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VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E COERÊNCIA EM AOS POETAS CLÁSSICOS
Eliana Pires de Souza1
Iara Diane Jesus de Souza
Luiz Felippe Santos Perret Serpa2
Resumo:Este artigo discute a variação linguística e analisa alguns elementos da coerência textual no
poema “Aos poetas clássicos”, de Patativa do Assaré. Utiliza como aporte teórico as perspectivas de
Sírio Possenti, Ingedore Koch - Luiz Carlos Travaglia e Marcos Bagno. Tem por objetivo investigar
se textos, em linguagem não padrão, podem ou não ser coerentes, tendo ainda como propósito,
promover, através da discussão das referidas abordagens, a valorização dos falares regionais. E,
assim, mostrar que persistem na sociedade preconceitos linguísticos por ainda faltar a algumas
pessoas o conhecimento sobre a língua. Esses conhecimentos são de suma importância para que haja
o respeito às variedades linguísticas.
Palavras-chave:Coerência textual; Preconceito linguístico; Variação linguística.
INTRODUÇÃO
Estapesquisa investiga a variação linguística, bem como analisa os elementos
linguísticos da coerência textual, tais como Conhecimento de Mundo, Inferências,
Informatividade e Situacionalidade no poema Aos Poetas Clássicos, de Patativa do Assaré,
um dos grandes nomes da Literatura de Cordel. Para tanto, tem como referências
bibliográficas as obras: Por que (não) ensinar Gramáticana Escola de Sírio Possenti (1996),
A Coerência Textual, dos autores: Ingedore Koch - Carlos Travaglia (2001) e Preconceito
Linguístico: o que é e como se fazde Marcos Bagno(2007).
Analisar o poema sob a perspectiva da Sociolinguística e da Linguística Textual é
uma forma enriquecedora de mostrar que, mesmo os textos que não são escritos na norma
padrão, podem ser coerentes e podem apresentar efeitos de sentido relevantes que, muitas
vezes, pelo preconceito linguístico, não são devidamente observados.
No primeiro momento serão apresentados os aspectos da variação linguística e da
coerência textual, identificando as potencialidades dos dizeres regionais. Por fim, será
analisado o poema em destaque, estabelecendo-se uma relação com as questões já abordadas.
1Graduandas do 7º Semestre do Curso de Licenciatura em Letras/Língua Portuguesa e Literaturas pela
Universidade do Estado da Bahia –Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – Campus XVI – Irecê.
2Orientador – Mestre em Linguagem e Educação pela UFBA e professor da área de Estágio e Prática Pedagógica
no Curso de Letras do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – Campus XVI – Irecê.
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1. VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E COERÊNCIA TEXTUAL
Uma língua não é uniforme, ela apresenta variações. O fato de as pessoas não
falarem uma mesma língua, de uma mesma forma, decorre de vários fatores. Em geral, a
variação linguística provém de fatores geográficos, de classe, de idade, de sexo, de etnia, de
nível de instrução, de profissão, de situação de comunicação, dentre outros.
Segundo Possenti (1996, p.34), ―a variedade lingüística é o reflexo da variedade
social e, como em todas as sociedades existe alguma diferença de status ou de papel social
entre indivíduos ou grupos, estas diferenças se refletem na língua‖. Por isso o Brasil, um país
repleto de diferenças, é marcado por diversas variedades linguísticas.
As questões de diversidade social estão relacionadas também com a dificuldade de
acesso à educação, pois nem todas as pessoas têm/tiveram a oportunidade de ingressar na
escola. Essa ausência de educação escolar na vida dessas pessoas apenas não permitiu que as
mesmas tomassem conhecimento da escrita e da oralidade padrão. Apesar disso, foi possível a
elas a adequação à língua materna diante de sua realidade, criando, na linguagem, uma marca
cultural da região.
Assim, a respeito dessa relação, Bagno (2007, p.16) observa:
Ora, a verdade é que no Brasil, embora a língua falada pela grande maioria
da população seja o português, esse português apresenta um alto grau de
diversidade e de variabilidade, não só por causa da grande extensão
territorial do país — que gera as diferenças regionais, bastante conhecidas e
também vítimas, algumas delas, de muito preconceito —, mas
principalmente por causa da trágica injustiça social que faz do Brasil o
segundo país com a pior distribuição de renda em todo o mundo. São essas
graves diferenças de status social que explicam a existência, em nosso país,
de um verdadeiro abismo lingüístico entre os falantes das variedades não-
padrão do português brasileiro — que são a maioria de nossa população — e
os falantes da (suposta) variedade culta, em geral mal definida, que é a
língua ensinada na escola.
