,eumcontramestrechamado Bomer Narron,umOyanPeeQ,homemgrande,morenoedecidido,comumvo!eiroenormee olhosmais clarosdoqueapeledorosto$=sgarotos seguiam-noaos bandos, paraouvi-logritar comosnegros, eparaouvir os negroscantandoem compasso, enquanto erguiam e abai"avam a picareta$Em breve, o contramestreconhecia toda a gente da cidade$ 1ada ve! que se ouviam ruidosas gargalhadas na praa, podia-se#urar que Bomer Narron estava no centro do grupo$ ?o tardamos a avist,-lo, nos domingos :tarde, passeando com Miss Emily na carriola de aluguel, que tinha rodas amarelas e era pu"adapor uma parelha de cavalos baios$. princ'pio, todos %icaram satis%eitos de ver que Miss Emily tinha agora um interesse na vida$ .ssenhoras andavam di!endo: O?aturalmente, nunca uma Grierson tomar, a srio um nortista, umassalariado$QMas havia outras pessoas, as mais velhas, que achavam que nem mesmo o desgosto deveria %a!erque uma verdadeira senhora se esquecesse de que Onoblesse obligeQ$ 97em no entanto, empregaressa e"presso: ?oblesse oblige;$ Ei!iam, apenas: OKobre Emily$ =s parentes deviam procur,-la$QDinhaparentesem.labama, mas, algunsanosantes, opai romperacomelespor causadaherana da velha Cady Myatt, a louca, e no havia mais rela&es entre as duas %am'lias$ ?emsequer se tinham %eito representar no enterro$E, mal a gente velha e"clamou OKobre Em'lyQ, os me"ericos comearam: O3oc>s imaginam que,realmente$ $ $Q di!iam uns para os outros$ G OMas nem h, dvida$ Korque, a no ser isso$ $ Q tudosussurradoatr,sdasmosnoamarrotado%ar%alhar desedasecetinspor detr,sdas#anelas%echadas ao sol das tardes de domingo, enquanto a parelha de cavalos baios passava num leve eapressado clop-clop-clop$ G OKobre EmilyLQEla, porm, erguia a cabea bem alto, mesmo quando pens,vamos que tinha deca'do$ Karecia,mais do que nunca, e"igir que se reconhecesse sua dignidade de ltima dos Grierson, como se%osse necess,rio aquele toque de vulgaridade terrestre para acentuar mais pro%undamente a suaimpenetrabilidade$ Dal comonodiaemquecomprouovenenopararatos, oars>nico$ utico$ 1ontava, ento, mais de trinta anos; era aindadelgada, embora estivesse mais magra do que de costume, com os olhos negros, altivos e %riosnumrostocu#apeleserepu"avanaalturadast>mporaseemvoltadasp,lpebras, comoseimaginava que deveria ser o rosto de um guardio de %arol$ G Quero comprar veneno$G Kois no, M'ss Emily$ Que espcie de venenoH para ratos ou qualquer coisa assimH AecomenIG Quero o que o senhor tiver de melhor$ ?o importa qual se#a$= %armac>utico citou alguns:G Matariam at mesmo um ele%ante$ Mas o que a senhora quer eIG .rs>nico G disse ela$ G J bomHG JI ars>nicoH Kois sim, senhora$ Mas o que a senhora quer I$G Eu quero ars>nico$G Kois, naturalmente G disse ele$ G 7e isso que a senhora quer$ Korm, a lei determina que asenhora declare o %im que dar, ao veneno$Miss Emily limitou-se a %it,-lo, com a cabea pendida para melhor %i"ar os olhos nos olhos dele, at%or,-lo a desviar o olhar e a ir buscar o ars>nico, que embrulhou$ = cai"eiro negro que %a!iaentregas trou"e-lhe o pacote, pois o %armac>utico no tornou a aparecer$ .o chegar em casa, tirouo papel; na tampa da cai"a, debai"o da caveira e os dois ossos, estava escrito: OKara ratosQ$.ssim, no dia seguinte, n8s di!'amos: OEla vai suicidar-seQ, e ach,vamos que era a melhor soluo$Quando come,ramos a v>-la com Bomer Narrou, t'nhamos dito: O3ai casar-se com eleQ$ Eepois,di!'amos: OEla ainda acabar, por persuadi-loQ, porque o pr8prio Bomer observava G gostava dacompanhia dos homens e sabia-se que bebia com os rapa!es no ElPRs 1lub G que no era %eito paracasamento$ Mais tarde, dissemos: OKobreEmilyQ, por detr,s das vene!ianas, quandoambospassavam,nas tardes de domingo, na carriola vistosa, Miss Emily de cabea erguida e BomerNarrou com o chapu de lado e um charuto entre os dentes, segurando as rdeas e o chicote nasluvas amarelas$Ento, algumas senhoras comearam a declarar que aquilo era uma vergonha para a cidade e ummau e"emplo para a gente moa$ =s homens no ousavam intervir, mas, %inalmente, as mulheres%oraram o pastor batista G a gente de Miss Emily era episcopal G a ir procur,-la$ = pastor negou-se sempre a contar o que acontecera durante a entrevista e recusou-se a voltar : sua casa$ ?odomingo seguinte, sa'ram #untos novamente e, no outro dia, a mulher do ministro escreveu aosparentes de Miss Emily, em .labama$Eessa %orma, ela teve pessoas de seu sangue outra ve! debai"o de seu teto e n8s %icamos todos :espera dos acontecimentos$ . princ'pio, nada aconteceu$ Eepois, %icamos convencidos de que iamse casar$ 7oubemos que Miss Emily %/ra : #oalheria e encomendara um #ogo de toucador parahomem, todo de prata, com as iniciais ncia com que pusemos a porta abai"o pareceu encher o quarto de uma poeira penetrante$Era como se uma mortalha, t>nue e acre, se estendesse sobre todas as coisas daquele quarto,mobiliado e en%eitado para urna noite de npcias: sobre as desbotadas cortinas de pesada sedacor-de-rosa, sobre os quebra$ Cu!es rosados das lSmpadas, sobre a penteadeira, sobre osdelicadosob#etosdecristal, sobreaspeasdoaparelhodetoucadorparahomem, comseusdorsos de prata embaciados, to embaciados que nem se distinguiam os monogramas escurecidos$Entre os pertences do toucador, estavam #ogados um colarinho e uma gravata, como se tivessemacabado de tir,-los naquele momento; quando os levantamos, dei"aram na super%'cie uma p,lidameialuatraadanapoeira$ =ternoderoupaestavadobradocuidadosamentenumacadeira,debai"o da qual se viam os dois sapatos mudos e as meias largadas no cho$E o homem estava deitado na cama$Eurante muito tempo, ali %icamos, im8veis, olhando para o seu r'ctus pro%undo e descarnado, =corpo devia ter, a principio, repousado na atitude de car'cia, abraado a outro corpo, mas agora ogrande sono que sobrevive ao amor, o grande sono que vence at mesmo as car'cias do amor,dominara-o a%inal$ = que restava dele, em decomposio dentro do que restava de sua camisolade dormir, tornara-se insepar,vel doleitoemque #a!ia; e sobre ele, assimcomosobre otravesseirova!ioaoseulado, estendera-seaquelacamadaespessadepacienteeobstinadapoeira$?otamos, ento, que no segundo travesseiro havia a marca %unda de uma cabea$ 0m de n8sencontrou qualquer coisa ca'da sobre esse travesseiro e, debruando-se, enquanto a leve,impalp,vel poeira acre e seca, nos entrava pelas narinas, vimos um longo %io de cabelo de um tomcin!ento-de-ao$