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Walter Benjamin e a Imaginação CibernéticaExperiência e Comunicabilidade na Era do Virtual

Cláudio Cardoso de PaivaUniversidade Federal de Paraíba

Índice

1 Introdução 12 O singular de Benjamin: a percepção

de uma cultura no plural 33 As imagens virtuais têm aura? 44 Emanações barrocas na era do virtual55 Figuras da sorte , figuras do azar: os

clichês na Internet 66 Amor e ódio ao vivo eon line 87 Das redes de dormir às redes da ima-

ginação criadora 98 Indústria cultural, contracultura e cul-

turas excêntricas 119 Tecnologias da comunicação e expe-

riências multissensoriais 1210 Fim de partida 1411 Bibliografia 15

1 Introdução

Propomos um exercício de sondagem sobrea cibercultura, colocando em perspectiva aexperiência de agregação dos indivíduos naépoca das auto-estradas da informação. Paraisso, um recuo na história da cultura se faznecessário. Encontramos as bases interpre-tativas para decifrar a realidade virtual noslivros de Walter Benjamin (1892-1940), um

filósofo que pensa o século XIX com as an-tenas ligadas na modernidade do século XX.Sua percepção aguçada fornece elementospara uma discussão crítica e recepção dasquestões emergentes sobre arte, sociedade etecnologias do século XXI.

Partimos do pressuposto que na passagemdo fim do século passado há imagens e fi-guras que podem ajudar a entender o nossofim de século. A figura do "flanador", so-litário que passeia fascinado pelos objetosda grande cidade (mas esquivo ao espíritocapitalista), redescoberto por Benjamin, naobra poética de Baudelaire, possui afinidadescom a figura do internauta. O primeiro é umviajante atento e transeunte desconfiado queapreende o sentido dos objetos além da suadimensão mercadológica; o segundo é umnavegador curioso, cúmplice da agilidade,pesquisador interativo que busca nos objetosvirtuais, algo além da sua condição efêmerae transitória.

A descrição feita por Benjamin, dos in-teriores, praças e passagens na obra "Pa-ris, Capital do Século XIX", por exemplo,pode estimular, um olhar sobre as "pági-nas eletrônicas"como passagens virtuais parauma atualidade exuberante, na Terra-Pátriacibernética do século XX. Para Benjamin,

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as vivências e narrativas dos indivíduos namodernidade, se norteiam por uma busca desentido inscrito nas imagens, através de umamemória coletiva que desperta para um estilode vida mais pleno; é isto que o filósofo tra-duz por experiência. Ele acredita no retornodas imagens do passado como um despertar,atualização e partilha do presente, livrandoos homens de uma experiência empobrecida.

A Internet pode ser um meio de desper-tar, de atualização e partilha, mas que impõedesafios. Perguntamos, por exemplo, em quemedida a Internet, como uma "árvore de con-hecimento"pode revigorar a experiência desociabilidade e inteligência coletiva? Comoa imaginação cibernética pode politizar o co-tidiano? Como esta máquina do virtual podeatualizar e fecundar a experiência das cultu-ras locais no contexto da velocidade global?Estas questões serão formuladas, em diver-sos registros, ao longo do texto que tem vistaobservar as formas de Experiência e Comu-nicabilidade na sociedade contemporânea.

Considerando a realidade dos países emdesenvolvimento, constatamos que as redespermitiram, favoravelmente, o acesso à in-formação global e a ligação entre os países,numa escala planetária. Contudo, o que asnovas tecnologias trazem de inovador é umdespertar através da pesquisa, que lhe per-mite participar ativamente de uma produçãode sentido.

Pensar o coletivo e a Internet no contextodos países em desenvolvimento, remete àhistória mal resolvida entre a esfera pública ea esfera privada. Hoje, quando há um visíveldeclínio das formas de socialização (famí-lia, escola, sociedade civil etc.), os meios decomunicação, particularmente a Internet, en-quanto instâncias de diálogo entre a "intimi-dade e a publicidade", constituem veículos

geradores de experiências interativas e de no-vas formas de sociabilidade. As noções de"experiência e comunicação", para Benjaminpossuem um sentido convergente, isto é, tra-duzem a idéia de transmissão e partilha deuma mensagem; esta é uma das linhas me-stras que norteiam a nossa argumentação.

A Internet, como dispositivo de infor-mação, traz novos desafios para o debatesobre educação, ética e sociabilidade, por-que o seu aparecimento coincide com a dis-seminação da violência, de uma forma ge-neralizada. As redes de informação leva-ram a uma retomada da discussão sobre in-tegração e exclusão social, não somente por-que a tribo dos "sem micro"remete à tribodos "sem terra", mas porque a Internet acenapara a possibilidade de integrar os excluí-dos numa experiência de partilha coletiva.Os "paraísos artificiais"da Internet relem-bram a utopia de uma "felicidade do jardimpúblico", forjada por Voltaire. Hoje, umaestratégia de comunicação social orientadapor um projeto de "cultivo do jardim pú-blico"precisa enfrentar a nova desordem dasrelações entre o Estado, a sociedade, o mer-cado e as novas tecnologias. A discussão éinadiável e remete efetivamente a um debatesobre a nova ordem internacional da infor-mação, e num plano mais complexo, diz res-peito às relações entre economia e políticano contexto atual da mundialização. Um ar-tigo, sob a forma de ensaio, evidentementenão poderia esgotar uma discussão do pro-blema. A nossa proposta, no momento, con-siste em mapear alguns elementos que esti-mulem uma reflexão sobre o imaginário so-cial formado pelo conjunto de figuras e sím-bolos que estruturam a percepção dos indi-víduos. Assim, caminhamos contra o ventonum terreno considerado propício à evolução

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de tendências individualizantes e narcisistas,que é o espaço da realidade virtual. Con-tudo, ali encontramos formas de agregação esociabilidade, atração coletiva, novos meiosde territorialização e subjetividade ligadospelo sentimento dos indivíduos de pertencera uma comunidade.