Percebe-se, a partir desse posicionamento, que o distanciamento entre as variedades
não-padrão e a variedade padrão, presentes no português brasileiro, está intimamente ligado
às desigualdades sociais existentes no Brasil. Desse modo, a desigualdade social torna-se um
fator quase que determinante, do domínio da variedade não padrão e da variedade padrão.
Para comprovar, Bagno (2007, p. 48) aponta o seguinte:
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As pesquisas sociolingüísticas - que se baseiam em coleta de dados por meio
de gravações da fala espontânea, viva, dos usuários nativos da língua -
confirmam uma suposição óbvia: as pessoas das classes cultas de qualquer
lugar dominam melhor a norma culta do que as pessoas das classes não-
cultas de qualquer lugar.
As diferenças regionais também têm um papel significativo no distanciamento já
referido sobre as variedades. Sendo o Brasil um país extenso e caracterizado por diversas
regiões geográficas, cada região tem cultura e dialetos distintos. O que principalmente
caracteriza as diversas oralidades brasileiras são os sotaques e as expressões próprias de cada
lugar. Dessa forma, é possível notar que cada variação linguística atende à cultura local.
Como todos os falantes do português brasileiro usam suas oralidades para comunicar com as
pessoas que os cercam, logo se entende que o português foi a língua usada, por isso uma
oralidade não se sobrepõe à outra. (cf. BAGNO, 2007, p.47).
Embora o preconceito linguístico seja muitas vezes instituído na sociedade, é a partir
das inquietações geradas pelo mesmo que se pode desconstruir os mitos sobre a língua, e
assim, através dos saberes linguísticos aprendidos, é possível reconhecer as propriedades
significativas existentes nas variações linguísticas, nas quais ainda se verificam relações de
coerência, tornando o fenômeno da variação ainda mais interessante e significativo.
Segundo Koch e Travaglia (2001, p.21):
[...] a coerência está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um
sentido para o texto, ou seja, ela é o que faz com que o texto faça sentido
para os usuários, devendo, portanto, ser entendida como um princípio de
interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto numa situação de
comunicação e à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste
texto.
A coerência textual não possui um conceito definido, o que se sabe é que está
relacionada com a possibilidade de atribuir sentido ao texto. É o conjunto de elementos da
coerência que traz a verificação de sentido do texto para o leitor.Éde suma importância
enfatizar que aqui não se fala apenas de texto na modalidade escrita, mas também do texto
oral. É a partir do texto oral que se estrutura o texto escrito.
Assim como acontece o preconceito em relação à oralidade não padrão, acontece
também com a textualidade não padrão. Muitas vezes textos escritos na variedade não padrão
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são considerados incoerentes. Por isso, é importante desmitificar certos conceitos em relação
às variações linguísticas para que seja possível observar a coerência em textos diversos.
Percebe-se, então, que a coerência ainda é incompreendida para alguns, pois muitos
acreditam que, se o texto contiver erros gramaticais, está incoerente. Koch e Travaglia (2001)
salientam que, se houver possibilidade de se estabelecer sentido no texto, o mesmo é coerente.
Assim, para que a variedade linguística e o texto sejam coerentes, é preciso que ambos
estejam adequados ao contexto de seus usuários.
As variedades linguísticas são sempre adequadas ao contexto de onde surgiram e, às
vezes, o uso de outra variedade poderia ser mal recepcionado, devido ao risco de não se
cumprir o seu papel principal, que é a comunicação. Compreende-se, então, que as variedades
são importantes para que a relação entre os falantes seja fluida, proporcionando o diálogo
entre os interlocutores. Um exemplo disso é que, para cada situação, é necessário imprimir
uma forma de falar diferente. Ninguém fala do púlpito de uma igreja como se fala com os
amigos, ou quando se assiste a um jogo de futebol.
