View
0
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
Programa de Pós-Graduação em Linguística
Roberta Fernandes Pacheco
A CONSTRUÇÃO/NEGOCIAÇÃO DE PAPÉIS E POSIÇÕES EM UMA
ATIVIDADE HÍBRIDA DE ENTREVISTA-DEBATE
Juiz de Fora
2013
1
Roberta Fernandes Pacheco
A CONSTRUÇÃO/NEGOCIAÇÃO DE PAPÉIS E POSIÇÕES EM UMA
ATIVIDADE HÍBRIDA DE ENTREVISTA-DEBATE
Orientadora: Profª Dra. Sonia Bittencourt Silveira
Juiz de Fora
2013
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Linguística da Faculdade
de Letras da Universidade Federal de
Juiz de Fora, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutora em
Linguística.
[Di
git
e
u
ma
cit
aç
ão
do
do
cu
m
en
to
ou
o
res
u
m
o
de
u
m
po
nt
o
int
er
ess
an
te.
Vo
cê
po
de
po
sici
on
ar
a
cai
xa
de
tex
to
e
m
qu
alq
ue
r
lug
ar
2
Dedico esta tese a meus pais, pelo eterno apoio,
ao meu noivo, pelo companheirismo,
e a minha orientadora, pela dedicação.
[D
igi
te
u
m
a
ci
ta
çã
o
d
o
d
o
cu
m
e
nt
o
o
u
o
re
su
m
o
d
e
u
m
p
o
nt
o
in
te
re
ss
a
nt
e.
V
o
cê
p
o
d
e
p
os
ici
o
n
3
RESUMO
Esta tese tem o objetivo de examinar como as atribuições e reivindicações de papéis
e posições são negociadas interacionalmente pelos participantes de uma entrevista-debate e
como essa negociação constrói esse formato híbrido de atividade. A partir de uma perspectiva
Interacional em Linguística (COUPER-KULEN e SELTING, 2001), a tese é ancorada nos
estudos teóricos sobre papel (SARANGI, 2010, 2011a, 2011b; WEIZMAN, 1996, 2006,
2008) e posicionamento (LANGENHOVE e HARRÉ, 1999; WEIZMAN, 2008), além das
conceptualizações que circundam o tipo de atividade (SARANGI, 2000; EMMERTSEN,
2007). O estudo adota uma abordagem qualitativa e interpretativa, baseada em um estudo de
caso, utilizando as contribuições da Análise da Conversa (SACKS, SCHEGLOFF e
JEFFERSON, 1974) como ferramenta de análise. O corpus é composto por três edições do
programa Roda Viva, que se caracteriza como um programa de entrevistas, em que diversos
temas são abordados e discutidos pelos participantes que compõem a mesa em cada uma de
suas edições. Os resultados de análise evidenciam que há uma relação de interdependência
interacional entre esses três construtos – papel, posição e atividade – na construção da
atividade e na negociação de papéis e posições.
Palavras-chave: Papel. Posicionamento. Atividade Híbrida. Interação.
[
D
i
g
it
e
u
m
a
ci
t
a
ç
ã
o
d
o
d
o
c
u
m
e
n
t
o
o
u
o
r
e
s
u
m
o
d
e
u
m
p
o
n
t
o
i
n
t
e
r
e
s
s
4
ABSTRACT
This thesis aims to examine how roles and positions assignment and claims are
interactionallly negotiated by participants of a debate interview and how this negotiation
constructs this hybrid activity. From an interactional perspective in Linguistic (COUPER-
KULEN and SELTING, 2001), this study is anchored in theoretical studies about role
(SARANGI, 2010, 2011a, 2011b; WEIZMAN, 1996, 2006, 2008) and positioning
(LANGENHOVE and HARRÉ, 1999; WEIZMAN, 2008), beyond the conceptualizations that
surround the type of activity (SARANGI, 2000; EMMERTSEN, 2007). This research adopts
a qualitative and interpretive approach, based on a case study, using the contributions of
Conversation Analysis (SACKS, SCHEGLOFF and JEFFERSON, 1974) as an analysis tool.
The corpus consists of three editions of Roda Viva TV show that is characterized as an
interviews show, in which various themes are raised and discussed by the participants that
form the table in each of its editions. The analysis results show that there is a relationship of
interactional interdependence between these three constructs – role, position and activity – in
activity construction and in roles and positions negotiation.
Keywords: Role. Positioning. Hybrid Activity. Interaction.
5
SUMARIO
1. INTRODUÇÃO
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1. Papel
2.1.1. Conjunto de Papéis versus Múltiplos Papéis
2.1.2. A interface Papel e Posicionamento
2.2. O tipo de atividade
2.2.1. O Hibridismo Interacional
2.2.2. As Entrevistas de Notícias
3. ORIENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA
3.1. Contribuições da Análise da Conversa
3.2. Unidades de análise
3.3. Natureza da pesquisa
3.4. O contexto da pesquisa: o programa Roda Viva
3.4.1 Entrevista com Paulo Renato Souza
3.4.2. Entrevista com José Gomes Temporão
3.4.3. Entrevista com José Dirceu
4. ANÁLISE
4.1. A atividade: entrevista-debate
4.1.1. O par pergunta-resposta: a sequencialidade
4.1.2. O formato da pergunta
4.1.3. Turno sem perguntas: o ponto de vista dos entrevistadores
4.1.4. Os tópicos controversos
4.2. A dinamicidade dos papéis e posições
4.2.1. O papel social do entrevistado
4.2.2. O papel de atividade e sua relação com o papel discursivo
5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS DE ANÁLISE
5.1. Quadros sinópticos: entrevista Paulo Renato Souza
5.2. Quadros sinópticos: entrevista José Gomes Temporão
5.3. Quadros sinópticos: entrevista José Dirceu
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ANEXOS
[
D
i
g
i
t
e
u
m
a
c
i
t
a
ç
ã
o
d
o
d
o
c
u
m
e
n
t
o
o
u
o
r
e
s
u
m
o
d
e
u
m
p
o
6
10
10
19
22
25
27
31
38
38
41
42
42
45
46
47
48
48
49
61
66
71
74
75
88
98
102
105
107
112
116
121
6
INTRODUÇÃO
O objetivo deste estudo é examinar como as atribuições e reivindicações de papéis e
posições são negociadas interacionalmente pelos participantes de uma entrevista-debate e
como essa negociação constrói esse formato híbrido de atividade. Utilizo como corpus três
edições do programa Roda Viva, que se apresenta como um programa de entrevistas, em que
diversos temas são abordados e discutidos pelos participantes que compõem a mesa em cada
uma de suas edições.
O programa televisivo lida com a exposição pública na mídia, em que as ideias
veiculadas podem alcançar uma ampla divulgação, sendo capazes de formar opinião em um
processo avaliativo, realizado pela audiência. Esta exposição restringe o que é dito nos
programas, delimitando suas metas. Logo, as restrições de fala, assim como as metas
interacionais, influenciam a formatação do tipo de atividade e as relações que se estabelecem
entre os participantes e os papéis desempenhados.
Papel está sendo abordado aqui a partir de uma perspectiva interacional (SARANGI,
2010, 2011; WEIZMAN, 1996, 2006, 2008), em que papel é visto como uma categorização
social, tornado relevante na interação pelos interagentes que reivindicam e atribuem papéis no
curso de suas interações sociais. A negociação de papéis perpassa a percepção que o indivíduo
tem da situação em que se encontra, no contato com o outro, o que faz com que certos papéis
se tornem relevantes em detrimento de outros, em uma performance de papel que é complexa
e “altamente dependente da forma como ela é construída no discurso” (WEIZMAN, 2006,
p.174).
Associada ao conceito de papel, utilizo a noção de posicionamento, que pode ser
definida como a construção discursiva das histórias pessoais que tornam as ações dos
indivíduos inteligíveis enquanto atos sociais, e os localizam especificamente na interação
(LANGENHOVE e HARRÉ, 1999). Ao assumir posições no discurso, posicionar o outro e
ser posicionado, o indivíduo coconstrói suas ações discursivas, direcionando o entendimento
do que se diz ou do que se faz na interação. Como afirmam Davies e Harré (1990), ao
tomarem uma determinada posição, as pessoas trazem para a interação suas histórias como
seres subjetivos, em que seus atributos morais e pessoais são interpretados através das
posições negociadas.
Alinho-me à tese defendida por Weizman (2008), segundo a qual, o conceito de
posicionamento opera em conjunto com a noção de papel, diferentemente de Langenhove e
Harré (1999) que propuseram, em uma versão inicial da Teoria do Posicionamento, que
7
posição deveria substituir a noção de papel, concebido naquela ocasião, predominantemente,
como algo dado a priori. Para Weizman (2008), o posicionamento envolve a “atribuição,
elaboração e negociação das relações recíprocas entre todas as partes envolvidas na interação.
O posicionamento é altamente sinalizado pela percepção dos interagentes de seus respectivos
papéis e as expectativas que acarretam” (WEIZMAN, 2008, p. 16). A autora postula, ainda,
que posicionamento pressupõe papel, pois os interagentes constantemente posicionam a si e
aos outros no discurso, negociando posições e papéis dinamicamente.
Além da interface entre papel e posicionamento, considero o hibridismo de atividade
(SARANGI, 2000; EMMERTSEN, 2007) como um componente nesta tríade de análise, que
envolve a atividade, o papel e a posição. Adoto o conceito de hibridismo interacional proposto
por Sarangi (2000) para categorizar a sobreposição que ocorre entre tipo de atividade e tipo de
discurso, considerando-se que um tipo de atividade pode ser constituído por diversos tipos de
discurso. De forma semelhante, Emmertsen (2007) utiliza o termo entrevista-debate para
representar o hibridismo das entrevistas de notícias, em formato painel, em que dois
entrevistados disputam pontos de vista, mediados pelas perguntas do entrevistador,
caracterizando o formato híbrido de atividade. A atividade, então, é considerada nesta tese
como a unidade de análise norteadora das ações discursivas e onde a negociação de papéis e
posições se realiza, em uma relação de interdependência no discurso.
Estes três construtos – papel, posição e a atividade híbrida - são detalhadamente
investigados nesta tese, buscando sua inter-relação como forma de contribuir para o
desenvolvimento dos estudos sociolinguísticos, em particular àqueles que se dedicam às
teorias sobre papel, posicionamento e tipo de atividade.
O interesse pelo estudo da atividade, sob uma perspectiva interacional, vem
crescendo no âmbito das pesquisas. Em uma perspectiva aplicada em Linguística no Brasil,
diversos estudos já foram realizados visando à análise de programas de entrevista como um
tipo de atividade, inclusive o próprio programa Roda Viva, que compõe o corpus desta tese.
Vieira (2002), por exemplo, investigou os movimentos argumentativos em uma entrevista
deste programa. Já Costa (2010) se dedicou às práticas evasivas ou “não respostas” na fala
dos entrevistados. Esses estudos, no entanto, não focalizam a atividade em si, mas a utilizam
como um local de investigação de práticas discursivas.
Portanto, investigar a atividade de forma detalhada, considerando o aspecto híbrido
em sua formatação, ainda é uma prática de pesquisa pouco explorada, principalmente em
relação à proposta deste estudo de investigar a forma como papel e posição formatam esse
tipo de atividade. De forma semelhante, a maneira como os construtos papel e posição
8
interagem no discurso foi objeto de poucos estudos das pesquisas acadêmicas sobre essas
práticas discursivas. Ao buscar, então, articular a teoria do posicionamento ao conceito de
papel, espero contribuir para um melhor entendimento da forma como papéis e posições são
manifestados, dinamicamente e conjuntamente, em uma atividade híbrida de um gênero
televisivo.
Para guiar esta investigação, busco responder às seguintes perguntas de pesquisa:
i. De que modo o tipo de atividade restringe e orienta os papéis e posições que emergem
na interação?
ii. Como as reivindicações e atribuições de papéis e posições são
coconstruídas/negociadas no curso da atividade analisada?
iii. Que recursos linguístico-discursivos e padrões interacionais caracterizam o tipo de
atividade analisada?
No que tange à organização do estudo, o trabalho está dividido em capítulos que
facilitam a compreensão e a orientação do leitor sobre a linha de investigação aqui conduzida.
No segundo capítulo, abordo a conceptualização teórica que norteia a tese. Inicialmente, é
feita uma revisão da literatura existente sobre papel, focalizando, principalmente, as
contribuições de Goffman ([1959] 2005), Weizman (1996, 2006, 2008) e Sarangi (2010,
2011a, 2011b), discutindo os conceitos de conjunto de papéis e múltiplos papéis (MERTON,
1957, 1968; SARANGI, 2010, 2011a, 2011b). Em seguida, é apresentada e discutida a
possível interface entre papel e posicionamento.
Na segunda parte do capítulo dedicado à base teórica, discuto a relevância da noção
tipo de atividade como unidade de análise. Discorro sobre a noção de hibridismo interacional
como um recurso para tornar mais precisa a caracterização de uma dada atividade, dando
ênfase, por fim, ao tipo de atividade definido como entrevistas de notícias, apresentando uma
revisão da literatura sobre este gênero discursivo.
O terceiro capitulo é destinado à orientação teórico-metodológica adotada, centrada
em uma perspectiva interacional em Linguística (COUPER-KULEN e SELTING, 2001),
segundo a qual, a interação social é o lugar em que a linguagem em uso se constitui como
9
uma forma de ação social. Dentre as disciplinas que adotam essa perspectiva interacional em
estudos da linguagem, assumo alguns dos postulados teórico-metodológicos da
Sociolinguística Interacional e da Análise da Conversa, principalmente no que tange à forma
como essas disciplinas lidam com as ações discursivas que emergem no curso da interação.
Ainda neste capítulo, apresento os procedimentos metodológicos utilizados, as unidades de
análise, a natureza da pesquisa e o contexto da pesquisa, apresentando o programa Roda Viva,
suas características e participantes.
No quarto capítulo, é realizada a análise dos dados e em seguida a discussão dos
resultados de análise, que evidenciam que há uma relação de interdependência interacional
entre atividade, papel e posição, na construção da atividade e na negociação de papéis e
posições. A partir desta discussão, apresento as considerações finais, buscando responder as
questões que orientaram a pesquisa e abordando algumas reflexões sobre questões que
emergiram no desenvolvimento do estudo e que podem ser objeto de futuras pesquisas.
10
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Neste capítulo, abordo as conceptualizações teóricas que dão suporte a esta tese. Em
um primeiro momento, apresento algumas das discussões, julgadas por mim relevantes, na
literatura sobre papel, discutindo as noções de conjunto de papéis e múltiplos papéis, além de
associar o conceito de papel à teoria do posicionamento. Em seguida, discorro sobre o tipo de
atividade, abordando a noção de hibridismo interacional e apresentando as discussões teóricas
que norteiam as entrevistas de notícias.
2.1. Papel
O trabalho de Goffman ([1959] 2005) sobre a apresentação do “self” na vida
cotidiana traz uma abordagem precursora sobre a representação de papéis no encontro social.
Comparando a vida real com a encenação de uma peça de teatro, em que “um ator se
apresenta sob a máscara de um personagem para personagens projetados por outros atores”
(p.9), o autor postula que a representação de um papel é dependente das outras representações
de papéis envolvidas na interação, e que em conjunto definem a situação em que os
participantes estão imersos.
Nestas representações de papéis, Goffman (op.cit.) faz uma distinção entre “papel” e
“performance de papel”. O papel é a unidade básica de socialização. É o papel social que é
definido como “a promulgação de direitos e deveres ligados a uma determinada situação/
social” (op.cit., p. 24). O papel se desenvolve na representação do encontro social, como um
padrão de ação pré-estabelecido e que pode ser apresentado ou executado em outras ocasiões;
“é através de papéis na sociedade que as tarefas são atribuídas e medidas tomadas para fazer
valer seu desempenho” (GOFFMAN, 1961, p.77). Já a performance de papel é exatamente o
desempenho situado do papel, definido por Goffman como “toda atividade de um
determinado participante, em dada ocasião, que sirva para influenciar, de algum modo, um [o
desempenho] dos outros participantes.” ([1959] 2005, p.23).
Posteriormente a essa distinção entre papel e performance de papel, Goffman
([1979], 1998) explora os conceitos de falante e ouvinte, considerando a natureza discursiva
desses papéis na interação. Através de uma perspectiva mais dinâmica, a noção de falante foi
reespecificada em termos de “animador” - aquele que pronuncia as palavras – o “autor” –
quem redige o script da fala – e o “responsável” - é aquele que pode ser responsabilizado pela
11
posição assumida, por trás das palavras, no sentido jurídico do termo. É comum esses três
papéis recaírem sobre a mesma pessoa, mas não necessariamente. Como essas configurações
podem mudar ao longo de um encontro, a configuração de papéis de falante em um dado
momento denomina-se “formato de produção” de uma elocução.
A noção de ouvinte é reexaminada considerando a condição de participação
oficialmente ratificada ou não no encontro social. O ouvinte não ratificado participa de forma
não oficial do encontro, isto é, ele é aquele que ouve sem ter sido convidado. Goffman
([1979], 1998) distingue duas categorias entre os ouvintes não oficiais: (i) os circunstantes,
aqueles ouvintes por acaso, que “podem acompanhar temporariamente a conversa, ou captar
fragmentos dela, isso tudo sem muito esforço ou intenção” (op.cit., p.77) e (ii) os intrometidos
que podem “fazê-lo propositalmente, resultando em „intromissão‟ (escutar às escondidas, por
trás da porta, espichar a orelha)” (op.cit.). A diferença entre os dois tipos de não ratificados é
que, ao contrário do circunstante, o intrometido permanece fora do foco visual dos
participantes oficiais do encontro.
O ouvinte ratificado participa oficialmente do encontro e pode ser classificado como
ouvinte endereçado ou não endereçado. Segundo Goffman ([1979] 1998), o falante em curso
pode endereçar sua fala a todos os ouvintes em conjunto, ou escolher um ouvinte ou um dado
grupo, em um dado momento, para endereçar sua fala. Assim ouvinte endereçado é “aquele a
quem o falante remete sua atenção visual e para quem espera eventualmente passar o papel de
falante” (op. cit., p.78). Logo, a condição de ouvinte ratificado se mantém estável, enquanto
durar um dado encontro social; já a condição de ouvinte endereçado ou não endereçado varia
no curso do evento.
Goffman ([1979] 1998; 1981) amplia a condição de ouvinte ratificado, abrangendo o
papel do telespectador do programa televisivo. O autor trata esta audiência como um
“participante ratificado, embora não possa assumir o papel de falante” (GOFFMAN, 1981,
p.234). Esse status ratificado é particularmente visível quando o entrevistador reconhece a
presença desta audiência revelando a ela informações sobre o entrevistado ou quando o
locutor “fala ostensivamente à audiência como se cada ouvinte fosse o único” (op.cit., p. 235),
simulando uma conversa entre um falante e um ouvinte mudo. Essa simulação de
endereçamento é particularmente forte se combinado com o olhar do apresentador dirigido à
câmera do programa (op.cit.).
Ainda nos termos de Goffman ([1979] 1998), essa audiência televisiva funciona
como uma plateia:
12
O termo “plateia” é facilmente ampliado para se referir àqueles que escutam a fala do
rádio ou da TV, mas estes ouvintes diferem de maneira evidente e significativa
daqueles que constituem testemunhas ao vivo da fala. Testemunhas ao vivo são co-
participantes numa mesma ocasião social, suscetíveis a toda estimulação mútua que a
ocasião oferece; aqueles que escutam a fala através de aparelhos só podem se juntar à
plateia do programa na estação de forma secundária e intermediária.
(GOFFMAN, [1979] 1998, p.82)
Na consideração de Goffman (op.cit.), a plateia de estúdio de um programa televisivo
difere da plateia formada pelo telespectador. A diferença consiste, basicamente, no fato deste
último escutar a fala de forma secundária e intermediária, não podendo participar da “ocasião
social”, através de estímulos ao falante, como talvez aplausos, murmúrios de concordância e
outras manifestações de um ouvinte como testemunha presente da fala.
Goffman ([1979] 1998) faz uma distinção entre os vários tipos de plateia,
considerando que cada tipo ouve e participa de forma diferenciada na situação social em que
se encontra. O autor afirma, por exemplo, que a plateia de um discurso político pode ser
considerada como um ouvinte endereçado, acompanhando a fala através “de sinais de
concordância e discordância” (op.cit., p.83), além de aplausos e possíveis indagações. Além
disso, este ouvinte endereçado pode se tornar o falante deste encontro, ao realizar uma
pergunta ao político que discursa.
Em uma releitura da noção de ouvinte na estrutura de participação proposta por
Goffman ([1979] 1998; 1981), Dynel (2010; 2011) discute que há uma diferença entre “quem
escuta” - listen - e “quem ouve” - hear -, considerando que aquele que escuta atribui
significado à mensagem1. A autora questiona o fato de Goffman (op.cit.) não considerar a
semântica dos termos hearer e listener ao atribuir as definições de ouvintes ratificados e não
ratificados:
[Segundo Goffman] ouvintes podem ser ratificados e normativamente esperados para
escutar, mas podem não estar escutando e, vice versa, eles podem não ser ratificados,
mas estar escutando (GOFFMAN, 1981). Seria mais razoável, então, conceptualizar
quem ouve/quem escuta como aquele que de fato escuta (ou percebe) um turno dentro
de uma troca comunicativa, na suposição de que escutar uma elocução (em vez de
sons indistintos) normalmente significa inferir significado.
(DYNEL, 2011, p.458)
1 Considero o English Dictionary for Speakers of Portuguese (Martins Fontes, 2000) para as definições que
utilizo na tradução desses termos:
Hear = ser capaz de receber sons pelo ouvido (ouvir).
Listen = dar atenção ao que alguém diz (escutar).
13
Na consideração de Dynel (2011), tanto os ouvintes ratificados quanto os não
ratificados possuem a capacidade de escutar e/ou ouvir, e não é o status de participante oficial
do encontro que determinará em que capacidade este ouvinte está atuando. Para Dynel (2011),
seria mais relevante categorizar o status oficial do encontro a partir da distinção entre o
ouvinte que de fato escuta ou aquele que apenas ouve, ainda que seja de forma presencial (no
campo auditivo e/ou visual do falante). Além disso, “os ouvintes da fala não precisam ser
conversacionalistas, podem ser audiências” (DYNEL, 2011, p. 462), ou seja, não precisam
tomar a palavra em uma troca conversacional, podem apenas escutar a fala e a partir deste ato,
formular opiniões.
A audiência televisiva, então, como um ouvinte ratificado - e neste ponto concordam
Dynel (2010, 2011) e Goffman ([1979] 1998; 1981) – também se encaixa nesta distinção,
porém com um agravante na diferenciação: esta audiência é composta por inúmeros ouvintes
individuais e nenhum deles ocupa o campo visual/auditivo do falante (Dynel, 2011), o que
torna quase impossível a percepção entre ouvir/escutar. De qualquer forma, é para esta
audiência que um determinado programa é realizado, o que a torna um participante valioso
nesta estrutura de participação. Como afirma Duranti (1986, p.243), “dar à audiência a
coautoria da interação, é ter a consciência de uma relação estabelecida em parceria, a qual é
necessária para que a interação se sustente”.
Seguindo a essas considerações, defendo aqui que o telespectador do tipo de
atividade analisado nesta tese é um componente do conjunto de participantes ratificados do
encontro, uma vez que considero que ele é o alvo, ainda que indiretamente, da fala dos
participantes do programa. De acordo com Levinson (1988), o “alvo” é aquele a quem a
mensagem é destinada, ainda que não seja um “participante no evento elocucionário”
(LEVINSON, 1988, p. 170). Um programa televisivo é dirigido a um público específico, em
potencial, e é exatamente este público que determina, através de sua assistência, se o
programa permanece no ar ou não. Portanto, o telespectador exerce um papel fundamental na
interação, ocupando uma estrutura de participação oficial, uma vez que as elocuções são
proferidas e pontos de vista sustentados considerando esse ouvinte fora do campo presencial.
Isso quer dizer que os participantes do programa têm conhecimento desses ouvintes em
potencial e gerenciam suas ações discursivas considerando-os muitas vezes como alvos da
fala. A audiência, por sua vez, avalia esses participantes durante todo o curso da interação,
julgando-os como pessoas públicas que são.
Mais recentemente, retomando a posição de Goffman ([1959] 2005; [1979] 1998) e
rediscutindo as noções de papel abordadas pelo autor, alguns estudos vêm explorando esses
14
conceitos em uma perspectiva interacional em cenários profissionais. Weizman (2006), ao
analisar as entrevistas de notícias em contexto israelense, aborda a noção de papel social
como pressupondo uma “categorização de membro de grupo” (p.156), na qual um indivíduo
desempenha um papel por considerar-se como “um membro de uma determinada categoria, e
consequentemente assume as obrigações acarretadas por esta categoria” (op.cit.). Nesta
perspectiva, papel é dependente das relações interpessoais e dos grupos formados por essas
relações, isto é, em cada categoria de grupo – seja relacionada a crenças, valores, etnias ou
ocupações - há papéis definidos socialmente e cabe ao indivíduo a percepção do papel que
deve ser desempenhado em uma dada situação. A autora argumenta que:
a percepção de papel é parte de nossa vida diária: nós concebemos as pessoas em
termos de seus direitos e obrigações sociais e formamos nossas expectativas de acordo
com esse fato; [...] nós frequentemente construímos situacionalmente papéis relevantes
quando falamos. (WEIZMAN, 2006, p. 174)
Sendo assim, é a partir de nossa percepção da situação em que nos encontramos que
tornamos relevantes alguns papéis em detrimento de outros. Essa construção de papéis
relevantes é realizada interacionalmente, e o que torna um determinado papel mais relevante
que o outro é exatamente a situação na qual a interação ocorre (WEIZMAN, 1996, 2006,
2008). Nas entrevistas de notícias analisadas pela autora, as relações de papel são
estabelecidas em pelo menos dois níveis: no nível social e no interacional. A autora categoriza
esses dois tipos de papéis – social e interacional – enfatizando que eles não são “entidades
independentes; se inter-relacionam um com o outro” (2006, p.174) em uma performance de
papel que é complexa e “altamente dependente da forma em que ela é construída no discurso”
(op.cit.).
Por papel social, Weizman (2006) se refere ao status social que o participante possui
em seu meio social, seja através dos laços pessoais ou profissionais. Já o papel interacional,
na categorização da autora, diz respeito aos papéis desempenhados na atividade em curso, que
no caso da entrevista de notícia pode ser o papel de “realizar uma pergunta, fazer declarações,
interromper, etc” (p.155). A autora argumenta que os papéis interacionais são distribuídos
assimetricamente na interação, pois são frutos das relações de poder que são também
“distribuídas desigualmente [como nas relações entre] patrão-empregado, médico-paciente,
entrevistador-entrevistado” (WEIZMAN, 2008, p.26) nos discursos institucionais.
Weizman, retomando a “promulgação de direitos e deveres” na definição de papel
social de Goffman ([1959] 2005, p.24), defende que essa categorização de papéis perpassa os
15
direitos e as obrigações do falante. No papel interacional, há uma “divisão de papéis pré-
determinada pelas expectativas discursivas que pertencem ao evento comunicativo”
(WEIZMAN, 2008, p.174). A autora cita alguns exemplos para ilustrar que ambas as partes –
entrevistador e entrevistado – fazem valer seus direitos e deveres nos papéis desempenhados,
através das expectativas interacionais que os circundam. Abaixo, apresento três exemplos
dados pela autora, com suas análises respectivas na sequência do texto:
(12) Uma entrevista é para perguntar também, não é só uma fala.2
(Amnon Levy e Riki Cur, dançarina do ventre, erev xadash, 30.6.97.
(13) Um bom político diz: isto é uma resposta, pergunte de acordo com ela.
(Shim‟on Peres, TV Channel 2, [no date]).
(14) hoje vamos falar com calma, tentando nos aproximar das pessoas, sem
interromper um ao outro.
(Michael Miro, sixot im ma‟azinim („„Talking with Listeners‟‟), IBA, Channel 2,
30/07/1998).
(WEIZMAN, 2006, P.166)
Nos exemplos acima, os direitos e deveres dos papéis sociais e interacionais dos
participantes são colocados em evidência. No exemplo (12), o entrevistador adverte a
entrevistada pelo fato dela se recusar a ceder o piso conversacional, atenuando sua reprimenda
através de uma perspectiva impessoal, isto é, em vez de criticá-la diretamente, ele usa de uma
fala de senso comum para marcar seu direito como entrevistador de realizar perguntas e
direcionar a entrevistada, que neste papel tem o dever de esperar as perguntas para então
respondê-las.
Em (13), o entrevistado propõe, em tom de brincadeira, sua interpretação da
acusação implícita de que políticos geralmente evitam as perguntas dos entrevistadores. Para
o entrevistado, é a partir da fala do político que a pergunta deveria ser feita, e não ao
contrário, cobrindo assim, pelo uso do humor, sua crítica implícita a seus companheiros
políticos. Já no exemplo (14), o requisito interacional da fala não agressiva é explicado pelo
entrevistador de um programa de rádio ao ouvinte que liga para participar do programa,
usando, inclusive, o atenuador “nós”- vamos - e o recíproco “um ao outro”, igualando falante
e ouvinte, com o objetivo de estabelecer solidariedade. Apesar da fala atenuadora, fica claro
que o entrevistador tem o direito hierárquico de comandar como a interação se dará e cabe ao
entrevistado seguir as regras estabelecidas.
2 Grifos meus.
16
O papel social dos participantes da entrevista, no que tange aos seus direitos e
obrigações, também envolve as expectativas interacionais do encontro. O papel social do
entrevistado, tornado relevante na atividade, gira em torno de sua ocupação profissional/
institucional, motivo pelo qual, inclusive, tal entrevistado foi convidado à entrevista. Os
papéis sociais do entrevistador também podem se tornar relevantes na entrevista no contato
com o entrevistado (WEIZMAN, 2006, p.161). Para a autora, nem todo papel é relevante o
tempo todo. Por isso, é fundamental verificar como os papéis surgem ou se tornam relevantes.
No discurso da mídia, uma forma simples é posicionar-se publicamente e explicitamente em
um determinado papel, como é o caso do exemplo a seguir:
Três dias antes das eleições, após a aparição, na imprensa, de ataques ao Primeiro
Ministro Benjamin Netanyahu, que culpou a imprensa por discriminá-lo, o jornalista
Amnon Dankner faz uma distinção entre as implicações decorrentes de papéis
opostos: “cidadão” versus “jornalista”:
Senhor Primeiro Ministro [...] como cidadão, eu tenho uma opinião sobre o resultado
das eleições na segunda-feira à noite e eu não escondo isso, mas eu devo dizer que
como jornalista, meu interesse profissional é de fato que o senhor ganhe as eleições.3
(Amnon Dankner, ani lo mefaxed [„„I am not afraid‟‟], Ma‟ariv, 14/05/1999, p. 2).
(WEIZMAN, 2006, P.160)
Essa categorização de papel interacional e papel social abordada por Weizman
(1996, 2006, 2008) na área das entrevistas de notícias também ocupou espaço em outros
estudos interacionais com o foco no discurso profissional (SARANGI e SLEMBROUCK,
1996; SARANGI, 2010, 2011). Enquanto as noções relativas ao conceito de papel social e
papel interacional permanecem basicamente as mesmas nesses estudos, a nomenclatura do
papel interacional sofre uma alteração, sendo substituída por “papel discursivo”, em uma
referência aos estudos de Goffman ([1979]1998).
Na análise de consultas terapêuticas, Sarangi e Slembrouck (1996) defendem, assim
como o faz Weizman (1996, 2006, 2008), que o papel social é interconectado com o papel
discursivo (SARANGI e SLEMBROUCK, 1996, p. 68), sendo este delimitado pelo papel
social tornado relevante no encontro. Na exemplificação dessa discussão, os autores afirmam
que o papel de assistente social - papel social -, por exemplo, restringe os papéis discursivos
desempenhados: “as ações verbais do assistente social são então restringidas ao papel
discursivo de reportar o diagnóstico médico” (1996, p.68). Além de reportar a situação do
3 Grifo meu.
17
paciente, o assistente social ainda pode realizar as tarefas discursivas de aconselhamento às
famílias, de assessoria à autoridade policial, de estabelecimento de vínculo entre as várias
agências envolvidas no processo, de acompanhamento à vítima, etc. Todos esses papéis
discursivos realizados nessas ações são assim executados devido ao papel social de assistente
social tornado relevante em uma atividade - consulta terapêutica - que assim o exige.
Portanto, essa conexão entre papel discursivo e papel social é dependente do tipo de atividade
em questão. Isso significa que considerar a atividade ao analisar os papéis tornados relevantes
na interação é fundamental nesse processo de categorização de papéis.
Considerando então a importância do tipo de atividade nas análises dos papéis
sociais e discursivos, Sarangi (2010) identifica outra categorização de papel: o papel de
atividade. Apesar de Sarangi (op.cit.) introduzir esse termo em sua discussão sobre papel, o
conceito de papel de atividade foi usado anteriormente por Clark (1996) em sua discussão de
atividade conjunta na construção da linguagem. Clark (op.cit.) afirma que as pessoas que
tomam parte dessa atividade conjunta não são só participantes ratificados, mas sim
participantes em papéis específicos. A esses papéis, ele definiu como o papel de atividade,
que ajuda a formar o que cada um faz e a entender o que é feito na atividade (p.33); ajuda a
determinar a divisão do trabalho na atividade conjunta (p. 37).
Ainda que o foco de Clark (op.cit.) seja o estudo das atividades conjuntas, isto é, o
que as pessoas fazem, em termos de linguagem, ao se depararem com o outro, essa
conceptualização do papel de atividade é pertinente para delimitar uma das funções
desempenhadas pelo participante em interação. Na retomada do conceito por Sarangi, em seu
trabalho de 2010, é estabelecido uma relação entre esse papel de atividade e o papel
discursivo, definindo o papel de atividade como aquele que é dependente da atividade,
caracterizando-a. O médico, por exemplo, em uma consulta pode desempenhar um papel de
terapeuta, aconselhando e ouvindo o paciente, e também um papel pedagógico como ensinar
certos procedimentos de higiene, por exemplo. O papel de terapeuta e pedagogo seriam os
papéis de atividade desempenhados pelo papel social de médico naquela atividade. Os papéis
discursivos seriam, então, os recursos discursivos que esse médico utiliza para desempenhar
esta fala de aconselhamento e de ensinamento de procedimentos.
Em 2011 (a, b), Sarangi, partindo de estudos de caso direcionados à área de saúde,
como consultas médicas e encontros terapêuticos, reúne em sua análise, por fim, os três tipos
de papéis dos participantes nos encontros analisados:
18
Nós podemos estabelecer uma distinção entre papel social, papel discursivo e papel de
atividade (SARANGI, 2010). Enquanto papel social se refere às relações sociais entre
os participantes (mãe–filho, professor-aluno, etc), papel discursivo se refere às
relações entre os participantes e a mensagem (produzida, recebida, transmitida). Papel
de atividade é dependente do tipo de atividade na qual o indivíduo está participando e
é geralmente definido em relação aos outros participantes.
(SARANGI, 2011a, p.8)
Essa categorização de papel abordada por Sarangi (2010, 2011a, 2011b) é a que
adoto analiticamente nesta tese. De fato, essa abordagem não difere, em termos da natureza do
conceito de papel, da abordagem feita por Weizman (1996, 2006, 2008). Os dois autores
abordam papel de forma dinâmica, interacional e relevante à atividade, havendo uma relação
de interdependência entre os papéis discursivos - interacional na teoria de Weizman (op.cit.) -
e os papéis sociais dos participantes. E é para complementar essa dinamicidade dos papéis que
Sarangi (op.cit.) introduz uma terceira categoria: o papel de atividade. Esta categoria não é
contemplada na abordagem de Weizman (op.cit.) que, no entanto, se dedica ao estudo da
relação entre os papéis e os posicionamentos na interação. Esta contribuição da autora é
relevante a esta tese e me dedicarei a ela mais adiante, na subseção 2.1.2.
Por fim, Sarangi (2011a) defende que os papéis são vistos em termos das relações
que eles estabelecem na interação: relações entre os participantes e entre os participantes e a
mensagem. Dentre essas relações entre os participantes, o autor reconhece que o papel de
atividade ainda precisa de uma “calibração” (SARANGI, 2011a, p. 9), uma vez que analisar a
atividade em si não é uma tarefa muito simples, devido a sua natureza híbrida: “todo tipo de
atividade é híbrido e esse hibridismo é também manifestado em outros níveis, especialmente
em termos dos tipos de discursos e conjuntos de papéis variáveis” (SARANGI, 2011a, p. 22).
Este conceito de hibridismo de atividade é também estendido ao papel
desempenhado pelo participante da interação. O hibridismo de papel então envolve os
possíveis papéis que um indivíduo pode desempenhar em uma interação, que podem ser
conflitantes ou complementares, diferenciando-os teoricamente entre “conjunto de papéis” e
“múltiplos papéis”, aos quais darei ênfase na subseção seguinte.
19
2.1.1. Conjunto de Papéis versus Múltiplos Papéis
Sarangi (2010, 2011a, 2011b) defende que, dentro de uma determinada atividade, é
possível ocorrer um confronto entre vários papéis. Baseando-se na teoria de Merton (1957,
1968) sobre o “conjunto de papéis” e os “múltiplos papéis” que as pessoas ocupam em suas
atividades diárias, Sarangi (op.cit.) argumenta que essa distinção conceptual deve ser seguida
ao analisar os papéis envolvidos na interação, na tentativa de dar conta dos papéis conflitantes
que surgem no encontro.
A teoria de Merton (op.cit.) tem base sociológica e opera com a relação entre status e
papel - social -, considerando como o status social é organizado na estrutura social. O autor
parte da definição de status, proposta por Linton (1936), visto como “uma posição em um
padrão particular que é uma coleção de direitos” (LINTON, 1936, p.113-114; cf. MERTON,
1957, p. 110) e papel social como o “aspecto dinâmico de um status [que] coloca os direitos e
obrigações que constituem o status em ação” (op. cit.). Merton (1957, 1968) concorda que,
nestes termos, status e papéis conectam as “expectativas definidas culturalmente com a
conduta e as relações padronizadas que colocam em movimento a estrutura social”
(MERTON, 1957, p.110). Contudo, o autor contesta o fato de que para Linton “cada pessoa
em sociedade inevitavelmente ocupa múltiplos status e que cada um desses status tem um
papel associado” (LINTON, 1936, p. 114). Merton (1957) afirma que:
Ao contrário de Linton, eu inicio com a premissa de que cada status social envolve
não um simples papel associado, mas um arranjo de papéis. Este aspecto básico da
estrutura social pode ser registrado pelo termo conjunto de papéis. Para repetir, então,
por conjunto de papéis eu defino as relações de papéis complementares em que as
pessoas são envolvidas pelo fato de ocupar um status social particular. Um exemplo: o
status do estudante de medicina não implica só o papel de um estudante em relação
aos seus professores, mas também uma rede de outros papéis relacionando o ocupante
deste status com os outros estudantes, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, etc.
(MERTON, 1957, p. 110)
A definição de múltiplos papéis de Merton (op.cit.), apresentada acima, nos deixa
margem para duas interpretações dessa categorização. Ao mesmo tempo em que Merton
(op.cit.) afirma que cada status social envolve um conjunto de papéis, ou seja, uma única
pessoa pode desempenhar diferentes papéis associados, o autor também afirma que o termo
conjunto de papéis é usado para definir as relações de papéis complementares em que as
pessoas são evolvidas por ocupar um único status social. Essas relações de papéis compõem
20
uma rede em que um status social se relaciona com os outros status da rede. Note que o
exemplo do autor, na citação acima, expõe a relação entre um status particular e os outros
papéis que compõem a rede de papéis associados e que não são, necessariamente, papéis de
um único status: um status de estudante de medicina não implica apenas o papel de estudante
em relação aos professores, mas também uma rede de outros papéis, relacionando esse status
com os outros papéis de estudantes, médicos, enfermeiros, etc.
Essas considerações de Merton (1957), então, não deixa claro o que seria a definição
de conjunto de papéis para o autor: seriam os papéis associados a um único status social ou
seria o conjunto formado entre um status social e sua relação com outros status em uma rede
associada? Essa discussão é pertinente para o que se pretende chamar aqui de conjunto de
papéis. Sarangi (2010, 2011a, 2011b) interpreta a definição de conjunto de papéis de Merton
(1957, 1968) como sendo um conjunto de diferentes papéis que um único status social
desempenha. De fato, Sarangi (op.cit.) não se atém a essa discussão das possíveis
interpretações do texto de Merton (op.cit.), ou pelo menos não considera discuti-las. Como
esta tese adota as categorizações de papel abordadas por Sarangi (op.cit.), segue também esta
visão de conjunto de papéis, como a rede em que um dado status constrói em seus diferentes
papéis desempenhados.