2 O singular de Benjamin: apercepção de uma cultura noplural

Retomamos as contribuições de Walter Ben-jamin, cujo repertório de estudos, particular-mente, "A obra de arte na época de sua re-produtibilidade técnica"(1936) tem sido re-corrente na pesquisa sobre arte e sociedade,e recentemente tem iluminado as ciênciasda informação e da comunicação, numa per-spectiva humanística. Tendo sido "catalo-gado"como membro da controvertida "Es-cola de Frankfurt", juntamente com Adorno,Horkheimer, Marcuse e Habermas, seustextos constituem uma ferramenta teórico-metodológica importante para uma "antro-pologia da comunicação", na perspectiva deuma Teoria Crítica. Todavia, Benjamin per-manece enquanto um marco referencial por-que os seus ensaios se distinguem daque-les dos seus "companheiros de escola", peloseu potencial de atualização das formas cul-turais emergentes, assim como, pelo caráterde prognóstico das suas análises. Julgamospertinente remontar a Benjamin para um en-foque da chamada cibercultura, colocandoem perspectiva as formas de "experiência epobreza"na época da realidade virtual porvários motivos:

- Em primeiro lugar porque a expansãodas novas "máquinas de comunicar"coincide

com a reaparição das representações reli-giosas, no fim de milênio, justo quando aracionalidade técnica parece reger a novades-ordem do mundo. A reemergência domístico-religioso configura aquilo que al-guns autores definem provisoriamente comoum retorno do barroco, onde a razão e a fé, aciência e a mitologia, o sagrado e o profanose reencontram. Isto permite compreendero computador de modo mais abrangente, ouseja, como instrumento técnico que calcula,quantifica e performatiza as estruturas domundo pragmático, mas também como umnovo tótem em torno do qual os indivíduos(e tribos) prestam reverência, cultivando-ocomo objeto sagrado, e que expressa a idéiade "religação", comunhão e êxtase face à epi-fania das imagens geradas pelas redes.

- Depois porque a propagada "crise dosparadigmas"referenciais para pensarmos asquestões da sociedade e cultura pode ser dis-cutida à luz dos textos sobre a "modernidadee os modernos", em que o filósofo focaliza asexperiências de passagem do século XIX aoséculo XX. O singular na obra de Benjaminé despertar para a percepção da "cultura noplural"(sua parte material, mística, psicoló-gica e social) mas sempre dirigida pela idéiade agregação coletiva.

- E, finalmente, porque Benjamin semprebuscou transcender as limitações de um pen-samento ressentido e pessimista com prejuí-zos para a percepção. O seu conceito de"aura"e "reprodução mecânica", as alegoriasdo anjo e da História, assim como as figurasdo "flanador", do "colecionador"ou da "pro-stituta", ao seu ver, não traduzem as formasde mercantilização, são antes expressões quecondensam, simultaneamente, a dinâmica davida material e emanação do espírito cole-tivo, a parte obscura e brilhante da vida.

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No ensaio "A obra de arte na época dasua reprodutibilidade técnica", encontramosa figura de Benjamin como filósofo marxista,mas também um iniciado na cabala e astro-logia, que soube enxergar na imanência dosacontecimentos mais banais, uma "aura", asua parte de transcendência. Mirando osobjetos de consumo, Benjamin descobre asua face oculta, que extrapola sua mera con-dição utilitária; ali o autor pode contem-plar o seu lado simultaneamente mágico ememorial, que desperta reminiscências dopassado. Sem saudosismo, descobre ali aoportunidade de resgatar uma experiência,os vestígios de uma tradição de comunicabi-lidade. Neste mesmo contexto, no ensaio "Onarrador"(1936), nas figuras "do marinheiromercante"e do "artesão sedentário", Benja-min encontra os sujeitos que transmitem umaexperiência de tradição, refazendo os laçoscom a comunidade.

As noções de "aura"e "tradição", (ecos dainfluência mística), e o conceito de "supe-restrutura"(de influência marxista) para tra-tar dos produtos culturais, não limitam o seupercurso filosófico: Benjamin não acreditaem sínteses. Ele percebe que a modernidadecultural (produto do capitalismo) constrói edestrói coisas belas, isto é, promove expe-riência e pobreza: os seus estudos sobre apaisagem urbana da cidade no século XIX,podem demonstrá-lo. Ali abrem-se janelaspara pensarmos o estatuto da experiência,num estágio em que a dinâmica das trocasmateriais e simbólicas se tornou mais com-plexa.

Pensamos no simbolismo do cinema, tele-visão e Internet como campo possível parao gozo da experiência de que Benjamin fala.Ainda no ensaio sobre "A obra de arte...",o filósofo descobre o caráter fecundo das

tecnologias audiovisuais. O cinema contri-bui para a perda da "aura"dos objetos estéti-cos, mas consiste numa tecnologia revolu-cionária, que desperta uma nova percepçãodos indivíduos, podendo transformá-los emespectadores ativos.

3 As imagens virtuais têm aura?

Escolher Walter Benjamin como fio condu-tor para um ensaio sobre a cibercultura meparece uma estratégia feliz porque as ilu-minações do autor, de saída, já desmon-tam a perspectiva dividida dos "apocalípti-cos e integrados"que vêm as novas tecno-logias da informação e comunicação, re-spectivamente, como prenúncios do "fim domundo"ou como uma "terra prometida".

