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VEICULAÇÃO DE SABERES ESPACIAIS NA ESCOLA:
VIVÊNCIAS E REPRESENTAÇÕES
Sônia Maria Clareto, coordenadora, UFJF
Evelaine Cruz dos Santos, bolsista PROBIC-FAPEMIG
RESUMO:
O presente artigo busca discutir alguns resultados da investigação realizada entre janeiro de 2005 e
dezembro de 2006. Trata-se da pesquisa intitulada “Noções de espaço e educação escolar: múltiplos
olhares”. Tal investigação teve como objetivo central investigar as veiculações de saberes espaciais
na escola, tanto em questões curriculares, quanto em sua constituição e organização sócio-espacial. A
abordagem metodológica usada é de cunho qualitativo etnográfico e foi realizada junto a uma escola
de educação básica da rede municipal de educação da cidade de Juiz de Fora.
PALAVRAS-CHAVE: Espaço escolar. Cartografias simbólicas. Vivências espaciais.
Introdução
O artigo que aqui se apresenta foi construído a partir de uma investigação realizada de janeiro
de 2005 a dezembro de 2006.Tal pesquisa visou ter um olhar múltiplo e integrado sobre os temas:
espaço e espaço escolar, vivências e representações espaciais. Para tanto, foi constituído um grupo de
estudos e pesquisas, de formação multidisciplinar que, a partir de encontros semanais, buscou
ampliar e aprofundar estudos acerca de noções de espaço em diferentes áreas do saber1.
A pesquisa buscou compreender como os saberes espaciais transitam pela escola através do
currículo, da sua concepção e organização sócio-espacial. Uma das questões que orientou a
investigação foi: “Como a escola e a educação escolar lidam com a questão do espaço, tanto do
1A dinâmica de tal grupo envolveu encontros semanais de estudos e produção de textos. Nasce, daí o livro “Espaço eEducação: travessias e atravessamentos” (LOPES e CLARETO, 2007).
2
ponto de vista das noções de espaço desenvolvidas em diferentes áreas do saber, quanto do
ponto de vista das relações sócio-espaciais que na escola se estabelecem?”.
Um outro foco da investigação centrou-se no mapeamento das vivências espaciais de jovens e
adolescentes em uma escola da rede municipal de ensino da cidade de Juiz de Fora. Esse foco será
aquele ao qual será dedicado o presente artigo. Para o desenvolvimento desse foco investigativo,
foram desenvolvidas estratégias de pesquisa de cunho qualitativo, tais como estudos continuados de
temas relevantes para a investigação; observações participantes de vivências de situações cotidianas
na escola que se aproximavam do tema investigado; mapeamento de espaços de vivência dos alunos
na escola e em seu entorno; entrevistas em profundidade com alunos da escola com vistas a buscar
sua compreensão do espaço escolar e à produção de cartografias simbólicas2 representativas do seu
espaço de vivência escolar. O registro dos dados foi feito através de anotações escritas, gravações,
fotos e filmagens. Posteriormente, houve a transcrição e interpretação desses registros.
No presente artigo, buscaremos enfatizar vivências espaciais de alunos adolescentes e jovens
da escola na qual se deu a investigação no espaço escolar, dando ênfase a algumas cartografias
simbólicas produzidas por eles. Trata-se de um escola de porte médio, com cerca de 780 alunos. A
investigação focou-se no turno da noite, com alunos dos 7º ao 9º ano. A escola está situada em um
bairro periférico da cidade, próximo a uma universidade pública. O artigo está organizado em dois
momentos: no primeiro deles é apresentada uma discussão em torno de noções de espaço; no
segundo, é abordado um mapeamento de vivências espaciais e suas representações em termos de
cartografias simbólicas.
