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UNIVERSIDADE FEEVALE
ALINE RAMOS BARROS SHIMODA
EXPERIÊNCIAS TRANSGERACIONAIS COM A TRADIÇÃO DA COZ INHA
JAPONESA NO VALE DO SINOS / RS: ESTUDO SOBRE TRAJET ÓRIAS SOCIAIS E
O PATRIMÔNIO ALIMENTAR NAS METRÓPOLES CONTEMPORÂNEA S
Novo Hamburgo
2014
1
UNIVERSIDADE FEEVALE
ALINE RAMOS BARROS SHIMODA
EXPERIÊNCIAS TRANSGERACIONAIS COM A TRADIÇÃO DA COZ INHA
JAPONESA NO VALE DO SINOS / RS: ESTUDO SOBRE TRAJET ÓRIAS SOCIAIS E
O PATRIMÔNIO ALIMENTAR NAS METRÓPOLES CONTEMPORÂNEA S
Trabalho de Conclusão apresentado ao Mestrado em Processos e Manifestações Culturais como requisito para a obtenção do título de mestre em Processos e Manifestações Culturais.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Luiza Carvalho da Rocha
Novo Hamburgo
2014
2
3
DEDICATÓRIA
A todos japoneses e seus descendentes que,
imbuídos pelo sentimento da esperança,
proporcionaram uma rica troca cultural.
4
AGRADECIMENTOS
Sempre e eternamente, aos meus queridos e
inseparáveis pais, que, em meio às minhas ausências nos
momentos de profunda reflexão e estudos, não deixaram de
acreditar que todo esforço gera conquistas e me apoiar neste
momento tão importante.
Em especial, ao meu amado esposo, Jiro Shimoda,
por mais uma vez fazer parte de tantas conquistas e, sempre
juntos, possibilitando que nossos sonhos virem realidade, em
que a alegria de um é realização do outro.
À querida e inesquecível Prof.ª Dr.ª Ana Luiza
Carvalho da Rocha, pela inexplicável sabedoria e paciência,
mostrando-me e conduzindo-me pelos caminhos fascinantes
da Antropologia, à qual sou eternamente grata por essa
descoberta.
Às amadas e parceiras amigas Prof.ª Me. Adriana
Stürmer, Prof.ª Dr.ª Ana Karin Nunes e Prof.ª Dr.ª Carol
Delevatti Colpo, que sempre me apoiaram e foram
incentivadoras desta minha caminhada.
Às minhas parceiras de pesquisa que através de suas
narrativas proporcionaram a realização desta etapa que
marca uma fase importante em minha vida.
5
“O comer e o beber são uma das manifestações mais importantes da vida do corpo grotesco. As características especiais desse corpo são de que ele é aberto, inacabado,
em interação com o mundo. É no comer que essas particularidades se manifestam da maneira mais tangível e mais concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele engole,
devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar de si, enriquece-se e cresce às suas custas. O encontro do homem com o mundo que se opera na grande boca aberta que mói, corta e
mastiga é um dos assuntos mais antigos e mais marcantes do pensamento humano”. (BAKHTIN, 1993, p.245)
6
RESUMO
A presente dissertação tem como tema de pesquisa a cozinha japonesa e os seus
saberes e fazeres (DE CERTAU, 1998) no contexto dos estudos das modernas
sociedades complexas (VELHO, 1999). Através do estudo de trajetórias sociais e
narrativas etnobiográficas de duas gerações de donos e gerentes de restaurantes de
comida japonesa no Vale do Sinos, assim como da adoção de técnicas e instrumentos
de investigação oriundos da etnometodologia para a realização do trabalho de campo, a
pesquisa orienta-se para a compreensão das formas de disseminação da tradição da
cozinha nipônica nos centros urbanos no sul do Brasil. Considerando-se as categorias
culinárias da comida japonesa (MACIEL, 2006) como sendo comestíveis, preferenciais,
cotidianas e emblemáticas, o estudo aborda o preparo e os métodos culinários tanto
quanto as práticas alimentares da cozinha japonesa segundo o foco de uma tradição
herdada, tendo como pano de fundo o cenário globalizante das formas de alimentação
no interior de uma sociedade complexa.
Palavras-chave: Práticas Culinárias. Tradição. Globalização. Trajetória Social.
Cozinha Japonesa.
7
ABSTRACT
The research topic of this dissertation is the Japanese cuisine and its knowing and
practice (DE CERTEAU, 1998) in the context of modern complex society studies
(VELHO, 1999). Through the ethno-biographical narrative and study of two generations
of Japanese restaurants owners and managers in Vale do Sinos and by adopting ethno-
methodology instruments and techniques to carry out field work, the research leads to
the comprehension concerning the ways of dissemination of the Japanese cuisine
tradition in urban areas of southern Brazil. Considering culinary categories of Japanese
food (MACIEL, 2006) as being edible, preferential, ‘everyday’ and emblematic, the study
deals with preparation and culinary methods as much as the Japanese cuisine feeding
practice according to an inherited tradition focus, having the global ways of feeding
within a complex society as a background.
Keywords : Cuisine Practice. Tradition. Globalization. Social Trajectory. Japanese
Cuisine.
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Serena Kakuta Linhar e Aline ....................................................................... 24
Figura 2 – Akemi Kakuta Linhar e Aline ......................................................................... 26
Figura 3 – Akemi ............................................................................................................ 27
Figura 4 – Localização Shissô Restaurante................................................................... 30
Figura 5 – Localização Tokiomaki Temakeria ................................................................ 32
Figura 6 – Elementos Restaurante Shissô..................................................................... 50
Figura 7 - Shissô Festivais ............................................................................................. 62
Figura 8 – O Restaurante .............................................................................................. 63
Figura 9 – Culinária Japonesa ....................................................................................... 64
Figura 10 - Container Tokiomaki .................................................................................... 66
Figura 11 – Home Grupo Container ............................................................................... 68
Figura 12 – Temaki ........................................................................................................ 69
Figura 13 – Combos e Yakissoba .................................................................................. 72
Figura 14 – Família Kakuta Linhar ................................................................................. 80
Figura 15 – Akemi e Irmãs e Infância ............................................................................ 82
Figura 16 – Serena Infância ........................................................................................... 88
Figura 17 - Cerâmica Japonesa e Sashimi .................................................................... 88
Figura 18 - Oshibori e Noren ......................................................................................... 91
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11
2 COZINHA JAPONESA EM SOCIEDADES COMPLEXAS: COMIDA, CULTURA E
ANTROPOLOGIA ...................................... ....................................................................... 16
2.1 UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE O CAMPO DOS ESTUDOS HISTÓRICOS DAS
PRÁTICAS ALIMENTARES ............................................................................................... 17
2.2 SITUANDO A PESQUISA SOBRE A COZINHA JAPONESA NOS ESTUDOS DE
SOCIEDADES COMPLEXAS ............................................................................................ 21
2.3 AS PRÁTICAS CULINÁRIAS E A PESQUISA NO CONTEXTO DAS METRÓPOLES
CONTEMPORÂNEAS ....................................................................................................... 28
2.4 COZINHA JAPONESA E O SEU QUADRO CONFUSO .............................................. 34
2.4.1 Visual: onde tudo se conecta ................ ................................................................ 41
3 A COZINHA JAPONESA E O MERCADO DE ALIMENTOS COMO CAMPO DE
POSSIBILIDADES .................................... ........................................................................ 44
3.1 A COZINHA E SUA CULINÁRIA COMO UM PRODUTO CULTURAL ......................... 45
3.2 O CONSUMO DA COZINHA GLO-CAL ....................................................................... 53
3.3 A COZINHA JAPONESA E SUAS MÚLTIPLAS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS . 60
4 KAZOKU: A TRANSFORMAÇÃO DAS TRADIÇÕES E DAS MEMÓR IAS EM
FAMÍLIAS DE DESCENDÊNCIA NIPÔNICA ................. ................................................... 75
4.1 OS RESTAURANTES NO INTERIOR DE MEMÓRIAS DA CULTURA NIPÔNICA:
ADAPTAÇÕES E RECRIAÇÕES ...................................................................................... 76
4.2 O ELO DO OSHIBORI E O NOREN NAS TRADIÇÕES JAPONESAS ....................... 90
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................ ............................................................... 95
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 98
10
ANEXOS .......................................................................................................................... 107
ANEXO A ......................................................................................................................... 108
ANEXO B ......................................................................................................................... 115
ANEXO C ......................................................................................................................... 134
11
1 INTRODUÇÃO
Iniciar uma trajetória intelectual dentro de uma perspectiva interdisciplinar não
tem por prática ser uma tarefa cômoda, pois há um enorme campo a ser explorado e
pontos de vista a serem compreendidos, assim se apresenta minha trajetória intelectual
seguindo direções e caminhos que, aos poucos, são revelados e a cada fase percorrida
uma nova expectativa se apresenta dentro dos estudos sociais. A escolha por novos
caminhos, como um mestrado interdisciplinar, trouxe descobertas durante minha
trajetória que serviram de motivação na busca de outros panoramas para o
desenvolvimento das minhas pesquisas acadêmicas. Dei-me conta de que não é de
agora esta empreitada, e sim, desde minha graduação tenho buscado uma visão mais
ampla da minha área de origem: a comunicação, onde no meu inquietante, vejo seu
papel mais intenso dentro do contexto social.
Acredito que a comunicação vai muito além de uma estratégia de mercado, ideia
homogênea e muitas vezes difundida da área. Mas a angústia é a possibilidade de
ampliar a comunicação ao comunicador em perspectivas mais profundas em que este
possa se desenvolver como um agente social ultrapassando a limitada ideia de um
servidor de mercado e incentivador do consumo.