Orientado por uma concepção que ab-range o arcaico e o ultra-moderno, Benja-min exerce uma imaginação criadora apreen-dendo "o vivo do sujeito", sem se limitaraos dogmas da teleologia, nem reduções domarxismo; o filósofo se agiliza transversal-mente atento para o devir das sociedades eculturas. Sua percepção e experiência domundo compreende as inovações tecnológi-cas do seu tempo (a fotografia, o rádio, o ci-nema) de forma dialética. Isto é, impõe umavisão crítica, reconhecendo os efeitos de umaestratégia mercadológica que favorece a re-produção mecânica, cópia e falseamento dasobras culturais, ou seja, como sintomas dedecadência, mas ao mesmo tempo as percebecomo vetores de experiências estéticas enri-quecedoras, alavancas que abrem as portasda percepção para uma nova contemplaçãoda realidade. A sua técnica de descrever ocotidiano sob a forma de "mosaicos", nosestudos sobre Baudelaire ou no "Trabalhodas Passagens"(1927-1939) antecipam de al-

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gum modo o estilo das narrativas do jorna-lismo atual marcado pelo grafismo, a estéticaligeira dos videoclipes e as inscrições pós-modernas nas páginas da Internet. O autorapreende nos objetos e tecnologias modernasa fulguração do instante em que o espírito seilumina, no encontro com as imagens antigasque atualizam o presente. Benjamin sinalizapara a percepção do "hic et nunc"(o aqui eagora) da experiência cultural e comunica-tiva. Neste sentido, compreendemos que oacesso aos sites de astrologia, sexo, jogos,revistas de moda, jornais do cotidiano, emsua aparente trivialidade, realiza a felicidadeinstantânea dos internautas. Mesmo que pas-sageiras, as sensações de bem estar dos indi-víduos plugados na rede, entram em sinto-nia com uma camada de significação, cujosimbolismo se estrutura promovendo um êx-tase semelhante aquele experimentado pelosrituais antigos. O internauta, consumidor deimagens, através de uma "iluminação pro-fana", reencontra-se ali com "entidades ima-ginárias"que animam o seu cotidiano. Sobas palavras, imagens figurativas ou discur-sos verbais que o encantam; as vozes ances-trais são ressuscitadas agora pela paraferná-lia cibernética a que está conectado. Benja-min, dedica especial atenção às imagens au-ditivas; anteriores à sua forma visível, quepara o filósofo, carregam consigo uma men-sagem cuja origem é remota, mas que fa-vorece uma conexão imediata com as formasdinâmicas do presente. Sob o seu significadovisível, há imagens significantes que criamlaços e conferem um certo espírito de comu-nicabilidade aos objetos de consumo. Benja-min despreza o que os objetos simbolizam epropõe um método "alegórico"para decifraro seu verdadeiro sentido; a alegoria, para ofilósofo traduz a realidade histórica de modo

mais concreto que sua versão oficial ou ins-tituída, consiste numa estratégia de comuni-cação que permite flagrar o real em perma-nente transformação.

São os rastros, pistas e sinais deixadospelos ancestrais no longo texto do mundoque atualizam e transformam em "comu-nidade afetiva"os indivíduos anônimos portrás do vidro dos computadores. Os tex-tos de Jung, Bachelard, Gilbert Durand emais recentemente, Michel Maffesoli, têmcontribuído, para a sustentação de um argu-mento que busca focalizar, respectivamente,"o homem e seus símbolos", a "poéticada natureza"inscrita na vida cotidiana, a"imaginação criadora"e a "contemplação domundo"imaginal na perspectiva de uma so-ciabilidade. Estas contribuições têm insti-gado trabalhos férteis que procuram se orien-tar metodologicamente nos domínios de uma"antropologia da informação e da comuni-cacão". Contudo, é o entusiasmo das ge-rações mais recentes, que utilizam os com-putadores e a Internet de modo criativo,realizando pesquisas conseqüentes, que nosestimulam a considerarmos pertinente a re-cepção destas novas tecnologias.

4 Emanações barrocas na era dovirtual

Na sua "Pequena História da Fotogra-fia"(1931) Benjamin denuncia as formas dofalso na fotografia que substitui a pintura fi-gurativa, limitada pela função medíocre deapenas retratar os personagens ilustres, masnão se furta ao elogio da fotografia comodescoberta de novas formas de visibilidadee imaginação criadora. O ensaio é fascinanteporque desperta a faculdade de julgar o ob-

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jeto estético além da sua mera roupagemtecnológica. Com a evolução das técnicasfotográficas, o artista (como produtor) e o di-letante da fotografia (enquanto consumidor)perceberão que o flash da câmara fotográficatem o poder de resgatar imagens belas, aindanão congeladas pela estética convencional.As tecnologias audiovisuais evoluíram ba-stante e, hoje, uma poética tecnológica tra-duz a estética do feio, do irregular e insólitocom traços bonitos e ângulos sensíveis cri-ando novos laços com a percepção coletiva.

Encontramos já no texto "As origens dodrama barroco alemão", sua tese recusadapela Universidade de Frankfurt (1928), algu-mas sugestões para tratar a convivência doantigo e o novo, gerando formas de experiên-cia e comunicabilidade em Benjamin.

As novas imagens produzidas pelas "má-quinas de visão"(câmara fotográfica, tele-visão, computador) com suas técnicas arro-jadas, procedimentos de multimídia, hiper-textos etc, promovem um certo efeito quealguns autores, como Umberto Eco ou Mi-chel Maffesoli, compreendem como "barro-quização". É uma forma de compreensãoque serve de parâmetro para repensarmos aética e estética numa época em que as tecno-logias da informação e comunicação estãopor toda parte. Estas imagens atendem aum apelo coletivo de vozes distantes. O pú-blico solicita a aparição do belo, mas de-seja contemplar a "feiúra"explícita no vídeo.As tribos urbanas refazem uma crença per-dida no tempo, onde os simulacros de Deus edo diabo reaparecem como projeção da faltade referências na passagem do milênio; masao mesmo tempo se comprazem na felici-dade imediata e rotineira dos objetos de con-sumo. Tais imagens fornecem ilusionismoe impressões de mobilidade. A imaginação

tribal projeta a matéria orgânica no contextoinorgânico dos suportes materiais; solicita asexpressões do vivo, mas se mantém curiosapela natureza morta que relembra a condiçãode finitude dos homens. Do "alto celestial"ao"baixo infernal"e vice e versa, as imagens re-spondem às aparências de necessidade e àsleis do desejo. As imagens barrocas pare-cem sempre prontas a se reciclar e retornarao "mundo visível", como nas telas de Ca-ravaggio, no cinema de Greenaway, nos vi-deoclipes da MTV ou nas páginas coloridasda Internet. Atendendo às vicissitudes do es-pírito e às "dobras da alma", sempre voltamsob as diversas modulações da "mana coti-diana".

