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- 1. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 2 O LIVRO NEGRO DO COMUNISMO
Crimes, terror e represso JEAN-LOUIS PANN, ANDRZEJ PACZKOWSKI,
KAREL BARTOSEK, JEAN-LOUIS MARGOLIN com a colaborao de Remi
Kauffer, Pierre Rigoulot, Pascal Fontaine, Yves Santamaria e
Sylvain Boulouque Traduo CAIO MEIRA BERTRAND BRASIL Ttulo original:
L livre noirdu communisme Obra publicada sob a direo de Charles
Ronsac Capa: Raul Fernandes Editorao: Art Line 1999 Impresso no
Brasil Printed in Brazil CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato
Nacional dos Editores de Livros, RJ L762 O livro negro do
comunismo: crimes, terror e represso / Stphane Courtois... [et
ai.]; com a colaborao de Remi Kauffr... [et ai.]; traduo Caio
Meira. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 924p., [32] p. de
estampas: il. Traduo de: L livre noir du communisme ISBN
85-286-0732-1 1. Comunismo - Histria - Sculo XX. 2. Perseguio
poltica. 3. Terrorismo. I. Courtois, Stphane, 1947-. CDD -
320.299-1236 CDU-321. Todos os direitos reservados pela: BCD UNIO
DE EDITORAS S.A. Av. Rio Branco, 99 - 20 andar - Centro 20040-004 -
Rio de Janeiro - RJ Tel: (OXX21) 263-2082 Fax: (OXX21) 263-6112 No
permitida a reproduo total ou parcial desta obra, por quaisquer
meios, sem a prvia autorizao por escrito da Editora. Atendemos pelo
Reembolso Postal. Contracapa e orelha: Outubro de 1917: o golpe de
estado bolchevique significou bem mais do que a queda do czarismo e
a subida ao poder de um grupo de polticos idealistas. A revoluo
liderada por Lenin tornou-se o cone que representaria o comeo de
uma nova era para a humanidade, anunciando uma sociedade mais justa
e um homem mais consciente de sua relao com seu semelhante.
Novembro de 1989: a queda do Muro de Berlim e a conseqente abertura
dos arquivos dos pases comunistas apareceram para o mundo como a
derrocada final do sonho comunista. O LIVRO NEGRO DO COMUNISMO traz
a pblico o saldo estarrecedor de mais de sete dcadas de histria de
regimes comunistas: massacres em larga escala, deportaes de
populaes inteiras para regies sem a mnima condio de sobrevivncia,
expurgos assassinos liquidando o menor esboo de oposio, fome e
misria provocadas que dizimaram indistintamente milhes de pessoas,
enfim, a aniquilao de homens, mulheres, crianas, soldados,
camponeses, religiosos, presos polticos e todos aqueles que, pelas
mais diversas razes, se encontraram no caminho de implantao do que,
paradoxalmente, nascera como promessa de redeno e esperana. Os
autores, historiadores que permanecem ou estiveram ligados
esquerda, no hesitam em usar a palavra genocdio, pois foram cerca
de 100 milhes de mortos! Esse nmero assustador ultrapassa
amplamente, por exemplo, o nmero de vtimas do nazismo e at mesmo o
das duas guerras mundiais somadas. Genocdio, holocausto, portanto,
confirmado pelos vrios relatos de sobreviventes e, principalmente,
pelas revelaes dos arquivos hoje acessveis. O terror - o Terror
Vermelho - foi o principal instrumento utilizado por comunistas
tanto para a tomada do poder quanto para a sua manuteno, e tambm
por grupos de oposio que jamais chegaram ao governo. Os fatos
demonstram: o terrorismo de oposio e o terrorismo de Estado, com
freqncia praticados contra o seu prprio povo, so as grandes
caractersticas do comunismo no sculo XX.
- 2. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 3 Obstinados, pragmticos,
carismticos, os lderes comunistas, que guiariam o mundo a seu
destino inelutvel, tm revelada a sua face sombria: Lenin, Stalin,
Mao Zedong, Pol Pot, Ho Chi Minh, Fidel Castro e muitos outros
tornam-se os responsveis diretos pelas atrocidades cometidas em
nome do ideal comunista. Sob seus olhares zelosos, os "obstculos" -
qualquer homem, cidade ou povo - foram sendo exterminados com
violncia e brutalidade. O LIVRO NEGRO DO COMUNISMO no quer
justificar nem encontrar causas para tais atrocidades. Tampouco
pretende ser mais um captulo na polmica entre esquerda e direita,
discutindo fundamentos ou teorias marxistas. Trata-se, sobretudo,
de dar nome e voz s vtimas e a seus algozes. Vtimas ocultas por
demasiado tempo sob a mquina de propaganda dos PCs espalhados pelo
mundo. Algozes muitas vezes festejados e recebidos com toda a pompa
pelas democracias ocidentais. Todos que de algum modo tomaram parte
na aventura comunista neste sculo esto, doravante, obrigados a
rever as suas certezas e convices. Encontra-se, assim, uma das
principais virtudes deste livro: luz dos fatos aqui revelados, o
Terror Vermelho deve estar presente na conscincia dos que ainda
crem num futuro para o comunismo. Como um ideal de emancipao e de
fraternidade universal pode ter-se transformado, na manh seguinte
ao Outubro de 1917, numa doutrina de onipotncia do Estado,
praticando a disseminao sistemtica de grupos inteiros, sociais ou
nacionais, recorrendo s deportaes em massa e, com demasiada
freqncia, aos massacres gigantescos? O vu da denegao pode enfim ser
completamente destrudo. A rejeio do comunismo pela maioria dos
povos em questo, a abertura de inmeros arquivos que ainda ontem
eram secretos, a multiplicao de testemunhos e contatos trazem o
foco para o que amanh ser uma evidncia: os pases comunistas tiveram
maior xito no cultivo de arquiplagos de campos de concentrao do que
nos do trigo; eles produziram mais cadveres do que bens de consumo.
Uma equipe de historiadores e de universitrios assumiu o
empreendimento - - em cada um dos continentes e dos pases
envolvidos - - de fazer um balano o mais completo possvel dos
crimes cometidos sob a bandeira do comunismo: os locais, as datas,
os fatos, os carrascos, as vtimas contadas s dezenas de milhes na
URSS e na China, e aos milhes em pequenos pases como a Coreia do
Norte e o Camboja. 8O ANOS APS O GOLPE DE ESTADO BOLCHEVIQUE, O
PRIMEIRO LIVRO DE REFERNCIA SOBRE UMA TRAGDIA DE DIMENSO PLANETRIA.
NUMEROSOS TESTEMUNHOS, MAPAS DOS "GULAGS" E DAS DEPORTAES, 32
PGINAS DE FOTOGRAFIAS. Os autores: Pesquisador-chefe do CNRS, o
Centro Nacional de Pesquisa Cientfica francs, Stphane Courtois
dirige a revista Communisme e co-autor do livro Histoire du parti
communiste franais. Professor agrg de histria, pesquisador do CNRS,
Nicolas Werth, especialista em URSS, principalmente o autor de uma
Histoire de L'Union Sovitique. Jean-Louis Pann o autor da biografia
Boris Souvorine. Pesquisador do CNRS, diretor da revista La
Nouvelle Alternative, Karel Bartosek o autor de Aveux des Archives.
Praga-Paris-Praga. Professor agrg de histria, jean-Louis Margolin
matre de confrences da Universidade de Provence. Professor do
Instituto de Estudos Polticos de Varsvia, Andrzej Paczkowski membro
do Conselho dos Arquivos do Ministrio do Interior. Com a colaborao
de Remi Kauffer, Pierre Rigoulot, Pascal Fontaine, Yves Santamaria
e Sylvain Boulouque. BERTRAND BRASIL O editor e os autores dedicam
este livro memria de Franois Furet, que havia concordado em redigir
o seu prefcio. SUMRIO OS CRIMES DO COMUNISMO PRIMEIRA PARTE - UM
ESTADO CONTRA O POVO 1. Paradoxos e equvocos de Outubro 2. O brao
armado da ditadura do proletariado 3. O Terror Vermelho 4. A guerra
suja
- 3. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 4 5. De Tambov grande fome
6. Da trgua grande virada 7. Coletivizao forada e deskulakizao 8. A
grande fome 9. Elementos estranhos sociedade e ciclos repressivos
10. O Grande Terror (1936-1938) 11. O imprio dos campos de
concentrao 12. O avesso de uma vitria 13. Apogeu e crise do Gulag
14. O ltimo compl 15. A sada do Stalinismo guisa de concluso
SEGUNDA PARTE - REVOLUO MUNDIAL, GUERRA CIVIL E TERROR 1. O
Komintern em ao A revoluo na Europa Komintern e guerra civil
Ditadura, incriminao dos opositores e represso no interior do
Komintern O grande terror atinge o Komintern Terror no interior dos
partidos comunistas A caa aos trotskistas Antifascistas e
revolucionrios estrangeiros vtimas do terror na URSS Guerra civil e
guerra de libertao nacional 2. A sombra do NKVD sobre a Espanha A
linha geral dos comunistas Conselheiros e agentes Depois das
calnias... as balas na nuca Maio de 1937 e a liquidao do POUM O
NKVD em ao Um julgamento de Moscou em Barcelona Dentro das Brigadas
Internacionais Exlio e morte na ptria dos proletrios 3. Comunismo e
terrorismo TERCEIRA PARTE - A OUTRA EUROPA VTIMA DO COMUNISMO 1.
Polnia, a nao inimiga O caso do POW (Organizao Militar Polonesa) e
a operao polonesa do NKVD (1933-1938) Katyn, prises e deportaes
(1939-1941) O NKVD contra a Armia Krajowa (Exrcito Nacional)
Bibliografia Polnia 1944-1989: o sistema de represso conquista do
Estado ou o terror de massa (1944-1947) A sociedade como objetivo
de conquista ou o terror generalizado (1948-1956) O socialismo real
ou o sistema de represso seletiva (1956-1981) O estado de guerra,
uma tentativa de represso generalizada Do cessar-fogo capitulao, ou
a confuso do poder (1986-1989) Bibliografia 2. Europa Central e do
Sudeste Terror importado? Os processos polticos contra os aliados
no comunistas A destruio da sociedade civil O sistema
concentracionrio e a gente do povo Os processos dos dirigentes
comunistas
- 4. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 5 Do ps-terror ao
ps-comunismo Uma gesto complexa do passado Bibliografia selecionada
QUARTA PARTE - COMUNISMOS DA SIA: ENTRE REEDUCAO E MASSACRE 1.
China: uma longa marcha na noite Uma tradio de violncia? Uma
revoluo inseparvel do terror (1927-1946) Reforma agrria e expurgos
urbanos (1946-1957) Os campos: submisso e engenharia social As
cidades: ttica do salame e expropriaes A maior fome da histria
(1959-1961) Um Gulag escondido: o laogai A Revoluo Cultural: um
totalitarismo anrquico (1966-1976) A era Deng: desagregao do terror
(depois de 1976) Tibet: um genocdio no teto do mundo? 2. Coreia do
Norte, Vietn e Laos: a semente do Drago Crimes, terror e segredo na
Coreia do Norte Antes da constituio do Estado comunista Vtimas da
luta armada Vtimas comunistas do Partido-Estado norte-coreano As
execues Prises e campos O controle da populao Tentativa de genocdio
intelectual? Uma hierarquia estrita A fuga Atividades no exterior
Fome e misria Balano final Vietn: os impasses de um comunismo de
guerra Laos: populaes em fuga 3. Camboja: no pas do crime
desconcertante A espiral do horror Variaes em torno de um
martirolgio A morte cotidiana no tempo de Pol Pot As razes da
loucura Um genocdio? Concluso Seleo bibliogrfica sia QUINTA PARTE -
O TERCEIRO MUNDO 1. A Amrica Latina e a experincia comunista Cuba.
