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Vida e trabalho na lavoura cafeeira. Notas comparativas sobre o cotidiano
de trabalhadores rurais em diferentes momentos históricos.
Bruno de Almeida Gambert1
Introdução
Como primeiro passo será abordado a conjuntura da produção cafeeira no Vale
do Paraíba. O termo Segunda Escravidão do historiador Dale Tomich nomeia o sistema
escravagista de trabalho realizado principalmente no século XIX. Esta divisão separa
períodos distintos de utilização da mão de obra cativa. A escravidão não pode ser vista
como um todo homogêneo, segundo o autor houve diferentes processos tanto na
escravidão colonial conduzida pelas metrópoles europeias, como na escravidão
sustentada por Estados Nacionais americanos, sua primeira etapa abrange o período do
século entre os séculos XVI e XVIII, já a outra, de finais do Século XVIII a meados do
XIX. Segundo Ricardo Salles (2007. P.33), seguindo o modelo elaborado por Tomich,
observa-se a ascensão do escravismo nacional no sul dos Estados Unidos e no Brasil. É
justamente nesta segunda etapa que o trabalho cativo demonstrava seu vigor,
principalmente, nas grandes plantations de exportações. Contudo, a grosso modo, os
aspectos que melhor classificam a segunda escravidão estão correlacionados com a sua
subordinação ao mercado capitalista e industrial, representados pelos mercados
consumidores que estavam nos Estados Unidos e na Europa ocidental. Como veremos a
seguir, a produção também era organizada com base na racionalidade econômica
capitalista no que se refere a alocação de recursos e maximização de lucro e emprego de
bens de produção.
Sabe-se que no Vale do Paraíba carioca de meados do século XIX houve
significativa produção cafeeira realizada com a utilização, de forma predominante, de
mão de obra cativa e de origem africana. O café, que teve por dois séculos
predominância na pauta de exportações brasileiras, foi cultivado inicialmente na cidade
do Rio de Janeiro, em seguida, teve sua expansão pelas terras da baixada que o
conduziram ao Vale do Paraíba. A classe dos cafeicultores, hegemônicos na política
1 Doutorando em História pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).
Orientado pelo professor Wanderlei Vazelesk Ribeiro.
imperial, expressavam seu poder político e econômico para além da província do Rio de
Janeiro, estavam divididos entre as fileiras políticas liberais e conservadoras do
parlamento imperial, ou dizendo de outra forma, os Luzias e os Saquaremas. Com o
passar dos anos, os territórios mais atraentes à cultura rubiácea deixaram o vale e se
estenderam a província de São Paulo. No século XIX, após a década de quarenta as
exportações de café já ocupavam o posto de principal produto agrícola de exportação da
nação. Nota-se isto nas frases daquela conjuntura resgatas por Salles, “O império é o
café, e o café é o Vale” ... (SALLES 2008. P. 121). “E o Vale era o escravo” (fragmento
do título da Obra), ou seja, naquele período o Império sustentava seu poder tecendo
estreitas relações com o bloco de poder dos cafeicultores fluminenses escravagistas no
local o qual este cultivo alcançava maior produtividade e lucratividade. Em um
exercício comparativo, se saltarmos de meados do XIX para inícios do século XX, no
sudeste do Brasil, veremos que há importantes rupturas e continuidades neste processo.
Nas primeiras décadas da república, o principal produto de exportação brasileiro seguiu
sendo o café, porém neste momento utiliza-se novo formato de mão de obra composta
por trabalhadores livres. As províncias passam a ser chamadas de Estados que integram
o país chamado de Estados Unidos do Brasil. Nesta conjuntura, São Paulo assume o
posto de estado hegemônico, local no qual a produção avançava de forma mais lucrativa
e que conduzia a hegemonia do regime político e a divisão do poder nacional, naquele
momento rivalizando com seu estado vizinho: Minas Gerais.
Separam-se aqui dois momentos distintos: primeiro, a conjuntura de meados e
final do século XIX no Vale do Paraíba fluminense, em seguida, o início do século XX
no estado de São Paulo. Tendo em vista os intervalos temporais nestas duas regiões, elas
têm um aspecto em comum, concentram o principal cultivo agrícola de exportação
nacional, o café, e também o território no qual ele se apresenta mais lucrativo em sua
produção, além de ser o local de residência da classe política que responde por
importante fração da classe hegemônica nacional. O que diferencia este dois exemplos
são, principalmente os seguintes fatores: a utilização de sua mão de obra predominante,
cativa em um, livre noutro2. Outro ponto de contraste constata-se no sistema político
2 O fato de destacar a mão de obra cativa no exercício comparativo não nega a existência de outras
modalidades de mão de obra na produção cafeeira do século XIX que são importantíssimas como os
trabalhadores livres e a pequena produção familiar, porém nosso recorte comparativo se restringirá, nesta
época e local, a mão de obra cativa.
sobre o qual estão inseridos os trabalhadores, respectivamente, a monarquia e a
república. Sendo assim, neste breve estudo, proponho uma comparação pontual entre as
características que compõe o trabalho rural no Vale do Paraíba fluminense, analisando
primeiramente o trabalho cativo empregado no cultivo cafeeiro de exportação, com o
intuito de realizar um contraste com o trabalho realizado por parceiros e arrendatários
nos primeiros anos da chamada República Velha, empregados no mesmo cultivo. Quais
as rotinas de trabalho nos cafezais do período imperial? Houve alterações significativas
nestas tarefas no período republicano?
Esta comparação não se destina a reduzir apenas em dois elementos toda a
complexidade que existe nestas sociedades. O que se propões é promover o diálogo
separando dois aspectos específicos de cada sociedade, sem limitá-las. A comparação
deve ser vista como um lugar de diálogo, sendo assim, muito diferente de um modelo
arbitrário que simplifica as sociedades em estudo. Para além das rotinas dos
trabalhadores rurais empregados no cultivo do café existem inúmero outros fatores,
indivíduos e questões que não devem ser negligenciados. Quando este estudo propõe a
comparação, entende-se que será abordada uma pequena fração de um tempo e de uma
realidade histórica. E que o ato comparativo não busca reduzi-las ou encerrá-las em uma
interpretação final. Pelo contrário, busca-se respeitar a complexidade das sociedades
trabalhadas.