5 Figuras da sorte , figuras doazar: os clichês na Internet

Os personagens recuperados por Benjaminna poesia de Baudelaire, como o jogador, ocolecionador e o flanador, em sua aparenteefemeridade, incarnam arquétipos que rea-parecem na crônica da cidade como o "za-pista", o internauta ou o ciberpunk. São im-portantes como referência para os indivíduosque recusam a "via de mão única"e a nor-matização das mídias, buscando outros ca-minhos, novas formas de alteridade e exer-cício da subjetividade. Entretanto, em nossaépoca, quando se fala em declínio da razãoe retorno das formas místico-religiosas, é afigura do "corcundinha", reminiscência doscontos de fada alemães, presente nos textosde Benjamin, que nos parece pertinente parauma reflexão das figuras da sorte e figuras doazar que perseguem o imaginário coletivo.O filósofo, apresenta o "corcundinha"comoalegoria dos revezes do destino e vários estu-

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dos biográficos são plenos de referências so-bre esta imagem que o teriam acompanhadodesde a infância. Significando a má sorte, odesajeitado, o corcundinha é um personagemque durante muito tempo perseguiu a imagi-nação do filósofo, conforme podemos ler emseus textos para crianças:

"Vou à minha adega/ beber meu vinho/Lá está um corcundinha/ Pegou minha garra-finha/ Vou à minha cozinha/ cozinhar minhasopinha/ Lá está um corcundinha/ Quebrouminha panelinha".

É conhecido o percurso de Benjamin mar-cado pelas surpresas desagradáveis e tra-paças da sorte (a recusa pela academia, osdesencontros no amor, o suicídio sob pressãodos nazistas). Benjamin parece incarnar opersonagem de má-sorte. Como lembramalguns textos mais recentes, a trajetória dofilósofo leva a pensar em "como se tornar fa-moso cometendo tantos erros". A questão dafama póstuma de Benjamin, relembra que omesmo já gozava de prestígio entre os seuspares, como demonstra Hanna Arendt emseu estudo sobre o filósofo: "A fama pós-tuma, não comercial, não lucrativa é prece-dida pelo mais alto reconhecimento entre osseus pares". Como no exemplo de Kafkaou do próprio Benjamin reconhecido porAdorno e Scholem, assim como por Brecht.A questão da fama oscila, como escreveHanna Arendt, entre "uma semana de capade revista ou o esplendor de um nome du-radouro". O assunto relembra a afirmaçãode Michel Foucault: "A gente escreve paraser amado", e por outro lado, faz remontarà idéia dos "15 minutos de fama", formuladapelo artista Andy Warhol. Hoje, a questão dafama, da projeção e do reconhecimento, naperspectiva das redes adquirem novos con-tornos; a interatividade propiciada pela In-

ternet, produz os instantes de fama "on line",ou seja, possibilita a sensação de presença,participação e pertencimento nos tempos doefêmero e do provisório.

No que respeita ainda à sorte e ao acaso,em seu texto sobre "Roberto Walser"(1929),o filósofo lembra que para aquele escritor "...caminhar sem destino constituía o ponto cen-tral de sua vida de exclusão e de seus livrosmaravilhosos". Ocorre-nos lembrar a figurado surfista da Internet, o que se reafirma notrecho a seguir: "Não encontrar o caminhonuma cidade não é muito importante, masperder-se numa cidade, como as pessoas seperdem numa floresta, exige prática..."Nãoé difícil encontrar nas entrelinhas, espéciesarquetípicas da cibercidade: os usuários, emmeio ao labirinto dos sites, nas malhas darede são leitores dos mapas da cibercidade,que sabem como se perder. Os mapas, as car-tografias, as passagens... descritas nos textosde Benjamin, hoje se configuram sob a formadas redes.

Na "nova"episteme há lugar para uma "sa-bedoria encantada", sob a orientação de uma"razão sensível"? É possível o resgate deuma percepção que foge às limitações damera funcionalidade técnica? Teria chegadoa vez de uma "sensibilidade técnica"atenta àaura e espectro das imagens e sons promovi-dos pelos novos meios de comunicação?

Um mapeamento dos objetos do cotidianoreencontra no desenho dos objetos de comu-nicação, ao mesmo tempo, objetos técnicos eobjetos estéticos, objetos de consumo e tam-bém de culto. A nova "mana"ou emanaçãocotidiana, com seus bons e maus presságios,se realiza através dos sistemas da telefonia eantenas parabólicas, performatizando os no-vos estilos da vida material e mística na ci-bersociedade. Nos jornais e revistas, no tele-

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jornal e na ficção das telenovelas, nas estru-turas da vida vivida, inscrevem-se as formasde experiência e pobreza do cotidiano. Osimpático Tamagoshi, o bicho virtual, as es-teiras ergométricas, os controle-remotos, en-fim, os objetos tecnológicos, recorrendo aMc Luhan, são extensões do homem pós-moderno. Relembrando Muniz Sodré, per-tencem ao circuito das "máquinas de nar-ciso"e, ao mesmo tempo, constituem vetoresdo "social irradiado"na cidade.

