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Universidade de Braslia
Instituto de Cincias Humanas
Departamento de Filosofia
Michael Peterson Olano Morgantti Pedroso
O Conhecimento enquanto Afirmao da Vontade de Vida:
Um estudo acerca da dialtica erstica de Arthur Schopenhauer
Braslia/DF
2016
Michael Peterson Olano Morgantti Pedroso
O Conhecimento enquanto Afirmao da Vontade de Vida:
Um estudo acerca da dialtica erstica de Arthur Schopenhauer
Dissertao de Mestrado Acadmico apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Filosofia/PPG-FIL da Universidade de Braslia/UnB, como requisito parcial para a obteno
do ttulo de Mestre em Filosofia, linha de pesquisa 1 Teoria do Conhecimento e Filosofia
da Cincia.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Hahn
Braslia/DF
2016
Ficha catalogrfica elaborada automaticamente, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
Olano Morgantti Pedroso, Michael Peterson O O Conhecimento enquanto Afirmao da Vontade de
SC373 Vida / Michael Peterson Olano Morgantti Pedroso;
c orientador Alexandre Hahn. -- Braslia, 2016. 138 p.
Dissertao (Mestrado - Mestrado em Filosofia) -- Universidade de Braslia, 2016.
1. erstica. 2. argumentao. 3. Schopenhauer. 4. Metafsica da Vontade. I. Hahn, Alexandre, orient.
II. Ttulo.
Folha de Aprovao
Prof. Dr. Alexandre Hahn (UnB - Orientador)
______________________________________
Profa. Dra. Priscila Rossinetti Rufinoni (UnB)
______________________________________
Prof. Dr. Rainri Back (Universidade Catlica de Braslia - Membro Externo)
______________________________________
minha esposa Jlia, pelo apoio e
companheirismo; minha filha Valentina,
fonte inesgotvel de inspirao diria;
minha me Patricia, por ensinar-me a
relevncia da determinao e, por vezes, da
obstinao; ao meu pai Scipio (in
memoriam) cuja ausncia sentida por
todos por haver em mim despertado o gosto
por filosofia.
Graas ao sol, disse, e a vs todas,
deidades celestes, por haverdes deixado ver,
antes de abandonar a vida, em meu reino e
sob este teto, Pblio Cornlio Cipio, cujo
nome o bastante para me despertar alegria,
recordando em minha alma o varo invicto de
virtudes memorveis!. O Sonho de Cipio
in Ccero, Da Repblica, Livro VI.
When intellectualism arises,
hypocrisy is close behind
Tao Te Ching, Lao Ts
RESUMO
A presente dissertao visa a investigar o opsculo pstumo de Arthur Schopenhauer
chamado Die Kunst, Recht zu Behalten (A Arte de Ter Razo), luz dos principais aspectos
de sua doutrina, mormente sua teoria do conhecimento e suas implicaes estticas e ticas.
O texto composto de 38 (trinta e oito) estratagemas de argumentao desonesta,
acompanhados de uma introduo e algumas notas, e tem redao estimada entre 1825 e
1830. Trechos do manuscrito foram publicados por ocasio da segunda edio de Parerga e
Paralipomena em 1862. Dois anos mais tarde, o manuscrito (sem ttulo) de Schopenhauer
foi publicado na ntegra por Julius Frauenstdt, seu discpulo. Pouco estudada no Brasil, a
dialtica erstica tem sido tratada mais de maneira cmica que sria pelo mercado editorial
brasileiro, haja vista a abordagem por vezes apelativa defendida pela maior parte das edies
no Brasil. Assim, o presente trabalho chama para si a tarefa de entender o manuscrito de
maneira mais profunda, como um complemento slido ao restante da obra do filsofo de
Danzig, em vez de um mero panfleto de Schopenhauer com vistas a polemizar com a filosofia
acadmica alem.
Palavras-chave: erstica; argumentao; Schopenhauer; Metafsica da Vontade.
ABSTRACT
This essay aims at investigating the posthumous opuscule by Arthur Schopenhauer called
Die Kunst, Recht zu Behalten (The Art of Being Right), in light of the main aspects of his
doctrine, in particular his theory of knowledge and its aesthetical and ethical implications.
The text is composed of 38 (thirty-eight) stratagems on dishonest reasoning, along with an
introduction and a few notes, and it is estimated to have been written at some point between
1825 and 1830. Parts of the manuscript were published on the second edition of Parerga and
Paralipomena in 1862. Two years later, the full text of his manuscript (without a title) was
published by Julius Frauenstdt, Schopenhauers disciple. Little studied in Brazil, the eristic
dialectics has been dealt with in a more comic than serious way by the Brazilian book market,
given the sort of mocking approach advocated by most of Brazilian editions of the text. Thus,
hereby work draws to itself the task of understanding the manuscript in a deeper way, as a
solid complement to the rest of the philosopher of Danzigs work, rather than a mere
propaganda by Schopenhauer with a view to attack the German academic philosophy.
Keywords: eristic; reasoning; Schopenhauer, Metaphysics of Will.
Lista de Abreviaturas e Siglas
Obras de Schopenhauer:
MVR I O Mundo como Vontade e Representao, Tomo I
MVR II O Mundo como Vontade e Representao, Tomo II
SRQ Sobre a Raiz Qudrupla do Princpio de Razo Suficiente
SVC Sobre a Viso e as Cores
SVN Sobre a Vontade na Natureza
PP I Parerga e Paralipomena, 1 edio
PP II Parerga e Paralipomena, 2 edio
DE Dialtica Erstica
Obras de outros filsofos:
CRP Crtica da Razo Pura (Immanuel Kant)
MFP Meditaes sobre a Filosofia Primeira (Ren Descartes)
F Fedro (Plato)
T Teeteto (Plato)
Me Metafsica (Aristteles)
R Retrica (Aristteles)
To Tpicos (Aristteles)
Mo Monadologia (Leibniz)
SUMRIO
INTRODUO...................................................................................................................13
1 O MUNDO PARA SCHOPENHAUER
1.1 CONTEXTUALIZAO HISTRICA KANT..........................................................20
1.2 SCHOPENHAUER E O NEGCIO DO FILSOFO................................................22
1.3 O CONHECIMENTO INTUITIVO ENQUANTO ORIGEM DO MUNDO: SOBRE A
VISO E AS CORES....................................................................................................27
1.4 SOBRE A RAIZ QUDRUPLA DO PRINCPIO DE RAZO SUFICIENTE............34
1.4.1 As quatro classes de representao para o sujeito........................................................36
1.5 A VONTADE EM SCHOPENHAUER E SEU DILOGO COM OS DOIS TIPOS
POSSVEIS DE CONHECIMENTO STRICTO SENSU...............................................45
2 A DIALTICA ERSTICA DE ARTHUR SCHOPENHAUER
2.1 UMA OBRA PSTUMA...............................................................................................54
2.2 SOBRE O NOME DIALTICA ERSTICA..............................................................56
2.3 A BASE DE TODA DIALTICA SEGUNDO SCHOPENHAUER.............................65
2.4 OS ESTRATAGEMAS...................................................................................................66
2.4.1 Estratagemas Propositivos
2.4.1.1 Quarto Estratagema...................................................................................................68
2.4.1.2 Quinto Estratagema...................................................................................................69
2.4.1.3 Stimo Estratagema...................................................................................................69
2.4.1.4 Nono Estratagema.....................................................................................................70
2.4.1.5 Dcimo Estratagema.................................................................................................70
2.4.1.6 Dcimo Quinto Estratagema.....................................................................................71
2.4.1.7 Trigsimo Quinto Estratagema (argumentum ab utili).............................................71
2.4.2 Estratagemas Refutativos
2.4.2.1 Primeiro Estratagema (Amplificao).......................................................................72
2.4.2.2 Segundo Estratagema................................................................................................73
2.4.2.3 Terceiro Estratagema................................................................................................74
2.4.2.4 Oitavo Estratagema...................................................................................................76
2.4.2.5 Dcimo Segundo Estratagema..................................................................................76
2.4.2.6 Dcimo Sexto Estratagema (Argumentum ad homimen)..........................................77
2.4.2.7 Dcimo Stimo Estratagema (diferenciao sutil)....................................................77
2.4.2.8 Dcimo Oitavo Estratagema (mutatio controversiae1).............................................78
2.4.2.9 Dcimo Nono Estratagema.......................................................................................78
2.4.2.10 Vigsimo Primeiro Estratagema.............................................................................79
2.4.2.11 Vigsimo Segundo Estratagema.............................................................................79
2.4.2.12 Vigsimo Terceiro Estratagema..............................................................................80
2.4.2.13 Vigsimo Quinto Estratagema................................................................................80
2.4.2.14 Vigsimo Sexto Estratagema..................................................................................81
2.4.2.15 Vigsimo Stimo Estratagema................................................................................82
2.4.2.16 Vigsimo Oitavo Estratagema (argumentum ad auditores)....................................82
2.4.2.17 Vigsimo Nono Estratagema (digresso)................................................................83
2.4.2.18 Trigsimo Primeiro Estratagema.............................................................................84
2.4.2.19 Trigsimo Segundo Estratagema.............................................................................84
2.4.2.20 Trigsimo Terceiro Estratagema.............................................................................85
2.4.2.21 Trigsimo Quarto Estratagema...............................................................................85
2.4.2.22 Trigsimo Stimo Estratagema (argumentum ad hominem por ad rem)................85
2.4.2.23 ltimo Estratagema (argumentum ad personam)...................................................86
2.4.3 Estratagemas Mistos
1 Mudana de controvrsia.
2.4.3.1 Sexto Estratagema.....................................................................................................88
2.4.3.2 Dcimo Primeiro Estratagema..................................................................................88
2.4.3.3 Dcimo Terceiro Estratagema...................................................................................88
2.4.3.4 Dcimo Quarto Estratagema (Fallacia non causae ut causae primeira
ocorrncia).................................................................................................................89
2.4.3.5 Vigsimo Estratagema (fallacia non causae ut causae segunda ocorrncia)........89
2.4.3.6 Vigsimo Quarto Estratagema..................................................................................90
2.4.3.7 Trigsimo Estratagema (argumentum ad verecundiam)...........................................90
2.4.3.8 Trigsimo Sexto Estratagema....................................................................................91
2.5 A DIALTICA ERSTICA SOB UM PONTO DE VISTA CONTEMPORNEO......93
3 A EPISTEMOLOGIA DE SCHOPENHAUER E A DIALTICA ERSTICA
3.1 PAVIMENTANDO O CAMINHO PARA UM POSSVEL DILOGO.......................97
3.2 INDISSOCIABILIDADE DA EPISTEMOLOGIA DE SCHOPENHAUER DE SUAS
ESTTICA E TICA.....................................................................................................104
3.3 A DIALTICA ERSTICA COMO RETRATO AUTOEVIDENTE DO
CONHECIMENTO A SERVIO DA VONTADE.......................................................112
CONCLUSO ..................................................................................................................124
REFERNCIAS................................................................................................................134
13
INTRODUO
Pois bem, foi a este Pris, quando ainda era pastor no monte Ida, que Zeus
enviou Hermes com as trs deusas, Hera, Atena e Afrodite, que disputavam,
com sua beleza, a ma de ouro que a provocante ris, a Discrdia, deixou
cair entre os deuses, por ocasio do banquete de npcias de Ttis e Peleu. Ao ver as divindades, o pastor teve medo e quis fugir, mas Hermes o
persuadiu a funcionar como rbitro do magno concurso, em nome da
vontade de Zeus.