Um dos primeiros contrastes podem ser vistos se observarmos os direitos de
trabalho. Os afazeres dos escravos se diferenciam dos arrendatários, parceiros e colonos
livres, pois no sistema escravista não há normas que regulamentam o trabalho realizado
entre cidadãos, como o código civil de 1916 que passou a regulamentar aspectos do
contrato entre parcerias rurais. Os Manuais Escravistas se destacaram por informar aos
proprietários como evitar conflito com os escravos no regime do século XIX,
destinavam-se a criar um ambiente propício ao trabalho e motivador de sua mão de
obra. Mesmo sem legislação formal trabalhista, os seres humanos em trabalho cativo se
enquadravam em um conjunto de costumes e regras do código de conduta construído
por aquela sociedade e responsável por organizar os afazeres produtivos. O
ordenamento do trabalho cativo incluía enorme jornada laboral com pequenas pausas
para a alimentação e horas noturnas de trabalho. Os trabalhadores republicanos, de sua
maneira, tiveram aspectos de seu trabalho regulamentados e ordenavam seus contratos
em sua caderneta de identificação na qual seus dados pessoais-laborais eram anotados e
as dívidas nos custos de instalação e manutenção familiar constantemente os impediam
de abandonar seu local de trabalho. Desde já, aviso ao leitor que privilegiaremos os
expressivos pontos de continuidade entre a rotina do trabalho rural cativo do século XIX
e os arrendatários da cafeicultura paulista republicana.
Por volta da década de 1840 no Vale do Paraíba a produção cafeeira torna-se
cada vez mais dinâmica, e neste momento, a região continha fortes vínculos produtivos
e abastecia o consumo de massa em sociedades como os Estados Unidos e a Europa
Ocidental. O ciclo econômico da predominância da monocultura cafeeira nos produtos
agrícolas de exportação brasileiros se estende nos anos que vão desde meados do século
XIX e se encerra na década de 1930. Sendo assim, normas de trabalho que
remanesciam de uma sociedade organizada sob a égide do antigo regime vigoravam no
Vale dos tempo do Império. No que concerne ao mundo do trabalho, o processo
conhecido como segunda escravidão englobou alterações que o diferencia do sistema
escravista colonial e o conduz ao cenário no qual aspectos do capitalismo e escravidão
convivem situados em mesma esfera produtiva. Nesta nova escravidão, o trabalho
escravo, assim como os demais recursos produtivos, cada vez mais são aplicados de
forma racional para que deles se obtenha maior rentabilidade, como ocorreu na segunda
metade do século XIX, quando os escravos de outras províncias do país foram
direcionado para o Vale do Paraíba.
Nos anos que precedem 1850, a posse de mão de obra cativa encontrava-se
diluída por diferentes setores da sociedade brasileira, desde setores mais abastados até
camadas baixas dos habitantes da nação. Sabe-se de casos em que ex-escravos possuíam
pequeno número de cativos, e que uma parcela significante dos cativos estavam
distribuídos entre pequenos proprietários que possuíam um número reduzido de
escravos. (Klein; Luna. 2010. P.160). Com o tráfico aberto, a posse de escravos estava
dispersa por cidades e regiões agrícolas de produção açucareira, assim como em
pequenas propriedades rurais destinadas ao cultivo de alimentos consumidos no
mercado interno. Havia números expressivos de escravos empregados em pequenas
tarefas urbanas, os escravos de ganho, nas atividades industriais e até mesmo nas forças
armadas. Parte deste panorama é alterado com as leis que restringem o tráfico. Com
desenvolver da cultura cafeeira no Vale do Paraíba, tornou-se necessário suprir a
carência de mão de obra na lavoura, então, ainda na primeira metade do século XIX
foram importados um expressivo número de cativos africanos. Com as dificuldades
impostas pelas leis que impediam o tráfico de escravos em 1850, houve migrações
regionais de mão de obra cativa para o Vale. Escravos de vivencia urbana e de diferentes
províncias foram direcionados ao trabalho na lavoura cafeeira. Como nota-se abaixo.
“Um grande número de escravos vivia em cidades, onde, como
no resto do país, eles compunham uma minoria do total da
população de cor.... A drástica alta nos preços dos escravos,
resultante do fim do tráfico atlântico, o crescente impacto das
alforrias e a contínua expansão da cafeicultura tiveram como
consequência a venda de escravos das cidades para as áreas
rurais em números cada vez maiores”. (Idem. P.118)
Salles (2007, P. 198), por sua vez, sustenta que houve crescimento demográfico
da população escrava situada em Vassouras que pode ter sido sustentado na reprodução
de famílias cativas. Neste momento, são concentrados volumosos contingentes de
população crioula e africana na produção cafeeira, como antes dito, são deslocados por
motivo de racionalidade econômica, pois tratava-se do lugar de maior rentabilidade da
produção cafeeira. Contudo, como veremos adiante as semelhanças entre os
trabalhadores do café, localmente os do Vale do Paraíba, com formas organizacionais da
produção desenvolvidos na etapa posterior à abolição do tráfico e a proclamação da
república. Vamos abordar primeiramente o momento no qual a rotina de trabalho dos
trabalhadores escravos será relatada. Posteriormente, há espaço para menções de
continuidade identificadas em estudos que abordam a questão do trabalhador rural da
primeira república. Para realizar tal tarefa, lançaremos mão de bibliografia de
historiadores e cientistas sociais estudiosos da questão. Ao final, haverá uma pequena
conclusão sobre este exercício comparativo.
O cotidiano do trabalho escravo.