Noções de espaço e de representação espacial
Apesar do grande interesse que esse tema parece apontar, os estudos de espaço e espacialidade
têm acontecido de maneira fragmentada e parcial por diferentes disciplinas escolares. Especialmente, a
física, a matemática e a geografia lançam olhares desarticulados sobre o tema. Paradoxalmente, estes são
temas de grande relevância na modernidade, na medida em que, segundo Harvey (1992 [original 1989]),
ela, a modernidade, caracteriza-se como uma maneira de experimentar o espaço, e o tempo. Assim,
quando se fala em crise da modernidade, está se falando em crise nos modos de experimentar e conceber
as relações espaço-temporais. Modernidade aqui se refere a um período histórico com início na Europa
Ocidental do século XVII, aproximadamente, mas, sobretudo, a um modo de vida que se instala a partir
daí, com grandes transformações sócio-estruturais e intelectuais e com o avanço do iluminismo
2 Cartografia simbólica: “uma expressão de concepções sociais e simbólicas de grupos sociais e/ou de indivíduos arespeito de um território, não admitindo, portanto, cortes precisos, é caracterizada pela linha interrompida: graficamentetem a forma de croqui” (SILVA apud NIEMEYER, 1998, p. 12).
3
(BAUMAN, 1999 [original 1991], p. 299-300). Um modo de estar no mundo e de viver em sociedade – a
sociedade industrial tanto capitalista quanto comunista – e de conceber o conhecimento e a vida com base
nos valores iluministas.
Entretanto a educação escolar não tem se apropriado de tais temas, limitando seu estudo ao
espaço euclidiano como possibilidade de representação espacial. O espaço em Euclides é
tridimensional, homogêneo e está totalmente representado pela geometria euclidiana. Mais ainda, as
representações espaciais estudadas nas escolas, tanto na geometria como na geografia e na física –
ciências que se dedicam ao estudo do espaço – baseiam-se no modo cartesiano de conceber o espaço
e suas representações.
Na verdade, a racionalidade cartesiana, que passa a ser hegemônica, na modernidade,
influencia fortemente as representações espaciais, tanto em termos de cartografia e de cosmologia,
como em termos de geometria, que expulsam de seu meio os elementos de origem no mundo das
sensações, pois, “nossos sentidos às vezes nos enganam” (DESCARTES, 1999 [original 1637], p.
61). Descartes concebia o objeto dos geômetras como “um corpo contínuo, ou um espaço
infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em diversas
partes que podiam ter diferentes figuras e grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as
maneiras...” (DESCARTES, 1999 [original 1637], p. 65). Com efeito, a busca de Descartes pela
verdade e sua crença na matemática como “chave do conhecimento” levam-no a investir na direção
de propor uma redução de todas as qualidades do mundo físico, ou mundo da natureza, unicamente a
qualidades geométricas. É que, segundo Burtt, Descartes
Percebeu que a natureza própria do espaço, ou extensão, era tal que suas relações, ainda quecomplicadas, deveriam sempre permitir a expressão por meio de fórmulas algébricas e que,no caso oposto, as verdades numéricas (em determinadas condições) poderiam serplenamente representadas do ponto de vista espacial. Como resultado natural dessa invençãonotável, Descartes ampliou sua esperança de que todo o reino da física pudesse ser redutívelunicamente a qualidades geométricas. Quaisquer que sejam suas outras dimensões, o mundoda natureza é obviamente um mundo geométrico e seus objetos são grandezas emmovimento, dotadas de extensão e configuração. Se nos pudermos livrar de todas as outrasqualidades ou reduzi-las a estas, é evidente que a matemática terá de ser a chave única eadequada a revelar as verdades da natureza (BURTT, 1991 [original 1931], p. 86).
Tem-se, assim, uma matematização do espaço, tônica da ciência moderna com suas bases na
racionalidade cartesiana. Entretanto quando o espaço é representado dessa maneira, matematizado,
perdem-se seus elementos sensíveis – como cores, cheiros, significados vivenciais e afetivos etc – e,
com isso, parte daquilo que está na sua composição (SANTOS, 2002). A busca pela verdade – sendo
a noção de verdade aqui como adequação a uma realidade extramental, própria da concepção
cartesiana de conhecimento e incorporada aos conhecimentos modernos e, em especial, à matemática
4
– faz com que a geometria seja vista como a verdade acerca do espaço: uma matematização da
realidade. Assim a “cartografia física” se apóia nesta matematização da realidade, em busca da
verdade.