As trs imortais expuseram ento seus argumentos e defenderam sua
prpria causa e candidatura, prometendo cada uma sua proteo e dons
particulares, se por ele declarada vitoriosa. Hera assegurou-lhe, se fosse eleita, o imprio da sia; Atena ofereceu-lhe a sabedoria e a vitria em
todos os combates; Afrodite garantiu-lhe o amor da mulher mais bela do
mundo: Helena, esposa de Menelau, rainha de Esparta. Alexandre [Pris]
decidiu que a mais bela das trs era Afrodite (...). (BRANDO, 1992, v. 2, p. 239).
Um juzo acerca de um fato, emitido no no intuito de se comunicar conhecimento
e, assim, se chegar verdade de uma questo em disputa, mas motivado pelos benefcios
subjacentes reservados ao emissor deste juzo, que sero apoiados caso se agrade plateia,
ou a algum em particular que dela faa parte, a questo de interesse do opsculo pstumo
schopenhaueriano intitulado Dialtica Erstica e do presente trabalho, estando este
adicionalmente preocupado com a relao daquela luz da doutrina do mundo como Vontade
e Representao de Arthur Schopenhauer. De acordo com o relato da mitologia grega,
segundas intenes travestidas de informao imparcial foram a origem da Guerra de Tria;
o Pomo da Discrdia, razo ltima da induo de um juzo ad hoc por meio de
fundamentaes extra-argumentativas, foi o motivo de o Ocidente atribuir a ris, potestade
grega chamada Discrdia pela tradio latina, o estilo de argumentao em que o que importa
a vitria, pouco importando o meio; afirmao da vontade de vida na forma de linguagem
verbal o melhor entendimento que se pode ter da referida obra pstuma do filsofo de
Danzig, conforme advoga a dissertao ora apresentada.
Do ponto de vista de sua obra tomada como um todo, Schopenhauer ingressa no
debate filosfico inequivocamente partindo da separao entre fenmeno e coisa-em-si,
inaugurada por Immanuel Kant, a quem Schopenhauer chamava o assombroso
(SCHOPENHAUER, 1950, p. 27) apodo que nos remete imediatamente famosa passagem
14
de um dos discursos platnicos outra referncia inequvoca para Schopenhauer, ao lado do
prprio Kant dedicados s investigaes acerca do conhecimento, em que Scrates explica
a Teeteto que filosofia assombro, espanto, em 155d:
TEET. Pelos deuses, Scrates, como me espanto muitssimo com o facto
de ser assim e, por vezes, quando verdadeiramente olho para isso, fico tonto.
S. Efectivamente, meu amigo, Teodoro parece no ter adivinhado mal a
tua natureza. Pois o que ests a passar, o maravilhares-te, mais de um filsofo. De facto, no h outro princpio da filosofia que no este (...)
(PLATO, 2010, p. 212).
Erudito e abastado, filho de um comerciante com uma romancista, instrudo nas
letras e nos nmeros, Schopenhauer foi uma exceo dentre os filsofos modernos alemes,
quase todos professores universitrios ou como dizia Schopenhauer, filsofos de edcula
(SCHOPENHAUER, 2013, p. 216.) , alguns dos quais inclusive foram seus professores,
como Fichte e Schleiermacher (idem, p. 12). Beneficirio da situao descrita por si prprio
no Livro IV de sua magna opera2 durante a maior parte de sua idade adulta, Schopenhauer
pde dedicar-se exclusivamente filosofia por toda sua vida, mormente aps a morte de seu
pai, possivelmente por suicdio. Talvez por no estar inserido no circuito universitrio
prussiano oficial, aquilo que produziu e legou posteridade via publicaes levou muito
tempo para que efetivamente impactasse a cena filosfica de ento, o que lhe rendeu anos a
fio de ilustre anonimato. Restou-lhe seguir uma vida dedicada ao estudo da filosofia, mas
sem visibilidade. To importante para a sua realizao enquanto filsofo era a questo da
leitura de seus escritos, que desabafou no prefcio 2 edio de SVN: Legor et legar3,
aps duas edies do seu opus magnum que passaram despercebidas entre os alemes, sendo
que Schopenhauer precisou resgatar boa parte da tiragem da primeira edio de modo a evitar
que se tornasse papel de rascunho. A partir de 1851, com a publicao dos Parerga und
Paralipomena4, Schopenhauer passa a gozar daquilo que havia aguardado pelos trinta e trs
2 A resignao, ao contrrio, assemelha-se fortuna herdada: livra o herdeiro para sempre de todas as
preocupaes. Schopenhauer, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representao - Tomo I. Trad. de Jair
Barboza. So Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 494, grifo nosso. 3 Sou lido e serei lido. 4 Conforme escreve no prefcio terceira edio de MVR I, Sete anos aps a publicao da segunda edio
publiquei dois tomos intitulados Parerga e paralipomena [ornatos e suplementos]. Aquilo contido sob este
ttulo so acrscimos exposio sistemtica de minha obra principal. Contudo, tinha ento de public-los como
podia, pois era bastante duvidoso se viveria para ver esta terceira edio (Ibid., pp. 38-39).
15
anos antecedentes, desde que veio a lume em 1819 a primeira edio de MVR I:
reconhecimento pblico.
O filsofo que desprezava sua poca5 (desprezo que inclua sua repulsa filosofia
universitria, sobretudo aos professores universitrios alemes, a quem responsabilizava por
seu ostracismo forado em sua prpria terra6), abertamente regozija-se com a sua boa
receptividade, no porque secretamente se importasse com a opinio dos outros7, mas sim
porque Schopenhauer considerava a misso de sua vida8 publicar sua obra satisfatoriamente,
para os poucos leitores que j lhe eram fiis9 e tambm, provavelmente, porque sua doutrina
filosfica declaradamente dialogava com os principais monumentos da histria da filosofia
ocidental como um todo at ento, na opinio de Schopenhauer: Immanuel Kant e Plato.
Kant inaugurara com a sua Crtica da Razo Pura o idealismo transcendental, donde partem
as investigaes schopenhauerianas, ao passo que Plato fornecera as Ideias, que tero um
papel preponderante na filosofia de Schopenhauer.
Fez-se referncia aqui s obras de Schopenhauer publicadas em vida, por sua prpria
deciso, mas no s pstumas entre as quais se encontra nada menos que a edio final dos
Parerga e Paralipomena, diga-se de passagem. Como j aludido, a presente dissertao se
interessa especificamente por um pequeno texto pstumo de Schopenhauer, a um s tempo
riqussimo em possibilidades de complementao de interpretao de sua obra reputada por
ele prprio e por seus estudiosos como inteiria, doutrina nica e composio orgnica e
pouco estudado no Brasil, onde viceja uma abordagem, aqui assim reputada, equivocada
5 A minha doutrina no reclama de modo algum para si o nome de filosofia do tempo presente, to disputado
pelos grotescos adeptos da mistificao hegeliana, mas sim o de filosofia do tempo vindouro, tempo este que
no mais encontrar sua satisfao em palavreados vazios de sentido, em frases ocas e em paralelismos jocosos,
mas que exigir da filosofia contedo real e concluses srias (...). SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a
Vontade na Natureza. Trad. de Gabriel Vallado Silva. Porto Alegre: L&PM Editores, 2013, p. 49. 6 Friedrich Dorguth, jusfilsofo alemo, comparava Schopenhauer a Kaspar Hauser, o jovem encontrado em
Nuremberg no sculo XVIII que supostamente havia passado a maior parte da vida isolado do mundo, trancado
num quarto, tamanho o silncio dos filsofos alemes mais proeminentes poca acerca da obra do filsofo de
Danzig. Id.. 7 Nenhum homem deveria esperar muito dos outros ou, em geral, do mundo externo. SCHOPENHAUER, Arthur. A Sabedoria da Vida. Trad. de Jeanne Rangel. So Paulo: Editora Golden Books, 2007a, p. 43. 8 Estou muito feliz por vivenciar ainda o nascimento de meu ltimo filho, com o que eu dou por cumprida minha misso nesta Terra. Finalmente me sinto livre de um peso que carreguei desde meus 24 anos e que pendia
fortemente em minhas costas. Ningum pode imaginar como isso. SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a
Filosofia e seu Mtodo. Trad. de Flamarion C. Ramos. So Paulo, Hedra Editora, 2010, p. 13. 9 Como ele prprio diz, Agora, por meio do presente, admitidamente visei aos leitores primeiros, os quais esto familiarizados com minhas obras correlatas e substanciosas; talvez estes at mesmo encontrem aqui muito de
seu desejado esclarecimento. SCHOPENHAUER, Arthur. Gesammelte Werke in zehn Bnden. Zurich:
Diogenes Verlag, 1977, v.7, p.7.
16
sobre o tema em tela, tomado como produto do intuito final de deliberadamente instruir as
pessoas a se enganarem umas s outras. A dialtica erstica de Arthur Schopenhauer,
publicada postumamente em 1864 no bojo da obra Eristik, in Arthur Schopenhauers
Handschrifftlicher Nachlass esta organizada por seu discpulo Julius Frauenstdt10 ,
consiste em 38 estratagemas de argumentao desonesta mapeados pelo prprio
Schopenhuaer, ilustrados sempre que possvel por exemplos de situaes vividas por ele
prprio. A eristische Dialektik a atividade que se dedica a conferir ares de seriedade e
imparcialidade argumentativa pura imposio discursiva dos caprichos particulares de um
indivduo: trata-se de instrumental retrico-contencioso que permite, em ltima instncia, a
afirmao de posicionamentos arbitrrios com verniz de altheia. Como diz Schopenhauer,
ferramenta que lida com o gosto da vitria pela vitria, per fas et per nefas11, um belo
exemplar de uma espcie de parnasianismo das objees, que almeja ao xito debatedor per
se e que, por sua natureza teleolgica mal dissimulada, torna-se o veculo verbal da m-f
humana por excelncia: o triunfo dos interesses personalssimos, confessveis e
inconfessveis; a ponte cuidadosamente maquiada de investigao honesta entre o
discurso apresentado e suas motivaes subjacentes.