Benjamin nos desperta para contemplar onovo naquilo que contém de antigo, e trans-versalmente, instiga à contemplação do an-tigo, como algo que atualiza a compreensãodo novo. Daí, todo estereótipo consiste naemanação de um arquétipo. Esta perspec-tiva pode inovar e ultrapassar preconceitos:o clichê, o banal, o provisório têm algo anos dizer sobre a cultura emergente em re-lação à sua história pregressa, assim, comoos objetos antigos já trazem consigo, poten-cialmente, a expressão do êxtase nos objetosda atualidade.

6 Amor e ódio ao vivo eon line

Uma das motivações deste ensaio é repensaro estilo de vida dos indivíduos nas cida-des durante a passagem do milênio, consi-derando os níveis da experiência e comu-nicabilidade. Assim, encontramos trancadoa sete chaves na intimidade dos condomí-nios fechados, o homem pós-moderno quese comunica com o mundo à distância; maspara ele tudo está, ao mesmo tempo, longee perto. A "condição pós-moderna"impõea necessidade das tecnologias de vigilân-cia, controle e prevenção. Aids, violência,vírus cibernético são aspectos do novo malestar da civilização. A intolerância, a indife-

rença e o ódio, como diz Edgar Morin, sãodados empíricos evidentes nos dias atuais(ontem Auschwitz e Sibéria; mais recente-mente, Bósnia, Iraque, África e, enfim Ko-sovo). O ódio, a violência, o descaso socialsão ingredientes permanentes na crônica doBrasil: Goianobyl, Carandiru, Candelária,queimada dos índios e mendigos na cidades,massacre dos sem-terra no norte, indústriada fome no Nordeste são índices regressivosda Terra-Pátria em desmoronamento. Sãoimagens do mundo em decomposição, cujosclichês inscritos na exibição midiática reapa-recem como projeção dos arquétipos do "fimdo mundo".

O sintoma destas inquietações se expressaatravés das "máquinas de comunicar": dooutro lado do vidro, os indivíduos ligadosnas redes, buscam o sentido da vida num uni-verso que parece em declínio. A idéia defelicidade na sociedade do espetáculo é efê-mera, as religações entre os indivíduos sãotransitórias. Contudo, as imagens grotescasou sublimes não cessam de refazer os laçossociais, aproximando indivíduos distantes notempo e espaço; na época da Internet a feli-cidade está por um fio. O simbolismo e amaterialidade das relações atuais entre os in-divíduos revelam estilos de experiência e co-municabilidade que não podem ser ignora-dos.

A ligação entre o espírito e a manifestaçãomaterial, isto interessava bastante a WalterBenjamin. Ele tinha interesse na "correlaçãoentre uma cena de rua, uma especulaçãoda bolsa de valores, um poema, um pensa-mento... a linha oculta que reune e permiteao historiador reconhecer que pertencem aomesmo período histórico". Adorno criticavaa apresentação aberta de atualidades comoBenjamin fazia; mas o autor estava inter-

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essado em "capturar o retrato da História nasrepresentações mais insignificantes da rea-lidade". Tinha paixão pelo pequeno, pelominúsculo, paixão pelo micro.

7 Das redes de dormir às redesda imaginação criadora

Como expõe Sérgio Paulo Rouanet, no en-saio "As galerias do sonho", Benjamin tinhaafinidades eletivas com Proust, Kafka e Goe-the. Em Proust encontra a noção de "remi-niscência"e "memória involuntária"para con-struir as suas alegorias do cotidiano. EmKafka, particularmente, Benjamin espreitaas imagens dos campos em ruínas, áreasde desastre, montes de escombros. O seuinteresse se volta para a realidade mani-festa nas expressões idiomáticas da lingua-gem cotidiana. As influências que sofreu deGoethe refletem simpatia pela poética semdesprezar a filosofia (seja ela metafísica oudialética). Benjamin sofreu ainda influên-cias de Brecht e sua idéia do "pensamentocru", e assimilou muitas sugestões da suaamada russa, Asja Lacis. A estas influên-cias irão se opor Adorno, que lhe susten-tava em Paris com os recursos da "Escola deFrankfurt"(transferida para Nova Iorque) eGershom Scholem, companheiro das leiturasteológicas; o primeiro era esquivo à estéticado "realismo social"e reprovava a sua faltade "trabalho do conceito", o segundo, recu-sava as explicações materialistas. Benjamin,entretanto, como filósofo que era, permane-ceu atento a uma razão perceptiva, auditiva,algo próximo do que hoje Michel Maffesolichama de "razão sensível". Tanto o "fla-nador", como o "anjo da História"chamamatenção para uma outra percepção do per-

curso histórico. São personagens que, re-fazendo as palavras do filósofo, "remon-tam os cacos da História". Nas suas famo-sas teses sobre filosofia da História (1940),onde se inscreve a figura do anjo, lemosque "a verdadeira imagem do passado per-passa veloz". Em contraste com a ativi-dade apressada nos tempos do capitalismo(quando tempo é dinheiro), o "flanador"eo "colecionador"percorrem caminhos opo-stos ao ritmo da mercadoria, resgatando nasimagens cotidianas, as expressões de umaexperiência de comunicabilidade. Não é difí-cil encontramos uma analogia entre aque-les personagens descritos em Paris do séculoXIX e as figuras contemporâneas do "shop-pista"(o andarilho curioso dos shopping cen-ters), o "zapista"(ágil manipulador do con-trole remoto da televisão) ou do internauta(que "viaja"durante horas a fio na rede da In-ternet).

Benjamin se interessa pela aparência, pelaaparição, pelo visível, numa palavra, o quese mostra à percepção. Isto tem conexãocom o seu conceito de "aura": algo essencial-mente religioso. Podemos apreender o seueco hoje, no contexto das mitologias con-temporâneas: as imagens da publicidade, noshopping center, na televisão. Pensamos apropósito, na "auréola"mítica que envolveas estrelas do cinema e da televisão. Asimagens sublimes ou trágicas na dramatur-gia cotidiana da televisão emanam um tipode visibilidade que provoca a "experiênciade choque", promovendo uma catarse junto àpercepção do telespectador. Os ídolos e per-sonagens famosos nas salas de "bate papo"darede, sempre causam rebuliço. A visão, aaparência, a epifania das imagens do compu-tador criando a conexão em rede, refazendoos laços entre as tribos e sensibilidades con-

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vergentes possuem algo dessa natureza es-sencialmente mítica ou encantada.