O interminvel totalitarismo tropical Nicargua: o fracasso de um
projeto totalitrio Peru: a longa marcha sangrenta do Sendero
Luminoso Orientaes bibliogrficas 2. Afrocomunismos: Etipia, Angola,
Moambique O comunismo de cores africanas O Imprio Vermelho: a
Etipia Violncias lusfonas: Angola, Moambique A Repblica Popular de
Angola Moambique 3. O comunismo no Afeganisto
- 5. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 6 O Afeganisto e a URSS de
1917 a 1973 Os comunistas afeganes O golpe de Estado de Mohammed
Daud O golpe de Estado de abril de 1978 ou a Revoluo de Saur A
interveno sovitica A amplitude da represso PORQU? OS AUTORES NDICE
ONOMSTICO OS CRIMES DO COMUNISMO [por Stphane Courtois | A vida
perdeu para a morte, mas a memria ganha seu combate contra o nada.
Tzvetan Todorov Os abusos da memria J se escreveu que a histria a
cincia da infelicidade dos homens; nosso sculo de violncia parece
confirmar essa frmula de maneira eloquente. verdade que nos sculos
precedentes poucos povos e poucos Estados estiveram isentos da
violncia de massa. As principais potncias europias estiveram
implicadas no trfico de negros; a repblica francesa praticou uma
colonizao que, apesar de algumas contribuies, foi marcada por
numerosos episdios repugnantes, e isso at o seu trmino. Os Estados
Unidos permanecem impregnados de uma certa cultura da violncia que
se enraza em dois dos mais terrveis crimes: a escravido dos negros
e o extermnio dos ndios. No resta dvida de que, a esse respeito,
nosso sculo deve ter ultrapassado seus predecessores. Um olhar
retrospectivo impe uma concluso incmoda: este foi o sculo das
grandes catstrofes humanas - duas guerras mundiais, o nazismo, sem
falar das tragdias mais circunscritas, como as da Armnia, Biafra,
Ruanda e outros pases. Com efeito, o Imprio Otomano entregou-se ao
genocdio dos armnios, e a Alemanha ao dos judeus e dos ciganos. A
Itlia de Mussolini massacrou os etopes. Os tchecos tm dificuldades
em admitir que seu comportamento em relao aos alemes dos Sudetos,
em 1945-1946, no esteve acima de qualquer suspeita. A prpria Sua
hoje alcanada por seu passado como o pas que gerenciava o ouro
roubado pelos nazistas dos judeus exterminados, apesar desse
comportamento no ser em nenhuma medida to atroz quanto o do
genocdio. O comunismo insere-se nessa faixa de tempo histrico
transbordante de tragdias, chegando mesmo a constituir um de seus
momentos mais intensos e mais significativos. O comunismo, um dos
fenmenos mais importantes deste curto sculo XX - que comea em 1914
e termina em Moscou em 1991 -, encontra-se no centro desse quadro.
Um comunismo que preexistia ao fascismo e ao nazismo, e que
sobreviveu a eles, atingindo os quatro grandes continentes. O que
designamos precisamente com a denominao comunismo? Devemos, desde
j, introduzir uma distino entre a doutrina e a prtica. Como
filosofia poltica, o comunismo existe h sculos, e quem sabe, h
milnios. Pois no foi Plato quem, em A Repblica, fundou a idia de
uma cidade ideal na qual os homens no seriam corrompidos pelo
dinheiro e pelo poder, na qual a sabedoria, a razo e a justia
comandariam? No foi um pensador e estadista to eminente quanto Sir
Thomas More, chanceler da Inglaterra em 1530, autor da famosa
Utopia e morto sob o machado do carrasco de Henrique VIII, um outro
precursor da idia dessa cidade ideal? O mtodo utpico parece
perfeitamente legtimo como instrumento crtico da sociedade. Ele
participa do debate das idias - oxignio de nossas democracias.
Entretanto, o comunismo aqui abordado no se situa no cu das idias.
um comunismo bem real, que existiu numa determinada poca, em
determinados pases, encarnado por lderes clebres - Lenin, Stalin,
Mo, Ho Chi Minh, Castro, e te., e, mais prximos da histria poltica
francesa, Maurice Thorez, Jacques Duelos, Georges Marchais.
Qualquer que seja o grau de envolvimento da doutrina comunista
anterior a 1917 na prtica do comunismo real - retornaremos a esse
ponto -, foi este quem ps em prtica uma represso metdica, chegando
a instituir, em momentos de grande paroxismo, o terror como modo de
governo. Isso faz com que a ideologia seja inocente? Os espritos
ressentidos ou escolsticos sempre podero sustentar que o comunismo
real no tem nada a ver com o comunismo ideal. Evidentemente, seria
absurdo imputar a teorias elaboradas antes de Cristo, durante a
Renascena ou mesmo o
- 6. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 7 sculo XDC, eventos que
surgiram no decorrer do sculo XX. Entretanto, como escreve Ignazio
Silone, na verdade, as revolues so como as rvores, elas so
reconhecidas atravs de seus frutos. No foi sem razo que os social-
democratas russos, conhecidos como bolcheviques, decidiram, em
novembro de 1917, chamar a si prprios de comunistas. Tampouco foi
por acaso que erigiram junto ao Kremlin um monumento em glria
daqueles que eles consideravam seus precursores: More ou
Campanella. Excedendo os crimes individuais, os massacres pontuais,
circunstanciais, os regimes comunistas erigiram, para assegurar o
poder, o crime de massa como verdadeiro sistema de governo. certo
que no fim de um perodo de tempo varivel - alguns anos no Leste
Europeu ou vrias dcadas na URSS ou na China - o terror perdeu seu
vigor, os regimes estabilizaram-se na gesto da represso cotidiana,
censurando todos os meios de comunicao, controlando as fronteiras,
expulsando os dissidentes. Mas a memria do terror continuou a
assegurar a credibilidade e, consequentemente, a eficcia da ameaa
repressiva. Nenhuma das experincias comunistas, populares durante
algum tempo no Ocidente, escapou a essa lei: nem a China do Grande
Timoneiro, nem a Coreia de Kim II Sung, nem mesmo o Vietn do gentil
Tio Ho ou a Cuba do flamejante Fidel, ladeado pela pureza de um Che
Guevara, no se esquecendo da Etipia de Mengistu, da Angola de Neto
e do Afeganisto de Najibullah. Ora, os crimes do comunismo no foram
submetidos a uma avaliao legtima e normal, tanto do ponto de vista
histrico quanto do ponto de vista moral. Sem dvida, trata-se aqui
de uma das primeiras vezes que se tenta uma aproximao do comunismo,
perguntando-se sobre esta dimenso criminosa como uma questo ao
mesmo tempo global e central. Podero retorquir-nos que a maioria
dos crimes respondia a uma legalidade, ela prpria sustentada por
instituies pertencentes aos regimes vigentes, reconhecidos no plano
internacional e cujos chefes eram recebidos com grande pompa por
nossos prprios dirigentes. Mas no ocorreu o mesmo com o nazismo? Os
crimes que expomos neste livro no se definem em relao jurisdio dos
regimes comunistas, mas ao cdigo no escrito dos direitos naturais
da humanidade. A histria dos regimes e dos partidos comunistas, de
sua poltica, de suas relaes com as sociedades nacionais e com a
comunidade internacional no se resume a essa dimenso criminosa, ou
mesmo a uma dimenso de terror e de represso. Na URSS e nas
democracias populares depois da morte de Stalin, na China aps a
morte de Mo, o terror atenuou-se, a sociedade comeou a retomar suas
cores, a coexistncia pacfica - mesmo sendo ainda uma continuao da
luta de classes sob outras formas - tornou-se um dado permanente da
vida internacional. Entretanto, os arquivos e os testemunhos
abundantes mostram que o terror foi, desde sua origem, uma das
dimenses fundamentais do comunismo moderno. Abandonemos a idia de
que tal execuo de refns, tal massacre de trabalhadores revoltados,
tal hecatombe de camponeses mortos de fome, foram somente acidentes
conjunturais, prprios a tais pases ou a tal poca. O nosso mtodo
ultrapassa a especificidade de cada terreno e considera a dimenso
criminosa como uma das dimenses prprias ao conjunto do sistema
comunista, durante todo o seu perodo de existncia. Do que
falaremos, de quais crimes? O comunismo cometeu inmeros:
inicialmente, crimes contra o esprito, mas tambm crimes contra a
cultura universal e contra as culturas nacionais. Stalin ordenou a
demolio de centenas de igrejas em Moscou; Ceaucescu destruiu o
corao histrico de Bucareste para construir edifcios e traar
perspectivas megalomanacas; Pol Pot fez com que fosse desmontada
pedra por pedra a Catedral de Phnom Penh e abandonou selva os
templos de Angkor; durante a revoluo cultural maosta, tesouros
inestimveis foram quebrados ou queimados pelas Guardas Vermelhas.