Essa circunstância sinaliza para o que Koch e Travaglia (2001, p.69) apresentam
como situacionalidade. A situacionalidade é um fator importante para constituir a coerência
textual e atua da situação para o texto e vicee versa. Da situação para o texto (KOCH;
TRAVAGLIA, p.69-70)
[...] deve ser aqui entendida quer em sentido estrito – a situação
comunicativa propriamente dita, isto é, o contexto imediato da interação -,
quer em sentido amplo, ou seja, o contexto sócio-político-cultural em que a
interação está inserida. Sabe-se que a situação comunicativa tem
interferência direta na maneira como o texto é construído, sendo
responsável, portanto, pelas variações lingüísticas. É preciso, ao construir
um texto, verificar o que é adequado àquela situação específica: grau de
formalidade, variedade dialetal, tratamento a ser dado ao tema, etc.
Vale ressaltar também que, em meio às variedades linguísticas, existem
regularidades que singularizam uma variante com relação à outra. No sudeste, por exemplo,
há formas de falar que denunciam os seus falantes, caracterizando-os como pessoas que são
daquela região. Da mesma maneira acontece com os falantes baianos, paulistas, mineiros; o
que torna a variação um fator considerado muito importante, já que caracteriza uma
identidade linguística, singularizando, assim, o modo de falar de cada região, de cada lugar.
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Quando são abordadas as variações linguísticas, implicitamente se remete à
identidade linguística. Através da oralidade, é possível perceber suas particularidades, as
quais denotarão a sua região, seu grau de estudo, sua classe social, enfim, sua identidade
linguística. No sul, como fora dito anteriormente, as pessoas falam diferente das do nordeste.
Uma maneira de confirmar isso é analisando a palavra ―titia‖, que no sul é pronunciada
/tʃi‘tʃia/, enquanto que no nordeste ocorre com muita frequência a pronúncia /ti‘tia/.
Por meio desse e de outros exemplos mais recorrentes, comprova-se a existência de
uma identidade linguística que enriquece, sem dúvida, a língua, mas que infelizmente ainda é
alvo de preconceitos, e, pior, por parte de pessoas que se consideram linguisticamente mais
preparadas. Bagno (2007) reprova a atitude dessas pessoas que vivem em função de uma
gramática normativa, pregando que essa é a única forma de se falar o português. Estas
desconsideram e ignoram as ciências linguísticas, que comprovam grande parte dos fatores
que tornam a língua cheia de variações.
Nessa perspectiva, percebe-se que o preconceito linguístico é propagado através do
discurso que a elite transmite e que predomina sobre boa parte da população. Esse fato
acontece em consequência da falta de conhecimento de mundo dessas pessoas. Segundo Koch
e Travaglia (2001, p.60), o conhecimento de mundo:
[...] desempenha um papel decisivo no estabelecimento da coerência: se o
texto falar de coisas que absolutamente não conhecemos será difícil
calcularmos o seu sentido e ele nos parecerá destituído de coerência. É o que
aconteceria a muitos de nós se nos defrontássemos com um tratado de física
quântica.
Nota-se que os conhecimentos de mundo são os saberes arquivados na memória,
organizados em blocos que se constituem como frames, esquemas, planos, scripts e
superestruturas, por isso, há a necessidade deste conhecimento para colaborar com a coerência
na comunicação. Então, se as pessoas que propagam esse preconceito soubessem o que é a
língua e como a mesma funciona, não disseminariam a repulsa pelas variedades linguísticas
desprivilegiadas. Assim, o preconceito linguístico seria aos poucos mitigado da sociedade.
Ao elaborar um texto, o emissor recorre ao recurso da intencionalidade que, segundo
Koch e Travaglia (2001, p. 79):
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[...] refere-se ao modo como os emissores usam textos para perseguir e
realizar suas intenções, produzindo, para tanto, textos adequados à obtenção
dos efeitos desejados. É por esta razão que o emissor procura, de modo
geral, construir seu texto de modo coerente e dar pistas ao receptor que lhe
permitam construir o sentido desejado.
Portanto, compreende-se a língua como um organismo vivo que está em constante
mudança devido à sua necessidade de atender aos falantes que a tomam como um símbolo
comunicativo e a transformam em tempo, espaço e circunstâncias diferentes.