Parece um paradoxo escrever sobre Ben-jamin sob o signo de uma sabedoria encan-tada (Adorno certamente não gostaria destaimagem). Benjamin era dialético, e não po-demos esquecer a influência exercida porGershom Scholem (e da mística judáica) so-bre sua mentalidade; sempre fora funda-mentalmente norteado por uma perspectivapoética. Benjamin se orienta menos por umaepistemologia (isto é, pela lógica científicalimitada por uma "razão abstrata") e mais poruma direção estética: as percepções é que lhesão caras. Numa ligeira digressão, ocorre-nos pensar que para o filósofo a imagem(imago) ou melhor, a imagem acústica temum significado de alcance mais duradouro doque a letra. No que respeita à potência das"imagens", Walter Benjamin e o filósofo Gil-les Deleuze (embora em registros diferentes)possuem "geografias de pensamento"que senivelam em vários pontos: não é de se estran-har o fascínio que ambos tinham pela litera-tura de Proust.

Espreitamos as possibilidades de um pro-jeto estético (e ético-político) que sem re-cair nas teias de uma razão dualista, pu-desse apreender as novas tecnologias comodispositivos que vieram para ficar e exigemo agenciamento de novos hábitos de pensar,falar e agir, tendo em vista as novas formasde experiência dos indivíduos e tribos urba-nas nos tempos da globalização, e de modoparticular, no contexto da realidade virtualou da cibercultura.

Percorrendo o cenário urbano no séculoXIX, Benjamin, encontra em Baudelaire eseus personagens alegóricos, as pistas parapensar aquele período de passagem. Alémdo "flanador", o "colecionador", o "dândi",

a "prostituta"e o "apache"são tipos sociaisque o poeta encontra na ruas de Paris, e meparecem arquétipos do "homem que não vi-rou suco"em meio às engrenagens do sis-tema capitalista. Caminham, segundo Ben-jamin, num ritmo próprio. Reencontra-mos, uma analogia da figura do "flanador"noestilo do internauta, que surfa na Inter-net, "zipando"(comprimindo as informaçõesnum disquete e lhes conferindo nova signi-ficação). Os objetos de consumo para o co-lecionador do século XIX como hoje, parao shoppista no século XX (em seu pass-eio pelas livrarias virtuais e fazendo com-pras "on line"), não indicam apenas o sin-toma de uma reificação, alienação, mer-cantilização. São antes objetos de fruiçãoestética, objetos de comunicação. Distinta-mente da lógica do burguês, os objetos parao colecionador, como para o internauta e oshoppista, são antes elementos de paixão,emoção, devoção, do que simples instrumen-tos utilitários (tomemos como exemplo osCDs, vídeos-cassetes e games interativos quese revelam como objetos de paixão dos shop-pistas); ali, o valor diletante supera o valor deuso. O "dândi"do século passado encontraa sua versão hoje, na expressão dos sujeitosque desprezam a televisão, mas se deleitamnuma viagem virtual pelos sites dos museusexcêntricos e das obras raras. Encontramosainda os traços da "prostituição"nas salaseróticas, que constituem experiências de sen-sualidade num contexto mercadológico, masque proporcionam o usufruto das interaçõesprazeirosas do "sexo virtual".

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8 Indústria cultural,contracultura e culturasexcêntricas

Hoje as salas de bate-papo da Internet diantedo internauta emanam algo da ordem do mis-terioso, do excêntrico, vetores de uma expe-riência única e autêntica para os usuários. Écerto que a "indústria cultural"mantém emperpétuo estado de alerta as suas estratégiasde absorção, cooptação e inversão (comodiagnosticara Adorno); mas o que está emjogo aqui é a maneira como os usuários ade-quam e se apropriam dos objetos, mensa-gens, propostas, realizando experiências quelhes conferem prazer. Uma viagem pela In-ternet oferece ao usuário sites excêntricosque, se não surpreendem, definem os níveisde distinção das tribos que possuem algunstraços das experiências contraculturais dosseus pais e avós dos anos 60/70. Os sites"PQP", "Banana loca"ou "Embromation So-ciety"se não têm mais o poder de chocar,numa sociedade que já absorveu todos os gê-neros de transgressão e demonstra simpatiaface aos discursos dos jovens, apresentam in-tervalos de humor no circuito do consumo.Empiricamente, é possível catalogar tendên-cias de estilos e gostos distintos dos usuáriosda rede: salas de ecologia, esoterismo, gays,astrologia, darks, medicina alternativa entreoutros compõem o repertório múltiplo e di-versificado dos internautas. Contra o típico,o usual, o classificável existe doravante aoportunidade de escolha, fora dos padrõesconvencionais; reside ali o lugar de exer-cício da subjetividade e de uma virtual ci-dadania: o internauta é um cidadão virtual.A idéia pode ser antiga, mas a escolha éatualizada todos os dias, distintamente e de

forma autêntica e renovada: o acesso aos si-tes consiste numa experiência do presente. Ointernauta coleciona amigos virtuais, comoo colecionador de Benjamin o fazia com oslivros e objetos de arte do passado: é umaexperiência atual que realizada com assidui-dade revela um tipo de culto; o internautatem traços do místico diante dos ídolos eimagens sagradas, o computador representauma espécie de tótem contemporâneo. Osentido da Internet só pode ser compreen-dido com clareza pelos homens que encaramo presente com firmeza e sem ressentimento.