Merton (1957, 1968) argumenta que o conceito de conjunto de papéis “difere do que
os sociólogos têm descrito como „múltiplos papéis‟” (1957, p. 111). Este último se refere “aos
vários status sociais (geralmente em diferentes esferas institucionais) em que as pessoas se
encontram – por exemplo, o status de médico, marido, pai” (op.cit.). A esse complemento dos
distintos status de uma pessoa, em que cada status tem seu próprio conjunto de papéis, o autor
denomina de conjunto de status.
Exemplificando, então, essas duas noções que parecem similares, mas possuem
naturezas distintas, tomo o exemplo do papel social de professor. O professor exerce um
conjunto de papéis característico; pode desempenhar o papel de orientador, avaliador, diretor
de unidade, chefe de departamento, etc. Por outro lado, este professor possui múltiplos papéis
sociais – isto é, seus vários status sociais - podendo também ser marido, pai, religioso, etc.
Em sua teoria, Merton (1957, 1968) defende que essas noções possuem problemas
analíticos que devem ser considerados, principalmente porque esta estrutura social
aparentemente simples é extremamente complexa. Para o autor, em toda sociedade, há um
problema funcional em articular os componentes dos numerosos conjuntos de papéis na vida
diária e em identificar os mecanismos sociais utilizados neste processo de articulação
(MERTON, 1957, p.111-112). O problema está em como “os indivíduos lidam com a
21
complexa estrutura das relações em que se encontram” (MERTON, 1957, p.111-112).
Merton (1957, 1968) ainda ressalta que uma vez que os membros de um conjunto de papéis
estão situados diferentemente na estrutura social, eles podem ter diferentes interesses,
sentimentos, valores e expectativas, havendo diferenças entre os ocupantes de um dado status.
E é a partir dessas diferenças e na consequente falha em administrar os distintos papéis
envolvidos no contato com o outro que surge “tensão e conflito” (1957, p. 113).
A questão do conflito que circunda as noções de conjunto de papéis e múltiplos
papéis foi abordada por Sarangi (2010, 2011a, 2011b) em sua teorização de hibridismo de
papel, isto é, os distintos papéis que um indivíduo pode desempenhar, potencialmente, no
curso de uma interação. O autor pontua que a tensão e a complementariedade são conceitos
que facilitariam diferenciar o conjunto de papéis dos múltiplos papéis. Enquanto a
complementariedade, para o autor, é perceptível nos dois conceitos, a tensão seria mais
perceptível no conjunto de papéis, uma vez que um profissional poderia exercer diversos e
conflitantes papéis em um encontro. É possível ilustrar essa questão nos dados desta tese
quando, por exemplo, o entrevistado José Dirceu torna relevante na entrevista não só o papel
de ministro/ ex-ministro, como também os papéis de presidente de partido e deputado, todos
associados a seu papel de político. Esse conjunto de papéis pode entrar em conflito,
principalmente se os interesses do partido político a que está filiado, no papel de presidente de
partido, por exemplo, sejam diferentes do papel de ministro como representante do governo.
Já nos múltiplos papéis, a tensão não estaria em evidência na interação como ocorre
no conjunto de papéis, de acordo com Sarangi (2010, 2011a, 2011b). No entanto, algumas
situações dos dados me levam a levantar a hipótese de que a tensão nos múltiplos papéis pode
estar presente com a mesma intensidade que estaria no conjunto de papéis. A entrevistadora
Marilia Gabriela, por exemplo, na entrevista com o ex-Ministro José Dirceu se posiciona
frequentemente como (i) jornalista – da cobertura dos fatos políticos, como o mensalão, a
eleição -, (ii) mulher – aproximação com a primeira mulher eleita no Brasil – e (iii) eleitora.
Estes três papéis estão presentes e podem se tornar relevantes no posicionamento da jornalista
em relação aos fatos discutidos na entrevista: o papel de eleitora, por exemplo, pode se tornar
crucial (principalmente se for eleitora de oposição) no direcionamento das perguntas feitas ao
ex-Ministro, que foi um dos dirigentes do Partido dos Trabalhadores, partido este da
presidente eleita.
Essa diferença entre o conjunto de papéis e os múltiplos papéis, então, precisa talvez
ser melhor analisada considerando a atividade de análise, já que dependendo do tipo de
atividade, como a atividade que compõe o corpus desta tese, a tensão pode estar presente tanto
22
no conjunto de papéis quanto nos múltiplos papéis desempenhados pelos participantes do
programa.
2.1.2. A interface Papel e Posicionamento4
A Teoria do Posicionamento (LANGENHOVE e HARRÉ, 1999) surgiu como uma
alternativa à concepção estática da noção de papel na visão dramatúrgica de Goffman ([1959]
2005), atribuindo à posição um conceito mais dinâmico e interacional. Os autores definem o
posicionamento como um processo discursivo pelo qual as pessoas são localizadas nas
conversas como participantes coerentes em linhas de história – storylines – que são
construídas conjuntamente.
Os posicionamentos são usados pelos indivíduos para lidar com a situação em que se
encontram, localizando-os em posições, em um sentido metafórico do termo. Segundo Davies
e Harré (1990), uma posição se refere à produção discursiva dos selves e incorpora um
repertório conceptual e uma localização para os indivíduos dentro de um sistema de direitos e
deveres. Cada pessoa tem uma vasta possibilidade de escolha, já que são muitas as práticas
discursivas nas quais o indivíduo pode se engajar. A relação entre posição e discurso é bi-
direcional: as pessoas são posicionadas através das práticas discursivas, e sua subjetividade é
gerada através dessas práticas (DAVIES e HARRÉ, 1990), isto é, uma posição é criada dentro
da fala e através dela, pois possui uma natureza relacional.
Uma posição pode ser identificada no discurso a partir de certos aspectos como
emoções, valores e crenças. Por exemplo, alguém pode se posicionar ou ser posicionado como
honesto ou corrupto, arrogante ou humilde, religioso ou ateu, carinhoso ou rude, etc.,
dependendo de como a sua fala é interpretada em relação a esses aspectos. A partir da
natureza relacional das posições, uma pessoa é sempre posicionada em relação aos outros.
Dessa forma, ao se posicionar, uma pessoa X interacionalmente posiciona uma pessoa Y e por
posicionar Y, X reflexivamente posiciona a si mesmo: “se A se posiciona como poderoso em
relação à B, então B é posicionado como menos poderoso em relação à A, e vice versa: se A
4 Esta subseção tem base nos estudos defendidos na tese de doutorado de Divan (2011), no que tange às
discussões sobre a teoria do posicionamento (cf. bibliografia).
23
posiciona B como poderoso, A é necessariamente posicionado como menos poderoso”
(HARRÉ e LANGENHOVE, 1999, p.1-2).
Ainda segundo Davies e Harré (1999), se uma pessoa desenvolve uma determinada
posição, ela passa a ver o mundo do ponto de vista dessa posição e em termos de metáforas e
conceitos relevantes para as práticas discursivas nas quais ela está posicionada. As posições
indicam a forma como cada pessoa concebe a si mesmo e aos outros. Em uma interação, o
participante se posiciona e posiciona os outros, que poderão aceitar ou negar a posição que
lhes foi atribuída. Se a posição não for aceita, ela poderá ser reformulada e reintroduzida no
discurso. As posições são efêmeras e podem ser disputadas e também se tornar tema da
disputa.
Langenhove e Harre (1999) fazem uma distinção entre posicionamento de primeira
ordem e de segunda ordem:
O posicionamento de primeira ordem diz respeito à forma em que uma pessoa se
posiciona e posiciona os outros dentro de um espaço essencialmente moral
empregando diversas categorias e storylines5. Por exemplo, se Jones diz a Smith „por
favor passe minhas camisas‟, então ambos Smith e Jones são posicionados por esta
elocução. Jones como alguém que tem o direito moral (ou como alguém que acha que
tem o direito moral) de comandar Smith, e Smith como alguém que pode ser
comandado por Jones. Por outro lado, o posicionamento de segunda ordem ocorre
quando o posicionamento de primeira ordem não é assumido por uma das pessoas
envolvidas na discussão. Por exemplo, se Smith questiona Jones, relutante em cumprir
sua ordem, nova negociação se segue e novas posições surgem, sendo consideradas
como posicionamentos de segunda ordem.
(LANGENHOVE e HARRE, 1999, p.20)
Os posicionamentos de primeira ordem podem ser questionados de duas maneiras:
dentro da própria conversa ou fora dela, em outra conversa. Ambos os casos são considerados
posicionamentos explicativos, pois envolvem fala sobre fala. O posicionamento de segunda
ordem é, assim, um posicionamento explicativo dentro da discussão em andamento. Se o
posicionamento explicativo ocorre fora da discussão inicial (ou com outra pessoa que não seja
a pessoa que o posicionou no posicionamento de primeira ordem), então ele pode ser chamado
de posicionamento de terceira ordem (op.cit.).
Para Langenhove e Harré (1999), a maior parte dos posicionamentos de primeira
ordem é do tipo tácito, ou seja, as pessoas envolvidas não se posicionam ou não posicionam o
outro intencionalmente ou de forma consciente. Entretanto, quando uma pessoa está mal
5 Grifo meu.
24
intencionada, está brincando ou está mentindo, o posicionamento de primeira ordem pode ser
intencional. Os posicionamentos de segunda e terceira ordem são sempre intencionais, mas,
enquanto, um posicionamento intencional de segunda ordem está acontecendo, um
posicionamento tácito de primeira ordem já terá ocorrido.
O programa Roda Viva permite que discussões surjam ao longo do encontro e que
posições de primeira ordem sejam atribuídas ao entrevistado, algumas intencionais e outras
nem tanto. Não discutirei aqui a intencionalidade das posições atribuídas ou reivindicadas
pelos participantes e nem busco classificar posições de primeira, segunda ou de terceira
ordem. O que me importa é a dinamicidade desses posicionamentos em uma análise da
negociação constante de papéis e posições no curso da interação.
Como dito no início desta subseção, a teoria do posicionamento se desenvolveu para
dar conta de uma noção de papel como um construto fixo e determinado a priori da interação,
isto é, livre de contexto. Contudo, nem toda abordagem de papel é estática. Há estudos, como
os trabalhos de Weizman (1996, 2006, 2008) e de Sarangi (2010, 2011), adotados nesta tese,
que defendem o conceito de papel como um conceito dinâmico e interacional, considerando
como relevantes em suas análises os papéis que emergem no discurso.
Weizman, em seu livro intitulado “Posicionamento no diálogo da mídia” (2008), se
engaja “em uma microanálise textual, empiricamente baseada, dos padrões discursivos,
adotando algumas das diretrizes centrais do posicionamento, principalmente sua dinamicidade
[e] natureza relacional” (WEIZMAN, 2008, p.14). A autora recupera a teoria do
posicionamento para examinar a conduta dos participantes de entrevistas de notícias na
negociação de suas posições no curso da interação. Considera que o conceito de
posicionamento opera em conjunto com a noção de papel, descartando a possibilidade de uma
noção ser excludente da outra. “O posicionamento envolve a atribuição, a elaboração e a
negociação das relações recíprocas entre todas as partes envolvidas na interação”
(WEIZMAN, 2008, p. 16). Para a autora, o posicionamento é “altamente sinalizado pela
percepção dos interagentes de seus respectivos papéis e as expectativas que acarretam”
(op.cit.). Postula, ainda, que posicionamento pressupõe o papel, uma vez que os interagentes
constantemente posicionam e reposicionam a si e aos outros no discurso, dinamicamente, em
seus papéis interacionais e sociais6, através da confrontação e do desafio:
do ponto de vista conceitual, eu postulo a conexão entre posicionamento, papel e
desafio. Seguindo os teóricos do posicionamento, eu vejo o posicionamento como
6 Conferir seção 2.1.
25
englobando uma dimensão dinâmica. Eu ainda acredito que o posicionamento
pressupõe o papel: um falante é sempre posicionado em um papel7. Nesta visão, o
posicionamento é indexado pela percepção do interlocutor de seus papéis respectivos e
as expectativas que implicam esses papéis.
(WEIZMAN, 2008, p. 177)
Weizman (op.cit.) associa o desafio às noções de posicionamento e papel,
considerando que o desafio tem “um status privilegiado nas entrevistas de notícias” (p.178),
embora não seja uma condição necessária para a coconstrução do posicionamento. A presença
do desafio como um componente desta relação se deve à natureza da atividade analisada pela
autora, que considera as entrevistas de notícias “um ambiente de confronto” (p.178) em que
disputas de pontos de vista estão em evidência na atividade, frequentemente através do
conflito.
Em meus dados, este ambiente de confronto também é instaurado em alguns
momentos da interação e se torna evidente para os participantes que defendem seus pontos de
vista. Essas defesas perpassam a negociação de posições e papéis introduzidos e
reintroduzidos ao longo do encontro. A visão de papel, então, que adoto nesta tese é uma
visão dinâmica do conceito. Sem dúvida, a teoria do posicionamento facilita essa análise da
dinamicidade dos papéis e das posições atribuídas e assumidas em cada papel. Portanto,
alinho à abordagem de papel o conceito de posição e posicionamento, considerando que o
participante se posiciona e se reposiciona todo o tempo em seus papéis desempenhados na
atividade, sendo a posição uma ferramenta de análise importante nesta tese.
2.2. O tipo de atividade
Definir a situação de fala em que uma interação ocorre é um dos aspectos
fundamentais para entender as relações que se estabelecem entre os participantes, seja em
relação às mensagens, seja em relação aos papéis desempenhados. No entanto, definir esta
situação nem sempre é uma tarefa tão fácil, uma vez que vários aspectos sociais e discursivos
contribuem para essa definição, tanto no nível micro, captando as informações de natureza
sócio-interacional, quanto no nível macro, abrangendo uma visão sócio-histórica e
institucional que alicerça o discurso.
7 Grifos no original.
26
Diversas são as tradições de pesquisa que destacam a relevância de definir a situação
de fala em que a interação ocorre. Goffman (1974), no âmbito da microsociologia dos
encontros sociais, desenvolveu seu conceito de enquadre como uma categoria socialmente
situada, que mostra como os participantes de um encontro face-a-face sinalizam o que dizem
e/ou fazem, ou sobre como interpretam o que é dito e feito, sendo relevante para responder à
questão “o que está acontecendo aqui e agora?” (op. cit.). Uma questão que aponta para dois
tipos de indicadores contextuais: “aqui” direciona a interpretação para o contexto situacional;
e “agora” para o momento em curso. A pergunta também representa uma meta-orientação
sobre o que é contexto (op.cit.) e, especificamente, o contexto de comunicação. O autor
afirma que o significado das ações sociais é definido em função desses princípios - os
enquadres - que governam e organizam os eventos sociais.
A organização desses eventos sociais, realizados através da fala, ganha destaque na
visão de Hymes (1972) em seu conceito de evento de fala, na perspectiva dos estudos da
Etnografia da Comunicação. O autor define o evento de fala como uma atividade governada
por regras que estabelecem o uso da fala em uma dada sociedade. Os eventos são tratados
como encontros onde o que é dito é culturalmente restrito, associado a valores ideológicos em
relação à expectativa sobre os princípios apropriados de conduta e modos de fala
(GUMPERZ, 1999). Hymes (op.cit.) elabora a sigla SPEAKING, em que cada letra representa
um elemento relevante para a análise do contexto: o S - setting - representa a cena ou cenário;
a letra P, os participantes; a letra E - end - as metas da comunicação; a letra A, o ato de fala; a
K – key - o tom da fala; a letra I - Instrumentalities - o registro do evento (oral/ escrito) e o
código (dialeto); o N, as normas de interpretação e interação durante o evento e a letra G, o
gênero do discurso.
Gumperz (1999), no âmbito da Sociolinguística Interacional, destaca o conceito de
evento de fala de Hymes (1972) como uma contribuição relevante para a necessidade de se
observar o contexto nas análises interacionais. No entanto, Gumperz (op.cit.) defende que
essa noção, como caracterizada por Hymes (op.cit.), pode não revelar o dinamismo da
interação. Como ressaltam Bauman e Scherzer (1974), a função da linguagem na proposta de
Hymes é descrita em termos dos dados etnográficos coletados localmente, e suas descobertas
são generalizadas para formular regras específicas dos eventos de fala. Dessa forma, a
proposta torna-se insuficiente na análise das performances situadas dos participantes que
emergem no encontro, definindo o que é relevante de fato para o evento.
Gumperz (op.cit.) utiliza, então, em substituição a evento de fala, o conceito de tipo
de atividade, proposto por Levinson ([1979] 1992) para dar conta do contexto situacional em
27
que tal interação ocorre. Buscando representar o dinamismo do processo interacional na
caracterização da atividade, Gumperz ([1982] 1998) afirma que:
O termo atividade não é usado para representar uma estrutura estática, mas para
refletir um processo dinâmico que se desenvolve e sofre alterações na medida em que
os participantes interagem. O tipo de atividade não determina o significado, mas
simplesmente restringe as interpretações, canalizando as inferências de forma a
ressaltar8 ou tornar relevantes certos aspectos do conhecimento prévio e de forma a
diminuir a importância de outros.
(GUMPERZ, [1982] 1998, p.99)
Gumperz (op.cit.) utiliza o termo tipo de atividade ou atividade para designar a
unidade básica de interação socialmente relevante em termos da qual o significado é avaliado.
O tipo de atividade, então, é a definição de uma atividade reconhecida culturalmente pelos
participantes envolvidos, os quais focalizam uma meta bem definida, socialmente constituída,
com limites, restrições de participantes e de contexto.
2.2.1. O Hibridismo Interacional
Sarangi (2000) postula que o tipo de atividade é um conceito que “tem
proporcionado um esquema analítico de referência para os estudiosos da pragmática
interacional e da análise do discurso” (op.cit., p.1). Com ênfase nos domínios institucional/
profissional do uso da linguagem, o autor argumenta que, além do tipo de atividade, há
também que se observar o tipo de discurso na definição do contexto situacional,
considerando-se que pode haver uma sobreposição dessas noções em alguns contextos:
Enquanto o tipo de atividade é um meio de caracterizar contextos [...], o tipo de
discurso é um meio de caracterizar as formas de fala [...]. A sobreposição entre tipo de
atividade e tipo de discurso é mais aparente quando lidamos com aconselhamentos e
terapias, porque ambos constituem um tipo de atividade e uma forma de discurso. Em
outras palavras, o que consideramos como fala de aconselhamento ou terapêutica pode
ocorrer em diversos tipos de atividades e, similarmente, sessões de terapia e
aconselhamento lidam com diferentes tipos de discurso (recomendações, contar
problemas).
(SARANGI, 2000, p.2).
8 Grifo no original.
28
Como forma de caracterizar essa sobreposição entre tipo de atividade e tipo de
discurso, no nível interacional das definições contextuais, Sarangi (2000) propõe o conceito
de hibridismo interacional. O autor sugere que os participantes e os analistas precisam estar
sensíveis a essa noção que funciona como um mecanismo de entendimento de como certos
tipos de discurso são sobrepostos dentro e através dos tipos de atividade. Ressalta ainda que
essa conceptualização não é uma indicação de falha no enquadre do tipo de atividade. Pelo
contrário, funciona como um reconhecimento de oposição a uma categorização idealizada do
tipo de atividade (SARANGI, 2000, p.23).
A conceptualização de hibridismo interacional na definição do contexto é relevante a
esta tese, pois possibilita caracterizar o tipo de atividade de forma mais ampla e condizente
com o que ocorre de fato nos dados. O programa Roda Viva se apresenta como “um dos mais
importantes programas de entrevista da televisão brasileira”9, porém suas interações não
apresentam apenas traços de uma entrevista, pelo menos não em seu formato tradicional.
Como aponta Schegloff (1989), uma entrevista se caracteriza por possuir uma estrutura
tradicional de pergunta-resposta, em que um participante se orienta para a pergunta e o outro
para a resposta:
O componente mais fundamental do que é considerado uma “entrevista” é o fato de
uma parte perguntar e a outra parte responder. Não é que isso seja empiricamente
estabelecido. Mas uma ocasião é progressivamente e metodicamente constituída e
“realizada”10
como uma entrevista por, entre outras coisas, uma orientação de que os
participantes devem: um fazer perguntas e outro respondê-las.
(SCHEGLOFF, 1989, p. 218)
Sendo assim, para realizar uma entrevista não basta rotulá-la como tal e sim conduzi-
la através do padrão interacional pergunta-resposta durante o curso da atividade. Em meus
dados, esse padrão interacional não se sustenta ao longo do encontro, exatamente pelo fato
dos participantes não o conduzirem dessa forma, estando também presente o padrão
interacional característico do formato de debate: apresentação de ponto de vista-contestação
do ponto de vista. Esses dois padrões interacionais que caracterizam uma entrevista e um
debate, respectivamente, se apresentam na atividade de forma concomitante, através de
situações de disputa que, muitas vezes, perpassam o formato da entrevista. Na definição de
9 Esta citação pode ser encontrada na descrição do programa presente no site da TV Cultura, responsável por sua
transmissão: http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva. 10
Os grifos no original.
29
Sarangi (2000), estes padrões interacionais seriam os tipos de discurso que compõem um tipo
híbrido de atividade.
O excerto abaixo, retirado da entrevista com o Ministro da Saúde José Gomes
Temporão11
, que compõe o corpus, exemplifica esse posicionamento teórico que adoto nesta
tese. Neste trecho, há um questionamento sobre um possível plebiscito que ocorreria no país
para discutir a descriminalização/legalização do aborto como fato legal. Além do Ministro,
participam também deste recorte os entrevistadores Paulo Markun, Demétrio Weber e
Reinaldo Azevedo. Paulo Markun inicia o excerto perguntando o ponto de vista do Ministro
sobre a questão discutida:
Excerto (1)
Entrevista José Gomes Temporão
Bloco III
198
199
Paulo
Markun
em caso de existir plebiscito, o senhor vai votar a favor ou
contra o aborto?
200 Ministro
não sei! depende do debate=
201
202
203
Demétrio
Weber
=mas ministro, o senhor que levantou o debate (0,2)
a lei já existe, o código penal de 1940 está aí,
diz os casos que podem e os que não podem.
204
205
206
207
208
209
210
211
Ministro eu propus o debate (0,2) ou melhor, eu não propus o debate
não!
na realidade, no começo eu respondi essa questão,
isso me impressiona muito. não fui eu que lancei essa questão.
eu fui usado, na realidade, para que essa questão aparecesse.
ela está na cara de todo mundo. camelô no centro do rio de
janeiro vendendo medicamento. vende porque tem mercado (0,2)
as pessoas estão tomando, as mulheres estão usando,
as mulheres estão morrendo.
212
213
214
215
216
Reinaldo
Azevedo
ministro, eu que lhe dei os parabéns duas vezes,
vou brigar com o senhor agora (0,2)
o senhor é ministro da saúde. não pode dizer, como se fosse
eu, >que não sou nada< sou apenas um abelhudo, que estão
vendendo cytotec imagino, no rio de janeiro.
217 Ministro
isso é uma questão de polícia=
218 Reinaldo
Azevedo
=é questão de governo, de política pública.
219
220
221
Ministro mas no caso específico é uma infração grave à lei!
polícia. as pessoas estão comprando pela internet (0,2)
como você controla? é outro problema.
11
Cabe mencionar que os termos “Ministro” e “ex-Ministro” são empregados em referência à relação ministerial
dos entrevistados na época em que ocorreu a entrevista. Desta forma, José Gomes Temporão e Paulo Renato
Souza são Ministros da Saúde e da Educação, respectivamente, enquanto José Dirceu é ex-Ministro da Casa
Civil.
30
A pergunta realizada por Paulo Markun nas linhas 198 e 199 ao Ministro encontra
uma resposta no turno seguinte: não sei depende do debate (l. 200). Essa resposta, ainda que
não seja direta à pergunta, preenche o turno esperado de uma resposta no padrão interacional
pergunta-resposta estabelecido na interação. Contudo, essa resposta é questionada no turno
seguinte: mas ministro o senhor que levantou o debate (l. 201) em uma discordância direta ao
fato do Ministro não responder claramente a pergunta. Na sequência, o padrão interacional
pergunta-resposta é substituído por turnos que apresentam o padrão interacional apresentação
de ponto de vista (isso é uma questão de polícia – l. 217) – contestação do ponto de vista (é
questão de governo, de política pública - l. 218). Esses turnos marcam uma disputa que
caracteriza o formato de debate, assim como a pergunta de Paulo Markun, no início do
excerto, e a resposta do Ministro na sequência dos turnos caracterizam o formato entrevista.
O padrão interacional pergunta-resposta corresponde a pares de ação na interação. A
realização de uma pergunta gera uma expectativa de uma ação de resposta. Nessa atividade de
responder, pode ocorrer uma não resposta, isto é, uma resposta que não atende ao conteúdo
proposicional da pergunta, que foge ao foco da pergunta. Nos termos de Costa (2010), essa
não resposta é realizada através de práticas de evasão que podem ser abertas, quando o falante
deixa explícito que não irá responder, ou encobertas, quando o falante tenta esconder a ação
de não responder.
No excerto (1) acima, a resposta não sei depende do debate (l. 200) é considerada
uma não resposta, em uma prática evasiva de fuga da apresentação do ponto de vista que pode
ser ameaçador ao papel de Ministro como representante do governo. Essa prática evasiva
pode se justificar, nessa atividade, devido aos papéis que os entrevistados desempenham,
essencialmente o papel de político. Como mostram Bavelas et. al (2008), os políticos optam
pela evasão de resposta nas entrevistas, pois geralmente as perguntas dos entrevistadores
exigem um posicionamento claro por parte do entrevistado, o que comprometeria sua imagem
pública. Por outro lado, os autores afirmam que, se os políticos também não produzem uma
resposta, são julgados negativamente, o que os leva a optar pela evasão.
Por fim, deve-se considerar ainda na definição do tipo de atividade, característico
desta tese, que as características sobrepostas de entrevista e debate são vinculadas ao gênero
televisivo, em que outras estruturas situacionais – como a existência de uma audiência de
massa – exercem uma forte influência nessa categorização. É notável no senso comum que
uma entrevista de emprego, por exemplo, não engloba as mesmas características de uma
entrevista televisiva, assim como um debate entre amigos ou em um ambiente de trabalho não
possui as restrições de fala do debate televisivo. Portanto, definir o tipo de atividade de forma
31
“idealizada” (SARANGI, 2000), sem considerar os tipos de discursos sobrepostos, não capta
a complexidade da atividade que compõe os dados, o que me leva a questionar que tipo de
atividade é esta que analiso nesta tese.
2.2.2. As Entrevistas de Notícias
Muitos estudos vêm abordando a atividade das entrevistas televisivas em diversos
formatos: as entrevistas de notícias (HERITAGE, 1985; CLAYMAN, 1988, 1992, 2010;
EKSTRÖM e LUNDELL, 2009), os painéis de entrevistas (CLAYMAN, 2002a;
EMMERTSEN, 2007), os talk shows (ILIE, 1999; HESS-LÜTTICH, 2007). Muitos desses
estudos focalizam os aspectos de disputa de pontos de vista que emergem no curso dessas
entrevistas.
No âmbito das entrevistas de notícias, Ekström e Lundell (2009) discutem que esse
tipo de atividade se apresenta mais diverso e híbrido do que vem sendo abordado na literatura,
isto é, como uma atividade comunicativa desenvolvida “para a coleta de informações” (p.1)
geralmente vinculadas “a problemas relatados nos recentes eventos de notícia” (CLAYMAN,
2001, p.10463). Ekström e Lundell (2009) definem as entrevistas de notícias como:
atividades de interação institucionalizadas em que os participantes são orientados para
dois papéis discursivos distribuídos assimetricamente; o papel de perguntar do
jornalista e o papel de responder do entrevistado. Nas entrevistas de notícias, os
jornalistas fazem perguntas em nome da instituição que eles representam. As
atividades são de uma forma ou de outra orientadas para a meta geral de fazer notícia.
No entanto, uma análise mais detalhada descobrirá um número de diferentes
atividades de entrevista nas produções de notícia.
(EKSTRÖM e LUNDELL, 2009, p.5)
Esse “número de diferentes atividades de entrevista” é conceituado pelos autores
como “formatos de fala” (p.10) que enquadra aspectos estruturais do formato da entrevista. O
formato de fala, então, se refere ao conjunto de formas de como uma entrevista deve ser
conduzida e apresentada para o telespectador. Diversos aspectos são relevantes para
diferenciar os vários formatos de entrevistas:
(1) se a entrevista é ao vivo ou gravada; (2) se a entrevista gravada será mostrada na
forma de longas sequências ou trechos integrados no segmento da noticia; (3) se a
entrevista é conduzida face-a-face, via telefone ou via teleconferência; (4) a duração
32
da entrevista ao vivo; (5) quantos entrevistados participam na entrevista; (6) como a
entrevista é filmada12
.
(EKSTRÖM e LUNDELL, 2009, p.10-11)
É interessante notar nesses aspectos que diferenciam os tipos de entrevista é que eles
podem ser aplicados a qualquer atividade de entrevista, seja ela parte de um noticiário, seja de
um programa de entretenimento ou ainda em um programa de entrevistas em si. Os autores
consideram que esses parâmetros de formato são aspectos essenciais da entrevista de notícia
como um tipo de atividade e o que a torna híbrida é a diferença na abordagem desses aspectos
ao longo da entrevista. Esses aspectos formam o enquadre e “afetam o que se espera que os
participantes façam, e o que é entendido como uma contribuição legitimada na interação”
(EKSTRÖM e LUNDELL, 2009, p.10).
A quantidade de participantes na entrevista é um dos pontos que Ekström e Lundell
(op.cit.) apontam como característico do formato de “fazer um debate” (p.12). Contudo, a
quantidade de participantes se refere ao número de entrevistados e não de entrevistadores. Os
autores estabelecem uma relação com os painéis de entrevistas que se caracterizam pela
presença de vários entrevistados que desempenham “papéis de adversários uns dos outros”
(CLAYMAN, 2001, p.10644). Os painéis de entrevistas de notícias “podem envolver vários
números de participantes, mas eles com frequência consistem de dois entrevistados que
representam posições ideológicas e interesses políticos opostos” (CLAYMAN, 2002a,
p.1386). Nesse formato de “fazer um debate”, as perguntas do entrevistador são “construídas
de tal forma que os entrevistados são convidados a formular pontos de vista indicando
discordância. As questões são usadas como técnicas para polarizar e criar confrontação.”
(EKSTRÖM e LUNDELL, 2009, p.12).
Muito similar a esse formato de entrevista é o termo entrevista-debate usado por
Emmertsen (2007) em sua análise das perguntas desafiadoras em painéis de entrevistas
britânicos. A autora caracteriza a entrevista-debate pela “ocorrência de sequências de
agravamento e não mitigadas de confronto entre os entrevistados” (p.570) e que tal confronto
é realizado como um “resultado da polarização do entrevistador das posições dos
entrevistados através do uso de perguntas desafiadoras e hostis” (p.570). Emmertsen (op. cit.)
argumenta que a entrevista inicia no formato de painel, em que o entrevistador realiza uma
pergunta a cada entrevistado, e estes respondem em seus turnos. Porém, tal sistema de turnos
não se mantém no curso da interação, sendo alterado para um sistema de tomada-de-turno, em
12
Grifos no original.
33
que pontos de vista contrários vão surgindo no discurso. Seguindo a abordagem da Análise da
Conversa, a autora sugere então que:
o tipo de entrevista de painel investigado [neste artigo] não pode ser adequadamente
descrito por um único sistema de tomada-de-turno, mas sim por dois sistemas de
tomada-de-turno que são normativamente invocados nos diferentes estágios da
interação. O termo entrevista-debate se refere à organização da interação investigada
que incorpora tanto a fala de confronto como a fala de entrevista de notícia.
(EMMERTSEN, 2007, p.576)
Nota-se na sugestão de Emmertsen (op.cit.) que o termo entrevista-debate é fruto do
desenvolvimento de uma atividade considerada híbrida, que apresenta tanto características de
um painel de entrevista de notícia, como também aspectos de “fala de confronto”,
característico de um debate. A autora discute que a troca entre os sistemas de tomadas-de-
turno - se o entrevistado se autosseleciona ou se é selecionado pelo entrevistador - ocorre
principalmente devido à posição do entrevistador na condução das perguntas aos
entrevistados. As perguntas desafiadoras geralmente incorporam uma crítica aos pontos de
vista dos entrevistados, criando uma disputa e uma situação de hostilidade “que não é
localmente ocasionada, mas uma parte padrão da interação. Hostilidade e confronto são
meramente a forma ou o jogo da interação” (p.588).
O programa Roda Viva não se caracteriza como um painel de entrevista, uma vez
que há apenas um entrevistado por edição. Contudo, o direcionamento, nos dados, das
perguntas dos entrevistadores ao entrevistado, sem dúvida, são exemplos dessas perguntas
instigadoras destacadas pela autora como ponto de partida para o “desafio da disputa”
(EMMERTSEN, 2007, p.588). Quando, por exemplo, o entrevistador Reinaldo Azevedo
questiona um dado apresentado pelo Ministro da Saúde José Gomes Temporão sobre a falta
de preservativos nos postos de saúde, que serviriam como uma medida preventiva para evitar
o aborto em decorrência de uma gravidez indesejada, o entrevistador realiza a seguinte
pergunta:
Excerto (2)
Entrevista José Gomes Temporão
Bloco I 126
Reinaldo
Azevedo
mas isso é então incompetência do ministério da saúde?
34
Nesta pergunta há, somado ao pedido de informação, um posicionamento crítico do
entrevistador ao órgão do governo que o entrevistado representa. Como enfatiza Emmertsen
(2007), essa pergunta cria uma disputa e uma situação de hostilidade, gerando uma situação
de confronto na entrevista que faz parte do “jogo da interação” (p. 588).
A metáfora do jogo interacional ganha destaque na discussão de Lauerbach (2004)
sobre as entrevistas políticas - com personagens da esfera política - como uma atividade
híbrida com função de entretenimento: “politainment” (p.353). A autora defende que as
entrevistas políticas são “jogos cooperativos” (p.390) entre os participantes, que na superfície
parecem jogos desiguais, em que uma parte ganha e a outra perde. Contudo, sob essa
superfície, esses jogos são cooperativos em que cada parte tem a ganhar, em uma relação de
informação e entretenimento com a audiência:
na entrevista política, um jogo de linguagem é jogado de acordo com as regras pelas
quais tópicos de interesse são trazidos na forma de perguntas por uma parte, que
recebe respostas de variados graus de despreferência13
pela outra parte, e dessas
respostas, a terceira parte, a audiência, para quem o jogo se realiza e pode
inferencialmente construir suas interpretações e extrair algum prazer do processo na
barganha.
(LAUERBACH, 2004, p.390)
Há três pontos interessantes na discussão de Lauerbach (op.cit.) sobre esses jogos
cooperativos nesta atividade híbrida: (i) o foco nos “tópicos de interesse”; (ii) a meta da
atividade como entretenimento e (iii) a relevância da audiência como alvo de todo esse
processo.
Os tópicos de interesse seriam aqueles conceituados pela autora, em um estudo
posterior, de “tópicos controversos” (LAUERBACH, 2006, p.200), isto é, temas que por
serem considerados problemáticos pelos participantes no âmbito da esfera pública dão
margem a pontos de vista contrários no curso da entrevista. Esses tópicos são identificáveis na
entrevista por serem marcados pela relação entre a evasão dos entrevistados, através de
estratégias defensivas, e a insistência do entrevistador, ambas as atitudes realizadas em
complexas estruturas de pergunta e resposta (op.cit.). No excerto (1), apresentado na subseção
2.2.1. p.29, é exemplificada essa questão quando o entrevistado se evade da resposta à
pergunta sobre ser favorável ou não ao aborto e contesta a insistência dos entrevistadores à
13
A autora se baseia nos preceitos da Análise da Conversa em suas conceptualizações, além de considerar outras
vertentes linguísticas como a “linguística funcional sistêmica, a análise do discurso e a pragmática”
(LAUERBACH, 2004, p.353).
35
questão, exatamente pelo tópico sensível ao seu papel de Ministro da Saúde. Nos dados desta
tese, os tópicos controversos estão presentes e guiam a interação entre os participantes no
curso do programa.
A questão da notícia como entretenimento vem sendo abordada nos estudos voltados
às entrevistas de formato talk shows. Hess-Lüttich (2007) discute a questão da produção dos
talk shows como “conversas de espetáculo”14
(p.1.361) que são encenadas para o espetáculo
endereçado a uma audiência. Essas conversas de espetáculo são “pseudo-conversas”
(p.1.363), “uma pseudo-disputa de adversários” (op.cit.), caracterizando-se também como
uma atividade híbrida, em que elementos de “debate político e entrevista” (p. 1.367) são
combinados para formar “o entretenimento de quem está assistindo ao jogo: o jogo do
confrontainment” (p.1.368). Novamente entra em questão a metáfora do jogo cooperativo
nesta pseudo-disputa, em que se considera “o debate como uma cooperação entre inimigos,
uma forma de contra-operação por cooperação” (p.1.362). Nos dados do autor, a audiência
funciona como alvo direto do espetáculo, principalmente a audiência do estúdio, a plateia, que
se manifesta em diversos estágios da interação, vaiando, aplaudindo e/ou rindo (p.1.368).
Essa audiência de estúdio participativa não está presente nos dados desta tese, assim
como a função de espetáculo da entrevista em formato de debate. Contudo, a questão do
entretenimento é uma discussão interessante que pode ser aplicada ao tipo de atividade
analisado aqui, uma vez que este é vinculado ao gênero televisivo, que tem como alvo uma
audiência que nem sempre tem como seu objetivo principal extrair informação transmitida
pelo programa, mas sim ter algum entretenimento proveniente de tal transmissão de
informação. A audiência e o entretenimento, então, são dois pontos relevantes considerados
na produção de um programa. No caso das entrevistas, como elas são “produzidas para uma
audiência overhearing” (HERITAGE, 1985, p.112), isto é, uma audiência que não é
presencial, os entrevistadores não se consideram os endereçados verdadeiros da fala dos
entrevistados (op.cit.), assim como os entrevistados sabem que “falam para duas audiências,
não só para um coparticipante imediato, mas também para uma audiência invisível”
(TOLSON, 2006, p.10-11). Sendo assim, a audiência de certa forma orienta a conduta
interacional dos participantes envolvidos no programa.
Nos dados da tese, há trechos que apontam para essa preocupação com a audiência.
O excerto a seguir, por exemplo, foi retirado da entrevista com o ex-Ministro José Dirceu.
Neste trecho, o jornalista Augusto Nunes faz menção a uma situação ocorrida com uma
14
O autor utiliza o termo Show Conversations.
36
assembleia de professores em São Paulo, na campanha do então governador Mario Covas
(l.128-129). Nesta situação, é atribuída ao Dirceu uma frase que teria uma conotação negativa
para a opinião pública, fato este considerado e negado pelo entrevistado (l.130-131; 133-134):
Excerto (3)
Entrevista José Dirceu
Bloco II 128
129
Augusto
Nunes
você disse na campanha do mário covas “eles precisam
apanhar [ na RUA e na urna”, tá gravado ]
130
131
Ministro [não eu não disse na campanha do]
mário covas [ nada disso]
132 Augusto
Nunes
[tá gravado!]
133
134
Ministro mas não é isso o que você está dizendo.
que aí o teles[pectador vai achar que-]
135 Augusto
Nunes
[ mas como dirceu? ]
136 Ministro estava numa assembleia de professores-
137 Augusto
Nunes
quem era que vai- que deveria apanhar?
138 Ministro de uma entidade (0,2)
139 Augusto
Nunes
nós?
140
141
142
Ministro o:: (0,2) eu usei a expressão apanhar, como posso usar outra
como vencer e derrotar. quando?
que que tem na minha vida=
143 Augusto
Nunes
=apanhar tem outro significado.
144
145
146
147
Ministro não. que que tem na minha vida? (0,2) eu tô quarenta anos
na vida pública, quarenta e cinco agora. já se foram cinco
anos. eu fui deputado. fui deputado federal, estadual,
fui ministro-
Este excerto mostra claramente a preocupação do entrevistado com a audiência e
com o julgamento que esta realiza como opinião pública. Essa preocupação da audiência
como alvo do discurso, assim como os aspectos estruturais que definem o formato da
entrevista são questões relevantes na definição do tipo de atividade em análise nesta tese.