Deste modo, os mapas cartográficos, assim como as cosmologias (CLARETO, 1993), passam
a ser cada vez mais “científicos”, afastando-se daquelas representações que levam em consideração
observações e experimentações cotidianas. As representações espaciais passam, portanto, a receber
um tratamento de forte abstração, sendo o observador que representa tal espaço considerado
generalizador e genérico, presente, simultaneamente, em infinitos pontos que se situam, cada um
deles, perpendicularmente ao plano que se deseja representar. Estaremos denominando este
observador de observador-flutuante (CLARETO, 2003).
Entretanto nas vivências espaciais cotidianas, tal matematização parece não dar conta de
ajudar a desenvolver uma compreensão de tais vivências: os saberes sócio-espaciais não se reduzem
ao espaço matematizado, eles tomam ares complexos e abrangentes. Assim, para conhecer o espaço
de vivência na escola de jovens e adolescentes, uma outra compreensão parece ser necessária. Trata-
se, pois, de criar possibilidades para a compreensão de representações espaciais que considerem as
trajetórias, os caminhos e percursos nos espaços de vivência cotidiana (CERTEAU, data [original
data]).
São representações que estão nitidamente mais ligadas a uma visão “sensível” do mundo, na
qual a presença de elementos da vida social é fortemente indicada, assim como elementos da
natureza local. Assim como ocorria na Europa feudal3, tais representações espaciais não estão
interessadas em uma “precisão geométrica”, nem tão pouco em esclarecer o leitor sobre sua “real
distribuição territorial”. O importante aqui é comunicar uma maneira de organizar tal espaço,
elegendo referenciais relevantes para esta organização. É na teia das relações sociais que as
representações espaciais vão sendo tecidas e, também, as práticas espaciais vão se tecendo junto às
relações sociais.
As transformações nas relações sociais vão, pois, imprimindo novas maneiras de representar
o espaço. Neste sentido, as transformações nas relações sociais e econômicas (nos meios de
produção) na Europa feudal produziram novas maneiras de se conceber o espaço e de representá-lo.
Assim, a partir dos séculos X e XI, novas relações sociais e de produção vão tomando lugar na
Europa feudal: o mercantilismo vai se impondo e, com ele, ocorre uma “expansão do ocidente”.
3É bom registrar que, ao associar representações espaciais com algumas representações através de mapas produzidos naEuropa Medieval, não estou querendo insinuar qualquer relação temporal-histórica-progressista. Ao contrário, queroexatamente pensar o processo da produção das idéias (aqui especificamente das idéias acerca de espacialidades) comonão linear, ou seja, o propulsor de tal processo não é uma meta ou ponto a ser atingido – progresso linear –, mas opróprio fluxo da vida com suas necessidades e seus momentos.
5
Portanto “Colocar as coisas e os homens nos seus lugares implicou medir distâncias e, mais que isso,
sistematizá-las como representação possível e necessária para garantir os novos parâmetros de
produção/reprodução social” (SANTOS, 2002, p. 46). Por outro lado, a natureza passa a ser
concebida e percebida de uma outra maneira: surge a necessidade de estudá-la sistematicamente. A
partir daí, a matematização e, mais especificamente, a geometrização do espaço, ganha cada vez mais
força e importância.
Posteriormente, a partir dos séculos XV e XVI, sobretudo com as navegações e a “chegada às
Américas”4, surgem outras necessidades de representação espacial, resultantes dos deslocamentos e
da premência em se definir caminhos possíveis entre portos. Para isso novas técnicas são exigidas.
Por outro lado,
é a retomada da matemática como linguagem científica universal, no redimensionamento dosconceitos de espaço e tempo, que vai se expressar numa nova maneira de desenhar o mundo– geometrização das formas -, materializando nos cartogramas as novas necessidadesimpostas pelo capitalismo mercantil nascente (SANTOS, 2002, p. 56).
Assim, dois fatores parecem apontar na direção da produção da “cartografia moderna”, que
toma a geometrização do espaço como base: por um lado, as navegações (e o capitalismo mercantil
que as impulsionou) e as explorações de novas terras (expansionismo europeu, ou o nascimento do
“moderno imperialismo europeu”); por outro lado, o avanço de técnicas de representação espacial
proveniente da retomada da matemática no Renascimento. Na verdade, é no Renascimento que surge
a “cartografia científica” ou, num sentido mais geral, a moderna percepção do espaço, a partir das
artes, especificamente, da pintura, com as técnicas da perspectiva e do ponto de fuga.