Entretanto, por mais graves que tenham sido essas destruies, a
longo prazo, para as naes envolvidas e para a humanidade inteira,
em que medida elas pesam em face do assassinato em massa de
pessoas, de homens, de mulheres, de crianas? Portanto, consideramos
apenas os crimes contra as pessoas, os que constituem a essncia do
fenmeno do terror. Esses respondem a uma nomenclatura comum, mesmo
que tal prtica seja mais acentuada neste ou naquele regime: execuo
por meios diversos - fuzilamento, enforcamento, afogamento,
espancamento e, em alguns casos, gs de combate, veneno ou acidente
de automvel; destruio pela fome - indigncia provocada e/ou no
socorrida; deportao - a morte podendo ocorrer no curso do
transporte (em caminhadas a p ou em vages para animais) ou nos
locais de residncia e/ou de trabalhos forados (esgotamento, doena,
fome, frio). O caso dos perodos ditos de guerra civil mais
complexo: no fcil distinguir o que decorre do combate entre poder e
rebeldes e o que massacre da populao civil. Contudo, podemos
estabelecer os nmeros de um primeiro balano que pretende ser
somente uma aproximao mnima e que necessitaria ainda de uma maior
preciso, mas que, de acordo com estimativas pessoais, d uma dimenso
da grandeza e permite sentir a gravidade do assunto: - URSS, 20
milhes de mortos, - China, 65 milhes de mortos, - Vietn, 1 milho de
mortos, - Coreia do Norte, 2 milhes de mortos, - Camboja, 2 milhes
de mortos,
- 7. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 8 - Leste Europeu, 1 milho
de mortos, - Amrica Latina, 150.000 mortos, - frica, 1,7 milho de
mortos, - Afeganisto, 1,5 milho de mortos, - Movimento comunista
internacional e partidos comunistas fora do poder, uma dezena de
milhes de mortos. O total se aproxima da faixa dos cem milhes de
mortos. Essa escala de grandeza recobre situaes de grande
disparidade. incontestvel que, em valor relativo, o trofeu vai para
o Camboja, onde Pol Pot, em trs anos e meio, conseguiu matar da
maneira mais atroz - a fome, a tortura - aproximadamente um quarto
da populao total do pas. Entretanto, a experincia maosta choca pela
amplitude das massas atingidas. Quanto Rssia leninista ou
stalinista, ela d calafrios por seu lado experimental, porm
perfeitamente refletido, lgico, poltico. Essa abordagem elementar
no poderia esgotar a questo cujo aprofundamento implica a utilizao
de um mtodo qualitativo que repouse na definio de crime. Tal
definio deve apoiar-se em critrios objetivos e jurdicos. A questo
do crime cometido por um Estado foi tratada pela primeira vez, do
ponto de vista jurdico, em 1945, no tribunal de Nuremberg institudo
pelos Aliados para julgar os crimes nazistas. A natureza desses
crimes foi definida pelo artigo 6 dos estatutos do tribunal, que
designa trs crimes maiores: os crimes contra a paz, os crimes de
guerra, os crimes contra a humanidade. Ora, um exame do conjunto
dos crimes cometidos sob o regime leninis- ta/stalinista, e tambm
no mundo comunista em geral, conduz-nos ao reconhecimento de cada
uma dessas trs categorias. Os crimes contra a paz so definidos pelo
artigo 6a e concernem a dire-o, a preparao, o incio ou o
prosseguimento de uma guerra de agresso, ou de uma guerra de violao
de tratados, garantias ou acordos internacionais, ou a participao
num plano concertado ou num compl para a consecuo de qualquer um
dos atos precedentes. Stalin cometeu incontestavelmente esse tipo
de crime, pelo menos quando negociou secretamente com Hitler,
atravs dos tratados de 23 de agosto e de 28 de setembro de 1939, a
partilha da Polnia e a anexao dos Pases Blticos, da Bucovina do
Norte e da Bessarbia URSS. O tratado de 23 de agosto, libertando a
Alemanha do perigo de um combate em duas frentes, provocou
diretamente o incio da Segunda Guerra Mundial. Stalin perpetrou um
novo crime contra a paz ao agredir a Finlndia em 30 de novembro de
1939. O ataque imprevisto da Coreia do Norte contra a Coreia do Sul
em 25 de junho de 1950 e a interveno macia do exrcito da China
comunista so atos da mesma ordem. Os mtodos de subverso, assumidos
durante um tempo pelos partidos comunistas comandados por Moscou,
poderiam igualmente ser assimilados aos crimes contra a paz, pois
sua ao desembocou em algumas guerras; assim, o golpe de Estado
comunista no Afeganisto acarretou, em 27 de dezembro de 1979, uma
interveno militar macia da URSS, inaugurando uma guerra que ainda
no terminou. Os crimes de guerra so definidos no artigo 6b como as
violaes das leis e costumes da guerra. Essas violaes compreendem -
sem estarem limitadas a isto, porm - o assassinato, maus-tratos ou
deportao para trabalhos forcados, ou ainda com outro objetivo, das
populaes civis dos territrios ocupados, o assassinato ou
maus-tratos de prisioneiros de guerra e de pessoas no mar, a execuo
de refns, a pilhagem dos bens pblicos ou privados, a destruio sem
motivos de cidades e povoados ou a devastao no justificada por
exigncias militares. As leis e costumes de guerra esto inscritos em
convenes, sendo que a mais conhecida dentre elas a Conveno de Haia
de 1907, que estipula: Em tempos de guerra, as populaes e os
beligerantes permanecem sob o imprio dos princpios do direito
internacional, tais como os que resultam dos usos estabelecidos
pelas naes civilizadas, as leis da humanidade e as exigncias da
conscincia pblica. Ora, Stalin ordenou ou autorizou numerosos
crimes de guerra, sendo a execuo da quase-totalidade dos oficiais
poloneses aprisionados em 1939 -dos quais os 4.500 mortos de Katyn
so apenas um episdio - o crime mais espetacular. Mas outros crimes
de amplitude ainda maior passaram despercebidos, como o assassinato
ou a morte no Gulagfreqncia de centenas de milhares de militares
alemes aprisionados entre 1943 e 1945; a isto acrescentam-se os
estupros em massa de mulheres alems pelos soldados do Exrcito
Vermelho na Alemanha ocupada; sem falar da pilhagem sistemtica de
todo o parque industrial dos pases ocupados pelo Exrcito Vermelho.
Incorrem no mesmo artigo 6b o aprisionamento, o fuzilamento ou a
deportao das resistncias organizadas que combatiam abertamente o
poder comunista: por exemplo, os militares das organizaes polonesas
de resistncia antinazista (POW, AK), os membros das organizaes de
partidrios blticos e ucranianos armados, as resistncias afegs, etc.
A expresso crimes contra a humanidade apareceu pela primeira vez em
18 de maio de 1915, numa declarao d Frana, da Inglaterra e da Rssia
contra a Turquia, em razo do massacre dos armnios, qualificado como
novo crime da Turquia contra a humanidade e a civilizao. As
extorses nazistas levaram o tribunal de Nuremberg a redefinir a noo
em seu artigo 6c: O assassinato, o extermnio, a escravido, a
deportao e todo ato inumano cometido contra toda e qualquer populao
civil, antes ou durante a guerra, ou ainda perseguies por motivos
polticos, raciais ou religiosos, quando estes atos ou perseguies
forem cometidos na sequncia de todo crime que
- 8. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 9 entre na competncia do
tribunal, ou que esteja ligado a este crime, quer violem ou no o
direito interno do pas onde foram perpetrados. Em seu requisitrio
em Nuremberg, Franois de Menthon, procurador geral francs,
destacava a dimenso ideolgica dos crimes: Proponho-me a
demonstrar-lhes que toda criminalidade organizada e sistemtica
decorre do que me permitirei chamar de crime contra o esprito,
quero dizer, de uma doutrina que, negando todos os valores
espirituais, racionais ou morais, sob os quais os povos tentaram h
milnios fazer progredir a condio humana, visa a devolver a
Humanidade barbrie, no mais a barbrie natural e espontnea dos povos
primitivos, mas a barbrie demonaca, j que consciente dela prpria e
utilizando para os seus fins todos os meios materiais postos
disposio dos homens pela cincia contempornea. Esse pecado contra o
esprito a falta original do nacional-socialismo da qual todos os
crimes decorrem. Essa doutrina monstruosa a do racismo. [...] Que
se trate de crime contra a Paz ou de crimes de guerra, no nos
encontramos diante de uma criminalidade acidental, ocasional, que
os eventos pudessem, talvez, no apenas justificar, mas explicar,
encontramo-nos sim diante de uma criminalidade sistemtica, que
decorre direta e necessariamente de uma doutrina monstruosa,
servida pela vontade deliberada dos dirigentes da Alemanha Nazista.
Franois de Menthon explicava tambm que as deportaes destinadas a
assegurar mo-de-obra suplementar para a mquina de guerra alem e as
que visavam a exterminar os oponentes eram apenas consequncia
natural da doutrina nacional-socialista, segundo a qual o homem no
tem nenhum valor em si quando no est a servio da raa alem. Todas as
declaraes no tribunal de Nuremberg insistiam numa das
caractersticas maiores do crime contra a humanidade: o fato de que
a potncia do Estado esteja a servio de polticas e de prticas
criminosas. Porm, a competncia do tribunal estava limitada aos
crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Era ento
indispensvel ampliar a noo jurdica a situaes no implicadas nessa
guerra. O novo Cdigo Penal francs, adotado em 23 de julho de 1992,
define assim o crime contra a humanidade: a deportao, a escravido,
ou a prtica macia e sistemtica de execues sumrias, de sequestro de
pessoas seguido de sua desapario, da tortura ou de atos inumanos,
inspirados por motivos polticos, filosficos, raciais ou religiosos,
e organizados em execuo de um plano concertado que atinja um grupo
de populao civil (grifo nosso). Ora, todas essas definies, em
particular a recente definio francesa, aplicam-se a numerosos
crimes cometidos no perodo de Lenin, e sobretudo no de Stalin, e
tambm por todos os pases de regime comunista, com exceo (sob
reserva de verificao) de Cuba e da Nicargua dos sandinistas. A
condio principal parece incontestvel: os regimes comunistas
trabalharam em nome de um Estado praticante de uma poltica de
hegemonia ideolgica. exatamente em nome de uma doutrina, fundamento
lgico e necessrio do sistema, que foram massacrados dezenas de
milhes de inocentes sem que nenhum ato particular possa lhes ser
censurado, a menos que se reconhea que era criminoso ser nobre,
burgus, kulak, ucraniano, ou mesmo trabalhador ou... membro do
Partido Comunista. A intolerncia ativa fazia parte do programa
posto em prtica. assim que Tomski, o grande lder dos sindicatos
soviticos, declarava em 13 de novembro de 1927, no Trud. Em nosso
pas, outros partidos tambm podem existir. Mas eis o princpio
fundamental que nos distingue do Ocidente; a situao imaginvel a
seguinte: um partido reina, todos os outros esto na priso. A noo de
crime contra a humanidade complexa e recobre crimes designados
formalmente. Um dos mais especficos o genocdio. Aps o genocdio dos
judeus pelos nazistas, e a fim de tornar mais preciso o artigo 6c
do tribunal de Nuremberg, a noo foi definida por uma conveno das
Naes Unidas, de 9 de dezembro de 1948: O genocdio compreendido como
um dos atos infracitados, cometidos na inteno de destruir, todo ou
em parte, um grupo nacional, tnico, racial ou religioso, como tal:
a) mortes de membros do grupo; b) atentado grave integridade fsica
ou mental de membros do grupo; c) submisso intencional do grupo s
condies de existncia que acarretem sua destruio fsica, total ou
parcial; d) medidas que visem a impedir nascimentos no seio do
grupo; e) transferncias foradas de crianas do grupo a um outro
grupo. O novo Cdigo Penal francs d ao genocdio uma definio ainda
mais ampla: O fato, a execuo de um plano concertado que tenda
destruio total ou parcial de um grupo nacional, tnico racial ou
religioso, ou de um grupo determinado a partir de qualquer outro
critrio arbitrrio (grifo nosso). Essa definio jurdica no contradiz
a abordagem mais filosfica de Andr Frossard, para quem h crime
contra a humanidade quando se mata algum sob o pretexto de que ele
nasceu. Em seu curto e magnfico relato intitulado Toutpasse,
Vassili Grossman diz a respeito de Ivan Grigorievitch, seu heri
oriundo do campo: Ele permaneceu o que ele era em seu nascimento,
um homem. precisamente esse o motivo de ele sucumbir ao golpe do
terror. A definio francesa permite sublinhar que o genocdio no
sempre do mesmo tipo - racial, como no caso dos judeus - e que
tambm pode visar grupos sociais. Em um livro publicado em Berlim,
em 1924 - intitulado La terreur rouge en Russie-, o historiador e
socialista russo Serguei Melgunov cita Latzis, um dos primeiros
chefes da Tcheka (a polcia poltica sovitica) que, em 19 de novembro
de 1918, deu as seguintes diretivas a seus esbirros: Ns no fazemos
uma guerra especfica contra as pessoas. Ns exterminamos a burguesia
enquanto classe. No procurem, na investigao, documentos e provas do
que o acusado fez,
- 9. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 10 em atos ou palavras,
contra a autoridade sovitica. A primeira questo que vocs devem
colocar-lhe a que classe ele pertence, qual sua origem, sua educao,
sua instruo, sua profisso. Desde o incio, Lenin e seus camaradas se
situaram no contexto de uma guerra de classes sem perdo, na qual o
adversrio poltico, ideolgico, ou mesmo a populao recalcitrante eram
considerados - e tratados - como inimigos e deveriam ser
exterminados. Os bolcheviques decidiram eliminar legalmente, mas
tambm fisicamente, toda oposio ou toda resistncia - e mesmo a mais
passiva - ao seu poder hegemnico, no somente quando esta era
formada por grupos de adversrios polticos, mas tambm por grupos
sociais propriamente ditos - tais como a nobreza, a burguesia, a
intelligentsia, a Igreja, etc., e tambm as categorias profissionais
(os oficiais, os policiais...) - conferindo, por vezes, uma dimenso
de genocdio a esses atos. Desde 1920, a descossaquizao corresponde
abertamente definio de genocdio: o conjunto de uma populao com
implantao territorial fortemente determinada, os cossacos, era
exterminado, os homens fuzilados, as mulheres, as crianas e os
idosos deportados, os povoados destrudos ou entregues a novos
habitantes no cossacos. Lenin assimilava os cossacos
Vendia,freqncia durante a revoluo francesa, e desejava aplicar-lhes
o tratamento que Gracchus Babeuf, o inventor do comunismo moderno,
qualificava como populicdio. A deskulakizao de 1930-1932 no foi
seno a retomada, em grande escala, da descossaquizao, com a
novidade de a operao ser reivindicada por Stalin, para quem a
palavra de ordem oficial, alardeada pela propaganda do regime, era
exterminar os kulaks enquanto classe. Os kulaks que resistiam
coletivizao eram fuzilados, os outros eram deportados junto com
suas mulheres, crianas e os idosos. De fato, eles no foram todos
diretamente exterminados, mas o trabalho forado ao qual foram
submetidos, nas zonas no desbravadas da Sibria ou do Grande Norte,
deixou-lhes pouca chance de sobrevivncia. Vrias centenas de
milhares deixaram ali suas vidas, mas o nmero exato de vtimas
permanece desconhecido. Quanto grande fome ucraniana de 1932-1933,
relacionada resistncia das populaes rurais coletivizao forada, ela
em poucos meses provocou a morte de seis milhes de pessoas. Aqui, o
genocdio da classe junta-se ao genocdio da raa: matar de fome uma
criana kulak ucraniana deliberadamente coagida indigncia pelo
regime stalinista vale o matar de fome uma criana judia do gueto de
Varsvia coagida indigncia pelo regime nazista. Essa constatao de
modo algum repe em causa a singularidade de Auschwitz: a mobilizao
dos mais modernos recursos tcnicos e a implantao de um verdadeiro
processo industrial - a construo de uma usina de extermnio, o uso
de gases, a cremao. Mas destaca uma particularidade de muitos
regimes comunistas: a utilizao sistemtica da arma da fome; o regime
tende a controlar a totalidade do estoque de comida disponvel e,
por um sistema de racionamento por vezes bastante sofisticado, s o
distribui em funo do mrito e do demrito de uns e de outros. Este
procedimento pode mesmo provocar gigantescas situaes de indigncia.