A partir das questões discutidas nesta seção, o programa Roda Viva pode ser
caracterizado como uma atividade de caráter híbrido, que apresenta aspectos de uma
37
entrevista de notícias, assim como traços de uma disputa de pontos de vista. Nesta atividade,
perguntas e respostas vão sendo formatadas de acordo com a meta de defesa de pontos de
vista em relação aos temas abordados. Frequentemente, as perguntas dos entrevistadores são
formuladas de tal forma a obter, dos entrevistados, opiniões contrárias e desafiadoras em
relação aos tópicos em andamento. Assumo, então, o termo entrevista-debate
(EMMERTSEN, 2007) para fazer referência à atividade em análise nos dados, acreditando
assim identificá-la de forma mais precisa com o que ocorre no processo interacional da
atividade sob análise.
38
3. ORIENTAÇÃO TÉORICO-METODOLÓGICA
Neste capítulo, apresento a orientação teórico-metodológica que sigo como alicerce
da análise dos dados, considerando que a escolha da “teoria e dos métodos empregados reflete
a visão de mundo adotada pelo pesquisador e interfere nos resultados da pesquisa” (DIVAN,
2011, p. 54). Portanto, “além de determinar o objeto de estudo, é preciso também especificar
o olhar que será lançado sobre ele” (op.cit.).
A abordagem teórica que fundamenta a presente tese se baseia em uma perspectiva
interacional em Linguística. A proposta de uma Linguística Interacional é apresentada no
trabalho de Couper-Kulen e Selting (2001), no qual as autoras congregam abordagens em
estudos do discurso que comungam do pressuposto de que a interação social é o lugar em que
a linguagem em uso se constitui como uma forma de ação social. Dentre as disciplinas que
adotam essa perspectiva interacional em estudos da linguagem, assumo alguns dos postulados
teórico-metodológicos da Sociolinguística Interacional e da Análise da Conversa,
principalmente no que tange à forma como essas disciplinas lidam com as ações discursivas
que emergem no curso da interação.
No capítulo anterior, destinado à teoria que norteia este estudo, os conceitos teóricos
discutidos foram ancorados na perspectiva da Sociolinguística Interacional, que propõe o
estudo da organização social do discurso em interação, no que concerne aos estudos sociais,
culturais e individuais das práticas comunicativas, ressaltando a construção situada e conjunta
do significado no discurso. Esta abordagem é relevante a esta tese porque assumo a visão da
construção do significado como uma forma de ação social, em que a natureza constitutiva da
negociação e da coconstrução do discurso operam em processos interacionais, onde a
realidade é construída nas relações sociais, num processo dinâmico e contínuo, e é trazida à
tona através das interpretações das pessoas.
A seguir, apresento as contribuições da Análise da Conversa, as quais utilizo como
ferramentas de análise. Posteriormente, discorro sobre as unidades de análise e a natureza da
pesquisa. Por fim, me dedico ao contexto da pesquisa.
3.1. Contribuições da Análise da Conversa
Uma das grandes contribuições da Análise da Conversa (AC) aos estudos da
linguagem é apresentar como propriedade importante da interação verbal, o fato de que a
39
comunicação é organizada sequencialmente em sistemas de tomadas-de-turno (SACKS,
SCHEGLOFF e JEFFERSON, 1974).
Os analistas da conversa mostram que a sequencialidade das elocuções permite que a
conversa prossiga num fluxo temporal, já que cada nova elocução é uma nova contribuição
para a interação em andamento. A produção de um enunciado seguido de outro orienta os
falantes no decorrer da interação, organizando a distribuição de turnos em torno de lugares
relevantes de transição, determinados por pontos de possível finalização de unidades de
construção de turnos em curso (op. cit.). Ao encontrar o ponto de transição, o falante corrente
pode selecionar o próximo falante, este pode se autosselecionar ou o primeiro pode continuar
se autosselecionando, não permitindo assim a troca de falante.
Essa organização das trocas de turnos conversacionais pode também ser estendida a
outros tipos de fala-em-interação, como as entrevistas, debates, coletivas de imprensa, aulas,
julgamentos, cerimônias religiosas e assim por diante (op. cit.); uma vez que nesses eventos
chamados “formais ou não espontâneos” (DURANTI, 1997, p. 257), os participantes utilizam
mecanismos semelhantes ou até iguais aos usados na conversa espontânea, no processo de
sequencialidade e de sucessão de falantes para saber quando começar e terminar sua fala.
É evidente, no entanto, que as interações institucionais apresentam restrições sobre as
tomadas de turno entre os interagentes, já que a fala tende a ser mais controlada nesse
contexto se comparada à fala espontânea, em que a tomada-de-turno pode variar livremente
(HUTCHBY e WOOFFITT, 1998). O gerenciamento do turno, portanto, é sensível às
diferenças do contexto de fala. Em situações de disputa em contextos institucionais
(HUTCHBY, 2011), esse gerenciamento de turno envolve uma terceira parte - o mediador -
que geralmente aloca o direito de fala e coordena as seleções de falantes ao longo dos turnos.
É por esta razão que Hutchby e Wooffitt (1998, p.160) consideram os contextos institucionais
“sistematicamente assimétricos” em contraste com a conversa espontânea, exatamente por
essas relações não igualitárias nos turnos de fala, onde os participantes desempenham papéis
institucionais que são demonstrados na “forma da fala em que estão engajados” (HUTCHBY
e WOOFFITT, 1998, p.149).
Hutchby (1996, 2001, 2011) argumenta que, nas situações de disputa - seja na fala
espontânea ou na institucional -, é central considerar o que o autor denomina de sequência de
ação-oposição, que seria a principal unidade sequencial em um argumento, na qual as ações
que podem ser construídas como contestáveis se apresentam de forma oposta ao turno
anterior. O autor define essa sequência de turnos como um processo em que “a elocução de
40
um falante é tratada como uma ação contestável a qual se opõe o interlocutor; o movimento
de oposição é tratado como a ação da próxima sentença” (HUTCHBY, 2011, p.351).
Essa sequência de ação-oposição se reflete no padrão interacional apresentação de
ponto de vista-contestação do ponto de vista, que caracteriza o aspecto híbrido das entrevistas
que compõem o corpus desta tese. Outro padrão interacional é formado pelo par pergunta-
resposta, que, tradicionalmente, compõe a sequencialidade de uma entrevista. Esses padrões
interacionais são os pares adjacentes, definidos como “uma sequência de duas elocuções
próximas (adjacentes) uma da outra e produzidas por dois falantes diferentes” (SCHEGLOFF
e SACKS [1973] 1984, p.74). Os pares adjacentes projetam ações específicas em reposta a um
turno anterior: uma pergunta, por exemplo, projeta em resposta uma resposta; um pedido, uma
aceitação ou recusa; uma saudação, outra saudação, e assim por diante.
O par adjacente forma uma sequência mínima de conversa, em que uma primeira
ação projeta como resposta uma segunda ação, definindo o enquadre interpretativo
(DURANTI, 1997) da interação:
[o par adjacente] é uma ferramenta fundamental que os próprios participantes usam
para interpretar as ações uns dos outros. (...) Quando os falantes produzem a primeira
parte de um par adjacente, criam um enquadre interpretativo no qual o que acontece a
seguir não está limitado apenas a „uma resposta‟ ou um „segundo lance‟15
, mas uma
demonstração de como o interlocutor interpretou a primeira parte do par.
(DURANTI, 1997, p. 254-255).
Dessa forma, quando a segunda parte do turno (SPP) do par adjacente se apresenta
como oposta à primeira parte do turno (PPP) significa que a ação da PPP foi interpretada pelo
falante da SPP como contestável, e, portanto, merecedora de uma ação de oposição ao turno
proferido. Cria-se então um enquadre interpretativo de disputa que não só guiou as ações dos
turnos já proferidos, como guiará as ações subsequentes.
A organização dos pares adjacentes é, portanto, “um arcabouço de conduta recíproca,
em que ação e interpretação estão inextricavelmente entrelaçadas” (GOODWIN e
HERITAGE, 1990, p.288). Cada participante analisa o curso de desenvolvimento das ações
um do outro a fim de produzir uma ação recíproca adequada. Os pares adjacentes são
mecanismos importantes para o estabelecimento da “intersubjetividade, isto é, o entendimento
mútuo e a coordenação em torno de uma atividade comum” (DURANTI, 1997, p. 255).
15
Grifos no original.
41
Considero então a sequencialidade, as tomadas-de-turno e os pares adjacentes, que
compõem os dois padrões interacionais (pergunta-resposta e apresentação de ponto de vista-
contestação do ponto de vista) dos dados como unidades de análise. Contudo, há outras
unidades também utilizadas neste estudo que menciono a seguir:
3.2. Unidades de Análise
Esta tese opera com três conceitos centrais: papel, posição e atividade híbrida. Por
papel, tomo a categorização oferecida por Sarangi (2010, 2011a, 2011b), em que papel pode
ser realizado em três níveis na interação: papel social, papel de atividade e papel discursivo.
Papel social se refere ao status social que o participante possui em seu meio social. O papel de
atividade é dependente da atividade, caracterizando-a, e o papel discursivo são as ações
discursivas realizadas pelo participante na interação.
Nesta abordagem, papel é dinâmico, interacional e relevante à atividade, havendo
uma relação de interdependência entre eles. Vários papéis são manifestados no encontro, e às
vezes, de forma concomitante, o que leva ao conceito de hibridismo de papel (SARANGI,
2010, 2011a, 2011b), que envolve os possíveis papéis que um indivíduo pode desempenhar
em uma interação. Essa manifestação de papéis gera duas categorizações: o conjunto de
papéis – um único status desempenha distintos papéis - e os múltiplos papéis – vários status
sociais desempenhados por um indivíduo (op.cit.).
Assumo também como unidade de analise o conceito de hibridismo de atividade –
hibridismo interacional (op.cit.) -, adotando o termo entrevista-debate (EMMERTSEN, 2007)
para definir o tipo híbrido de atividade que analiso, em que dois padrões interacionais atuam
em conjunto na atividade: o padrão pergunta-resposta, característico de uma entrevista, e o
padrão apresentação de ponto de vista-contestação do ponto de vista, que define o formato
debate.
As noções de posição e posicionamento são conceitos analíticos que, nesta tese, são
inter-relacionados com a noção de papel. Seguindo os estudos de Weizman (2008), adoto a
premissa de que o conceito de posicionamento – processo discursivo pelo qual as pessoas são
localizadas/ posicionadas na interação (LANGENHOVE e HARRÉ, 1999) – opera em
conjunto com a noção de papel, na qual posicionamento pressupõe o papel, uma vez que os
interagentes constantemente posicionam e reposicionam a si e aos outros no discurso,
dinamicamente.
42
3.3. Natureza da pesquisa
A abordagem adotada nesta pesquisa é de cunho qualitativo e interpretativo, baseada
em um estudo de caso.
A pesquisa qualitativa tem a finalidade de documentar os eventos diários, em
detalhes, e entender o que esses eventos significam para os participantes e para os indivíduos
que os presenciam (ERICKSON, 1998). Este método tem o foco na qualidade, isto é, no que
se destaca na vida social, em termos da qualidade da ação social e do significado.
De acordo com Erickson (1998), no método qualitativo de pesquisa, os conceitos e as
teorias emergem dos dados e são exemplificados neles, em um processo de inter-relação. De
acordo com o autor, a abordagem qualitativa busca descrever as principais ocorrências nos
dados e as relaciona com o contexto social mais amplo, para que sirvam de exemplo concreto
dos princípios abstratos que regem a organização social.
A pesquisa de cunho interpretativista é aliada à abordagem qualitativa, pois dentro da
pesquisa interpretativista, a ação social é inerentemente significativa e o que interessa é o
fator qualitativo. Assim, para analisar a ação social, o pesquisador precisa compreender o seu
significado, interpretando o que os atores sociais estão fazendo (SCHWANDT, 2006).
Essa interpretação do que é feito para a construção do significado é realizada, nesta
tese, em um estudo de caso. Como ressalta Hartley (2004), os estudos de caso são
investigações detalhadas de um fenômeno, em um pano de fundo que fornece bases teóricas
para as questões de estudo. O estudo de caso tem como objetivo descobrir padrões e
significados, fornecendo as bases para o desenvolvimento das conclusões e para a construção
de uma teoria.
3.4. O contexto da pesquisa: o programa Roda Viva
O programa Roda Viva, em que o corpus foi gerado, se apresenta16
como um dos
mais importantes programas de entrevista da televisão brasileira. No ar desde 1986, oferece
aos telespectadores a possibilidade de conhecer o trabalho de personalidades nacionais e
estrangeiras sobre as mais diversas áreas do conhecimento: artes, política, economia, cultura,
esportes, educação e saúde. Em seus vinte e sete anos de transmissão, possui um acervo
16
É possível ler sobre essa apresentação, assim como ter acesso ao acervo do programa através do site
http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva
43
precioso de entrevistas que o leva a ser considerado “um marco no debate democrático e
reflexivo em torno de temas e ideias” (cf. nota anterior).
Essa abrangência de “temas e ideias” foi um dos motivos para a escolha deste
programa como fonte de dados desta tese. Outro ponto importante para essa escolha se deve à
facilidade de acesso às edições do programa, pois além do site oficial estar constantemente
atualizado com vídeos e relatos das entrevistas, é possível também encontrá-las em sites de
ampla divulgação como o youtube, o que facilita a busca pelos dados.
O programa Roda Viva é transmitido pela TV Cultura de São Paulo e também pela
internet em formato on-line toda segunda-feira a partir das 22h. O programa tem duração
aproximada de uma hora e meia, dividido em três ou quatro blocos.
O cenário do programa lembra exatamente uma “roda”, na qual o entrevistado se
posiciona no centro, cercado pelos entrevistadores, em um formato de arena, de onde
responde às perguntas dos entrevistadores, selecionados entre jornalistas dos principais
veículos da imprensa brasileira, bem como especialistas na área de atuação do entrevistado.
Todos os entrevistadores possuem carreiras profissionais vinculadas ao tema que será
debatido. Por exemplo, se o assunto é o judiciário, os jornalistas e/ou especialistas convidados
trabalham em algum meio de informação da área jurídica ou são formados na área.
Para fins de análise, foram gravadas três edições do programa entre os anos 2000 a
2010. Esse amplo período de tempo se justifica por possibilitar a colheita de temas e
discussões provenientes de épocas distintas do cenário político-social brasileiro, além é claro
da vasta gama de entrevistadores e entrevistados que passaram pelo programa durante esses
dez anos observados.
Na busca pelas edições que seriam usadas nesta tese, escolhi àquelas que tinham a
política como tema central, na pressuposição de que esse tema possui uma ampla discussão de
pontos de vista, extremamente opostos uns aos outros. Procurei identificar também,
entrevistados que fossem relevantes ao cenário político brasileiro, na discussão de temas de
relevância em momentos delicados da política, em que o cidadão precisava formar opiniões
sobre certos assuntos, de teor inclusive social.
As três edições selecionadas perpassam um cenário político que abrange o período de
governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), os dois mandatos do presidente
Luiz Inacio da Silva, o Lula, e a eleição da atual presidente Dilma Houssef. Esse cenário é
composto por mudanças políticas importantes na democracia brasileira: (i) uma mudança,
pelo menos teórica, de partidos políticos que tradicionalmente se mantiveram em lados
opostos de governo; (ii) o marco da chegada de Lula ao poder, através do Partido dos
44
Trabalhadores (PT), que era o símbolo da oposição política e da promessa de um governo
direcionado ao trabalhador, aos menos favorecidos e (iii) o fato histórico do País ter como
Presidente uma mulher. Acredito que essas mudanças significativas tornam as edições dos
programas selecionadas mais interessantes, ainda que os temas não girem especificamente em
torno de cada um desses itens.
As três edições que compõem o corpus se apresentam diferentes em seus aspectos
estruturais. Enquanto a base que sustenta o programa permanece - como o cenário em formato
de roda, a presença de um entrevistado e vários entrevistadores, um deles na função de
apresentador, a participação da audiência através de perguntas e comentários via internet –,
alguns aspectos estruturais são diferenciados entre as edições, como, por exemplo, a
quantidade de entrevistadores que é alterada a cada edição, inclusive havendo participantes
fixos em uma das edições, isto é, entrevistadores que durante um período do ano compõem de
forma permanente a mesa do programa. Os apresentadores do programa também variam nas
edições, assim como a quantidade de blocos em que o programa é exibido.
Após a seleção das edições de análise, foi realizado o processo de transcrição dos
dados, utilizando as convenções de transcrição baseadas na Análise da Conversa
(ATKINSON e HERITAGE, 1984), incorporando símbolos sugeridos em Schiffrin (1987) e
em Tannen (1989), no âmbito da Análise do Discurso. Acredito que uma transcrição que dê
conta de registrar as elocuções dos participantes, tal como foram produzidas, considerando as
interrupções, sobreposições, risos e outros fenômenos de fala, torna a análise mais precisa, de
forma clara e sistemática, das ocorrências as quais se pretende analisar. Em anexo encontram-
se as convenções utilizadas.
Cabe mencionar que o uso desses dados foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP/UFJF) desta universidade, a qual a tese se afilia, sob o parecer de número
086/2011, que anexo cópia no fim deste estudo.
A seguir, apresento separadamente as edições analisadas e os participantes que as
compõem.
45
3.4.1. Entrevista com Paulo Renato Souza
A entrevista com o Ministro da Educação Paulo Renato Souza17
ocorreu em 24 de
janeiro de 2000, tendo como apresentadora do programa a jornalista Mônica Teixeira.
Paulo Renato foi Ministro da Educação do governo FHC entre 1995 e 2002. Neste
período de Ministério, foi responsável pela criação do Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) e do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Formado em
Economia, Paulo Renato foi Reitor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) na
década de 8018
.
A entrevista foi dividida em três blocos e contou com a participação de seis
entrevistadores, além da apresentadora que também acumula o papel de entrevistadora.
Apresento a seguir esses participantes:
(1) Mônica Teixeira: jornalista e apresentadora do programa.
(2) Fernando Rosseti: jornalista, coordenador de programas no Instituto Ayrton Senna e no
Projeto Aprendiz.
(3) Marcos Antônio Araújo: jornalista, diretor de redação da revista Educação e coordenador
do curso de jornalismo da Faculdade Casper Libe.
(4) Brasilis Salles Junior: sociólogo e coordenador de pós-graduação e Sociologia da USP.
(5) Guiomar Namo de Mello: educadora, diretora executiva da Fundação Vitor Civita e
integrante do Conselho Nacional de Educação.
(6) André Laós: jornalista e editor de economia da revista Exame.
(7) Gilberto Nascimento: jornalista e editor de educação da revista Isto É.
É interessante observar que a maioria desses entrevistadores possui vínculo
profissional com o tema da educação, que é o ponto central da entrevista. Já o jornalista
André Laós possui a mesma formação profissional do entrevistado, que é economista, o que
corrobora a afirmação de que os componentes da mesa do Roda Viva são profissionais
17
Os dados da entrevista com o Ministro Paulo Renato Souza foram cedidos a esta tese gentilmente pela Profª
Dra. Amitza Torres Vieira. 18
A identificação dos participantes das três entrevistas, sejam entrevistados ou entrevistadores, foi retirada de
duas fontes: a própria entrevista, que apresenta o componente da mesa, e buscas na internet, quando precisei
obter informações mais precisas sobre o participante. Das informações coletadas, fiz um resumo e apresento
nesta seção as que considero relevantes.
46
capacitados para a discussão dos temas apresentados, já que compartilham, de algum modo,
experiências com a área profissional do entrevistado.
3.4.2. Entrevista com José Gomes Temporão
A entrevista com o Ministro da Saúde José Gomes Temporão ocorreu em 14 de julho
de 2007, tendo como apresentador do programa o jornalista Paulo Markun.
O médico José Gomes Temporão foi Ministro da Saúde do governo Lula entre os
anos de 2007 e 2010. Participou do movimento sanitarista no final dos anos 80, que resultou
na criação do SUS, o Sistema Único de Saúde. Ocupou vários cargos de secretariado na área
da saúde durante sua vida pública até chegar ao Ministério em 2007.
A entrevista foi dividida em quatro blocos e contou com a participação de sete
entrevistadores, incluindo o apresentador:
(1) Paulo Markun: jornalista e apresentador do programa.
(2) Reinaldo Azevedo: jornalista da revista Veja e do blog Reinando Azevedo; apresenta-se
como jornalista de orientação política conservadora, possuindo uma posição crítica ao
governo Lula.
(3) Cristiane Segatto: jornalista da revista Época, atuando na área da saúde.
(4) Laura Greenhalgh: jornalista, editora executiva do jornal O Estado de São Paulo e editora
do caderno Aliás.
(5) Laura Capriglione: repórter do jornal Folha de São Paulo.
(6) Demétrio Weber: repórter do jornal O Globo.
(7) Alexandre Machado: comentarista de política da TV Cultura.
Nota-se também a relação profissional estabelecida entre alguns entrevistadores com
o tema da saúde debatido e/ou com o tema político, tendo inclusive um deles – Reinaldo
Azevedo –, assumido uma postura crítica em relação ao governo Lula, ao qual é filiado o
entrevistado.
47
3.4.3. Entrevista com José Dirceu
A entrevista com o ex-Ministro da Casa Civil José Dirceu ocorreu em 01 de
novembro de 2010, um dia após a eleição da atual presidente Dilma Rousseff. A apresentação
do programa ficou a cargo da jornalista Marília Gabriela.
O advogado José Dirceu foi Ministro do governo Lula entre 2003 e 2005. Neste ano
teve seu mandato de deputado federal cassado após o escândalo do Mensalão, no qual foi
acusado de ser o mentor do processo de suposta compra de votos entre os deputados que
formavam a base de apoio ao governo Lula. Atuante na vida pública desde os anos 60,
exerceu vários cargos políticos, sendo um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT)
nos anos 80. Com a cassação, tornou-se inelegível até o ano de 2015. Contudo, continua
atuante e influente no PT, ainda mais com a continuação do partido na presidência do país, na
pessoa de Dilma Rousseff.
A entrevista foi dividida em quatro blocos e contou com a participação de cinco
entrevistadores: a apresentadora, dois titulares do programa, isto é, os jornalistas que, neste
período, possuíam uma cadeira fixa no programa e dois convidados. Abaixo, listo os
entrevistadores:
(1) Marilia Gabriela: jornalista e apresentadora do programa.
(2) Paulo Moreira Leite: jornalista e titular do programa. Atuou como redator chefe da Veja e
diretor de redação da Época. Colunista da revista Época.
(3) Augusto Nunes: jornalista e titular do programa. Foi diretor de diversas revistas e jornais,
como Veja, Época, Jornal do Brasil e O Estado de São Paulo.
(4) Guilherme Fiuza: jornalista e colunista da revista Época.
(5) Sérgio Lírio: jornalista e redator chefe da revista Carta Capital.
Como o tema desta edição girou em torno da própria figura do ex-Ministro José
Dirceu e não necessariamente em torno de áreas temáticas como a educação e a saúde, como
nas outras edições em análise, diversos tópicos foram abordados em relação a sua participação
na vida política do país, principalmente no cargo de Chefe da Casa Civil do governo Lula.
Sendo assim, os entrevistadores não são especialistas em áreas específicas, como nas outras
edições, e sim jornalistas que atuam em revistas extremamente críticas como a Época e a
Veja.
48
4. ANÁLISE
Este capítulo é destinado à análise dos dados. Na primeira seção, dou ênfase ao
aspecto híbrido que define esta atividade: a entrevista-debate. Caracterizando esse hibridismo,
discuto quatro aspectos que norteiam a atividade em análise. Primeiro, analiso a
sequencialidade no par pergunta-resposta, para em seguida apresentar os diferentes formatos
de perguntas encontrados nos dados. Nas duas últimas subseções, analiso os turnos sem
perguntas dos entrevistadores e os tópicos controversos que contribuem para esta
caracterização.
A segunda parte desta análise trata da dinamicidade dos papéis e posições
manifestados na interação. Analiso, em um primeiro momento, o papel social do entrevistado.
Em seguida, examino o papel de atividade do entrevistador, em uma relação entrevistador-
entrevistado, e sua relação com o papel discursivo.
4.1. A atividade: entrevista-debate
No capítulo teórico desta tese, foi apresentada e discutida a noção de hibridismo
interacional proposta por Sarangi (2000), como um mecanismo facilitador de entendimento de
como determinados tipos de discursos são sobrepostos dentro e através dos tipos de
atividades. Este conceito possibilita caracterizar as atividades de forma híbrida, quando assim
se apresentam, isto é, uma atividade que não tem uma definição dada a priori, idealizada e
estática, e sim, uma definição baseada na interação e nos tipos de discursos que emergem no
contato entre os participantes.
Considerando o hibridismo interacional na definição da atividade em análise, assumi,
ainda no capítulo teórico, o termo entrevista-debate (EMMERTSEN, 2007) para fazer
referência à atividade híbrida que define o programa Roda Viva em que o corpus é gerado.
Para esta definição, considero quatro aspectos estruturais: (i) a sequencialidade do par
pergunta-resposta; (ii) o formato da pergunta; (iii) o ponto de vista dos entrevistadores e (iv)
os tópicos controversos. Analiso a seguir, separadamente, esses aspectos estruturais.
49
4.1.1. O par pergunta-resposta: a sequencialidade
Na discussão teórica de Ekström e Lundell (2009) sobre a caracterização do formato
“fazer um debate” (p.12) em entrevistas de notícias, os autores defendem que as perguntas do
entrevistador são elaboradas de forma a conduzir os entrevistados a formular pontos de vista
indicando divergência, o que torna estas perguntas mecanismos utilizados na criação da
confrontação entre os convidados (op.cit.). No formato de entrevista, as perguntas são de
natureza “desafiadora e hostil” (EMMERTSEN, 2007, p. 570) e frequentemente incorporam
uma crítica aos pontos de vista dos entrevistados, criando uma disputa e uma “situação de
hostilidade” (op.cit., p.588). Em meus dados, de apenas um entrevistado e geralmente cinco
entrevistadores por edição de programa, a estratégia da pergunta desafiadora também é usada
como meio de polarizar pontos de vista, no entanto, a oposição se dá entre entrevistadores e
entrevistado.
Nem todas as perguntas realizadas pelos entrevistadores do programa são de natureza
desafiadora, isto é, nem todas buscam polemizar temas ou pontos de vista dos entrevistados e
entrevistadores. Há perguntas que possuem a meta de buscar informação, a qual se pressupõe
que seja parte do território informacional do entrevistado, isto é, parte de sua especialidade
profissional em relação ao cargo que ocupa ou ocupava. Contudo, para diferenciar as
perguntas que são do território informacional daquelas que são de natureza desafiadora se faz
necessário observar a sequencialidade dos turnos em seus pares pergunta-resposta na
interação, o que torna possível analisar o contexto em que a pergunta é realizada e a avaliação
que o entrevistado faz desta pergunta em seu turno de resposta.
Inicio esta análise, então, com um exemplo de perguntas que possuem a meta
interacional de obter informação, sendo desta forma entendida pelo entrevistado que as
responde no turno em sequência. O exemplo abaixo é destacado da entrevista com o
Ministro19
da Saúde José Gomes Temporão que é inquirido pela jornalista Laura Greenhalgh.
Neste trecho da entrevista, está em pauta a discussão sobre o plebiscito que permitiria debater
a legalização do aborto ou a sua descriminalização. A jornalista, então, nas linhas 199 e 204,
realiza duas perguntas sobre este tema ao Ministro na sequência dos turnos:
19
Cabe lembrar que os termos “Ministro” e “ex-Ministro” são empregados em referência à relação ministerial
dos entrevistados na época em que ocorreu a entrevista. Desta forma, José Gomes Temporão e Paulo Renato
Souza são Ministros da Saúde e da Educação, respectivamente, enquanto José Dirceu é ex-Ministro da Casa
Civil.
50
Excerto (1)
Entrevista José Gomes Temporão
Bloco I 199 Laura o senhor acha que a classe médica vai aderir a este debate?
200
201
202
203
Ministro olha! (0,5) a sociedade de especialistas e as entidades que
representam os médicos, se posicionaram apoiando a minha
proposta. isso não quer dizer que necessariamente os 320 mil
médicos brasileiros tenham na sua maioria essa posição=
204 Laura =o senhor está recebendo manifestações?
205
206
207
208
209
Ministro eu recebi manifestações de dezenas de entidades, inclusive de
mulheres da ordem dos advogados do brasil (0,2) todo o conjunto
de movimentos feministas, muitas entidades- fora brasília no
meio da semana passada, que foi entregue ao presidente da
república, de apoio.
Os dois turnos da entrevistadora são compostos por apenas perguntas, não havendo
sustentação nem fundamentação a essas perguntas em seus turnos. A fundamentação da
pergunta decorre da própria sequencialidade da interação, visto que o turno anterior ao
primeiro turno da jornalista é um turno de resposta do Ministro, no qual defende a
necessidade de um debate na sociedade brasileira sobre a questão do aborto. A pergunta o
senhor acha que a classe médica vai aderir a este debate? (l. 199) vem exatamente buscar
informação do entrevistado sobre a opinião da classe médica sobre o assunto, entidade esta a
qual o entrevistado também é associado no papel de médico sanitarista. O Ministro responde à
pergunta e transmite a informação de que sua decisão de levar à frente a discussão sobre o
aborto é apoiada pelas entidades médicas: a sociedade de especialistas e as entidades que
representam os médicos se posicionaram apoiando a minha proposta (l. 200-202). Esta
informação gera uma nova pergunta de teor também informacional: o senhor está recebendo
manifestações? (l. 204). Com esta pergunta, a entrevistadora quer confirmar a informação
dada e obter um maior esclarecimento sobre o ponto de vista das entidades médicas, isto é, de
que forma factual este ponto de vista é dado. O entrevistado, então, apresenta em seu turno de
resposta as entidades que se manifestaram a favor de sua proposta, indicando assim sua
avaliação da pergunta como uma busca por informação específica das suas funções.
No exemplo a seguir há outra sequência da entrevista com o Ministro da Saúde,
ainda na discussão do tema da legalização/descriminalização do aborto. Nessa sequência,
constam duas perguntas cujas bases proposicionais possuem um teor desafiador para o
entrevistado. Ao contrário do exemplo anterior, a primeira pergunta do entrevistador Reinaldo
Azevedo é precedida por uma sustentação que é centrada no ponto de vista do entrevistador,
51
através da utilização de dois fatos: a fala do entrevistado em um momento anterior da
entrevista e em uma comparação com uma questão ambiental. Vejamos a sequência:
Excerto (2)
Entrevista José Gomes Temporão
Bloco III
166
167
168
169
170
171
172
173
174
175
176
177
178
179
180
181
182
183
184
185
Reinaldo
Azevedo
ministro. eu sou contra a ampliação do direito ao aborto,
>eu acho que já deu para perceber<, e vou usar o senhor a favor
da minha causa. quando o senhor diz que a questão deve ser
centrada na educação, quando o senhor conta como é o sistema de
recebimento de camisinhas, de preservativos e de pílula
anticoncepcional, eu cheguei à conclusão que .hh de fato, há um
problema fundamental de gestão >que se resolvida com o tempo<,
a questão do aborto talvez não se coloque.e acho isso (0,2)
eu vou usar a sua entrevista a meu favor.
mas eu queria colocar uma outra coisa.
o que há de errado nesse raciocínio >que parece meio jocoso<
mas eu juro que é muito sério.
se eu der de cara com um ninho de tartarugas e resolver fazer
um omelete, eu não faria isso por nojo e porque eu acho que
não é pra comer tartaruga.
mas eu seria preso, crime inafiançável, crime ambiental.
os caiçaras às vezes têm esse problema (0,2)
outro dia um sujeito foi preso porque matou um minhocuçu
o senhor não acha que os fetos brasileiros têm direito a pelo
menos a mesma lei que tem as tartarugas?
186
187
Ministro eu acho que as mulheres brasileiras que estão vivas merecem o
direito à vida=
188 Reinaldo
Azevedo
=e os fetos não?
189
190
191
192
Ministro eu defendo a vida. eu tenho quatro filhos.
sou de formação católica. sempre defendi e sempre vou continuar
defendendo (0,2) eu não posso fechar os olhos para a realidade
que eu expus aqui.
O entrevistador Reinaldo Azevedo inicia seu turno com a apresentação de um ponto
de vista: eu sou contra a ampliação do direito ao aborto (l. 166). A este ponto de vista, o
jornalista apresenta duas sustentações. Na primeira, entre as linhas 168 a 174, ele utiliza a fala
do entrevistado sobre a questão do aborto estar associada a questões educacionais, para
concluir que há um problema fundamental de gestão (l. 171-172) no governo. Estes dois
pontos de vista (l. 166 e 171-172) já trazem um aspecto desafiador no turno da pergunta, antes
mesmo da pergunta propriamente dita, pois se opõem diretamente ao ponto de vista do
Ministro na defesa do debate popular na questão do aborto e ao papel do Ministro como
representante do governo, o qual é apresentado com dificuldades em contornar problemas de
gestão.
52
A segunda sustentação é fundamentada na comparação entre o feto e os filhotes de
tartaruga, no que tange à proteção legal (l. 178- 181). Na teoria do entrevistador, se um filhote
de tartaruga está sujeito a leis rigorosas de preservação à vida, por que o feto brasileiro não
pode ter o mesmo rigor de proteção à sua vida que tem um animal, como as tartarugas? (cf. l.
184-185). Esta sustentação e a pergunta realizada na sequência cobram um posicionamento do
Ministro da Saúde sobre o direito à vida, como se a vida de um filhote de tartaruga fosse mais
importante que a vida de um ser humano. A pergunta, então, é extremamente desafiadora ao
entrevistado porque o coloca em uma posição em que qualquer resposta, seja afirmativa ou
negativa, ameaçará seu ponto de vista defendido e levantará novas perguntas desafiadoras e
novos pontos de vista opostos no curso da interação. Esta situação é reconhecida pelo
entrevistado que escolhe responder de forma evasiva: eu acho que as mulheres brasileiras que
estão vivas merecem o direito à vida (l. 186-187), evitando uma resposta direta à pergunta,
que é centrada na proteção do feto. O Ministro direciona a questão da proteção da vida às
mulheres e não aos fetos. Esta resposta evasiva gera uma nova pergunta em uma fala contígua
a do entrevistado: e os fetos não? (l.188), obtendo a resposta eu defendo a vida (l. 189), que
não é necessariamente centrada no feto, o alvo da pergunta. Na verdade, esta resposta não
deixa claro se o entrevistado considera o feto como uma vida ou se novamente ele se refere às
mulheres brasileiras.
A segunda pergunta na sequência do excerto (2) e os fetos não? (l.188) é
reintroduzida pelo entrevistador em uma estratégia direta de questionamento e desafio ao
ponto de vista do entrevistado. Note como o turno da primeira pergunta é muito maior que o
da segunda e estrategicamente fundamentado com dois fatos que deixam o entrevistado em
uma situação de difícil saída, de difícil resposta. A formulação da pergunta e os fetos não?
(l.188) vem em contrapartida à evasão na resposta do entrevistado, o que exige do
entrevistador uma cobrança de ponto de vista mais incisiva. Essa estratégia direta na
formulação da pergunta é apresentada por Allwinn (1991, p. 182) como um recurso
“escolhido por falantes legitimados para insistir em uma pergunta, quando são confrontados
com interlocutores pouco dispostos a cooperar” (VIEIRA, 2002, p. 2). Esta estratégia gera um
confronto de pontos de vista na sequência que vem corroborar a interpretação da ocorrência
de uma atividade híbrida nos dados.
A sequência apresentada no excerto (2), se comparada à sequência do excerto (1),
não apresenta qualquer aspecto informacional na realização de suas perguntas, isto é, não há
uma busca por obter alguma informação do entrevistado. Aqui, a meta interacional busca a
disputa pelo ponto de vista entre entrevistador e entrevistado. Na realização de sua pergunta, o
53
entrevistador quer deixar claro o seu ponto de vista contra a ampliação do direito ao aborto,
confrontando o entrevistado que possui um ponto de vista diferente daquele que é defendido
pelo entrevistador. Para o Ministro, é necessário levantar a discussão sobre o tema em âmbito
não só social, mas também político. Esse confronto de pontos de vista marca a sequência do
excerto (2) que é composta por perguntas estritamente desafiadoras.
Quando afirmo que não há no excerto (2) a meta interacional de obter informação do
entrevistado, estou considerando o ponto de vista já defendido pelo Ministro sobre o tema em
turnos anteriores na sequencialidade da interação. No primeiro bloco do programa, o mesmo
entrevistador, Reinaldo Azevedo, já havia perguntado ao Ministro sua opinião sobre a
descriminalização do aborto. Essa pergunta obteve uma resposta que, apesar de não direta,
demonstra o ponto de vista do entrevistado. Vejamos:
Excerto (3)
Entrevista José Gomes Temporão
Bloco I 256 Reinaldo
Azevedo
mas, então, o senhor é favorável à descriminalização?
257 Ministro sou favorável à discussão.
258
259
260
261
262
Reinaldo
Azevedo
não ministro! (0,2) o senhor está parecendo o john kerry,
ele perdeu a eleição. o que não torna a sua resposta menos
ambígua (0,2)o senhor faz toda uma argumentação favorável à
descriminalização e evita dizer que é favorável à
descriminalização. você tem medo da opinião pública?
263
264
265
Ministro não. é que eu acho que nesse momento não teria muito sentido
expressar a minha opinião enquanto cidadão (0,2) eu acho que
neste momento estou preocupado com o debate=
266
267
Reinaldo
Azevedo
=eu estou perguntando ao ministro de estado, não estou
perguntando ao cidadão.
268
269
Ministro o ministro de estado não tem posição sobre esta questão
neste momento.
Os turnos do entrevistado no excerto (3) apresentam seu ponto de vista sobre a
discussão da ampliação ao direito ao aborto. Ainda que o Ministro tenha optado por não se
posicionar diretamente como favorável ou não à questão, a isenção de um posicionamento
direto também é uma forma de posicionar-se. Portanto, quando no bloco III, representado aqui
na sequência do excerto (2), o jornalista Reinaldo Azevedo reintroduz a pergunta,
sustentando-a com fatos de difícil contestação, há uma clara intenção de desafiar o ponto de
vista já dado do entrevistado e não de obter de fato informação sobre este ponto de vista. O
54
excerto (3) vem reforçar que a pergunta comparativa entre o feto brasileiro e as tartarugas no
excerto (2) é puramente desafiadora ao ponto de vista do Ministro.
Desta forma então, observa-se que há perguntas que são formuladas com o foco na
informação, enquanto há outras que possuem um teor desafiador para o entrevistado. No
entanto, há perguntas que possuem esses dois aspectos presentes de forma conjunta em sua
formulação, isto é, ao mesmo tempo em que buscam a coleta de informação, apresentam
também um teor de avaliação crítica, seja favorável ou não, embutida ao ponto de vista
defendido. No excerto anterior - (3) -, quando o entrevistador pergunta ao Ministro, na linha
256, se ele é favorável à descriminalização do aborto, o jornalista cobra um ponto de vista que
é desafiador para o entrevistado, considerando-se que, como Ministro da Saúde, apresentar-se
como favorável ao aborto é tocar em questões morais e religiosas, além de questões
financeiras, uma vez que aprovada a legalização, caberá ao governo suprir os gastos com o
procedimento. Então como representante do governo é uma pergunta difícil de ser respondida.
No entanto, essa pergunta desafiadora também quer checar o ponto de vista do entrevistado
sobre o tema. É também um pedido de informação sobre o ponto de vista do Ministro como
representante do governo. Aqui temos os dois aspectos atuando em conjunto na formulação da
pergunta.
O mesmo ocorre na terceira pergunta do entrevistador na linha 262: você tem medo
da opinião pública?. Note como aqui não é usado mais o senhor e sim você, ressaltando o
aspecto desafiador da pergunta que de fato é uma reação à falta de uma resposta direta do
entrevistado. É uma pergunta que também quer checar se essa falta de resposta direta é
derivada de um possível medo de reação por parte da sociedade. Então novamente aqui, há
atuando em conjunto tanto o pedido de informação quanto o desafio ao ponto de vista do
entrevistado, o que caracteriza esta pergunta, assim como a anterior, em uma pergunta que
denomino nesta análise de uma pergunta do tipo mista.