Acabo, portanto, direcionando-me para a integração das disciplinas que
contribuem nos diálogos transversais e paralelos em meio a minhas incertezas onde,
por fim, me é apresentada a Antropologia. Esta contempla uma parte significativa dos
meus anseios e acalenta meus sentimentos de angústia do envolvente jogo social.
Surge um diálogo com questões que antes se apresentavam como monólogos em
meus pensamentos.
É trabalhando com a Antropologia que pude misturar os mais variados
sentimentos e percepções renovadas do cotidiano, pude perceber sensível e
subjetividade, sutileza e clareza, aprovação e reprovação, experiência e inexperiência,
um composto que não se torna uma tarefa fácil, mas que contribui para a compreensão
da existência do outro como uma alteridade na participação de vidas, mensurando em
12
meias variações os processos de negociações que se fundam no interior das interações
humanas.
Durante a pesquisa, tive vários desafios que tocaram diretamente minha
experiência acadêmica, como a insegurança no trabalho de campo, os métodos
desenvolvidos, até então não vistos por mim, levando a uma perspectiva diferente de
trabalho. Tendo como o mais tocante ter um tratamento com as pessoas de maneira
muito mais cautelosa e íntima, organizando minhas percepções na busca de uma
condução para a tradução dos jogos de memória e de vida das minhas parceiras de
pesquisa.
Outro aspecto, que parte das fotografias geradas durante o processo de
execução dessa dissertação, está na antropologia visual que tenho muito a aprender,
no qual, a partir dela temos o sentido da imagem para as Ciências Sociais tornando-se,
também, um discurso científico em que ela vem contribuir para o reforço de uma
narrativa, mesmo que esse resultado seja sempre envolto pela não objetividade, pois,
assim como a arte, a imagem se apresenta de forma a ser interpretada dentro das
diferenciadas cargas culturais, possibilitando novas formas de conhecimento que não
somente textual.
Procurei que as imagens pertencentes a este trabalho fossem exploradas sob
uma perspectiva defendida por Rocha (1995) que acredita na linguagem visual como
uma fonte de conhecimento humano, assim, compreender, através dos símbolos, o
mundo em que se encontra o discurso do pesquisador.
Assim, busco através da Antropologia um suporte para os estudos culturais, aqui
neste caso interétnico, em que a escolha do meu tema cozinha japonesa, assim como
os recortes selecionados, considerados num contexto de uma trajetória interdisciplinar,
tem uma identificação direta com uma etnia muito próxima a minha pessoa e marca um
diferenciado modo de vida, a partir das práticas culinárias. Essa relação se inicia no
meu casamento interétnico com um nissei (descendente de pai japonês e mãe
brasileira) em torno de uma convivência familiar dentro de uma troca cultural. São as
representações que se velavam diretamente no cotidiano familiar que se justificou para
a escolha do tema deste trabalho.
13
As práticas diferenciadas da culinária e a cozinha japonesa, aos poucos,
tornavam-se fatores muito além de uma necessidade básica, uma vivência carregada
de símbolos e explicações, o ato alimentar era o tocante de surpresas dentro de uma
cultura muito diferenciada, em que as cores, os sabores e todas as misturas traziam-me
um valor cultural indescritível.
Com o auxílio da Antropologia em sua consistência nos estudos das interações
humanas dentro de tramas envolvidas de subjetividade, esse trabalho procura trazer
como tema de pesquisa a cozinha japonesa e suas tradições através da trajetória social
de indivíduos pertencentes a uma sociedade complexa. Pretendemos compreender as
narrativas biográficas de donos e gerentes de restaurantes de comida japonesa no Vale
do Sinos no que tange à disseminação da tradição da cozinha nipônica nos centros
urbanos no sul do Brasil. A pesquisa tem seu foco no estudo do universo da cozinha
japonesa, seus saberes e fazeres (DE CERTAU, 1998), permeando as trajetórias de
duas gerações de famílias em conexão com as categorias culinárias da comida
japonesa, entendida nos termos que aponta Maria Eunice Maciel (2006) como sendo
comestíveis, preferenciais, cotidianas e emblemáticas. Em decorrência, temos que o
preparo e os métodos culinários, assim como as práticas alimentares dos japoneses,
conectam-se diretamente com sua raiz cultural.
As práticas culinárias japonesas compreendem segredos rituais de sua cultura
de origem, que têm como objetivo, segundo sua tradição, preservar a integridade dos
sabores dos alimentos, permanecendo a regra do estado puro em que a mistura é
refutada e a apresentação do prato é apreciada. Nesse sentido, os atos alimentares
não são decorrentes de um instinto de sobrevivência, ou seja, de uma necessidade
humana de se alimentar, mas sim é um ato que faz parte de uma organização social
onde se prospecta que o interesse por um cardápio diferenciado, como os pratos da
culinária japonesa, está intimamente ligado aos aspectos culturais.
Procuramos compreender a cozinha japonesa como fruto de fluxos de trocas
sociais e culturais entre o Oriente e Ocidente e da presença de uma tradição de
gastronomia milenar nos grandes centros urbano-industriais das modernas sociedades
ocidentais. A culinária japonesa, como parte integrante dessa dinâmica cultural, é um
fenômeno que vem ocorrendo nas grandes e médias metrópoles brasileiras, compondo,
14
com a pluralidade gastronômica nacional e regional, um cenário provocativo de
pesquisa sobre os processos e as manifestações culturais no mundo contemporâneo.
A realização deste trabalho teve como proposta alguns objetivos que buscaram
compreender as trajetórias sociais de proprietários e gerentes de restaurantes
japoneses no Vale do Sinos em suas relações com a tradição da cozinha japonesa na
região, além de analisar os processos culturais que orientaram os projetos de vida de
proprietários e gerentes dos restaurantes japoneses no ramo da gastronomia da região.
Nessa perspectiva, a Dissertação se estruturou da seguinte forma: o segundo
capítulo, Cozinha Japonesa em Sociedades Complexas: Comida, Cultura e
Antropologia, apresenta e delimita o universo de nossa pesquisa, assim como uma
compreensão dos conceitos e toda a prática social que se articula no envolvimento e na
junção deles. Buscamos relacionar trabalhos desenvolvidos nessa temática,
contribuindo para o entendimento da cozinha como um produto cultural. Situamos a
pesquisa dentro dos estudos em sociedades complexas nos apoiando na base dos
conceitos que Gilberto Velho (1999) nos fornece em meio a um processo de diálogo
entre as parceiras de pesquisa em suas travessias sociais. Transcorremos, sob o ponto
de vista antropológico, as experiências no ramo de negócios da cozinha japonesa
dentro de narrativas etnobiográficas, compondo um diálogo evidente entre tradição e
modernidade se apresentando num lucilante cenário de dramas e dilemas vividos.
Seguimos aos passos metodológicos dentro de uma cozinha japonesa e o seu quadro
confuso no tocante da antropologia como uma ciência interpretativa não sendo uma
tarefa fácil em sua plenitude na abordagem do método de pesquisa no interior de um
estudo de narrativas etnobiográficas, tendo como contexto o uso de entrevistas não
diretivas dentro de uma perspectiva etnometodológica.
O terceiro capítulo, denominado A Cozinha Japonesa e o Mercado de Alimentos
como Campo de Possibilidades, procuramos situar as transformações das práticas
culinárias e da cozinha japonesa com o fenômeno econômico e cultural da globalização
apresentado por aspectos de inter-relações entre mercado e alimento com o contraste
das escolhas de indivíduos dentro de cenários globalizantes. Considerando os projetos
individuais, bem como o cenário das cozinhas no Vale do Sinos nas suas diversificadas
opções alimentares, no composto das culinárias alemã, italiana e regional. As relações
15
diferenciadas que se estabelecem entre mãe e filha tendo a cozinha japonesa como
referência em que cada uma com suas definições de realidades executam suas
trajetórias dentro do seu ramo de negócio.
No quarto capítulo deste trabalho, Kazoku: A transformação das tradições e das
memórias em famílias de descendência nipônica, seguindo o conceito de quadros
sociais da memória em M. Halwbachs, abordamos os saberes e fazeres da cozinha
japonesa de Serena Kakuta Linhar e Akemi Kakuta Linhar sob a ótica diferencial da
memória coletiva, memória social e memória individual do processo migratório de seus
antepassados na região do Vale do Sinos. Buscamos a compreensão das experiências
transgeracionais em duas famílias de descendência japonesa em duas cidades do Vale
do Sinos (São Leopoldo e Novo Hamburgo), envolvidas com práticas culinárias, a partir
dos conceitos de projeto social, projeto familiar e projeto individual. Através desse
recorte, procuramos desvendar as continuidades e as rupturas com a tradição familiar
na construção de seus negócios no ramo dos restaurantes de comida nipônica na
região. Evidenciamos seus dramas em manter seus restaurantes em meio processo
homogeneizante do mercado de alimentos, ambas se apoiando no universo de
símbolos que sustentam suas trajetórias nesse ramo de negócio.
Portanto, pensamos esta dissertação em cinco eixos temáticos: cozinha
japonesa, trajetória social, memória e tradição, contemplando essas categorias não em
separado, mas sim sob uma ótica de relação entre essas temáticas, abrindo
possibilidades para novos campos da pesquisa.
16
2 COZINHA JAPONESA EM SOCIEDADES COMPLEXAS: COMIDA, CULTURA E
ANTROPOLOGIA
“Adoro cozinha, se não fosse isso, eu não teria ficado aqui, também não via o tempo passar! Não vivo sem
gastronomia”. (SERENA, 2013)
A interdisciplinaridade é o campo no qual se situa a produção do conhecimento
desta dissertação na área das ciências sociais e humanas, em que se reconhece que o
conhecimento não é constituído de forma neutra e muito menos isolada entre áreas. A
propriedade interdisciplinar do conhecimento acerca dos fenômenos sociais é que ele
se funda em um “caráter dialético da realidade social que é, ao mesmo tempo, una e
diversa e na natureza intersubjetiva de sua apreensão” (JANTSCH; BIANCHETTI, 2011,
p. 36).