Lembremo-nos de que, no perodo posterior a 1918, somente os pases
comunistas conheceram essa grande fome que levou morte de centenas
de milhares, ou quem sabe at de milhes de pessoas. Ainda nesta
ltima dcada, dois pases da frica que se dizem marxistas-leninistas
- Etipia e Moambique - sofreram dessas indigncias assassinas. Um
primeiro balano global desses crimes pode ser esboado: -
fuzilamento de dezenas de milhares de refns, ou de pessoas
aprisionadas sem julgamento, e massacre de centenas de milhares de
trabalhadores revoltados entre 1918 e 1922; - a fome de 1922,
provocando a morte de cinco milhes de pessoas; - execuo e deportao
dos cossacos da regio do Don em 1920; - assassinato de dezenas de
milhares de pessoas em campos de concentrao entre 1919 e 1930; -
execuo de cerca de 690.000 pessoas por ocasio do Grande Expurgo de
1937-1938; - deportao de dois milhes de kulaks (ou supostos kulaks)
em 1930-1932; - destruio por fome provocada e no socorrida de seis
milhes de ucranianos em 1932-1933; - deportao de centenas de
milhares de poloneses, ucranianos, blticos, moldvios e bessarbios
em 1939- 1941, e posteriormente em 1944-1945; - deportao dos alemes
do Volga em 1941; - deportao-abandono dos trtaros da Crimia em
1943; - deportao-abandono dos chechenos em 1944; -
deportao-abandono dos inguches em 1944; - deportao-abandono das
populaes urbanas do Camboja entre 1975 e 1978; - lenta destruio dos
tibetanos pelos chineses, desde 1950, etc. No terminaramos nunca de
enumerar os crimes do leninismo e do stalinismo, com freqncia
reproduzidos de modo quase idntico pelos regimes de Mo Zedong, Kim
II Sung, Pol Pot. Permanece uma difcil questo epistemolgica: o
historiador est apto a usar, em sua caracterizao e em sua
interpretao, fatos ou noes tais como crime contra a humanidade ou
genocdio, relativos, como vimos acima, ao domnio jurdico? No seriam
essas noes demasiado dependentes de imperativos conjunturais - a
condenao do
- 10. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 11 nazismo em Nuremberg -
para serem integradas a uma reflexo histrica que vise estabelecer
uma anlise pertinente a mdio prazo? Por outro lado, essas noes no
esto demasiado carregadas de valores suscetveis de falsearem o
objetivo da anlise histrica? Sobre o primeiro ponto, a histria
deste sculo mostrou que a prtica do massacre de massa, feita por
Estados ou por Partidos-Estados, no foi uma exclusividade nazista.
Bsnia e Ruanda provam que essas prticas perduram e que elas
constituiro, sem dvida, uma das caractersticas principais deste
sculo. Sobre o segundo ponto, no se trata de modo algum de um
retorno s concepes histricas do sculo XIX, segundo as quais o
historiador procurava bem mais julgar do que compreender. Contudo,
diante das imensas tragdias humanas diretamente provocadas por
certas concepes ideolgicas e polticas, pode o historiador abandonar
todo princpio de referncia a uma concepo humanista - ligada nossa
civilizao judaico-crist e nossa cultura democrtica - como, por
exemplo, o respeito pela pessoa humana? Numerosos e renomados
historiadores, tais como Jean-Pierre Azema num artigo sobre
Auschwitz? ou Pierre Vidal-Naquet com respeito ao processo de
Touvier, no hesitam em utilizar a expresso crime contra a
humanidade para qualificar os crimes nazistas. Parece-nos, ento,
que no ilegtimo utilizar essas noes para caracterizar alguns dos
crimes cometidos pelos regimes comunistas. Alm da questo da
responsabilidade direta dos comunistas no poder, coloca-se a questo
da cumplicidade. O Cdigo Criminal canadense, modificado em 1987,
considera, em seu artigo 7 (3.77), que as infraes de crime contra a
humanidade incluem as infraes de tentativa, cumplicidade, conselho,
ajuda e encorajamento ou de cumplicidade de fato? So tambm
assimilados aos crimes contra a humanidade - artigo 7 (3.76) - a
tentativa, o compl, a cumplicidade aps o fato, o conselho, a ajuda
ou o encorajamento a respeito desse fato (grifo nosso). Ora, dos
anos 20 aos anos 50, os comunistas do mundo inteiro e vrias outras
pessoas aplaudiram com entusiasmo a poltica de Lenin e, em seguida,
a de Stalin. Centenas de milhares de homens engajaram-se nas
fileiras da Internacional Comunista e nas sees locais do partido
mundial da revoluo. Nos anos 50-70, outras centenas de milhares de
homens veneraram o Grande Timoneiro da revoluo chinesa e cantaram
os grandes mritos do Grande Salto Adiante ou os da Revoluo
Cultural. J em nosso meio, muita gente se felicitou quando Pol Pot
tomou o poder. Alguns respondero que no sabiam. verdade que nem
sempre foi fcil saber, j que os regimes comunistas fizeram do
segredo uma das estratgias de defesa privilegiadas. Mas,
frequentemente, essa ignorncia era to-somente resultado de uma
cegueira devida crena militante. E, desde os anos 40 e 50, muitos
fatos eram conhecidos e incontestveis. Ora, se vrios desses
bajuladores abandonaram seus dolos de ontem, foi com silncio e
discrio. Mas o que pensar do profundo amoralismo que h em abandonar
um engajamento pblico no maior dos segredos, sem tirar dele
qualquer lio? Em 1969, um dos pioneiros no estudo do terror
comunista, Robert Conquest, escreveu: O fato de tantas pessoas
'engolirem' efetivamente [o Grande Expurgo] foi, sem dvida, um dos
fatores que tornaram possvel qualquer Expurgo. Os processos,
principalmente, teriam tido muito pouco interesse se no tivessem
sido validados por certos comentadores estrangeiros - ou seja,
'independentes'. Estes ltimos devem, pelo menos em parte, arcar com
a responsabilidade de uma certa cumplicidade para com essas mortes
polticas, ou, em todo caso, para com o fato de que elas vieram a se
repetir quando a primeira operao, o processo Zinoviev [de 1936],
foi beneficiada com um crdito injustificado. Se atribumos, atravs
desse parmetro, uma cumplicidade moral e intelectual a um certo
nmero de no-comunistas, o que dizer da cumplicidade dos comunistas?
E no nos lembramos de ver Louis Aragon arrepender-se publicamente
por ter, num poema de 1931, evocado a vontade da criao de uma
polcia poltica comunista na Frana,12 mesmo que, algumas vezes, ele
tenha criticado o perodo stalinista. Joseph Berger, antigo membro
do Komintern, ele prprio expurgado e conhecedor dos campos, cita a
carta recebida de uma antiga deportada do Gulag, mas que permaneceu
membro do Partido aps ter retornado dos campos de concentrao: Os
comunistas de minha gerao aceitaram a autoridade de Stalin. Eles
aprovaram seus crimes. Isso vale no somente para os comunistas
soviticos, mas tambm para aqueles do mundo inteiro, e essa ndoa nos
marca individual e coletivamente. S podemos apag-la fazendo com que
isso nunca mais se reproduza. O que aconteceu? Havamos perdido a
razo ou somos traidores do comunismo? A verdade que todos ns,
inclusive os que estavam mais prximos a Stalin, fizemos dos crimes
o contrrio do que eles realmente eram. Ns os consideramos como uma
importante contribuio para a vitria do socialismo. Acreditamos que
tudo o que fortalecia a potncia poltica do Partido Comunista na
Unio Sovitica e no mundo era uma vitria para o socialismo. No
imaginvamos jamais que pudesse haver um conflito no interior do
partido entre a poltica e a tica. Por sua vez, Berger desenvolve
essa afirmao: Estimo que se podemos condenar a atitude daqueles que
aceitaram a poltica de Stalin, o que no foi o caso de todos os
comunistas, bem mais difcil censur-los por no terem tornado esses
crimes impossveis. Acreditar que homens, mesmo aqueles com postos
mais elevados, podiam opor-se a seus desejos no compreender nada do
que foi o seu despotismo bizantino. Berger tem a desculpa de ter
estado na URSS e, portanto, de ter sido tragado pela mquina
infernal, sem poder escapar dela. Mas e os comunistas da Europa
Ocidental que no sofriam nenhum constrangimento direto do NKVD, que
cegueira fez com que continuassem fazendo a apologia do sistema e
de seu chefe? Seria preciso que a poo mgica que os mantinha em
submisso fosse potente!