Considerando a importância que a variação linguística e a coerência textual têm em
uma produção de texto, faz-se necessário discuti-las e analisá-las no poema Aos poetas
clássicos, de Patativa do Assaré, por ser um Cordel, poesia popular rica em variações
linguísticas.
2. ANÁLISE DO POEMA “AOS POETAS CLÁSSICOS”
No poemaAos poetas clássicos, de Patativa do Assaré, o eu lírico é o próprio autor. A
veracidade dessa informação é comprovada porque os dados revelados no poema coincidem
com os dados biográficos do poeta. Patativa do Assaré, em sua autobiografia, relata que saiu
da escola lendo o segundo livro de Felisberto de Carvalho e no poema esta informação
aparece nos versos da segunda estrofe:
No verdô de minha idade,
Só tive a felicidade
De dá um pequeno insaio
In dois livro do iscritô,
O famoso professô
Filisberto de Carvaio.
O eu lírico, Patativa do Assaré, é um homem simples, um sertanejo que, como tantos
outros, não teve a oportunidade de estudar, pois, para sobreviver, precisou (e precisa)
trabalhar. Aprendeu sozinho o ofício de ser poeta, o que fica evidente nos seguintes versos da
quinta estrofe:
E ôtras coisinha aprendi
Sem tê lição de ninguém.
Na minha pobre linguage,
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A minha lira servage
Percebe-se que o eu lírico adquiriu boa parte do seu conhecimento através da
observação da natureza e da cultura do seu povo e, apesar de dizer que a sua ―lira é servage‖,
ele valoriza essa linguagem, pois mostra em suas palavras não sentir inveja dos ―poetas
clássicos‖ que tiveram oportunidade de estudar. Isso fica claro em todo o poema,
especialmente nos versos da décima primeira estrofe: ―Me considero feliz/ Sem nunca invejá
quem tem/ Profundo conhecimento‖.
O poema Aos poetas clássicos é um texto que leva o leitor (principalmente o que
conhece/vive num espaço geográfico semelhante ao que o eu lírico descreve) a divagar pela
natureza e estilo de vida das pessoas que habitam neste ou semelhante contexto. Para que isso
aconteça, o eu lírico vai tecendo um percurso implícito, para que o leitor chegue a perceber as
belezas do local como também a sabedoria de pessoas que não cursaram uma faculdade.
O poema em questão é escrito para rebater algumas críticas em relação à escrita não
padrão e a textos que não fazem parte dos cânones literários. No decorrer do mesmo, há
ocorrências de variantes não-padrão do léxico português, como, por exemplo, nas palavras:
niversitário, prazê, vocabularo, istruí, papé, trabaiá, iscritô, reva, premêro, tarvez, fié, fulô,
chêro, poêra, uvindo, dotô, ligêro, entre outras. Essas e as demais palavras não dificultam a
leitura e nem atrapalham a compreensão do texto, pois, para o contexto do autor, são palavras
corriqueiras, usadas pelos seus conterrâneos. Estes logo saberão que niversitárioremete
auniversitário, vocabularoavocabulário, istruípapéadesperdiçar papel, revaa relva, etc.
Mesmo que algumas palavras sofram aglutinação ou alguma supressão, não impedirá que a
mensagem seja entendida.
Pode acontecer que, para alguns leitores (aqueles que não estejam inseridos no
contexto do autor), devido ao preconceito linguístico, ocorra um estranhamento à grafia das
palavras. Nesse caso, para compreender o significado das palavras, esses leitores precisarão
fazer inferências, para atribuir coerência ao texto.
O poeta, por não fazer uso da variedade padrão, materializou o mito de que o
―Brasileiro não sabe português‖ (BAGNO, 2007, p.20). Isso é perceptível nos versos: ―Pois
mesmo sem o português‖ e ―Na minha pobre linguage‖. Esse mito ainda prevalece na
sociedade; muitos brasileiros acreditam que não sabem o português. Essas pessoas são, na
maioria das vezes, vítimas do preconceito linguístico.
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De acordo com Bagno (2007, p. 9), ―o preconceito lingüístico está ligado, em boa
medida, à confusão que foi criada, no curso da história, entre língua e gramática normativa‖.