As tradues da Erstica de Schopenhauer no Brasil12, em sua maioria, destoam
bastante de uma tendncia j difundida no exterior, considerando-se que existem dezenas de
edies estrangeiras do texto pstumo objeto da presente dissertao, a maior parte delas
intitulada The Art of Being Right (edies anglfonas) e Die Kunst, Recht zu Behalten
(edies germnicas). Ttulo retirado da segunda nota de rodap do opsculo
schopenhaueriano, apresenta propriedade e pertinncia assombrosas, pois que no evoca
determinado matiz semntico que daria a entender, ao leitor nefito, se tratar de um manual
de patifaria ou de um guia infalvel de persuaso, com vistas a se sagrar vencedor num
embate verbal por meio da habilidade em defender a prpria opinio, como o ttulo da maior
parte das edies brasileiras advoga13. Incansvel crtico da desonestidade intelectual,
10 Responsvel pela primeira edio de obras pstumas de Schopenhauer. Posteriormente tais obras foram
reunidas s obras publicadas in vita sob a batuta de Arthur Hbscher, cuja edio histrico-crtica a principal
referncia bibliogrfica mundial para estudos sobre Schopenhauer. 11 Por meios pios e por meios mpios. 12 Trs no total, pouqussimas quando se observa a existncia de dezenas de edies em lngua inglesa, por
exemplo. 13 Livros cujos nomes sugestivamente so Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razo e 38 Estratgias
para Vencer Qualquer Debate.
17
ferrenho defensor da clareza de discurso14 e autntico amante da sabedoria, no sentido
etimolgico da filosofia, nada jamais poderia estar mais distante do filsofo de Danzig do
que redigir um roteiro endereado a seus contemporneos que no gozavam de boa
avaliao por ele15 com vistas a ensin-los a embrulhar uns aos outros. Seu verdadeiro
intuito com essa obra no pode ser mais do que especulado pela posteridade, por se tratar de
um manuscrito que no foi publicado em sua integralidade pelo autor. Em sua integralidade,
frise-se, porque os Parerga fazem meno dialtica erstica em seu tomo II, mais
precisamente no 26, constante do captulo 2 da obra, intitulado Acerca da Lgica e da
Dialtica. L Schopenhauer afirma:
Reuni ento todos os artifcios desonestos que soem ocorrer com frequncia
ao se disputar e constitu claramente cada um deles conforme sua natureza
peculiar, elucidados atravs de exemplos e designados pelo prprio nome;
por fim coloquei tambm, de outra parte, os meios de conteno (bloqueio), por assim dizer, usados contra essas fintas (pseudoataques); donde uma
dialtica erstica formal [tcnica do discutir] surgiu (SCHOPENHAUER, 1977, v. 9, p. 33). Grifos nossos.
A dialtica erstica, assim, se prope a fornecer um mapeamento dos ardis intelectuais
de que tendem a se servir todos, sem exceo, quando tratam de se imiscuir numa contenda
discursiva. In verbis auctoris, [...] se dou razo ao adversrio to logo ele parece t-la,
dificilmente ele far o mesmo quando o caso se inverter: proceder antes per nefas, portanto,
tenho de fazer a mesma coisa. [...] Alm disso, se eu quisesse to logo me parecesse que
ele tem razo renunciar minha proposio, depois de t-la examinado a fundo, poderia
facilmente suceder que, induzido por uma impresso momentnea, eu estivesse renunciando
verdade para adotar o erro (SCHOPENHAUER, 2001a, pp.91-92).
Apesar do retrato abominvel que se pode fazer da dialtica erstica do ponto de vista
intelectual, Schopenhauer lhe atribui, contudo, grande utilidade, considerando sem razo
que venha sendo desprezada em tempos recentes16 (id., p.17), pois ela fornece provas de
14 (...) o filsofo [Schopenhauer] j se antecipava respondendo que um lago suo, lmpido, parece raso, mas
uma prospeco dele revela as suas profundidades. SCHOPENHAUER, 2005, p. 10. 15 Seu desdm para com a prpria gerao patente em trechos como O leitor que no se interessar por estes
assuntos pode transmitir este e todos meus escritos, intactos, a seus netos. Pouco me importa, pois no escrevo
para uma gerao, e sim para muitas. SCHOPENHAUER, Arthur. La Cuadruple Raz del Principio de Razn
Suficiente. Trad. de E. G. Blanco. Buenos Aires: El Ateneo, 1950, p. 65. 16 A meno aos tempos recentes pode muito bem ser uma referncia ateno que o tema tinha nos tempos
antigos, j que alguns dos estratagemas apresentados na dialtica erstica j constavam dos Tpicos aristotlicos,
fazendo Schopenhauer as devidas remisses quando deles trata em seu opsculo.
18
como se desmascarar uma argumentao que trate no de buscar o que ele chama de verdade
objetiva, mas de tentar estabelecer qual argumento vence por mais artifcios, num putativo
(e, se confirmado, flagrante) exemplo do conhecimento stricto sensu17 a servio da Vontade.
Quanto a este substantivo, o presente trabalho adota a diferenciao entre Vontade (com
inicial capitalizada) e vontade (com inicial minscula), introduzida no 22 da traduo de
MVR I, feita por Jair Barboza, devido melhor clareza possibilitada por tal diferenciao.
Assim que ele, por meio de um artifcio didtico, diferencia Vontade (coisa-em-si da
natureza) e vontade (manifestao da Vontade nos indivduos humanos).
Assim, o captulo 1 desta dissertao trata da doutrina de Schopenhauer como um
todo, explicitando a teoria do conhecimento que lhe tpica, que dialoga intimamente tanto
com sua esttica quanto com sua tica. O captulo 2 expe a dialtica erstica propriamente
dita, os trinta e oito estratagemas reunidos por Schopenhauer em seu manuscrito. O captulo
3 se prope a lidar com o cerne do problema investigado pela presente dissertao, a saber,
a relevncia epistemolgica complementar ou suplementar do pequeno tratado sobre
argumentao desonesta frente obra do filsofo de Danzig. A concluso, por fim, avalia o
saldo do trabalho, apontando as consequncias investigativas do esforo at ento
empreendido de dilogo entre o Schopenhauer publicado in vita e aquele que a dedicao de
um discpulo trouxe luz.
Ora, um texto redigido por Schopenhauer em algum momento entre os anos 1825 e
1830, ao qual ele prprio faz meno aproximadamente vinte anos depois, um fato no
mnimo intrigante, por gerar a situao de um texto que foi escrito, nunca publicado pelo
autor, muito embora exposto parcialmente posteriormente, j que trs estratagemas foram
apresentados nos Parerga, como mostrado no captulo 2 da presente dissertao. Trata-se de
uma obra pstuma, naturalmente, mas uma que o prprio autor decide exibir parcialmente
para seus leitores e, ironia do destino, o faz justamente na segunda edio da obra que o
lana para a notoriedade mundial , meramente insinuando aquilo que buscava ao escrever
os 38 estratagemas. Em que situao isso deixa a dialtica erstica? Uma vez que Julius
Frauenstdt publica o manuscrito postumamente e Arthur Hbscher o sedimenta no seio do
17 Com vistas a tornar a exposio do presente trabalho mais clara, julgamos necessria uma diferenciao entre conhecimento propriamente dito (stricto sensu, aquele de que Schopenhauer trata no livro I de MVRI) e
outras formas de conhecimento tambm divisadas por ele, como o conhecimento esttico e o tico, tratados
pelo filsofo na mesma obra nos livros III e IV, respectivamente.
19
opus schopenhaueriano, como a posteridade pode enfrentar a tarefa de ler o opsculo em
tela?
Conseguintemente, este trabalho se pretende uma tarefa interpretativa da obra
orgnica de Schopenhauer, que divide a realidade tanto a aparente quanto a ltima em
representao (Vorstellung) e Vontade (Wille), respectivamente, partindo da diviso anloga
feita primeiramente por Kant em coisa-em-si (Ding-an-sich) e fenmeno (Erscheinung). O
tratamento da questo da erstica aqui ensaiado, mais do que preocupado em expor os trinta
e oito estratagemas retricos mapeados por Schopenhauer como retrato do "vade mecum de
picardia" do filsofo de Danzig, interessa-se por apresent-los como introito a uma leitura
que os vincula a aspectos tpicos da epistemologia schopenhaueriana, com todas as suas
implicaes ticas e estticas. O problema de que a presente dissertao se ocupa, portanto,
a relevncia epistemolgica da dialtica erstica de Schopenhauer frente sua obra. Afinal,
a pesquisa ora apresentada surgiu do pressentimento de que o opsculo teria algo de mais
profundo a oferecer, sobretudo quando tomado contextualmente com a doutrina filosfica do
pessimismo schopenhaueriano, que propugna o mundo ilusrio coberto pelo vu de Maia,
puro caleidoscpio que preenche o vazio do tdio mortfero inerente vida humana18 e
esconde do sujeito o nico ser permanente que existe no sentido platnico: a Vontade. Da
mesma maneira que um nmero de prestidigitao tem mais a dizer sobre os meandros da
percepo da plateia do que sobre o truque de ilusionismo em si, assim aqui se considera a
dialtica erstica mais importante pelas implicaes complementares que autoriza frente ao
mundo como Vontade absoluta e representaes particulares relativas entre si, em oposio
a um tutorial para consagrar-se vencedor em qualquer debate. Muito apropriadamente, o
termo usado por Schopenhauer para designar cada uma das classes de argumentao
desonesta da dialtica erstica (estratagema), tambm pode ser traduzido do alemo ao
portugus pelo vocbulo truque: Kunstgriff.
18 A misria da existncia humana para Schopenhauer inequivocamente expressa nesta passagem: Sua vida [do animal e do homem], portanto, oscila como um pndulo, para aqui e para acol, entre a dor e o tdio, os
quais em realidade so seus componentes bsicos. SCHOPENHAUER, 2005, p. 402.