E [ela, a percepção moderna do espaço] nasce colada à geometrização da confecção doquadro, através do artifício de uma tela de quadrículas interposta entre o modelo e a telaorientando a transposição e a simetria da pintura [...] O sistema da pintura por quadrículastranspõe-se da tela para o papel do mapa, através do quadriculado das coordenadasgeográficas, as massas, formas, linhas e limites aqui ganham a precisão dos corpos dasuperfície terrestre (MOREIRA, 2002, p. 9).
Desse modo, aos poucos, “a síntese proposta de linhas retas e paralelas” vai sendo
incorporada às cartografias das explorações: um “novo mundo” a ser conhecido e conquistado e, para
4A expressão “chegada às Américas” quer substituir a mais usual “descoberta das Américas”, uma vez que nesta estáembutida a idéia de que “a América sempre tivesse existido e estivesse sendo guardada para o usufrutuário que, nomomento certo da história, chegaria para reclamar o que era seu de direito” (SANTOS, 2002, p. 67). A expressão“chegada às Américas” ainda não é boa, apesar de tentar evitar este eurocentrismo histórico. O europeu chegou a terraspor ele desconhecidas: usufruiu, explorou, nomeou, tomou posse, sentiu-se seu dono.
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isso, a proposta é medir, matematizar, geometrizar o espaço: representações cartográficas que
pudessem auxiliar nesse processo, isso era a exigência da época5.
Surge, naquele momento, a cartografia de Mercator6, em 1569, que revolucionou a
cartografia de sua época, usando eixos coordenados X e Y. O mapa de Mercator7 é muito próximo
daquilo que concebemos como uma representação “científica” do mundo. Ele mostra a imensa
ampliação territorial que o processo de europeização do mundo andou provocando.
Portanto, diferentemente daquelas maneiras de representar os espaços comuns na Europa
feudal, que não tinham como preocupações localizações e medições precisas, a modernidade
imprimiu maneiras de fazê-lo que foram, pouco a pouco, incorporando tais preocupações. Assim, a
prioridade é dada à matematização do espaço, ou seja, à espacialização que se baseia na
racionalidade moderna. A matematização do espaço passa a ser fundamental para diferentes campos
da sociedade: desde a geografia e a economia até, de volta, as artes em geral.
Como na Modernidade a racionalidade cartesiana passa a ser hegemônica os mapas
cartográficos, assim como as cosmologias, passam a ser cada vez mais “científicos”, afastando-se
daquelas representações que levavam em consideração observações e experimentações cotidianas: as
cosmologias com a Terra no centro do universo, tendo o sol girando em seu entorno (que pode ser
verificada com observações cotidianas do nascer ao por do sol) são substituídas por outra que parte
de observações sistemáticas ou “científicas”, que seguem o “método científico” de investigação, e
utiliza-se de experimentações, mais rigorosas e sistemáticas; igualmente, os mapas cartográficos
recebem um tratamento de forte abstração, sendo o “observador caminhante” substituído por um
“observador flutuante”, generalizador e genérico, presente, simultaneamente, em infinitos pontos
que se situam, cada um deles, perpendicularmente ao plano que se deseja representar. Daí,
Privados de todos os elementos de fantasia e de crença religiosa, bem como de todos osvestígios das experiências envolvidas em sua proporção, os mapas tinham se tornadosistemas abstratos e estritamente funcionais para a organização factual de fenômenos noespaço (HARVEY, 1992 [original 1989], p. 227).
Pretendia-se, pois, que a representação espacial, portadora da ordem espacial, fosse neutra e
“científica”: cada povo, cada cultura tinha seu “lugar” definido e específico nesta ordem espacial. A
segurança de que o estranho permanecerá em seu “lugar” dá à ordenação espacial uma relevância no
projeto da modernidade: na busca da ordem, da homogeneidade e da eliminação das ambivalências.
