"Caça aos cafés que alugam quartos insalubres", no jornal CONTACTO

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18 G R A N D E R E P O R T A G E M 19G R A N D E R E P O R T A G E M21 de Janeiro de 200921 de Janeiro de 2009

Imigrantes portugueses a morar em quartos alugados em cafés vivem situações de precariedade

"Quem está mal, muda-se"José (nome fictício), de 58 anos,está no Luxemburgo há apenas 10meses, mas já passou por três pen-sões em cafés diferentes.

Deixou a mulher, três filhos e doisnetos em Portugal para "procurarsustento e tentar endireitar a vida":o negócio de sapatos que exploravano Norte do país, uma empresafamiliar, "correu mal", a mulher estádesempregada, e o apartamento emque vivem não está ainda pago.

No Luxemburgo começou por la-var pratos, a ganhar salário mínimo(cerca de 1.300 euros líquidos pormês), e os quartos alugados foram aúnica opção para não ficar na rua.

"Vim para o Luxemburgo atravésde um casal amigo, mas quinze diasdepois abandonaram-me. Cheguei ater de lhes pedir uma ajuda finan-ceira, porque estive um mês semconseguir arranjar trabalho, mas aofim de duas semanas fiquei com aimpressão de que queriam ver-selivres de mim", conta em voz pau-sada.

Foi viver para um quarto numcafé em Differdange explorado por

portugueses, mas a estadia só duroutrês semanas. Uma zaragata entre oproprietário e um dos hóspedesatraiu a atenção da comuna, quedetectou um número excessivo depessoas hospedadas, e José acaboupor ter de sair. Contrariado: parti-lhava um quarto de 12 m2 comoutra pessoa, dividia a única casa-de-banho com mais "oito ou nove",mas não se queixava das condiçõesnem dos 550 euros que pagava pelacama e alimentação, "muita, mas demá qualidade".

"Quando a gente é imigrante temde ter espírito de sacrifício. Como éque se pode chegar a qualquer partedo mundo sem conhecer ninguém,de mãos a abanar, e ainda vir comexigências? Então que não venha;fique no seu país, se lá lhe dãomelhores condições de vida!", pro-testa.

Quando lhe recordamos que osimigrantes têm os mesmos direitosque qualquer cidadão e que a leiluxemburguesa proíbe o arrenda-mento de alojamentos insalubres ouexíguos (ver caixa), José insiste:

"Quem está mal, muda-se: se ti-vesse dinheiro também preferia irpara um hotel, assim tenho de mesujeitar". Até porque não fala ne-nhuma das línguas do país, "que otempo é pouco", e o que ganhadepois de pagar a renda ("adianta-da") "mal chega para enviar algumacoisa para Portugal". "Metade vaipara o quarto, algum para a higienepessoal, telefonemas para a famíliae um café ou uma cerveja comconta, e sobra muito pouco mesmofazendo contas à vida".

De Differdange foi viver para umcafé em Oberkorn: pagava 575 eu-ros por um quarto com duas pesso-as, "maior que o anterior, com cercade 18 m2". A dieta, quase sempre àbase de carne de porco ("por sermais barata") é que não melhorou."Peixe é quando o rei faz anos,carne de vaca nem vê-la, e lá vem ofrango de vez em quando paradesenjoar do porco", conta. Ri-sequando lhe perguntamos se haviasopa ou legumes: "luxos".

O estoicismo do imigrante portu-guês resistiu mesmo ao "mau ambi-

ente" do café, mas não à "máeducação da proprietária", tambémportuguesa. Fartou-se.

No café em que agora está, emEsch, elogia as óptimas condiçõesdos quartos, "grandes e com chãoflutuante", e a comida. O quartoduplo custa 650 euros com alimen-tação, mas o proprietário, "um jo-vem excelente", aceitou protelar opagamento da renda – José estádesempregado. "Se eu soubesse fa-lar francês, outro galo me cantaria:tenho facilidade de palavra masaqui tenho de me fazer pequenino,porque preciso", diz.

A maioria dos imigrantes portu-gueses hospedados em cafés traba-lham na construção. "Muitos têmde fazer fila de manhã para usar olavatório ou vir cá abaixo ao café",conta um português que tem aju-dado muitos destes hóspedes nasdiligências com a comuna de Differ-dange, mas prefere o anonimato."As pessoas não se queixam porquenão falam a língua e não sabem aquem se dirigir", conclui.