Retomando o dito exposto anteriormente e comum no século XIX em que o
Vale é o Brasil oitocentista, o Vale é o café e, por sua vez, o café é o escravo. Abaixo,
será feita a descrição dos afazeres cotidianos deste último personagem cujo trabalho
sustenta parte importante da pujança econômica nacional. A rotina de trabalho realizada
por um escravo é narrada por Salles de seguinte maneira.
“A vida de um "escravo médio" de uma grande propriedade
reduzia-se a uma rotina massacrante: jornada de trabalho de
quinze a dezoito horas por dia, iniciada antes do nascer do sol,
com café e rapadura, inspeção e distribuição de tarefas; trabalho
coletivo na roça, fiscalizado e vigiado pelo feitor, entremeado
por uma ou duas refeições de meia hora (almoço às dez da
manhã e, nem sempre, jantar às quatro da tarde), até o escurecer;
volta à sede da fazenda, nova inspeção e mais trabalho no
terreiro, no engenho, no paiol ou na preparação das refeições do
dia seguinte, até as nove ou dez horas; ceia rápida, um pequeno
tempo de conversas, danças, reuniões e confinamento em
senzalas coletivas, normalmente sem janelas, dotadas de
aberturas gradeadas perto do teto para ventilação. As senzalas
eram grandes construções térreas em linha ou em quadra, que
formavam, como visto, com outras edificações, as alas de
terreiros, desta maneira fechados e para os quais estavam
voltadas suas poucas portas e, quando as havia, janelas. Eram
divididas em compartimentos separados por sexo. Nestes
compartimentos havia cubículos destinados a pequenos grupos
de escravos. As poucas famílias que haviam se constituído
tinham seus próprios cubículos, ou, excepcionalmente, podiam,
alternativamente, habitar em pequenas choupanas separadas”
(SALLES.2008. P.140-141)
Nota-se no parágrafo acima o quanto o trabalho rural no café era exaustivo. As
condições de vida também não eram nada boas, habitar um cômodo sem janelas, com
pouca ventilação, em uma região tropical como interior a do Rio de Janeiro é algo
desafiador, mesmo em região montanhosa. O cenário desolador também poderia ser
explosivo, e para evitar a revolta dos escravos, uma parcela da senhoria escrevia e lia
manuais que ensinavam a lidar com a sua mão de obra. Salles, incorporando a obra de
Marquese, menciona os Manuais Escravistas através dos quais os senhores rurais se
informavam sobre os modos mais adequados de administrar a escravaria. Estas obras
advertiam que o regime de escravidão consistia em algo violento em sua própria
natureza. Deste o princípio os escravos estavam em constante ameaça de sublevação.
Em especial o exemplar de, Miguel Calmon du Pin e Almeida, um senhor do recôncavo
baiano, estabeleceu os sete pontos principais que o senhor de escravo deveria seguir, em
resumo, são eles: 1. Alimentação, moradia e vestuário. 2. Permitir que o escravo tenha
alguma propriedade e forme família. 3 Estímulos para sua reprodução escrava em
cativeiro. 4 Cuidado com a criação dos cativos. 5. Tempo livre para o recreio. 6.
Tratamento de enfermidades. 7. Métodos de aplicação de penas corporais. Publicado em
1834, as normas descritas por este manual não puderam prever o encerramento do
tráfico atlântico e mesmo assim desejavam reproduzir sua mão de obra dentro de seu
domínio. Os pontos que merecem ser destacados são os conselhos que sugerem ao
proprietário permitir ao seu escravo com alguma propriedade, pois sendo assim, menor
seriam as chances para fuga daquele que tem ou almeja alguma propriedade. Além
disso, o incentivo a formação de famílias cativas contribui para ganhar mais braços para
sua lavoura e agrada ao escravo que pode ter o convívio com seus parentes. Em seguida
veremos como esta recomendação de dedicar ao escravo alguma propriedade, tempo
livre e vida em família resulta aparecer em muitas das famílias de trabalhadores da
cafeicultura que estiveram vinculados à grande unidade produtiva, seja no imediato pós-
abolição ou no decorrer do período republicano.
Segundo Salles as leis que restringiram o tráfico foram importantes no caminho
que conduziu à legislação abolicionista no Brasil, contudo, a lei do ventre livre foi
aquela que colocou em um patamar próximo o fim do regime escravista. Entre as
décadas de 1850 e 1870 o perfil dos escravos do Vale sofre alterações. Se antes a
presença de africanos era constante, nestas décadas o número decresce
significativamente se comparados ao número de crioulos que com o tempo passam a ser
maioria. Em um primeiro momento, os escravos eram em sua maioria homens, de boa
estatura e fortes, em idade produtiva para o trabalho rural. No entanto, em um momento
posterior, os cativos de sexo masculino deixam de ser a expressiva maioria nos plantéis.
Nas décadas posteriores a 1860, a diferença entre membros do sexo masculino e do
feminino tendeu a ser reduzida em meio à população de cativos. Nestes anos, a
população livre alforriada aumenta de maneira significativa e os escravos passam a ser
concentrados em grandes planteis controlados por poucos proprietários.
Assim como o equilíbrio de sexo entre a população cativa, há a diversificação na
idade de seus membros. Com a presença de idosos e crianças, os vínculos sociais e as
redes de pertencimento dos escravos aumentavam, com o maior equilíbrio entre os
sexos da população, houve a possibilidade de formação de famílias entre escravos e as
demais parcelas da população. Apoiados em redes familiares, eles estavam mais
propensos a acumular recursos que os conduziriam à sua liberdade por via da compra de
alforrias. Este conjunto de fatores pressionou as análises dos parlamentares do império
que aprovaram a Lei do Ventre Livre em 1872 condicionando o fim do trabalho cativo a
um futuro próximo. O que se tornou verdade em 1888.
As barreiras entre a história dos trabalhadores cativos e livres.