Essas perguntas que aqui categorizo de mistas possuem diversas ocorrências no
corpus. Na entrevista com o ex-Ministro José Dirceu, por exemplo, há sequências de turnos
constituídas por perguntas que possuem ambos os aspectos – desafiador e informacional –
atuando em conjunto na pergunta do entrevistador. No excerto (4) a seguir, a apresentadora
Marília Gabriela inicia seu turno apresentando o entrevistado do programa. Cabe ressaltar que
essa entrevista ocorre no dia posterior à vitória de Dilma Rousseff na eleição à Presidente da
República no ano de 2010, sendo esse um dos temas abordados na entrevista. No fim de seu
turno, Marília Gabriela realiza algumas perguntas que ilustram bem a proposta que defendo
aqui:
55
Excerto (4)
Entrevista José Dirceu
Bloco I
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
Marília
Gabriela
boa noite! no centro do roda viva de hoje claro a eleição de
dilma rousseff à presidência da república. .hh
primeira mulher eleita para governar o país, ela teve mais de
cinquenta e cinco milhões de votos e será nossa presidente
pelos próximos quatro anos .hh trouxemos esta noite ao programa
um de seus grandes eleitores (0.2)
o ex ministro da casa civil de lula jose dirceu .hh
ele participou da campanha de dilma agindo nos bastidores sem
aparecer muito, mas fazendo mui::to barulho quando aparecia
((josé dirceu levanta as sobrancelhas))
dirceu continua sendo uma grande influência no pt e está aqui
para analisar a vitória pra falar do futuro e pra dizer qual
será seu papel no governo dilma (0.2)
((apresentação dos entrevistadores))
21
22
23
24
pra começar. ahn:: muito obrigada pela presença ze dirceu vou
fazer um social rápido ANtes de chegar, a ao ao que importa
(0.5)você não ta prejudicado com essa entrevista hoje? não ta
de ressaca? comemorou [em ]
25 José
Dirceu
[hhh]
26 Marília
Gabriela
brasília °ontem° ou não?
27
28
José
Dirceu
não. >não to de ressaca<. comemorei, como
milhões de brasileiros=
29
30
Marília
Gabriela
=não não. to perguntando daquela comemoração particular lá em
[brasília ]
31 José
Dirceu
[não,não]não comemorei em particular.[eu-]
32 Marília
Gabriela
[mas] você foi a brasília?
33
34
35
36
37
José
Dirceu
fui a brasi::lia. (0.2) acompanhei a votação durante o di::a
depois fui (0.2) ao comite:: participei:: vi a ministra, agora
nossa presidente eleita fazer seu pronunciamen::to. depois
(0.5)comi alguma coisa em um restaurante e fui, >que eu tinha
que acordar cedo< pra chegar em sao paulo cedo hoje
38 Marília
Gabriela
então tá bom. então vamo lá (0.5)
Após a apresentação do ex-Ministro José Dirceu, a apresentadora Marília Gabriela
realiza quatro perguntas direcionadas ao entrevistado que ela enquadra como não fazendo
parte da agenda tópica do programa. Segundo ela, seria um social rápido antes de chegar ao
que importa (l. 22). As três primeiras perguntas ocorrem em sequência: você não tá
prejudicado com essa entrevista hoje? (l. 23); não tá de ressaca? (l. 23-24); comemorou em
Brasília ontem ou não? (l. 24 e 26). A quarta pergunta é uma insistência à negação das
perguntas anteriores: mas você foi à Brasília? (l. 32).
56
Essas perguntas, aparentemente, requerem apenas do entrevistado um pedido de
informação em relação às suas condições físicas e sobre a sua localização na noite anterior à
entrevista, que é a noite da vitória na eleição da Presidente Dilma Rousseff. Contudo, ao
considerar o contexto discursivo em que essas perguntas são proferidas, nota-se que elas
requerem muito mais que obter apenas informação do entrevistado. Há sobre elas um aspecto
desafiador embutido em seu conteúdo proposicional. Com essa sequência de perguntas, a
entrevistadora busca checar o tipo de influência que o entrevistado exerce, pois ir à
comemoração em Brasília é possuir um alto grau de influência, uma vez que é uma festa
privada da elite do partido. Ao perguntá-lo sobre a ida à comemoração, a jornalista busca
comprovar as posições atribuídas por ela ao entrevistado, nas linhas 8, 9 e 10, de um político
influente no partido e na campanha de Dilma, desafiando assim a posição do entrevistado
como um político cassado que, teoricamente, não participaria mais das atividades de governo.
Esse posicionamento é identificado pelo ex-Ministro que nega sua participação na
comemoração particular, tentando assim distanciar-se desse posicionamento.
As perguntas do entrevistador, então, servem a metas distintas na sequencialidade
dos turnos da entrevista. De fato, podemos identificar três metas interacionais presentes nos
dados, no que tange à formulação das perguntas: a meta interacional de requerer informação,
através de perguntas do tipo informacional (I); a meta de desafiar o ponto de vista do
entrevistado através de perguntas de natureza desafiadora (D) e por último a meta de requerer
informação ao mesmo tempo em que desafia o ponto de vista do entrevistado, a partir de
perguntas categorizadas como mistas (M). Esses três tipos de perguntas são identificados a
partir da resposta do entrevistado, ou seja, a partir da avaliação que ele faz do conteúdo
proposicional da pergunta, o que torna fundamental considerar a sequencialidade interacional
em que estão imersos esses pares pergunta-resposta.
As respostas do entrevistado são capazes de mudar o foco da pergunta seguinte em
um processo sequencial da interação. As perguntas do tipo informacional geralmente obtêm
uma resposta direta do entrevistado. Contudo, esse tipo de pergunta nos dados pode gerar
também uma mudança de foco nos turnos seguintes, pois, muitas vezes, os entrevistadores as
empregam com a meta de adquirir, em um primeiro momento, uma informação do
entrevistado, para em seguida usá-la a favor de seus argumentos. Uma pergunta de teor
informacional, então, pode levar, a partir da resposta, a uma pergunta de aspecto desafiador
ou ainda a uma pergunta do tipo mista, englobando ambos os aspectos em conjunto.
Na entrevista com o Ministro Paulo Renato Souza, por exemplo, há exemplos de dois
movimentos de mudança de foco partindo de perguntas do tipo informacional (I). Em um
57
primeiro momento, analiso a pergunta do tipo I que gera uma pergunta do tipo mista (M) e na
sequência uma pergunta de aspecto desafiador (D). No segundo movimento, verifico uma
sequência que se inicia com uma pergunta do tipo I, gera uma pergunta do tipo D que é
reintroduzida do formato do tipo M, em um processo de mitigação do desafio.
No excerto abaixo, está em discussão com o Ministro da Educação a produtividade
da universidade pública. Os entrevistadores que fazem parte desta sequência são os jornalistas
Mônica Teixeira e Fernando Rosseti, além da educadora Guiomar Melo.
Inicio, então, pelo primeiro movimento:
Excerto (5)
Entrevista Paulo Renato Souza
Bloco II
Movimento I - M - D
08
09
10
Monica
Teixeira
o senhor diz que a universidade pública deve ser produtiva.
qual o sentido da produtividade? é a produção para o mercado,
que gera lucro ou é a produção do conhecimento?
11
12
13
Ministro é a produção que usa bem o recurso público,
porque a universidade é pública, ela não é gratuita,
alguém paga pela universidade. quem paga? (0,5)
14 Monica
Teixeira
[[o contribuinte
15 Fernando
Rosseti
[[o conjunto da sociedade
16
17
18
19
20
21
22
Ministro o contribuinte, o conjunto da sociedade. quem paga a maior parte
dos impostos? os pobres, que estão sustentando a universidade.
então é nossa responsabilidade sim exigir que a universidade seja
o mais eficiente possível, mais do que uma universidade privada.
sabe que me indigna essa coisa, >me indigna essa coisa< de achar
que porque é público não pode se exigir, não pode ter
[ produtividade, não pode se cobrar ]
23 Guiomar
Melo
[mas é essa a resistência que o senhor] enfrenta?
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
Ministro é isso que eu quero, isso que eu quero.
que ela faça mais pesquisa pra beneficiar a população, que ela
faça mais, e:: que ela tenha mais alunos, que ela não pode ter
uma relação aluno professor de oito pra:: oito alunos pra:: um
professor. isso é um absurdo! não existe em nenhum lugar do mundo
nem nas universidades de pesquisa melhores do mundo. isso é o que
nós temos que exigir. nós temos que exigir que a universidade
pública receba alunos de transferência no segundo terceiro quarto
ano, porque não recebe. isso- eu fui reitor, eu sei que nós temos
uma resistência brutal dentro da universidade. nós temos que
conseguir que:: que o aluno que- se há vaga sobrando- eu cansei
de formar turma na universidade com oito, dez alunos. o fernando
sabe disso, quantos alunos, quantas turmas dentro da universidade
têm só dez alunos? (0,2) isso é que nós temos que exigir. mais
eficácia, mais produtividade.
39
40
Monica
Teixeira
mas quando o senhor diz isso, quando se diz isso a respeito da
universidade,a gente não corre o risco de esquecer a contribuição
58
41
42
que a universidade pública deu ao país e tem dado? ou o senhor
[ acha que não deu? ]
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
54
55
56
Ministro [não, não se esquece] não é? isso não se esquece porque não há
dúvida que toda pesquisa no nosso país é feita dentro da
universidade. nós temos contribuições importantes, eu fui reitor
da unicamp eu sei do que eu estou falando (0,2)
nós temos contribuições importantes, a unicamp deu na área das
telecomunicações na área da engenharia a:: química, na área dos
alimentos, na área da economia da tecnologia do petróleo não é,
nós temos a ufrj na área do petróleo, nós temos as universidades
de viçosa rural do rio de janeiro na área da agricultura (0,2)
nós temos a usp na área da::s das telecomunicações também, na
área da engenharia elétrica. enfim eu acho que e:: a
universidade pública brasileira tem dado uma contribuição
importante, agora isso não exime- não a exime de fazer mais
ainda com o recurso público que tem.
No turno inicial da entrevistadora Mônica Teixeira, duas perguntas são realizadas
buscando informação sobre o que é considerado produtividade dentro da universidade
pública. A resposta do entrevistado no turno seguinte é direta à pergunta, iniciando uma
justificativa, em dois turnos, do motivo pelo o qual a universidade pública deve ser cobrada
em termos produtivos. Esta resposta gera, em uma fala sobreposta, a pergunta: mas é essa a
resistência que o senhor enfrenta? (l. 23). Essa pergunta, além de solicitar a informação sobre
o tipo de resistência que a universidade pública impõe ao governo, apresenta também uma
solicitação de avaliação sobre essa resistência. A pergunta é iniciada por uma estrutura de
desacordo – mas – que desafia o Ministro a avaliar o tipo de resistência universitária, por isso
que, além de informacional, a pergunta também se apresenta como desafiadora, sendo um tipo
M de pergunta.
O entrevistado não a responde diretamente, permanecendo em sua justificativa sobre
a cobrança de produtividade da universidade, criticando-a em diversos pontos, inclusive na
quantidade de alunos por sala de aula. Essa resposta evasiva vem novamente mudar o foco
das próximas perguntas, que em um aspecto desafiador, sugerem uma avaliação negativa à
crítica apontada pelo Ministro: mas quando o senhor diz isso, quando se diz isso a respeito da
universidade, a gente não corre o risco de esquecer a contribuição que a universidade
pública deu ao país e tem dado? ou o senhor acha que não deu? (l. 39-42). A primeira
pergunta dessa sequência - que também se inicia por uma estrutura de desacordo - ainda
apresenta um aspecto informacional, enquanto a segunda é puramente desafiadora, pois
coloca o entrevistado como alguém que não reconhece a importância da universidade pública,
59
e este “alguém” sendo o Ministro da Educação é um posicionamento extremamente
desafiador.
O segundo movimento parte de uma pergunta do tipo I para uma D e na sequência
para uma M. Participam do excerto abaixo os jornalistas André Laos e Fernando Rosseti,
além, claro, do Ministro Paulo Renato Souza. A discussão agora é centrada na aplicação das
verbas do FUNDEF20
:
Excerto (6)
Entrevista Paulo Renato Souza
Bloco II
Movimento I – D – M
402
403
404
405
406
407
408
André
Laos
ministro, o senhor disse que o fundef foi o grande e:: digamos
a coisa mais importante que o senhor fez no ministério, e:: no
entanto a imprensa diariamente seria exagero mas com uma
frequência escandalosa e:: de denúncias de desvio do dinheiro
do fundef- quer dizer tem muita gente com medo de que seria uma
boa ideia que simplesmente não vai e:: vai, simplesmente abrir
caminho pra corrupção[pra (ilegalidades]
409 Ministro [ela está fechando] o caminho da corrupção
410 André
Laos
como é que o senhor vê essa crítica?
411
412
413
414
415
416
417
Ministro Apesar de todas apesar de todas as denúncias, o fundef está fechando o caminho
do desvio da corrupção tá? (0,2) vamos ver por que. esse é um
ponto muito importante. vou dizer claramente o seguinte (0,4)
primeiro. hoje está se desviando muito menos dinheiro da
educação do que se desviava >hoje está se roubando muito menos<
dinheiro da educação do que se roubava. e entretanto
[há mais denúncias]
418
419
André
Laos
[como? como saber?] (0,2) como economista que gosta de mostrar
[ os índices- hhh ]
420 Ministro [agora vamos ver. Agora] eu vou ser economista=
421
422
André
Laos
=então me mostra os índices oficiais.
[por que há menos-]
423 Ministro [agora, eu vou ser] economista, não é? hhh
424 André
Laos
como provar que há menos? há menos-
425
426
427
428
429
430
431
Ministro vamos lá. em são paulo antes do Fundef e:: dos quinhentos
sessenta e oito municípios de são paulo, apenas sessenta e oito
e:: dos seiscentos e quarenta e oito municípios, apenas
sessenta e oito tinham rede municipal de ensino fundamental.
todos os demais tinham que gastar vinte e cinco por cento da
arrecadação em educação e não tinham escola. onde é que
gastavam esse dinheiro? pavimentavam a rua na frente da escola,
20
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério
(FUNDEF) é um conjunto de fundos contábeis formado por recursos dos três níveis da administração pública do
país para promover o financiamento da educação básica pública.
60
432
433
construíam ginásio de esporte, compravam carro pro prefeito e
diziam que era [transporte escolar]
434
435
436
Fernando
Rosseti
[não. também na ] creche na pré-escola.
que muitos deles fecharam
[por causa disso]
437
438
439
Ministro [não. não senhor] (0,2) não fecharam- não houve fechamento de
creche e pré-escola
[não. não é verdade ]
440
441
Fernando
Rosseti
[houve fechamento de] creches e escolas. houve sim.
o governo não tem divulgado isso muito bem ainda
No excerto (6), o jornalista André Laos inicia com uma pergunta do tipo I na linha
402 para requerer do entrevistado uma informação sobre sua avaliação das críticas que o
FUNDEF recebe desde sua criação. A pergunta obtém a resposta do Ministro atendendo ao
seu conteúdo. Esta resposta, no entanto, gera duas perguntas na sequência dos turnos, a
primeira em uma sobreposição de turno: como? como saber? (l. 418). Estas perguntas são
desafiadoras à fala do entrevistado porque colocam em dúvida a veracidade da informação
dada pelo Ministro. Como forma de mitigar o teor desafiador da pergunta, o entrevistador faz
uma referência, em forma de brincadeira – há risos no fim do turno -, à profissão do Ministro
Paulo Renato: como economista que gosta de mostrar os índices (l. 418-419).
A pergunta de aspecto desafiador, então, é reintroduzida em um formato menos
ameaçador como provar que há menos? (l. 424), dividindo o peso do desafio com o aspecto
informacional de seu conteúdo, em que há a solicitação de dados, de índices, que
comprovariam a fala do entrevistado e eliminariam o teor de desconfiança do entrevistador
em relação à informação. O entrevistador transforma a pergunta em que é forte o aspecto
desafiador em uma pergunta em que há também, além do desafio, um pedido de informação,
em um processo de mitigação da ameaça. Nesse caso, a reintrodução da pergunta não serve ao
propósito de combater respostas evasivas em uma estratégia direta de questionamento
(ALLWINN, 1991), mas sim de atenuar a própria pergunta do entrevistador, a qual julga
como extremamente desafiadora àquele momento.
Nestes dois últimos extratos, retirados da entrevista com o Ministro Paulo Renato
Souza, fica muito claro como as perguntas dos entrevistadores são reformuladas a partir das
respostas do entrevistado, em um processo sequencial da interação. Essas respostas não só
mudam o foco das próximas perguntas, como a própria resposta leva a outras questões e
outros temas, como no excerto (6) em que a resposta do entrevistado entre as linhas 425 e 433
61
gera outro ponto discutido em relação à corrupção com a verba da educação: o fechamento de
creches.
Dessa forma, é através da sequencialidade entre os pares pergunta-resposta que a
entrevista vai sendo construída em uma atividade que é definida aqui como uma atividade
híbrida, em que aspectos de uma disputa de pontos de vista perpassam o formato tradicional
de pergunta-resposta que compõe uma entrevista. Os tipos de pergunta – I, D e M - dos dados
indicam esta definição que proponho aqui, uma vez que nem toda pergunta tem a meta de
coletar informação. Muitas delas são puramente desafiadoras e instigam o debate no curso da
entrevista.
Na subseção seguinte, apresento uma análise baseada na frequência dos tipos das
perguntas realizadas pelos entrevistadores aos entrevistados em cada edição do programa.
Aliada a essa análise, sigo a base metodológica qualitativa de pesquisa, pois a cada
categorização de pergunta é considerado o contexto interacional-discursivo em que a pergunta
é formulada, uma vez que considero que toda pergunta dos dados possui uma sustentação no
discurso, isto é, não é formulada de forma isolada. Acredito assim, embasar melhor a
definição de hibridismo de atividade que proponho aqui.
4.1.2. O formato da pergunta
Ao analisar a sequencialidade dos pares pergunta-resposta nas entrevistas que
compõem o corpus, três categorias de formato de pergunta emergiram, como destacado na
subseção anterior: (i) a pergunta de natureza informacional; (ii) a pergunta desafiadora e (iii) a
pergunta definida como mista, em que aspectos de pedido de informação e de desafio estão
presentes concomitantemente.
As perguntas de teor informacional (I) buscam extrair alguma informação do
entrevistado sobre o tema em discussão. São exemplos21
deste tipo de pergunta nos dados:
(a) Quais são os argumentos que o senhor traz além da questão da saúde pública,
para se permitir que o estado faça o aborto, não só nos casos que hoje são
legalizados? (b) O senhor será convocado nessa audiência? (c) Quem é que vai fazer a interlocução com a oposição, nesse governo?
21
Cabe citar que os exemplos apresentados nesta subseção servem de ilustração para minha definição categórica
dos formatos de pergunta. Cada pergunta categorizada é proveniente de uma análise detalhada da
sequencialidade da interação em que ela é proferida, como discutido na subseção 4.1.1.
62
(d) Qual vai ser o seu papel nesse governo Dilma? (e) Qual é a situação da reforma do ensino médio?
(f) Ministro, nos municípios, o que o cidadão contribuinte pode fazer pra conseguir
ter acesso à aplicação do orçamento lá no município?
As perguntas desafiadoras (D) possuem a meta de instigar a disputa de pontos de
vista ou introduzir a polêmica e causar confronto de ideias. É possível exemplificar com
perguntas do tipo:
(a) Você está gostando da sombra Zé Dirceu?
(b) O Ministério da Saúde não atentou para a tragédia que estava acontecendo no
Mato Grosso do Sul e não interveio a tempo?
(c) O senhor tem essa coragem?
(d) Então porque que você vai se meter com o Irã?
(e) Mas não seria melhor convencê-los do que impor por decreto?
(f) Quem é que vai querer ser no Brasil professor daqui pra frente?
Já as perguntas mistas (M) pertencem a uma categoria de pergunta que engloba dois
aspectos discursivos: o aspecto informacional e o aspecto desafiador. Estes aspectos atuam em
conjunto na atividade, buscando alguma informação de conhecimento do entrevistado e o
enquadrando também em um posicionamento, muitas vezes contrário ao do entrevistador.
Abaixo se apresentam algumas perguntas dos dados que considero mistas:
(a) Será que com a reforma do ensino vai melhorar a situação ou vai continuar a
mesma coisa?
(b) Mas Ministro, precisa de provão pra saber o que é ruim no ensino superior
brasileiro?
(c) Como reverter essa imagem do partido com a questão da ética tão complicada
agora?
(d) O que é na sua abalizada e influente opinião o controle social da mídia?
(e) Por que o senhor decidiu tomar a frente essa discussão do aborto, que não é uma
discussão fácil, é uma forma de digamos assim, desviar a atenção de outras
questões graves da saúde brasileira?
(f) O Ministério da Saúde que não consegue prover a laqueadura de trompas para
quem quer, consegue dar conta de um milhão e cem mil abortos?
Em um levantamento percentual do corpus, foi encontrado um total de 412 perguntas
realizadas pelos entrevistadores22
em seus turnos de fala. Deste total, 14.5 % são perguntas do
22 Considero nesta conta todas as perguntas - ainda que repetidas - proferidas pelos entrevistadores em seus
turnos de fala, direcionadas ao entrevistado.
63
tipo informacional (I), 27.6% são perguntas definidas como desafiadoras (D) e 57.9% são
perguntas mistas (M). O quadro abaixo apresenta essa porcentagem em números, divididos
por cada edição do programa analisado. A sigla PRS se refere à entrevista com o Ministro
Paulo Renato Souza, a sigla JGT se refere à entrevista com o Ministro José Gomes Temporão
e JD faz referência à entrevista com o ex-Ministro José Dirceu.
Quadro 1: Mapeamento dos formatos da pergunta por edição.
FORMATO DA PERGUNTA
PRS JGT JD TOTAL DE CADA
FORMATO
Pergunta Informacional ( I )
16 9 35 60
Pergunta Desafiadora ( D )
31 7 72 110
Pergunta Mista ( M )
60 59 123 242
Total de perguntas
107 75 230 412
O quadro acima apresenta um panorama estrutural dos dados a partir da
categorização da pergunta do entrevistador. Além do somatório dos tipos de perguntas, é
mapeada também a quantidade de perguntas por entrevista e por tipologia em cada entrevista.
Com esse mapeamento, é possível destacar um dado fundamental na análise deste tipo de
atividade: a quantidade muito superior de perguntas do tipo mista (M) em comparação aos
outros tipos de perguntas. Repare que nas três entrevistas, a frequência do tipo M é maior que
o somatório das ocorrências do tipo D e do tipo I:
Quadro 2: Somatório de ocorrências.
FORMATO DA PERGUNTA
PRS JGT JD
Informacional (I) + Desafiadora (D)
47 16 107
Mista (M)
60 59 123
Observa-se, então, com os quadros acima, que as perguntas que desafiam o
entrevistado e o levam a defender pontos de vista a partir de assuntos que buscam extrair
64
informação de seu campo profissional são as mais usadas pelos entrevistadores. Esse
resultado me leva a afirmar que os entrevistadores dos dados usam recorrentemente as
perguntas do tipo M como uma estratégia interacional da entrevista que lhes permite
apresentar e cobrar pontos de vista, ao mesmo tempo em que se obtém informação.
Enquanto o padrão de ocorrência das perguntas do tipo M permanece igual nas três
entrevistas, as perguntas do tipo D e do tipo I apresentam um diferencial em suas ocorrências.
Nas entrevistas com o Ministro Paulo Renato e o ex-Ministro José Dirceu as perguntas do tipo
D aparecem com uma frequência superior às perguntas do tipo I, inclusive, no caso do ex-
Ministro chega ao dobro de ocorrência, mantendo assim o padrão entre as duas. A entrevista
com o Ministro José Gomes Temporão é a que apresenta a quebra de padrão na frequência
entre as perguntas do tipo D e do tipo I, porque além do baixo resultado no somatório entre os
dois tipos – ver quadro 2 – o tipo D ainda aparece com uma frequência inferior em relação ao
tipo I: o tipo D possui 7 ocorrências e o tipo I possui 9, 2 a mais que a anterior.
O padrão diferenciado na entrevista com o Ministro José Gomes Temporão pode ser
justificado pela alta frequência no aparecimento de questões do tipo M: 59 perguntas de um
total de 75, o que equivale a um percentual de 77.4 % das perguntas de toda a entrevista. Esse
resultado sugere que a grande maioria das perguntas formuladas buscam o aspecto desafiador
e o informacional em conjunto e não em separado, isto é, sempre que há um desafio embutido
na pergunta realizada, há também um pedido de informação. As poucas ocorrências destes
aspectos em separado se justificam, principalmente, devido ao estilo do entrevistador. No caso
das perguntas do tipo I, por exemplo, das 9 formuladas, 7 são proferidas pela jornalista Laura
Greenhalgh; já nas perguntas do tipo D, das 7 realizadas, 5 pertencem ao turno do jornalista
Reinaldo Azevedo. Isso significa que ao olhar o todo dessa entrevista, as perguntas
caracterizadas com um único aspecto – desafiador ou informacional – possuem ocorrências
pontuais e provenientes basicamente de uma única fonte, não sendo, portanto, a principal
escolha estratégica dos entrevistadores.
Esses dados reforçam a análise sobre a escolha do tipo M de pergunta como a melhor
estratégia para questionar o entrevistado sobre a agenda tópica do programa. Ao escolher
desafiar e obter informação simultaneamente, os entrevistadores determinam o caráter híbrido
da entrevista, tratando-a não como uma mera coleta de informações entre entrevistador e
entrevistado, e sim, transformando-a em uma situação de disputa, em que defesas de pontos
de vista, aliadas às informações requeridas, estão em evidência guiando o curso da interação,
sinalizando a orientação dos participantes para a definição da situação como uma atividade
híbrida.
65
Outro ponto relevante na análise do formato da pergunta é a sua frequência de uso
por blocos em cada edição analisada. Essa quantificação por bloco é relevante a esta análise
porque permite observar que não há um padrão pré-determinado para a ocorrência de cada
tipo de pergunta. Vejamos nos quadros abaixo:
Quadro 3: Perguntas do tipo Informacional (I)
I
PRS JGT JD
1º BLOCO 2
3 8
2º BLOCO 4
3 9
3º BLOCO 10
2 14
4º BLOCO -------23
1 4
Quadro 4: Perguntas do tipo Desafiadora (D)
D
PRS JGT JD
1º BLOCO 7
1 23
2º BLOCO 11
3 30
3º BLOCO 13
3 16
4º BLOCO -----
0 3
Quadro 5: Perguntas do tipo Mista (M)
M
PRS JGT JD
1º BLOCO 20
20 35
2º BLOCO 17
18 59
3º BLOCO 23
13 23
4º BLOCO ------
8 6
23
A entrevista com o Ministro Paulo Renato Souza possui apenas três blocos
66
Os quadros acima demonstram que os tipos de pergunta em cada bloco por edição
ocorrem em diversos momentos do programa, não sendo possível, por exemplo, afirmar que
as perguntas do tipo I em sua maioria iniciam a entrevista e nem que as perguntas do tipo D
predominantemente finalizam a entrevista. Este resultado vem de encontro à ideia de um
contínuo na construção da entrevista como atividade, em que as perguntas do tipo I iniciariam
o programa, ressaltando o aspecto tradicional da busca de informações da entrevista, para em
seguida desenvolver o desafio a partir das informações coletadas, isto é, desenvolvendo o
debate. Desta forma, o termo entrevista-debate não funcionaria em conjunto, de forma
concomitante, e sim como uma linha contínua que vai de um polo ao outro, da informação à
disputa. Esta ideia de contínuo não se concretiza nos dados, principalmente ao olhar em
direção às perguntas do tipo M que representam o aspecto híbrido da pergunta. Nas
entrevistas, o tipo M tem sua ocorrência predominante em blocos diferentes. Na entrevista
com o Ministro Paulo Renato a frequência maior de uso do tipo M é no 3º bloco, enquanto na
entrevista com José Dirceu o 2º bloco é o predominante. Já na entrevista com José Gomes
Temporão, a maior frequência do tipo M é no 1º bloco, o que significa que a entrevista se
inicia já no formato híbrido das perguntas, em que os aspectos informacional e desafiador
atuam unidos nas perguntas direcionadas ao entrevistado.
Estes resultados de frequência no uso dos tipos de perguntas em cada edição do
programa em estudo representam um ponto importante na definição desta atividade de
entrevista como híbrida. Com esses resultados, é possível afirmar que os entrevistadores dos
dados buscam, através de suas perguntas, aliar o pedido de informação à defesa de pontos de
vista, muitas vezes contrários ao do entrevistado. Ao questionar o entrevistado, com ambos os
aspectos, desafiador e informacional, atuando concomitantemente no conteúdo de sua
pergunta, o entrevistador dita o tipo de entrevista que realizará: uma entrevista em que a
disputa pelos pontos de vista defendidos emerge no curso da interação.
No entanto, não é só através de perguntas que o entrevistador questiona o ponto de
vista defendido pelo entrevistado. A este ponto de análise me dedico na subseção seguinte.
4.1.3. Turnos sem perguntas: o ponto de vista dos entrevistadores
Durante as entrevistas reunidas neste corpus, os entrevistadores exercem o papel
discursivo de questionar o entrevistado sobre pontos relevantes para a agenda tópica do
programa. Porém, não só de perguntas são feitos estes questionamentos. Em diversos
67
momentos das entrevistas, o turno do entrevistador é composto apenas por pontos de vista que
marcam a disputa de opiniões no curso da interação, o que caracteriza este formato debate na
entrevista.
Como ponto de partida de análise destes turnos sem perguntas, é apresentado a seguir
um exemplo da entrevista com o Ministro Paulo Renato Souza, em que o entrevistador
Marcos Antônio defende em seus turnos, intercalados com os turnos do entrevistado, pontos
de vista sobre o tema do desemprego entre os jovens brasileiros. Vejamos a sequência:
Excerto (1)24
Entrevista Paulo Renato Souza
Bloco I
171
172
173
Ministro o ensino médio precisa aprender a ensinar a pessoa
aprender o resto da vida e além disso tem que ter outras
oportunidades pra continuar aprendendo
174
175
176
Marcos
Antonio
Tá. eu concordo plenamente, é difícil discordar disso.
a gente tem que estudar a vida inteira e é bom que
[a gente possa]
177 Ministro [mas no passado] não era necessário.
178
179
180
181
182
183
184
185
Marcos
Antonio
não era. mas eu conheço- qualquer cidadão conhece pessoas que
estudaram a vida inteira e não têm emprego e jovens que estão
estudando e olham pra frente e veem sete vírgula cinco por
cento de taxa de desemprego. não dá pra dizer apenas que o
mundo passa por uma mesma crise, o brasil é o nosso país e a
gente tem que encontrar soluções pro nosso país e eu não tô
vendo. e:: esse discurso parece que não é o suficiente pra
dizer que daqui a cinco anos vamos ser=
186
187
Ministro =é uma condição necessária mas não suficiente. é preciso que a
economia cresça.
188
189
190
191
Marcos
Antonio
Sim. mas no mesmo governo. certo que de fato tá fazendo uma
revolução no ensino fundamental e se propõe a fazer uma
revolução no ensino médio é que cria a maior taxa de desemprego
da [história desse país é o mesmo governo ]
192
193
194
195
196
197
198
199
200
201
202
Ministro [não.não é o governo que cria essa taxa] de desemprego.
nós temos- o governo- o país enfrentou uma situação de crise
internacional, não é? da qual se saiu muito melhor do que se
esperava eu lembro que no começo do ano passado, quando se
falava das perspectivas para o ano de noventa e nove, se dizia
que ia se chegar ao final do ano com uma queda na produção de
mais de dez por cento, essas eram análises que não eram tão
pessimistas e que ia se chegar com uma taxa de desemprego de
vinte por cento. não aconteceu isso não é? fomos capazes de
enfrentar a crise manter a estabilidade, tivemos
[um ano difícil ]
203 Marcos
Antonio
[não aconteceu a] catástrofe
204 Ministro não aconteceu a catástrofe
24
Os excertos apresentados nesta análise são numerados por subseção. Iniciando uma nova subseção, inicia-se
também uma nova contagem.
68
205 Marcos
Antonio
mas a situação é grave
206
207
208
Ministro sim, mas mas nós vivemos no mundo que passou uma crise, nós
fomos objetos de um ataque especulativo na nossa moeda, nós nos
defendemos e saímos muito melhor do que se esperava.
No exemplo do excerto (1), o jornalista Marcos Antônio profere cinco turnos em
uma sequência em que não há nenhuma pergunta realizada, o que não impede o entrevistado
de interpretar esses turnos como questionamentos que buscam uma resposta. Após o primeiro
turno do jornalista (l. 174-176), o Ministro também profere na sequência cinco turnos que,
intercalados com os do entrevistador, dão direcionamento à entrevista, em um momento em
que uma disputa de pontos de vista está em curso na interação.
O entrevistador inicia seu turno na linha 174 concordando com o ponto de vista do
entrevistado de que o ensino médio precisa ensinar para a vida e dar oportunidades ao jovem
de continuar aprendendo. Em uma fala sobreposta, o Ministro intervém no turno do jornalista
para destacar que no “passado” não era necessário que o ensino médio possuísse outras
funções sociais que as de repassar conhecimento focado no conteúdo das distintas disciplinas
de seu currículo. O jornalista novamente concorda com o ponto de vista do Ministro, mas
apresenta um argumento que contesta a inserção de jovens estudantes no mercado de trabalho,
que seria uma das metas do ensino médio atual: mas eu conheço, qualquer cidadão conhece
pessoas que estudaram a vida inteira e não têm emprego e jovens que estão estudando e
olham pra frente e veem sete virgula cinco por cento de taxa de desemprego (l. 178-181).
Esse argumento que carrega uma avaliação negativa ao governo encontra um ponto de vista
do entrevistado em forma de justificativa: É preciso que a economia cresça. (l. 186-187).
O jornalista, contudo, segue em sua crítica à política do governo iniciada em seu
turno anterior, destacando que um governo que de fato tá fazendo uma revolução no ensino
fundamental e se propõe a fazer uma revolução no ensino médio é [quem] cria a maior taxa
de desemprego da história desse país (l. 188-191). Ao atribuir responsabilidade direta ao
governo pelo avanço do desemprego, Marcos Antonio ameaça a posição do Ministro como
representante desse governo e o leva a contestar este argumento de responsabilidade. Para o
Ministro, não é o governo quem cria essa taxa de desemprego; ela é fruto da crise
internacional em que o mundo está imerso. O Ministro, nesta tentativa de defender seu ponto
de vista, apresenta um dado que favorece o governo, pois segue a teoria de que poderia ainda
ser pior: eu lembro que no começo do ano passado, quando se falava das perspectivas para o
69
ano de noventa e nove se dizia que ia se chegar ao final do ano com uma ( ) taxa de
desemprego de vinte por cento não aconteceu isso, não é? fomos capazes de enfrentar a crise,
manter a estabilidade, tivemos um ano difícil (l. 195-202). Ambos, por último, concordam
que a situação do país é grave, mas segundo o Ministro, o país se defendeu e saiu muito
melhor do que se esperava (l. 208), em um argumento de defesa favorável ao governo.
É interessante observar como essa disposição dos turnos entre pontos de vista
defendidos cria uma situação em que parece haver um bate-papo entre dois profissionais que
atuam na área da Educação25
. Mas em uma análise do teor destes pontos de vista defendidos,
verificamos que seguem uma linha argumentativa oposta, na qual o entrevistador desafia o
ponto de vista do entrevistado obrigando-o a tomar uma postura de defesa a ameaças
iminentes.
Na entrevista com o ex-Ministro José Dirceu, também há exemplos de turnos
compostos por pontos de vista que determinam a disputa de opiniões na interação. No excerto
a seguir está em pauta o poder da imprensa como formadora de opinião pública. José Dirceu é
conhecido por criticar abertamente a imprensa brasileira, defendendo uma criação de normas
que permitam controlar o poder da mídia e romper o monopólio que é concentrado em umas
poucas redes de televisão, rádio e jornal. No início do segundo bloco, o qual pertence este
excerto, o ex-Ministro é questionado sobre a possibilidade do PT introduzir uma lei de
controle da imprensa no Brasil. O entrevistado nega e reforça seu ponto de vista de que deva
haver algum controle social da mídia. É neste contexto discursivo que está inserido o exemplo
abaixo, com participação dos entrevistadores Marília Gabriela e Paulo Moreira Leite:
Excerto (2)
Entrevista José Dirceu
Bloco II
247
248
Marília
Gabriela
OH ZÉ::: a imprensa foi durante anos acusada de ser petista.
de ser lulista particularmente. durante anos=
249
250
José
Dirceu
=devia ser, devia ta tendenciosa.
[o pt-]
251 Marília
Gabriela
[nessa] época ela era interessante então=
252
253
José
Dirceu
=mas era denunciada. o que eu tô dizendo quando critico a
imprensa, é que eu to exercendo um direito que eu tenho (0,2)
25 Cabe ressaltar que o jornalista Marcos Antônio, na época da entrevista, atuava na direção da revista Educação
e era coordenador de um curso universitário.
70
254
255
por isso que eu fiz um blog. se eu pudesse, eu teria uma
televisão um rádio um jornal. eu não POSSO-
256 Marília
Gabriela
mas daí a le[gislar ]
257
258
José
Dirceu
[não não]
não tem legislação [sobre isso]
259
260
Marília
Gabriela
[em cima de] um clube
[ par-ti-da-ris-mo]
261 José
Dirceu
[não, não. co:mo? ]
262 Paulo
Moreira
você não tem um jornal?
263
264
José
Dirceu
não. a não ser que você tenha comprado um e colocado meu nome
[hhh]
265 Paulo
Moreira
[hhh]
A entrevistadora Marilia Gabriela inicia o turno afirmando que a imprensa foi
durante anos acusada de ser petista, de ser lulista particularmente (l. 247-248). Ela não
pergunta ao entrevistado. Ela apresenta seu ponto de vista em uma afirmação que é
confirmada, em parte, pelo ex-Ministro, em uma expressão de possibilidade: devia (l. 249).
Esta concordância, ainda que parcial, gera uma nova afirmação: nessa época ela era
interessante então (l. 251). Este turno da entrevistadora é extremamente crítico ao ponto de
vista do entrevistado em sua crítica à mídia, tanto que é contestada com o fato da imprensa ser
denunciada (l. 252), ou seja, a imprensa podia ser petista, mas era criticada por isso. Nota-se
que neste turno, o entrevistado defende seu ponto de vista de que tem direito a uma opinião
crítica em relação à mídia. Este turno obtém na sequência uma avaliação negativa da
entrevistadora: mas daí a legislar (l. 256). Marília Gabriela se refere novamente a um
(suposto) projeto do governo que pretende criar uma lei para o controle da imprensa no Brasil,
o que é contestado novamente por José Dirceu.
Nessa sequência, então, ocorre uma disputa de pontos de vista em relação a duas
questões, as quais se opõem entrevistado e entrevistador. A primeira se refere ao fato da
criação de uma lei que regulamenta as funções da imprensa no Brasil. Fato que é atribuído
pela entrevistadora e negado pelo entrevistado. A segunda questão é consequência da
primeira: a imprensa só é criticada quando não é favorável ao governo. Uma posição também
atribuída pela jornalista e negada pelo ex-Ministro.
71
Este excerto ratifica que os turnos sem perguntas nos dados são desafiadores aos
pontos de vista defendidos pelos entrevistados. Raros são os turnos sem perguntas que
corroboram a linha argumentativa do entrevistado. Portanto, essa estratégia discursiva do
entrevistador vem contribuir com mais um aspecto estrutural na defesa de que as entrevistas
em análise nesta tese possuem um formato híbrido, em que a situação de disputa está
fortemente presente no curso da atividade.
Como último ponto de análise da atividade, apresento na subseção a seguir a
discussão sobre os tópicos controversos.
4.1.4. Os tópicos controversos
Segundo Lauerbach (2004, 2006), os tópicos controversos possibilitam a defesa de
pontos de vista contrários entre os participantes da entrevista, uma vez que são temas
considerados problemáticos aos papéis que ocupam os entrevistados na esfera pública.
Geralmente, esses tópicos são identificáveis na interação por serem marcados pela relação
entre a evasão na resposta dos entrevistados e a insistência dos entrevistadores nos turnos em
sequência. A autora ressalta que essas estratégias de evasão, de parte do entrevistado, e de
insistência nos turnos do entrevistador são realizadas em complexas estruturas de pergunta e
resposta. Contudo, como foi observado nas subseções anteriores, não só através dos pares
pergunta-resposta que a disputa de pontos de vista se desenvolve no corpus desta tese, mas
também através de turnos sem perguntas, turnos que apresentam apenas pontos de vista,
fugindo ao padrão interacional prototípico das entrevistas.