■ Paula Telo Alves

Em Esch e Differdange, um milhar de imigrantes (a maioria portugueses) vivem em quartos alugados insalubres e sem condições de segurança

Cafés de tirar o sono

A maioria dos imigrantes a viver em cafés, explorados na maioria dos casos por portugueses, têm nacionalidade portuguesa e trabalham na construção Foto: Paulo Lobo

Capa da brochura informativa distribuída pela Polícia em Esch-sur-Alzette paraesclarecer os imigrantes sobre as condições legais da locação de quartos

Esch e Differdange abriramcaça aos cafés que alugamquartos insalubres. Porcima dos estabelecimentos,a maioria explorados porportugueses, as autoridadesdescobriram condições detirar o sono. Em Differ-dange há 17 pessoas a par-tilhar uma só sanita e du-che, e quartos com 1,5 mde altura. Em Esch a au-tarquia teme uma tragédia.A maioria dos cerca de milhóspedes nestas condiçõessão portugueses recém-che-gados ao Luxemburgo atrabalhar na construção:pagam entre 300 a 650 eu-ros para dormir numquarto com mais duas aquatro pessoas, com ousem alimentação.

"É um caso de exploração de por-tugueses por portugueses",acusa Roberto Traversini, ve-

reador para os Assuntos Sociais deDifferdange.

"Eles vêm para cá e não conhecemninguém, não falam a língua, têmmedo da Polícia, e acabam a viver emcondições miseráveis", denuncia.

O edil iniciou há um ano umacampanha de fiscalização dos cafésque alugam quartos – a maioria,garante, explorados por portugueses–, e o que descobriu chocou-o.

"Havia um local com 17 pessoas euma só sanita e duche. Tinham umaságuas-furtadas com 1,5 m de altura

onde viviam duas pessoas. E não erados sítios piores, porque pelo menosera relativamente limpo", conta aoCONTACTO.

O "pior" dos 32 estabelecimentosjá fiscalizados pelas autoridades sa-

nitárias da autarquia e da Polícia,entre os 34 cafés registados, era umantigo cabeleireiro convertido emdormitório pelo proprietário do caféao lado – um "corredor de 12 metrospor 2,5 com tabiques a cada dois

metros", sem janelas. Os dez "quar-tos" assim formados duplicavam decapacidade com beliches, ao preço de350 euros por cama. A viver entredois tabiques, as autoridades encon-traram uma grávida de oito meses e o

companheiro, ambos portugueses. "Fechámos imediatamente o local

e encontrámos um estúdio para ocasal", conta o vereador. Noutrocafé, "uma família portuguesa de trêspessoas, um casal com um bebé detrês meses, estava a viver num quartode 9,5 m2, e há duas ou três semanasque não tinham água quente", pros-segue Traversini.

INSALUBRIDADE EINSEGURANÇA

A maioria dos 440 hóspedes a viverpor cima dos cafés de Differdangesão "imigrantes portugueses que tra-balham no sector da construção",garante o vereador, tal como os 550habitantes dos cafés em Esch-sur-Alzette, a segunda maior cidade dopaís e uma das que conta com maiorpercentagem de portugueses(32,7 %), assegura Vera Spautz.

"Há alguns luxemburgueses e afri-canos, mas a maioria dos hóspedessão portugueses com contratos tem-porários nas empresas de constru-ção", disse ao CONTACTO a verea-dora dos Assuntos Sociais de Esch.

Pagam entre 300 a 650 euros "poruma cama", com ou sem alimenta-ção. "As pessoas não pagam peloquarto, pagam pela cama, e há quar-tos de 9 m2 com quatro pessoas",explica Roberto Traversini. Em con-dições frequentemente insalubres eque não respeitam as normas desegurança: são "prédios velhos emestado degradado, com humidade einfiltrações, e espaços minúsculos",diz o vereador.

Uma avaliação que se repete emEsch-sur-Alzette. "Encontrámos detudo: insalubridade, problemas dehigiene e de segurança", denunciaVera Spautz, que iniciou a campanhade fiscalização há um ano e meio nos

55 cafés de Esch que propõem quar-tos. "Em três ou quatro cafés, eramcasas que deviam ser terraplanadas ereconstruídas, tal era a falta de segu-rança. Tremo de pensar no que po-derá acontecer um dia se houver umincêndio: seria uma tragédia. Nãopodemos continuar a fechar osolhos".