20
1 O MUNDO PARA SCHOPENHAUER
1.1 CONTEXTUALIZAO HISTRICA KANT
Immanuel Kant, o filsofo da revoluo copernicana do conhecimento, parece ser um
inconformado com o diagnstico de Hume quanto impossibilidade de um conhecimento
seguro. Ora, sendo o objetivo do conhecimento conferir informaes e relaes slidas e
confiveis ao ser humano acerca da natureza, seja ela sobre si ou sobre o mundo externo, o
que esperar de um cenrio que no nos permita emitir quaisquer juzos (proposies) que
digam respeito a ns e quilo que nos circunda e, menos ainda, nos autorize a fazer relaes
entre os dados eventualmente obtidos com segurana?
Hume afirma que os raciocnios humanos sobre questes de fato derivam da analogia
feita entre relaes de causa e efeito passadas e futuras, apenas. Assim sendo, inferncias
induzidas estatisticamente e embasadas to somente pelo hbito seriam tudo de que a
filosofia disporia e, deste modo, nem a racionalidade (raciocnio lgico) nem a
experincia (observao emprica) conseguem fundamentar essa inferncia. Suas
concluses so uma condenao a uma vida pr-racional, como a dos demais animais, em
que o mximo possvel seria reagir estatisticamente aos dados sensrios: para ele os animais
aprendem a partir da experincia assim como ns, e a razo deles sobre questes de fato
tambm so fundamentadas pela crena (HUME, 2004). Sob tais condies, o grande trunfo
de que o homem se gabava desde os tempos antigos e que o centro da atividade filosfica
a razo seria to impotente no contexto da tarefa de conhecer quanto o o instinto de
uma besta... Mais do que isso, a filosofia estaria condenada a um obstculo intransponvel a
si prpria e, no obstante, descoberto por si prpria. Aquilo que Kant expressa em seu
prefcio primeira edio da Crtica da Razo Pura para se referir metafsica somente, pode
ser visto sob a tica humeana como dizendo respeito ao prprio conhecimento emprico: A
razo humana, num determinado domnio dos seus conhecimentos, possui o singular destino
de se ver atormentada por questes, que no pode evitar, pois lhe so impostas pela sua
natureza, mas s quais tambm no pode dar resposta por ultrapassarem completamente as
suas possibilidades (KANT, 2001, A VII).
Analogamente ao que fez Coprnico, explicando de forma mais satisfatria e simples
as observaes astronmicas, ao deslocar o centro da gravitao dos planetas do sistema solar
da Terra para o Sol, Kant retira do centro do fenmeno da aquisio de conhecimento o objeto
21
e, em seu lugar, insere o sujeito cognoscente, nisso consistindo sua prpria revoluo
copernicana. Como disse Karl Jaspers, em filosofia as questes so mais essenciais que as
respostas (JASPERS, 1951): Hume se colocou a pergunta de como seria possvel o
conhecimento se os objetos no se revelam completamente ao sujeito de modo a corroborar
tudo o que deles pensamos conhecer; Kant se prope a questo de como no seria possvel
ao sujeito conhecer, se aquilo que os objetos nos revelam tudo o que podemos deles
conhecer, na exata medida em que os dados sensrios de que dispomos j esto submetidos
aos moldes do funcionamento cognitivo do prprio sujeito. Em outras palavras, a chave para
a superao do pirronismo mitigado proposto por Hume passa pelas formas puras ( dizer, a
priori) da sensibilidade (ou da capacidade de representao Vorstellung), expostas na
Esttica Transcendental da Crtica da Razo Pura.
O incio das investigaes kantianas so aquelas disciplinas que, segundo ele, j se
mostraram capazes de produzir conhecimentos seguros (certamente no sendo esse o caso da
metafsica). Os conhecimentos seguros so aqueles que seguiram a via segura da cincia.
Embora parea mero jogo de palavras, existe inovao a: se para Hume, ter experincias
equivale a receber impresses sensrias esta, alis, a principal tese do empirismo moderno
e organiz-las sob a classe de relaes de ideias ou questes de fato; para Kant, empiria
tudo aquilo que se submeta s condies de possibilidade da experincia; em no o fazendo,
no h que se falar em experincia sob nenhuma hiptese. Assim, as condies para que haja
percepes so o foco da Esttica Transcendental e o ponto de partida para a superao do
ceticismo humeano, que termina por reabilitar a possibilidade de aquisio de conhecimentos
seguros e a inviabilizar, enquanto cincia, a metafsica que vinha sendo feita at ento. Nas
palavras de Dalbosco,
A resposta pergunta pelas condies de possibilidade do conhecimento sinttico a priori conquistada mediante a comprovao do espao e do
tempo como formas puras da sensibilidade e pela fundamentao do carter
a priori das categorias. (DALBOSCO, 1997, p. 16).
Assim, o conceito de hbito em Hume est intimamente relacionado com o de espao
e o de tempo. O famoso exemplo da bola de bilhar que se choca com a outra e causa o
movimento desta a ilustrao de que le bon David como foi conhecido na Frana nos anos
em que l viveu (MAGEE, 2001) se serve diversas vezes em suas Investigaes para
chamar ateno ao fato de que as impresses sensrias no nos permitem admitir
22
empiricamente a existncia da causalidade. Para Kant, um dos problemas do empirismo de
Hume e das metafsicas concebidas antes da sua filosofia crtica no delimitar
claramente o que experincia e o que condio de experincia. Todas as experincias, diz
Kant, tm um escopo bem delimitado e s so possveis dentro de determinadas condies
pr-estabelecidas pelo prprio aparato cognitivo do indivduo, ou, para usar um termo seu,
conforme o seu esprito (Gemt). Logo, a qualificao da experincia em Kant o incio da
revoluo copernicana de trazer o sujeito ao centro da experincia e retirar desse mesmo
centro o objeto: o tempo condio para a experincia; no s ele, mas tambm o espao
dizer, o sujeito s tem experincia se aquilo que sensibiliza seus rgos sensrios o faz
inserido no tempo e no espao. Assim, o tempo e o espao no podem ser percebidos
empiricamente por que eles no fazem parte da experincia, mas so condies de
possibilidade desta; em outros termos, tempo e espao so formas puras da sensibilidade ou
intuies puras. Aqui se d grande nfase na esttica transcendental por se tratar da parte
melhor aproveitada sob o ponto de vista da doutrina de Schopenhauer e mesmo a mais
admirada por ele na CRP19.
1.2 SCHOPENHAUER E O NEGCIO DO FILSOFO
A produo intelectual de Schopenhauer se inicia cronologicamente com a redao
de sua tese de doutoramento em 1813. Cronologicamente porque a leitura das diferentes
publicaes de Schopenhauer no deixa espao para dvidas sobre se ele estava seguro a
respeito sua filosofia desde o primeiro escrito, j que o seu corpus to coeso que cada uma
das suas obras clara sobre o todo daquilo que deseja expor e reverbera o que j fora exposto
em escritos anteriores exceo, talvez, da Metafsica do Belo, que ainda no estava
contemplada em SRQ. Ademais, o zelo que dispensava clareza de suas exposies no lhe
permitia ser menos do que didtico ao retomar em uma obra aspectos j abordados em
publicaes prvias, fornecendo aos leitores as devidas remisses bibliogrficas das
19 Como ele afirma na Crtica da Filosofia Kantiana, apndice a MVR I, A esttica transcendental uma obra to extraordinariamente meritria, que, sozinha, teria bastado para eternizar o nome de Kant. E continua, mais
frente: Nesse sentido, que distncia entre a esttica transcendental e a analtica transcendental! L, que
clareza, determinidade, segurana, firme convico enunciada abertamente e comunicada de maneira infalvel!
Tudo cheio de luz, nenhum canto escuro deixado: Kant ali sabe o que quer e sabe que tem razo. Aqui, ao
contrrio, tudo obscuro, confuso, indeterminado, vacilante, incerto, a exposio temerosa, cheia de desculpas
e remisses ao que vem em seguida ou at mesmo tergiversaes (Ibid., pp. 549 e 559, grifos no original).
23
passagens relevantes. Analogamente aos estudos de filosofia que seguem uma orientao
cronolgica, tambm aqui se adotar o critrio temporal para a introduo da filosofia de
Schopenhauer, mais por convenincia do que por idiossincrasias doutrinrias referentes ao
filsofo, pois que em seu caso no possvel argumentar no sentido de que as suas obras
constroem umas sobre as outras, acumulando-se e retomando-se enquanto premissas que
conduzem s concluses ulteriores, num crescendo teleolgico, caminhando
inexoravelmente ao znite.
Grosso modo e na esteira do afirmado acima, pode-se dizer que tudo o que foi
publicado por Schopenhauer so distintas apresentaes de uma doutrina nica, sendo que
algumas obras so mais abrangentes que outras no que concerne exposio dessa doutrina,
haja vista a necessidade de explicitar mais ou menos determinada faceta de sua filosofia, a
depender do texto em mos. Naturalmente, O Mundo como Vontade e Representao o
cerne de sua filosofia e a principal fonte de referncia para aqueles desejosos de conhecerem
a contribuio do filsofo de Danzig filosofia ocidental (e no seu caso especfico tambm
o aporte fornecido ao dilogo entre filosofia ocidental e oriental, sendo ele um dos poucos a
entremear ambas no mago de sua filosofia20). Em qualquer caso, engana-se quem acredita
no se beneficiar de mais leituras para compreender mesmo seu opus magnum em particular,
como o prprio filsofo afirma em inmeras passagens desse texto. Assim sendo, espervel
que se encontrem a um tempo concentrados e difusos em sua obra os diferentes aspectos da
sua filosofia, donde a necessidade de se buscar em seus distintos escritos a complementao
mtua necessria para que se compreenda, enfim, a organicidade doutrinal autodeclarada por
Schopenhauer e reconhecida por seus comentadores21.
20 Conforme dizem Jair Barboza e Oswaldo Giacoia Jr., respectivamente: E aqui entra em cena outro aspecto de peso do pensamento de Schopenhauer: foi o primeiro filsofo do Ocidente a propor uma interseo
visceral entre a filosofia oriental (budismo, pensamento vedanta) e a filosofia ocidental de inspirao
platnico-kantiana. (Ibid., p. 12); A referncia aos Upanixade, a frequncia com que a expresso vu de
Maya comparece no texto schopenhaueriano, as recorrentes citaes do Bhagavad-Gita no so artifcios estilsticos de retrica filosfica, mas indicam uma vinculao terica entre o pensamento hindu e budista
e o sistema filosfico de Arthur Schopenhauer. FLORENTINO NETO, Antonio; GIACOIA JR., Oswaldo
(Orgs.). Budismo e Filosofia em Dilogo. Campinas: Editora Phi, 2014, p. 90. 21 Uma parte se refere outra e por ela pressuposta. Apresenta uma coeso orgnica, isto , uma tal em
que cada parte tanto conserva o todo quanto por ele conservada, nenhuma a primeira ou a ltima, o todo
ganha em clareza mediante cada parte, e a menor parte no pode ser plenamente compreendida sem que o todo
j o tenha sido previamente (SCHOPENHAUER, 2005, p.16).