Para o caso desta pesquisa, trata-se de articular conceitos e teorias oriundos de
áreas específicas, tais como os da antropologia da alimentação e antropologia das
sociedades complexas e aqueles oriundos da sociologia da cultura e dos estudos da
globalização cultural, assim como os da história da cultura. Sobre o tema, podemos
afirmar que, primeiramente, os estudos da alimentação se voltavam aos olhos de
antropólogos, depois, através de estudos interdisciplinares, passaram a ter presença de
áreas como: sociologia, história, estudos culturais e áreas da saúde, como gastronomia
e nutrição.
Mintz (2001, p. 2), nesse sentido, vem traçar uma breve revisão dos referenciais
entre a comida e seu campo científico, a partir dos anos oitenta do século XX, em que a
“antropologia tem se ocupado com a comida e, particularmente com os papéis que
desempenha na organização da vida social”. Na genealogia desse campo disciplinar, o
autor menciona, por um lado, trabalhos publicados entre os anos trinta e sessenta
sobre “a sobrevivência e a economia doméstica”, em que a comida se apresenta num
papel bem encabulado, mas já se traçavam esboços sobre a temática.
Por outro lado, traçando um paralelo com a história do Brasil, o estudo sobre a
alimentação torna-se mais expressivo por envolver pesquisas acerca das práticas
17
sociais, em que, cada vez mais, se observa a tradução de várias obras estrangeiras,
revelando, por parte dos estudiosos brasileiros, uma busca pelo conhecimento que vai
muito além da cozinha, permeando, no país, os estudos das representações sociais, do
imaginário e do simbólico.
Uma das obras traduzidas para o português, e pioneira no estudo dos sentidos
que constroem a relação entre homem e comida, é de Brillat-Savarin, em a Fisiologia do
Gosto (1825), na qual o autor revela o quanto o estudo acerca do consumo de
alimentos está intimamente ligado a aspectos sociais, evidenciado em sua célebre frase
“dize-me o que comes e te direi quem és” (SAVARIN, 2005).
2.1 UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE O CAMPO DOS ESTUDOS HISTÓRICOS DAS
PRÁTICAS ALIMENTARES
Para esta dissertação, o campo dos estudos históricos das práticas alimentares
tem, no artigo de Carlos Roberto Antunes dos Santos (2005), A alimentação e seu lugar
na História: os tempos da memória degustativa, uma referência com o autor,
destacando conceitos, referenciais teóricos e principais obras que contribuíram para
apontar o lugar da alimentação na história.
Santos (2005) oferece um panorama de autores e assuntos envolvidos,
pontuando e organizando os conceitos trabalhados na área da historiografia,
mencionando os recortes de fundamentação teórica como um dos pontos de partida
para os estudos das práticas alimentares nas sociedades humanas. Segundo o autor,
repertoriando essa historiografia acerca dos estudos sobre a alimentação, nos anos
setenta do século XX, a partir da linhagem da micro-história de Jacques Le Goff e
Pierre Nora, surge a obra de Jean Paul Aron e Louis Frandrin sobre o tema da História
dos Alimentos.
Para os estudos que abordam as práticas alimentares desde a perspectiva da
inserção do indivíduo no contexto de determinadas tradições culinárias, Santos (2005,
p. 15) menciona os trabalhos de E. Hobsbawn e E. Ranger, A invenção das tradições
18
(1997), seguidos das obras de Margaret Visser, O ritual do jantar (1998), sobre a prática
de comer como indução aos relacionamentos sociais, assim como de Ariovaldo Franco,
De caçador a gourmet (2001), e os temas da alimentação e da gastronomia em
referência à educação, à civilidade, à cultura e ao comportamento.
No processo de retomada dos clássicos da área da historiografia, Santos (2005)
considera a obra Felipe Fernández-Arnesto, Comida: uma história (2004), uma das
mais relevantes, ao evocar, em seus estudos, a história da comida a partir da cultura,
ou seja, como integrando a história da culinária. Um ponto sobre o qual o antropólogo
Roberto da Matta - Sobre o simbolismo da comida no Brasil (1987) – discorre, ao
abordar a comida como fenômeno da ordem da reconstrução cultural de um povo, o
brasileiro, abarcando tanto o fenômeno da memória quanto da redefinição de
identidades.
Seguindo sua linha de argumento, Carlos Roberto Antunes dos Santos (2005) faz
referências a teses consagradas que contribuíram para a evolução de estudos na área,
destacando um dos números do periódico da Fundação Getúlio Vargas (33: 2004), mas
o extenso “volume da produção historiográfica que trata da história da alimentação no
Brasil é ainda muito pobre”, assim comparado com estudos nos países europeus,
região muito avançada no que envolve estudos da cultura e alimentação.
Outra referência desta dissertação é a contribuição dos estudos de Carlo Petrini,
Slow Food: princípios da nova gastronomia (2009), acerca da dinâmica globalizante e
mercadológica para a nova gastronomia que a contemporaneidade veicula, um enfoque
que pretende contribuir para a compreensão da reestruturação mercadológica, de
distribuição e de produção de alimentos sob o formato do ritmo frenético e padronizante
do fast food.
Na Antropologia, um dos destaques está na obra de Ana Maria Canesqui e Rosa
Wanda Diez Garcia chamada Antropologia e Nutrição: um diálogo possível (2005), com
importantes textos sobre múltiplos estudos antropológicos acerca da alimentação como
fenômeno sociocultural. Com o retrato do que comem os brasileiros, em vários
contextos históricos, sociais e culturais, temos Raul Lody, em sua obra Brasil bom de
boca: temas da antropologia da alimentação (2008). Explorando a noção de cultura
alimentar e o modo como ela é tratada no debate sobre segurança alimentar nutricional
19
através do conceito de cultura alimentar da antropologia, temos Vivian Braga (2004),
em seu artigo Cultura Alimentar: contribuições da antropologia da alimentação. Todos
esses artigos acima citados servem como contribuintes para um entendimento das
relações que se estabelecem entre cultura e alimento dentro de sociedades complexas.
Em especial, no que tange à pesquisa que é o tema desta dissertação, e que tem
como objeto a cozinha japonesa no Vale do Sinos, destacamos alguns estudos
históricos e antropológicos sobre o patrimônio da cozinha e das práticas alimentares da
cultura nipônica no Rio Grande do Sul que são aqui referenciais. Referimo-nos, aqui, a
pesquisas que foram realizadas na região de Santa Maria/RS para o registro da
gastronomia nipônica como parte dos bens materiais dos imigrantes japoneses no sul
do Brasil (SILVA; SOARES; WOLF, 2011).
Outro estudo com o qual esta dissertação dialoga é o da cozinha japonesa na
região de Gravataí/RS, no qual se analisa a preservação dos hábitos alimentares entre
os imigrantes da colônia japonesa e onde as mulheres continuam a fazer seus pratos
conforme os saberes da tradição de seus antepassados, mas substituindo os
ingredientes originais por similares da região onde moram (GAUDIOSO; SOARES,
2012).
Ainda no âmbito dos estudos sobre a cozinha e a culinária japonesa no Brasil,
temos o estudo realizado em Maringá/PR acerca da percepção dos descendentes
nipônicos a respeito do consumo da cozinha oriental (BASAGLIA; PÉPECE, 2012) na
contemporaneidade. Caracterizado pelos autores como um estudo exploratório, a
pesquisa estabelece laços entre a cultura brasileira e a oriental, os quais são abordados
a partir da compreensão das dificuldades dos imigrantes japoneses na adaptação
alimentar, tendo em vista as particularidades com que costumam tratar os alimentos na
preparação de seus pratos típicos. Os autores apontam para o
“estranhamento/adaptação” vivido pelos imigrantes japoneses na região de Maringá
como um fator de “redescoberta” do mundo japonês em solo brasileiro. E, nessa
perspectiva de análise, o estudo enfatiza a forma como os restaurantes brasileiros que
oferecem comida japonesa, em Maringá/PR, acabam por influenciar outras práticas
alimentares na cidade que não propriamente a de origem japonesa.
20
Para o caso dos estudos que tratam da diferenciação entre a cultura brasileira e
a cultura japonesa, explícita em todas as áreas de atuação social, como nos valores
familiares, nos negócios, na ciência, na espiritualidade e, inclusive, no clima, temos as
pesquisas que tratam das diferenças entre tais práticas alimentares, representadas e
sentidas nos relatos de imigrantes japoneses que vieram para o estado de São Paulo
trabalhar nas fazendas de café:
Em virtude do cansaço e do desconhecimento da culinária brasileira, padecia-se de anemia; pela falta de adaptação ao clima, sucediam-se pequenas enfermidades; e a ansiedade do chefe de família levava os familiares ao esgotamento. De manhã e no almoço cozinhava-se o arroz brasileiro à moda japonesa, comendo-se o oechazuke (arroz com água quente) acompanhado de um pedaço de bacalhau assado. No jantar, uma subalimentação consistente de uma sopa salgada com bolinhos e legumes. Carência de carne. No trabalho de colheita de café sob o sol abrasador e suando-se por todos os poros, o corpo só podia debilitar-se (HANDA, 1987, p. 57).
Evocando a presença histórica da trajetória desses primeiros imigrantes
japoneses marcados pela sua chegada ao porto de Santos, no referido navio Kasato-
Maru1, depois de uma longa travessia entre oceanos (HANDA, 1987), alguns estudos
abordam fato marcante das primeiras relações interculturais entre japoneses e
brasileiros do ponto de vista das diferenças entre ambas as práticas alimentares. A
primeira “prova” que os primeiros imigrantes japoneses fazem da cultura brasileira se dá
na hora de se alimentar.