Para esclarecer, Bagno (2007, p. 9-10) apresenta a seguinte analogia:
A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a gramática
normativa é a tentativa de descrever apenas uma parcela mais visível dele, a
chamada norma culta. Essa descrição, é claro, tem seu valor e seus méritos,
mas é parcial (no sentido literal e figurado do termo) e não pode ser
autoritariamente aplicada a todo o resto da língua — afinal, a ponta do
iceberg que emerge representa apenas um quinto do seu volume total. Mas é
essa aplicação autoritária, intolerante e repressiva que impera na ideologia
geradora do preconceito lingüístico.
O que o autor destacou é algo extremamente perceptível: a língua é algo muito amplo
em comparação à gramática normativa, pois esta última oferece suporte apenas à variedade
privilegiada, que é a variedade padrão, marginalizando as demais, não devendo, portanto, ser
vista como verdade absoluta. O que não se pode negar, porém, é a importância da mesma,
como uma necessidade de padronização da escrita.
Torna-se imprescindível que mitos como esse, que sustentam o preconceito
linguístico, sejam desconstruídos. É preciso compreender que ―todo falante nativo de uma
língua sabe essa língua. Saber uma língua, no sentido científico do verbo saber, significa
conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento
dela‖ (BAGNO, 2007, p. 35).
A verdade é que todo falante possui o domínio de uma gramática internalizada. Essa
gramática, segundo Possenti (1996, p. 69), ―refere-se a hipóteses sobre os conhecimentos que
habilitam o falante a produzir frases ou seqüências de palavras de maneira tal que essas frases
e seqüências são compreensíveis e reconhecidas como pertencendo a uma língua‖.
Sem ser detalhista, Possenti (1996, p. 69-70) comenta:
Que tal conhecimento é fundamentalmente de dois tipos: lexical e sintático-
semântico. O conhecimento lexical pode ser descrito simplificadamente
como a capacidade de empregar as palavras adequadas (isto é, instituídas
historicamente como as palavras da língua) às ―coisas‖, aos ―processos‖, etc.
O conhecimento sintático-semântico tem a ver com a distribuição das
palavras na sentença e o efeito que tal distribuição tem para o sentido.
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Sendo assim, no poema Aos poetas clássicos, ao contrário do que o eu lírico afirma,
ele tem sim domínio do português, de uma variedade dentre tantas outras presentes no país.
Além disso, ele conseguiu cumprir com o papel de sua poesia, que é transmitir uma
mensagem em forma de versos.
De acordo com Possenti (1996) e Bagno (2007), todo ser humano tem consigo uma
gramática internalizada, e isso não é diferente com o eu lírico em questão. É preciso perceber
o modo como essa língua, mesmo considerada errada (pelo senso comum), é usada por ele em
sua poesia. Ao ser lida, ela se torna compreensível ao leitor, o que prova que, semântica e
sintaticamente, ela não perde o seu valor, pelo contrário, ela funciona muito bem.
No quinto verso da segunda estrofe da poesia, o eu lírico utiliza a palavra
―verdô‖,que se caracteriza como um frame, elemento que, segundo Koch e Travaglia (2001,
p.60) se refere aos ―[...] conjuntos de conhecimentos armazenados na memória debaixo de um
certo ―rótulo‖, sem que haja qualquer ordenação entre eles; ex: Carnaval (confete, serpentina,
desfile, escola de samba, fantasia, baile, mulatas, etc) [...]‖.
Dessa forma, a palavra ―verdô‖ possui diversos significados, tais como: verde e
juventude. De imediato associa-se à idéia de uma planta nova, viçosa, cheia de vida, mas pela
colocação na frase, pelo que vem antes e depois da mesma, entende-se que se trata da
juventude, uma fase da vida do poeta (sem necessitar de maiores informações).
Na poesia em questão, existe uma crítica sobre o português padrão, a qual é
perceptível no sétimo e no oitavo versos da primeira estrofe: ―Pois mesmo sem português/
Neste livrinho apresento‖. Essa crítica é direcionada ―Aos poetas Clássicos‖, poetas que
utilizam uma linguagem regida pela gramática normativa, considerada como o verdadeiro
português.