24
Talvez a melhor maneira de se iniciar a exposio da filosofia de Schopenhauer seja
exatamente a partir de uma metareferncia ao prprio trabalho; dizer, da viso que lhe
prpria referente atividade filosfica em geral e do papel que atribui ao filsofo.
Os Livros I, III e IV de O Mundo como Vontade e Representao apresentam
comentrios explcitos de Schopenhauer acerca de sua concepo de filosofia, mas neste
ltimo Livro que ele nos d sua posio inequvoca acerca daquilo que considera ser filosofia,
sua natureza e a misso dos que a ela se dedicam, mais precisamente nos pargrafos 53 e 68.
O filsofo de Danzig adota uma postura meditativa da filosofia. Como ele prprio nos
diz, Na minha opinio, toda filosofia sempre terica, j que lhe sempre essencial manter
uma atitude puramente contemplativa, no importa o quo prximo seja o objeto de
investigao, e sempre inquirir, em vez de prescrever regras (SCHOPENHAUER, 2005, p.
353). O mximo que permitido filosofia, como Schopenhauer a concebe, interpretar e
descrever a essncia do mundo da qual todos tm um vislumbre em forma de sentimento22
, trazendo-a razo e explicitando todas as suas relaes possveis, sob todos os pontos de
vista concebveis.
Um dos pontos mais relevantes da doutrina de Schopenhauer exatamente por expor
as duas maneiras de se lidar com o mundo fenomnico e a coisa-em-si a comparao
entre, de um lado, o santo, o asceta, e, de outro, o homem ordinrio, comum. Essa dicotomia
guarda analogia com a separao entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstrato, pois
enquanto o homem ordinrio age sob o transe do Vu de Maia, o asceta j se libertou deste e
enxerga a realidade nua, livre de iluses. Assim como existe um abismo entre o asceta e o
ser humano comum, tambm assim h um vasto oceano separando o conhecimento intuitivo
do abstrato, afastamento este inversamente proporcional ateno que lhe foi dada ao longo
da histria da filosofia, segundo Schopenhauer, e mesmo aqueles que contemplaram essa
diferenciao erraram ao considerar o abstrato mais importante que o intuitivo enquanto fonte
do conhecimento. Sua doutrina, diz ele, trata fundamentalmente das nuances de cada um de
ambos os conhecimentos e deriva dessa diferenciao suas consideraes ticas e estticas.
Como certa vez disse Franz Kafka, Schopenhauer um artista da linguagem. Disso
emana seu pensamento. A linguagem, por si s, causa para que obrigatoriamente se o leia
22 Em Schopenhauer, sentimento (Gefhl) contrape-se razo (Vernunft).
25
(FISCHER, 2010, p. 156). Numa das muitas belas passagens em MVR I, Schopenhauer
discursa acerca da diferena entre cincia e filosofia. A cincia a atividade intelectual
humana que se serve de uma das quatro formas do princpio de razo suficiente para explicar
os diversos componentes daquilo que estuda em relao s suas relaes recprocas;
entretanto, sempre h algo sobre o que no se fala e que inexplicvel, por se tratar de
pressuposto, como por exemplo as foras naturais na fsica. Assim, todos os ramos da cincia
possuem um ncleo duro de pressupostos que no pode ser abandonado e que no posto em
questo, como un point dhonneur, um axioma, que no pode ser questionado, sob pena de
no haver fundamento a partir do qual todas as relaes recprocas partam. Tal no o caso
da filosofia; em suas palavras:
A filosofia tem como peculiaridade o fato de nada nela ser tomado como pressuposto, mas tudo lhe em igual medida estranho e
problemtico, no apenas as relaes dos fenmenos, mas tambm
eles mesmos, sim, o prprio princpio de razo, ao qual as outras cincias se contentam em remeter todas as coisas. Na filosofia, nada
seria ganho com tal remisso, j que cada membro de uma srie e to
estranho para ela quanto os demais. Alm disso, esse tipo mesmo de
concatenao lhe to problemtico quanto aquilo que ligado por ele; to problemtico aps a ligao, quanto antes dela. Pois, como
mostrado, mesmo o que as cincias pressupem como
fundamento e limite de suas explanaes justamente o
verdadeiro problema da filosofia, que, consequentemente,
principia l onde as cincias se detm (SCHOPENHAUER, 2005,
p. 137, grifo nosso).
Em outros termos, enquanto as cincias procuram o porqu dos fenmenos do mundo,
havendo remisso imediata e necessria ao princpio de razo suficiente j que porque
remete apenas explicao da passagem de um estado a outro a filosofia preocupa-se com
o qu, aquilo que pressuposto das cincias. Ora, adiciona Schopenhauer, vlido dizer
que todo homem sabe o que o mundo , reconhece imediatamente as verdades filosficas que
so objeto dessa atividade, mas o faz intuitivamente, percebe-as pelo conhecimento intuitivo
(mediante representaes intuitivas). Traz-las ao conhecimento abstrato, exposio
conceitual, transmisso de um indivduo ao outro, contudo, exatamente a tarefa da
filosofia, sua inescusvel raison dtre. Assim,
Fazer filosofia repetir abstratamente toda natureza ntima do mundo, de
maneira distinta e universal, por conceitos, e assim deposita-la como
imagem refletida nos conceitos permanentes, sempre disponveis da razo, isso e nada mais filosofia (idem, p.487).
26
No Livro I de MVR I, Schopenhauer transcreve a noo de filosofia de Bacon de
Verulmio, mostrando que as vises de ambos sobre a filosofia coincidem sobremaneira,
embora Schopenhauer considere seu conceito mais universal que o de Bacon:
A filosofia s verdadeira quando reproduz o mais fielmente possvel as
palavras do mundo e como que escreve conforme ao seu ditado, de tal
maneira que no passa de um simulacro e reflexo do mundo, nada lhe
acrescentando, mas somente repetindo e ecoando23. (BACON, De Augmentis Scientiarum, apud SCHOPENHAUER, 2005, p. 138).
Assim, reflexo do mundo, cpia da sua realidade (que em Schopenhauer corresponde
Vontade e s representaes) em palavras, soma de tudo o que se encontra includo no orbe
terreno: boa filosofia aquela que o retrata fielmente, em vez de a ele adicionar figuras eis
a o negcio do filsofo24.
No tocante sua prpria misso enquanto filsofo, na tarefa de organizar em
conceitos o mundo intuitivo como entendido por ele, Schopenhauer considerava
imprescindvel que aqueles que considerava os maiores filsofos da tradio ocidental
fossem retomados e tratados conjuntamente, e assim se inicia sua doutrina. No incio de sua
tese de doutoramento, Schopenhauer confere a Plato e a Kant a autoria dos, na sua opinio,
principais instrumentos metodolgicos de investigao jamais fornecido filosofia e s
cincias em geral: a lei da homogeneidade de autoria de Plato25 e a lei da especificidade
de autoria de Kant26. A lei da homogeneidade preconiza o mtodo segundo o qual se deve
reduzir, para fins de investigao cientfica e filosfica, a multiplicidade de entes sob
espcies, depois sob gneros e por fim sob conceitos, sempre segundo as semelhanas ou
qualidades comuns, para que se possa chegar a uma quantidade de elementos razoavelmente
adequados para se trabalhar. Tal reduo de entes guarda relao estreita com a Navalha de
Ockham, diz Schopenhauer, expressa pelo clssico princpio entia praeter varietates non
esse multiplicanda27. J a lei da especificidade proporia um enunciado contrrio ao anterior:
23 Interessante observar que Schopenhauer cite o patrono da cincia moderna para explicitar sua prpria viso
de filosofia, muito embora ambas cincia e filosofia difiram radicalmente, isto , na raiz. 24 Id. p. 486. 25 Schopenhauer afirma que tal lei se encontra enunciada nas seguintes passagens: Filebo, 219-223; Poltico,
62-63; Fedro, 361-363 26 Identificada por Schopenhauer na CRP, no Apndice Dialtica Transcendental. 27 No se multiplica a diversidade dos entes para alm do necessrio.
27
entium varietates non temere esse minuendas28. Embora paream prescries opostas, trata-
se de orientaes complementares, diz Schopenhauer, pois cada uma prov a limitao ao
uso da outra, sem que se abuse de uma em prejuzo da outra (SCHOPENHAUER, 1950,
p. 27).
No pargrafo 31 de MVR I Schopenhauer ataca de frente a questo da relao entre
Kant e Plato. Houvessem os filsofos alemes do sculo XIX, diz ele, compreendido tanto
Plato quanto Kant, muitas farsas filosficas teriam sido evitadas a includos aqueles que
ele considera os engodos neokantianos do seu tempo. Em sua opinio, os poucos que se
dedicaram questo de pr Plato e Kant a dialogar chegaram concluso de que no haveria
concordncia alguma entre ambos. Destarte, o filsofo de Danzig se prope fechar essa
lacuna da histria da filosofia com sua prpria doutrina, impondo-se a misso filosfica de
retratar o mundo por representaes abstratas e, ao faz-lo, posicionar-se na qualidade de o
audaz continuador de sua filosofia [de Kant] (SCHOPENHAUER, 2013, p. 28).
1.3 O CONHECIMENTO INTUITIVO ENQUANTO ORIGEM DO MUNDO: SOBRE A
VISO E AS CORES
A distino proposta por Kant entre coisa-em-si (Ding-an-sich) e fenmeno
(Erscheinung), exigida pela esttica transcendental, o ponto de partida da doutrina
schopenhaueriana. Segundo o filsofo de Danzig, aps Kant no se poderia mais fazer
filosofia sem se levar em conta a Crtica da Razo Pura: Se ingleses e franceses insistem
em tais gracejos, podemos atribu-los sua simplicidade, porque a filosofia kantiana ainda
no penetrou neles; por isso eles continuam se debatendo ainda com o parco empirismo de
Locke e de Condillac (SCHOPENHAUER, 2005, p. 37). Aos seus conterrneos, contudo,
imperdovel que ignorem Kant como se a Crtica da Razo Pura tivesse sido escrita na Lua
e nenhum exemplar dela tivesse chegado Terra(...) (SCHOPENHAUER, 2013, p. 25), e
que aqueles que o fazem so pseudofilsofos alemes que se atrevem a considerar tempo,
espao e causalidade como conhecimentos empricos, relanando no mercado, portanto, as
mesmas absurdidades completamente eliminadas e explodidas h setenta anos, encaradas j
com indiferena por seus avs (...) (idem, p. 37).