Como antes dito, nosso trabalho pretende estabelecer uma ponte na qual as
experiências que aludem o trabalho de cativos do cultivo do café, no Vale do Paraíba do
século XIX, serão comparadas com algumas experiências do pós-escravidão e da
cafeicultura paulista no século XX. Sidney Chalhoub, estudioso das questões que
envolvem trabalhadores e história, menciona as razões que segundo ele demonstram a
imensa dificuldade dos historiadores, inseridos na geração anterior aos anos 1980, em
pensar possíveis conexões entre trabalho escravo e trabalho livre. A seu ver, parte deste
problema diz respeito ao momento de transição do regime de trabalho escravo-livre ser
abordado pelos historiadores com especial atenção ao movimento abolicionista. Para
demonstrar esta argumentação, ele contrapõe os posicionamentos políticos de José de
Alencar e Joaquim Nabuco, ambos são discordantes nas proposições relativas à
escravidão, porém são sincronizados em argumentos paternalistas. E o paternalismo no
momento de abordar a questão da escravidão resulta em uma barreira ainda não
superada (CHALHOUB 2009. P.18).
Seu texto demonstra que os relatos de membros de políticos do império foram
interpretados pelos historiadores de maneira insatisfatória, o que sustentou a falsa ideia
de passividade do escravo, nesse sentido, nestas abordagens torna-se necessário a ajuda
alheia em processo de libertação de cativos, pois os mesmos carecem de iniciativa
própria e são postos a serem conduzidos por outros grupos. Então, a memória dos
movimentos trabalhistas costuma ignorar a trajetória do trabalho desenvolvido no jugo
da escravidão, em um relato com o qual poucas vezes a interpretação que considera o
trabalhador como sujeito é incorporada. O autor menciona a historiadora Castro
Gomes, em uma frase onde ela afirma existir um verdadeiro muro de Berlin entre a
história que aborda a luta por direitos de trabalho e aquela que estuda a luta contra a
escravidão (Idem.P.37).
Nesta pequena investigação, busco construir o diálogo justamente no local que
Castro Gomes afirma haver esta intransponível barreira. Para cumprir esta tarefa
aproximo a experiência de trabalhadores cativos e a contraponho aos trabalhadores
livres, ambos no cafezal e em diferente épocas e regiões. Noto que houve continuidade
na forma de trabalho, habitação e vida coletiva, também demonstro que a liberdade de
1888 trouxe consigo importantes rupturas. Para aproximar estes processos faço a
menção ao estudo de caso de Hebe Matos que é esclarecedor, sob o ponto de vista de
uma comunidade quilombola, das características que acompanham o pós abolição até o
decorrer do século XX, seu objeto de estudo possuí um diálogo expressivo com os
temas do trabalho escravo no Vale do Paraíba.
Os Remanescentes de Quilombolas de São José da Serra.
Hebe Matos reconstrói a história de uma comunidade de remanescentes de
quilombolas situados na Fazenda São José Serra no Vale do Paraíba Fluminense. A
autora registra, organiza e compara relatos das histórias pessoais que envolvem aspectos
da vida e do trabalho destes quilombolas. Os eventos descritos são contrastados com a
produção historiográfica nacional que aborda o tema pós-escravidão. Ao ordenar as
narrativas de maneira cronológica e o ciclo produtivo agrícola nas diferentes décadas, a
pesquisadora constatou que a comunidade foi formada, principalmente, em meados da
década de 1880 na conjuntura de grandes fugas dos escravos. Uma das táticas dos
escravos fugitivos era a de se misturar à comunidades camponesas e deste jeito
dificultar sua identificação. Após o 13 de maio de 1888 houve carência de trabalhadores
no Vale, já que as regiões cafeicultoras de São Paulo eram mais atrativas aos imigrantes,
por possuir maior produtividade. Restava então aos antigos senhores de escravos locais
encontrar uma maneira de fixar a mão de obra ao solo.
Na antiga fazenda de São José da Serra, a maioria de seus habitantes
descendentem de crioulos ou africanos de origem Bantos originário de uma região
Angolana. A personagem Dona Zeferina recebe destaque por explicar aspectos do local
que eram referentes à história de seus avós que remontam ao século XIX. Nota-se
mediante a narrativa que neste período, durante o ciclo cafeeiro, houve interesse do
proprietário da fazenda na manutenção de uma comunidade de descendentes de cativos.
Enquanto havia o cafezal, os quilombolas poderiam ter seus próprios roçados e realizar
seus rituais festivos e religiosos. Segundo ela, com a lei áurea os quilombolas ganharam
uma pequena extensão de terra situada em uma parcela da fazenda de café, cujo
proprietário Ferraz se destacava pela ausência de castigos no trato da mão de obra em
sua propriedade, esta comunidade seria o quilombo dos Ferraz. Mattos descreve esta
passagem:
Segundo o depoimento de Dona Zeferina, sob proteção
do novo proprietário, eles continuaram a morar na São José e a
usar livremente suas terras para plantar milho e feijão e para a
criação de cabras, de porcos, de galinhas e mesmo de cavalos.
Os chefes da família tinham, entretanto, segundo seu Manoel
Seabra, a obrigação de trabalhar, de segunda a sábado por
empreitada, nos cafezais presentes nestas e em outras fazendas
do fazendeiro. Esta foi basicamente a fase dos pais e da infância
dos entrevistados (MATTOS, 2006. P.428).
No caso específico da fazenda de José da Serra, nos anos de 1888, percebe-se
como a ideia de reunir os trabalhadores em quilombos consistiu em uma tática dos
proprietários na qual reconhecia-se a nova condição de liberto, ao passo em que se
buscava manter os trabalhadores junto à terra. Estas condições com as quais o senhor
oferece terras a sua futura mão de obra, por mais que seja opressiva, demonstra uma
expressiva melhoria nas condições de vida dos agora quilombolas que passaram a
habitar esta parcela próxima a grande propriedade cafeeira, principalmente, se o
compararmos às descrições feitas acima da rotina de trabalho dos escravos. Ter local de
residência próprio, ao menos reconhecido verbalmente como, diferencia-se da opção por
habitar cubículos vigiados por feitores. De maneira que já no pós-escravidão podem-se
salientar significativas rupturas com o modelo escravista, como o fim dos espaços
cerceados de habitação, a liberdade de construção de seu imóvel, seus descendentes são
de sua própria tutela, a decisão sobre seu próprio futuro. Estes fatores condicionam a
soberania dos quilombolas em aceitar, ou se recusar a viver no local e cumprir as
empreitadas dos fazendeiros, podendo o mesmo escolher por mudar-se e habitar uma
nova região. Se antes o pecúlio era ofertado a um escravo, neste momento, o senhor
que é cede uma porção de terras aos quilombolas e garante para si o importante
suprimento de mão de obra em um período de sua escassez.