5“caminho de um paraíso, geometricamente traçado e, portanto, materialmente conquistável” (SANTOS, 2002, p. 78).6Gerhard Mercator nasceu no ano de 1515, em Flandres. É considerado o “pai” da cartografia moderna.7Uma reprodução do mapa em questão encontra-se em Santos (2000, p. 208-9).
7
Essa ordenação espacial assume contornos políticos e ideológicos na medida em que acaba
reproduzindo as distribuições distorcidas de poder.
Portanto a representação espacial é, necessariamente, política e ideologicamente
comprometida, mesmo que se pretendesse, ao se dar um tratamento matemático à questão, livrá-la
destes condicionantes, tornado-a neutra e abstrata. As representações espaciais são etnocêntricas e,
devido à expansão da cultura européia ocidental nas explorações e colonizações, acabaram se
tornando eurocêntricas. Elas têm a Europa como centro do planeta: tanto em termos de proporções
quanto em termos de posicionamento privilegiado nas representações. Assim, tal qual na Idade
Média, quando Jerusalém, por outras motivações e finalidades, assumia o centro do mundo, a
cartografia moderna, por conta da dominação econômica, política e cultural que a Europa exercia
sobre outros povos, acaba sendo colocada no centro das representações espaciais.
Diferentemente daquilo que pretendia a “ciência do rigor”, em seu extremo – eliminar as
“interferências humanas”, reduzir as possibilidades da crítica e da criatividade, eliminar a
interpretação – toda cartografia atende a uma escala de valores que acaba por definir o “real” a ser
representado. Assim,
Um mapa é, antes de tudo, um tema, e seu desenvolvimento dependerá da forma pela qual ocartógrafo define – independentemente, neste contexto, dos motivos que o levam a realizarsuas próprias escolhas – o que é significante e a maneira pela qual sua escala de valores setransformará numa mensagem mais ou menos explícita a seus leitores (SANTOS, 2002, p.55-6).
Ou, em outros termos,
O mapa pode também ser compreendido como um sistema de representações. Ele, por si só,já é uma leitura, uma síntese, uma introdução à interpretação, realizadas por quem o elabora.[...] o mapa, assim, é compreendido como um texto-imagem-representação, referente àespacialidade das coisas (HISSA, 2002, p. 30).
Sendo assim, os mapas acabam reproduzindo muito do ambiente cultural no qual se
desenvolve, inclusive o etnocentrismo instalado naquela cultura. O trecho abaixo se refere ao mapa
de Toscanelli8 dá uma clara noção disto:
A fantasia, no entanto, amplia-se quase que na ordem direta da distância (o que, de certamaneira, significa cartografar o desconhecido). Um olhar um pouco mais minucioso sobre omapa mostra-nos uma Europa e uma costa norte-africana marcadas pela presença de castelos.Com o distanciamento, as imagens de animais ferozes vão tomando o lugar principal até que
8Mapa-múndi genovês, produzido em 1457 e conservado na Biblioteca Central de Florença, utiliza-se de recursosgeométricos na sua construção (SANTOS, 2002, p. 200-1).
8
sereias, grous e outros seres imaginários passam a marcar a identidade do oceano Índico, dosul da África ou mesmo do nordeste da Ásia (SANTOS, 2002, p. 55).
Assim, os “seres imaginários” vão ajudando a compor a imagem que se faz do outro, do
diferente, do desconhecido, delimitando o espaço no qual se pode circular. O outro é identificado,
portanto, com o “monstro” a se temer, a se evitar, a se eliminar: as diferenças são, nesse contexto,
necessariamente elimináveis. Sua eliminação pode se dar tanto pela “domesticação”, pela
“catequização” e pela “civilização”, quanto pela própria eliminação física.
Por outro lado, a presença de tais “monstros” ajuda a afastar o interesse no “novo”, no
“desconhecido”. Ou seja, “É possível, por exemplo, que os mercadores medievais tenham
intencionalmente, disseminado mapas que descreviam a existência de serpentes nas margens de suas
rotas para desencorajar outras explorações e estabelecer monopólios” (COHEN, 2000 [original
1996], p. 42). Tais suspeitas foram baseadas, segundo Cohen, em pesquisas realizadas por Keeryung
Hong, da Universidade de Harvard, acerca de cartografias medievais. Entretanto o que interessa
destacar aqui é a não neutralidade das representações espaciais, mesmo as consideradas “científicas”:
estão situadas nas redes de significados culturais.