Diversos temas são tratados nas entrevistas do corpus e todos eles podem ser
considerados polêmicos. Temas como a utilização de células-tronco, combate à dengue,
esquemas de corrupção, gratuidade da universidade pública e desemprego questionam a
política do governo, enquadrando o entrevistado como seu representante e alvo, portanto, das
possíveis críticas a este governo.
Os tópicos controversos levam à disputa de pontos de vista no decorrer da entrevista
e geram as perguntas do tipo desafiador, que observado nas subseções anteriores, possuem
uma alta ocorrência nos dados, ainda mais ao considerar também o tipo M de pergunta que
contém também o aspecto desafiador em sua composição.
Um exemplo de um tópico controverso que gera perguntas e pontos de vista de
natureza desafiadores na interação pode ser observado no excerto a seguir, retirado da
72
entrevista com o Ministro José Gomes Temporão. No excerto (1) abaixo está em pauta o
debate sobre a descriminalização/ legalização do aborto. Participam da sequência, além do
Ministro, os jornalistas Demétrio Weber e Reinaldo Azevedo:
Excerto (1)
Entrevista José Gomes Temporão
Bloco I
A pergunta do entrevistador Demétrio Weber no primeiro turno da sequência requer
do entrevistado argumentos que apoiem a proposta de legalização do aborto, além dos casos
em que este processo já é permitido. A pergunta é direcionada ao Ministro como representante
do governo, uma vez que estendendo a permissão ao aborto torna o Estado fornecedor desse
serviço à população, o que sem dúvida é um procedimento que além da área médica envolve
também uma política pública de governo. Esta pergunta então solicita informações sobre
argumentos que possam facilitar a decisão popular sobre a questão do aborto, sendo uma
230
231
232
Demétrio
Weber
quais são os argumentos que o senhor traz além da questão da
saúde pública,para se permitir que o estado faça o aborto, não
só nos casos que hoje são legalizados?
233
234
235
236
237
238
239
240
241
242
243
244
245
246
247
248
249
250
Ministro eu acho que o primeiro ponto é uma evidência que choca (0,2)
apesar do aborto ser um crime, ele é praticado um milhão e cem
mil vezes por ano por mulheres brasileiras. significa o quê? que
a legislação não dá conta da realidade. nós temos uma realidade
que transcende o que a lei estabeleceu não é? (0,2) acho que esta
é uma questão fundamental. quer dizer, como você trata situações
individuais que se colocam de uma gravidez indesejada por
questões que pode ir- (0,2) a gente pode discutir aqui, a noite
inteira sobre questões que possam levar a uma gravidez
indesejada. e essa mulher muitas vezes sozinha, eventualmente,
>com o apoio do seu companheiro ou da sua família< mas eu
afirmaria que na maior parte das vezes só, com uma sensação de
culpa importante, submete-se a um procedimento que pode levar à
morte (0,2) na semana passada morreu uma jovem de trinta e dois
anos em belém, submetida a um abortamento clandestino. esse final
de semana no rio de janeiro o jornal publicou uma matéria dizendo
que medicamento abortivo proibido no brasil é vendido em camelôs
no centro da cidade do rio de janeiro. o que é isso?
251 Reinaldo
Azevedo
falta de governo ministro.
252
253
254
255
256
257
Ministro >não não< é a realidade batendo a nossa porta no nosso rosto.
então, essa é a questão que eu quero discutir. e quero que a
sociedade escute. agora a decisão compete ao congresso de um lado,
e o congresso reflete as diversas posições e tendências que estão
expressas na sociedade (0,2) ou o congresso vai decidir por uma
consulta popular.
258 Reinaldo
Azevedo
mas então o senhor é favorável à descriminalização?
259 Ministro sou favorável à discussão.
73
pergunta de cunho informacional e não desafiador. O entrevistado reconhece o pedido de
informação e responde à pergunta, apresentando argumentos em seu turno de resposta.
Entre as linhas 247 e 250 do turno de resposta do entrevistado, é apresentada uma
evidência como um dos argumentos que permitiriam levar adiante a discussão sobre a
legalização do aborto: o fato de ser vendido um medicamento abortivo proibido no centro da
cidade do Rio de Janeiro. No fim de seu turno, o Ministro realiza a pergunta o que é isso?
(l.250) que pode ser considerada retórica, pois não requer de fato uma resposta. Funciona
como uma estratégia argumentativa de defesa de seu ponto de vista, pois demonstra que o
acesso à prática do aborto é de amplo conhecimento e que apesar de ilegal, este procedimento
é realizado frequentemente.
A pergunta do entrevistado, contudo, perde o caráter retórico porque encontra
resposta do entrevistador Reinaldo Azevedo na linha 251: falta de governo ministro. Este
turno é extremamente desafiador ao entrevistado porque contesta os argumentos oferecidos,
apresentando um quadro de incompetência de gestão de governo. Este quadro é negado pelo
entrevistado que segue na defesa de seu ponto de vista em discutir a questão do aborto na
sociedade.
A partir da linha de defesa criada pelo Ministro, em seus dois turnos de resposta, uma
nova pergunta é realizada: mas então o senhor é favorável à descriminalização? (l. 258). Esta
pergunta de aspecto desafiador ao entrevistado26
não é respondida de forma direta, isto é,
encontra uma resposta evasiva do Ministro na linha 258: sou favorável à discussão. É
interessante observar que os três turnos dos entrevistadores, dois de perguntas e um de ponto
de vista, atendem a metas interacionais distintas na interação. Enquanto o primeiro turno
busca obter informação através de uma pergunta, os outros dois apresentam um teor
desafiador à posição do entrevistado: seja em forma de posicionamento – falta de governo
ministro – seja em forma de pergunta – o senhor é favorável à descriminalização?.
Consequentemente, as respostas do entrevistado geralmente acompanham a meta
proposta nos turnos do entrevistador. Quando a pergunta é de cunho desafiador tende a
encontrar uma resposta evasiva no turno seguinte e quando possui um caráter informacional
tende a ser respondida de forma direta, sem rodeios.
As perguntas desafiadoras, então, tendem a obter respostas evasivas, que surgem
como uma estratégia de desvio de questionamentos, considerados desafiadores às posições
assumidas pelo entrevistado na interação. Como ressalta Bavelas et. al (2008), algumas
26
Conferir subseção 4.1.1 na análise do excerto (3).
74
respostas quando executadas de forma direta à pergunta realizada podem trazer sérios
prejuízos a quem as responde. Dessa forma, aquele que responde escolhe fazê-lo
inadequadamente, isto é, de forma evasiva, para evitar assim, em sua avaliação, um dano
maior à sua posição na interação se a respondesse satisfatoriamente, ou seja, de forma direta
ao questionamento.
Essas respostas evasivas, então, surgem como uma alternativa do entrevistado a uma
pergunta que lhe coloca em uma posição de difícil resposta. Mas, como não responder à
pergunta abertamente pode também prejudicar sua imagem, principalmente se for uma pessoa
pública, ela opta então por respondê-la de forma insatisfatória, uma não resposta. Esta
estratégia de “fuga” de perguntas sobre temas polêmicos contribui à disputa de pontos de vista
no decorrer da entrevista, fortalecendo o caráter híbrido da atividade.
4.2. A dinamicidade dos papéis e posições
Na seção anterior, analisei o aspecto híbrido que caracteriza a atividade dos dados
que compõem o corpus de análise, considerando-a de fato uma entrevista-debate
(EMMERTSEN, 2007). Nesta seção, dou continuidade ao estudo desta tese, analisando os
papéis dos participantes que são tornados relevantes no curso desta atividade.
Inicio com a suposição de que a característica híbrida desta atividade permite que
diversos papéis sejam negociados entre os participantes, refletindo a dinamicidade desses
papéis na interação. Alinho à abordagem de papel, o conceito de posição e posicionamento,
considerando que o participante se posiciona e se reposiciona todo o tempo em seus papéis
desempenhados na atividade.
A partir de uma perspectiva dinâmica e interacional de papel, analisarei, em um
primeiro momento, o papel social do entrevistado, para em seguida dar ênfase ao papel de
atividade do entrevistador e sua relação com os papéis discursivos projetados no encontro. Em
ambas as subseções, destaco a movimentação desses papéis na sequencialidade da interação,
assim como das posições assumidas, associando-os – papéis e posições - com o hibridismo de
atividade que caracteriza os dados.
Cabe mencionar que a opção por analisar os papéis sociais apenas dos entrevistados,
assim como os papéis de atividade e papéis discursivos dos entrevistadores, se deve ao fato de
que a observação inicial dos dados mostrou que os participantes tornam relevantes diferentes
75
tipos de papéis: os entrevistados, seus papéis sociais, e os entrevistadores seus papéis de
atividade.
4.2.1. O papel social do entrevistado
Em uma perspectiva interacional, não é todo papel social de um indivíduo que se
torna relevante no contato com o outro em uma determinada atividade. Nos dados, os
participantes do programa desempenham papéis relevantes à atividade em que estão inseridos,
emergindo alguns papéis sociais em detrimento de outros. Como destaca Weizman (2006), o
papel social do entrevistado manifestado na atividade gira em torno de sua ocupação
profissional/ institucional, motivo pelo qual inclusive, tal entrevistado foi convidado à
entrevista.
Os três entrevistados, alvo desta análise, têm em comum a política como norteadora
de seus papéis sociais projetados na interação. No excerto a seguir, retirado da entrevista com
o ex-Ministro José Dirceu, observamos a apresentação do entrevistado e as primeiras
perguntas feitas a ele, a partir de distintos papéis sociais em que a apresentadora Marília
Gabriela o posiciona no encontro. Alguns desses papéis são reivindicados pelo entrevistado,
enquanto algumas posições associadas a esses papéis são refutadas. Vejamos:
Excerto (1)
Entrevista José Dirceu
Bloco I
01
02
05
06
07
08
09
10
11
12
Marília
Gabriela
boa noite! no centro do roda viva de hoje claro a eleição
de dilma rousseff a presidência da república. .hh
((apresentação de Dilma Rousseff))
trouxemos esta noite ao programa
um de seus grandes eleitores (0.2)
o ex ministro da casa civil de lula jose dirceu .hh
ele participou da campanha de dilma agindo nos bastidores sem
aparecer muito, mas fazendo mui::to barulho quando aparecia
((josé dirceu levanta as sombrancelhas))
dirceu continua sendo uma grande influência no pt e está
aqui para analisar a vitória pra falar do futuro e pra dizer
qual será seu papel no governo dilma (0.2)
((apresentação dos entrevistadores))
39
40
41
42
43
44
45
46
Marília
Gabriela
OH nao adiantou na::da, estamos aí mais quatro anos (0.2)
dois meses atrás você disse essa frase num discurso,
na bahia (0.2) e hoje você pode repeti-la quantas vezes
quiser, porque ela virou verdade, ne? o pt ta ai pra (0.2) mais
quatro anos. e ontem, ao sair da cabine eleitoral, você
declarou <não devo (0.2) não posso (0.2) e não quero ter cargo>
no governo dilma (0.5) a minha pergunta é a seguinte,
você ta gostando da sombra ze dirceu?,
76
47
48
49
eu quero dizer, você prefere ser influente mas sem cargo?,
e como é que você vai nos convencer de que você
não vai participar mes::mo do governo dilma?
50
51
52
53
54
55
56
57
58
59
60
José
Dirceu
.hh não, eu não atuo nem nos bastidores, nem nas sombras,
eu atuo abertamente e publicamente no país, aliás, sempre o
fiz,eu fui eleito a primeira vez presidente do centro acadêmico
nas ruas, com repressão bomba de gás lacrimogêneo cacetete,
cavalaria, patas de cavalaria, e depois de novo >presidente< da
ue, (0.2) da >mesma maneira< e fui eleito deputado estadual,
>três vezes federal fui candidato a governador<,
fui ministro de estados, sempre publicamente. cassado pela
câmara, <sem provas>. (0.2)
eu voltei a vida política como militante do pt, como cidadão
[eu tenho um blog-]
61 Marília
Gabriela
[mas na campanha] da dilma, você [ tava::]
62
63
64
65
66
67
68
69
70
71
72
73
74
75
76
77
78
79
80
81
82
José
Dirceu
[eu atuei] como membro da
direção nacional eu sou membro da direção nacional do pt
e atuei como tal. eu não era membro da coordenação mas
como membro da direção eu percorri o país (0.2) .hh
defendi o nome dela desde fevereiro de dois mil e oito (0.2)
e nove perdão. percorri o país, trabalhei pras alianças,
principalmente com o pmdb, com o >psb, pc do b e pdt<,
pelos palanques estaduais, que lhe deram a vitoria, °muitos
deles° foram fundamentais. e trabalhei também pra construir os
discursos, as propostas, porque sou. militante do pt,
sou dirigente do pt, e no pt fiz esse trabalho. não tenho
participação (0.2) direta na coordenação e não terei no
governo. (0.2)como eu disse e quero repetir (0.2)
>não devo não quero e não posso< eu tenho primeiro que (0.2)
>prestar contas a justiça< já que eu estou sendo acusado no
supremo tribunal federal, de chefe de quadrilha
e de corrupção, não é pouca coisa. (0.2)
como eu sou inocente (0.5)
((Dirceu aponta para si, corroborando a fala de inocente))
e nesses anos todos (0.2) todas as investigações inquéritos
processos cpis que eu respondi eu fui absolvido inclusive na
justiça, federal já fui absolvido duas vezes (0.2)
No recorte acima, diversos papéis sociais de José Dirceu são tornados relevantes,
alguns atribuídos pela apresentadora e outros reivindicados pelo próprio Dirceu. Marília
Gabriela, ao apresentar o entrevistado, posiciona-o como ex-Ministro (l.7), eleitor de Dilma
(l.6), um membro atuante de sua campanha à presidência (l.8) e um membro do Partido dos
Trabalhadores (PT) – l.10. Desses quatro papéis em que foi posicionado, José Dirceu só não
legitima o papel de eleitor, contudo, também não o nega, apenas o ignora, isto é, ele não o
considera neste momento um papel relevante a ser destacado na interação.
José Dirceu, em seus turnos de resposta, reivindica diversos papéis, além dos papéis
atribuídos pela apresentadora. Ele reivindica o papel de (i) presidente de centro acadêmico -
l.52 -; (ii) deputado estadual - l.55 -; (iii) deputado federal - l.56 -; (iv) candidato à governador
- l.56 -; (v) ministro de estado - l.57 -; (vi) militante do PT - l. 59 e 71; (vii) cidadão - l.59 - e
77
(viii) membro da direção nacional do PT - l.63 e 72. Todos esses papéis, exceto o papel de
cidadão, pertencem a um conjunto de papéis (SARANGI, 2010; 2011) associado ao papel de
político do entrevistado, quer dizer, é do papel de político que emergem os outros papéis na
entrevista.
É interessante notar no excerto (1) que esses papéis manifestados na interação são
derivados da dicotomia presente nas posições de “cassado” e “em atividade” do papel de
político em que o entrevistado se apresenta ou é apresentado. Dirceu é cassado politicamente
como o acusado - e agora já julgado e culpado - pelo esquema de corrupção conhecido como
o “mensalão”, ocorrido no primeiro mandato do ex-presidente Lula, quando Dirceu ocupava o
cargo de Ministro da Casa Civil. Como um político cassado, Dirceu recupera seus papéis
desempenhados na vida pública para justificar sua contribuição política ao país, como alguém
que possui uma história política e assim se posicionar como inocente (l.79) das acusações.
Em diversos momentos, Dirceu se apresenta em papéis relacionados ao
posicionamento “em atividade” deste papel de político, como “deputado” e “ministro”.
Quando Dirceu afirma eu estou sendo acusado no supremo tribunal federal de chefe de
quadrilha e de corrupção (l.76 -78), ele faz referência ao seu papel de Ministro e à acusação
que lhe foi imputada atuando neste papel. Já em outros momentos, o entrevistado se posiciona
a partir do papel de político cassado, como “ex-ministro” e “militante do PT”: fui cassado
pela câmara, sem provas, eu voltei à vida política como militante do PT, como cidadão (l. 57
– 59).
É a partir deste contraste entre os posicionamentos “cassado” e “em atividade” do
conjunto de papéis de político do entrevistado que as perguntas são realizadas e
posicionamentos são atribuídos e/ou reivindicados. Alguns deles são refutados por Dirceu,
enquanto outros são legitimados e reivindicados. Retomo abaixo as atribuições de papéis
dados pela apresentadora/ entrevistadora ao ex-Ministro no início da entrevista:
Excerto (2)
Entrevista José Dirceu
Bloco I
05
06
07
08
09
10
11
12
Marília
Gabriela
trouxemos esta noite ao programa
um de seus grandes eleitores (0.2)
o ex ministro da casa civil de lula jose dirceu .hh
ele participou da campanha de dilma agindo nos bastidores sem
aparecer muito, mas fazendo mui::to barulho quando aparecia
((josé dirceu levanta as sombrancelhas))
dirceu continua sendo uma grande influência no pt e está
aqui para analisar a vitória pra falar do futuro e pra dizer
qual será seu papel no governo dilma (0.2)
78
45
46
47
48
49
Marília
Gabriela
a minha pergunta é a seguinte,
você ta gostando da sombra ze dirceu?,
eu quero dizer, você prefere ser influente mas sem cargo?,
e como é que você vai nos convencer de que você
não vai participar mes::mo do governo dilma?
Marília Gabriela, nos turnos acima, posiciona José Dirceu como um político que não
atua oficialmente, que atua nos bastidores: ele participou da campanha de dilma agindo nos
bastidores sem aparecer muito, mas fazendo muito barulho quando aparecia (l. 8-9). Esta
atuação disfarçada é associada à posição de cassado do conjunto de papéis de político, na qual
não lhe é permitido uma atuação oficial. De forma semelhante, há a atribuição da posição
“influente” neste papel de político: na campanha à presidência fazendo muito barulho quando
aparecia (l.9); no governo dizer qual será seu papel no governo dilma (l.11-12) e no partido
dirceu continua sendo uma grande influência no pt (l.10). Esses posicionamentos
permanecem nas três perguntas realizadas ao entrevistado entre as linhas 46 a 49. A
entrevistadora ratifica as posições em que ela o posiciona, como um político cassado que atua
às sombras, porém com muita influência.
Apesar dessas duas posições – atuar às escondidas e ser influente – estarem
associadas ao conjunto de papéis que desempenha o entrevistado, Dirceu refuta o primeiro
posicionamento claramente em seus turnos:
Excerto (3)
Entrevista José Dirceu
Bloco I
50
51
52
José
Dirceu
.hh não, eu não atuo nem nos bastidores, nem nas sombras,
eu atuo abertamente e publicamente no país, aliás, sempre o fiz
62
63
64
65
66
67
71
72
73
74
José
Dirceu
[eu atuei] como membro da
direção nacional eu sou membro da direção nacional do pt
e atuei como tal. eu não era membro da coordenação mas
como membro da direção eu percorri o país (0.2) .hh
defendi o nome dela desde fevereiro de dois mil e oito (0.2)
e nove perdão. percorri o país, trabalhei pras alianças,
sou. militante do pt,
sou dirigente do pt, e no pt fiz esse trabalho. não tenho
participação (0.2) direta na coordenação e não terei no
governo. (0.2)
79
José Dirceu, em seus turnos de resposta, representados no excerto (3) acima, refuta a
posição de atuação às escondidas de seu papel de político, afirmando que não atua nem nos
bastidores, nem nas sombras,[atua] abertamente e publicamente no país, aliás sempre o [fez]
(l.50-52). Ele refuta esse posicionamento porque o considera de valor negativo, pois atuar nos
bastidores e nas sombras passa uma ideia de ilegalidade, o que não corrobora com a posição
que reivindica Dirceu, de um político cassado injustamente, de um inocente. Ratificar uma
atuação que remete à ilegalidade é confirmar à audiência a imagem de culpado que
socialmente Dirceu carrega no ato da entrevista. Ele justifica a negação desses
posicionamentos no segundo turno ao afirmar que atuou como membro da direção nacional do
PT, percorrendo o país e trabalhando para alianças políticas (l. 62-67). Esses papéis
reivindicados reforçam a defesa de uma atuação política às claras, pois se percorreu o país
defendendo o nome de Dilma (l.65-67) ele não atuou às escondidas, e, portanto, esta posição
não lhe pode ser atribuída.
A resposta de Jose Dirceu é proferida a partir de um conjunto de papéis reivindicados
por ele, como já analisado nos excertos acima. Esse conjunto de papéis entra em conflito em
diversos momentos na entrevista, uma vez que certas ações podem ser realizadas em um
determinado papel deste conjunto, enquanto outras não são possíveis. Atuar, por exemplo, na
direção do PT na campanha à presidência é um papel que pode ser realizado dentro de sua
posição de cassado, pois Dirceu permanece filiado ao PT. Contudo, atuar no governo
ocupando um cargo, como pressupõe a pergunta da entrevistadora, não é permitido nesta
posição de cassado, a menos que tal atuação ocorra às escondidas, como também é
pressuposto no turno de Marília Gabriela, que obtém resposta direta de José Dirceu negando
tais pressuposições.
Em outro momento da entrevista, novos papéis sociais do entrevistado são tornados
relevantes na interação, porém nem todos são reivindicados por Dirceu. Novamente, há uma
tensão no posicionamento destes papéis, não só em termos do conjunto de papéis associados,
mas também nos múltiplos papéis (SARANGI, 2010; 2011). O recorte abaixo inicia-se com a
discussão da ocupação atual do entrevistado, uma vez que ele não ocupa mais cargos políticos
no governo. Participam deste excerto, além do ex-Ministro, os entrevistadores Marília
Gabriela e Paulo Moreira Leite.
Excerto (4)
Entrevista José Dirceu
Bloco III
80
258 Marília
O:: ZÉ! você é lobista hoje! é isso?
259 Dirceu
não. não sou.
260 Marília
você, você faz business.
261
262
Dirceu
ºnãoº. não faço. faço consultoria. sou advogado.
porque que os outros consultores não são lobistas e eu sou?
263 Marília
[[não! tá bom
264 Dirceu [[diz pra mim [ºissoº]
265 Marília
[ não ] porque é-
266 Dirceu
não. é uma [coisa]
267 Marília
[não é]uma profissão? existe uma profissão=
268
269
Dirceu
=não! no brasil- lobista tem um caráter,
de tráfico de influências.
270 Marília
bom-
271
272
Dirceu
tem um caráter pejorativo e quase criminoso.
eu sou advogado e consultor!
273
274
275
276
277
278
279
Paulo
tá. >eu justamente queria perguntar isso< (0,2)
>dirceu<, eu conheço gente que se emocionava ao sair de casa,
em sessenta e oito pra ver você fazer discurso no cento de são
paulo. muita gente que ficou feliz quando você voltou muita
gente que teve identificação com você da sua luta política
>dessas suas idéias e tudo< hoje essas pessoas, perguntam
assim, como é que o zé dirceu ganha a vida?
280 Dirceu
trabalhando igual[você ganha]
281 Paulo [aí fica uma] coisa com[plica::da]
282 Dirceu
[não! igual] você ganha
283 Paulo
[[não. eu ganho
284 Dirceu
[[igualzinho
285 Paulo
todo mundo sabe onde eu trabalho=
286 Dirceu =e todo mundo sabe onde eu tra [ balho ]
287
288
Paulo [não não]
quais são os seus- as pessoas não sabem quais os seus clientes.
289 Dirceu
[[não, o:: paulo moreira leite!
290 Paulo
[[as pessoas não sabem
291 Dirceu
o:: paulo moreira leite!
292 Paulo
exatamente.
293
294
Dirceu
você pergunta pros outros consultores quais são os clientes
deles?
295
296
297
Paulo não. AÍ é que tá! você não é um consultor. você tem uma
biografia e- de repente, a sua biografia, ela tá in- tá
diferente. ela tá es [tranha]
298
299
Dirceu [não tá] nada de diferente!
eu sou advogado e consultor.
81
300 Marília
mas você é um consultor privilegiado! você tem=
301
302
Dirceu =quer dizer que eu não posso trabalhar pra levar
[investimentos brasileiros ]
303 Paulo
[claro que po::de trabalhar]
304 Dirceu
pro exterior pro peru pra [colômbia]
305 Paulo
[claro que] pode
306 Dirceu
pra europa eu não posso trazer investimentos pro brasil?
307 Paulo
o que as pessoas querem saber como um homem público=
308
309
Dirceu
=como um homem público me CASSARAM me tiraram do governo
queriam [me banir de dentro do país]
310
311
Marília [ mas você ainda influi ]
mas você ainda é um homem influente nesse partido e neste poder
312
313
Dirceu eu sou influente? não tenho nenhuma
[incompatibilidade com]
314
315
Marília
[então como você pode] fazer
[ lobi tendo essa influência? ]
316
317
Dirceu [eu não faço lobi! você que tá] dizendo que eu faço
[eu não faço lobi]
318 Marília
[ OH MEU DEUS ], faz o QUE então?
319 José
Dirceu
faço consultoria!
No excerto (4) acima, há uma disputa entre dois papéis sociais: o papel atribuído de
lobista (l.258) e o papel reivindicado de consultor (l.272). Esta disputa perpassa uma questão
ética e até legal da profissão, uma vez que o papel de lobista tem um caráter de tráfico de
influências (l.268-269), pejorativo e quase criminoso (l.271). Portanto, Dirceu nega este
posicionamento, reivindicando para si os papéis de consultor e advogado (l. 261), que seriam
papéis mais “aceitáveis” nesta construção de discurso de um político cassado injustamente,
que tenta provar sua inocência e retornar aos cargos oficiais de político, outrora ocupados.
No entanto, esta disputa entre ser um consultor ou um lobista só é relevante para o
entrevistado. Ele é o único dos três envolvidos neste momento da interação que faz questão de
manter a separação entre esses papéis, que, segundo ele, teriam implicações distintas. Para os
dois entrevistadores não é relevante o nome atribuído ao papel, mas sim a atribuição das ações
desempenhadas pelo entrevistado ocupando este papel, seja consultor ou lobista.
Nota-se que após essa disputa inicial entre Marília Gabriela e José Dirceu, o
jornalista Paulo Moreira Leite reintroduz a questão da ocupação de Dirceu, após a perda de
82
seus mandatos políticos, por outra perspectiva: utiliza uma suposta preocupação das pessoas
que se identificam com a história política do entrevistado e se perguntam como o zé dirceu
ganha a vida? (l.279). Este turno do jornalista é estratégico; é uma forma de atribuir o peso da
pergunta desafiadora a outra fonte, como se o jornalista fosse apenas o animador
(GOFFMAN, [1979] 1998) e não o autor (op.cit.) deste pronunciamento. Como destaca
Clayman (1988), atribuir declarações a uma terceira parte é uma estratégia do entrevistador
para apresentar seu ponto de vista como se não fosse de sua autoria e, com isso, afastar-se
pessoalmente de endossar a opinião que apresenta. Contudo, “o entrevistado e os outros
ouvintes podem suspeitar que o entrevistador de fato concorda (ou discorda) com o que
reporta, porém o entrevistador não fornece bases sólidas para apoiar tal suspeita”
(CLAYMAN, 1988, p.484).
Na pergunta como o zé dirceu ganha a vida? (l.279), assim como na sequência dos
turnos, está implícita a posição ilegal atribuída ao papel que ocupa Dirceu. Ao afirmar que as
pessoas não sabem quais [são] os seus clientes (l.288) e você não é um consultor, você tem
uma biografia e de repente ela está diferente, estranha (l.295-297), o jornalista reforça uma
suspeição sobre as ações do entrevistado nesse papel, não importando o nome atribuído, seja o
de lobista, seja o de consultor. O que importa é que é atribuída a Dirceu a posição
“privilegiado” neste papel que ele reivindica: mas você é um consultor privilegiado (l.300);
você ainda é um homem influente neste partido e neste poder (l.311). Desta posição, como é
possível fazer lobi tendo essa influência? (l.314-315), quer dizer, um político influente como
José Dirceu que possui informações privilegiadas do governo não pode fazer consultoria e
muito menos lobi.
Os papéis manifestados neste excerto de análise podem ser considerados como
alguns dos múltiplos papéis que ocupa José Dirceu em sociedade. Destes múltiplos papéis, o
papel lobista/ consultor entra em conflito com o conjunto de papéis que Dirceu ocupa como
político. No papel de político, seja na posição de cassado ou em atividade, Dirceu encontra
problemas em exercer certos papéis profissionais, como prestar consultoria por exemplo, já
que possui informações privilegiadas do centro do poder do país, considerando que o PT
ocupa o cargo mais importante do governo. Veja no excerto abaixo como dentre múltiplos
papéis sociais apresentados por José Dirceu, entre as linhas 467 a 472, ainda nesta discussão
sobre ter informações privilegiadas, só o papel chefe da casa civil, na linha 473, mencionado
por Augusto Nunes, entra em conflito com o papel de consultor no ponto de vista dos
entrevistadores – Marília Gabriela, Augusto Nunes e Paulo Moreira Leite. Dirceu associa seu
trabalho de consultoria à sua experiência de quarenta anos de vida (l. 464-465) em distintos
83
trabalhos exercidos, porém, nenhum deles é relevante ao questionamento dos entrevistadores,
apenas seu papel de Ministro que é associado a esse conjunto de papéis do entrevistado:
Excerto (5)
Entrevista José Dirceu
Bloco III
461 Marília
Gabriela
você conhece a consultoria. você tem informações privilegiadas!
462 José
Dirceu
não. [ informações que]
463 Marília
Gabriela
[frequentando esse] governo, nos seus intestinos.
464
465
466
467
468
469
470
José
Dirceu
eu tenho informações na minha experiência de quarenta anos de
vida. porque eu leio, estudo trabalho, pesquiso, por isso que eu
tenho informações. porque eu estudei. porque eu trabalhei
quarenta anos. trabalhei de office-boy almoxarifado arquivista.
depois fui chefe de escritório,depois fui assessor jurídico.
depois trabalhei como empresário- como pequeno empresário de
confecção. depois trabalhei como=
471 Marília
Gabriela
=eu sei zé de tudo isso.
472 José
Dirceu
advoguei durante todo o tempo. eu tenho experiência.
473 Augusto
Nunes
e foi sobretudo chefe da casa civil.
474 José
Dirceu
mas não há nada que impeça que quem foi ministro-
475 Augusto
Nunes
nada?
476
477
José
Dirceu
ser consultor e advogado então, nenhum advogado que passou pelo
ministério da justiça poderia advogar.
478 Paulo
Moreira
é que você não é um ministro como os outros. essa é a questão!
É interessante notar nos excertos (4) e (5) acima, que, além da iminente tensão
envolvida no conjunto de papéis, os múltiplos papéis também podem ser fonte de conflito em
sua manifestação na atividade. Eles são usados nos exemplos para confrontar o entrevistado e
questioná-lo sobre uma suposta prática ilegal em suas ações. Com esta confrontação, os
entrevistadores não legitimam a posição de inocente, reivindicada pelo entrevistado, porque
mesmo não mais ocupando o cargo de Ministro, vale-se dessa posição de detentor
privilegiado de informações para exercer o cargo de consultor ou lobista.
84
Os múltiplos papéis, então, são manifestados nesta interação como uma estratégia
argumentativa de defesa, através da confrontação, de pontos de vista entre entrevistadores e
entrevistados. Nas outras entrevistas do corpus, há outros exemplos desta função dos
múltiplos papéis. É possível citar o excerto a seguir, retirado da entrevista com o Ministro da
Educação Paulo Renato Souza, em que a discussão sobre os custos da universidade pública,
sua eficiência e produtividade está em andamento nos turnos que antecedem o recorte abaixo.
O Ministro apresenta falhas no uso dos recursos destinados às universidades e se refere à
dificuldade da universidade em aceitar mudanças, às quais, segundo os entrevistadores, são
impostas via Ministério e não discutidas em conjunto com os colegiados. Participam deste
excerto os entrevistadores Brasilis Salles e Monica Teixeira, além do Ministro Paulo Renato:
Excerto (6)
Entrevista Paulo Renato Souza
Bloco II
178
179
180
181
182
Brasilis
Salles
ministro, o senhor se entusiasmou muito com a sua- com o projeto
de obter continuidade redução de custos, eficiência na
universidade etc. e:: vamos dizer, ajustar
((gesto com as mãos indicando aspas))
a universidade, essa eu acho que é a linguagem que tem sido o
tom do ministério [desde o início]
183 Ministro [não é ajustar,] não é?
184 Brasilis
Salles
é:: mas parece ajustar.
185 Ministro
não é não.
186 Brasilis
Salles
ministro parece o ministro da [fazenda da educação, mas]
187
188
Ministro [não senhor. hhh não não]
não senhor, não não [ não hhh ]
189 Brasilis
Salles
[hhh deixa] eu terminar a pergunta hhh
190 Ministro não. não. tudo bem, termina aí hhh
191
192
200
201
202
203
204
205
206
Brasilis
Salles
o que me parece é que esse tipo de linguagem é que, e:: vamos
dizer, tem caracterizado muito o ministério, [...]
e me parece sempre que a:: tá se tentando punir o ineficiente,
tentando evitar que, a:: vamos dizer, a universidade e:: que as
universidades não trabalhem. eu não sou contra aqui que que não-
que se cuide disso. obviamente a universidade tem que ser
eficiente, etc. mas falta um projeto uma espécie de utopia
educacional que permita que o ministro da educação seja o líder
da mudança ao invés de ser aquele que impõe a mudança.
207 Ministro a:: [ e:: ]
208
209
210
Monica
Teixeira
[eu só] queria fazer a colocação de um telespectador aqui
que fica perfeitamente cabível. é carlos verge, que pergunta “se
o ministro fosse presidente da república- se o senhor fosse
85
211
212
presidente da república convidaria um economista para o
ministério da educação?”
((risos de todos))
213
214
215
216
Ministro hhh se fosse um economista como eu convidaria, porque- bem, eu,
eu tô nessa questão da educação há muito tempo. eu fui
secretário da educação em são paulo, eu fui reitor da melhor
universidade brasileira do brasil[tá certo?]
217 Monica
Teixeira
[as outras] vão ficar nervosas
218 Ministro e agora sou ministro da educação=
219 Monica
Teixeira
=foi só uma brincadeira por causa do ajuste.
220
221
222
223
224
Ministro tá bom. vamo lá (0,2) sabe quanto aumentou o orçamento da
universidade pública brasileira nos últimos qua- cinco anos?
vinte e oito por cento, não é? isso não é ajuste. nós estamos
agora a:: o que, o que aconteceu? as verbas hoje são dirigidas
com mais critério
No excerto (6), os entrevistadores posicionam o entrevistado em seu papel de
Ministro da Educação, porém preocupado com questões financeiras referentes à universidade
e não necessariamente preocupado com a qualidade do ensino, que teoricamente deveria ser a
meta principal de um Ministro da Educação. Este posicionamento é marcado pela atribuição
do papel de economista representado pela pergunta se o senhor fosse presidente da república
convidaria um economista para o ministério da educação? (l.210-212). Paulo Renato
reconhece este posicionamento e tenta se evadir dele, através de risos (l.187-188; 190; 213) e
da apresentação de outros papéis (l. 214-216), como Secretário da Educação e Reitor, na
tentativa de justificar o porque dele poder ocupar o cargo de Ministro da Educação (l.218),
embora seja um economista.
O papel de economista do entrevistado é trazido à interação como uma forma de
oposição ao ponto de vista que é defendido pelo papel de Ministro da Educação que também
ocupa Paulo Renato, dentre seus múltiplos papéis. Há uma crítica embutida na atuação
concomitante desses papéis, já que de acordo com o discurso do entrevistado, o seu papel de
economista, preocupado com dados financeiros, parece se sobrepor ao papel que de fato ele
ocupa no governo que é o de Ministro da Educação.
Além desta função que os múltiplos papéis do entrevistado desempenham na
interação, a de confrontar pontos de vista distintos, também é possível encontrar a
manifestação desses papéis como estratégia de evasão a perguntas desafiadoras realizadas
pelos entrevistadores. Há o que podemos chamar de uma troca de papel entre o papel
posicionado pelo entrevistador e o papel reivindicado pelo entrevistado ao responder, quando
86
este avalia a pergunta como desafiadora ao papel que ele ocupa. No excerto analisado na
subseção 4.1.1, em que o Ministro da Saúde José Gomes Temporão é questionado sobre seu
ponto de vista em relação ao aborto, a partir de uma comparação entre o feto e os filhotes de
tartaruga, o entrevistado se evade de uma resposta direta utilizando alguns de seus múltiplos
papéis como justificativa:
Excerto (7)
Entrevista José Gomes Temporão
Bloco III
184
185
Reinaldo
Azevedo
o senhor não acha que os fetos brasileiros têm direito a pelo
menos a mesma lei que têm as tartarugas?
186
187
Ministro eu acho que as mulheres brasileiras que estão vivas
merecem o direito à vida=
188 Reinaldo
Azevedo
=e os fetos não?
189
190
191
192
Ministro eu defendo a vida. eu tenho quatro filhos.
sou de formação católica. sempre defendi e sempre vou continuar
defendendo (0,2) eu não posso fechar os olhos para a realidade
que eu expus aqui.
193
193
194
195
198
199
Paulo
Markun
ministro, eu vou fazer a pergunta de vários telespectadores que
eu acho que integram essa mesma questão de uma outra maneira,
eu diria que talvez mais competente do que a que meus colegas
estão tentando (0,2)
((apresenta os telespectadores))
[eles] questionam o seguinte- em caso de existir plebiscito, o
senhor vai votar a favor ou contra o aborto?
200
Ministro não sei! depende do debate=
201
202
203
Demétrio
Weber
=mas ministro, o senhor que levantou o debate (0,2)
a lei já existe, o código penal de 1940 está aí,
diz os casos que podem e os que não podem.
204
205
206
207
208
209
210
211
Ministro eu propus o debate (0,2) ou melhor, eu não propus o debate não!
na realidade, no começo eu respondi essa questão, isso me
impressiona muito. não fui eu que lancei essa questão. eu fui
usado na realidade, para que essa questão aparecesse. ela está
na cara de todo mundo. camelô no centro do rio de janeiro
vendendo medicamento. vende porque tem mercado (0,2)
as pessoas estão tomando, as mulheres estão usando, as mulheres
estão morrendo.
212
213
214
215
216
Reinaldo
Azevedo
ministro, eu que lhe dei os parabéns duas vezes,
vou brigar com o senhor agora (0,2)
o senhor é ministro da saúde. não pode dizer, como se fosse eu,
>que não sou nada< sou apenas um abelhudo, que estão vendendo
cytotec imagino, no rio de janeiro.
217 Ministro isso é uma questão de polícia=
218 Reinaldo
Azevedo
=é questão de governo, de política pública.
219
220
221
Ministro mas no caso específico é uma infração grave à lei!
polícia. as pessoas estão comprando pela internet (0,2)
como você controla? é outro problema.
87
No excerto (7) acima, o entrevistado se apresenta nos papéis de pai e católico (l.189-
190) para justificar sua posição de defesa à vida. Contudo, as perguntas são direcionadas ao
papel de Ministro da Saúde, uma vez que os pontos de vista do pai e do católico não são
relevantes à questão da legalização do aborto. Como Ministro da Saúde, essas perguntas são
de difícil resposta, pois cobram um ponto de vista do entrevistado que é sensível ao papel que
ele ocupa como representante do governo. Qualquer resposta, seja afirmativa ou negativa,
atinge a grupos distintos da sociedade, sendo favoráveis a uns e desfavoráveis a outros, não só
politicamente, mas também a esferas religiosas e médicas, o que torna essas perguntas (l. 184-
185; 188; 198-199) extremamente desafiadoras ao papel de Ministro da Saúde.
Ao reconhecer o aspecto desafiador destes três tipos de perguntas, o entrevistado
opta por evadir-se de uma resposta direta nos três casos. As respostas eu acho que as
mulheres brasileiras que estão vivas merecem o direito à vida (l.186-187) e não sei! depende
do debate (l. 200) são proferidas, ainda que de forma evasiva, a partir de seu papel de
Ministro, isto é, o entrevistado responde no papel que lhe é perguntado. Já a resposta eu
defendo a vida. eu tenho quatro filhos. sou de formação católica. sempre defendi e sempre
vou continuar defendendo, eu não posso fechar os olhos para a realidade que eu expus aqui
(189-192) é respondida a partir de outros papéis – pai e católico – como forma de fugir dessa
posição difícil em que ele é posicionado. O entrevistado ainda atribui responsabilidade a outro
papel que ele não exerce, o papel de policial, com a fala isso é uma questão de polícia (l.217),
nesta tentativa de fuga de uma cobrança de um ponto de vista mais direto. Esta troca de papel
como estratégia de evasão a perguntas desafiadoras é mais uma função manifestada dos
múltiplos papéis na entrevista.