- 11. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 12 Em sua notvel obra sobre
a Revoluo Russa - La Tragdie Sovitique - , Martin Malia traz um
pouco de luz ao assunto falando desse paradoxo: um grande ideal que
levou a um grande crime. Annie Kriegel, uma outra grande analista
do comunismo, insistia nessa articulao quase necessria das duas
faces do comunismo: uma luminosa e outra escura. A esse paradoxo,
Tzvetan Todorov traz uma primeira resposta: O habitante de uma
democracia ocidental queria pensar no totalitarismo como algo
completamente estranho s aspiraes humanas normais. Ora, o
totalitarismo no teria se mantido por tanto tempo, no teria
arrastado tantos indivduos em sua senda, se ele fosse assim. Ele ,
ao contrrio, uma mquina de tremenda eficcia. A ideologia comunista
prope a imagem de uma sociedade melhor e nos incita a desej-la: no
faz parte da identidade humana o desejo de transformar o mundo em
nome de um ideal? [...] Alm do mais, a sociedade comunista priva o
indivduo de suas responsabilidades: so sempre eles quem decidem.
Ora, a responsabilidade frequentemente um fardo pesado a ser
carregado. [...] A atrao pelo sistema totalitrio, experimentada
inconscientemente por numerosos indivduos, provm de um certo medo
da liberdade e da responsabilidade - o que explica a popularidade
de todos os regimes autoritrios ( a tese de Erich Fromm em O medo
da liberdade); o que existe uma 'servido voluntria', j dizia La
Botie. A cumplicidade daqueles que enveredaram na servido voluntria
no foi - e continua no sendo - abstrata e terica. O simples fato de
aceitar e/ou assumir uma propaganda destinada a esconder a verdade
demonstrava e continua demonstrando uma cumplicidade ativa. Pois
tornar pblico o nico meio - ainda que no seja sempre eficaz, como
acaba de mostrar a tragdia de Ruanda - de lutar contra os crimes de
massa cometidos em segredo, protegidos dos olhares indiscretos. A
anlise dessa realidade central do fenmeno comunista no poder -
ditadura e terror - no simples. Jean Ellenstein definiu o fenmeno
stalinis-ta como uma mistura de tirania grega e despotismo
oriental. A frmula sedutora, mas no d conta do carter moderno dessa
experincia, de seu alcance totalitrio, distinto das formas
anteriormente conhecidas de ditadura. Um rpido sobrevoo comparativo
permitir uma melhor compreenso. Poder-se-ia inicialmente evocar a
tradio russa da opresso. Os bolcheviques combatiam o regime
terrorista do Czar, que, entretanto, empalidece diante dos horrores
do bolchevismo no poder. O Czar denunciava os prisioneiros polticos
diante de uma verdadeira justia; a defesa podia exprimir-se tanto
quanto ou ainda mais do que a acusao e tomar o testemunho de uma
opinio pblica nacional inexistente no regime comunista e,
sobretudo, de uma opinio pblica internacional. Os prisioneiros e os
condenados se beneficiavam de uma regulamentao nas prises, e o
regime de desterro, ou mesmo o de deportao, era relativamente leve.
Os deportados podiam partir com suas famlias, ler e escrever o que
quisessem: caar, pescar e se encontrarem, nos momentos de lazer,
com seus companheiros de infortnio. Lenin e Stalin puderam
experimentar essa situao pessoalmente. Mesmo as Recordaes da casa
dos mortos, de Dostoievski, que tanto chocaram a opinio pblica na
poca de sua publicao, parecem andinas em face dos horrores do
comunismo. Seguramente, houve, na Rssia dos anos 1880 a 1914,
tumultos populares e insurreies duramente reprimidos por um sistema
poltico arcaico. Porm, de 1825 a 1917, o nmero total de pessoas
condenadas morte nesse pas, por sua opinio ou sua ao poltica, foi
de 6.360, dos quais 3.932 foram executados - 191 de 1825 a 1905, e
3.741 de 1906 a 1910 - quantidade que j havia sido ultrapassada
pelos bolcheviques em maro de 1919, aps somente quatro meses de
exerccio de poder. O balano da represso czarista , assim, sem
paralelo com o do terror comunista. Entre os anos 20 e 40, o
comunismo censurou violentamente o terror praticado pelos regimes
fascistas. Um rpido exame dos nmeros mostra que as coisas no so
assim to simples. O fascismo italiano, o primeiro em ao e tambm
quem abertamente reivindicou para si o ttulo de totalitrio,
aprisionou e com freqncia maltratou seus adversrios polticos.
Entretanto, ele raramente chegou a cometer assassinatos, de modo
que, na metade dos anos 30, a Itlia tinha algumas centenas de
prisioneiros polticos e vrias centenas de confinati - postos em
residncia vigiada nas ilhas -, mas, verdade, tinha tambm dezenas de
milhares de exilados polticos. At a guerra, o terror nazista visou
alguns grupos; os oponentes ao regime - principalmente comunistas,
socialistas, anarquistas, alguns sindicalistas - foram reprimidos
de maneira aberta, encarcerados em prises e sobretudo internados em
campos de concentrao, submetidos a humilhaes severas. No total, de
1933 a 1939, aproximadamente 20.000 militantes de esquerda foram
assassinados com ou sem julgamento nos campos e prises; sem falar
dos acertos de contas internos ao nazismo, como a noite dos punhais
em junho de 1934. Outra categoria de vtimas destinadas morte foram
os alemes que supostamente no correspondiam aos critrios raciais do
grande ariano loiro - doentes mentais, deficientes fsicos, idosos.
Hider decidiu executar seus intentos por ocasio da guerra: 70.000
alemes foram vtimas de um programa de eutansia com asfixia por gs,
entre o fim de 1939 e o incio de 1941, at que as Igrejas
protestassem e que o programa fosse encerrado. Os mtodos de asfixia
por gs aperfeioados na ocasio so os que foram aplicados no terceiro
grupo de vtimas, os judeus. At a guerra, as medidas de excluso
contra eles eram generalizadas, mas sua perseguio teve seu apogeu
na ocasio da Noite de Cristal - vrias centenas de mortos e 35.000
internamentos em campos de concentrao. Foi
- 12. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 13 somente com a guerra, e
sobretudo com o ataque URSS, que se desencadeou o terror nazista,
cujo balano sumrio o seguinte: 15 milhes de civis mortos nos pases
ocupados; 5,1 milhes de judeus; 3,3 milhes de prisioneiros de
guerra soviticos; 1,1 milho de deportados mortos nos campos; vrias
centenas de milhares de ciganos. essas vtimas se juntaram 8 milhes
de pessoas destinadas a trabalhos forados e 1,6 milho de detentos
sobreviventes em campos de concentrao. O terror nazista chocou as
imaginaes por trs razes. Inicialmente, por ter atingido diretamente
os europeus. Por outro lado, uma vez vencidos os nazistas, e com
seus principais dirigentes julgados em Nuremberg, seus crimes foram
oficialmente designados e condenados como tais. Enfim, a revelao do
genocdio dos judeus foi um choque por seu carter de aparncia
irracional, sua dimenso racista, o radicalismo do crime. Nosso
propsito aqui no o de estabelecer uma macabra aritmtica comparativa
qualquer, uma contabilidade duplicada do horror, uma hierarquia da
crueldade. Entretanto, os fatos so tenazes e mostram que os regimes
comunistas cometeram crimes concernentes a aproximadamente 100
milhes de pessoas, contra 25 milhes de pessoas atingidas pelo
nazismo. Essa simples constatao deve, pelo menos, provocar uma
reflexo comparativa sobre a semelhana entre o regime que foi
considerado, a partir de 1945, como o regime mais criminoso do
sculo, e um sistema comunista que conservou, at 1991, toda a sua
legitimidade internacional e que, at hoje, est no poder em alguns
pases, mantendo adeptos no mundo inteiro. Mesmo que muitos dos
partidos comunistas tenham reconhecido tardiamente os crimes do
stalinis-mo, eles no abandonaram, em sua maioria, os princpios de
Lenin e nunca se interrogam sobre suas prprias implicaes no fenmeno
terrorista. Os mtodos postos em prtica por Lenin e sistematizados
por Stalin e seus mulos, no somente lembram os mtodos nazistas como
tambm, e com freqncia, lhes so anteriores. A esse respeito, Rudolf
Hoess, encarregado de criar o campo de Auschwitz, e tambm seu
futuro comandante, sustentou afirmaes bastante indicativas: A direo
da Segurana fizera chegar aos comandantes dos campos uma detalhada
documentao sobre os campos de concentrao russos. Baseando-se nos
testemunhos dos fugitivos, estavam expostas em todos os detalhes as
condies reinantes no local. Destacava-se particularmente que os
russos exterminavam populaes inteiras utilizando-as em trabalhos
forados. Porm, se fato que a intensidade e as tcnicas da violncia
de massa foram inauguradas pelos comunistas e que os nazistas
tenham se inspirado nelas, isto no implica, a nosso ver, que se
possa estabelecer uma relao direta de causa e efeito entre a tomada
do poder pelos bolcheviques e a emergncia do nazismo. Desde o fim
dos anos 20, a GPU (novo nome da Tcheka) inaugurou o mtodo das
quotas: cada regio e cada distrito deviam deter, deportar ou
fuzilar uma determinada percentagem de pessoas pertencentes s
camadas sociais inimigas. Essas percentagens eram definidas
centralmente pela direo do Partido. A loucura planificadora e a
mania estatstica no diziam respeito somente economia; elas tambm se
aplicavam ao domnio do terror. Desde 1920, com a vitria do Exrcito
Vermelho sobre o Exrcito Branco, na Crimia, surgiram mtodos
estatsticos, e mesmo sociolgicos: as vtimas so seleciona-das
segundo critrios precisos, estabelecidos com a ajuda de
questionrios aos quais ningum poderia deixar de responder. Os
mesmos mtodos sociolgicos'' sero postos em prtica pelos soviticos
para organizar as deportaes e execues em massa nos Estados Blticos
e na Polnia ocupada de 1939- 1941. O transporte dos deportados em
vages de animais acarretou as mesmas aberraes que as cometidas pelo
nazismo: em 1943-1944, em plena batalha, Stalin fel com que
milhares de vages e centenas de milhares de homens das tropas
especiais do NKVD deixassem o fronte para assegurar em um curtssimo
espao de tempo a deportao das populaes do Cucaso. Essa lgica do
genocdio - que consiste, retomando o Cdigo Penal francs, na
destruio total ou par cial de um grupo nacional, tnico, racial ou
religioso, ou de um determinado grupo, a partir de qualquer outro
critrio arbitrrio - aplicada pelo poder comunista a grupos
designados como inimigos, a fraes de sua prpria socie dade, foi
conduzida ao seu paroxismo por Pol Pot e seus khmers vermelhos.