Apesar das diferenças, vamos neste momento salientar os processos de
continuidade. Já mencionamos como os Manuais Escravistas do século XIX
aconselhavam a distribuição de pequenas propriedades de terra entre os escravos, pois o
cativo sendo proprietário de algo, dificilmente fugiria de seu trabalho. Além da
propriedade, a possibilidade de formar família era outro fator que prendia o escravo à
propriedade de seu senhor. O estudo de caso apresentado por Mattos nos permite
identificar, em outro contexto e de diferente maneira, a repetição de técnicas de fixação
de mão de obra comuns aos senhores escravistas desde a década de 1830 que, como a
narrativa dos quilombolas indica, continuaram sob vigência mesmo depois do fim da
escravidão, ainda que a relação entre o senhor das terras e sua mão de obra tenha
alcançado outro patamar. No entanto, destaca-se ao examinar a narrativa que descreve o
dia a dia dos remanescentes de quilombo que a ausência de maus tratos foi a condição
imposta por este grupo aos senhores da terra, sem a qual não formariam ali uma nova
comunidade. Entre os quilombolas que ali residiam haviam empreitadas de segunda a
sábado em terras alheias, principalmente, nos cafezais que compunham a propriedade
dos Ferraz.
No comparativo da descrição da rotina de vida do escravo contraposta ao
trabalhador quilombola, houve continuidade no quadro produtivo geral, os dias de
trabalho permaneceram inalterados em seis, os indivíduos escravizados possuíam um
dia livre da semana para festas e eventos religiosos, assim como os quilombolas. A terra
em pequena quantidade, destinada à alimentação da população trabalhadora rural,
seguiu sendo distribuída em pequenos lotes e cultivada para a manutenção desta força
de trabalho, o poder exercido pela grande propriedade cafeeira conservou-se vigente. A
possibilidade de ter descendentes gera mais força de trabalho para o proprietário da
fazenda circundante de maneira análoga a qual a reprodução dos escravos em cativeiro
oferecia mais braços à lavoura de seu senhor. A grosso modo, dentre os 7 pontos
voltados ao bom trato da escravaria, antes mencionado mencionados pelo Manual
Escravista, apenas 1 não é mais verdadeiro na conjuntura dos quilombolas: o de
orientação para os castigos físicos. Outros 6 pontos podem ser encontrados, ainda que
sobre diferentes formas.
Uma das continuidades que podem ser identificadas são o paternalismo e o
clientelismo por parte dos proprietários de terra, pois o proprietário do cafezal, chamado
de senhor Ferraz, é bem visto por uma parcela da sociedade quilombola. Segundo a
narrativa estudada por Mattos, um grupo de quilombolas reconhece que o proprietário
de terras fez a doação de pequenas parcelas do latifundio aos ex-escravos logo após a
abolição. Apesar deste fato, a dita doação não pode ser encontrada em nenhum
documento fundiário pesquisado pela historiadora (MATTOS 2006. P.431). Tempos
mais tarde, a posse de terra pelos quilombolas é posta em questão, já que a crise
fundiária foi associada à morte do senhor proprietário, e houve a transferência da posse
da fazenda vizinha a membros de sua família.
Contudo, já após os anos 1930, quando a pecuária substituíu o café como
principal atividade agrícola, boa quantidade da mão de obra dos quilombolas tornou-se
desnecessária. Então, os proprietários decidem avançar o pasto de criação pecuária de
suas terras sobre as roças dos quilombolas de maneira que os membros da comunidade
permaneceram restritos a um espaço territorial ainda menor. Além do mais, havia a
constante ameaça de expulsão por parte do novo proprietário da fazenda São José. Neste
contexto, os quilombolas reagiram preservando sua cultura e seus costumes, como a
dança do Jongo, pois estes reforçavam a identidade de remanescente-quilombola o que
contribuía arregimentando forças no momento de reivindicar a posse de suas terras. O
estudo de Mattos se desenvolve até o tempo presente, e após 1988 a constituição passa a
reconhecer o direito de propriedade aos remanescentes quilombolas e a luta por suas
propriedades passa a ser também em âmbito jurídico.
A vez dos imigrantes livres.
Neste momento de nosso estudo vamos fazer uma pequena visita às
características do mundo do trabalho dos imigrantes então recém chegados à São Paulo
no final do século XIX e início do XX e alocados no trabalho rural da produção
cafeeira. Destaca-se a investigação de dois autores: o primeiro é Octavio Ianni, que
logra identificar continuidades entre o sistema de trabalho que funcionava no período de
cativeiro, também atenta as alterações na dinâmica de trabalho decorrente da nova mão
de obra livre e estrangeira. José César Gnaccarini, por sua vez, tende classificar o
momento destas imigrações no cafezal paulista como a construção da classe
trabalhadora nacional, o Muro de Berlim mencionado anteriormente, parece marcar
presença em sua abordagem, contudo, suas descrições dos diferentes sistemas de
arrendamento nos permitem identificar continuidades entre o cenário descrito pelo autor
e a conjuntura do pós abolição aqui mencionada. Em seu estudol, aspectos do
estabelecimento de um regime de trabalho comum ao que vigorou na rotina do trabalho
escravo também podem ser identificados.
Octavio Ianni, em sua obra A classe operária vai ao campo, destaca como o
município de Sertãozinho, no oeste paulista, foi um dos pioneiros na utilização de mão
de obra imigrante italiana na produção de café. Estes trabalhadores foram empregados
em um sistema de colonato, que herdou, como se nota com base no conteúdo descrito
por este autor, muitos elementos do sistema escravista presentes na sociedade brasileira.