Dessa maneira, como a modernidade é marcada por uma experiência de espaço ordenado com
vistas a um mundo ordenado, homogêneo e totalmente racional, as “cartografias modernas” estão
impregnadas deste ambiente cultural. Entretanto, diversas mudanças no contexto social, cultural e
histórico da Europa Ocidental Moderna provocaram uma transformação também na forma de
conceber e lidar com o espaço; a ordenação espacial pensada e implementada pelo Iluminismo não se
consolidou: não foi possível eliminar as ambivalências, nem promover a homogeneização das
culturas e das economias. Neste contexto, o outro, o estranho não permanece confinado ao seu
“lugar”, ele ameaça a ordem do mundo: “O estranho solapa o ordenamento espacial do mundo – a
batalhada coordenação entre proximidade moral e topográfica, a união dos amigos e a distância dos
inimigos” (BAUMAN, 1999 [original 1991], p. 69). A total ordenação espacial do mundo parece
impossível.
Além disso, com a expansão do capitalismo e da cultura européia ocidental, tanto a economia
quanto as culturas deixam de ser locais, passando a ter efeitos “globais”. A segurança do “local” é
ameaçada e a ordenação espacial do mundo comprometida. Portanto “A certeza do espaço e do lugar
absolutos foi substituída pelas inseguranças de um espaço relativo em mudança, em que os eventos
de um lugar podiam ter efeitos imediatos e ramificadores sobre os outros” (HARVEY, 1992 [original
1989], p. 238).
A grande crítica que vem sendo feita contemporaneamente à cartografia física, em suas
pretensões iluministas totalizantes, é que o mapa, com seu rigor matemático, “substitui o espaço
9
descontinuamente remendado dos caminhos concretos pelo espaço homogêneo e contínuo da
geometria” (HARVEY, 1992 [original 1989], p. 230). Ou seja, “a geometria mostra como seria o
mundo se fosse geométrico. Mas o mundo não é geométrico. Ele não pode ser comprimido dentro
das grades de inspiração geométrica” (BAUMAN, 1999 [original 1991], p. 23).
As crises de conhecimento e de ciência, de subjetividade, de fundamentações e metarrelatos
estão situadas no espaço-tempo e as maneiras de experimentar esse espaço, assim como esse tempo,
vêm se modificando diante de tais crises. Hoje, a contemporaneidade é marcada por uma
modificação nessa relação espaço-temporal:
À medida que o espaço parece encolher numa “aldeia global” de telecomunicações e numa“espaçonave terra” de interdependências ecológicas e econômicas – para usar apenas duasimagens conhecidas e corriqueiras –, e que os horizontes temporais se reduzem a um pontoem que só existe o presente (o mundo do esquizofrênico), temos de aprender a lidar com umavassalador sentido de compressão de nossos mundos espacial e temporal (HARVEY, 1992[original 1989], p 219).
A velocidade com que as informações circulam, as notícias correm, as distâncias são
abrandadas é quase desastrosa... Os meios de transporte e de comunicação são cada vez mais
aprimorados e revelam um mundo de novidades diante dos olhos perplexos de homens e mulheres
em todo o mundo... A banalização da notícia e das informações leva a uma escassez de reflexão e de
produção de idéias9. De mais a mais, a distribuição espacial do acesso às tecnologias de informação
e de transporte sobre o planeta é cada vez mais desigual, reproduzindo desigualdades sociais,
políticas e econômicas. Sobretudo, para além da distribuição do acesso, a própria distribuição
espacial da produção de saberes, de notícias e de informações reflete, mais fortemente ainda, tais
desigualdades.
Espaços e representações espaciais não são, pois, descomprometidos, ao contrário, são
produções que se desenvolvem sob determinadas condições sócio-culturais e político-ideológicas.
São, pois, produções perspectivais e como tais são múltiplas, não objetivas e não neutras. Portanto
são interpretações.