28 A variedade dos entes no deve ser reduzida apressadamente.
28
O maior mrito de Kant, diz Schopenhauer em sua Crtica da Filosofia Kantiana, foi
a distino entre fenmeno e coisa-em-si. A demonstrao de que entre as coisas e o sujeito
percipiente sempre est o intelecto a constatao subjacente s concluses da esttica
transcendental e a fundamentao da distino acima mencionada. Contudo, Schopenhauer
discorda de Kant e rejeita sua afirmao em CRP B 7529 ao dizer que o principal enunciado
dessa passagem falso por ser
exatamente o oposto da verdade; justamente porque os conceitos obtm toda significao, todo contedo, exclusivamente a partir de sua
referncia s representaes, das quais foram abstrados, extrados, isto ,
formados pelo abandono de todo inessencial. Por isso, se deles retirado o alicerce da intuio, so vazios e nulos. Intuies, ao contrrio, tm em si
mesmas grande e imediata significao (nelas, de fato, objetiva-se a coisa-
em-si) (SCHOPENHAUER, 2005, p. 592).
O protagonismo do intelecto na percepo do mundo pelo sujeito to proeminente,
diz Schopenhauer, que nem mesmo os sentidos fisiolgicos escapam a tal subordinao. O
primeiro captulo da doutrina das cores de Schopenhauer, espantosamente atual,
considerando-se as constataes mais recentes das neurocincias sobre a natureza das cores30,
apontado pelo prprio filsofo como leitura prvia obrigatria a todos aqueles que queiram
ler sua obra capital.
O pblico ledor de SVC, em suas prprias palavras, aquele familiarizado com a
Doutrina das Cores de Goethe, que fornece as bases para uma Teoria das Cores no-
29 Pensamentos sem contedo so vazios; intuies sem conceitos so cegas. 30 A teoria newtoniana da luz, apresentada na obra Nova Teoria sobre Luz e Cores, publicada em 1672, explicava como as cores eram apenas um fenmeno fsico da luz solar, cuja decomposio em diversas
frequncias de onda estimulada por um prisma ou outra mudana de meio material para a luz explicava
porque eram percebidas cores distintas sob a incidncia da luz branca. Posteriormente o espectro de luz
visvel descoberto por Newton seria complementado pelas noes de infravermelho e ultravioleta a partir dos
trabalhos de um conterrneo seu, William Herschel. J a Doutrina das Cores de Goethe (1810) no admitia
que a percepo das cores fosse meramente um resultado de predicados fsicos da luz e a obra de Schopenhauer sobre o tema adotava o mesmo posicionamento, acerca da intelectualidade da luz. Hoje se sabe
que ambos estavam certos, pois muito embora a abordagem de Newton sobre a composio coletiva da luz
branca seja correta, o aspecto intelectual hoje chamado neurocerebral explica a possibilidade das diversas
iluses cromticas devido aos fotorreceptores presentes na retina e o processamento desses impulsos eltricos
no crebro: Ao passo que sabemos que as cores espectrais podem ser uma-a-uma correlacionadas ao
comprimento de onda da luz, a percepo da luz com mltiplos comprimentos de onda mais complicada.
Descobriu-se que muitas combinaes diferentes de comprimentos de onda de luz podem produzir a mesma
percepo de cor. Isso pode ser posto em perspectiva com o diagrama de cromaticidade CIE.
WILLIAMSON, S. J.; CUMMINS, H. Z.: Light and Color in Nature and Art, Wiley. 1983. Disponvel em
. Acesso em 14 out. 2015.
http://hyperphysics.phy-astr.gsu.edu/hbase/vision/colper.html
29
newtoniana, no sentido de trazer estas centralidade da percepo do sujeito, como Kant j
havia feito com a revoluo copernicana do idealismo transcendental. O trabalho de
Schopenhauer ao escrever a sua teoria das cores a partir da doutrina de Goethe visa to
somente a satisfazer o anseio que esta cria quando tomada em seu todo, assim como um
acorde de uma stima exige o harmnico que o dissolve (SCHOPENHAUER, 2005, p. 23);
em outras palavras, a Doutrina das Cores de Goethe pedia sua complementao pela Teoria
das Cores de Schopenhauer. No obstante, o tratamento do problema das cores na sua teoria
cognitivo-epistemolgico, filosfico, portanto, e visa a esclarecer que as cores, como as
conhecemos, s existem na cabea do sujeito percipiente.
Retomando algo que j havia afirmado em seu SRQ31, toda viso, diz Schopenhauer,
intelectual (relativa ao entendimento), pois sem o entendimento (Verstand) no poderia
haver qualquer tipo de percepo sensria que fizesse sentido. Viso conhecimento de um
objeto e s acontece graas ao entendimento, que vincula toda impresso sensria a uma
causa, de maneira a priori, automaticamente, sendo essa uma caracterstica indissocivel do
entendimento, que reconhece toda impresso material como sendo da mesma natureza que o
prprio corpo percipiente. O entendimento lida com impresses sensrias representaes
intuitivas para Schopenhauer , ao passo que a razo trabalha com conceitos chamadas por
ele representaes abstratas. O entendimento, na doutrina do filsofo de Danzig, a ponte
que paira sobre o abismo entre sensaes e conhecimento.
Esse conhecimento (atribuio de uma representao intuitiva a uma causa material)
no racional no sentido de relativo razo (Vernunft), mas puramente intuitivo, pois diz
respeito ao entendimento puro, a base mesma da composio da experincia em seres
humanos, como j ensinado pela esttica transcendental kantiana. No se trata, portanto, de
uma demonstrao ou de um silogismo que comprove um efeito estar vinculado a uma causa
num espao e tempo experimentados, mas sim de um movimento necessrio a todo
entendimento que no sofra de alguma limitao e que no comungue com a razo. Esta
trabalha com representaes abstratas e graas a ela que o homem goza de suas grandes
prerrogativas entre os demais animais: a lngua, a cincia e a capacidade de transformar em
conceitos a viso geral da vida e, assim, guiar-se pelo mundo independentemente das
31 Ao conhecimento objetivo contribuem propriamente somente dois sentidos: a vista e o tato. Eles sozinhos
fornecem os dados, fundando-se nos quais, a razo, pelo processo indicado [por meio de suas formas
caractersticas, espao, tempo e causalidade], cria o mundo objetivo (SCHOPENHAUER, 1950, p. 76).
30
impresses do presente. A razo a base da ponderao, da premeditao e do mtodo. A
causalidade (mais precisamente a sua lei) s objeto da razo quando passa a ser tema de
reflexo desta. O conhecimento da lei da causalidade (o entendimento, portanto) aplicado aos
objetos mediatos presentes no mundo faz surgir a inteligncia (Klugheit), que por si s um
testemunho sobre a acuidade do entendimento de um indivduo e de sua proficincia em
aplica-lo s representaes intuitivas que o cercam.
A viso (assim como o tato32) , portanto, o conhecimento de objetos por um sujeito
por obra de seu entendimento. A diferena entre a viso e os demais sentidos, diz
Schopenhauer, que ela a mais capaz em captar impresses externas com preciso e,
portanto, fosse o sujeito detentor de tal viso destitudo de entendimento, restar-lhe-ia no
mais do que uma mirade de impresses visuais, sensibilizaes cromticas da retina, sem
qualquer significao. exatamente assim que uma criana nas primeiras semanas de vida
fita o mundo, alega Schopenhauer: de modo abobalhado. Por ainda no ser capaz de usar o
entendimento e aplicar a lei da causalidade, a criana v, mas no apreende o mundo. Assim
que consegue valer-se de seu prprio entendimento, a criana passa a trabalhar as
representaes intuitivas que experiencia, com os cinco sentidos e passa a conhecer o mundo
pelas leis do espao, do tempo e da causalidade, presentes em si a priori.
A intelectualidade da viso para Schopenhauer manifesta. No apenas o fato de as
imagens que impressionam a retina estarem invertidas em relao imagem que se tem do
mundo no crebro, mas tambm os fenmenos da viso nica e da viso duplicada so uma
comprovao, para Schopenhauer, dessa intelectualidade. Quando os olhos esto focados em
um objeto qualquer, caso se coloque outro item tanto frente quanto atrs do objeto
inicialmente focado, as novas imagens, em ambos os casos, estaro duplicadas. Em outras
palavras, a unificao das imagens (o fato de se enxergar um nico objeto quando os olhos
esto focados nele) resultado direto da atividade intelectual sobre os dados sensrios que
32 Schopenhauer considerava a audio, o olfato e o paladar sentidos que no fornecem nenhum dado para a
determinao das relaes espaciais do objeto, motivo por que no conferia a eles o mesmo status concedido
viso e ao tato. A compensao que os cegos logram ao transformar sua audio no sentido mais apurado de
que dispem (BELIN, Pascal et al. Neuropsychology: pitch discrimination in the early blind. Nature, Londres,
v. 430, n. 6997. p. 309, 2004) e o silncio de Schopenhauer acerca deste fato no chega a invalidar suas
colocaes, j que, nesses casos, a audio passa a ser o sentido que melhor fornece dados sobre as relaes
espaciais no ambiente em que o sujeito se encontra, passando ento a audio a exercer a funo ocupada pela
viso em seres humanos que enxergam perfeitamente; dizer, a audio assume o papel de sentido mais
proeminente, normalmente ocupado pela viso.
31
atingem o crebro pela viso, j que assim que esse objeto nico percebido sai do foco dos
olhos, ele passa a ser uma imagem dupla, dobrada. Tal fenmeno simultneo da imagem
nica e das imagens duplicadas se origina na projeo da luz sobre as retinas: cada olho tem
uma posio anloga um ao outro em suas respectivas rbitas e, portanto, regies anlogas
de suas retinas. Quando um feixe de luz atinge essas regies em ambos os olhos, produzida
uma nica imagem; quando o mesmo feixe de luz atinge regies no-anlogas, existe a
duplicao da imagem. Adicionalmente, Schopenhauer cita alguns casos clnicos de pessoas
que, estrbicas permanentes, conseguem no obstante focar seus olhos em objetos e enxergar
exatamente como as pessoas que possuem olhos perfeitamente paralelos. A concluso de tal
constatao que o entendimento consegue adaptar as reas no anlogas da retina para reas
anlogas. No que concerne ao tato, apalpar um objeto com os dedos cruzados (sobrepostos)
gera a iluso de que se est tocando mais de um objeto, sendo tal iluso o equivalente do tato
viso duplicada.