Fazer a aproximao entre o nazismo e o comunismo, no que diz
respeito a seus respectivos extermnios, pode chocar. Entretanto,
Vassili Grossman - cuja me foi morta pelos nazistas no gueto de
Berditchev, escritor do primeiro texto sobre Treblinka e tambm um
dos mestres do Livre noir sobre o extermnio dos judeus na URSS -
que, em seu relato Tout passe, faz um de seus personagens dizer a
respeito da fome na Ucrnia: Os escritores e o prprio Stalin diziam
todos a mesma coisa: os kulaks so parasitas, eles queimam o trigo,
matam as crianas. E nos disseram sem rodeios: preciso que as massas
se revoltem contra eles, para aniquil-los todos, enquanto classe,
esses mal ditos. E acrescenta: Para mat-los, seria preciso
declarar: os kulaks no so seres humanos. Do mesmo modo que os
alemes diziam: os judeus no so seres humanos. Foi o que Lenin e
Stalin disseram: os kulaks no so seres humanos. E Grossman conclui,
a respeito das crianas kulaks: como os alemes que assassinaram as
crianas judias nas cmaras de gs: vocs no tm direito de viver, vocs
so judeus. cada vez, no so tanto os indivduos que so atingidos, mas
os grupos. O terror tem como objetivo exterminar um grupo designado
como inimigo, que, na verdade, constitui-se somente como uma frao
da sociedade, mas que atingido enquanto tal por uma lgica do
genocdio. Assim, os mecanismos de segregao e de excluso do
- 13. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 14 totalitarismo da classe
se parecem singularmente queles do totalitarismo da raa. sociedade
nazista futura devia ser construda em torno da raa pura; a
sociedade comunista futura, em torno de um povo proletrio,
purificado de toda escria burguesa. O remodelamento dessas duas
sociedades foi planejado do mesmo modo, apesar de os critrios de
excluso no serem os mesmos. Portanto, falso pretender que o
comunismo seja um universalismo: se o projeto tem uma vocao
mundial, uma parte da humanidade declarada indigna de existir neste
mundo, como no caso do nazismo; a diferena que um recorte por
estratos (classes) substitui o recorte racial e territorial dos
nazistas. Logo, os empreendimentos leninista, stalinista, maosta e
a experincia cambojana pem humanidade - assim como aos juristas e
historiadores - uma nova questo: como qualificar o crime que
consiste em exterminar, por razes poltico- ideolgicas, no mais
indivduos ou grupos limitados de oponentes, mas partes inteiras da
sociedade? preciso inventar uma nova denominao? Alguns autores
anglo-saxes pensam dessa forma, criando o termo politicdio. Ou
preciso chegar, como o fazem os juristas tchecos, a qualificar os
crimes cometidos pelos regimes comunistas como crimes comunistas? O
que se sabia dos crimes do comunismo? O que se queria saber? Por
que foi preciso esperar o fim do sculo para que esse tema obtivesse
o status de objeto de cincia? Pois evidente que o estudo do terror
stalinista e comunista em geral, comparado ao estudo dos crimes
nazistas, tem um enorme atraso a recuperar, mesmo que, no Leste, os
estudos se multipliquem. Um grande contraste no pode deixar de nos
causar surpresa: foi com legitimidade que os vencedores em 1945
situaram o crime - e em particular o genocdio dos judeus - no
centro de sua condenao ao nazismo. Numerosos pesquisadores em todo
o mundo trabalham h dcadas sobre essa questo. Milhares de livros
lhe foram consagrados, dezenas de filmes, dos quais alguns muito
famosos nos mais diferentes gneros - Noite e Neblina ou Shoah, A
Escolha de Sofia ou A Lista de Schindler. Raul Hilberg, para
citarmos apenas um autor, fez da descrio detalhada das modalidades
da matana aos judeus no III Reich o centro de sua obra mais
importante. Ora, no existe um trabalho como esse sobre a questo dos
crimes comunistas. Enquanto que nomes como os de Himmler ou o de
Eichman so conhecidos em todo o mundo como smbolos da barbrie
contempornea, os de Dzerjinski, lagoda ou de lejov so ignorados da
maioria. Quanto a Lenin, Mo, Ho Chi Minh e o prprio Stalin, eles
sempre foram tratados com uma surpreendente reverncia. Um rgo do
Estado francs, a Loto, chegou a ter a inconscincia de associar
Stalin e Mo a uma de suas campanhas publicitrias! Quem teria a idia
de utilizar Hitler ou Goebbels numa operao semelhante? A ateno
excepcional concedida aos crimes hitleristas perfeitamente
justificada. Ela responde vontade dos sobreviventes de testemunhar,
dos pesquisadores de compreender e das autoridades morais e
polticas de confirmar os valores democrticos. Mas por que os
testemunhos dos crimes comunistas tm uma repercusso to fraca na
opinio pblica? Por que o silncio constrangido dos polticos? E,
sobretudo, por que um silncio acadmico sobre a catstrofe comunista
que atingiu, h aproximadamente 80 anos, um tero da espcie humana,
sobre quatro continentes? Por que essa incapacidade de situar no
centro da anlise do comunismo um fator to essencial quanto o crime,
o crime de massa, o crime sistemtico, o crime contra a humanidade?
Estamos diante de uma impossibilidade de compreenso? No se trata,
antes, de uma recusa deliberada de saber, de um medo de
compreender? As razes dessa ocultao so mltiplas e complexas.
Inicialmente, estava em jogo a vontade clssica e constante dos
carrascos de apagar as marcas de seus crimes e de justificar o que
eles no podiam esconder. O relatrio secreto de Kruschev (1956), que
se constituiu como o primeiro reconhecimento dos crimes comunistas
pelos prprios dirigentes comunistas, tambm o relato de um carrasco
que vai procurar mascarar e encobrir seus prprios crimes - como
chefe do Partido Comunista ucraniano no auge do terror -
atribuindo-os somente a Stalin e valendo-se do fato de que obedecia
a ordens; ocultar a maior parte do crime - ele fala somente das
vtimas comunistas, bem menos numerosas do que todas as outras;
atenuar o significado desses crimes - ele os qualifica como abusos
cometidos pelo regime stalinista; e, enfim, justificar a
continuidade do sistema com os mesmos princpios, as mesmas
estruturas e os mesmos homens. Kruschev nos d um testemunho franco,
relacionando as oposies com as quais ele se chocou ao preparar o
relatrio secreto, particularmente no que diz respeito ao homem de
confiana de Stalin: Kaganovitch era de tal modo um adulador, que
ele teria cortado a garganta de seu pai se Stalin assim o ordenasse
com uma piscada de olhos, dizendo-lhe que era no interesse da
Causa: a causa stalinista, claro, f...] Ele argumentava contra mim
por causa do medo egosta de perder o pescoo. Ele obedecia ao desejo
impaciente de fugir a toda responsabilidade. Se havia crimes,
Kaganovitch queria somente uma coisa: estar certo de que suas
marcas foram apagadas. O fechamento absoluto dos arquivos dos pases
comunistas, o controle total da imprensa, da mdia e de todas as
sadas para o exterior, a propaganda do sucesso do regime, toda essa
mquina de ocultar informaes visava, em primeiro lugar, impedir que
viesse luz a verdade sobre os crimes. No contentes em esconder seus
delitos, os carrascos combateram por todos os meios aqueles que
tentavam relat-los. Pois alguns observadores e analistas tentaram
esclarecer seus contemporneos. Aps a Segunda Guerra
- 14. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 15 Mundial, isso foi
particularmente claro em duas ocasies na Frana. De janeiro a abril
de 1949 teve lugar em Paris o processo que ops Victor Kravchenko -
um ex-alto funcionrio sovitico que havia escrito Jai choisi Ia
liberte, livro no qual era descrita a ditadura stalinista - ao
jornal comunista dirigido por Louis Aragon, Ls Lettres Franaises,
que cobria Kravchenko de injrias. Teve lugar tambm em Paris, de
novembro de 1950 a janeiro de 1951, um outro processo entre Ls
Lettres Franaises (mais uma vez) e David Rousset, um intelectual,
ex-trotskista, deportado da Alemanha pelos nazistas e que, em 1946,
havia recebido o prmio Renaudot por seu livro LUniven
concentrationnaire; Rousset convocara, em 12 de novembro de 1949,
todos os antigos deportados dos campos nazistas para formar uma
comisso de investigao sobre os campos soviticos, sendo ento
violentamente atacado pela imprensa comunista, que negava a
existncia desses campos. Em seguida convocao feita por Rousset, em
25 de fevereiro de 1950, num artigo do Figaro littraire intitulado
Pour lenqute sur les camps sovitiques. Qui est pire, Satan ou
Belzbuth? Margaret Buber-Neumann expunha sua dupla experincia de
deportada dos campos nazistas e soviticos. Contra todos esses
esclarecedores da conscincia humana, os carrascos desenvolveram,
num combate sistemtico, todo o arsenal dos grandes Estados
modernos, capazes de intervir no mundo inteiro. Eles procuraram
desqualific-los, desacredit-los, intimid-los. A. Soljenitsyne, V.
Bukovsky, A. Zinoviev L. Plichki foram expulsos de seu pas, Andr
Sakharov foi exilado em Gorki, o general Piotr Grigorenko,
abandonado num hospital psiquitrico, Markov, assassinado com um
guarda-chuva envenenado. Diante de tal poder de intimidao e de
ocultao, as prprias vtimas hesitavam em se manifestar, tornando-se
incapazes de reintegrar a sociedade onde desfilavam seus delatores
e carrascos. Vassili Grossman20 narra essa desesperana. Ao contrrio
da tragdia dos judeus - em relao qual a comunidade judia
internacional encarregou-se da celebrao dos mortos do genocdio -
durante muito tempo foi impossvel s vtimas do comunismo e aos seus
interessados manter uma memria viva da tragdia, estando proibido
qualquer tipo de celebrao ou demanda de reparao. Quando no
conseguiam manter a verdade escondida - a prtica dos fuzilamentos,
os campos de concentrao, a fome imposta -, os carrascos tramavam a
justificao dos fatos maquiando-os grosseiramente. Depois de terem
reivindicado o terror, eles o erigiram como figura alegrica da
revoluo: quando se corta a floresta, as farpas voam, no se pode
fazer uma omelete sem se quebrarem os ovos. A isto Vladimir
Bukovski replicava ter visto os ovos quebrados, mas no ter nunca
provado omeletes. Mas, sem dvida, foi com a perverso da linguagem
que se chegou ao pior. Atravs da magia vocabular, o sistema dos
campos de concentrao tornou-se obra de reeducao, e os carrascos,
educadores aplicados em transformar os homens de uma sociedade
antiga em homens novos. Pedia-se, atravs da fora, aos zeks - termo
que designa os prisioneiros dos campos de concentrao soviticos -
para que acreditassem num sistema que os subjugava. Na China, o
interno na concentrao denominado estudante: ele deve estudar o
pensamento justo do partido e reformar o seu prprio pensamento
imperfeito. Como acontece com freqncia, a mentira no , strcto
sensu, o inverso da verdade, e toda mentira se apoia sobre
elementos verdadeiros. As palavras pervertidas aparecem como uma
viso deslocada que deforma a perspectiva de conjunto: somos
confrontados a um astigmatismo social e poltico. Ora, fcil corrigir
a percepo deformada pela propaganda comunista, mas muito difcil
reconduzir aquele que percebeu erroneamente a uma concepo
intelectual pertinente. A impresso primeira permanece e torna-se
preconceito. Como fazem os praticantes do judo - e graas a sua
incomparvel potncia propagandista, amplamente baseada na perverso
da linguagem -, os comunistas utilizaram toda a fora das crticas
feitas aos seus mtodos terroristas para retorn-las contra essas
prprias crticas, reunindo, a cada vez, as fileiras de seus
militantes e simpatizantes na renovao do ato de f comunista. Assim,
eles reencontraram o princpio primeiro da crena ideolgica,
formulada por Tertuliano, em sua poca: Creio porque absurdo. No
contexto dessas operaes de contrapropaganda, os intelectuais,
literalmente, se prostituram. Em 1928, Gorki aceitou ir em excurso
s ilhas Solovki, um campo de concentrao experimental que, atravs de
suas metstases (Soljenitsyne), dar origem ao sistema do Gulag. Ele
trouxe de l um livro exaltando Solovki e o governo sovitico. Henri
Barbusse, escritor francs ganhador do Goncourtfreqncia de 1916, no
hesitou, em troca de uma recompensa financeira, em exaltar o regime
stalinista, publicando, em 1928, um livro sobre a maravilhosa
Gergia - onde, precisamente em 1921, Stalin e seu aclito
Ordjonikidze se entregaram a uma verdadeira carnificina, e onde
Beria, chefe do NKVD, se fazia notar por seu maquiavelismo e seu
sadismo - e, em 1935, a primeira biografia oficiosa de Stalin. Mais
recentemente, Ma-ria-Antonietta Macciochi fez a apologia de Mo,
Alain Peyrefitte lhe fez coro, enquanto Danielle Mitterrand
passeava ao lado de Castro. Cupidez, apatia, vaidade, fascinao pela
fora e pela violncia, paixo revolucionria: qualquer que seja a
motivao, as ditaduras totalitrias sempre encontraram os bajuladores
dos quais necessitavam, tanto a ditadura comunista quanto as
outras. Diante da propaganda comunista, o Ocidente mostrou-se
durante muito tempo de uma cegueira excepcional, mantida tanto pela
inocncia em face de um sistema astuto, quanto pelo medo da potncia
sovitica, sem falar do cinismo dos polticos e dos interesseiros.