É com esta abordagem que as representações propostas pelos participantes desta investigação
serão interpretadas: como produções perspectivais, produzidas pelas relações sócio-espaciais que
eles estabelecem na escola. Produtora destas relações. São, portanto, produções humanas.
9É preciso deixar claro que tanto a circulação de informações quanto à ampliação do acesso a elas são fundamentais paraquebrar monopólios e aprofundar a participação política: democratização das informações e do acesso a elas. Entretanto,o que estou destacando aqui é o caráter da “banalização da notícia”: a velocidade excessiva com a qual as informaçõescirculam não informa, ao contrário, desinforma, na medida em que acaba gerando desinteresse e conformismo.
10
Observador caminhante-flutuante: representações espaciais da escola
Os alunos participantes da investigação foram solicitados a desenharem sua escola
mostrando-a, representando-a. Diferentes produções surgiram: algumas mais da forma “croqui” e
outros, da forma “desenho de paisagem”. Em ambos os casos, os alunos buscaram identificar a
escola através de suas vivências, quer representando uma particularidade, ou seja, um local ou
situação específica; quer representando-a mais globalmente.
1) Os desenhos de paisagem foram construídos na arte de fazer que estamos chamando de artes do
observador caminhante: o observador, ao caminhar pelo espaço, observa-o, e projeta no plano do
papel aquilo que vê, em vista frontal ou perspectival. Alguns desses desenhos são do tipo desenhos
locais; outros, aparecem como representações da fachada da escola. O observador se posiciona em
frente à escola e procura desenhar o que vê. Neste caso, temos dois tipos de desenho: aqueles nos
quais o observador se posiciona em frente à escola, antes de seus muros e aqueles que já
transpuseram os muros da escola e representam uma parte da fachada.
Os desenhos locais do tipo fachadas gerais, desenhos produzidos como se o observador
estivesse fora dos muros da escola, compõem uma visão na qual há um enfoque em sua aparência
externa, como que em um cartão de visita.
Essa parece ter sido, por exemplo, a preocupação de uma aluna: representar a fachada da
escola como se tivesse tirando uma fotografia. Ela destacou o jardim e foi bastante detalhista quanto
ao modo de desenhar no plano sua visão da fachada da escola, detalhando, inclusive, as janelas das
salas que ficam no segundo andar do bloco frontal e a grade de segurança sobre o muro da frente na
direção da quadra de esportes.
11
Esses modos de produzir imagens para a escola revelam um caminhante atento, observador, que
se lança na caminhada, que se lança às relações sócio-espaciais, vivenciando-as. Discutiremos, a seguir,
um outro modo de produzir estas representações, os croquis.
2) os croquis que aqui aparecem foram produzidos por duas artes ou modos de fazer: a do observador
flutuante e a do observador flutuante-caminhante (CLARETO, 2003).
⇒ a arte do observador flutuante que tudo vê com o olho abstrato: generalizador e genérico, presente,
simultaneamente, em todos os pontos que se situam, cada um deles, perpendicularmente ao plano que se
deseja representar. É o observador que observa e representa aquilo que vê como se estivesse flutuando,
verticalizando; observando com um olho abstrato, que produz uma “vista superior”.
⇒ a arte do observador flutuante-caminhante mescla duas artes: a do observador flutuante com a do
observador caminhante. Este último observa e representa o que vê enquanto caminha, horizontalizando;
observando com um olho particular, encarnado em um sujeito, em suas práticas cotidianas.
Nesse modo de produzir representações, destacaremos o croqui elaborado por uma das alunas,
que lançou mão dessa arte do observador flutuante. Ela representou a sala de aula. Para ela, a sala de aula
“é o lugar mais importante da escola”, por causa de seus amigos que, segundo ela, são como irmãos. Ela
desenhou as carteiras e um caderno sobre cada carteira, coloriu-os cada um de uma cor diferente
buscando representar as diferenças existentes entre os alunos. Desenhou também a mesa do professor
que, para ela, é uma figura muito importante na sala de aula.
É interessante observar este espaço da sala de aula com as carteiras todas enfileiradas, os alunos
colocando-se um atrás do outro, voltados para o professor, que, neste caso, é o centro de todas as
atividades desenvolvidas na sala de aula. É importante destacar que, considerando o número de alunos
por sala de aula e as dimensões dessa, promover qualquer alteração nesta disposição clássica das carteiras
parece-nos, ao menos em princípio, muito difícil.