Mas, como acontece com o processo globalizante, as fronteiras culturais aqui
apresentadas acabam sendo progressivamente dirimidas em suas distâncias, em que o
longe se torna perto e, com isso, cada vez mais, como integrando o contexto das
modernas sociedades complexas, as interações entre os povos e seus costumes e as
suas tradições têm suas distâncias encurtadas.
No que se refere aos estudos da área da antropologia da alimentação, esta
dissertação insere-se na linhagem dos estudos de Maria Eunice Maciel (2001) sobre as
relações entre cultura e alimentação, em particular, no seu artigo Cultura e Alimentação
ou o que têm a ver os macaquinhos de Koshima com Brillat-Savarin?, em que a autora 1 Para mais informações da imigração japonesa e os primeiros japoneses a desembarcarem do Kasato-Maru, faz-se uma referência à minissérie nipo-brasileira Haru e Ntasu, produzida pela emissora de televisão japonesa NHK . Essa minissérie foi reproduzida no Brasil no ano de 2008, dividida em oito episódios.
21
situa as pesquisas em torno das práticas culinárias das mais distintas sociedades como
parte dos estudos sobre os produtos identitários dos povos, assim como de suas
representações e seus valores culturais. M. E. Maciel (2001) parte da definição do
alimento como um valor simbólico, produto das escolhas que todos os seres humanos
fazem no momento da ingestão de alimentos e que está diretamente ligado às decisões
do que comemos e com quem comemos. Nesse sentido, do ponto de vista dos estudos
antropológicos, aborda todo o sistema alimentar, ou seja, as “cozinhas”, discorrendo
sobre um panorama de amplos conceitos e implicações no que envolve a cultura e a
alimentação.
Por essa razão, o tema desta dissertação reconhece a amplitude investigativa do
campo de estudos que ela abrange e, dentro dele, procura compreender, em particular,
a presença da cultura japonesa, sob o ângulo do consumo de suas práticas alimentares
nas cidades de Novo Hamburgo e São Leopoldo, situadas ao longo do Vale do Rio dos
Sinos, no sul do Brasil. E dentro desta perspectiva, optamos a adesão aos estudos
antropológicos sobre trajetórias de famílias e narrativas de etnobiografias de trabalho
para a compreensão das relações entre a comida de descendência japonesa em
contextos urbanos, como o caso das cidades que foram o foco desta dissertação.
2.2 SITUANDO A PESQUISA SOBRE A COZINHA JAPONESA NOS ESTUDOS DE
SOCIEDADES COMPLEXAS
Introduzir a cozinha japonesa como parte dos estudos das práticas alimentares
em uma sociedade complexa moderno-contemporânea é compreender o conceito de
indivíduo em referência ao que Gilberto Velho (1999) propõe, com base no conceito de
Alfred Schutz, de província de significados. Para A. Schutz (apud VELHO, 1999, p. 29),
aos indivíduos estão sempre associadas perspectivas de realidades sociais específicas,
segundo seus estilos e visões de mundo diferenciadas. São as ditas travessias sociais,
que enriquecem os estudos em sociedades complexas, pois são “distintos planos e
níveis de realidade socialmente construídos”. Tais travessias, no âmbito dos estudos da
22
cozinha japonesa no sul do Brasil, formam, portanto, o campo de interesse para esta
pesquisa.
Segundo G. Velho (1999), o estudo dos projetos de vida e das trajetórias sociais
dos indivíduos no contexto das grandes metrópoles contemporâneas, implica
considerá-los não apenas do ponto de vista dos atos da consciência, mas de incorporá-
los ao fenômeno da memória de um grupo social. Isso significa, para esta dissertação,
considerar a presença da cozinha japonesa do Vale do Sinos desde a perspectiva dos
projetos de vidas de duas parceiras de pesquisa. Ambas portadoras da mesma tradição
de culinária e cozinha japonesa, mas detentoras de diferentes negócios no ramo dos
restaurantes japoneses no Vale do Sinos, o que significa pensar as suas atitudes
cotidianas em relação ao uso comercial do legado familiar das práticas culinárias
japonesas como fenômeno que integra suas conquistas pessoais de integração na
sociedade local.
Um processo que veremos, abarca diálogos familiares nem sempre fáceis com a
herança das práticas culinárias da família de origem no sul do Brasil associadas aos
dramas sociais de integrarem-se profissionalmente nos novos mercados de consumo
global da cozinha japonesa onde estão inseridas.
O repensar às categorias de entendimento do fenômeno do mundo urbano a
partir dos estudos de memória, de itinerários urbanos e das formas de sociabilidade é
uma das propostas de Eckert e Rocha (1998, p. 4) para uma ótica das “formas
sensíveis do vivido humano” considerando, em meio a esse cenário fértil de trocas
sociais, as narrativas biográficas e etnobiográficas como fenômenos que “expressam
uma linguagem coletiva que comunica uma pluralidade de identidades e memórias,
remetendo seus territórios aos pretextos e às manipulações humanas” (ECKERT;
ROCHA, 1998, p. 6). Segundo a perspectiva das autoras, as metrópoles
contemporâneas, seguindo a linhagem dos estudos de Antropologia urbana no Brasil,
podem ser interpretadas desde a ótica dos processos culturais vividos por seus
habitantes, ou seja, desde a transmissão transgeracional de suas experiências e onde
se pode situar a lógica mercadológica como parte dos projetos sociais em que os
projetos individuais se situam.
23
Compreendemos, assim, a partir dos estudos das sociedades complexas
conduzidos por G. Velho (1987) e seus orientandos, que as práticas culinárias adotadas
pelos indivíduos ou grupos sociais fazem e são parte de complexos processos sociais e
de suas travessias, uma vez que ela está diretamente ligada a questões como a da
construção de identidades sociais e étnicas. Entendendo-se que o fenômeno da
identidade relacionado aos estudos de memória (ECKERT; ROCHA, 2013) não é
imutável, e que a cozinha e a culinária fazem parte dele, consideramos ambas no
interior do estudo de narrativas etnobiográficas. Ou seja, fenômeno que integra um
processo coletivo mutável, portanto, sujeito às articulações entre a tradição e a
memória, por um lado, e os fenômenos da globalização, por outro. Nesse sentido, a
dissertação apresenta alguns conflitos entre gerações no que diz respeito às
interpretações do consumo das práticas alimentares da cozinha japonesa no mundo
contemporâneo.
Para cumprirmos o desafio de compreender as diferentes províncias de
significados a que está associada à cozinha japonesa no Vale do Sinos, por meio das
travessias sociais, tornou-se fundamental o deslocamento intelectual da pesquisadora
no esforço de direcionar o seu pensamento à interpretação das ações sociais de seus
parceiros de pesquisa, considerando a proximidade entre os universos simbólicos de
ambos. No caso da pesquisa realizada para esta dissertação, refiro-me ao
pertencimento da pesquisadora e suas interlocutoras às camadas médias urbanas,
além de localizadas em regiões próximas como o Vale do Sinos e Vale do Paranhana,
que abordaremos ao final do capítulo.
O interesse por esta problemática de pesquisa partiu de dois universos
particulares que envolviam questões étnicas e de pertencimento na área gastronômica.
Duas mulheres de uma família de costumes japoneses, que se envolveram em seus
distintos projetos de vida, mãe e filha, cada uma com sua visão de mundo e suas
tendências de trabalho, tornam essa narrativa focada nos fazeres e saberes dentro de
uma sistemática laboral no universo dos alimentos, onde ambas se identificam e se
(des)encontram.
O encontro com a mãe foi em seu próprio restaurante, na cidade de São
Leopoldo, em meio a sua rotina laboral. Uma chefe de cozinha com um biótipo japonês,
24
estatura baixa, cabelos lisos e negros, com um semblante de alegria, traduz, em sua
simpatia, uma receptividade em falar sobre os alimentos. Sendo específica quando
relata e apresenta os ingredientes da culinária japonesa, demonstra que é sua paixão,
mas não esconde que aprecia uma boa culinária italiana. Sua fala, sempre cheia de
sabedoria, demonstra o quanto tem conhecimento dos ingredientes e suas
propriedades. Sua maneira de pensar as práticas alimentares vem sempre com muita
informação no que se dedicou a exercer. O lema é servir pessoas com comida de
qualidade e, juntamente com isso, trazer o conhecimento. Em seu restaurante, no qual
seu marido sempre está ajudando no envolvente das questões administrativas,
ninguém pode sair com dúvidas, está sempre disposta a perpetuar a cultura japonesa
através da sua culinária em meio a um universo muito particular e com informações que
passaram entre gerações, pois suas falas sempre lembram seu pai e como eram as
práticas alimentares dentro do seu contexto familiar. Apresentava-se muito empolgada
em cada fala e em cada pergunta que respondia sobre a culinária japonesa.
Figura 1 – Serena Kakuta Linhar e Aline
Fonte: Acervo Pesquisadora
25
Por conta de algumas complicações de saúde, a sua rotina diária foi reavaliada e
tem por costume não chegar muito cedo ao restaurante. Primeiramente, preocupa-se
em seguir as orientações médicas e o tratamento com os seus medicamentos, tomando
um café da manhã bem descansada e preservando uma melhor qualidade de vida, para
continuar tocando o seu negócio.
No primeiro encontro, ela não parecia haver entendido muito bem o que se
propunha para esta pesquisa, visto que não achou necessária a gravação das suas
falas. No decorrer dos outros encontros, identificávamo-nos mais e nos envolvíamos a
um diálogo com fluidez, que ao solicitar mais uma vez uma possível gravação, a mesma
foi autorizada e tornou-se, para ela, um tanto imperceptível e sem constrangimentos ter
o registro do áudio.