Os versos supracitados têm grande relevância informativa, pois, segundo Koch e
Travaglia, ―[...] se [...] toda a informação de um texto for inesperada ou imprevisível, ele terá
um grau máximo de informatividade [...]‖ (p.71). Assim, o eu lírico traz uma nova informação
ao leitor, de que não é necessariamente preciso que se faça o uso do português padrão para
escrever; pode-se também escrever com o português não-padrão. E por pressão de alguns
falantes do português padrão, o próprio eu lírico usou o termo ―sem português‖. Para que o
leitor perceba que ―sem português‖ é sinônimo (no caso do poema) de português não –
padrão, existe a necessidade de conhecimentos anteriores, inclusive da informatividade acima
citada.
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O poeta faz uso de um vocabulário adequado para o seu contexto. Ele cria poemas
com versos, estrofes e rimas tão bem elaborados quanto os dos poetas clássicos. E para a
concretização de trabalhos, entende-se que os embasou no seu conhecimento de mundo,
levando em consideração a informação de que o poeta não teve acesso à escola.
Patativa do Assaré oferece uma importante reflexão sobre o preconceito contra a
língua e a escrita não padrão. Um bom exemplo da reflexão é o próprio título do poema: Aos
poetas clássicos. Por todo o poema se percebe, mesmo que implicitamente, uma crítica aos
escritores tidos como clássicos, que tiveram a possibilidade de estar entre os clássicos não só
por terem talento, desenvoltura para a poesia, mas porque cursaram uma faculdade. Na
primeira e sexta estrofes, nos quatro primeiros, versos encontram-se:
Poetas niversitário,
Poetas de Cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia;
A intencionalidade está na linguagem expressada pelo autor, em que o mesmo mostra
que a oralidade de seu poema é proposital, pois mostra a linguagem de seu contexto social.
Ele não tinha a intenção de mudar a oralidade de seu poema, só para agradar aos clássicos,
desmerecendo o seu contexto, mas sim, através de sua escrita, valorizar sua oralidade.
O eu lírico se mostra aquém dos ―niversitário‖, com pouco estudo, relatando uma
realidade totalmente oposta à sua. Essa situação comunicativa tem ―interferência direta na
maneira como o texto é construído, sendo responsável, portanto, pelas variações lingüísticas‖
(KOCH e TRAVAGLIA, 2001, p.70).
O que se percebe é a importância da adequação do texto à situação comunicativa,
compreendendo que sempre existe uma ligação, ou melhor, uma mediação entre o mundo real
e o textual. O poeta tem um cuidadoso trabalho de escolher as palavras certas para causar o
efeito desejado, utilizando, assim, o recurso da situacionalidade.
Compreende-se então que as marcas orais que aparecem no poema não o tornam
incoerente, mas, pelo contrário, adequado. A variação linguística usada pelo autor enriquece
ainda mais a poesia, pois possibilita a disseminação da cultura regional.
O poema em questão torna-se coerente devido aos vários elementos linguísticos que
o constituem. Através desses elementos, confirma-se, portanto, a coerência textual e se
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enfatiza a valorização das diversas formas de falar do povo brasileiro, confirmando, como
afirma Possenti (1996), que quem faz uso de uma língua, sabe falar essa língua.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do que foi apresentado no decorrer do artigo, nota-se que, assim como o
autor do poema analisado, muitas pessoas ainda sofrem com o preconceito linguístico por
conta das variedades existentes em cada canto do país. Precisa-se, portanto, que haja um
esclarecimento e uma diferenciação do que vem a ser língua e gramática normativa, a fim de
que se desconstrua a ideia errônea de que apenas a minoria das pessoas domina o português.
Percebe-se, então, que não existe modo errado de se falar, o que existe são falares
diferentes, e isso acontece porque as pessoas nascem em contextos diferentes e, por isso,
aprendem a se comunicar de acordo com o meio do qual fazem parte. Segundo Bagno (2007,
p. 51), ―é preciso abandonar essa ânsia de tentar atribuir a um único local ou a uma única
comunidade de falantes o ‗melhor‘ ou o ‗pior‘ português e passar a respeitar igualmente todas
as variedades da língua que constituem um tesouro precioso de nossa cultura‖.
Portanto, fica claro que a língua é um símbolo que, além da função comunicativa,
serve também como um objeto de identificação, isto é, para diferenciar uma cultura social da
outra, através do sotaque, da pronunciação das palavras.