Como discutido na subseção sobre os tópicos controversos (cf. 4.1.4), as perguntas
desafiadoras tendem a obter respostas evasivas do entrevistado, que escolhe esta opção de
resposta como forma de evitar um dano maior à sua posição na interação, a partir de temas
considerados polêmicos. Aliado a isso, observa-se agora que esta estratégia de evasão também
é realizada através das trocas de papel, dentre os múltiplos papéis sociais que o entrevistado
desempenha. Ele se evade destas questões assumindo outros papéis ao responder, uma vez
que o papel em que ele é questionado não lhe parece favorável a assumir um ponto de vista.
88
4.2.2. O papel de atividade e sua relação com o papel discursivo
Esta subseção tem o foco nas ações desempenhadas pelos entrevistadores da
atividade analisada, considerando a relação entrevistador-entrevistado da interação. As
edições de análise do programa Roda Viva apresentam uma média de seis entrevistadores por
edição do programa, como destacado no capítulo metodológico desta tese. Esses
entrevistadores, contudo, não exercem apenas este papel de atividade na interação. Em
diversos momentos, outros papéis de atividade são introduzidos e reintroduzidos no curso do
encontro.
Sarangi (2010, 2011) define o papel de atividade como aquele que é dependente do
tipo de atividade na qual o indivíduo está participando. Além de estar associado à atividade
em curso, caracterizando-a, este papel restringe os papéis discursivos desempenhados no
encontro. Segundo o autor, há uma relação intrínseca entre o papel de atividade e o papel
discursivo, sendo um dependente do outro. De fato, o papel discursivo é dependente também
do papel social, como defendem Sarangi e Slembrouck (1996) e Weizman (1996, 2006,
2008). Estes autores afirmam que o papel social é interconectado com o papel discursivo,
sendo este delimitado pelo papel social tornado relevante no encontro. Dessa forma, o papel
discursivo se inter-relaciona com os papéis sociais e de atividade dos participantes do
encontro, sendo suas ações restritas pela atividade em curso e pelos participantes envolvidos.
Como essa atividade de análise possui uma característica híbrida em sua formatação,
ela permite que diversos papéis de atividade sejam desempenhados no encontro. Dentre os
entrevistadores do programa, um, de cada edição, se apresenta também no papel de
apresentador. Na entrevista com José Dirceu, a apresentadora é a jornalista Marília Gabriela.
No programa com o Ministro da Educação, a apresentadora é a jornalista Monica Teixeira e
na entrevista com José Gomes temporão, o apresentador é o também jornalista Paulo Markun.
Em seus papéis de apresentadores, os três jornalistas desempenham papéis discursivos como
apresentar o entrevistado no início do encontro e situar o telespectador sobre os temas tratados
ao longo do programa. Vejamos esses papéis de apresentadores em andamento nos excertos
abaixo, retirados da entrevista com o Ministro da Saúde José Gomes Temporão e com o ex-
Ministro José Dirceu:
Excerto (1)
Entrevista José Gomes Temporão
Bloco I
89
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
14
15
Paulo
Markun
boa noite. ELE assumiu o ministério dizendo e deixando claro que
compraria duas brigas, acho que comprou três (0,5) evitar
interferências políticas na nomeação de auxiliares (0,2)
impedir o desvio de recursos da saúde para outras áreas e
terceiro,abrir um debate nacional sobre a polêmica questão do
aborto (0,5)responsável por um orçamento que é quase a metade de
todos os recursos do governo, ele comanda uma estrutura gigante
que carrega marcas de corrupção, de prestação ruim de serviços e
que tem dificuldades, não só de combater as velhas doenças como
também o desafio de combater as novas (0,5) o entrevistado desta
noite no roda viva é o médico josé gomes, temporão, novo ministro
da saúde (0,5) josé gomes temporão é um reconhecido especialista
em doenças infecciosas. a formação e a carreira na administração
pública pesaram na escolha de seu nome como ministro da saúde,
no segundo mandato do presidente Lula (0,5)
((vídeo com apresentação do entrevistado))
58
59
67
para entrevistar o ministro da saúde josé gomes temporão, nós
convidamos ((apresentação dos entrevistadores do programa))
boa noite ministro.
68 Ministro boa noite Paulo
69
70
71
72
Paulo
Markun
eu queria entender porque o senhor decidiu tomar a frente essa
discussão do aborto, >que não é uma discussão fácil< (0,5)
é uma forma de- digamos assim, desviar a atenção de outras
questões graves da saúde brasileira?
Excerto (2)
Entrevista José Dirceu
Bloco I
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
21
22
23
24
Marília
Gabriela
boa noite! no centro do roda viva de hoje claro a eleição
de dilma rousseff a presidência da república. .hh
primeira mulher eleita para governar o país, ela teve mais de
cinquenta e cinco milhões de votos e será nossa presidente pelos
próximos quatro anos .hh trouxemos esta noite ao programa
um de seus grandes eleitores (0.2)
o ex ministro da casa civil de lula jose dirceu .hh
ele participou da campanha de dilma agindo nos bastidores
sem aparecer muito, mas fazendo mui::to baru:lho quando aparecia
((josé dirceu levanta as sombrancelhas))
dirceu continua sendo uma grande influência no pt e está
aqui para analisar a vitória pra falar do futuro e pra dizer
qual será seu papel no governo dilma (0.2)
para entrevistá-lo, estão comigo hoje os jornalistas.
((apresentação dos entrevistadores))
pra começar. ahn:: muito obrigada pela presença ze dirceu
vou fazer um social rápido ANtes de chegar, a ao ao que importa
(0.5) você não ta prejudicado com essa entrevista hoje? não ta
de ressaca? comemorou[em ]
25 José
Dirceu
[hhh]
26 Marília
Gabriela
brasília °ontem° ou não?
90
Nos excertos acima, dois papéis de atividade de Marília Gabriela e Paulo Markun
estão em andamento na interação. Em um primeiro momento, o papel de apresentador ocupa o
turno inicial dos dois participantes. Como apresentadores, em uma fala direcionada ao
telespectador, eles desempenham o papel discursivo de apresentar o entrevistado e os temas
que serão abordados no programa, além de apresentar os outros componentes da mesa. No
excerto (1) esses papéis discursivos são observados entre as linhas 01 a 15 e 58 a 66, enquanto
no excerto (2), observamos essas apresentações entre as linhas 01 a 20.
No fim de seus turnos, os apresentadores se dirigem ao entrevistado saudando-o ((1)
l. 67; (2) l. 21) e realizando as primeiras perguntas do programa ((1) l. 69-72; (2) l. 23-26). O
ato de perguntar é uma tarefa que pertence ao papel de atividade do entrevistador, havendo
então, uma alteração no papel de atividade desempenhado no início do turno para o papel
desempenhado no fim do turno, isto é, de apresentador, os dois participantes passam a
entrevistadores, dando início de fato à entrevista propriamente dita.
Os apresentadores/ entrevistadores também acumulam outro papel na atividade que
lhes é característico: o papel de mediador do encontro, que os diferencia dos outros
entrevistadores do programa. Como mediador, diversos papéis discursivos são
desempenhados e geralmente em uma relação assimétrica de poder, em que o comando do
mediador orienta os outros participantes na interação. Nos excertos a seguir, apresento alguns
exemplos dos papéis discursivos desempenhados pelo papel de mediador na interação.
Excerto (3)
Entrevista José Dirceu
Bloco I
419
420
421
422
423
424
425
426
Guilherme
Fiuza
[não essa questão]
>as vezes eu vejo ela< um pouco mal colocada a questão
do mensalão porque é muito dificil a opinião pública trazer
simular uma corte fazer de novo esse processo.
o processo ta correndo, vai vir o julgamento .hh
o que mais me impressiona (0,2) nesse episodio (0,2)
é que você hoje >por exemplo< poderia ta sentado na
cadeira da dilma, ne? [começou]
427 Dirceu
[ genero]sidade tua
428
429
430
431
432
433
434
435
436
437
438
439
Guilherme
Fiuza
é, não- mas o que a gente sabe é o seguinte é:: é:: começou o
governo lula você foi fundamental (0,2) na criaçao dessa
candidatura lula na ideia do- você as vezes é apresentado como
radical. mas eu nao vejo como radical ne? quer dizer na
verdade a guinada moderada foi conduzida por voce naquela
epoca. o lula tinha dificuldades dentro do pt, tinha desgaste
da opinião publica (0,2) era o candidato que perdia ne? você
ajudou o lula a tornar palatável aquela vitoria .hh com toda a
negociação com a equipe econômica anterior que o paloci
participou e você também (0,2) um momento importante da
transição brasileira e assume aquele governo muito forte .hh
ne? legítimo, renovação etc. tinha todo o respaldo popular e
91
440
441
442
443
444
445
446
447
institucional, ne? (0,2) de repente começa a acontecer um
negocio que você deve ter uma visão crítica >em relação a isso
também< porque houve de FAto ne? um um desvio, um duto que
você chamou de ( ) duto ne? com contratos fictícios de
empresas estatais que iam parar nos cofres do partido ne?
>quer dizer< isso aconteceu e aconteceu de maneira sistemática
(0,2) eu gostaria de saber é:: é:: você tinha muito poder no
governo inclusive
448 Marília
Gabriela
guilherme a pergunta [por favor]
449
450
451
452
453
454
Guilherme
Fiuza
[conselhos] condições é:: é:: passavam
por você, a minha curiosidade é a seguinte vendo esse esse
desvio sistemático (0,2) havia uma doutrina de que o estado
precisa fortalecer o partido? houve vista grossa? houve
distração? porque que houve um grande desvio sistemático houve
ne? qual a tua avaliação disso?
Na abordagem do tema mensalão na entrevista com ex-Ministro José Dirceu,
destacado no excerto (3) acima, Marília Gabriela intervém no turno do entrevistador
Guilherme Fiuza, desempenhando seu papel de mediadora no encontro, cobrando dele a
pergunta para o entrevistado: guilherme a pergunta por favor (l.448). A sua cobrança se deve
ao fato de que o tempo de fala do jornalista é muito grande, sem nenhuma insinuação de
pergunta. Guilherme Fiuza parece não desempenhar seu papel de entrevistador, pois não
cobra um ponto de vista do entrevistado e nem lhe faz uma pergunta, o que é cobrado pela
mediadora do encontro.
Parece haver, então, um tempo máximo em que é permitido ao entrevistador
fundamentar sua pergunta antes de produzi-la. A mediadora, nas obrigações que acarretam
seu papel, avalia as considerações iniciais do entrevistador como suficientes para sua
fundamentação e a partir desta avaliação, o interrompe cobrando-lhe a pergunta.
Ao cobrar que o papel de entrevistador seja desempenhado pelo jornalista, Marília
Gabriela, como mediadora, orienta os papéis em jogo na interação, determinando o que deve
ser seguido em uma relação assimétrica de poder no discurso entre os papéis de atividade: por
um lado, o papel de atividade de mediadora que desempenha Marília Gabriela e por outro
lado, o papel de entrevistador que manifesta – ou deveria manifestar neste momento da
interação – Guilherme Fiuza, ambos ocupando ainda o papel social de jornalista no encontro.
Em outro trecho da entrevista, observamos também esse papel de mediador como gerenciador
das ações que se seguem:
92
Excerto (4)
Entrevista José Dirceu
Bloco I
682
683
684
685
686
687
688
689
690
José
Dirceu
primeiro eu vou me defender no supremo tribunal federal
(0,2) isso eu to fazendo certo? e vou me defender na sociedade
se for necessário ate o julgamento °ne°? eu prefiro não fazê-lo
desde que o julgamento nao seja político seja um julgamento
(0,2) jurídico se transformar numa luta política contra mim,
vou ter que me defender no pais nao que o supremo FAça eu digo
que as forças políticas de oposição queiram transformar agora
o meu julgamento ou no terceiro turno da eleiçao ou na- pra me
condenar por razões [políticas ne?]
691
692
Sergio
Liro
[eu- eu- eu ] queria perguntar isso
[pra voce ]
693
694
695
Marília
Gabriela
[pera um pou]quinho só.
vamos terminar esse bloco e assim que voltar você é o primeiro
a perguntar ta bom [sergio?]
696 Sergio
Liro
[certo ]
697
698
Marilia
Gabriela
então terminando o primeiro bloco do roda viva com
o ex-ministro jose dirceu e voltamos em seguida. até já
O excerto (4) inicia com o turno do entrevistado José Dirceu respondendo a uma
pergunta anterior sobre seus planos de pedir anistia ao congresso para ter de volta seus
direitos políticos outrora perdidos. Em uma fala sobreposta à fala do entrevistado, o
entrevistador Sergio Liro inicia seu turno com a intenção de realizar uma pergunta (l.691-
692). No entanto, Marília Gabriela o interrompe, na linha 693, também em uma sobreposição,
desempenhando seu papel de mediadora do encontro dando por encerrado o bloco do
programa (l. 693 a 695). O entrevistador segue o comando da mediadora e não completa sua
pergunta, para no fim do excerto, Marília Gabriela, já em seu papel de apresentadora do
programa, em um processo dinâmico de trocas de papel na interação, se dirigir ao
telespectador e atualizá-lo sobre o término do bloco e o entrevistado da semana (l.697-698).
Os comandos relativos aos dois papéis de atividade desempenhados por Marília Gabriela não
são contestados pelos outros participantes, o que demonstra a situação hierárquica destes
papéis frente ao papel de entrevistador no encontro.
Os papéis de mediador e apresentador, portanto, são papéis de atividade que
assumem em uma escala de poder de fala e de ações no discurso, um nível alto, se comparado
com o papel de atividade do entrevistador e, inclusive, do entrevistado. Como o papel do
93
mediador realiza funções como controlar o tempo, direcionando os temas a serem
questionados entre os blocos dentro de uma agenda tópica previamente estabelecida, este
papel determina as etapas que serão seguidas no programa e, por conseguinte, possui tarefas
discursivas que se apresentam com prioridades mais visíveis que as outras tarefas imputadas
aos outros papéis de atividade.
Além desses papéis de atividade manifestados na interação, o papel de debatedor é
outro papel que surge no curso da entrevista que, inclusive, permite caracterizá-la como uma
atividade híbrida, uma entrevista-debate. Em diversos momentos das entrevistas, há
sequências de disputas de pontos de vista entre entrevistadores e entrevistados, como
analisado nas seções e subseções anteriores. Quando, por exemplo, o jornalista Reinaldo
Azevedo apresenta seu ponto de vista desfavorável ao aborto, afirmando que “há falta de
governo” em relação à venda de medicamentos abortivos por ambulantes no Rio de Janeiro,
ele se posiciona como alguém contrário à política em vigor, que é representada pela presença
do Ministro da Saúde, iniciando assim uma sequência de disputa de pontos de vista. Nessas
sequências, o papel de atividade do entrevistador é substituído pelo papel de debatedor, que
desempenha o papel discursivo de apresentar seu ponto de vista, declaradamente oposto ao
ponto de vista do entrevistado, dando o aspecto debate, característico desta atividade.
Outro exemplo dessa presença do papel de atividade nos dados que vem a ratificar
essa transferência entre o papel de entrevistador e o papel de debatedor é o extraído da
entrevista com o Ministro da Educação Paulo Renato Souza. No excerto (5), a seguir, o
Ministro apresenta um dado sobre o suposto mau uso da verba destinada à universidade
pública, o que é contestado na sequência pelos entrevistadores/debatedores:
Excerto (5)
Entrevista Paulo Renato Souza
Bloco II
225
226
227
228
229
Ministro eu fui à universidade federal de viçosa em noventa e seis
inaugurar uma biblioteca. dentro da biblioteca tinha um
elevador panorâmico. eu te pergunto: pra que um elevador
panorâmico na- numa universidade pública? dentro da biblioteca,
em viçosa, onde não existe nenhum panorama pra ser visto.
230 Brasilis
Salles
[[ninguém aqui é contra
231 Marcos
Antonio
[[é com o dinheiro público?
232 Monica
Teixeira
[[mas a questão:: é que não é-
94
233
234
Ministro não mas acontecia isso brasílio acontecia isso.
quantos centros shopping centers foram construídos=
235
236
Marcos
Antonio
=mas tem universidade que não tem dinheiro pra pagar luz e água
também=
237
238
239
Fernando
Rosseti
=viçosa é a universidade que tem a maior renda- uma das
universidades que têm a maior renda de o:: convênios privados
[ de toda natureza ]
240
241
242
243
244
245
246
247
Ministro [sim mas esses recur]sos são recursos que estavam sendo- que
eram aqueles recursos que eram transferidos pra universidade e
eram e:: levados que ficava a:: digamos assim, a decisão de
fazer não é, o critério para investimento não era um critério
que passava sequer pelo conselho universitário. nós aumentamos
a verba de custeio e investimento para a universidade de cerca
de trezentos e trinta milhões pra seiscentos milhões por ano.
então=
248
249
250
Marcos
Antonio
=ministro, existe elevador panorâmico numa universidade
pública. também tem universidade pública que não tem dinheiro
pra pagar luz e água.
251 Ministro isso é- isso [eu diria que]
252
253
Marcos
Antonio
[Quer dizer ] tem a anedota e tem a tragédia
também
No excerto (5), a informação dada pelo Ministro sobre a existência de um elevador
panorâmico em uma universidade pública, como argumento de defesa do mau uso da verba
universitária, é ponto de discussão entre os participantes do programa. Note que a partir da
fala do Ministro (l.225-229), três participantes iniciam o turno ao mesmo tempo (l. 230-232),
em resposta a este argumento apresentado. Desses três participantes, o Marcos Antônio é
quem desempenha o papel de entrevistador realizando a pergunta é com o dinheiro público?
(l.231), que é desafiadora ao entrevistado porque sugere uma incerteza em relação à
informação dada. Essa incerteza é ratificada na fala de Fernando Rosseti: viçosa é uma das
universidades que têm a maior renda de convênios privados de toda natureza (l.237-239), ou
seja, tem certeza que esse elevador foi construído com o dinheiro público? Este turno de
Marcos Antonio e o de Fernando Rosseti são realizados a partir de papéis de atividades
distintos. Enquanto Marcos Antonio desempenha o papel de entrevistador, proferindo uma
pergunta, Fernando Rosseti desempenha o papel de debatedor, contestando a informação dada
pelo Ministro sobre a Universidade Federal de Viçosa.
Na sequência do excerto, o papel de entrevistador que desempenha Marcos Antonio é
substituído pelo seu papel de debatedor ao contestar também o argumento do entrevistado.
Nos três turnos que se seguem, Marcos Antonio apresenta seu ponto de vista através de uma
informação que contesta o ponto de vista do Ministro: mas tem universidade que não tem
95
dinheiro para pagar luz e água também (l.235-236 e 248-250). Marcos Antonio apresenta o
outro lado nesta discussão do uso da verba universitária: ao mesmo tempo em que há uma
universidade com elevador panorâmico, há também universidades sem condições básicas de
funcionamento; há a anedota e tem a tragédia também (l.252-253). Esse ponto de vista
argumenta diretamente com o teor da informação dada pelo Ministro Paulo Renato.
Essa dinamicidade entre os papéis de atividade do entrevistador e do debatedor dão o
teor híbrido desta atividade, que é direcionada a uma audiência específica: o telespectador.
Como um participante oficial do encontro – um ouvinte ratificado (GOFFMAN, [1979] 1998;
1981) –, o telespectador também assume um papel nesta atividade, orientando a conduta
interacional dos participantes envolvidos no programa. Como afirma Heritage (1985, p.112) e
Tolson (2006, p.10-11), as entrevistas televisivas são produzidas para uma audiência, o que
faz com que os entrevistadores não se considerem os endereçados únicos da fala dos
entrevistados, assim como os entrevistados sabem que falam para duas audiências, não só para
um coparticipante imediato, mas também para uma audiência invisível.
Para exemplificar este papel do telespectador no direcionamento das ações
discursivas dos participantes dos dados, recorro à entrevista com o ex-Ministro José Dirceu,
que se mostra, em diversos momentos, preocupado com a opinião do telespectador. No
excerto abaixo, Dirceu contesta a atribuição dada a ele pelo jornalista Augusto Nunes, sobre a
ameaça de uma agressão na campanha do ex-governador Mario Covas:
Excerto (6)
Entrevista José Dirceu
Bloco II 128
129
Augusto você disse na campanha do mário covas “eles precisam
apanhar [ na RUA e na urna”, tá gravado ]
130
131
Dirceu [não eu não disse na campanha do]
mário covas [ nada disso]
132 Augusto [tá gravado!]
133
134
Dirceu mas não é isso o que você está dizendo.
que aí o teles[pectador vai achar que-]
135 Augusto
[ mas como dirceu? ]
136 Dirceu estava numa assembleia de professores-
137 Augusto
quem era que vai- que deveria apanhar?
138 Dirceu de uma entidade (0,2)
139 Augusto nós?
140
141
Dirceu o:: (0,2) eu usei a expressão apanhar, como posso usar outra
como vencer e derrotar.
96
Dirceu refuta a frase atribuída a ele, entre as linhas 128 e 129, preocupado com o
julgamento que faria o telespectador sobre esta ameaça de agressão: que aí o telespectador vai
achar que (l.134). Em outro momento, nova menção ao telespectador, na contestação da
atribuição do papel de lobista, que possui “caráter pejorativo e quase criminoso” (cf, excerto
(4), subseção 4.2.1):
Excerto (7)
Entrevista José Dirceu
Bloco III
311 Marília mas você ainda é um homem influente nesse partido e neste poder
312
313
Dirceu eu sou influente? não tenho nenhuma
[incompatibilidade com]
314
315
Marília
[então como você pode] fazer
[ lobi tendo essa influência? ]
316
317
Dirceu [eu não faço lobi! você que tá] dizendo que eu faço
[eu não faço lobi]
318 Marília
[ OH MEU DEUS ], faz o QUE então?
319 Dirceu faço consultoria!
320 Marília
consultoria que seja
321
322
Dirceu NÃO NÃO. que seja não. você sabe. vou repetir marília gabriela,
porque isso é grave[vou repetir]
323 Marília
[não, mas eu] to falando de um lado bom
324 Dirceu lobi para o telespectador significa outra coisa
325 Marília
pô, mas então você tá desmentindo isso para o telespectador
326 Dirceu além de cassado eu sou advogado. exerço minha profissão.
Fica claro nos dois excertos acima que o entrevistado reconhece a presença do
telespectador atuando na atividade, como um participante capaz de julgar as posições
assumidas pelo entrevistado diante de fatos ocorridos. Isto significa que as posições que
colocam em risco sua imagem de um político inocente, cassado injustamente, são
veementemente refutadas. Assumir o papel de lobista, que realiza tráfico de influência, e de
um político que ameaça fisicamente seus oponentes não contribui para como essa posição de
inocente assumida. Como à época do programa, Dirceu estava à espera do julgamento, era
primordial estabelecer um vínculo positivo com a opinião pública, sendo o telespectador o
alvo perfeito para sua defesa e reconstrução de imagem.
97
Dentre os papéis de atividade dos participantes do programa, o papel do apresentador
é o que estabelece a relação direta com o telespectador, através de papéis discursivos como
apresentar o entrevistado e o tema, saudar e despedir-se do telespectador, anunciar o
encerramento de bloco - voltamos já; não saia daí; até já. É através da manifestação desse
papel que o telespectador se torna um participante endereçado do encontro, um ouvinte
ratificado, “embora não possa assumir o papel de falante” (GOFFMAN, 1981, p.234), sendo
não apenas o alvo (LEVINSON, 1988) do discurso, como ocorre na fala de reconhecimento
dos entrevistados (excertos 6 e 7), mas também como aquele que está ativo no encontro,
aquele que participa das ações discursivas que circundam e alimentam este papel de atividade.
Além do reconhecimento da presença do telespectador e seu endereçamento na fala
do apresentador, outro ponto reforça o papel relevante que desempenha o telespectador na
atividade: a sua transposição do campo “invisível” ao campo presencial, desempenhando o
papel discursivo de realizar uma pergunta ao entrevistado. No excerto abaixo, a apresentadora
interrompe o Ministro Paulo Renato Souza para introduzir no discurso uma pergunta realizada
por um telespectador:
Excerto (8)
Entrevista Paulo Renato Souza
Bloco II
208
209
210
211
212
Monica
Teixeira
[eu só] queria fazer a colocação de um telespectador aqui
que fica perfeitamente cabível. é carlos verge, que pergunta “se
o ministro fosse presidente da república- se o senhor fosse
presidente da república convidaria um economista para o
ministério da educação?”
((risos de todos))
No excerto acima, o telespectador assume o papel de atividade de entrevistador,
desempenhando o papel discursivo de realizar uma pergunta. Contudo, esses dois papéis
manifestados são dependentes da voz do outro, pois não podem atuar de forma presencial, isto
é, para que o telespectador atue como entrevistador, se faz necessário que haja um animador
(GOFFMAN, [1979] 1998) para este papel discursivo de realizar uma pergunta, que no
excerto, compete à apresentadora Monica Teixeira.
98
5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS DE ANÁLISE
O capítulo de análise dos dados teve dois focos principais: o tipo de atividade e a
dinamicidade dos papéis e posições manifestos na interação. A partir dos resultados de
análise, apresento agora as questões mais relevantes, buscando unir os dois focos centrais, em
uma discussão orientada por uma perspectiva interacional em análise do discurso.
O programa Roda Viva é categorizado nesta tese como uma atividade híbrida, em
que dois padrões interacionais ocorrem concomitantemente no fluxo da interação: o padrão
interacional pergunta-resposta e o padrão interacional apresentação de ponto de vista-
contestação do ponto de vista. A partir destes padrões interacionais, a atividade é definida
como uma entrevista-debate, em que diversos temas são discutidos entre os participantes do
programa.
Na caracterização da atividade híbrida, foram analisados quatro aspectos: (1) a
sequencialidade do par pergunta-reposta, (2) os formatos da pergunta, (3) os turnos sem
perguntas dos entrevistadores e (4) os tópicos controversos.
A análise dessas categorias permitiu obter resultados interessantes, como a
caracterização de três diferentes formatos de perguntas, associados a metas interacionais
distintas: (i) a meta de obter informação, com perguntas do tipo informacional; (ii) a meta de
desafiar o ponto de vista do entrevistado, com perguntas de aspecto desafiador e (iii) a meta
de obter informação ao mesmo tempo em que desafia o ponto de vista do entrevistado,
realizada através de perguntas denominadas do tipo mista. Esta terceira meta, que caracteriza
a natureza híbrida da atividade, ocorre em uma frequência muito superior nos dados: quase
60% do total de perguntas. Este resultado revela a estratégia interacional dos entrevistadores
que consiste em formular perguntas que lhes permite apresentar e cobrar pontos de vista, ao
mesmo tempo em que requer informação.
A ocorrência das perguntas do tipo mista também demonstra que as metas
interacionais não seguem um padrão pré-estabelecido de continuidade, isto é, a entrevista não
se inicia no formato tradicional da busca por informações, para em seguida desenvolver o
desafio a partir das informações coletadas. Esta ideia de continuo não se concretiza nos dados,
uma vez que as perguntas do tipo mista ocorrem em momentos diferentes do programa Roda
Viva: na entrevista com o ex-Ministro José Dirceu sua frequência maior de uso é centrada no
2º bloco; na entrevista com Paulo Renato Souza, sua maior ocorrência é no 3º bloco e na
entrevista com o Ministro José Gomes Temporão sua predominância é no 1º bloco, o que
99
significa que a entrevista já se inicia no formato híbrido de atividade no qual se alia o pedido
de informação à defesa de pontos de vista, muitas vezes contrários ao apresentado/defendido.
Estes três formatos de perguntas identificados nos dados são provenientes da análise
da sequencialidade interacional, em que se considera a resposta do entrevistado, ou seja, a
avaliação que este faz do conteúdo proposicional da pergunta. Essas respostas são capazes de
mudar o foco da pergunta seguinte. Geralmente, esta mudança parte de perguntas do tipo
informacional que, a partir do turno de resposta, levam a perguntas do tipo desafiador ou a
perguntas do tipo mista. As perguntas do tipo informacional geram estes movimentos, pois, os
entrevistadores as empregam, com frequência, com a meta de adquirir, em um primeiro
momento, uma informação do entrevistado, para em seguida usá-la a favor de seus
argumentos.
Desafiar o ponto de vista do entrevistado parece ser uma meta de grande destaque
nos turnos do entrevistador, uma vez que não só de perguntas este desafio é concretizado, mas
também, com turnos sem perguntas, turnos que são sustentados por pontos de vista,
frequentemente contrários aos defendidos/apresentados pelos entrevistados.
Os temas que norteiam a agenda tópica das entrevistas são usados como ferramentas
deste aspecto desafiador que perpassa a atividade, pois eles possibilitam a disputa de pontos
de vista, uma vez que são tópicos sensíveis ao entrevistado, devido a seu papel político na
vida pública. Os tópicos controversos geram as perguntas do tipo desafiador e desencadeiam a
disputa no curso da interação. Esses tópicos são identificáveis por serem marcados pela
relação entre a evasão na resposta dos entrevistados e a insistência dos entrevistadores nos
turnos em sequência.
Outro ponto interessante a ser destacado na análise sequencial da interação é o fato
da resposta do entrevistado acompanhar a meta interacional da pergunta. Quando a pergunta é
de teor desafiador, encontra uma resposta evasiva no turno seguinte e quando possui um
caráter informacional é respondida de forma direta pelo entrevistado. Essas respostas evasivas
surgem como uma estratégia de desvio de questionamentos, considerados pelo entrevistado
como desafiadores à posição assumida, seja em termos de pontos de vista ou em relação ao
seu papel como representante do governo ou de partidos políticos ligados ao governo. Esta
estratégia de fuga de perguntas sobre temas polêmicos fortalece a disputa de pontos de vista
no decorrer da entrevista, fortalecendo o caráter híbrido da atividade.
A suposição de que a característica híbrida da atividade permite que diversos papéis
sejam negociados entre os participantes é confirmada com os resultados da análise, em que os
papéis sociais manifestados pelos entrevistados e os papéis de atividade desempenhados pelos
100
entrevistadores, atuam em uma movimentação constante na interação, apresentando-se de
forma dinâmica e muitas vezes proposital na escolha do papel manifestado, para a defesa de
pontos de vista.
Nesta dinamicidade de papéis, o entrevistado reivindica, refuta ou legitima papéis
sociais e/ou posições que lhe permitam defender seu ponto de vista ou mitigar uma ameaça a
essa defesa. O ex-Ministro José Dirceu, por exemplo, reivindica a posição de inocente no
papel de político cassado, refuta o papel de lobista e legitima o papel de membro da direção
nacional do Partido dos Trabalhadores. Dirceu refuta todos os papéis e posições atribuídas a
ele que ferem essa posição de inocente que ele manifesta. De forma semelhante, o Ministro
José Gomes Temporão recorre ao papel de pai e católico para mitigar a posição que lhe é
cobrada como o representante do governo que defende a descriminalização do aborto.
Portanto, os papéis sociais manifestados na atividade servem a metas interacionais
específicas, que variam de acordo com o propósito do entrevistado e do entrevistador nas
atribuições dadas. Propósito este que circunda a disputa pelos pontos de vista em negociação
na atividade.
Outro resultado interessante na evidenciação dos papéis sociais é que além da
iminente tensão envolvida no conjunto de papéis, como aponta a literatura sobre o assunto
(MERTON, 1957, 1968; SARANGI, 2010, 2011a, 2011b), os múltiplos papéis também
podem ser fonte de conflito em sua manifestação na atividade.
O conjunto de papéis entra em conflito quando certas ações de um papel associado a
esse conjunto podem ser realizadas, enquanto outras não são possíveis. No caso de José
Dirceu, atuar na campanha eleitoral como membro de partido é possível na posição de
cassado do papel de político, mas ocupar um cargo no governo não é possível nesta posição.
Nos papéis associados aos múltiplos papéis, a tensão é visível, quando, por exemplo, o
desempenho dos papéis de lobista e/ou consultor entram em conflito com os papéis de
ministro e/ou ex-ministro, pois a estes papéis é atribuído o conhecimento de informações
privilegiadas, o que impede a atuação como consultor e/ou lobista.
A manifestação conflituosa dos múltiplos papéis possui duas funções nos dados: (1)
é usada como estratégia argumentativa de defesa, através da confrontação de pontos de vista
entre entrevistadores e entrevistados, como no exemplo citado acima entre ser lobista ou
consultor; e (2) usada como estratégia de evasão a perguntas desafiadoras, circundadas por
temas controversos. Nessa função, o entrevistado responde a partir de outro papel, o qual não
foi o atribuído na pergunta, com o objetivo de evadir-se de uma pergunta difícil de ser
respondida no papel atribuído. José Gomes Temporão, por exemplo, responde à pergunta
101
sobre o aborto (subseção 4.2.1, excerto (7)), nos papéis de pai e católico, em vez do papel de
Ministro da Saúde, ao qual a pergunta foi realizada. Esses múltiplos papéis, então, são
utilizados em uma movimentação de trocas de papel em prol dos argumentos dos participantes
envolvidos na atividade.
Na análise dos papéis de atividade, quatro papéis foram identificados, além do papel
do entrevistado: o entrevistador, o debatedor, o mediador e o apresentador. Os papéis de
entrevistador e debatedor dão o teor híbrido da atividade, pois se movimentam dinamicamente
na interação. Os papéis de mediador e apresentador são desempenhados por apenas um
participante em cada programa e desempenham papéis discursivos mais hierárquicos no
encontro, se comparados com os dois primeiros – entrevistador e debatedor – em uma relação
assimétrica de poder, em que seus comandos orientam os outros participantes. Além disso, o
papel de apresentador é o que estabelece uma relação direta com o telespectador, através de
papéis discursivos como apresentar o tema e o entrevistado, encerrar o bloco, dar boas-vindas
e despedir-se.
O último resultado que destaco da análise é o papel que desempenha o telespectador
na atividade, orientando a conduta dos participantes. Este papel é visualizado em três
situações: quando o entrevistado reconhece a presença do telespectador mitigando as ações
dos papéis/posicionamentos atribuídos a ele; quando o apresentador endereça sua fala ao
telespectador, no olhar da câmera; e quando ele é transportado à atividade, atuando no papel
de entrevistador, realizando perguntas que são lidas pelo apresentador. Com esta atuação,
posso ratificar que o telespectador é o alvo da atividade, por ser associada ao gênero
televisivo, e também é coparticipativo dela, sendo capaz de assumir papeis de atividade, ainda
que na voz de outro.
Apresento a seguir um resumo das categorias de papel e posições associadas,
encontradas nos dados, em quadros sinópticos, por entrevista, que dá mostras da análise aqui
realizada:
102
5.1. Quadros sinópticos: entrevista Paulo Renato Souza
Nessa seção e nas duas que se seguem (5.2 e 5.3) apresento em quadros sinópticos os
papéis sociais dos entrevistados e as posições associadas a esses papéis, manifestados no
curso das interações analisadas. O último quadro da seção é dedicado aos papéis de atividade
e discursivos desempenhados pelos entrevistadores nos encontros observados.
Os dois quadros abaixo retratam os papéis sociais que o Ministro Paulo Renato
Souza reivindica no encontro e aqueles que são atribuídos a ele pelos entrevistadores27
, sendo
refutados e/ou legitimados:
Papel social do entrevistado:
Quadro 1: papéis reivindicados
REIVINDICADO
Ministro da Educação
Economista
Reitor
Secretário da Educação
de SP
Professor
Quadro 2: papéis atribuídos
Dos cinco papéis reivindicados pelo Ministro, apenas dois são mencionados pelos
entrevistadores e legitimados pelo entrevistado. Os papéis de Reitor, Secretário da Educação
de São Paulo e professor são manifestados por Paulo Renato como estratégia de defesa de
seus argumentos de valorização da Educação no país.
27
Considero aqui a relação entrevistador-entrevistado, não considerando os outros papéis de atividade que este
entrevistador desempenha nos dados. Esta consideração é aplicada ao último quadro.
ATRIBUÍDO REFUTADO LEGITIMADO
Ministro da Educação Não Sim
Economista Não Sim
103
Quadro 3: posições associadas ao papel social do entrevistado
PAPEL SOCIAL AUTOPOSICIONAMENTOS POSICIONAMENTOS
ATRIBUÍDOS
Ministro da Educação Participante de um governo que
investe na Educação do Ensino
Fundamental, Médio e Superior
Inovador na criação de programas
bem sucedidos como o PROVÃO e
o FUNDEF
Atuação do Ministério na busca
pela produtividade universitária
Investimento na formação do
professor
Atribuição de atuação inovadora
no Ministério em relação ao
Ensino Fundamental
Falha do Ministério em prover
uma política educacional para
jovens evitando o desemprego
Falha em lidar com a
Universidade
Falha do governo em não dar
conta das fraudes em programas
como o FUNDEF
Falta uma política pública para o
incentivo do magistério
Economista A análise quantitativa sobre as
necessidades e ganhos da Educação
é importante para um melhor
investimento e direcionamento das
propostas
A atribuição de números se torna
mais importante que a qualidade
do ensino (“mais doutores que
melhores doutores”)
A questão financeira impede a
melhoria do ensino, em termos de
recursos destinados.
Reitor da UNICAMP
Administrador da melhor
universidade no país
Dificuldade em lidar com a
autonomia universitária
/
Secretário da Educação
de SP
/ /
Professor Conhecedor da dinâmica da sala de
aula da universidade e portanto apto
a lidar com ela
/
No quadro acima, apresento as posições associadas ao papel social do entrevistado.
Essas posições são manifestadas em autoposicionamentos e em posicionamentos atribuídos ao
Ministro. Note como nos dois papéis que coincidem como reivindicados e atribuídos –
Ministro da Educação e Economista – pelos participantes, os autoposicionamentos se
apresentam como favoráveis ao Ministério e ao próprio Ministro, como aquele que é inovador
na criação de programas bem sucedidos, enquanto os posicionamentos atribuídos são
referentes às falhas do Ministério, com exceção do primeiro posicionamento: atribuição de
atuação inovadora no Ministério em relação ao Ensino Fundamental. Ainda assim, esta
104
atribuição favorável é uma estratégia de contraposição de pontos de vista: no Ensino
Fundamental é inovador e no Ensino Médio e Superior?
No quadro abaixo é apresentado os papéis de atividade dos entrevistadores e seus
papéis discursivos desempenhados na interação:
Quadro 4: papel de atividade/ papel discursivo dos entrevistadores
PARTICIPANTES PAPEL DE ATIVIDADE PAPEL DISCURSIVO
Mônica Teixeira Apresentadora Apresenta o entrevistado
Apresenta os temas centrais da
entrevista, situando o telespectador
sobre o andamento do programa
Saúda e se despede do telespectador e
dos participantes da mesa
Comunica ao telespectador o
encerramento e início dos blocos
Mediadora
Controla o tempo de cada bloco,
encerrando-os quando chega ao fim
Interrompe turno para encerrar bloco
Entrevistadora
Introduz temas da agenda tópica
Realiza perguntas
Debatedora Argumenta, discordando de pontos de
vista
Interrompe turnos para argumentação
Fernando Rosseti
André Laos
Marcos Antônio
Brasilis Salles Junior
Guiomar Mello
Gilberto Nascimento
Entrevistador
Introduz temas da agenda tópica
Realiza perguntas
Debatedor
Argumenta, discordando de pontos de
vista
Interrompe turnos para argumentação
A participante Mônica Teixeira é quem atua em quatro papéis de atividade:
apresentadora, mediadora, entrevistadora e debatedora. É interessante notar que os papéis de
entrevistador e debatedor não possuem diferenças em seus papéis discursivos, ao comparar a
apresentadora Mônica Teixeira e os outros participantes.