Similarmente relao entre os eixos oculares em cada um dos olhos e a posio
espacial do objeto encontra-se a relao entre um objeto e os pontos de contato relativos em
dez dedos que o apalpam: trata-se de dez impresses sensrias distintas mas o entendimento
nos diz que se trata de apenas impresses relativas a um nico objeto. Assim, a
descontinuidade das impresses sensrias isoladas provindas de dez dedos diferentes
unificada no intelecto como sendo efeito de uma nica causa, um nico objeto. Nesse sentido
absurdo querer derivar da experincia a lei da causalidade (como o queria Hume), pois ela
j tem de ser pressuposta pela prpria experincia: ter a experincia de apalpar um objeto
pressupe a premissa de que as distintas impresses sensrias que ele nos causa provm de
uma nica fonte.
Quaisquer dvidas acerca da propriedade que o entendimento tem de unificar
pluralidades sensrias devem, por fim, ser dirimidas a partir da possibilidade de se visualizar
dois objetos distintos como apenas um, desde que eles sejam posicionados frente dos olhos
de modo que suas imagens se acomodem nas retinas individuais em posies anlogas, como
ocorre quando os olhos conjuntamente focam um nico objeto. Segundo Schopenhauer,
impossvel fornecer prova mais contundente acerca da intelectualidade da viso oposta sua
simples fisiologia. Os estereoscpios (que haviam sido inventados h pouco tempo)
32
funcionam pelo princpio da unificao de duas imagens idnticas em uma nica, conferindo
nitidez tridimensional s imagens, sendo uma excelente ferramenta de anlise fotogrfica33.
Os diversos efeitos ilusrios a que a viso (e o tato) esto submetidos so tambm um
bom demarcador das diferenas entre entendimento e razo: por mais que uma iluso de tica
nos engane, a razo sabe o que acontece de fato, e nesse sentido o entendimento irracional
e a razo imune iluso. A iluso (Schein), a falsa aparncia surge quando um estado
incomum dos rgos dos sentidos se sujeita apreenso regular e permanente do
entendimento ou quando uma representao intuitiva comumente causada por determinado
motivo material causado por outro, como por exemplo a iluso do basto quebrado na gua
ou as miragens no deserto. J o erro (Irrtum) refere-se razo e consiste em um juzo que
trabalhando com elementos intuitivos (representaes) chega a constataes equivocadas.
Portanto o engano do entendimento iluso e se ope realidade (Realitt), ao passo que o
erro o engano da razo e se ope verdade (Wahrheit).
Neste ponto, Schopenhauer considera suficientemente provado que a viso
fundamentalmente intelectual e no meramente fisiolgica. Sendo o entendimento parte
necessria de uma viso funcional aquela que atenda necessidade de o sujeito se localizar
no espao a priori e agir sobre ele, movimentando-se resta provado que todo animal,
racional ou irracional, que possua viso possui entendimento. certo que os minerais e as
plantas tambm demonstram movimento, mas so movimentos de uma natureza totalmente
outra: enquanto os minerais se movem por pura lei da ao e reao (causalidade pura nas
palavras de Schopenhauer) como as bolas de bilhar de Hume , os vegetais exigem
excitaes fsico-qumicas ao seu organismo (como os tropismos). J o movimento
tipicamente animal (excetuando-se, portanto, os movimentos mineral e vegetal aos quais os
organismos animais tambm esto sujeitos) a materialidade de sua atuao no mundo (que
atende a motivos).
Ora, percepo apreenso de representaes intuitivas pelo entendimento e a viso
a forma de percepo mais perfeita de que dispomos. Viso, destarte, prova de
conhecimento intuitivo. Todo animal, do mais simples (plipo) ao mais complexo (ser
33 O mesmo princpio explorado pelos estereogramas, usados nos livros com imagens bidimensionais mas
que, no obstante, por meio da repetio da mesma imagem diversas vezes, sob visualizao propcia, gera o
efeito de um nico objeto em trs dimenses.
33
humano) age no mundo a partir de sua viso (percepo); assim sendo, argumenta
Schopenhauer, conhecer o carter verdadeiramente marcante da animalidade
(SCHOPENHAUER, 2003, p. 45). Esse papel central do conhecimento j acenado nesta obra
seminal de Schopenhauer mantido ao longo de toda a sua obra e dele so derivadas as outras
reas filosficas de sua doutrina.
De qualquer maneira, Schopenhauer, j em sua tese de doutorado, admite a
indissociabilidade do intelecto e das percepes sensrias. Toda experincia depende da lei
da causalidade, que forma de apreenso da realidade fenomnica segundo o prprio Kant.
Assim sendo, para Schopenhauer existe um mundo objetivo que apreendido pelo sujeito
por meio da organizao pelo entendimento dos dados provenientes da sensibilizao dos
rgos dos sentidos, a partir das suas formas caractersticas (tempo, espao e causalidade34).
Tudo isso pode ser expresso por um curto enunciado, com o qual Schopenhauer abre sua obra
maior: O mundo minha representao (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43). Para ele, essa
a verdade mais a priori que pode ser expressa, pois a assero mais geral acerca da forma
de toda a experincia possvel.
Assim, o mundo como representao bifronte: compe-se de sujeito e de objeto,
cuja forma (deste ltimo) espao e tempo - e, a partir destes, pluralidade. Ambas as metades
s existem uma para a outra e o desaparecimento de uma conduz necessariamente ao
desaparecimento da outra. Onde um comea o outro termina. A aprioridade das formas
essenciais e universais de todo objeto apontada por Kant prova dessa separao ntida entre
sujeito e objeto.
Destarte, diz Schopenhauer, o sujeito aquele que tudo conhece mas no conhecido
por ningum. O corpo do sujeito objeto imediato do conhecimento (SRQ, 22) entre
objetos mediatos do conhecimento. Todo objeto se subordina s formas do conhecer (tempo
e espao, formas da pluralidade35), pois estas s dizem respeito s representaes, nunca ao
sujeito que conhece, j que elas so por ele pressupostas e, portanto, no podem a ele ser
34 Schopenhauer admite que tempo e espao sejam as condies de possibilidade da experincia e os enquadra
na terceira raiz do princpio de razo suficiente, a do ser, como se ver a seguir. Quanto causalidade, a nica
das doze categorias do entendimento propostas por Kant que Schopenhauer aceita. 35 Para Schopenhauer, toda pluralidade s possvel no mundo da representao e as formas em que ela se expressa so tempo e espao: Portanto, o mundo como representao, nico aspecto no qual agora o
consideramos, possui duas metades essenciais, necessrias e inseparveis. Uma o OBJETO, cuja forma
espao e tempo, e, mediante estes, pluralidade. A outra, entretanto, o sujeito, no se encontra no espao nem no
tempo, mas est inteiro e indiviso em cada ser que representa. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 46).
34
aplicadas. Assim sendo, no se aplicam a ele nem a pluralidade nem a unicidade, a no ser
que se tome o sujeito percipiente como objeto, evento s possvel no conhecimento tpico da
quarta raiz do princpio de razo suficiente, a do agir.
1.4 SOBRE A RAIZ QUDRUPLA DO PRINCPIO DE RAZO SUFICIENTE
Como afirma Paul Strathern, o ttulo da tese de doutorado de Schopenhauer to
interessante quanto parece (STRATHERN, 1997). O entendimento geral dos comentadores
que, nessa primeira obra, Schopenhauer faz uma leitura kantiana de um dos temas mais
importantes da filosofia poca em que Schopenhauer redige o texto mediante o qual obtm
seu ttulo de doutor em filosofia: o princpio de razo suficiente. Diz Christopher Janaway
que o conceito do princpio era tema recorrente entre os filsofos de ento e que o arcabouo
sistemtico era derivado de Kant, cujo pensamento Schopenhauer claramente assimilou,
porm no de modo acrtico (JANAWAY, 2003, p. 16); Leandro Chevitarese atribui ao
princpio com quatro razes uma leitura kantiana por parte de Schopenhauer, uma espcie de
cpula entre o princpio e a esttica transcendental de Kant (CHEVITARESE, 2003).
Seja como for, a tese de doutorado uma obra de referncia de Schopenhauer, pois
h diversas menes a ela no apenas em MVR I, mas tambm em outras obras do filsofo.
preciso ressaltar a organicidade da obra de Schopenhauer de modo a compreender a
relevncia de sua tese de doutorado no conjunto da obra. Longe de agir como um dos
filsofos que muito influenciados foram por sua obra (Wittgenstein), Schopenhauer no
renega trabalhos anteriores; ao contrrio, constri em cima deles e mesmo os adorna e repara,
se julga tal comportamento necessrio (o que de fato ocorreu, no raras vezes). Nem a
frequente necessidade de escrever sempre renovados adendos, complementos,
confirmaes e suplementos de que fala Gabriel Vallado, (SCHOPENHAUER, 2013,
p. 9) foi o suficiente para que o filsofo de Danzig reavaliasse a relevncia da sua tese de
doutorado frente sua doutrina como um todo. Tanto assim que ela se inicia com um
histrico do tratamento do princpio (ou de seus rudimentos) ao longo das obras dos filsofos
que o antecederam, comeando pelos gregos e chegando, naturalmente prpria tese, de
modo a contextualizar as investigaes prprias que a tese apresenta.
Uma vez constatada a importncia do princpio de razo suficiente para a obra de
Schopenhauer por meio da sua manuteno em local de destaque na obra ao longo do tempo
35
alm das reiteradas menes obra por parte de Schopenhauer e as sempre presentes
menes, por parte de seus comentadores, reedio da tese de doutorado em 1847, 34 anos
aps a obteno do ttulo pelo filsofo, imprescindvel aqui, portanto, que se esclarea como
a abordagem quadrimensional, por assim dizer, que o filsofo de Danzig imprime ao
princpio se enquadra em sua teoria do conhecimento. No demais relembrar que a presente
dissertao est preocupada em apreciar de que maneira a dialtica erstica dialoga com a
teoria do conhecimento de Schopenhauer e, para faz-lo, tem de contemplar esse aspecto
temtico da obra do filsofo como forma de contextualizar o entendimento que se tem da DE
no captulo 3 frente.
impossvel falar da dissertao de doutorado de Schopenhauer sem que se
mencione o seu conceito de princpio de razo suficiente. Por outro lado, ao faz-lo,
inevitvel que venha mente a clssica definio do princpio feita no perodo moderno da
filosofia, exposta por Leibniz nos pargrafos 31 e 32 da obra Mo:
31. Nossos raciocnios esto fundados em dois grandes princpios, o da
contradio, em virtude do qual julgamos que falso o que ele implica, e
verdadeiro o que oposto ou contraditrio ao falso. Teodicia, 44 e 169.