O bate-papo na Internet, o que chamam de"namoro virtual", (agora, quando ainda nãotemos o videofone) chama a atenção pelo re-torno da "imagem acústica"(imago), comono tempo forte da literatura quando a ima-ginação criadora se incumbia de "realizar"ospersonagens, os indivíduos, as figuras e tipossociais. Benjamin dizia que "a verdade é umfenômeno acústico". Para ele "a verdade doobjeto está em sua riqueza e estranheza"emrelação ao circuito mercadológico. Afirmaainda que "a verdade é um desafio às épo-cas em que as referências são esponjosas eflutuantes", o que se aplica perfeitamente ànossa época de fim do século e passagem domilênio.

Em sua visão crítica da passagem do sé-culo XIX, pelo viés da poesia de Baudelaire,Benjamin realiza o seu mapeamento da ci-dade de Paris, o centro da vida cosmopolitae encontra nos jornais, na publicidade e nosfolhetins a matéria viva para contemplar a ci-dade, o homem e o espírito do tempo. Ali sedepara com a informação curta e brusca queconcorre (e ultrapassa) o relato minucioso,comedido. Seria exagero enxergar ali a pre-visão dos sites na rede de informações atual?

Prestando atenção ao fluxo urbano, sem-

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pre por intermédio da poética de Baudelaire,Benjamin descreve os tipos humanos e so-ciais, meticulosamente, "desde o vendedorambulante até o amante da ópera". O passeiodo "flanador"como o do surfista da Internet,em nossos dias, funciona "como um remé-dio infalível contra o tédio". As galerias on-tem (e hoje as salas virtuais de leitura, assimcomo as salas de "Bate Papo") significam ummeio termo entre a casa e a rua. Como o "fla-nador", o internauta também sofre na pele opreconceito. Uma análise dos discursos dosinternautas encontraria ali circunstâncias depobreza moral e intolerância , o que revelatraços de uma mentalidade excludente, cu-jos efeitos podemos pressentir na rua, na mí-dia eletrônica e também na comunicação "online".

9 Tecnologias da comunicação eexperiências multissensoriais

Retomando o tema da "experiência e po-breza"concernente aos sentidos, Benjamincita o filósofo alemão Georg Simmel: "Asrelações humanas nas grandes cidades se dis-tinguem pela preponderância da atividade vi-sual sobre a auditiva devido aos meios detransporte. Antes do desenvolvimento destesmeios não havia o confronto dos olhares noônibus, no bonde, no trem"(e no metrô, acre-scentaríamos). "Segundo Goethe, todos car-regam consigo um segredo". O homem con-tinua sendo uma ameaça: a idéia de encon-trar um amigo virtual pode ser excitante, masinspira, muitas vezes, receio. O homem vir-tual se assusta diante do homem real: a parteorgânica, a parte animal do "cyborg"o leva ase manter em estado de alerta, e por vezes, aatacar. Os signos de fragilidade e pobreza do

animal urbano podem ser observados no ci-nema e na televisão, assim como na vida "online". As imagens eletrônicas e cibernéti-cas podem ser vistas como janelas para com-preendermos a conjunção entre o afetual eo emocional coletivo (ou seja, a parte de ri-queza do ser humano), mas as "máquinas decomunicar"também viciam: sem rádio, semtelevisão ou imagens do computador o indi-víduo sofre porque então, a sua solidão res-surge ampliada. A vida retorna ao estadonormal, em preto e branco (a sua parcela depobreza).

Sob outro prisma, curiosamente, como napaisagem urbana da modernidade descritapor Benjamin, as tribos urbanas atuais nãose misturam na floresta da rede cibernética,agrupam-se por afinidade, como na "vidareal". Nas redes existem sociabilidade, pre-ferências e cumplicidades como na rua vistapor Baudelaire e comentada por Benjamin.

Muitas falas dos internautas equivalem àsmatérias noticiosas. A diferença é que, comona literatura contemporânea, ali no ciberes-paço, a noção de tempo e espaço é abolida.E se assemelha, em quase tudo à vida vi-vida, assim como às cenas da crônica poli-cial. Através do noticiário da rede, os indi-víduos se ligam aos fatos como nos roman-ces de Alan Poe: o "maníaco do parque"ou"o vírus Melissa"... tudo aparece aqui comouma experiência diferente, quando a reali-dade, a ficção, a vida real e virtual se mi-sturam formando aquilo que Umberto Ecochama de "irrealidade cotidiana". Não po-demos esquecer que o jornal, o rádio, a te-levisão são contemporâneos do micro: es-tes veículos não desaparecerem da cena dacidade, ainda que pouco a pouco venhamsendo absorvidos pelo novo veículo. McLuhan mostrou que cada meio de comuni-

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cação contém potencialmente o seu meiosubsequente, no que respeita à sua inscriçãono percurso histórico da cultura.

Há um modo próprio de ver as coisas daparte do homem de vida pública domiciliadona cidade. A mídia produz ou amplia uma"cultura de eventos"(o que implica no ín-dice regressivo que destitui o sujeito do atode usufruir sua própria experiência). Poroutro lado, a Internet, inegavelmente abrea possibilidade do espectador intervir, par-ticipar do acontecimento midiático. Talvezo caso dos programas de debates e entrevi-stas na televisão, que mantém "aberto"umsistema de comunicação com o público nãoseja um bom exemplo de interação porqueali ainda existe uma certa diretividade so-bre o diálogo. Mas, também não podemosdeixar de ali observar, um dispositivo po-tencial de interatividade. Neste sentido, éexemplar o caso do telespectador que inva-diu o espaço da Rede Globo, durante o pro-grama infanto-juvenil "Malhação"(exibidopela Rede Globo) e quebrando o protocolodo "padrão global de qualidade", acusou opresidente da empresa, Sr. Roberto Marinho,de "traficante". O esquema de proposta inte-rativa permitiu um agenciamento surpreen-dente que fugiu ao controle da emissora. Oexemplo não é muito elegante, mas servepara mostrar as brechas num sistema fechadoque, como explica Luiz Beltran, se marcapelo caráter de uma "comunicação vertical",onde a participação do telespectador é mí-nima. Em todo o caso, guardadas as reservas,podemos entrever algumas formas de "inte-ratividade", ainda que de modo incipiente, naprogramação da TV aberta que começa a semodificar depois da Internet . Relembramosa propósito, os programas "Jô Soares, Onze

e Meia"e o "Sem Censura"(exibido pela TVEducativa), além do "Barraco MTV".