105
5.2. Quadros sinópticos: entrevista José Gomes Temporão
O quadro abaixo apresenta seis papéis reivindicados pelo Ministro José Gomes
Temporão no curso da interação. Desses seis papéis, apenas os papéis de Ministro da Saúde e
médico sanitarista são atribuídos pelos entrevistadores:
Papel social do entrevistado:
Quadro 5: papéis reivindicados
REIVINDICADO
Ministro da Saúde
Médico Sanitarista
Pai
Católico
Cidadão
Professor da Fiocruz
Quadro 6: papéis atribuídos
O quadro a seguir expõe os autoposicionamentos e os posicionamentos atribuídos,
associados a esses papéis sociais:
Quadro 7: posições associadas ao papel social do entrevistado
PAPEL SOCIAL
AUTOPOSICIONAMENTOS POSICIONAMENTOS
ATRIBUÍDOS
Ministro da Saúde
Atuante na luta contra a Dengue
Compromissado com a escolha do
Ministério: capacidade técnica dos
funcionários
Defensor da abertura do debate
sobre a descriminalização/
legalização do aborto
Conhecedor das dificuldades que
ainda precisa superar a política da
saúde brasileira
Atuação incompetente do
Ministério na prevenção das
questões reprodutivas, como
controle de natalidade, aborto e
fiscalização.
Falha do Ministério em prover
uma política de saúde pública
Atribuição de um governo que
não assume seus erros
ATRIBUÍDO REFUTADO LEGITIMADO
Ministro da Saúde Não Sim
Médico Sanitarista Não Sim
106
Médico Sanitarista
Visão privilegiada da saúde pública
brasileira
Conhecedor das doenças que
afetam as questões da saúde
brasileira e de seu
desenvolvimento
Cobrança de uma postura mais
eficaz no governo por exercer esse
papel
Pai Defensor da preservação da vida
/
Católico
Defensor da preservação da vida
/
Cidadão
Defensor da abertura do debate
sobre a descriminalização/
legalização do aborto
/
Professor da Fiocruz
Conhecedor do Ministério da Saúde
(afirma que este papel o levou até o
Ministério)
/
De forma semelhante ao que ocorre na entrevista com o Ministro da Educação, as
posições associadas ao papel de Ministro da Saúde, no quadro (7) acima, se apresentam em
oposição, em relação ao que é autoposicionado e ao que é atribuído: os autoposicionamentos
são favoráveis ao governo, enquanto as posições atribuídas apontam erros em cumprir
determinadas ações governamentais.
Quadro 8: papel de atividade/ papel discursivo dos entrevistadores
PARTICIPANTES PAPEL DE ATIVIDADE PAPEL DISCURSIVO
Paulo Markun Apresentador Apresenta o entrevistado
Apresenta os temas centrais da
entrevista, situando o telespectador
sobre o andamento do programa
Saúda e se despede do telespectador e
dos participantes da mesa
Comunica ao telespectador o
encerramento e início dos blocos
Mediador
Controla o tempo de cada bloco,
encerrando-os quando chega ao fim
Interrompe turno para corrigir
informações/ fatos apresentados pelos
outros entrevistadores
Interrompe turno para cobrar resposta
107
do entrevistado
Entrevistador
Introduz temas da agenda tópica
Realiza perguntas
Debatedor Argumenta, discordando de pontos de
vista
Cristiane Segatto
Demétrio Weber
Alexandre Machado
Reinaldo Azevedo
Laura Greenhalgh
Laura Capriglione
Entrevistador
Introduz temas da agenda tópica
Realiza perguntas
Debatedor
Argumenta, discordando de pontos de
vista
Interrompe turnos para argumentação
As ações discursivas que circundam os papéis de atividade e discursivos retratados
no quadro (8) são similares nas três entrevistas dos dados. Cabe, por exemplo, ao apresentador
apresentar o entrevistado, assim como cabe ao entrevistador realizar perguntas. Contudo,
nesta entrevista, o papel do mediador interrompe turnos para corrigir informações/ fatos
apresentados e cobrar respostas do entrevistado. Estes papéis discursivos são diferenciais na
comparação com os outros papéis de mediador que exercem os outros dois participantes nas
outras entrevistas que compõem o corpus.
5.3. Quadros sinópticos: entrevista José Dirceu
A quantidade de papéis sociais reivindicados e atribuídos na entrevista com o ex-
Ministro José Dirceu é maior que a manifestação desses papéis nas outras entrevistas do
corpus.
Papel social do entrevistado:
Quadro 9: papéis reivindicados
REIVINDICADO
Ex-Ministro da Casa
Civil
Ministro da Casa Civil
Deputado Estadual
Dirigente do PT
Presidente de Centro
Acadêmico
Deputado Federal
108
Cidadão
Consultor
Advogado
Quadro 10: papéis atribuídos
Alguns papéis sociais reivindicados no quadro (9), como Deputado Federal e
cidadão, não são mencionados pelos entrevistadores. De forma semelhante, nem todo papel
atribuído no quadro (10) é reivindicado pelo entrevistado. O papel atribuído de lobista é
refutado por José Dirceu e o papel de eleitor é ignorado pelo ex-Ministro, não o refutando e
nem o legitimando.
Quadro 11: posições associadas ao papel social do entrevistado
PAPEL SOCIAL
AUTOPOSICIONAMENTOS POSICIONAMENTOS
ATRIBUÍDOS
Ex-Ministro da Casa
Civil
Cassado injustamente
Inocente
Influente
Participativo das decisões de
governo
Ministro da Casa Civil Cassado injustamente
Inocente
Conhecedor das negociações de
governo
Responsável pelas articulações
políticas
Envolvimento no esquema de
corrupção
Decisivo nas ações do governo
Deputado Estadual Atuante na vida política do país /
Deputado Federal
Atuante na vida política do país /
ATRIBUÍDO REFUTADO LEGITIMADO
Ex-Ministro da Casa
Civil
Não Sim
Ministro da Casa Civil Não Sim
Eleitor Não Não
Membro do PT Não Sim
Lobista Sim Não
Consultor Não Sim
109
Dirigente do PT
Defensor das propostas do PT
Defensor de Dilma na eleição
presidencial
/
Membro do PT
Atuante na campanha presidencial
de Dilma
Influente
Polêmico
Presidente Centro
Acadêmico
Atuante na luta política contra a
ditadura
Experiência na política, com início
de carreira ainda jovem
/
Eleitor
/
O eleitor mais importante eleitor
de Dilma
Influência
Cidadão
Apresenta-se como alguém sem
influência, uma pessoa comum
/
Consultor
Preserva os clientes confidenciais
Tráfico de influência
Lobista
/ Tráfico de influência
Advogado /
/
De forma semelhante às outras entrevistas do corpus, os autoposicionamentos se
apresentam como favoráveis à pessoa de José Dirceu, em seus diversos papéis sociais
manifestados. Já os posicionamentos atribuídos se mostram em oposição a essa apresentação
favorável, inclusive a posição de influente não é vista como algo positivo ao papel
reivindicado pelo entrevistado.
O quadro (12) a seguir apresenta os papéis de atividade e discursivos manifestados
nesta entrevista:
Quadro 12: papel de atividade/ papel discursivo dos entrevistadores
PARTICIPANTES PAPEL DE ATIVIDADE PAPEL DISCURSIVO
Marília Gabriela Apresentadora Apresenta o entrevistado
Apresenta os temas centrais da
entrevista, situando o telespectador
sobre o andamento do programa
Saúda e se despede do telespectador e
dos participantes da mesa
Comunica ao telespectador o
110
encerramento e início dos blocos
Mediadora
Controla o tempo de cada bloco,
encerrando-os quando chega ao fim
Interrompe turno para encerrar o bloco
Interrompe turnos para alocar o turno a
outro participante
Interrompe turnos para organizar a
discussão, quando todos falam ao
mesmo tempo
Cobra a pergunta do entrevistado
quando este usa o turno com uma longa
sustentação
Entrevistadora
Introduz temas da agenda tópica
Realiza perguntas
Debatedora Argumenta, discordando de pontos de
vista
Interrompe turnos para argumentação
Introduz tema da agenda tópica como
contraposição de fatos e, por
conseguinte, de pontos de vista
Augusto Nunes
Paulo Moreira Leite
Guilherme Fiuza
Sergio Liro
Entrevistador
Introduz temas da agenda tópica
Realiza perguntas
Debatedor
Argumenta, discordando de pontos de
vista
Interrompe turnos para argumentação
Introduz tema da agenda tópica como
contraposição de fatos e, por
conseguinte, de pontos de vista
Os quadros sinópticos apresentados nesta seção, além de resumir as categorias de
papel e suas posições associadas, analisadas neste estudo, evidenciam também que há uma
estratégia interacional dos participantes que reflete nas atribuições de posições e nos
autoposicionamentos realizados. Todos os entrevistados se posicionaram positivamente em
relação ao desempenho de seus papéis sociais tornados relevantes. Já os entrevistadores
contestaram esse posicionamento, posicionando-os (entrevistados) em posições nem sempre
111
favoráveis ao papel reivindicado. Essa contestação reforça a situação de disputa por pontos de
vista que perpassa esse formato híbrido de entrevista-debate. A dinamicidade interacional de
papéis e posições corrobora a esta caracterização da atividade aqui analisada.
112
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo proposto para esta investigação era examinar como as atribuições e
reivindicações de papéis e posições são negociadas interacionalmente pelos participantes de
uma atividade híbrida, a qual rotulei uma entrevista-debate, recuperando o termo de
Emmertsen (2007). Buscando responder às perguntas de pesquisa, centradas na relação entre
papéis, posicionamentos e tipo de atividade, a análise dos dados evidenciou que essa relação
possui uma natureza interdependente que é coconstruída interacionalmente.
Com dois padrões interacionais atuando concomitantemente na interação, a atividade
se apresenta com um formato híbrido, no qual sequências de pares de pergunta-resposta são
intercaladas com as sequências de apresentação de ponto de vista-contestação do ponto de
vista.
Nos estudos realizados no campo das entrevistas de notícias (HERITAGE, 1985;
CLAYMAN, 1988, 1992, 2010; EMMERTSEN, 2007; EKSTRÖM e LUNDELL, 2009), o
hibridismo de atividade é identificado em painéis de entrevistas, em que dois ou mais
entrevistados disputam seus pontos de vista mediados por um entrevistador, que se utiliza de
perguntas desafiadoras para fazer com que as ideias entre os entrevistados se contraponham,
permanecendo o entrevistador como o mediador, e não como alguém que disputa tais ideias.
Nos dados desta tese, os entrevistadores participam da disputa de pontos de vista. São eles
quem contrapõe as ideias e questionam o entrevistado, valendo-se da assimetria de papéis –
entrevistador/ entrevistado – para atingir a meta interacional proposta.
Nos questionamentos dos entrevistadores, os papéis de entrevistador e debatedor
atuam em conjunto, uma vez que a própria pergunta tende a ser desafiadora e instigadora da
discussão em andamento. Atestei este fato com o levantamento dos tipos de pergunta, em que
o número de perguntas do tipo D (desafiadoras) e do tipo M (mistas, que possuem também o
desafio em sua constituição) equivale a quase 90% do total de perguntas. Logo, posso
concluir que perguntas que apenas requerem informação, seguindo o formato tradicional de
uma entrevista que possui a meta da coleta de informações, são escassas nos dados, não sendo
a meta interacional da atividade.
Um ponto que se relaciona aos papéis discursivos dos entrevistadores-debatedores é
o fato da não existência de uma estrutura previsível da organização da atividade, isto é, a
entrevista não se inicia no formato pergunta-resposta para chegar ao debate. A atividade já se
inicia no formato híbrido, em que perguntas tendem a ser desafiadoras e respostas tendem a
ocupar turnos de defesa de ponto de vista. Essa ausência de uma estrutura fixa é um ponto
113
diferencial na análise de dados, pois os estudos das atividades híbridas nas entrevistas de
notícias, geralmente, apresentam uma ordem fixa desses dois padrões interacionais, em que as
trocas de informações precedem o debate, que é desenvolvido ao longo do encontro.
Outro ponto que se associa aos papéis de atividade se refere à relação entre as
perguntas desafiadoras e a alternância entre os papéis de entrevistador e debatedor. A análise
mostra que o papel de atividade do debatedor é colocado em evidência, geralmente, após a
produção de respostas julgadas como não satisfatórias pelos entrevistadores, ou quando
emergem temas controversos que podem criar, para o entrevistado, algum tipo de dificuldade
em formular sua resposta. De forma inversa, as perguntas do tipo I (informacional) são
realizadas no papel de entrevistador - não há evidência da manifestação do papel de debatedor
em perguntas deste tipo - e tendem a ser respondidas diretamente pelo entrevistado, sem
dificuldades em posicionar-se. Portanto, posso afirmar que há uma relação intrínseca entre os
papéis de atividade e os tipos de pergunta. Os papéis se movimentam interacionalmente de
acordo com o tipo de pergunta que é realizado e, vice-versa, as perguntas geram a mudança
interacional dos papéis desempenhados.
Um tema que se mostrou relevante na análise, embora não fosse o foco principal, foi
a prática discursiva da evasão. Evadir-se de uma resposta tem como propósito, principalmente
no campo político (BAVELAS ET AL., 2008; COSTA, 2010), a fuga de uma cobrança de
ponto de vista que pode comprometer o papel social do entrevistado, tornado relevante na
interação. Nos dados de análise, este mesmo propósito foi observado: os entrevistados se
evadem de perguntas comprometedoras ao seu papel de Ministro e/ou ex-Ministro. Porém,
esta prática discursiva é associada nos dados, ao desempenho dos múltiplos papéis do
entrevistado. Diante de uma pergunta comprometedora, o entrevistado escolhe responder
posicionando-se em outro papel, a partir do qual, tal resposta pode ser enquadrada como
menos ameaçadora. Ocorre uma troca de papel proposital, dentre os múltiplos papéis do
entrevistado. Ele é questionado a partir de um papel, mas responde, evadindo-se, a partir de
outro papel. Esse é o caso, por exemplo, do Ministro José Gomes Temporão que se evade de
todas as perguntas que lhe cobram diretamente sua opinião sobre a prática do aborto. Na
realização dessa não resposta, o Ministro se apresenta em outros papéis como pai e católico,
uma vez que nestes papéis, a possibilidade de seu ponto de vista ser menos ameaçador é muito
maior que no papel de representante do governo, como Ministro da Saúde.
Esse ponto de análise é enriquecedor não só aos estudos sobre a prática discursiva da
evasão como também às questões que envolvem a diferenciação entre os múltiplos papéis e o
conjunto de papéis. Os dados mostram que os múltiplos papéis podem se apresentar tão
114
conflituosos na interação quanto o conjunto de papéis, este já definido na literatura como
passíveis de apresentar “tensão e conflito” (MERTON, 1957; SARANGI, 2010, 2011a,
2011b). A manifestação dos múltiplos papéis se apresenta conflituosa tanto na prática evasiva
de resposta, que gera perguntas desafiadoras na sequência, como já mencionado acima, como
também na disputa que se segue nos turnos a partir do uso de distintos papéis, dentre os
múltiplos papéis do entrevistado, em uma estratégia de confrontação de pontos de vista. Esta
estratégia é utilizada tanto pelo entrevistador quanto pelo entrevistado, isto é, o entrevistado
responde, quando lhe convém, a partir de outro papel social, e o entrevistador pergunta a um
papel que não seria o principal manifestado naquele momento da interação. Posso
exemplificar com o Ministro Paulo Renato Souza, que, em três momentos da entrevista, o seu
papel social de economista é posto em evidência – uma por ele e duas vezes pelos
entrevistadores – confrontando o ponto de vista de que há uma avaliação quantitativa da
educação e não qualitativa, por parte do governo.
A manifestação dos múltiplos papéis ocorre dinamicamente e atua na construção/
definição da atividade analisada, pois é usada como recurso de fuga a temas polêmicos e na
confrontação de pontos de vista, ambos aspectos que dão o teor de disputa à interação,
caracterizando-a hibridamente como uma entrevista-debate. Posso, então, ratificar minha
conclusão anterior de que há de fato uma relação intrínseca entre a definição da atividade e os
papéis manifestados na interação, sejam papéis de atividade, discursivos ou sociais. Esses
papéis, associados às posições reivindicadas e/ou assumidas, constroem o aspecto híbrido
desta atividade.
Esta conclusão da análise vem responder às perguntas de pesquisa propostas no
capítulo introdutório desta tese, as quais reapresento a seguir:
i. De que modo o tipo de atividade restringe e orienta os papéis e posições que
emergem na interação?
ii. Como as reivindicações e atribuições de papéis e posições são
coconstruídas/negociadas no curso da atividade analisada?
iii. Que recursos linguístico-discursivos e padrões interacionais caracterizam o tipo de
atividade analisada?
115
Os papéis e as posições são negociados na entrevista-debate através de distintas
realizações linguístico-discursivas, que envolvem as práticas discursivas de evasão, as
manifestações dos múltiplos papéis e conjunto de papéis, a defesa de pontos de vista como
estratégia argumentativa de debate, os diferentes tipos de perguntas – informacional,
desafiador e mista - que servem a metas interacionais distintas e os dois padrões interacionais
– pergunta/resposta e apresentação de ponto de vista/contestação do ponto de vista - que
atuam concomitante na interação, caracterizando-a.
Todas essas realizações linguístico-discursivas formatam o tipo de atividade
estudado. Deve-se levar em consideração ainda, a participação do telespectador na
constituição desta atividade, uma vez que é vinculada ao gênero televisivo. Como afirma
Duranti (1986, p. 243), “dar à audiência a coautoria da interação, é ter a consciência de uma
relação estabelecida em parceria, a qual é necessária para que a interação se sustente”. O
telespectador, nos dados, não atua apenas como o alvo da interação; atua também como um
participante ativo, desempenhando o papel de entrevistador no momento em que sua pergunta,
feita on-line ou por telefone, é transportada ao discurso do entrevistador, presente na
atividade, como se o telespectador estivesse diante do entrevistado em uma forma
onipresente28
.
Esta onipresença do telespectador ocorre de uma forma bidirecional nos dados: ao
mesmo tempo em que ele é o alvo do encontro, no sentido de recebedor da mensagem, ele
também orienta e restringe as escolhas de posicionamentos e papéis tornados relevantes, em
um processo de coconstrução do discurso. Essa função bidirecional se deve principalmente à
influência e relevância da mídia na sociedade, sendo formadora de opinião e capaz de avaliar/
julgar essas opiniões constantemente.
Essa relação entre a atividade e o telespectador não foi o foco desta tese, porém
sugiro, para pesquisas futuras, que essa relação seja melhor estudada para que possa contribuir
com os estudos sobre a dinamicidade de papéis e posições, principalmente no que tange ao
papel de atividade, que segundo Sarangi (2011a), ainda precisa de uma “calibração” (p.9).
28
Este termo é uma referência aos estudos religiosos, em que Deus é considerado onipresente, isto é, presente
em todos os momentos.
116
REFERÊNCIAS
ALLWINN, Sabine. Seeking information: contextual influences on question formulation.
Journal of language and social psychology. v.10, n.3, p.169-183, 1991.
ATKINSON, J. Maxwell; HERITAGE, John. Structures of Social Action: Studies in
Conversation Analysis. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1984.
BAUMAN, R; SCHERZER, J. Explorations in the Ethnography of Speaking. Cambridge:
Cambridge University Press, 1974.
BAVELAS, Janet et al. Political Equivocation: A Situational Explanation. Journal of
Language and Social Psychology, p. 137- 145, 1988.
CLARK, Herbert. Joint Activities. In.: ________. Using language. Cambridge University
Press. Cap. 2, p. 29-58, 1996.
CLAYMAN, Steve E. Displaying Neutrality in Television News Interviews. Special Issue:
Language, Interaction, and Social Problems, vol. 35, nº 4, p. 474-492, 1988.
__________________. Footing in the achievement of neutrality: the case of news-interview
discourse. In.: DREW, Paul. HERITAGE, John. (Eds). Talk at Work. Interaction in
institutional settings. Cambridge University Press, cap 5, p. 163-198, 1992.
__________________. News Interview. International Encyclopedia of the Social &
Behavioral Sciences. P. 10642 – 10645, 2001.
__________________. Disagreements and third parties: dilemmas of neutralism in panel
news interviews. Journal of Pragmatics, 34, 1385-1401, 2002a.
__________________. Tribune of the people: maintaining the legitimacy of aggressive
journalism. Media, Culture & Society, vol 24(2), 197-216, 2002b.
__________________. Address terms in the service of other actions: The case of news
interview talk. Discourse & Communication, 4(2), p. 161-183, 2010.
COSTA, Simone Muller. Práticas discursivo-interacionais de “não-resposta”: evadir-se
ou não da pergunta em contextos institucionais. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-Graduação em Letras/Linguística. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2010.
COUPER-KULEN, E.; SELTING, M.(eds). Studies in Interactional Linguistics. London: J.
Benjamins Publishing, 2001.
DAVIES, B.; HARRÉ, R. Positioning: the discursive production of selves. Journal for the
Theory of Social Behavior, v. 20, p.43-63, 1990.
_____________________. Positioning and personhood. In.: HARRÉ, R.; LANGENHOVE,
L.V. (orgs.), Positioning Theory: moral contexts of intentional action. Oxford: Blackwell
Publishers, p. 32-52, 1999.
117
DIVAN, Lilian. Posicionamentos e categorizaçoes: mecanismos retóricos para
apresentaçao/sustentaçao de pontos de vista em situaçoes de conflito. Tese de Doutorado.
Programa de Pós-Graduaçao em Linguistica - Universidade Federal de Juiz de Fora, 2011
DURANTI, Alessandro. The audience as co-author: An introduction. Text an
interdisciplinary journal for the study of discourse. Ed. Alessandro Duranti e Donald
Brenneis. Vol 6-3, p. 239-246, Mouton de Gruyter, 1986.
_____________________. Linguistic Anthropology. Cambridge, Cambridge University
Press, 1997.
DYNEL, Marta. Not hearing things – Hearer/listener categories in polylogues. mediAzioni 9,
http://mediazioni.sitlec.unibo.it, ISSN 1974-4382, 2010
_____________. Revisiting Goffman‟s postulates on participant statuses in verbal interaction.
Language and Linguistics Compass 5/7: 454–465, Blackwell Publishing Ltd, 2011.
EKSTRÖM, Mats; LUNDELL, Asa Kroon. The News Interview: Diversity and hybridity in
the communicative activities of broadcast news. 19th Nordic Conference for Media and
Communication research, Karlstad, Agosto, 2009.
EMMERTSEN, Sofie. Interviewers‟ challenging questions in British debate interviews.
Journal of Pragmatics 39, 570–591, 2007.
ERICKSON, F. Qualitative Research Methods of Science Education. In.: FRASER, B.;
TOBIN, K.G. International Handbook of Science Education, p.1155-1173, 1998.
GOFFMAN, Erving. Encounters: Two Studies in the Sociology of Interaction.
Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1961.
_________________. Frame Analysis. New York: Harper e Row, 1974.
_________________. Radio talk: a study of the ways of our errors. Forms of talk.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, p. 197–330, 1981.
_________________. Footing. In.: RIBEIRO, Branca T.; GARCEZ, Pedro M. (org.).
Sociolinguística Interacional: Antropologia, Linguística e Sociologia em Análise do
Discurso. Porto Alegre: AGE, p. 70-97, [1979] 1998.
_________________. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. 13ªed, ed Vozes,
Petrópolis [On The presentation of self in everyday life. New York: Doubleday, 1959], 2005.
GOODWIN, Charles; HERITAGE, John. Conversation Analysis. Annual Reviews of
Anthropology, 19, p.283-307, 1990.
GUMPERZ, John J. Convenções de Contextualização. In.: RIBEIRO, Branca T.; GARCEZ,
Pedro M. (org.). Sociolinguística Interacional: Antropologia, Linguística e Sociologia em
Análise do Discurso. Porto Alegre: AGE, p. 98-119, [1982] 1998.
118
_________________. On interactional sociolinguistic method. In.: SARANGI, Srikant;
ROBERTS, Celia. (eds). Talk, Work and Institutional Order Discourse in Medical,
Mediation and Management Settings. Mouton de Gruyter, p.453-471, 1999.
HARRÉ, R.; LANGENHOVE, L.V. (orgs). Positioning Theory: moral contexts of
intentional action. Oxford: Blackwell Publishers, 1999
HARTLEY, J. Case study research. In.: CASSEL, C.; SYMON, G. (eds). Essential guide to
qualitative methods in organizational research. London, Sage, p. 323-333, 2004.
HERITAGE, John. Analyzing news interviews: Aspects of the production of talk for an
overhearing audience. In.: T. VAN DIJK (ed.) Handbook of discourse analysis, volume 3:
Discourse and Dialogue. London: Academic Press, p. 95-117, 1985.
HESS-LÜTTICH, Ernest W.B. (Pseudo-) Argumentation in TV-Debates. Journal of
Pragmatics, 39, 1360-1370, 2007.
HUTCHBY, Ian. Confrontation Talk: Arguments, Asymmetries and Power on Talk
Radio. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 1996.
______________. „Oh, Irony and Sequential Ambiguity in Arguments‟. Discourse and
Society, 12. p. 147–165, 2001.
______________. Non-neutrality and argument in the hybrid political interview. Discourse
Studies, 13(3), p. 349-365, 2011.
______________; WOOFFITT, R. Talk in Institutional Settings. In.: ____________.
Conversation Analysis. Cambridge: Polity Press, 1998.
HYMES, Dell. Models of the Interaction of Language and Social Life. In.: GUMPERZ, John;
___________ (eds.). Directions in Sociolinguistics: The Ethnography of Communication.
New York: Holt, Rinehart & Winston, p.35-71, 1972.
ILIE, Cornelia. Question-response argumentation in talk shows. Journal of Pragmatics, 31,
p. 975-999, 1999.
LANGENHOVE, L.V.; HARRÉ, R. Introducing positioning theory. In.: HARRÉ, R.;
LANGENHOVE, L.V. (orgs). Positioning Theory: moral contexts of intentional action.
Oxford: Blackwell Publishers, p. 14-31, 1999.
LAUERBACH, Gerda. Political interviews as hybrid genre. Text 24 (3), p. 353 – 397, 2004.
__________________. Discourse representation in political interviews: The construction of
identities and relations through voicing and ventriloquizing. Journal of Pragmatics, 38, p.
196–215, 2006.
LEVINSON, Stephen, C. Putting Linguistics on a Proper Footing: Explorations in Goffman‟s
Concepts of Participation. In.: Paul Drew and Anthony Wootton (eds.). Goffman: Exploring
the Interaction Order. Oxford: Polity Press, 161-227, 1988.
119
_____________________. Activity types and language. In.: P. Drew, & J. Heritage
(Eds.), Talk at work: Interaction in institutional settings. Cambridge University Press, p.
66-100, [1979], 1992.
LINTON, Ralph. The Study of Man. New York: D. Appleton-Century, 1936.
MERTON, Robert K. The Role-Set: Problems in Sociological Theory. The British Journal
of Sociology, Vol. 8, No. 2. (Jun), p. 106-120, 1957.
__________________. Social Theory and Social Structure. Enlarged edition. New York:
Free Press, 1968.
PACHECO, Roberta F. O ato de Discordância em Contexto Argumentativo do Espanhol.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras/ Estudos da Linguagem.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2008.
RODA VIVA. Produção: Fundação Padre Anchieta. Centro Paulista de Rádio e Tv
Educativas. Acesso em http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva.
SACKS, Harvey; SCHEGLOFF, Emanuel; JEFFERSON, Gail. A Simplest Systematic for the
Organization of Turn Taking for Conversation. Language, 50 (4), p. 696 - 735, 1974.
SARANGI, Srikant. Activity types, discourse types and interactional hybridity: the case of
genetic counseling. In.: __________; COULTHARD, M. (eds.). Discourse and Social Life.
London, Pearson, p.1-27, 2000.
________________. Reconfiguring Self/Identity/Status/Role: The Case of Professional Role
Performance in Healthcare Encounters. Journal of Applied Linguistics and Professional
Practice. P. 75–95, 2010.
_________________. Role hybridity in professional practice. In.: __________; POLESE, V.;
CALIENDO, G. (Eds.) Genre(s) on the Move: Hybridisation and Discourse Change in
Specialised Communication. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane (ESI), 2011a.
_________________. Hybrity Role and Facework. Conferência ministrada na Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora em 23 de agosto de 2011, 2011b.
_________________; SLEMBROUCK, S. Language, Bureaucracy and Social Control.
London: Longman, 1996.
SCHEGLOFF, Emanuel A. From interview to confrontation: observations of the bush/rather
encounter. Research on Language and Social Interaction, vol 22, p. 215-240, 1989.
______________________; SACKS, Harvey. Opening Up Closings. In.: BAUGH, J;
SHERZER, J (eds.). Language in Use: Readings in Sociolinguistics. Englewood Cliffs, NJ:
Prentice-Hall, p. 69-99, [1973] 1984.
SCHIFFRIN, Debora. Intonation and transcription conventions. In.:________ Discourse
markers. Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1987.
120
SCHWANDT, T.A. Três posturas epistemológicas para a investigação qualitativa. In.:
DENZIN, N.; LINCOLN, Y. O Planejamento da Pesquisa Qualitativa – teorias e
abordagens. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed Bookman, 2006.
TANNEN, Debora. Talking voices. Repetition, dialogue, and imagery in conversational
discourse. Cambridge, Cambridge University Press, p.202-203, 1989.
TOLSON, Andrew. Media Talk: spoken discourse on TV and radio. Edinburgh University
Press, 2006.
VIEIRA, Amitza. A formulação de perguntas em entrevistas televisivas. In: V Congresso de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Ouro Preto, 2002.
WEIZMAN, Elda. Shifting roles: a challenge strategy in news interviews on Israeli television.
In: SCHWARZWALD, O.; SHLESINGER, Y. (Eds.), Hadassah Kantor Jubilee Book. Ramat
Gan, (Language research papers (in Hebrew)), p. 85–95, 1996.
_______________. Roles and identities in news interviews: The Israeli context. Journal of
Pragmatics, 38, p. 154–179, 2006.
WEIZMAN, Elda. Positioning in media dialogue: negotiating roles in the news interview.
Série Dialogue Studies. Amsterdam – Philadelphia. John Benjamins Publishing. 2008.
121
ANEXOS
Este anexo apresenta os segmentos dos dados que foram objetos de análise desta
tese, divididos por entrevista e bloco. Em seguida, apresento os símbolos de transcrição
utilizados e por último, a cópia do parecer do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UFJF)
aprovando a utilização dos dados.
Entrevista Paulo Renato Souza
Bloco I
120
121
122
123
124
Guiomar
Melo
ministro, e:: exatamente a esse respeito, seria interessante a
gente perguntar um pouco- o que- que afinal de contas essa
reforma do ensino médio vem responder ao problema do do do
desemprego. Será que com a reforma do ensino vai melhorar a
situação ou vai continuar a mesma coisa?
125
126
127
128
129
130
131
Ministro eu não tenho dúvida eu não tenho dúvida porque porque a reforma
do ensino médio procura preparar o jovem pra vida (0,5)
ela concentra, ela define uma concen- primeiro ela define que
que o ensino médio não é apenas preparação pra universidade,
e o objetivo do ensino médio não é transmitir conhecimento,
é desenvolver habilidades e competências
[para a pessoa aprender]
132
133
134
135
Guiomar
Melo
[mas o senhor não acha] que assim vai aumentar a desigualdade?
porque vai continuar sempre uma parcela de jovens tendo acesso
a um ensino médio que prepara exclusivamente para o vestibular,
então a [universidade fica mais difícil]
136
137
138
139
140
141
142
143
144
145
146
147
148
149
150
151
152
Ministro [não, o ensino médio, todo ele] todo o ensino médio,
ele vai, será único, não haverá um ensino médio para o
vestibular e outro não para o vestibular. o ensino médio
preparará para a vida para o vestibular para o mercado de
trabalho, para o ensino técnico enfim. para todas as opções que
o jovem pode e:: ter diante de si. ao terminar o ensino médio.
então, a idéia do Ensino Médio, a reforma do ensino médio é que
ela seja pelo menos em primeiro lugar, que haja uma
concentração de setenta e cinco por cento da carga horária nas
matérias que são do conteúdo nacional. e que a partir desses
setenta e cinco por cento cada pessoa possa escolher matérias
tanto na área acadêmica quanto na área profi- pré
profissionalizante quanto na área artística, cultural etc.
pra completar e com isso poder conhe- se conhecer melhor fazer
melhor as opções que aos quinze dezoito anos é muito difícil de
fazer e por isso o ensino médio procura abrir os horizontes
para o jovem
153
154
Marcos
Antonio
Hoje, pelo o que o senhor tá falando ministro, realmente o
ensino médio não tá preparando o jovem pra vida
155
156
157
158
159
160
Ministro não não. o ensino médio como nós tínhamos até dois anos atrás,
ele simplesmente era uma antessala da universidade. ele
simplesmente era uma preparação para- e:: claro, como o mercado
de trabalho passou a exigir maior qualificação, passaram a
exigir o ensino médio. mas um jovem ao sair do ensino médio e::
o conhecimento que ele adquiria não servia pra nada na sua vida
122
161
162
163
164
165
166
167
168
169
né? (0,5) quantos? quem de nós se lembra das fórmulas de física
ou química que estudamos no ensino médio? é isso. o ensino
médio tem que hoje, nós estamos vivendo um novo mundo, uma nova
sociedade (0,5) nessa sociedade é preciso que as pessoas
aprendam toda a vida, é preciso que as pessoas tenham a
capacidade de aprender toda a vida, passou a época em que a
pessoa podia estudar durante vinte ou ou vinte e cinco anos da
sua vida. e com esse conhecimento viver o resto da vida. por
que passou essa época? porque a tecnologia muda, a tecnologia=
170 Marcos
Antonio
=ministro=
171
172
173
Ministro =tecnologia do consumo em sociedade. o ensino médio precisa
aprender a ensinar a pessoa aprender o resto da vida e além
disso tem que ter outras oportunidades pra continuar aprendendo
174
175
176
Marcos
Antonio
tá. eu concordo plenamente, é difícil discordar disso.
a gente tem que estudar a vida inteira e é bom que
[a gente possa]
177 Ministro [mas no passado] não era necessário.
178
179
180
181
182
183
184
185
Marcos
Antonio
não era. mas eu conheço- qualquer cidadão conhece pessoas que
estudaram a vida inteira e não têm emprego e jovens que estão
estudando e olham pra frente e veem sete vírgula cinco por
cento de taxa de desemprego. não dá pra dizer apenas que o
mundo passa por uma mesma crise, o brasil é o nosso país e a
gente tem que encontrar soluções pro nosso país e eu não tô
vendo. e:: esse discurso parece que não é o suficiente pra
dizer que daqui a cinco anos vamos ser=
186
187
Ministro =é uma condição necessária mas não suficiente. é preciso que a
economia cresça.
188
189
190
191
Marcos
Antonio
sim. mas no mesmo governo. certo que de fato tá fazendo uma
revolução no ensino fundamental e se propõe a fazer uma
revolução no ensino médio é que cria a maior taxa de desemprego
da [história desse país é o mesmo governo ]
192
193
194
195
196
197
198
199
200
201
202
Ministro [não.não é o governo que cria essa taxa] de desemprego.
nós temos- o governo- o país enfrentou uma situação de crise
internacional, não é? da qual se saiu muito melhor do que se
esperava eu lembro que no começo do ano passado, quando se
falava das perspectivas para o ano de noventa e nove, se dizia
que ia se chegar ao final do ano com uma queda na produção de
mais de dez por cento, essas eram análises que não eram tão
pessimistas e que ia se chegar com uma taxa de desemprego de
vinte por cento. não aconteceu isso não é? fomos capazes de
enfrentar a crise manter a estabilidade, tivemos
[um ano difícil ]
203 Marcos
Antonio
[não aconteceu a] catástrofe
204 Ministro não aconteceu a catástrofe
205 Marcos
Antonio
mas a situação é grave
206
207
208
209
210
211
212
213
Ministro sim, mas mas nós vivemos no mundo que passou uma crise, nós
fomos objetos de um ataque especulativo na nossa moeda, nós nos
defendemos e saímos muito melhor do que se esperava. agora-
hoje, nós temos as condições de voltar a crescer nós temos as
condições de gerar emprego. é claro que não é não é
simplesmente deixar o mercado funcionar. nós temos que agir
para que a economia vol- acelere seu processo de recuperação
e:: pra que essa recuperação se traduza em empregos. pra isso
123
214
215
216
217
218
219
220
nós tamos investindo. o presidente definiu recentemente um
programa de ciência e tecnologia né? para estimular a produção
de tecnologia nacional, nós temos que buscar e:: hum. formas de
estimular as empresas a exportar mais não é? nós temos o bnds
ºnós tamos tratando sobre issoº. enfim eu acho que é preciso
tomar medidas sim. na área econômica complementares para que
haja geração de empregos, sem nenhuma dúvida
Bloco II
08
09
10
Monica
Teixeira
ministro. o senhor diz que a universidade pública deve ser
produtiva. qual o sentido da produtividade? é a produção para o
mercado, que gera lucro ou é a produção do conhecimento?
11
12
13
Ministro é a produção que usa bem o recurso público,
porque a universidade é pública, ela não é gratuita,
alguém paga pela universidade. quem paga? (0,5)
14 Monica
Teixeira
[[o contribuinte]
15 Fernando
Rosseti
[[o conjunto da ]sociedade
16
17
18
19
20
21
22
Ministro o contribuinte, o conjunto da sociedade. quem paga a maior parte
dos impostos? os pobres, que estão sustentando a universidade.
então é nossa responsabilidade sim exigir que a universidade seja
o mais eficiente possível, mais do que uma universidade privada.
sabe que me indigna essa coisa, >me indigna essa coisa< de achar
que porque é público não pode se exigir, não pode ter
[ produtividade, não pode se cobrar ]
23 Guiomar
Melo
[mas é essa a resistência que o senhor] enfrenta?
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
Ministro é isso que eu quero, isso que eu quero.
que ela faça mais pesquisa pra beneficiar a população, que ela
faça mais, e:: que ela tenha mais alunos, que ela não pode ter
uma relação aluno professor de oito pra:: oito alunos pra:: um
professor. isso é um absurdo! não existe em nenhum lugar do mundo
nem nas universidades de pesquisa melhores do mundo. isso é o que
nós temos que exigir. nós temos que exigir que a universidade
pública receba alunos de transferência no segundo terceiro quarto
ano, porque não recebe. isso- eu fui reitor, eu sei que nós temos
uma resistência brutal dentro da universidade. nós temos que
conseguir que:: que o aluno que- se há vaga sobrando- eu cansei
de formar turma na universidade com oito, dez alunos. o fernando
sabe disso, quantos alunos, quantas turmas dentro da universidade
têm só dez alunos? (0,2) isso é que nós temos que exigir. mais
eficácia, mais produtividade.
39
40
41
42
Monica
Teixeira
mas quando o senhor diz isso, quando se diz isso a respeito da
universidade,a gente não corre o risco de esquecer a contribuição
que a universidade pública deu ao país e tem dado? ou o senhor
[ acha que não deu? ]
43
44
45
46
47
48
49
50
Ministro [não, não se esquece] não é? isso não se esquece porque não há
dúvida que toda pesquisa no nosso país é feita dentro da
universidade. nós temos contribuições importantes, eu fui reitor
da unicamp eu sei do que eu estou falando (0,2)
nós temos contribuições importantes, a unicamp deu na área das
telecomunicações na área da engenharia a:: química, na área dos
alimentos, na área da economia da tecnologia do petróleo não é,
nós temos a ufrj na área do petróleo, nós temos as universidades
124
51
52
53
54
55
56
de viçosa rural do rio de janeiro na área da agricultura (0,2)
nós temos a usp na área da::s das telecomunicações também, na
área da engenharia elétrica. enfim eu acho que e:: a
universidade pública brasileira tem dado uma contribuição
importante, agora isso não exime- não a exime de fazer mais
ainda com o recurso público que tem.
178
179
180
181
182
Brasilis
Salles
ministro, o senhor se entusiasmou muito com a sua- com o
projeto de obter continuidade redução de custos, eficiência na
universidade etc. e:: vamos dizer, ajustar
((gesto com as mãos indicando aspas))
a universidade, essa eu acho que é a linguagem que tem sido o
tom do ministério [desde o início]
183 Ministro [não é ajustar,] não é?
184 Brasilis
Salles
é:: mas parece ajustar.
185 Ministro
não é não.