Já o encontro com a filha foi com um agendamento prévio, de acordo com a sua
rotina, pois estava sempre muito cheia de tarefas para executar. Normalmente, não
respondia aos contatos, que eram através de correio eletrônico, mas quando
conversado pessoalmente, sempre bem disposta a responder, era nítida a sua
empolgação em falar sobre a sua trajetória com a cozinha japonesa.
26
Figura 2 – Akemi Kakuta Linhar e Aline
Fonte: Acervo Pesquisadora
Com o perfil mais administrativo, diferentemente do da sua mãe, que é
encantada pelo fazer, desenvolver e criar os pratos, a filha relata gostar dessa parte
mais burocrática, mesmo assim, no envolvente da temática da culinária japonesa. Tem
uma apreciação muito forte em cozinhar, relata que gosta muito das práticas, em que
trabalhou muito tempo na cozinha quente e fria do restaurante da sua mãe. No entanto,
ajuda a conferir pesagens, sabores e padronizações dos alimentos, o que acaba se
tornando uma prática administrativa no controle de qualidade do alimento servido.
Desde o primeiro momento, foi possível gravar as conversas e a cada fala,
descrevia em vários detalhes a sua experiência familiar e profissional. Assim como o
casamento de sua mãe, o seu também é interétnico, seu marido começou a se envolver
nas práticas da cozinha japonesa como sushiman e até o momento desta pesquisa,
como gerente operacional, onde trabalham juntos na cidade de Novo Hamburgo neste
novo projeto e formato de restaurante.
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Figura 3 – Akemi
Fonte: Acervo Pessoal
Com traços orientais e de fala rápida e sorriso contido, seu estilo de vida é bem
mais agitado que o da sua mãe. A parte do café da manhã é sempre ignorada no
decorrer do seu dia, e tudo se molda de acordo com a sua rotina multifunção
(financeiro, recursos humanos, comercial) dentro de suas práticas laborais. Muito
orgulhosa de tudo que aprendeu em sua experiência com sua mãe, demonstra-se
esperançosa nessa nova etapa da sua vida e confessa que tem tido muitas
dificuldades, imprevistos e o “jogo de cintura” para situações adversas no administrativo
dessa franquia de restaurantes.
As duas parceiras foram atenciosas a tudo que a pesquisadora deste trabalho
propunha e sugeria no desenvolvimento desta pesquisa de campo. Em nenhum
momento negaram a não exibição de suas identidades neste trabalho, demonstraram
emoção quando puderam ler como estava se apresentando a dissertação e apreciaram
suas falas nesta composição de estrutura. Em meio às entrevistas de ambas, via-se as
decisões, as aproximações e os distanciamentos das suas tradições culinárias de
28
origem. Nesse sentido, percebemos, no decorrer desta dissertação, o conflito das
gerações que se manifesta sob o manto da não concordância de ideias sobre o
consumo das práticas alimentares fundadas na cozinha japonesa, refletindo na
percepção de mudanças de projetos de vida e realizações de outros.
2.3 AS PRÁTICAS CULINÁRIAS E A PESQUISA NO CONTEXTO DAS METRÓPOLES
CONTEMPORÂNEAS
No que tange ao processo de aproximação com nosso universo de pesquisa e
compreender as experiências das nossas parceiras de pesquisa no ramo de negócios
da cozinha japonesa nos contextos metropolitanos mencionados, procuramos apoiar-
nos, mais uma vez, nos conceitos de G. Velho (1999) Trajetória Individual e Campo de
Possibilidades do livro Projeto e Metamorfose , em particular, nas reflexões do autor
acerca da constituição da interatividade social incessante, inclusive entre grupos
diferenciados, como dos fenômenos exclusivos da complexidade moderna e das trocas
culturais que nela se estabelecem. Segundo Velho (1999: 39), tais trocas e interações
incessantes entre universos simbólicos diferenciados, na trajetória social de indivíduos,
e em termos de seu campo de possibilidades, abarcam níveis de realidade com códigos
e lógicas específicos, dentro de tensões e conflitos.
Seguindo Velho (1999), em sua análise antropológica em sociedades complexas,
observam-se indivíduos interagindo dentro de culturas e tradições particulares em que
suas identidades são guiadas por constelações culturais singulares. Assim, esta
dissertação procura compreender as etnobiografias de trabalho e trajetórias sociais de
indivíduos donos de restaurantes de comida japonesa no Vale dos Sinos
(especificamente São Leopoldo e Novo Hamburgo), no esforço de interpretar a adesão
a este ramo de comércio segundo os conceito de Velho (1999) de projeto familiar e
projeto individual.
Sob este enfoque interpretativo, o que se colocava como relevante era a
compreensão das formas de interação entre o projeto de vida individual e os projetos
29
sociais existentes no interior do contexto em que as escolhas e as motivações de
nossas interlocutoras adquiriram forma.
Por um lado, sob o ponto de vista dos conceitos de memória social e individual
(HALWBACHS, 2006) a descontinuidade de estilos de vida e visões de mundo que as
trajetórias sociais das interlocutoras de pesquisa apresentaram entre si (mãe e filha em
suas relações com suas tradições familiares de origem) nos fornecem importantes
elementos para se refletir sobre o lugar diferencial da herança das práticas culinárias
japonesas por elas recebidas, na família de origem, e que influenciaram seus distintos
projetos de vida no ramo dos negócios da comida japonesa nas duas cidades onde
residem. O recorte geracional foi importante, neste caso, para pensarmos as distinções
entre ramos de negócios a que elas aderem em seus projetos de vida no que tange a
rupturas ou continuidade da tradição de suas respectivas famílias de origem.
Apresentamos, a seguir, amparados por este recorte teórico, as nossas parceiras
de pesquisas que, em suas narrativas etnobiográficas de trabalho e trajetórias sociais,
relatam momentos diretos de sua relação com a tradição de práticas culinárias de seu
grupo familiar de origem e que orientaram seus projetos de vida no ramo de negócios
da cozinha japonesa nas cidades onde, no momento da pesquisa, residiam.
Iniciamos a nossa pesquisa no Shissô Sushibar e Restaurante, localizado há
mais de doze anos na cidade de São Leopoldo e que nasce a partir do projeto de vida
de uma das parceiras de pesquisa, Serena Kakuta Linhar, descendente de pais
japoneses. Serena é proprietária e Chef do restaurante, onde serve pratos típicos da
culinária japonesa e mescla, no seu cardápio, entrada, prato principal e sobremesa.
30
Figura 4 – Localização Shissô Restaurante
Fonte: Google Maps (2013)
Sua família veio de Sapporo, província de Hokkaido, no norte do Japão e
desembarcou do navio América Maru, no Porto de Rio Grande, no estado do Rio
Grande do Sul no ano de 1960, sendo acomodada em um sítio em Morro Reuter,
situado a 60 quilômetros do norte da capital, Porto Alegre, sendo que, na época Morro
Reuter pertencia a cidade de Novo Hamburgo.
Serena não era nascida quando seus pais vieram para o Brasil, mas lembra-se
de que foi criada em meio à disciplina nipônica, relatando que aprendeu sempre a dizer
“itadakimasu”2 antes das refeições, expressão muito comum utilizada pelos japoneses
antes de cada refeição. Os integrantes da família trabalhavam diretamente nas
habilidades de agricultura, conforme explica:
2 Esta expressão vem do verbo itadaku, que significa “levantar acima da cabeça”. Nos tempos antigos, para agradecer às divindades, simulava-se oferecer comida, levantando o prato acima da cabeça. Ao final da refeição também é comum dizer “Gochisô-sama” (FRÉDÉRIC, 2008, p.515).
31
[…] vieram para trabalhar na agricultura. Era o sítio da família de Mario Rossi, um dos sócios da fábrica de armas Amadeo Rossi. E depois com o tempo foram conhecendo pessoas e locais mais adequados segundo visão deles. Lembro que meu pai sempre procurava sítios que tinha água em abundância, justamente para produção agrícola (SERENA, 2013).
A convivência direta com imigrantes de seus pais, tornou possíveis e evidentes,
em suas memórias, os relatos de uma família com dificuldades e de suas experiências
em terras desconhecidas:
“Vieram com quatro (filhos), o mais velho eu acho que tinha doze anos, o outro
tinha oito anos e a caçula tinha quatro anos, atualmente, totalizam sete irmãos, três
nasceram no Brasil” (SERENA, 2013).
São mais de doze anos como administradora e envolvida no universo culinário
nipônico. Formada em gastronomia, suas falas são constantes sobre alimento,
descoberta de ingredientes e suas potencialidades: “os pioneiros da soja foram os Fuki
lá em Santa Rosa!”, quando explica sobre a origem de alimentos e suas dinâmicas,
deixando claro sua familiaridade com as práticas culinárias e seus saberes.
A cada fala vinha carregada de conhecimentos, um atrás do outro, e tudo sobre
alimento e suas curiosidades, o que explana muito bem:
Tu sabia qual é a pimenta mais ardida do reino? A branca ou a preta? É a branca, porque a branca é a madura, a preta a casquinha ainda tá ali, é verde amadurecida à força, então, a preta ela tem aroma, quando se quer dar um cheiro em algum prato, tu mói a preta, a branca é para dar ardido (SERENA, 2013).
Serena é, portanto, conforme costuma afirmar, uma mulher que se preocupa
muito com a apresentação de um prato, bem como todo o processo de construção que
envolve a culinária japonesa. Argumenta seus conceitos pelo que é certo ou errado,
citando exemplos gritantes de estabelecimentos que têm uma postura errônea dos
saberes e fazeres do processo artesanal da comida japonesa, mudando gosto, estética
e tradição.
A outra parceira de pesquisa é a filha de Serena, Akemi Kakuta Linhar, criada no
interior de uma tradição familiar de culinária japonesa, conforme descrito acima.