Um desses elementos é a hospedaria de imigrantes (IANNI, 1977. P.14), porque há
semelhança entre o recrutamento de mão de obra imigrante que se organizava em
sistemas de galpões e o sistema escravista de venda da mão de obra. Nesse local, o
imigrante recém-chegado assinava o contrato de trabalho a mando do proprietário do
cafezal. Geralmente estas hospedarias se localizavam em regiões portuárias, próximas a
onde, em outros tempos, a mão de obra escrava era comercializada.
Na unidade produtiva rural, o imigrante ingressa em seu local de trabalho e
recebe a infraestrutura já edificada pelo proprietário da fazenda, em seguida começa o
processo que o prende à terra pelo sistema de dívidas (IANNI, 1977. P.15). Porém,
ainda que estivessem sob um regime similar à escravidão, ocorreram revoltas e greves
provocadas pelos imigrantes que alcançaram respostas breves do governo republicano,
provocando o surgimento, já no início do século XX, de um conjunto de leis que
permitiam a organização dos colonos trabalhadores do café em sindicatos. No sistema
de dívidas, os colonos eram coagidos a consumir os produtos de necessidade básica nos
barracões controlados pelo senhor proprietário da fazenda. As primeiras legislações
destinadas ao trabalhador rural do Estado de São Paulo buscavam controlar os preços
extorsivos cobrados nestes locais. As autoridades utilizavam os dados contidos na
caderneta do colono – que reunia seus dados comerciais, pessoais e laborais – para
arbitrar a relação entre empregador e empregado e solucionar litígios. As primeiras
legislações estaduais e nacionais referentes ao colonato do café serão mencionadas mais
adiante.
Se compararmos o tempo em que começaram as grandes imigrações com os
anos que tardam até estes trabalhadores ascenderem a alguma legislação que proteja, ou
organize, seu trabalho é relativamente rápido. O ano de 1891 representa uma data
significativa para a imigração. Entre 1904 e 1906 já passaram a existir normais federais
que visam ordenar o trabalho rural pautados nas necessidades que surgem na
cafeicultura. A remuneração destes trabalhadores em uma caderneta confere a mediação
entre o trabalho e o recurso monetário, o que permite alguma impessoalidade nas
relações trabalhistas, mas como foi citado, dificilmente os trabalhadores rurais tinham
acesso ao salário em moeda, o sistema de dívidas aprisionava-o em seu local de
trabalho. O paternalismo do proprietário rural segue uma constante mediando a escolha
do contrato dos serviços e o local no qual a mão de obra teria por residir.
Outro fator que é mencionado por Ianni (1977. P.15) e que parece herdado do
passado escravista, consiste no acesso à educação por parte dos filhos dos colonos do
café. Muitos dos colonos estrangeiros chegavam ao Brasil com uma alfabetização
rudimentar nos idiomas de origem, contudo, em meio à grande fazenda de café se
queixavam da falta de escola para seus filhos que cresciam isolados e apartados da
coletividade. Os governos imperiais careceram de políticas educativas efetivas para a
grande maioria da população, de maneira que no início da república havia falta de
infraestrutura para formar cidadãos e, desde modo, as gerações subsequentes aos
imigrantes europeus no Brasil enfrentaram em um primeiro momento as marcas deste
passado escravista recente. Na lavoura cafeeira, se os imigrantes tiveram acesso
rudimentar ao ensino de idioma, seus filhos teriam ainda menos contato com este tipo
de conhecimento.
As imigrações do século XIX trouxeram estrangeiros que quando assentados em
colônias rurais financiavam escolas próprias de sua comunidade em idiomas europeus,
como o caso dos poloneses do Paraná e os Alemães Católicos e Luteranos do sul do
País. Os italianos, comuns a lavoura cafeeira aqui trabalhada, formavam poucas escolas
em idioma de sua nacionalidade de origem no Brasil se comparado aos outros
imigrantes europeus. No Brasil, em 1905/6 as escolas formadas por imigrantes italianos
subsidiadas pelo governo da Itália eram 171, com 10.944 alunos. Destas, 53,8%
encontravam-se no Estado de SãoPaulo. Contudo, o interesse dos italianos em aprender
português foi outro fator que explicou o baixo surgimento deste tipo de escolas entre
essa nacionalidade de imigrante (KREUTZ 2000. P.168).
Segundo José César Gnaccarini, a imigração é um movimento cujo início data de
1840, embora a grande imigração date verdadeiramente de 1891. Em 1886 há a
fundação da Sociedade Promotora de Imigração por proeminentes famílias de
fazendeiros das regiões cafeeiras de São Paulo. Outra entidade, a Associação
Auxiliadora de Colonização e Imigração, abastecia a região campineira de mão de obra
imigrante em uma etapa em que surgiam, o que o autor chama de, os germes das novas
relações de trabalho. No momento em que essas entidades eram fundadas, ocorria a
etapa de transição na qual o trabalho cativo era substituído pelo colonato na região.
Tanto assim era que ambas as formas de trabalho, livre e cativo, se empregavam
simultaneamente na mesma fazenda. O autor menciona casos ocorridos entre 1840 e
1888 em que trabalhavam escravos e estrangeiros livres, lado a lado, na mesma
propriedade (GNACCARINI, 1980. P.53).
O processo de consolidação das relacões de trabalho rural nacional é complexo,
porque envolve uma gama de referências ao trabalho indígena, escravo e imigrante de
distintas nacionalidades europeias e orientais, como o caso da imigração japonesa em
São Paulo. Sendo assim, Gnaccarini escolhe a mão de obra imigrante em sua reflexão
sobre quais dos polos nos quais surgiram as novas relações de trabalho brasileira. Nota-
se que a mão de obra escrava que o autor menciona está logo ao lado e convivendo no
mesmo espaço que os imigrantes, entretanto, o autor encara o período das imigrações
como o começar de uma nova era, como veremos a seguir, ele confere parte da
prosperidade das lavouras do Estado de São Paulo ao trabalho desta mão de obra. É
inegável que estes trabalhadores trouxeram uma nova dinâmica ao trabalho rural
cafeeiro, contudo, não me atrevo a dizer que eles fundaram os germes da nova relação
de trabalho, pois entre rupturas e continuidades, esta última se destaca de maneira
convincente.