Na época da "realidade virtual", encontra-mos todo um arsenal de dispositivos que em-piricamente podem se prestar para um regis-tro de época. Como sugere Arlindo Machadoas "tecnologias de vigilância"são dispositi-vos disciplinares forjados enquanto tecnolo-gias da segurança que asseguram a ordem so-cial, política e econômica. São equipamen-tos que asseguram a ordem e segurança pú-blica; contudo, é no espaço privado que apa-recem de modo mais eficiente e são vias demão dupla. São inumeráveis: outrora tínha-mos a assinatura, a fotografia, a impressãodigital na carteira de identidade; doravante,tais dispositivos se sofisticaram: cartões decrédito, códigos e senhas se multiplicam re-gistrando e seguindo as pistas do "homemna multidão". Uma experiência que significasegurança para aqueles que estão inseridosno mercado e um "alerta"para os excluídosdo processo de produção e consumo. O inter-nauta (como o flanador) não se sente seguroem seu tempo. A vida real "off line"assusta.Os homens reais não inspiram confiança. Osavisos de segurança, assim como os riscosproliferam. Violência e insegurança são ín-dices regressivos que atestam a pobreza daexperiência dos homens do nosso tempo. Omedo impera. Medo do blecaute, do bug mi-lenar, dos vírus. Existe o luxo do correiosentimental "on line"para todas as idades,cores, gêneros e preferências; em contrapo-sição existe o congestionamento das linhas,lentidão dos serviços telefônicos e alto custodas operações.

O passeio do usuário pela Internet, comoa caminhada do transeunte no século XIX,contém um efeito enebriante. Benjaminfalava sobre os efeitos inebriantes do haxixe,

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no sentido de experimentar outras formasde percepção. Uma multidão de internau-tas (são milhares em circulação todos os diaspelas auto-estradas da informação) experi-menta um tipo de ebriedade religiosa, comoo flanador ou o shoppista na grande cidade.Os encontros do flanador com outros sujei-tos, (como os encontros do internauta) sãoefêmeros, no entanto, sempre fundam umtipo de arborescência, cujas ramificações seprolongam. Benjamin lembra a grande ci-dade como uma floresta, o que serve comometáfora para a ecologia da cibercultura. Apropósito, Pierre Lévy fala em "árvores doconhecimento", André Lemos, recorrendo aDeleuze, fala em "rizoma". A rede apa-rece como uma imensa floresta à disposiçãodos usuários, com toda a sua dimensão derisco e fascínio. No repertório de Benja-min/Baudelaire, encontramos ainda o perso-nagem do "apache", que tem uma certa si-gnificação do homem selvagem (Benjamintinha fascínio pela figura do índio). Este per-sonagem mantém um tipo de provocação erebeldia. Mas o "outsider"na versão infor-mática é a figura do cyberpunk, o assustador"hacker": perigo em potencial, porque temo poder de disseminar o vírus no computa-dor e desestabilizar todo o sistema. O bugdo milênio e os "rackers"são as figuras terrí-veis da realidade virtual. As intempéries domundo natural se refazem hoje nas redes.

10 Fim de partida

O que há de sólido no debate intelectual con-temporâneo é a constatação de que as novas"máquinas de comunicar"modificaram com-pletamente as estruturas da vida cotidiana;para além da ciberfilia ou ciberfobia dos con-temporâneos todos parecem de acordo que

não podemos ignorar o efeito performativodas novas tecnologias. É chegado o mo-mento de enfrentar os novos "jogos de lin-guagem"do nosso tempo marcado pela vir-tualidade. É o Fim de Partida para umaconcepção de mundo definida pela onipre-sença do mesmo. O desafio que se apre-senta doravante é estabelecer um tipo uni-cidade (nos termos barrocos da estética deBenjamin) que agrupe as aparentes disper-sões da "cultura global". Arte, ciência, téc-nica ou política, qualquer que seja o campoda ação pragmática que se define como ob-jeto de contemplação, deve se definir emtorno do homem em conexão com suas ex-tensões e vetores de sociabilidade.

Dentre as inúmeras imagens no plural deBenjamin, encontramos o jovem orientadopela idéia de iluminação mística e o Benja-min maduro, face à tirania do fascismo, quese norteia pelo materialismo histórico comoclaridade para os tempos sombrios. As afini-dades eletivas de Walter Benjamin são con-trovertidas, contudo as leituras de seus intér-pretes, na diversidade de suas posições fi-losóficas ou políticas, revelam um tipo depensamento nômade (no sentido empregadopor Deleuze). Atenta à concretude da expe-riência na fulguração de um momento pas-sageiro, sua percepção estética atualiza opassado, lançando luzes para o futuro que setornou presente:

Hoje, às vesperas de um novo milênio,quando o tempo é transformado pela velo-cidade, reencontramos o Benjamin pensadordo instante. A sua idéia de tratar o antigocomo se fosse novo e o novo como expressãodo antigo é algo estimulante e animador:

Primeiro porque instiga a pensar a outraface, a diferença, naquilo que parece apenasclonagem e repetição; depois porque a pas-

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sagem recíproca entre o antigo e o novo re-vela um espírito comunitário que agrega in-divíduos isolados no tempo e espaço e, final-mente, porque encontra naquilo que pareciamorte e melancolia, expressões da experiên-cia e comunicabilidade, sinais do vitalismo einstantes de felicidade.

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