Entretanto, Akemi, numa ruptura com o modelo de restaurante da família de origem, fez
a opção por outro formato de consumo para a culinária japonesa, que é um tanto mais
32
“ambicioso e inovador”. O restaurante pelo qual é a responsável, como gerente
operacional de franquias, juntamente com seu marido, Felipe Borba, que exerce a
função de gerente técnico, é Tokiomaki (RESTAURANTES TOKIOMAKI, 2013),
localizado na cidade de Novo Hamburgo.
Figura 5 – Localização Tokiomaki Temakeria
Fonte: Google Maps (2013)
Akemi começa aos dozes anos auxiliando, na função de caixa, no restaurante da
mãe e da tia, que, na época, fazia parte do quadro societário do restaurante.
Atualmente, sua mãe e seu pai são os proprietários. Lembra de que sua tia não morava
no Rio Grande do Sul, por conta disso, vinha somente nos finais de semana, direto do
Rio de Janeiro, cidade onde morava. Aprendeu muito, foi nessa função, conforme
conta, que: “aprendi a passar cartão, operar o sistema”.
A filha de Serena teve sua mudança de função no restaurante da família aos
treze anos de idade, quando passou a ter a “fase da vergonha” de seu trabalho,
conforme seu relato, decidindo trabalhar no bar, ficando menos exposta do que no
33
caixa. Fazia caipiras, drinques e lembra, enfaticamente, que montava as tradicionais
bandejinhas de oshibori, as toalhinhas quentes e cheirosas que são expostas à mesa
antes de servir o cliente, para que possa ter o ato de higiene, antes de tocar nos
alimentos. É possível - e não foge da etiqueta - que alguns ingredientes da comida
japonesa sejam pegos com a mão, como, por exemplo, o sushi.
Seguindo sua narrativa, Akemi lembra de que surge a necessidade de auxiliar na
cozinha, fase em que uma das cozinheiras, que ainda permanece trabalhando com sua
mãe no Shissô, entra em licença-maternidade: “a primeira filha dela, hoje, tem oito
anos”, lembra em meio a nossa conversa. Com seu auxílio na cozinha, passa a ter
como suas principais funções lavar louça, limpar o salão, os banheiros, deixando claro
que na sua “época não tinha nem torneira quente”, ironiza; logo após sair da cozinha e
com o retorno da cozinheira, é instalada torneira quente. Da cozinha, vai para o
atendimento, no qual fica por uns três anos, e pode fazer muitos amigos, atendendo
com muita paciência, mas confessa: “já me fizeram chorar” em meio aos atendimentos
com os clientes.
Somente após essas quatro fases, assim descritas por ela, implicando o
desenvolvimento profissional e um diálogo direto entre tradição, culinária e laços
familiares, é que Akemi parte para o sushibar. Momento em que seu atual marido, na
época seu namorado, já fazia bicos como sushiman3 no restaurante. Lembra-se de que
foi interessante essa nova fase de fazer sushis, pois “antes eu só entrava no sushibar,
quando eu queria fazer um sushi e comer”.
Surge que a mesma cozinheira que anteriormente já havia se afastado do
restaurante por licença-maternidade retorna para ter seu segundo filho. Akemi volta
mais uma vez para a cozinha quente, só que agora com um pouco mais de experiência
e entendimento amplo do processo laboral do restaurante. Tendo mais prática, passa
paralelamente a cuidar de um universo um pouco distante das práticas culinárias, o
administrativo, mas que confessa sempre ter gostado de fazê-lo, como, por exemplo, o
controle de estoque e tudo que se relacionava direta ou indiretamente com a faculdade
de Administração que cursava.
3 Atualmente, essa função é bastante conhecida em restaurantes de culinária japonesa. São todas as atividades que envolvem as técnicas no preparo do sushi e do sashimi.
34
Nessa época, já desfrutava de seus dezenove anos, quando foi decidido que o
restaurante começaria a abrir ao meio-dia, carga horária pesada, tendo seu horário do
meio-dia até à noite, saindo, muitas vezes, depois da meia-noite. Teve que optar por
trancar a faculdade e, até o momento, não retornou.
Depois da segunda volta à cozinha quente, acontece a ruptura. Já com vinte e
cinco anos, decide seguir seu caminho adentrando numa estrada não tanto familiar,
mas carregando, em suas malas, todos os significados e conhecimentos que sua
experiência com a família de origem lhe proporcionaram.
Primeiramente, seu marido inicia o processo de ruptura, Akemi ainda permanecia
no restaurante com sua mãe. Mas, por poucos meses, ela é convidada a fazer parte
dessa nova empreitada e, decidida, segue seu rumo onde se encontra até hoje.
Os personagens aqui descritos, Serena e Akemi, podem ser lidos e interpretados
como “livros”, com seus fluxos de textos, sua riqueza em detalhes. O estudo de suas
narrativas biográficas permite-nos pensar as práticas da culinária japonesa, nesta
dissertação, como uma realidade social (VELHO, 1999) que expressa uma dinâmica
cultural no contexto das modernas sociedades complexas.
2.4 COZINHA JAPONESA E O SEU QUADRO CONFUSO
Através da compreensão da teoria da objetivação participante, este subcapítulo
evoca experimento entre pesquisador e pesquisado. Trata da questão como interesse
direto do autor e todo o universo do fazer antropológico, tornando tarefa nada fácil
perante a interdisciplinaridade como proposta deste trabalho.
Os sentimentos cruzados entre a família japonesa pesquisada com os
sentimentos da família da autora deste trabalho, que também tem relação direta com
descendentes nipônicos, são referências ao capítulo de Gilberto Velho (1980), em O
antropólogo pesquisando em sua cidade, no qual a discussão da distância como item
de uma maior objetividade deve ser relativizada no contexto onde se pretende
pesquisar. E tendo como entendimento que a familiaridade não conduz ao pleno
35
conhecimento é que esta parte da dissertação tem função norteadora para as práticas e
descobertas desta pesquisa.
A possibilidade de “observar o familiar” não é calcada na obviedade, pois o
antepassado, dentro de uma imigração, no que reporta a uma memória coletiva, e a
própria descendência japonesa têm suas representações, organizações e vivências
específicas, propiciando uma perspectiva, mesmo que aproximada, possibilitadora de
investigação. Assim, Gilberto Velho (1980) apresenta que a ideia básica é a lógica do
“todo já dado” dentro de uma visão funcionalista:
Assim, de alguma forma, mesmo os comportamentos mais contraditórios seriam de alguma maneira complementares, ao nível do funcionamento da totalidade. O problema do antropólogo, neste caso, seria ir além da percepção das diferenças e mesmo dos conflitos para captar a lógica que define a especificidade da experiência de um sistema cultural particular (VELHO, 1980, p. 17).
A Antropologia, como uma ciência interpretativa, em nenhum momento
representa-se como uma tarefa de fácil execução, pois toda a abrangência de seus
sistemas interpretativos em temáticas estipuladas para estudo está diretamente ligada a
uma subjetividade do pesquisador, representada, até mesmo, pelas linhas de
pensamentos teóricos que estão sendo seguidas. Nesse sentido, como parte
importante de uma trajetória de descobertas científicas, apresentamos esta estrutura de
trabalho com a pretensão de ampliação conceitual e novas perspectivas de
aprendizagem.
No caso deste estudo sobre a cozinha japonesa no Vale do Sinos desde a
perspectiva dos estudos de projetos de vida e de campo de possibilidades, abordamos,
por um lado, um estudo transgeracional no interior de uma tradição familiar com esse
ramo de negócios e, por outro, as relações dessas práticas culinárias com as
diversificadas opções alimentares que compõem a gastronomia regional, como, por
exemplo, o churrasco (associado à culinária gaúcha), a pizzaria (associada à culinária
italiana), o buffet a kilo (característico do self service americano), restaurantes de
comida caseira (algo mais próximo da cozinha familiar portuguesa ou açoriana), etc.
Todas essas modalidades de restaurantes e suas práticas alimentares acima
mencionadas são abordadas desde as suas referências aos processos culturais e
36
históricos de colonização dessa região do estado do RS. Em especial, a partir da
referência desta dissertação a outros estudos realizados no Rio Grande do Sul, no
sentido de contextualizar as práticas de restauração associadas à culinária japonesa
em seu diálogo com a gastronomia regional.
O presente trabalho, através de uma pesquisa qualitativa com a intenção de
compreender características do consumo da cozinha japonesa no Vale do Sinos, parte
da experiência de criação de dois formatos de restaurantes no ramo de negócios de
comida japonesa, o restaurante Shissô e o restaurante Tokiomaki, associada a algumas
técnicas e procedimentos da pesquisa etnográfica com trajetórias sociais e narrativas
biográficas no contexto das modernas sociedades complexas. Um fenômeno que no
âmbito desta dissertação é compreendido a partir da adoção de procedimentos e
técnicas de pesquisa do campo da etnometodologia (ECKERT; ROCHA, 2013) aliada a
uma incursão de trabalho de campo, inspirada no aparato científico da prática
etnográfica em Antropologia.
Sob o ponto do vista da pesquisadora em campo, reconhecendo a prática da
pesquisa em Antropologia a partir de seu “quadro confuso”, conforme define G. Velho
(1980), percebemos que a pesquisa que foi realizada teve como fundamento a
dimensão humana que configura a culinária japonesa no Vale do Sinos. Adotamos a
interação com nossas parceiras de pesquisa como conduta de investigação e coleta de
dados, sabendo-se que toda a interação, conforme aponta o autor, é desprovida de
regras rígidas e centralizadoras, o que torna um trabalho de campo muito mais
dependente no campo do sensível e da intuição, além do aliado aporte teórico do
pesquisador.