186 Brasilis
Salles
ministro parece o ministro da [fazenda da educação, mas]
187
188
Ministro [não senhor. hhh não não]
não senhor, não não [ não hhh ]
189 Brasilis
Salles
[hhh deixa] eu terminar a pergunta hhh
190 Ministro não. não. tudo bem, termina aí hhh
191
192
193
194
195
196
197
198
199
200
201
202
203
204
205
206
Brasilis
Salles
o que me parece é que esse tipo de linguagem é que, e:: vamos
dizer, tem caracterizado muito o ministério, e:: (0,5)
mas o mais importante é que isso, no fundo, tá me dizendo
que falta- parece (0,2) parece, né?
falta ao ministério um projeto positivo de uma universidade de
qualidade. quer dizer, algo que inspire vamos dizer,
os núcleos de alto padrão que existe em todas
as universidades brasileiras a aderir a um projeto de
qualidade. e me parece sempre que a::
tá se tentando punir o ineficiente, tentando evitar que, a::
vamos dizer, a universidade e:: que as universidades não
trabalhem. eu não sou contra aqui que que não- que se cuide
disso. obviamente a universidade tem que ser eficiente, etc.
mas falta um projeto uma espécie de utopia educacional que
permita que o ministro da educação seja o líder da mudança ao
invés de ser aquele que impõe a mudança
207 Ministro a:: [ e:: ]
208
209
210
211
212
Monica
Teixeira
[eu só] queria fazer a colocação de um telespectador aqui
que fica perfeitamente cabível. é carlos verge, que pergunta
“se o ministro fosse presidente da república- se o senhor fosse
presidente da república convidaria um economista para o
ministério da educação?”
((risos de todos))
213
214
215
216
Ministro hhh se fosse um economista como eu convidaria, porque- bem, eu
tô nessa questão da educação há muito tempo. eu fui secretário
da educação em são paulo, eu fui reitor da melhor universidade
brasileira do brasil[tá certo?]
217 Monica
Teixeira
[as outras] vão ficar nervosas
125
218 Ministro e agora sou ministro da educação=
219 Monica
Teixeira
=foi só uma brincadeira por causa do ajuste.
220
221
222
223
224
225
226
227
228
229
Ministro tá bom. vamo lá (0,2) sabe quanto aumentou o orçamento da
universidade pública brasileira nos últimos qua- cinco anos?
vinte e oito por cento não é? isso não é ajuste. nós estamos
agora. a:: o que o que aconteceu? as verbas hoje são dirigidas
com mais critério. eu fui à universidade federal de viçosa,
em noventa e seis inaugurar uma biblioteca (0,5)
dentro da biblioteca tinha um elevador panorâmico.
eu te pergunto pra que um elevador panorâmico na- numa
universidade pública? dentro da biblioteca em viçosa,
onde não existe nenhum panorama pra ser visto
230 Brasilis
Salles
[[ ninguém aqui é contra ]
231 Marcos
Antonio
[[ é com dinheiro público?]
232 Monica
Teixeira
[[mas a questão é que não é]
233
234
Ministro não mas acontecia isso brasilis
acontecia quantos centros shoppings centers foram construídos=
235
236
Marcos
Antonio
=[[mas tem universidade que não tem dinheiro pra ºpagar luz e
agua tambémº]
237
238
239
Fernando
Rosseti
=[[viçosa é a universidade que tem a maior renda, uma das
universidades] que têm a maior renda de o:: convênios privados
[ de toda a natureza ]
240
241
242
243
244
245
246
247
Ministro [sim mas esses recur]sos são recursos que estavam sendo que
eram aqueles recursos que eram transferidos pra universidade e
eram e:: levados (0,5) que ficava a:: digamos assim a decisão
de fazer, não é, o critério para investimento não era um
critério que passava sequer pelo conselho universitário.
nós aumentamos a verba de custeio e investimento para a
universidade de cerca de 330 milhões pra 600 milhões por ano.
então=
248
249
250
Marcos
Antonio
=ministro existe elevador panorâmico numa universidade pública,
também tem universidade pública que não tem dinheiro pra pagar
luz e água.
251 Ministro isso é- isso [eu diria que]
252
253
Marcos
Antonio
[quer dizer ] tem a anedota e tem a tragédia
também
254
255
256
257
258
259
260
261
262
263
264
265
266
267
Ministro eu diria que hoje é possível que ainda tenhamos alguma situação
como essa. mas existe muito o problema de gestão da
universidade não é? Porque tem universi- universidades públicas
que têm contas de água que são astronômicas. então a:: contas
de luz que são astronô- a universidade pública muitas vezes
está submetida à necessidade de enfrentar o pagamento de de de
luz e não têm recursos porque as pesquisas a: são muito
importantes naquela universidade mas a universidade não tem
recurso pra pagar a infraestrutura pra pesquisa, por isso é que
criamos agora- o presidente fernando henrique criou o fundo
para apoio institucional justamente pra acabar com esses-
com os problemas que existem ainda de infraestrutura dentro da
universidade não é? mas então, qual é o estímulo às coisas
positivas dentro da universidade não é? eu acho que a
126
268
269
gratificação de estímulo à docência cai nessa direção.
ela premia o professor
402
403
404
405
406
407
408
André
Laos
ministro, o senhor disse que o fundef foi o grande e:: digamos
a coisa mais importante que o senhor fez no ministério, e:: no
entanto a imprensa diariamente seria exagero mas com uma
frequência escandalosa e:: de denúncias de desvio do dinheiro
do fundef- quer dizer tem muita gente com medo de que seria uma
boa ideia que simplesmente não vai e:: vai, simplesmente abrir
caminho pra corrupção[pra ilegalidades]
409 Ministro [ela está fechando] o caminho da corrupção
410 André
Laos
como é que o senhor vê essa crítica?
411
412
413
414
415
416
417
Ministro Apesar de todas apesar de todas as denúncias, o fundef está fechando o caminho
do desvio da corrupção tá? (0,2) vamos ver por que. esse é um
ponto muito importante. vou dizer claramente o seguinte (0,4)
primeiro. hoje está se desviando muito menos dinheiro da
educação do que se desviava >hoje está se roubando muito menos<
dinheiro da educação do que se roubava. e entretanto
[há mais denúncias]
418
419
André
Laos
[como? como saber?] (0,2) como economista que gosta de mostrar
[ os índices- hhh ]
420 Ministro [agora vamos ver. Agora] eu vou ser economista=
421
422
André
Laos
=então me mostra os índices oficiais.
[por que há menos-]
423 Ministro [agora, eu vou ser] economista, não é? hhh
424 André
Laos
como provar que há menos? há menos-
425
426
427
428
429
430
431
432
433
Ministro vamos lá. em são paulo antes do Fundef e:: dos quinhentos
sessenta e oito municípios de são paulo, apenas sessenta e oito
e:: dos seiscentos e quarenta e oito municípios, apenas
sessenta e oito tinham rede municipal de ensino fundamental.
todos os demais tinham que gastar vinte e cinco por cento da
arrecadação em educação e não tinham escola. onde é que
gastavam esse dinheiro? pavimentavam a rua na frente da escola,
construíam ginásio de esporte, compravam carro pro prefeito e
diziam que era [transporte escolar]
434
435
436
Fernando
Rosseti
[não. também na ] creche na pré-escola.
que muitos deles fecharam
[por causa disso]
437
438
439
Ministro [não. não senhor] (0,2) não fecharam- não houve fechamento de
creche e pré-escola
[não. não é verdade ]
440
441
442
443
444
445
446
Fernando
Rosseti
Ministro
[houve fechamento de] creches e escolas. houve sim.
o governo não tem divulgado isso muito bem ainda
não. mas olha, e:: eu eu quero. nós reservamos pro FUNDEF
quinze por cento da arrecadação dos municípios, os outros dez
por cento tem que gastar em educação e eu quero que me provem
que não podem fazer uma boa creche uma boa pré-escola de
127
447
448
448
449
450
451
452
453
454
455
456
457
458
459
460
Fernando
Rosseti
Ministro
qualidade, né? mas vamos voltar ao fundef. então, esse dinheiro
que ia para outras finalidades, hoje está indo para dentro da
sala de aula, não é?
ou não.
bom.tá. porque senão o prefeito perde esse dinheiro. ele tem
que gastar sessenta por cento de salário é obrigado. o fundef
obriga a gastar sessenta por cento de salário. então, salário é
um dinheiro que vai para o salário do professor. os salários de
professores em são paulo, no estado de SP, em função do fundef
aumentaram e: o piso salarial de cerca de duzentos e cinquenta
reais pra mais de seiscentos reais em menos de cinco anos. no
nordeste os salários aumentaram cinquenta por cento num ano,
nos municípios do nordeste. então, o que que aconteceu aqui.
nós temos o dinheiro está indo pra dentro da sala de aula, está
deixando de ser desviado
Entrevista José Gomes Temporão
Bloco I
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
14
15
Paulo
Markun
boa noite. ELE assumiu o ministério dizendo e deixando claro que
compraria duas brigas, acho que comprou três (0,5) evitar
interferências políticas na nomeação de auxiliares (0,2)
impedir o desvio de recursos da saúde para outras áreas e
terceiro,abrir um debate nacional sobre a polêmica questão do
aborto (0,5)responsável por um orçamento que é quase a metade de
todos os recursos do governo, ele comanda uma estrutura gigante
que carrega marcas de corrupção, de prestação ruim de serviços e
que tem dificuldades, não só de combater as velhas doenças como
também o desafio de combater as novas (0,5) o entrevistado desta
noite no roda viva é o médico josé gomes, temporão novo ministro
da saúde (0,5) josé gomes temporão é um reconhecido especialista
em doenças infecciosas. a formação e a carreira na administração
pública pesaram na escolha de seu nome como ministro da saúde,
no segundo mandato do presidente Lula (0,5)
((vídeo com apresentação do entrevistado))
58
59
67
para entrevistar o ministro da saúde josé gomes temporão, nós
convidamos ((apresentação dos entrevistadores do programa))
boa noite ministro.
68 Ministro boa noite Paulo
69
70
71
72
Paulo
Markun
eu queria entender porque o senhor decidiu tomar a frente essa
discussão do aborto, >que não é uma discussão fácil< (0,5)
é uma forma de- digamos assim, desviar a atenção de outras
questões graves da saúde brasileira?
73
74
75
76
77
78
79
80
81
82
83
Ministro na realidade não fui eu que tomei a frente dessa questão foi a
realidade que se impôs à nossa frente.é interessante lembrar um
pouco como foi o contexto. no meu discurso de posse um dos vinte
e dois pontos que eu coloquei como grandes questões de grandes
desafios digamos assim. coloquei a questão da política de
direitos sexuais reprodutivos. e dentro dessa política- uma
política de planejamento familiar democratização de acesso aos
métodos de educação e in-formação (0,5)e em uma entrevista para
o jornal o dia. logo na primeira semana, dentro de uma discussão
muito ampla, discuti sobre quase tudo que se pode imaginar sobre
saúde pública. houve uma pergunta específica sobre esta questão
128
84
85
86
87
88
89
90
91
92
93
(0,2)uma repórter virou para mim e perguntou qual era a minha
posição sobre o aborto e eu coloquei que a minha posição era uma
posição de abrir o debate de um lado e de outro que eu queria
falar como sanitarista, e que esta era uma questão de saúde
pública importante que afetava de perto a saúde vida e morte de
milhares de mulheres brasileiras e a partir daí o que se viu
na realidade com essa minha colocação o que estava coberto com
um véu, e eu diria que por certo tom de cinismo da sociedade o
que aconteceu foi uma grande discussão que começou o que
demonstra que a sociedade quer discutir esta questão
94 Paulo
Markun
o senhor acha que foi positivo?
95 Ministro com certeza. é sempre positivo=
96
97
98
99
100
101
102
103
104
105
106
107
108
Reinaldo
Azevedo
=ministro, vamos então tirar o véu do cinismo. eu me desculpo
primeiro pelo chapéu, por razão médica o senhor é médico há de
compreender. então, vamos tirar o véu do cinismo (0,5)no debate
entre o kerry e o bush na eleição dos estados unidos, naqueles
debates que eles fazem uma eleitora americana perguntou a ambos
(0,2) "o senhor é favorável ao aborto?". e o kerry disse (0,2)
"veja bem, eu como homem público sou a favor do debate, como
católico sou contra, então eu gostaria que vocês entendessem".
>os estados unidos< não se tornaram uma grande nação assim.
eles se tornaram uma grande nação dizendo sim ou não, inclusive
na horade fazer guerra. foram perguntar para o bush e o bush
disse. "<sou favorável ao aborto>". então eu faço a questão que
a nação americana se fez. o senhor é favorável ao aborto?
109
110
Ministro ninguém é favorável ao aborto. nem as mulheres que praticam
eventualmente ou que foram levadas a praticá-lo
111
112
Reinaldo
Azevedo
então faço rigorosamente aquela pergunta (0,2)
o senhor é favorável à descriminalização do aborto?
113
114
115
116
117
118
119
120
121
122
123
124
125
Ministro eu vou responder. acho que aí é que está o viés. os que não
querem discutir não querem enfrentar essa questão de frente de
peito aberto puxam sempre a questão do aborto, sim ou não.
temos que discutir esta questão dentro da política de direitos
sexuais reprodutivos de planejamento familiar, onde as pessoas
possam ter acesso à informação. desde a escola que os jovens
possam ter orientação sexual, que os casais possam discutir
quando e em que número querem organizar a sua família que o
estado provenha aos casais o acesso aos métodos contraceptivos,
com regularidade tempo e hora. uma pesquisa de 2004 realizada
pelo ministério da saúde mostrou que apenas 50% dos municípios
brasileiros tinham- no momento da visita das unidades de saúde,
pílula anticoncepcional e preservativo masculino disponíveis
126 Reinaldo
Azevedo
mas isso é então incompetência do ministério da saúde?
127
128
129
Ministro
não. é do sistema. inclusive eu acho que há uma necessidade de
uma mudança radical no processo de (dispensação) e de colocar à
disposição da população=
130
131
132
133
Reinaldo
Azevedo
=quer dizer que o senhor admite que se houver uma
universalização da distribuição de pílulas anticoncepcionais e
de preservativo (0,2) gratuitos para quem precisa, a questão do
aborto se torna menos importante?
134
135
Ministro eu acrescentaria informação educação e liberdade para discutir
livremente as questões relativas [à sexualidade ]
136
137
138
Reinaldo
Azevedo
[junto com a in]formação, a
educação, quer dizer que a questão do aborto nasce da falta de
informação,da falta de uma política eficiente da saúde pública?
129
139
140
141
MInistro com certeza é um componente importante e veja (0,5) nós
estamos falando de um milhão e cem mil abortos clandestinos
por ano no brasil
199 Laura o senhor acha que a classe médica vai aderir a este debate?
((da descriminalização do aborto))
200
201
202
203
Ministro olha! (0,5) a sociedade de especialistas e as entidades que
representam os médicos, se posicionaram apoiando a minha
proposta. isso não quer dizer que necessariamente os 320 mil
médicos brasileiros tenham na sua maioria essa posição=
204 Laura =o senhor está recebendo manifestações?
205
206
207
208
209
Ministro eu recebi manifestações de dezenas de entidades, inclusive de
mulheres da ordem dos advogados do brasil (0,2) todo o
conjunto de movimentos feministas, muitas entidades- fora
brasília no meio da semana passada, que foi entregue ao
presidente da república, de apoio.
210
211
Laura ministro, o presidente lula concorda com o senhor com relação
ao plebiscito?
212
213
214
215
216
217
218
219
220
Ministro o presidente disse que o governo não terá uma posição enquanto
governo. não vai orientar os líderes do congresso em relação a
isso. vai deixar que o congresso decida e discuta. se isso vai
ser resolvido debatido discutido no âmbito de uma legislação
ordinária ou se o congresso nacional vai optar por fazer uma
consulta pública. o governo não tomará uma posição sobre isso
e o presidente colocou que o ministro da saúde está falando do
seu ponto de vista, da sua perspectiva de sanitarista e
especialista em saúde pública (0,2) como ministro da saúde
221
222
223
224
225
226
227
228
229
230
231
232
Demétrio
Weber
ainda mais agora que o papa vem aí eu acho que a posição do
presidente fica muito circunscrita a esse evento. retomando a
questão, que quando começa a se discutir esse assunto envolve
muitas questões. sei lá se é porque o assunto é complexo mesmo
ou se quer evitar tornar público uma posição clara, acaba
fugindo a uma resposta direta. eu queria entender. o senhor
fala que há necessidade de discutir isso no âmbito da saúde
pública. ok. mas, o que o senhor tem a dizer a quem é contra o
aborto? as pessoas que defendem o direito à vida. eu queria
ouvir quais são os argumentos que o senhor traz além da
questão da saúde pública, para se permitir que o estado faça o
aborto, não só nos casos que hoje são legalizados?
233
234
235
236
237
238
239
240
241
242
243
244
245
246
247
248
Ministro eu acho que o primeiro ponto é uma evidência que choca (0,2)
apesar do aborto ser um crime, ele é praticado um milhão e cem
mil vezes por ano por mulheres brasileiras. significa que a
legislação não dá conta da realidade. que transcende o que a lei
estabeleceu não é? acho que esta é uma questão fundamental.
quer dizer, como você trata situações individuais que se colocam
de uma gravidez indesejada por questões que pode ir- (0,2)
a gente pode discutir aqui, a noite inteira sobre questões que
possam levar a uma gravidez indesejada. e essa mulher muitas
vezes sozinha, eventualmente, >com o apoio do seu companheiro ou
da sua família< mas eu afirmaria que na maior parte das vezes só,
com uma sensação de culpa importante submete-se a um procedimento
que pode levar à morte (0,2) na semana passada morreu uma jovem
de trinta e dois anos em belém submetida a um aborto clandestino.
esse final de semana no rio de janeiro o jornal publicou uma
matéria dizendo que medicamento abortivo proibido no brasil
130
260
261
262
263
264
Reinaldo
Azevedo
não ministro! (0,2) o senhor está parecendo o john kerry,
ele perdeu a eleição. o que não torna a sua resposta menos
ambígua (0,2)o senhor faz toda uma argumentação favorável à
descriminalização e evita dizer que é favorável à
descriminalização. você tem medo da opinião pública?
265
266
267
Ministro não. é que eu acho que nesse momento não teria muito sentido
expressar a minha opinião enquanto cidadão (0,2) eu acho que
neste momento estou preocupado com o debate=
268
269
Reinaldo
Azevedo
=eu estou perguntando ao ministro de estado, não estou
perguntando ao cidadão.
270
271
Ministro o ministro de estado não tem posição sobre esta questão
neste momento.
Bloco III
166
167
168
169
170
171
172
173
174
175
176
177
178
179
180
181
182
183
184
185
Reinaldo
Azevedo
ministro. eu sou contra a ampliação do direito ao aborto,
>eu acho que já deu para perceber<, e vou usar o senhor a favor
da minha causa. quando o senhor diz que a questão deve ser
centrada na educação, quando o senhor conta como é o sistema de
recebimento de camisinhas, de preservativos e de pílula
anticoncepcional, eu cheguei à conclusão que .hh de fato, há um
problema fundamental de gestão >que se resolvida com o tempo<,
a questão do aborto talvez não se coloque.e acho isso (0,2)
eu vou usar a sua entrevista a meu favor.
mas eu queria colocar uma outra coisa.
o que há de errado nesse raciocínio >que parece meio jocoso<
mas eu juro que é muito sério.
se eu der de cara com um ninho de tartarugas e resolver fazer
um omelete, eu não faria isso por nojo e porque eu acho que
não é pra comer tartaruga.
mas eu seria preso, crime inafiançável, crime ambiental.
os caiçaras às vezes têm esse problema (0,2)
outro dia um sujeito foi preso porque matou um minhocuçu
o senhor não acha que os fetos brasileiros têm direito a pelo
menos a mesma lei que tem as tartarugas?
186
187
Ministro eu acho que as mulheres brasileiras que estão vivas merecem o
direito à vida=
188 Reinaldo
Azevedo
=e os fetos não?
249
250
é vendido em camelôs no centro da cidade do rio de janeiro.
o que é isso?
251
Reinaldo
Azevedo
falta de governo ministro.
252
253
254
255
256
257
Ministro >não não< é a realidade batendo a nossa porta no nosso rosto.
então, essa é a questão que eu quero discutir. e quero que a
sociedade escute. agora a decisão compete ao congresso de um
lado, e o congresso reflete as diversas posições e tendências
que estão expressas na sociedade (0,2) ou o congresso vai
decidir por uma consulta popular.
258 Reinaldo
Azevedo
mas então o senhor é favorável à descriminalização?
259 Ministro sou favorável à discussão.
131
189
190
191
192
Ministro eu defendo a vida. eu tenho quatro filhos.
sou de formação católica. sempre defendi e sempre vou continuar
defendendo (0,2) eu não posso fechar os olhos para a realidade
que eu expus aqui.
193
193
194
195
198
199
Paulo
Markun
ministro, eu vou fazer a pergunta de vários telespectadores que
eu acho que integram essa mesma questão de uma outra maneira,
eu diria que talvez mais competente do que a que meus colegas
estão tentando (0,2)
((apresenta os telespectadores))
[eles] questionam o seguinte- em caso de existir plebiscito, o
senhor vai votar a favor ou contra o aborto?
200
Ministro não sei! depende do debate=
201
202
203
Demétrio
Weber
=mas ministro, o senhor que levantou o debate (0,2)
a lei já existe, o código penal de 1940 está aí,
diz os casos que podem e os que não podem.
204
205
206
207
208
209
210
211
Ministro eu propus o debate (0,2) ou melhor, eu não propus o debate não!
na realidade, no começo eu respondi essa questão, isso me
impressiona muito. não fui eu que lancei essa questão. eu fui
usado na realidade, para que essa questão aparecesse. ela está
na cara de todo mundo. camelô no centro do rio de janeiro
vendendo medicamento. vende porque tem mercado (0,2)
as pessoas estão tomando, as mulheres estão usando, as mulheres
estão morrendo.
212
213
214
215
216
Reinaldo
Azevedo
ministro, eu que lhe dei os parabéns duas vezes,
vou brigar com o senhor agora (0,2)
o senhor é ministro da saúde. não pode dizer, como se fosse eu,
>que não sou nada< sou apenas um abelhudo, que estão vendendo
cytotec imagino, no rio de janeiro.
217 Ministro isso é uma questão de polícia=
218 Reinaldo
Azevedo
=é questão de governo, de política pública.
219
220
221
Ministro mas no caso específico é uma infração grave à lei!
polícia. as pessoas estão comprando pela internet (0,2)
como você controla? é outro problema.
Entrevista José Dirceu
Bloco I
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
Marília
Gabriela
boa noite! no centro do roda viva de hoje claro a eleição de
dilma rousseff à presidência da república. .hh
primeira mulher eleita para governar o país, ela teve mais de
cinquenta e cinco milhões de votos e será nossa presidente
pelos próximos quatro anos .hh trouxemos esta noite ao programa
um de seus grandes eleitores (0.2)
o ex ministro da casa civil de lula jose dirceu .hh
ele participou da campanha de dilma agindo nos bastidores sem
aparecer muito, mas fazendo mui::to barulho quando aparecia
((josé dirceu levanta as sobrancelhas))
dirceu continua sendo uma grande influência no pt e está aqui
132
11
12
para analisar a vitória pra falar do futuro e pra dizer qual
será seu papel no governo dilma (0.2)
((apresentação dos entrevistadores))
21
22
23
24
pra começar. ahn:: muito obrigada pela presença ze dirceu vou
fazer um social rápido ANtes de chegar, a ao ao que importa
(0.5)você não ta prejudicado com essa entrevista hoje? não ta
de ressaca? comemorou [em ]
25 José
Dirceu
[hhh]
26 Marília
Gabriela
brasília °ontem° ou não?
27
28
José
Dirceu
não. >não to de ressaca<. comemorei, como
milhões de brasileiros=
29
30
Marília
Gabriela
=não não. to perguntando daquela comemoração particular lá em
[brasília ]
31 José
Dirceu
[não,não]não comemorei em particular.[eu-]
32 Marília
Gabriela
[mas] você foi a brasília?
33
34
35
36
37
José
Dirceu
fui a brasi::lia. (0.2) acompanhei a votação durante o di::a
depois fui (0.2) ao comite:: participei:: vi a ministra, agora
nossa presidente eleita fazer seu pronunciamen::to. depois
(0.5)comi alguma coisa em um restaurante e fui, >que eu tinha
que acordar cedo< pra chegar em sao paulo cedo hoje
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
Marília
Gabriela
então tá bom. então vamo lá (0,5)
OH nao adiantou na::da, estamos aí mais quatro anos (0.2)
dois meses atrás você disse essa frase num discurso,
na bahia (0.2) e hoje você pode repeti-la quantas vezes
quiser, porque ela virou verdade, ne? o pt ta ai pra (0.2) mais
quatro anos. e ontem, ao sair da cabine eleitoral, você
declarou <não devo (0.2) não posso (0.2) e não quero ter cargo>
no governo dilma (0.5) a minha pergunta é a seguinte,
você ta gostando da sombra ze dirceu?,
eu quero dizer, você prefere ser influente mas sem cargo?,
e como é que você vai nos convencer de que você
não vai participar mes::mo do governo dilma?
50
51
52
53
54
55
56
57
58
59
60
José
Dirceu
.hh não, eu não atuo nem nos bastidores, nem nas sombras,
eu atuo abertamente e publicamente no país, aliás, sempre o
fiz,eu fui eleito a primeira vez presidente do centro acadêmico
nas ruas, com repressão bomba de gás lacrimogêneo cacetete,
cavalaria, patas de cavalaria, e depois de novo >presidente< da
ue, (0.2) da >mesma maneira< e fui eleito deputado estadual,
>três vezes federal fui candidato a governador<,
fui ministro de estados, sempre publicamente. cassado pela
câmara, <sem provas>. (0.2)
eu voltei a vida política como militante do pt, como cidadão
[eu tenho um blog-]
61 Marília
Gabriela
[mas na campanha] da dilma, você [ tava::]
62
63
64
65
66
67
68
69
70
José
Dirceu
[eu atuei] como membro da
direção nacional eu sou membro da direção nacional do pt
e atuei como tal. eu não era membro da coordenação mas
como membro da direção eu percorri o país (0.2) .hh
defendi o nome dela desde fevereiro de dois mil e oito (0.2)
e nove perdão. percorri o país, trabalhei pras alianças,
principalmente com o pmdb, com o >psb, pc do b e pdt<,
pelos palanques estaduais, que lhe deram a vitoria, °muitos
deles° foram fundamentais. e trabalhei também pra construir os
133
71
72
73
74
75
76
77
78
79
80
81
82
83
84
85
discursos, as propostas, porque sou. militante do pt,
sou dirigente do pt, e no pt fiz esse trabalho. não tenho
participação (0.2) direta na coordenação e não terei no
governo. (0.2)como eu disse e quero repetir (0.2)
>não devo não quero e não posso< eu tenho primeiro que (0.2)
>prestar contas a justiça< já que eu estou sendo acusado no
supremo tribunal federal, de chefe de quadrilha
e de corrupção, não é pouca coisa. (0.2)
como eu sou inocente (0.5)
((Dirceu aponta para si, corroborando a fala de inocente))
e nesses anos todos (0.2) todas as investigações inquéritos
processos cpis que eu respondi eu fui absolvido inclusive na
justiça federal já fui absolvido duas vezes (0.2)na primeira e
na segunda instância. sofri uma devassa da receita de dezoito
meses. fui declarado em dia. não é pouca coisa no brasil. sofri
uma devassa e fui inocentado. não há nada contra mim
410
411
412
413
414
Dirceu não existia mensalão eu to dizendo. esse dinheiro não é
dinheiro pra comprar parlamentar (0,2) é dinheiro pra campanha
eleitoral (0,2) eu me recuso- >a não ser que me apresente<
uma prova que houve compra de deputados para votar. por que
que o governo precisava [comprar deputados?]
415
416
Augusto
Nunes
[ então nós temos ] quarenta
injustiçados no [ supremo?]
417
418
Dirceu [não isso]aí- isso quem vai dizer é o supremo.
eu não posso dizer [se são injustiçados]
419
420
421
422
423
424
425
426
Guilherme
Fiuza
[ não essa questão ]
>as vezes eu vejo ela< um pouco mal colocada a questão
do mensalão porque é muito dificil a opinião pública trazer
simular uma corte fazer de novo esse processo.
o processo ta correndo, vai vir o julgamento .hh
o que mais me impressiona (0,2) nesse episodio (0,2)
é que você hoje >por exemplo< poderia ta sentado na
cadeira da dilma, ne? [começou]
427 Dirceu
[ genero]sidade tua
428
429
430
431
432
433
434
435
436
437
438
439
440
441
442
443
444
445
446
447
Guilherm
e Fiuza
é, não- mas o que a gente sabe é o seguinte é:: é:: começou o
governo lula você foi fundamental (0,2) na criaçao dessa
candidatura lula na ideia do- você as vezes é apresentado como
radical. mas eu nao vejo como radical ne? quer dizer na
verdade a guinada moderada foi conduzida por voce naquela
epoca. o lula tinha dificuldades dentro do pt, tinha desgaste
da opinião publica (0,2) era o candidato que perdia ne? você
ajudou o lula a tornar palatável aquela vitoria .hh com toda a
negociação com a equipe econômica anterior que o paloci
participou e você também (0,2) um momento importante da
transição brasileira e assume aquele governo muito forte .hh
ne? legítimo, renovação etc. tinha todo o respaldo popular e
institucional, ne? (0,2) de repente começa a acontecer um
negocio que você deve ter uma visão crítica >em relação a isso
também< porque houve de FAto ne? um um desvio, um duto que
você chamou de ( ) duto ne? com contratos fictícios de
empresas estatais que iam parar nos cofres do partido ne?
>quer dizer< isso aconteceu e aconteceu de maneira sistemática
(0,2) eu gostaria de saber é:: é:: você tinha muito poder no
governo inclusive
448 Marília
Gabriela
guilherme a pergunta [por favor]
134
449
450
451
452
453
454
Guilherm
e Fiuza
[conselhos] condições é:: é:: passavam
por você, a minha curiosidade é a seguinte vendo esse esse
desvio sistemático (0,2) havia uma doutrina de que o estado
precisa fortalecer o partido? houve vista grossa? houve
distração? porque que houve um grande desvio sistemático houve
ne? qual a tua avaliação disso?
455
456
457
458
459
460
461
462
463
464
465
466
467
468
Dirceu >veja bem< talvez tudo o que você relatou explique que fui
sendo transformado no principal alvo (0,2) desse episodio de
caixa dois e porque que o outro episodio do caixa dois não tem
corrupção, não tem formação de quadrilha, foi desmembrado,
está na justiça comum:: que é a do eduardo azeredo de noventa
e oito. e porque que esse ganhou formação de quadrilha (0,2)
corrupção ativa (0,2)ficou no supremo. eu não tenho foro
privilegiado. (0,2) eu não era ministro nem deputado. eu tinha
que ta na justiça como eu JA FUI julgado >na justiça comum<
por enriquecimento ilícito e por >impunidade administrativa<
fui absolvido na primeira e segunda instancia e a decisão do
poder judiciário é CRItica com relação a denuncia. é só LER os
autos que tão no- talvez explique. eu me con-si-de-ro vítima
(0,2) de um processo político
680
681
Marília
Gabriela
você ainda planeja pedir anistia ao congresso pra ter de volta
os seus direitos políticos?
682
683
684
685
686
687
688
689
690
José
Dirceu
não. primeiro eu vou me defender no supremo tribunal federal
(0,2) isso eu to fazendo certo? e vou me defender na sociedade
se for necessário ate o julgamento °ne°? eu prefiro não fazê-lo
desde que o julgamento não seja político seja um julgamento
(0,2) jurídico se transformar numa luta política contra mim,
vou ter que me defender no país não que o supremo FAça eu digo
que as forças políticas de oposição queiram transformar agora
o meu julgamento ou no terceiro turno da eleição ou na- pra me
condenar por razões [políticas ne?]
691
692
Sergio
Liro
[eu- eu- eu ] queria perguntar isso
[pra voce ]
693
694
695
Marília
Gabriela
[pera um pou]quinho só.
vamos terminar esse bloco e assim que voltar você é o primeiro
a perguntar ta bom [sergio?]
696 Sergio
Liro
[certo ]
697
698
Marilia
Gabriela
então terminando o primeiro bloco do roda viva com
o ex-ministro jose dirceu e voltamos em seguida. até já
Bloco II
128
129
Augusto
Nunes
você disse na campanha do mário covas “eles precisam
apanhar [ na RUA e na urna”, tá gravado ]
130
131
Ministro [não eu não disse na campanha do]
mário covas [ nada disso]
132 Augusto [tá gravado!]
135
Nunes
133
134
Ministro mas não é isso o que você está dizendo.
que aí o teles[pectador vai achar que-]
135 Augusto
Nunes
[ mas como dirceu? ]
136 Ministro estava numa assembleia de professores-
137 Augusto
Nunes
quem era que vai- que deveria apanhar?
138 Ministro de uma entidade (0,2)
139 Augusto
Nunes
nós?
140
141
142
Ministro o:: (0,2) eu usei a expressão apanhar, como posso usar outra
como vencer e derrotar. quando?
que que tem na minha vida=
143 Augusto
Nunes
=apanhar tem outro significado.
144
145
146
147
Ministro não. que que tem na minha vida? (0,2) eu tô quarenta anos
na vida pública, quarenta e cinco agora. já se foram cinco
anos. eu fui deputado. fui deputado federal, estadual,
fui ministro-
247
248
Marília
Gabriela
OH ZÉ::: a imprensa foi durante anos acusada de ser petista.
de ser lulista particularmente. durante anos=
249
250
José
Dirceu
=devia ser, devia ta tendenciosa.
[o pt-]
251 Marília
Gabriela
[nessa] época ela era interessante então=
252
253
254
255
José
Dirceu
=mas era denunciada. o que eu tô dizendo quando critico a
imprensa, é que eu to exercendo um direito que eu tenho (0,2)
por isso que eu fiz um blog. se eu pudesse, eu teria uma
televisão um rádio um jornal. eu não POSSO-
256 Marília
Gabriela
mas daí a le[gislar ]
257
258
José
Dirceu
[não não]
não tem legislação [sobre isso]
259
260
Marília
Gabriela
[em cima de] um clube
[ par-ti-da-ris-mo]
261 José
Dirceu
[não, não. co:mo? ]
262 Paulo
Moreira
você não tem um jornal?
263
264
José
Dirceu
não. a não ser que você tenha comprado um e colocado meu nome
[hhh]
265 Paulo
Moreira
[hhh]
136
Bloco III
258 Marília
O:: ZÉ! você é lobista hoje! é isso?
259 Dirceu
não. não sou.
260 Marília
você, você faz business.
261
262
Dirceu
ºnãoº. não faço. faço consultoria. sou advogado.
porque que os outros consultores não são lobistas e eu sou?
263 Marília
[[não! tá bom
264 Dirceu [[diz pra mim [ºissoº]
265 Marília
[ não ] porque é-
266 Dirceu
não. é uma [coisa]
267 Marília
[não é]uma profissão? existe uma profissão=
268
269
Dirceu
=não! no brasil- lobista tem um caráter,
de tráfico de influências.
270 Marília
bom-
271
272
Dirceu
tem um caráter pejorativo e quase criminoso.
eu sou advogado e consultor!
273
274
275
276
277
278
279
Paulo
tá. >eu justamente queria perguntar isso< (0,2)
>dirceu<, eu conheço gente que se emocionava ao sair de casa,
em sessenta e oito pra ver você fazer discurso no cento de são
paulo. muita gente que ficou feliz quando você voltou muita
gente que teve identificação com você da sua luta política
>dessas suas idéias e tudo< hoje essas pessoas, perguntam
assim, como é que o zé dirceu ganha a vida?
280 Dirceu
trabalhando igual[você ganha]
281 Paulo [aí fica uma] coisa com[plica::da]
282 Dirceu
[não! igual] você ganha
283 Paulo
[[não. eu ganho
284 Dirceu
[[igualzinho
285 Paulo
todo mundo sabe onde eu trabalho=
286 Dirceu =e todo mundo sabe onde eu tra [ balho ]
287
288
Paulo [não não]
quais são os seus- as pessoas não sabem quais os seus clientes.
289 Dirceu
[[não, o:: paulo moreira leite!
290 Paulo
[[as pessoas não sabem
291 Dirceu
o:: paulo moreira leite!
292 Paulo
exatamente.
293
294
Dirceu
você pergunta pros outros consultores quais são os clientes
deles?
295
296
297
Paulo não. AÍ é que tá! você não é um consultor. você tem uma
biografia e- de repente, a sua biografia, ela tá in- tá
diferente. ela tá es [tranha]
137
298
299
Dirceu [não tá] nada de diferente!
eu sou advogado e consultor.
300 Marília
mas você é um consultor privilegiado! você tem=
301
302
Dirceu =quer dizer que eu não posso trabalhar pra levar
[investimentos brasileiros ]
303 Paulo
[claro que po::de trabalhar]
304 Dirceu
pro exterior pro peru pra [colômbia]
305 Paulo
[claro que] pode
306 Dirceu
pra europa eu não posso trazer investimentos pro brasil?
307 Paulo
o que as pessoas querem saber como um homem público=
308
309
Dirceu
=como um homem público me CASSARAM me tiraram do governo
queriam [me banir de dentro do país]
310
311
Marília [ mas você ainda influi ]
mas você ainda é um homem influente nesse partido e neste poder
312
313
Dirceu eu sou influente? não tenho nenhuma
[incompatibilidade com]
314
315
Marília
[então como você pode] fazer
[ lobi tendo essa influência? ]
316
317
Dirceu [eu não faço lobi! você que tá] dizendo que eu faço
[eu não faço lobi]
318 Marília
[ OH MEU DEUS ], faz o QUE então?
319 Dirceu faço consultoria!
320 Marília
consultoria que seja
321
322
Dirceu NÃO NÃO. que seja não. você sabe. vou repetir marília gabriela,
porque isso é grave[vou repetir]
323 Marília
[não, mas eu] to falando de um lado bom
324 Dirceu lobi para o telespectador significa outra coisa
325 Marília
pô, mas então você tá desmentindo isso para o telespectador
326 Dirceu além de cassado eu sou advogado. exerço minha profissão.
461 Marília
Gabriela
você conhece a consultoria. você tem informações privilegiadas!
462 José
Dirceu
não. [ informações que]
463 Marília
Gabriela
[frequentando esse] governo, nos seus intestinos.
464
465
466
467
José
Dirceu
eu tenho informações na minha experiência de quarenta anos de
vida. porque eu leio, estudo trabalho, pesquiso, por isso que eu
tenho informações. porque eu estudei. porque eu trabalhei
quarenta anos. trabalhei de office-boy almoxarifado arquivista.
138
468
469
470
depois fui chefe de escritório,depois fui assessor jurídico.
depois trabalhei como empresário- como pequeno empresário de
confecção. depois trabalhei como=
471 Marília
Gabriela
=eu sei zé de tudo isso.
472 José
Dirceu
advoguei durante todo o tempo. eu tenho experiência.
473 Augusto
Nunes
e foi sobretudo chefe da casa civil.
474 José
Dirceu
mas não há nada que impeça que quem foi ministro-
475 Augusto
Nunes
nada?
476
477
José
Dirceu
ser consultor e advogado então, nenhum advogado que passou pelo
ministério da justiça poderia advogar.
478 Paulo
Moreira
é que você não é um ministro como os outros. essa é a questão!
139
Convenções de Transcrição
Convenções baseadas nos estudos de Atkinson e Heritage (1984), Schiffrin (1987) e
Tannen (1989):
… pausa não medida.
(0.5) pausa em décimos de segundo, medida relativamente ao ritmo
prosódico do segmento no qual se encontra inserida.
. entonação descendente ou final de elocução.
? entonação ascendente.
, entonação de continuidade.
- parada súbita.
= elocuções contíguas, enunciadas sem pausa entre elas.
palavra ênfase (parte da sílaba e/ou palavra).
MAIÚSCULA ênfase mais forte ou fala em voz alta.
! tom animado, não necessariamente exclamativo.
palavra fala em voz baixa.
>palavra< fala mais rápida.
<palavra> fala mais lenta.
: ou :: alongamentos.
[ início de sobreposição de falas.
] final de sobreposição de falas.
[[ colchetes duplos no início do turno simultâneo.
( ) fala não compreendida.
(palavra) fala duvidosa.
(( )) comentário do analista: descrição de atividade não verbal.
“palavra” fala relatada.
subida de entonação (mudança de entonação).
descida de entonação (mudança de entonação).
hh aspiração (em parêntesis quando no meio de palavra).
.hh inspiração (em parêntesis quando no meio de palavra).
hhh riso (em parêntesis quando no meio de palavra).
Recommended