Segundo esse autor, o novo regime de trabalho resultava de uma combinação
entre o assalariamento e a parceria, é este novo colonato, característico da época da
grande imigração, que, segundo ele, dá início ao verdadeiro regime de trabalho
assalariado na agricultura brasileira. Gnaccarini evidencia três tipos de colonato: o
colono parceiro, o colono empreiteiro e o colono proprietário. O primeiro trabalha
exercendo as principais funções produtivas junto ao cafezal; o segundo abre novas áreas
eliminando a floresta e iniciando o cultivo do café; e o último colono, mais restrito ao
sul do país, possuía a posse de sua propriedade (GNACCARINI, 1980. P.50).
O colonato parceiro, mais usual, é um regime de trabalho no qual o fazendeiro
contrata a mão de obra de um trabalhador rural encarregando-o dos afazeres da lavoura
cafeeira. Via de regra, ele reside em território cedido pelo proprietário e recebe, por
parte do patrão, uma área na qual é autorizado a cultivar alimento e fazer criação de
animais destinados à sua subsistência e de sua família. O trabalho do colono é
remunerado parte em dinheiro, parte em produtos. Há propriedades rurais nas quais o
fazendeiro autoriza o colono a plantar seus itens de subsistência intercalados aos pés de
café.
Este sistema de convivência entre grande propriedades e minifúndios, destinados
à subsistência da população trabalhadora, são encontrados tanto nos já mencionados
Manuais Escravistas, cujo o exemplo por nós escolhido data de 1834, como na
descrição do cotidiano dos escravos que possuíam alguma propriedade, e também nos
quilombolas de São José da Serra. Por mais que as áreas do interior de São Paulo
fossem desmatadas pouco antes da chegada dos imigrantes, sendo, portanto, de
formação recente, a organização da grande propriedade cafeeira parece se adequar a um
modelo com muitas décadas de existência. Relembrando, os sete pontos, de Miguel
Calmon du Pin e Almeida, senhor de escravos do recôncavo baiano, dedicado a ensinar
maneiras colo lidar com o escravo, nota-se que nos sete itens referidos, os senhores de
terras da cafeicultura paulista enquadravam os colonos em muitos deles, porém, este
novo regime de trabalho apresenta mais complexidades, e está inseridos em um regime
político que sustenta o preceito de igualdade jurídica entre seus membros, sendo assim,
as lutas por melhores condições de trabalho seriam realizadas em outro patamar, o dos
direitos. Mas, assim como o escravo, o acesso à habitação, vestuário, alimentação
estavam condicionados à vontade do proprietário de terras, a “bondade” paternalista
ganha sobrevida neste local.
Voltando ao tema da substituição do trabalho cativo pelo livre. Para Gnaccarini,
no momento em que a Lei Áurea é assinada em 1888, as áreas que ainda concentravam
importante contingente de trabalhadores cativos entraram em crise, ao passo que outras
nas quais as relações de trabalho livre já estavam desenvolvidas seguiram em franco
crescimento. A seu ver, os fazendeiros do Vale do Paraíba Fluminense, buscaram no
emprego da mão de obra rural a modalidade do colono-parceiro, pois este tipo de
relação de ocupação busca fixar o trabalhador à terra. Por outro lado, no oeste paulista
houve a utilização do colono-empreiteiros (remunerados por tarefas), forma que
permitia alto grau de mobilidade à mão de obra contratada. Contudo, o autor destaca
que os proprietários da agricultura paulista, que por décadas já haviam introduzido a
figura do trabalhador imigrante colono, desfrutam de uma destacada prosperidade
(GNACCARINI, 1980. P.52). Em sua abordagem, o destaque da produtividade na
agricultura paulista está diretamente relacionada a utilização pioneira de mão de obra
livre.
Com o maior volume de imigrações, os trabalhadores estrangeiros começaram a
se enfrentar com os já conhecidos problemas laborais em meio à cultura do café. Os
trabalhadores estrangeiros3 não tardaram a iniciar sua busca de melhores condições de
vida e organizaram os primeiros sindicatos rurais do Brasil. Jose Murilo de Carvalho
afirma que os sindicatos de trabalhadores rurais paulistas precederam os urbanos. Em
1903, colonos italianos protestavam contra os arbítrios dos fazendeiros do café
(CARVALHO, 2012. P. 62). Então, no mesmo ano houve a aprovação do decreto federal
979 de seis de janeiro de 1903, que facultava aos trabalhadores rurais sua organização
em sindicatos, com a condição de que estejam em número superior a sete agricultores.
3 Os ex-escravos de origem africana são tão estrangeiros como a leva de imigrantes europeus e
asiáticos. Contudo, utilizo esta expressão para me referir aos europeus.
Deste momento em diante, a sublevação tem endereço e pode ser mediada pelas
autoridades competentes.
Em 1904 e 1905, surgem dois novos decretos em meio ao governo de Rodrigues
Alves e Afonso Augusto Moreira Penna que regulamentam a forma de pagamento dos
trabalhadores rurais que a partir de então, poderia se realizar com a remuneração em
parte do produto cultivado por este trabalhador. Destaca-se nesta legislação a exigência
da caderneta para fins comprovatórios dos créditos e débitos contidos na conta do
trabalhador rural,4 bem como o reconhecimento, por parte do governo, de suas dívidas e
hipotecas. Deste modo, a caderneta assinada tanto pelo trabalhador como pelo
proprietário em cujas terras exercia suas atividades, torna-se importante documento
comprovador de vínculos empregatícios. Em São Paulo, este documento foi fornecido
pela Agência Oficial de Imigrantes em seu primeiro estabelecimento.