É nesses termos que apontamos, aqui, para os quadros da pesquisa de campo
dos quais resultou esta dissertação, ou seja, uma investigação sobre o mundo social
que toma como “ponto básico” tanto a distância quanto a proximidade e a familiaridade
do investigador com o universo da pesquisa, como “noções que devem ser relativizadas
e colocadas no contexto adequado da discussão”. Ou seja, o desafio reside em não
pensar que a proximidade com o objeto de pesquisa resulta em conhecimento, uma vez
que “não estamos livres de estereótipos e preconceitos” (VELHO, 1980, p. 2).
37
Assim, estudar famílias japonesas em metrópoles urbanas é aproximar essa
descendência ao familiar da pesquisadora que, em sua experiência matrimonial, é
casada com um nisei4 que tem como prática profissional ser um sushiman. O cenário
tornou-se familiar, os elementos que compunham estas práticas dos saberes e fazeres
da cozinha japonesa já eram parte de uma experiência muito íntima da pesquisadora.
Os costumes sociais foram mudados a partir de uma exogamia e a relação que se
estabelecia de parentesco e reuniões de família dentro de uma tradição japonesa.
O que tornou significativo na experiência de um casamento interétnico foi a
mudança de rotina nas refeições diárias. O tempero, os pratos que eram preparados, os
ingredientes, a maneira de manipulação dos alimentos, haviam diferenças nas práticas
culinárias da família de origem da pesquisadora, até mesmo, o reaproveitamento dos
alimentos interferia na concepção do que se pensava em ser aproveitado e descartado.
As novas possibilidades no preparo de um ingrediente que, muitas vezes, era
comum, tinha um contraste com uma renovação de sabor, o chamado agridoce. Essa
renovação trazia uma mudança na classificação do sabor entendida pela pesquisadora
e que tinha relação com as práticas culinárias da família de origem, ou seja, a comida
era classificada em salgada e doce, não as duas coisas ao mesmo tempo. Mas, a partir
dessa experiência isso passa a ser controverso e surge o sabor agridoce e menos
pitadas de sal, pois a nova norma era sentir o gosto dos ingredientes, não o gosto do
sal.
Esse projeto de casamento interétnico, também sendo uma experiência das
minhas parceiras de pesquisa, pode servir de explicação para a escolha do objeto desta
dissertação e a entrada nesta rede social, assim como as relações que se
estabeleceram em torno de negociações e proximidades de realidade. O que poderia
ser um interessante mote de pesquisa e considerado como novo e desafiador estava no
vivido humano e as relações que se estabeleciam com a temática da cozinha japonesa
levando em consideração um olhar de deslocamento não caindo sobre a obviedade.
Entendendo como uma problemática a ser explorada e desejada pela
pesquisadora desta dissertação, foi através da antropologia que se buscou tornar mais
4 Nisei: “duas origens”. Nome dado aos filhos de um japonês (ou de uma japonesa) e de uma pessoa estrangeira e aos japoneses nascidos num país estrangeiro considerados cidadãos estrangeiros (gaijin). (FRÉDÉRIC, 2008, p.881).
38
claro o caminho para esta nova empreitada em sua trajetória acadêmica. Aqui, torna-se
relevante esclarecer a formação primeira da pesquisadora, na área da Comunicação
Social, com habilitação na área das Relações Públicas.
A diferença de áreas tornou-se um desafio interdisciplinar e uma ampliação de
perspectiva na área da pesquisa, remetendo para um esforço e deslocamento
intelectual.
Assim como a metodologia empregada, as novas técnicas de exploração
científica traziam medos e incertezas no decorrer desse processo. A escrita dos diários
de campo e a produção de roteiro das entrevistas não diretivas e semi-estruturadas
realizadas foram momentos decisivos para abordar de forma mais objetiva a produção
da pesquisa de campo do qual resulta esta dissertação. Nas entrevistas não diretivas
para a análise das decisões tomadas por nossas interlocutoras no que tange às
aproximações e aos distanciamentos das suas tradições culinárias de origem – a
japonesa -, assim, dos seus negócios, optamos pela realização de narrativas
etnobiográficas, o que permitiu compreender o caráter geracional que comporta o
campo de possibilidades dos distintos projetos de vida de nossas interlocutoras.
As entrevistas não diretivas, técnica aplicada aqui nesta dissertação, têm um
caráter de proximidade em comparação a uma entrevista dirigida que é estruturada em
cima de perguntas fechadas, ocasionando uma limitação e deficiência no questionário
aplicado, uma “pobreza da resposta, o desconhecimento dos quadros de referência, a
indução da resposta pela formulação das perguntas” (THIOLLENT, 1987, p.79), além
disso, não há uma conversação durante o processo da experiência entre o
entrevistador e entrevistado, que muitas vezes é próprio de uma relação mais informal
sem uma formatação e padronização, pois tudo se limita a um quadro fechado e
estruturado.
O contrário pode ser visto na entrevista não diretiva, ou também chamada de
entrevista não dirigida. Parte dos estudos exploratórios, nos quais se encaixam muito
bem para as pesquisas na área do universo cultural, sua técnica permite uma
capacidade de verbalização do entrevistado, tanto na sua fala como também nos
elementos não verbais como, por exemplo, a hesitação, o silêncio entre outros. Partindo
de uma semi-estrutura de roteiro, este segue com uma determinada flexibilidade ao
39
longo da entrevista, no qual o seu objetivo é conduzir a entrevista e as falas do
entrevistado num universo categórico previamente definido pelo pesquisador.
Outra técnica utilizada neste trabalho foi o diário de campo, muito comum aos
antropólogos, e uma metodologia nova para a pesquisadora deste trabalho. Este ato
envolve a capacidade que o pesquisador tem em recriar as formas culturais, ou seja,
escrever sobre a experiência de observar e ouvir o outro. Conforme Eckert e Rocha
(2008, p.8) é o “momento de descoberta do Outro, mas onde o pesquisador faz sempre
um retorno a si mesmo porque ele também se redescobre no Outro”. E os diários
proporcionaram um momento de muita emoção e um lado muito próprio do pesquisador
é aflorado durante uma etapa de reavivamento de sentimentos, frustrações e
lembranças inesquecíveis vividas durante a convivência com os sujeitos da pesquisa. É
a verdadeira mescla entre arte e ciência, conforme mencionado por Eckert e Rocha
(2008).
Desta forma, a presente dissertação alinha-se à perspectiva da etnometodologia
como forma de produção de conhecimento sobre os fenômenos sociais dentro de
sociedades complexas, uma vez que nela reconhecemos que toda a “concepção
objetivista” das práticas sociais cede lugar à feição trágica que orienta a formulação do
pensamento e do conhecimento antropológico:
[...] posto que, neste contexto, a crença no trabalho de campo e na observação participante não se efetua como método capaz de garantir, a priori, a autoridade etnográfica do pesquisador tão somente porque ambas as dimensões de investigação recorrem à experiência interpretativa do investigador que põe em jogo a sua própria realidade como pano de fundo de seus juízes científicos. (ECKERT; ROCHA 1998, p. 18).
Em nosso aporte metodológico, de forte inspiração nos estudos etnográficos em
contextos metropolitanos, não temos a pretensão de situar este trabalho como sendo
genuinamente antropológico. Nossa intenção, com este diálogo, com as técnicas e os
procedimentos da pesquisa em Antropologia das sociedades complexas é a de
proporcionar uma nova perspectiva interdisciplinar para os estudos sobre o tema em
questão, uma que, conforme Rouanet (1990) expressa em seu artigo, essa área
disciplinar pode contribuir para a perda do “olhar ingênuo” do pesquisador para a
realidade social (a sua própria) a ser por ele estudada.
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E é nesse contexto que esta dissertação evoca os estudos antropológicos sobre
as relações transgeracionais e os projetos de vida como conceitos instrumentais
relevantes para a nossa proposta interpretativa da cozinha japonesa no Vale do Sinos,
seguindo, de perto, a obra Projeto e Metamorfose, de Gilberto Velho (1999). Em
especial, como referência metodológica para o fenômeno transgeracional, baseamo-
nos na obra Três Famílias, escrita a quatro mãos por Luiz Fernando Dias Duarte e
Edlaine de Campos Gomes (2008), na qual os autores abordam o tema da reprodução
biológica na sociedade contemporânea a partir da análise das experiências
transgeracionais de famílias de camadas populares, sob a ótica das transformações no
ethos religioso do grupo familiar, nos seus valores e nas práticas sociais de seus
membros.
Ainda quanto aos aspectos relevantes de técnicas e procedimentos oriundos de
estudos transgeracionais para o conhecimento dos fenômenos das dinâmicas culturais
nas modernas sociedades complexas, mencionamos, finalmente, a pesquisa
desenvolvida por Maria Antonia Pedroso Lima, publicada na forma de livro com o título
Grandes Famílias de Grandes Empresas: compromissos com a tradição na Lisboa
moderna (LIMA apud JARDIM, 2003), em que a autora aprofunda o estudo de grandes
ramos de negócios na cidade de Lisboa a partir da perspectiva das relações
intergeracionais no âmbito de uma empresa familiar.
Dentro da perspectiva dos estudos é que assinalamos, como centrais para esta
dissertação, os conceitos de projeto familiar, campo de possibilidades, negociações da
realidade, assim como de potencial de metamorfose, em referência as nossas
inquietações acerca das memórias das “travessias sociais” vividas por essas gerações
de mulheres que atuam no ramo da gastronomia japonesa no Vale do Sinos no que
tange as suas tradições de origem acerca da culinária nipônica (VELHO, 1989). Assim é
que, ao longo do estudo de suas narrativas etnobiográficas de trabalho, procuramos
compreender a dimensão geracional e étnica que delimitam os distintos campos de
possibilidades em que as práticas culinárias japonesas herdadas por nossas
interlocutoras despontam como “negócios de família”.