"NÃO PODEMOS FECHAR OS CAFÉS"

Mas se as autarquias do Sul do paísnão fecham os olhos às más condi-ções deste tipo de pensões, têmrecusado até agora encerrar os dor-mitórios por cima dos cafés, por faltade alternativas para as centenas deimigrantes a receber salário mínimoque ali encontram um tecto a preçosdo tamanho da bolsa.

"A verdade, é preciso dizê-lo, é queestes problemas existem devido àpenúria da habitação, sobretudo nosector do arrendamento, onde asrendas são desmesuradamente eleva-das", admite a vereadora socialista. Eas alternativas sociais são insuficien-tes.

"Esch-sur-Alzette dispõe de 440alojamentos sociais, mas temos umalista de espera de 400 famílias, e aprocura não pára de aumentar",prossegue Spautz. "Sabemos quealém dos cafés há também 'vendedo-res do sono' privados que alugamcamas por oito horas", denuncia.

Em Differdange, o dilema é omesmo. "Não queremos fechar oscafés nem pôr ninguém na rua, atéporque não temos alternativas sufici-entes a nível de alojamento social",assegura o vereador de Differdange.

Dos 32 cafés fiscalizados até agoraem Differdange, só um foi encerradopela Polícia – o dormitório improvi-sado no antigo cabeleireiro. O propri-etário do café que alojava uma famí-lia de três pessoas num único quartorecebeu, tal como os restantes quenão respeitavam as condições dehigiene e segurança, apenas um avi-so.

"É preciso dizer que é um dosproprietários que vimos que seguiuas indicações que lhe demos, e quevai fazer obras de renovação", explicao vereador ecologista.

"VENDEDORES DO SONO"RECUSAM FAZER OBRAS

À passagem dos inspectores sanitári-os, os proprietários são notificadospara melhorar as infra-estruturas dosestabelecimentos, sob a ameaça deencerramento ou processo de contra-venção. Mas algumas das obras efec-tuadas não passam da fachada, ga-rante Pedro (nome fictício), residenteem Differdange "desde que nasceu",e que tem ajudado muitos dos imi-grantes que vivem em cafés a regista-rem-se na comuna.

"Há situações em que a Polícia láfoi fiscalizar, e o proprietário do cafédisse aos hóspedes que tinham depassar o fim-de-semana a pintar outinham de sair de lá para fora",contou ao CONTACTO. "Muitos nãotêm dinheiro para fazer obras, por-que não são donos do prédio epagam rendas elevadas", explica.

A maioria dos cafés são proprie-dade das grandes cervejarias nacio-nais ("brasseries"), a quem os comer-ciantes que exploram os cafés pagamrenda. Sem o "comércio do sono",muitos teriam de fechar portas,afirma Roberto Traversini.

"O problema da maioria dos cafésé que não podem sobreviver só avender cervejas: têm mau aspecto,

são sítios degradados, e pouca genteos frequenta. Para pagar a renda àscervejarias, têm de alugar quartos",admite o vereador para os AssuntosSociais de Differdange. Os fornece-dores de cerveja "sabem-no e tole-ram-no, apesar de proibirem a sub-locação no contrato de arrendamen-to, para se eximirem a eventuaisresponsabilidades em caso de aci-dente", insurge-se Roberto Traversi-ni.

"Eles sabem muito bem que não épossível [aos proprietários dos cafés]pagar a renda sem alugar quartos,mas recusam fazer obras".

A autarquia já contactou as cerve-jarias que detêm a propriedade dosedifícios para tentar encontrar umasolução para o problema, mas conti-nua à espera de resposta.

Em Esch-sur-Alzette, a autarquiafoi mais longe, e vai mover acçõesjudiciais contra as cervejarias propri-etárias dos edifícios degradados, adi-antou ao CONTACTO a vereadora dacidade.

"Os pequenos proprietários de ca-fés não têm dinheiro para fazerobras, e as cervejarias recusam-se afazê-las. São eles os verdadeiros'vendedores do sono' contra os quaisé preciso agir", acusa Vera Spautz. "E

vamos levar a tribunal os donos dealguns cafés que encheram os bolsosnos últimos anos à custa desta pobregente", completa.

Em Esch, a Polícia iniciou proces-sos de contravenção contra quatrocafés, três dos quais explorados porportugueses e um por um cidadãojugoslavo, disse ao CONTACTO Pa-trick Majerus, chefe do Comissariadode Polícia de Esch-sul. As infracçõesregistadas são puníveis com pena demulta entre 63 euros e 125 mil eurose pena de prisão que pode ir de oitodias a seis meses, ao abrigo doregulamento de 25 de Fevereiro de1979 sobre as condições de salubri-dade e higiene dos alojamentos delocação, segundo a mesma fonte.