Anos mais tarde, em 1911, o estado de São Paulo aprovou a lei n 1.299,5 que
orienta o cumprimento dos dois decretos federais supracitados. A norma é conhecida
como Lei do Patronato Agrícola por reeditar as normas nacionais e agregar novas
obrigações, que os fazendeiros paulistas realizariam com o apoio de seu governo. Os
novos deveres do patronato são: cuidados médicos para com seus trabalhadores, assim
como a necessidade de fornecer-lhes instrução básica composta por: noções básicas de
língua portuguesa, leitura, caligrafia, aritmética elementar, noções de geografia e
história do Brasil e rudimentos de ensino agrícola. No decorrer do segundo decênio do
século XX, esta legislação estadual paulista adotou medidas que tardariam décadas a
serrem adotadas pelo governo federal. Em termos de direito de cidadania a Primeira
4 Abaixo estão os endereços das duas leis que relacionam o pagamento do trabalho agrícola a uma
parcela do cultivo no qual o mesmo está empregado.
BRASIL. Decreto no 1.550, de 05 de janeiro de 1904. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1150-5-janeiro-1904-583459-
publicacaooriginal-106277-pl.html. Acesso em: 10/dez/2013.
BRASIL. Decreto no 1.607, de 29 de dezembro de 1906. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1607-29-dezembro-1906-775732-
publicacaooriginal-139487-pl.html. Acesso em: 10/dez/2013.
5 O endereço eletrônico em que tal legislação foi consultada. http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1911/lei-1299B-27.12.1911.html
Acessado em 15/09/2014.
República brasileira demonstra que deveriam ser garantidos direitos sociais básicos,
como saúde e educação6. Aos trabalhadores paulistas do café, além do mais, houve a
possibilidade de organizar-se em sindicatos o que consiste em uma parcela dos direitos
políticos então abertas a estes cidadãos. Vale ressaltar que não sabemos ao certo como
mencionar a aplicação de tais medidas, o que nos leva a crer que tais ações vigoraram
com mais ênfase no aspecto formal de sua legislação trabalhista rural e sua aplicação
esteve restrita a eventos pontuais.
Além das legislações estaduais e federais, há normas jurídicas sobre o trabalho
rural que foram estabelecidas no Código Civil de 1916. O código pretende regular o
direito privado estabelecendo os parâmetros nos quais as relações entre os civis devem
ser realizadas. Nesta legislação, a locação de serviços que inclui o trabalho agrícola
estão entre os artigos 1216 a 1236. Os de números 1.410 a 1423 abordam a parceria
agrícola,7 que também pode ser chamada de arrendamento, pois trata do contrato no
qual o trabalhador tem acesso à terra mediante pagamento, seja em dinheiro, seja em
parte da produção. Cumpre ressaltar que aqui se define como relação civil o que é de
fato uma relação de trabalho. O parceiro-trabalhador não tem a autonomia de gestão das
terras e da produção, como seria a situação do arrendatário-capitalista. Regra geral,
estas áreas em parceria são dedicadas à produção de produtos alimentares (chamado de
lavoura branca) destinados à subsistência das famílias dos parceiros, cujo trabalho
principal se dá na monocultura exportadora, principal negócio dos donos das terras
(MOREIRA, 1999).
Notas finais.
O exercício de percorrer o dia a dia da mão de obra escrava lançou luz sobre
aspectos de continuidade entre a divisão de tarefas e as rotinas dos trabalhadores
empenhados nesta atividade. Nos estudos de caso aqui retratados, a grande propriedade
cafeeira esteve por séculos cercada de propriedades menores dedicadas ao
6 Com a ressalva que no período que se estende até o Estado Novo, muitas escolas rurais do interior
de São Paulo tiveram autonomia para ensinar disciplinas no idioma de origem da família do estudante
descendente de imigrantes (KREUTZ 2000). 7 Como podemos ver no primeiro item. Art. 1.410. Dá-se a parceria agrícola, quando uma pessoa cede
um prédio rústico a outra, para ser por esta cultivado, repartindo-se os frutos entre as duas, na proporção
que estipularem.
abastecimento da população trabalhadora. Também, a hegemonia das grandes
propriedades pautava o cotidiano das relações produtivas e sociais destes indivíduos, o
paternalismo do senhor das terras esteve presente, seja para com o escravo do Vale do
Paraíba Fluminense, como para com o trabalhador livre no oeste paulista. Assim como
as insatisfações e revoltas buscaram solucionar esta mazela.
O olhar pelo percurso cronológico de nossas comparações nos permite constatar
um saldo positivo das condições de vida e de trabalho dos indivíduos que se
encontravam empregados nas atividades da cultura cafeeira desde meados do século
XIX até os primeiros anos do XX. Neste caso, com o passar do tempo foram criadas
novas condições que alteram e melhoram aspectos significativos da vivência destes
indivíduos. A rotina no Vele do Paraíba escravagista era duríssima e as condições de
vida e de trabalho dos escravos eram esgotantes. Os seis dias de trabalho na lavoura
permanecem constantes em todos os casos avaliados neste estudo, contudo, as outras
relações que marcam a existência do indivíduo no trabalho foram modificadas. O limite
cronológico do código civil de 1916 tornou nosso ponto de chegada, porque reconhece a
relação de trabalho acordada entre um grande proprietário e um colono como relação
entre cidadãos livres e iguais perante a lei. O futuro das relações trabalhistas teve que
reconhecer a diferença entre as partes quando se objetivou a criação de um regime mais
justo. Igualdade aqui mencionada limita-se à retórica. Os modelos de grandes
propriedades cafeicultoras do Vale do Paraíba se expandiram pelo oeste de São Paulo e
esta dinâmica produtiva aqui descrita direcionou parcela significativa das relações de
trabalho que envolveu o principal produto agrícola de exportação brasileiro e ocupou
grande parte dos trabalhadores deste país.
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