Cegueira presente em Yalta, quando o presidente Roosevelt deixou o
Leste Europeu entregue a Stalin, contra a promessa, redigida de
forma clara e limpa, de que ele organizaria eleies livres na
- 15. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 16 regio o mais rapidamente
possvel. O realismo e a resignao estavam presentes em Moscou
quando, em dezembro de 1944, o General de Gaulle trocou o abandono
da infeliz Polnia ao Moloch pela garantia da paz social e poltica,
assegurada pela volta de Maurice Thorez a Paris. Cegueira que foi
fortalecida, quase que legitimada, por uma crena - entre os
comunistas ocidentais e muitos homens de esquerda - segundo a qual
esses pases estavam construindo o socialismo, e que a utopia que
nas democracias alimentava os conflitos sociais e polticos
tornava-se para eles uma realidade cujo prestgio Simone Weil
destacou: Os trabalhadores revolucionrios so felizes por terem um
Estado por detrs deles - um Estado que d s suas aes esse carter
oficial, uma legitimidade, uma realidade que somente ele, o Estado,
pode conferir, e que, ao mesmo tempo, est situado longe deles o
suficiente para no causar-lhes desgosto. O comunismo apresentava,
ento, sua face clara: ele se declarava Iluminado, inserido numa
tradio de emancipao social e humana, de sonho da igualdade real e
da felicidade para todos inaugurada por Gracchus Babeuf. essa face
luminosa que ocultava quase que totalmente a face das trevas.
ignorncia - desejada ou no - da dimenso criminosa do comunismo
juntou-se, como sempre, a indiferena de nossos contemporneos para
com seus irmos humanos. No que o homem tenha o corao de pedra. Pelo
contrrio, em inmeras situaes-limite, ele mostra insuspeitadas
fontes de solidariedade, de amizade, de afeio e mesmo de amor.
Entretanto, como destaca Tzvetan Todorov, a memria de nossos lutos
nos impede de percebermos o sofrimento dos outros. E, terminada a
Primeira e, em seguida, a Segunda Guerra Mundial, que povo europeu
ou asitico no estava ocupado em curar as chagas de inmeros lutos?
As dificuldades encontradas na prpria Franca no afrontamento dos
anos sombrios so suficientemente eloquentes. A histria - ou melhor,
a no-histria - da Ocupao continua a envenenar a conscincia
francesa. Acontece o mesmo, talvez com menos intensidade, com a
histria dos perodos nazi na Alemanha, fascista na Itlia, franquista
na Espanha, da guerra civil na Grcia, etc. Neste sculo de ferro e
sangue, cada um esteve demasiadamente ocupado com suas prprias
mazelas para poder compadecer-se das dos outros. A ocultao da
dimenso criminosa do comunismo remete, porm, a trs razes
especficas. A primeira refere- se ao apego prpria idia da revoluo.
Ainda hoje, o luto dessa ideia, tal como ela foi preconizada nos
sculos XIX e XX, est longe de terminar. Seus smbolos - bandeira
vermelha, a Internacional, punho erguido - ressurgem por ocasio de
todo movimento social importante. Che Guevara retorna moda. Grupos
declaradamente revolucionrios permanecem ativos e se manifestam com
toda legalidade, tratando com desprezo a menor reflexo crtica sobre
os crimes dos seus predecessores e no hesitando em reiterar os
velhos discursos justificativos de Lenin, de Trotski ou de Mo.
Paixo revolucionria que no acometeu somente aos outros. Muitos dos
prprios autores deste livro acreditaram durante algum tempo na
propaganda comunista. A segunda razo refere-se participao dos
soviticos na vitria sobre o nazismo, o que permitiu aos comunistas
mascarar sob um patriotismo intenso seus fins ltimos, que visavam
tomada do poder. A partir de junho de 1941, os comunistas do
conjunto dos pases ocupados entraram numa resistncia ativa - e com
freqncia armada - ocupao nazista ou italiana. Do mesmo modo que os
demais resistentes aos regimes de sujeio, eles tiveram de pagar o
imposto da represso, com milhares de fuzilados, massacrados,
deportados. Eles se serviram desses mrtires para sacralizar a causa
do comunismo e proibir toda crtica a seu respeito. Alm disso, no
curso dos combates da Resistncia, muitos dos no-comunistas
estabeleceram laos de solidariedade, de combate, de sangue com
comunistas, o que impediu que muitos olhos se abrissem; na Frana, a
atitude dos gaullistas foi com freqncia comandada por essa memria
comum e encorajada pela poltica do general de Gaulle que utilizava
o contrapeso sovitico diante dos americanos. A participao dos
comunistas na guerra e na vitria sobre o nazismo fez triunfar
definitivamente a noo de antifascismo como critrio de verdade da
esquerda, e, certamente, os comunistas se colocaram como os
melhores representantes e os melhores defensores desse
antifascismo. O antifascismo tornou-se um rtulo definitivo para o
comunismo, sendo fcil, em nome do antifascismo, silenciar os
recalcitrantes. Franois Furet escreveu pginas esclarecedoras sobre
esse assunto crucial. Com o nazismo vencido, designado pelos
Aliados como o Mal Absoluto, o comunismo saltou quase que
mecanicamente para o campo do Bem. O que ocorreu, evidentemente, na
ocasio do processo de Nuremberg, quando os soviticos estiveram
sentados no banco da acusao. Assim, episdios embaraosos para os
valores democrticos foram escamoteados, tais como os pactos
germano-soviticos de 1939 ou o massacre de Katyn. A vitria sobre o
nazismo deveria supostamente fornecer a prova da superioridade do
sistema comunista. Na Europa libertada pelos anglo-americanos, ela
teve, sobretudo, o efeito de suscitar um duplo sentimento de
gratido para com o Exrcito Vermelho (do qual no se teve que
suportar a ocupao) e de culpa em face dos sacrifcios suportados
pela populao da URSS, sentimentos que a propaganda comunista no
hesitou em manipular a fundo. Paralelamente, as modalidades de
libertao feitas pelo Exrcito Vermelho no Leste Europeu permanecem
amplamente desconhecidas no Ocidente, onde os historiadores
assimilaram dois tipos de libertao bastante diferentes: o primeiro
deles conduzia restaurao das democracias, o outro abria caminho
instaurao das ditaduras.
- 16. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 17 Na Europa Central e no
Leste Europeu, o sistema sovitico postulava sucesso do Reich de mil
anos, e Witold Gombrowicz exprimiu em poucas palavras o drama
desses povos: O fim da guerra no trouxe libertao aos poloneses.
Nesta triste Europa Central, significou somente a troca de uma
noite por outra, dos carrascos de Hitler pelos de Stalin. No
momento exato em que, nos cafs parisienses, as nobres almas
saudavam com um canto radiante a 'emancipao do povo polons do jugo
feudal', na Polnia, o mesmo cigarro aceso simplesmente mudava de mo
e continuava a queimar a carne humana. Aqui reside a falha entre
duas memrias europias. Entretanto, certas obras revelaram
rapidamente a maneira pela qual a URSS libertou do nazismo
poloneses, alemes, tchecos e eslovacos. A ltima razo dessa ocultao
a mais sutil, e tambm a mais delicada a exprimir. Aps 1945, o
genocdio dos judeus apareceu como o paradigma da barbrie moderna,
chegando mesmo a ocupar todo o espao reservado percepo do terror de
massa no sculo XX. Aps negarem, durante algum tempo, a
especificidade da perseguio dos nazistas aos judeus, os comunistas
compreenderam toda a vantagem que eles podiam tirar de um tal
reconhecimento, reutilizando regularmente o antifascismo. O
espectro do animal imundo cujo ventre ainda fecundo - segundo a
frmula famosa de Bertolt Brecht - foi agitado com freqncia, com ou
sem motivo justificado. Mais recentemente, o fato de ter sido posta
em evidncia a singularidade no genocdio dos judeus, focalizando a
ateno sobre sua atrocidade excepcional, tambm impediu que se
percebessem outras realidades da mesma natureza no mundo comunista.
Como imaginar que eles prprios, que tinham contribudo com sua
vitria na destruio de um sistema de genocdio, pudessem tambm
praticar os mesmos mtodos? A reao mais corrente foi a recusa em
admitir tal paradoxo. A primeira grande virada no reconhecimento
oficial dos crimes comunistas situa-se em 24 de fevereiro de 1956.
Nessa noite, Nikita Kruschev, primeiro-secretrio, vem tribuna do XX
Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica, o PCUS. A sesso a
portas fechadas; somente os delegados do congresso esto presentes.
Em silncio absoluto, aterrorizados, eles escutam o
primeiro-secretrio do Partido destruir metodicamente a imagem do
pequeno pai dos povos, do Stalin genial que foi, durante 30 anos, o
heri do comunismo mundial. Esse relato, conhecido como o relatrio
secreto, constitui uma das inflexes fundamentais do comunismo
contemporneo. Pela primeira vez, um dirigente comunista do mais
alto escalo reconheceu oficialmente, ainda que assistido somente
pelos comunistas, que o regime que tomara o poder em 1917 cometera
uma deriva criminosa. As razes que levaram o Senhor K a quebrar um
dos maiores tabus do regime sovitico eram mltiplas. Seu principal
objetivo era o de imputar os crimes do comunismo somente a Stalin,
circunscrevendo e extraindo o mal para poder salvar o regime. Tambm
fazia parte de sua deciso a vontade de atacar o cl dos stalinistas
que se opunham a seu poder em nome dos mtodos de seu antigo chefe.
Alis, aps o vero de 1957, esses homens foram demitidos de todas as
suas funes. Contudo, pela primeira vez desde 1934, a morte poltica
destes ltimos no foi acompanhada da morte real, podendo-se inferir,
atravs desse simples detalhe, que as razes de Kruschev eram mais
profundas. Ele, que tinha sido durante anos o grande chefe da
Ucrnia e, por isso mesmo, havia conduzido e acobertado gigantescas
chacinas, parecia cansado de todo esse sangue. Em suas memrias,
onde, sem dvida, tem o papel de mocinho, Kruschev relembra o que
lhe passava pelo esprito: O Congresso vai terminar; resolues sero
tomadas, todas para cumprir com as formalidades. Mas para qu?
Aqueles que foram fuzilados s centenas de milhares permanecero em
nossas conscincias. Ao mesmo tempo, ele censura duramente seus
camaradas: O que faremos com os que foram detidos, assassinados?
[...] Sabemos agora que as vtimas das represses eram inocentes.