Uma problematização teórica e conceitual que aponta para a relevância do
estudo das práticas alimentares e sua rede de significados no contexto das modernas
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sociedades contemporâneas, como marcas das experiências de indivíduos e grupos
sociais, suas representações, suas ideologias e seus estilos de vida, e que, somente
com o auxílio de procedimentos de pesquisa de campo próximo ao método etnográfico,
podem ser registradas.
Nesses termos, foi necessário, ao longo do trabalho de campo, observarmos
mais de perto o cenário globalizante do ramo de negócios de restaurantes japoneses no
Brasil, a dinâmica desse mercado e o seu interior, as tramas locais de toda dinâmica
mundializada, procurando desafiar uma reflexão, por parte de nossas parceira de
pesquisa, acerca dos seus impactos nas suas vidas cotidianas. Fenômenos que, como
veremos nos próximos capítulos, modula seus projetos de vida, carregando-os de
sentimentos ambivalentes e de angústias com relação às heranças recebidas de uma
mesma tradição de origem.
2.4.1 Visual: onde tudo se conecta
Na parte metodológica deste trabalho, o que se pretende é a conexão do
pensamento humano através da imagem, introduzir uma narrativa muito além da escrita
e trazer uma linguagem imagética em suas formas simbólicas. E a cozinha japonesa,
sendo extremamente visual, não poderia deixar de ser representada através das suas
cores e formas. A compreensão do universo simbólico dos elementos da cultura
japonesa torna-se mais clara através das imagens contidas neste trabalho. Transporta,
conforme Rocha (1995), para outro plano de consciência, sem utilizarmos
exclusivamente do senso comum, da racionalidade pura e extrema, e sim, deixar-se
levar pelo plano do sensível, parte de um processo em que o conhecimento se torna
humanizado pelas representações visuais.
Apropriando-se de Samain (1995), que cita Margaret Mead, no repensar de certa
crítica heurística, a pesquisadora conecta-se ao meio antropológico, as suas práticas e
técnicas pela antropologia visual. Muito além de relatar e descrever falas, sugerido
pelas autoras, a comunicação se faz necessária neste processo e neste exato momento
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o ciclo epistemológico e intelectual se completa em meio a tudo que se pode “ver” e no
que pode “dizer” (SAMAIN, 1995).
O processo comunicacional, muito comum à autora deste trabalho, é amplo e, ao
mesmo tempo, interdisciplinar, tendo seu foco para a antropologia, mais
especificamente a antropologia visual, que serve como uma forte aliada à estrutura
deste trabalho. A antropologia conecta-se com a comunicação em uma coincidência, ou
não, de pretensões e de querer interpretar a dinâmica cultural existente nas
sociedades. A ânsia por entender formas, maneiras, o cotidiano de grupos sociais são
conexões intransponíveis dessas duas áreas, e que interagem com um objeto comum:
a vida social (SAMAIN, 1995).
Essa é a busca, novas formas de conhecimento científico e interdisciplinar, no
qual, aqui neste caso, o sensível também se prende ao racional como uma peça forjada
para uma estrutura simbólica e de forte peso ao estrato social. Rocha (1995) define
esse novo plano epistemológico:
Isso implica a aceitação da evidência de que o simbolismo no homem se anuncia em outro plano de consciência que não unicamente aquela da evidência racional [...] Se aceitarmos que a produção de uma narrativa visual em antropologia implica que o intelectual seja apto a operar com uma linguagem que se constituí através das formas, podemos pensar a escritura etnográfica nos termos de uma estética do imaginário, ou seja, um modo de dizer através das imagens (ROCHA, 1995, p.111-113).
As fotografias contidas neste trabalho servirão de condutoras ao campo íntimo
da ciência, no qual o fluxo se dá pela motivação do pesquisador, este imbuído por sua
carga social amparada pelo seu ponto de vista, e apresenta seu resultado a um
receptor também carregado de sentidos e implicações sociais.
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3 A COZINHA JAPONESA E O MERCADO DE ALIMENTOS COMO CAMPO DE
POSSIBILIDADES
“Com essa abertura de um monte de restaurante japonês, vai se criar daqui um tempo uma legião de
pessoas com problemas de hipertensão, isso com certeza, comem meia jarra de Shoyu”.
(Serena, 2013)
Alimentar-se fora de casa, bem como a qualidade dos alimentos consumidos, as
tecnologias contribuindo para a logística dos alimentos, a preocupação com a saúde
alimentar, as tradições alimentares, as tendências envolvidas no modismo alimentar,
sendo incentivadoras nas mudanças estruturais dos restaurantes, são temáticas
abordadas cada vez mais por diferentes campos de conhecimento.
Um deles se refere a Miler (2007) e seus estudos de “mapas sociais”, em que o
autor discute o poder que o comércio globalizante produz sobre seus consumidores;
salienta que, no interior do consumo homogeneizante, a distinção que fazemos entre
bens revela que tais escolhas são motivadas em razão de apropriações de símbolos
resultantes de determinados estilos de vida.
No caso desta dissertação, o diálogo proposto pelo autor entre o mercado e o
alimento desafia a compreender a relação direta que existe entre os estudos das
metamorfoses nos projetos de vida (VELHO, 1999) de alguns donos de negócios do
ramo alimentício de restaurantes japoneses no Vale do Sinos que redirecionam as suas
escolhas em meio à dinâmica mercadológica.
Para contemplar essas inter-relações, adotamos aqui, como recorte
metodológico para esta pesquisa, o estudo de projetos de vida e de trajetórias sociais,
inaugurados por G. Velho (1999), tendo a dinâmica cultural nas metrópoles
contemporâneas como campo de possibilidades de sua realização. Nesse sentido,
inspirada pela obra desse autor, esta dissertação se propõe a refletir sobre o uso de
entrevistas não diretivas versando sobre trajetórias sociais e narrativas biográficas
como técnicas de pesquisa acerca das escolhas e das motivações que conduzem
alguns donos de restaurantes a adotarem o formato fast-food como padrão de consumo
da culinária japonesa em detrimento de suas formas tradicionais de restaurantes.
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O conceito de campo de possibilidades é mencionado por G. Velho (1999) em
seus estudos sobre a trajetória social de ascensão ou descenso social entre indivíduos
de camadas médias urbanas em seus deslocamentos no contexto das cidades
brasileiras. Adotamos, para o caso da pesquisa sobre a cozinha japonesa (suas
técnicas na área da gastronomia), o conceito de campo de possibilidades como parte
do uso da técnica de entrevista não diretiva (THIOLLENT, 1987) para a compreensão
dos projetos de vida que orientam as ações de duas gerações de mulheres nesse ramo
de negócios de família, considerando os efeitos do mundo globalizado no mundo das
práticas alimentares e as tradições que percorrem esse vivido familiar urbano.
3.1 A COZINHA E SUA CULINÁRIA COMO UM PRODUTO CULTURAL
Direcionamos, para este estudo, uma perspectiva de que a comida não se
restringe a uma substância alimentar, ela traz consigo fatores intimamente ligados a
aspectos sociais. Um exemplo disso está na célebre frase de Brillat-Savarin, autor
francês da obra Fisiologia do Gosto (Physiologie do Goût, 1825), “dize-me o que comes
e eu te direi quem és”. A relação íntima que se estabelece entre alimento e os seres
sociais estão inteiramente ligados ao seu cotidiano, a sua educação familiar, a um
grupo de significados que direcionam para características de uma determinada cultura.
A cozinha e a culinária constituem-se, desse modo, partes integrantes de um
sistema alimentar que Maciel (2006, p. 89) aponta ser entendido também por outros
autores5 como dois atos diferentes. Portadores de códigos complexos que possibilitam
a identificação de grupos sociais e possível compreensão em estudos determinados na
dinâmica social e cultural, a cozinha define-se como um “patrimônio cultural alimentar”,
é a particularidade de um povo e, juntamente, traz a identidade estampada em sua
comida.
5 Maria Eunice Maciel, em seu artigo “Os Sabores do Patrimônio” (2006), identifica, em nota de rodapé, que, a partir de Lévi-Strauss e também Catherine Pérles, que há essa diferenciação conceitual entre cozinha e culinária.
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A culinária é, nesse sentido, um elemento pertencente à cozinha e está
relacionada ao preparo ou à maneira de fazer o alimento (MACIEL, 2006). Ambas,
cozinha e culinária, permitem, aqui, o estudo das articulações de vários elementos que
dão sentido, no interior das práticas culturais alimentares japonesas, à criação de
determinados pratos, como, por exemplo, o sushi.
No caso da culinária japonesa, o sushi, é associado a uma alimentação saudável
devido a usar ingredientes naturais com índices baixos de gordura, refinando os
paladares com a arte sui generis, que consiste, no primeiro momento, na apreciação
dos alimentos pelos olhos, a estética e a apresentação do prato seguindo a sequência,
até, por fim, chegar ao paladar.
Nesses termos, pode ser denominada de cozinha típica, pois são as “maneiras
culturalmente estabelecidas, codificadas e reconhecidas de alimentar-se, em que os
pratos são elementos constitutivos” (MACIEL, 2006, p. 90). E, nesse ponto, torna-se
interessante traçar a diferença entre comida típica e comida tradicional,
respectivamente, refletindo com Ellen Woortmann (2007, p. 180) acerca desses
conceitos na antropologia da alimentação e sobre os quais a autora pondera: “enquanto
a primeira oculta uma perspectiva marcada pela exotização, portanto uma percepção
de fora para dentro, a segunda constitui expressão de padrões e valores tradicionais
em seus próprios termos”.
Uma afirmação que sugere a amplitude dos significados que certos estilos
alimentares, baseados em cardápios considerados exóticos, (e até mesmo refutados
por alguns povos), podem assumir no interior de uma tradição gastronômica. Serena,
proprietária do restaurante Shissô faz muito bem essa analogia quando compara o que
entende como um ritual alimentar japonês no momento do agradecimento pelo alimento
em comparação com seus convives e o povo brasileiro:
Todo
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