Para alertar os imigrantes para osseus direitos, a autarquia e a Polícialançaram um folheto informativoque está a ser distribuído nos cafés,em português e francês (ver caixa).

"O nosso objectivo é proteger osimigrantes. As pessoas que chegamnão conhecem os seus direitos", frisao comissário.

Mas entre a escassez de alojamen-tos a preço razoável e a penúria dosnovos imigrantes, o negócio dos"vendedores do sono" está aí paradurar. ■ Paula Telo Alves

Polícia desmantela comércio de moradas f ict ícias

Moradas falsasa 300 euros

Durante a fiscalização aos cafés quealugam quartos, a Polícia detectoucentenas de casos de residentes quejá não moravam nos estabelecimen-tos em que estavam declarados. Emmuitos casos, trata-se de "moradasfictícias para obter o RendimentoMínimo Garantido (RMG) ou outrosbenefícios sociais", garante o verea-dor dos Assuntos Sociais de Differ-dange, Roberto Traversini.

Segundo o vereador, obter uma"falsa morada" pode custar entre150 a 300 euros, e há muitosimigrantes dispostos a pagar opreço para usufruir de um endereçono Luxemburgo, assegura.

De acordo com o vereador, emDifferdange foram detectados"uma centena de casos de pessoasque não residiam nos locais indica-dos".

"A esmagadora maioria dos cafésque visitámos nem sequer tem re-gisto do número de hóspedes. Nin-guém sabia dizer-nos quantas pes-soas lá viviam. Só num dos cafés éque a proprietária tinha registo",disse o edil ao CONTACTO. O verea-dor precisou ainda que 31 dos 32cafés visitados no último ano eramexplorados por portugueses, e ape-nas um por italianos, "o único quetinha registo dos hóspedes alberga-dos".

Em Esch-sur-Alzette, a Polícia

detectou 158 casos de hóspedesque já não residiam no local decla-rado, mas o número de moradasfalsas compradas de forma fraudu-lenta é desconhecido.

"Há alguns casos [de venda demoradas], mas não podemos gene-ralizar. Há pessoas a viver emFrança que pagam aos proprietáriosdos cafés para obterem uma mo-rada falsa [no Grão-Ducado] quelhes garanta o acesso ao RMG ou aoutros benefícios sociais", disse aeste jornal Vera Spautz, vereadorados Assuntos Sociais da segundamaior cidade do país.

As declarações de residência fal-sas ou desactualizadas foram entre-tanto irradiadas do registo da po-pulação das duas autarquias. Paraevitar novos casos de comércio demoradas falsas, as duas localidadesiniciaram entretanto um sistema defiscalização que passa por não acei-tar novas declarações de residênciaem cafés que tenham atingido onível máximo de ocupação previstopor lei.

"Mas mesmo aí há quem já tenhaconseguido contornar o problema:quando não podem declará-los noscafés, os proprietários declaram-nos como se residissem em casadeles, e põem-nos a viver nos ca-fés", alerta o vereador deDifferdange. ■ P.T.A.

Condições legaispara alugar quartos

De acordo com a legislação luxem-burguesa, os quartos para alugardevem ter:

• uma área de 12 m2 para oprimeiro ocupante e de 9 m2 porcada ocupante suplementar;

• altura do chão ao tecto de nomínimo 2,20 m;

• acolher no máximo 4 ocupan-tes ;

• uma janela que possa seraberta, com tamanho correspon-dente a pelo menos 1/10 da super-fície do chão;

• estar equipado com correnteeléctrica e ter aquecimento;

• estar equipado com o seguintemobiliário, por ocupante: umacama individual; um armário que

possa ser fechado à chave; umamesa e uma cadeira; um colchão;cobertor e travesseiro.

Além disso, o prédio deve inclu-ir:

• um WC e duche com aqueci-mento por cada seis ocupantes;

• um lavatório por cada 2 ocu-pantes;

• possibilidade de estender esecar a roupa;

• limpeza diária a carga doproprietário ou do gerente;

• água potável e instalação deevacuação de água.

O prédio deve ainda respeitar ascondições gerais de segurançacontra riscos eléctricos, de gás e deincêndio.

Muitos dos cafés têm condições insalubres Foto: Polícia de Esch

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