32. E o de razo suficiente, em virtude do qual consideramos que nenhum
fato pode ser verdadeiro ou existente, nenhum enunciado verdadeiro, sem
que haja uma razo suficiente para que seja assim e no de outro modo,
ainda que com muita freqncia estas razes no possam ser conhecidas por ns. Teodicia, 44 e 169. (LEIBNIZ, 2004, pp. 136-137).
A viso que Schopenhauer tem do princpio de razo suficiente pode ser condensada
no seguinte enunciado, que talvez no seja to elegante quanto a formulao do prprio
filsofo: todo objeto existente no mundo, seja qual for a sua natureza, possui uma razo de
ser, um motivo para sua existncia, e esse motivo sempre dever ser procurado fora do objeto
mesmo, dizer, fora do fato de que ele existe. Pois bem, um objeto sempre tem uma razo
de existir que o precede, que est fora de si prprio e que o justifica diretamente. Mas de que
objeto fala Schopenhauer aqui? No se trata de um s, mas de vrios quatro caso se queira
ser exato. possvel que a definio precisa dos tipos de objeto que podem ser encontrados
no mundo (partindo do pressuposto do idealismo transcendental, ou seja, objetos para um
sujeito, sempre), feita por Schopenhauer em SRQ, atende a uma das deficincias kantianas
apontadas pelo filsofo de Danzig em sua Crtica da Filosofia Kantiana, qual seja, a
impreciso de Kant ao tratar do seu objeto da experincia em geral (MVR I 517 e 523),
36
que seria equivalente, segundo Schopenhauer, a um objeto absoluto, um claro contrassenso
em sua opinio. Assim que, naturalmente tendo sempre em mente que a Crtica da Filosofia
Kantiana posterior a SRQ, entende-se aqui a preocupao de Schopenhauer em delimitar
inequivocamente de que objetos fala ele.
Por outro lado, Dale Jacquette (2005) suscita a hiptese de que uma nfase excessiva
nos objetos poderia ser entendida como uma contradio por parte de Schopenhauer, que
tanto critica Kant, por este, a seu ver, ter se permitido conceber um objeto que no
pressuponha um sujeito percipiente. No obstante, responde Jacquette, Schopenhauer
considera que a filosofia deve se iniciar preferentemente com representaes, e portanto
com o conhecimento representacional analisvel em termos de sujeito e objeto
interpressupostos. Em outros termos, embora o filsofo de Danzig parea focar
excessivamente nos objetos ao expor seus quatro tipos de objeto, ele nunca perde de vista o
fato de que as quatro formas de apresentao dos objetos o so sempre para um sujeito.
1.4.1 As quatro classes de representao para o sujeito
Schopenhauer levava a filosofia muito a srio. Como ele mesmo diz em SVN, Kant
introduziu a seriedade na filosofia, e eu a mantenho de p (SCHOPENHAUER, 2013, p.
35). De forma muito coerente com a viso que ele prprio tinha sobre o trabalho do filsofo
e a tarefa da filosofia, vistos na seo anterior, o entendimento de Schopenhauer sobre o
mundo como representao caminha pari passu com a descrio das maneiras que as
representaes (objetos) podem aparecer para a conscincia humana, para o sujeito que as
aprecia. Assim que, tal como afirma Fernando Monteiro (2014), o princpio de razo
suficiente possui apenas uma raiz, mas esta se apresenta de quatro maneiras distintas (donde
o nome de qudrupla raiz do princpio de razo suficiente). Seguindo a nomenclatura do
prprio filsofo de Danzig, entretanto, tratar-se- aqui cada uma das formas do princpio de
razo suficiente como se um princpio independente fosse, por meio de metonmia.
A primeira raiz do princpio de razo suficiente, que lida precisamente com as
representaes intuitivas aquelas que tambm possuem lugar de destaque em SVC, como
37
se viu chama-se princpio de razo suficiente do devir36 (principium rationis sufficientis
fiendi) e justamente a lei da causalidade. Ela prev que um novo estado de um objeto sempre
precedido de outro estado, que nada mais que a descrio da mudana (movimento). Todo
efeito causa de outro efeito, sendo que o primeiro efeito foi causado por outra causa, que,
por sua vez, tambm era efeito de outro estado e assim por diante: o que diferencia uma causa
de um efeito a ordem de cada um no tempo. Causa e efeito so nomenclaturas aplicveis a
estados das coisas, no s coisas (em toda a obra schopenhaueriana tomadas unicamente
como fenmenos), mesmo porque estas possuem a matria (que no se cria nem se destri,
no podendo haver a mudana de status ontolgico, por assim dizer). Ademais, a sucesso
de diferentes estados no tempo s pode ser entendida como causalidade se houver uma
ligao necessria entre o primeiro e o segundo, de maneira que este seja inequivocamente
consequncia daquele: a isso d-se o nome de nexo causal, que justamente a significao
do conceito de necessidade em Schopenhauer, como se depreende da seguinte passagem
extrada da Crtica da Filosofia Kantiana:
(...) a concluso, que a assero da realidade, sempre se segue
NECESSARIAMENTE. Da resulta que todo real tambm necessrio, o que ainda pode ser visto no fato de ser-necessrio significar simplesmente
seguir-se de um fundamento dado: este , na realidade efetiva, uma causa:
logo, todo real necessrio. Em conformidade com tudo isso, vemos os conceitos de possvel, real e necessrio coincidirem. No apenas o ltimo
pressupe o primeiro, mas tambm o inverso. O que os mantm separados
a limitao de nosso intelecto pela forma do tempo, pois o tempo o
mediador entre possibilidade e realidade. A necessidade do evento singular deixa-se compreender, plenamente, pelo conhecimento do
conjunto de suas causas, mas a coincidncia de todas essas causas diferentes
e independentes umas das outras aparece-nos como CONTINGENTE, sim, mesmo sua independncia uma da outra justamente o conceito de
contingncia. Contudo, visto que cada uma delas foi a consequncia
necessria de SUA causa, cuja cadeia sem comeo, mostra-se dessa
forma que a contingncia um fenmeno meramente subjetivo,
nascendo da limitao do horizonte de nosso entendimento, e em
verdade um fenmeno to subjetivo quanto o horizonte tico no qual o
cu toca a terra (SCHOPENHAUER, 2005, p. 585, grifos nossos.)
Existe necessariamente, portanto, uma cadeia da causalidade infinita para trs e para
a frente, no podendo logicamente haver um incio (nem um fim) para tal cadeia pois o
36 Schopenhauer, em sua tese de doutorado, apresenta as nomenclaturas das razes de seu princpio de razo suficiente em alemo, naturalmente, e em latim. A primeira raiz se chama Satz vom zureichenden Grunde des
Werdens em alemo e em latim, principium rationis sufficientis fiendi.
38
prprio conceito de mudana inclui um estado anterior. Schopenhauer chama a este
princpio de razo suficiente do devir porque remete sempre a uma sucesso de estados o
que, a propsito e a seu ver, termina por invalidar o conceito de ao recproca, segundo o
que expe na Crtica da Filosofia Kantiana e segue transcrito:
Causalidade a lei segundo a qual os estados da matria a entrarem em
cena determinam suas posies no tempo. Na causalidade trata-se apenas
de estados, sim, propriamente dizendo, s de mudanas, e no da matria enquanto tal, nem da permanncia sem mudana. (...) A partir da fica claro
que o ser-causa e o ser-efeito algo que se encontra em rigorosa conexo e
relao necessria com a sequncia do tempo. (...) O conceito de ao recproca contm, todavia, que ambos so causa e ambos so efeito um do
outro. Isto, todavia, equivale a dizer que cada um dos dois o anterior, mas
tambm o posterior; portanto, um no-pensamento (id., p. 575).
importante observar que Schopenhauer considera a primeira raiz do princpio de
razo suficiente como sendo material-conteudstico em relao terceira raiz, que portanto
seria formal em relao primeira. Se as quatro razes do princpio de razo suficiente so
no apenas a descrio de quatro tipos de objetos para um sujeito, mas tambm quatro tipos
de explicao, como defende Jacquette (2005), ento os objetos da primeira classe so fsicos
e os da terceira se referem s condies (formas) de existncia do mundo fsico, do ponto de
vista da pluralidade (tempo e espao).
Vinculada primeira raiz se encontra o primeiro tipo de necessidade de acordo com
Schopenhauer, a saber, a necessidade fsica, segundo a qual dada uma causa (conforme
entendida pela lei da causalidade), o efeito no pode deixar de ser produzido.
A segunda classe de representaes para o sujeito composta justamente do
diferencial entre seres humanos e animais: as representaes de representaes ou
representaes abstratas ou, ainda, os conceitos. Aqui faz-se, novamente, uma confrontao
da tarefa do filsofo, segundo Schopenhauer, de repetir o mundo em conceitos: assim como
um sistema filosfico um espelho da leitura que se tem do mundo (e, naturalmente,
Schopenhauer considerava a sua leitura a mais correta de todas basta que se tenha em mente
a convico que ele tinha da prpria realizao intelectual com a publicao de MVR I
(STRATHERN, 1997)), assim tambm o princpio de razo suficiente do conhecer37,
37 Satz vom zureichenden Grunde des Erkennens em alemo, principium rationis sufficientis cognoscendi em latim.
39
segunda raiz do princpio para Schopenhauer, trata da classe de objetos que a razo (Vernunft)
produz ao reproduzir o mundo dos objetos fsicos percebidos pelo entendimento (Verstand).
Mais de um comentador de Schopenhauer o considera pouco rigoroso ao cunhar
conceitos e mesmo em erigir uma doutrina que seja slida e prova de testes mais
contundentes: Janaway (2003) , por exemplo, afirma haverem debilidades no sistema de
Schopenhauer que responderiam pelo fato de que o filsofo de Danzig tenha tido mais
influncia fora do que dentro do ambiente filosfico (ao que acrescentamos a sua postura
intransigente frente filosofia acadmica), muito embora o comentador reconhea sua
decisiva influncia sobre Nietzsche e Wittgenstein. Seguindo uma linha argumentativa
parecida, Lefranc (2002) afirma que rigor vocabular no uma das caractersticas pelas quais
Schopenhauer se distingue. Ambos os comentrios so ilustrativos para que se reconhea, na
obra do filsofo de Danzig, o verdadeiro brilho das passagens que prezam por uma maior
tecnicidade: esse o caso da noo de verdade para Schopenhauer, totalmente vinculada
segunda raiz do princpio de razo suficiente
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