A pesquisa contribui para ampliar o entendimento a respeito da língua, permitindo
reflexões acerca da variação linguística e da coerência textual. A partir desta foi possível
perceber que, mesmo não falando a variedade padrão do português, se pode falar com
coerência e que os dialetos são coerentes para as pessoas inseridas no contexto que as cerca.
Espera-se, assim, que, com o passar do tempo, todos esses preconceitos sejam
obliterados e que todos possam utilizar a sua variedade linguística, livres de qualquer tipo de
discriminação.
REFERÊNCIAS
ASSARÉ, Patativa. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino.
Petrópolis: Vozes, 17ª edição, 2002. p. 17-20.
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BAGNO, Marcos. Preconceito Lingüístico – O que é, como se faz. São Paulo: Edições
Loyola, 49ª edição, 2007.
FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um canto. São Paulo:
Escrituras, 2003.
KOCH, Ingedore Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência Textual. São Paulo:
Contexto, 12ª Edição, 2011. – (Repensando a Língua Portuguesa).
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 1996.
ANEXO
Aos Poetas Clássicos
Patativa do Assaré
Poetas niversitário,
Poetas de Cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia;
Se a gente canta o que pensa,
Eu quero pedir licença,
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês.
Eu nasci aqui no mato,
Vivi sempre a trabaiá,
Neste meu pobre recato,
Eu não pude estudá.
No verdô de minha idade,
Só tive a felicidade
De dá um pequeno insaio
In dois livro do iscritô,
O famoso professô
Filisberto de Carvaio.
No premêro livro havia
Belas figuras na capa,
E no começo se lia:
A pá — O dedo do Papa,
Papa, pia, dedo, dado,
Pua, o pote de melado,
Dá-me o dado, a fera é má
E tantas coisa bonita,
Qui o meu coração parpita
Quando eu pego a rescordá.
Foi os livro de valô
Mais maió que vi no mundo,
Apenas daquele autô
Li o premêro e o segundo;
Mas, porém, esta leitura,
Me tirô da treva escura,
Mostrando o caminho certo,
Bastante me protegeu;
Eu juro que Jesus deu
Sarvação a Filisberto.
Depois que os dois livro eu li,
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Fiquei mesintindo bem,
E ôtras coisinha aprendi
Sem tê lição de ninguém.
Na minha pobre linguage,
A minha lira servage
Canto o que minha arma sente
E o meu coração incerra,
As coisa de minha terra
E a vida de minha gente.
Poeta niversitaro,
Poeta de cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia,
Tarvez este meu livrinho
Não vá recebê carinho,
Nem lugio e nem istima,
Mas garanto sê fié
E não istruípapé
Com poesia sem rima.
Cheio de rima e sintindo
Quero iscrevê meu volume,
Pra não ficá parecido
Com a fulô sem perfume;
A poesia sem rima,
Bastante me disanima
E alegria não me dá;
Não tem sabôa leitura,
Parece uma noite iscura
Sem istrela e sem luá.
Se um dotô me perguntá
Se o verso sem rima presta,
Calado eu não vou ficá,
A minha resposta é esta:
— Sem a rima, a poesia
Perde arguma simpatia
E uma parte do primô;
Não merece muntaparma,
É como o corpo sem arma
E o coração sem amô.
Meu caro amigo poeta,
Qui faz poesia branca,
Não me chame de pateta
Por esta opinião franca.
Nasci entre a natureza,
Sempre adorando as beleza
Das obra do Criadô,
Uvindo o vento na serva
E vendo no campo a reva
Pintadinha de fulô.
Sou um caboco rocêro,
Sem letra e sem istrução;
O meu verso tem o chêro
Da poêra do sertão;
Vivo nesta solidade
Bem destante da cidade
Onde a ciençaguverna.
Tudo meu é naturá,
Não sou capaz de gostá
Da poesia moderna.
Dêste jeito Deus me quis
E assim eu me sinto bem;
Me considero feliz
Sem nunca invejá quem tem
Profundo conhecimento.
Ou ligêro como o vento
Ou divagá como a lêsma,
Tudo sofre a mesma prova,
Vai batê na fria cova;
Esta vida é sempre a mesma.
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