Temos a prova irrefutvel de que, longe de serem inimigos do povo,
eram homens e mulheres honestos, devotados ao Partido, Revoluo,
causa leninista da edificao do socialismo e do comunismo. [...]
impossvel tudo esconder. Cedo ou tarde, os que esto na priso, nos
campos, sairo e retornaro a suas casas. Eles relataro ento aos seus
parentes, seus amigos, seus camaradas o que lhes aconteceu. [...]
por isso que somos obrigados a confessar aos delegados tudo a
respeito do modo como o Partido foi dirigido naqueles anos. [...]
Como pretender nada saber do que acontecia? [...] Sabemos que
reinava a represso e a arbitrariedade no Partido, e devemos dizer
ao Congresso o que sabemos. [...] Na vida de todos os que cometeram
um crime, vem o momento em que a confisso assegura a indulgncia, e
mesmo a absolvio. Em alguns dos homens que haviam participado
diretamente dos crimes perpetrados pelo regime stalinista - e que,
em sua maioria, deviam sua promoo ao extermnio de seus
predecessores na funo - emergia um certo tipo de remorso; um
remorso constrangido, claro, um remorso interesseiro, um remorso
poltico, mas, ainda assim, um remorso. Efetivamente, era preciso
que algum terminasse com o massacre; Kruschev teve essa coragem,
mesmo no tendo hesitado, em 1956, em enviar uma frota de tanques
soviticos a Budapeste. Em 1961, na ocasio do XXII Congresso do
PCUS, Kruschev evocou no somente as vtimas comunistas, mas tambm
todo o conjunto das vtimas de Stalin, chegando a propor que fosse
erigido um monumento em memria delas. Sem dvida, ele havia
transposto o limite invisvel alm do qual o prprio princpio do
regime estava posto em causa: o monoplio do poder absoluto
reservado ao Partido Comunista. O monumento jamais veio luz. Em
1962, o primeiro-
- 17. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 18 secretrio autorizou a
publicao de Une journe d'Ivan Denissovitch, de Alexandre
Soljenitsyne. Em 24 de outubro de 1964, Kruschev foi brutalmente
demitido de todas as suas funes, mas ele tampouco foi assassinado,
morrendo no anonimato em 1971. Todos os analistas reconhecem a
importncia decisiva do relatrio secreto que provocou a ruptura
fundamental na trajetria do comunismo no sculo XX. Franois Furet,
que justamente acabava de deixar o Partido Comunista Francs em
1954, escreve a este respeito: Ora, eis que o 'relatrio secreto' de
fevereiro de 1956 transtorna de uma s vez, assim que ele veio a
pblico, o estatuto da idia comunista no universo. A voz que
denuncia os crimes de Stalin no vem mais do Ocidente, mas de
Moscou, e do santo dos santos de Moscou, o Kremlin. No se trata
mais de um comunista infringindo seu exlio, mas do primeiro dos
comunistas no mundo, o chefe do Partido Comunista da Unio Sovitica.
Ento, em lugar de ser alvo das suspeitas que acometem os discursos
dos ex-comunistas, esta voz est investida da autoridade suprema
outorgada pelo sistema ao seu chefe. [...] O extraordinrio poder do
'relatrio secreto' sobre as conscincias vem do fato de ele no ter
contraditores. Desde o comeo, o evento era to paradoxal, que
numerosos contemporneos haviam prevenido os bolcheviques contra os
perigos de seus procedimentos. Desde 1917-1918 batiam-se no prprio
interior do movimento socialista os que acreditavam no grande claro
do Leste e os que criticavam sem remisso os bolcheviques. A disputa
recaa essencialmente sobre o mtodo de Lenin: violncia, crimes,
terror. Enquanto que, dos anos 20 aos anos 50, o lado sombrio da
experincia bolchevique foi denunciado por numerosas testemunhas,
vtimas, observadores qualificados, e tambm por incontveis artigos e
obras, foi preciso esperar que os prprios comunistas no poder
reconhecessem essa realidade - ainda que de modo limitado - para
que uma frao cada vez maior da opinio pblica pudesse tomar
conhecimento do drama. Reconhecimento enviesado, j que o relatrio
secreto abordava somente a questo das vtimas comunistas. Ainda
assim, um reconhecimento que trazia a primeira confirmao de
testemunhos e estudos anteriores, e que corroborava o que muitos
desconfiavam h bastante tempo: o comunismo havia provocado na Rssia
uma imensa tragdia. Os dirigentes de muitos dos partidos irmos no
se persuadiram, de imediato, de que era preciso que se engajassem
no caminho das revelaes. Ao lado do precursor Kruschev, eles
pareciam um tanto retardados: foi necessrio esperar 1979 para que o
Partido Comunista chins distinguisse na poltica de Mo grandes
mritos - at 1957 - e grandes erros em seguida. Os vietnamitas
somente abordam essa questo luz da condenao do genocdio perpetrado
por Pol Pot. Quanto a Castro, ele nega as atrocidades cometidas sob
sua gide. At ento, a denncia dos crimes comunistas vinha somente da
parte dos seus inimigos, dos dissidentes trotskistas ou dos
anarquistas; e ela no tinha sido particularmente eficaz. A vontade
de testemunhar era to forte nos sobreviventes dos massacres
comunistas quanto nos sobreviventes dos massacres nazistas. Mas
eles foram muito pouco - ou quase nada - escutados, em particular
na Frana, onde a experincia concreta do sistema de campos de
concentrao sovitico s afetou diretamente a grupos restritos, tais
como os Malgr-nous da Alsace-Lorraine.^ Na maior parte das vezes,
os testemunhos, as erupes de memria, os trabalhos das comisses
independentes criadas sob a iniciativa de algumas pessoas - assim
como a Commission Internationale sur l regime concentrationnaire,
de David Rousset, ou a Commission pour Ia vritsur ls crimes de
Stalinefreqncia - foram encobertos pelo tamanho da verba para a
propaganda comunista, acompanhado por um silncio covarde ou
indiferente. Esse silncio, que sucede geralmente a algum momento de
sensibilizao provocado pela emergncia de uma obra - UArchipel du
Goulag, de Soljenitsyne -. ou de um testemunho mais incontestvel do
que outros - Ls Rcits de Ia Kolyma, de Variam Chalamov, ou LUtopie
meurtrire, de Pin Yathay -, mostra uma resistncia prpria aos vrios
e diferentes segmentos das sociedades ocidentais no que diz
respeito ao fenmeno comunista; eles se recusam, at o momento, a
encarar a realidade: o sistema comunista comporta, ainda que em
graus diversos, uma dimenso fundamentalmente criminosa. Com esta
recusa, as sociedades participaram da mentira, no sentido aludido
por Nietzsche: Recusar-se a ver algo que se v; recusar-se a ver
algo como se v. A despeito de todas essas dificuldades na abordagem
da questo, vrios observadores tentaram a empreitada. Dos anos 20
aos anos 50 - na falta de dados mais confiveis, cuidadosamente
dissimulados pelo regime sovitico - a pesquisa repousava
essencialmente sobre os testemunhos dos desertores. Suscetveis de
estarem imbudos de um esprito vingativo, ou difamatrio, ou ainda de
serem manipulados por um poder anticomunista, esses testemunhos -
passveis de contestao pelos historiadores, como todo testemunho -
eram frequentemente desconsiderados pelos bajuladores do comunismo.
O que se poderia pensar, em 1959, da descrio do Gulag feita por um
desertor dos altos escales da KGB, tal como ela fora recuperada no
livro de Paul Barton32 E o que pensar de Paul Barton, ele prprio um
exilado tcheco, cujo verdadeiro nome Jiri Veltrusky, um dos
organizadores da insurreio antinazista de 1945 em Praga, obrigado a
fugir de seu pas em 1948? Ora, a confrontao com os arquivos
doravante abertos mostra que essa informao era perfeitamente
confivel. Nos anos 70 e 80, a grande obra de Soljenitsyne LArchipel
du Goulag, e depois o ciclo dos Ns da Revoluo Russa - provocou um
verdadeiro choque na opinio pblica. Sem dvida, um efeito produzido
muito mais
- 18. Stphane Courtois e outros - O Livro Negro do Comunismo -
Crimes, Terror e Represso by PapaiNoel 19 pela literatura, pelo
cronista genial, do que por uma tomada de conscincia geral do
horrvel sistema por ele descrito. Entretanto, Soljenitsyne
encontrou dificuldades em perfurar a crosta da mentira, chegando a
ser comparado, em 1975, por um jornalista de um grande jornal
francs, a Pierre Lavai, Doriot e Dat, que acolhiam os nazistas como
libertadores. Seu testemunho foi, todavia, decisivo para uma
primeira tomada de conscincia, assim como o de Chalamov sobre a
Kolyma, ou o de Pin Yathay sobre o Camboja. Mais recentemente,
Vladimir Bukovski, uma das principais figuras da dissidncia
sovitica no perodo Brejnev, ergueu um novo grito de protesto que
reclamava, sob o ttulo Jugement Moscou, a instaurao de um novo
tribunal de Nuremberg para julgar as atividades criminosas do
regime; seu livro foi recebido no ocidente com grande sucesso de
crtica, mas no de pblico. Simultaneamente, vemos as publicaes que
tentam a reabilitao de Stalin35 florescerem. Que motivao pode
encorajar, neste fim de sculo XX, a explorao de um domnio to
trgico, to tenebroso, to polmico? Hoje, no somente os arquivos
confirmam a exatido desses testemunhos, como tambm permitem ir
muito mais adiante. Os arquivos internos do sistema de represso da
ex-Unio Sovitica, das ex- democracias populares e do Camboja
evidenciam uma realidade aterradora: o carter macio e sistemtico do
terror, que, em vrios casos, conduziu ao crime contra a humanidade.
Chegou o momento de abordar de maneira cientfica - documentada por
fatos incontestveis, e livre das implicaes pol-tico-ideolgicas que
a sobrecarregavam - a questo recorrente que todos os observadores
se puseram: que lugar ocupa o crime no sistema comunista? Nessa
perspectiva, qual pode ser a nossa contribuio especfica? Procuramos
utilizar procedimentos que respondam, em primeiro lugar, a um dever
para com a histria. Nenhum tema tabu para o historiador, e as
implicaes e presses de todo tipo - polticas, ideolgicas, pessoais -
no devem impedi-lo de seguir o caminho do conhecimento, da exumao e
da interpretao dos fatos, sobretudo quando estes estiveram por um
longo tempo voluntariamente enterrados no segredo dos arquivos e
das conscincias. Ora, a histria do terror comunista constitui-se
como um dos maiores panos de fundo da histria europeia, sustentando
com firmeza os dois extremos da grande questo historiogrfica do
totalitarismo. Este ltimo teve uma verso hitlerista como tambm as
verses leninista e stalinista, no sendo mais aceitvel elaborar uma
histria hemiplgica, que ignore a vertente comunista. Do mesmo modo,
a posio defensiva que consiste em reduzir a histria do comunismo
unicamente a sua dimenso nacional, social e cultural insustentvel.
Sobretudo porque o fenmeno totalitrio no se limitou Europa e ao
episdio sovitico. Ela compreende tambm a China maosta, a Coreia do
Norte, o Camboja de Pol Pot. Cada comunismo nacional esteve ligado
por algum tipo de cordo umbilical matriz russa e sovitica, o que
tambm contribuiu para o progresso desse movimento mundial. A
histria com a qual nos confrontamos a de um fenmeno que se
desenvolveu em todo o mundo e que diz respeito a toda a humanidade.
O segundo dever ao qual responde esta obra o de um dever para com a
memria. E uma obrigao moral honrar a memria dos mortos, sobretudo
quando so vtimas inocentes e annimas do Moloch conduzido por um
poder absoluto que procurou, inclusive, apagar a sua