12
Quanto ao observador flutuante-caminhante, são destacados aqui dois croquis: um deles
produzido por uma aluna e o outro, por um aluno.
Rebeca fez um croqui, no qual representa praticamente todo o primeiro andar da escola.
Muito detalhista, vai representando vários espaços como, por exemplo, a secretaria, a biblioteca, a
sala de artes, a sala de vídeo, as salas de aulas e outros. Com todo este detalhamento, Rebeca vai
destacando também os significados que atribui a cada um destes locais detalhados: o azul para os
lugares mais tranqüilos, como a secretaria; o vermelho indica os lugares que mais gosta, como a sala
de artes, onde ocorre sua aula predileta, o refeitório e a quadra; os banheiros ela pinta de preto
indicando seu péssimo estado de conservação, assim como as salas de aula, que, segundo ela,
precisariam de uma pintura. Ela escolheria, se pudesse, pintar as salas de aula de cor de rosa e
branco, “pra ficar mais bonito”.
Já o aluno Samuel, muito falante e desinibido, mostrou-se logo à vontade para falar da escola. Em
princípio disse que iria desenhar a sala de aula por ser mais fácil. Entretanto, assim que desenhou o
retângulo, transformou-o na quadra esportiva, por considerá-la o espaço mais interessante da escola, por
isso atribuiu a ela as cores: vermelho (por ser a cor da paixão, do amor) e alaranjado (por ser a cor da
diversão). A partir da quadra foi desenhando o portão de entrada, à sua esquerda a secretaria,
representada pelo verde por ser um “lugar de briga”, a cantina, banheiro da diretora, direção (simbolizado
pelo azul como um “lugar tranqüilo, de respeito”), sala de vídeo e três salas de aula (interessante observar
que ele representou as salas com o símbolo 1/2, sendo que o 1 indica o primeiro andar e o 2, o segundo
andar. As salas são simbolizadas pelo vermelho e pelo alaranjado, indicando lugar de muito afeto e de
13
diversão). A seguir, os banheiros, simbolizados pelo preto, indicando sua má conservação. Atrás da
quadra estão o jardim e a arquibancada. Do lado de fora da escola ele desenha a praça, com a cor
alaranjada, indicando-a como espaço de diversão. A igreja e a Estação São Pedro (”lugar de cultura”) são
simbolizados pelo vermelho, que indica lugar de paixão, de grande apreço.
A quadra esportiva é um lugar bastante
destacado pelos alunos como espaço de
convivência e de realização de ações
importantes: as aulas de educação física, as
atividades esportivas (como os jogos
interclasse) e as festas da escola (como festa
junina, festa da primavera, dia das mães etc).
O aluno Samuel, em sua cartografia simbólica
representou a quadra com uma proporção bem
maior em relação aos demais lugares
desenhados criando assim uma escala
vivencial e não uma escala matemática. Nessa
escala os “(...) elementos oriundos de uma
observação mais sensorial ou sensível do
espaço compõe, sobre a visão abstrata do
espaço matematizado, uma visão particular e
subjetiva. Neste sentido, cada mapa
esquemático representa um espaço único: o
espaço do individuo que observa e vivência. Elementos do mundo sensível ajudam a compor esses
mapas esquemáticos cujos pontos de referência, como uma casa, uma igreja, farmácia ou escola
recebem destaque. Igualmente, dimensões e distâncias são representadas em ”escalas” que
incorporam elementos vivenciais, mais do que, propriamente proporções matemáticas. As “medidas”
são qualitativadas.” (CLARETO, 2003, 160)
Observamos que os alunos expressaram através dos desenhos e croquis suas expectativas,
suas vontades, suas vivências espaciais na escola e até fora dela. Portanto a cartografia simbólica
reflete as vivências sócio-espaciais dos estudantes em seus diferentes espaços vivenciados. Pesquisas
desta natureza podem trazer uma compreensão acerca dos alunos e, enfim, da educação escolar que
pode ser de grande relevância para se pensar a escola.
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