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Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS
JUVENTUDE E RELAÇÕES DE TRABALHO NO TEMPO PRESENTE: MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DE JOGADORES DE FUTEBOL E COMERCIANTES DE ENTORPECENTES (FLORIANÓPOLIS, 1980-2005)
Silvia Maria Fávero Arend*
Resumo: Neste artigo pretende-se analisar as experiências vivenciadas por jovens do sexo masculino da cidade de Florianópolis que desenvolvem dois tipos específicos de trabalho: jogar futebol e comercializar entorpecentes, no período compreendido entre 1980 e 2005. No primeiro caso, temos uma profissão considerada legítima, enquanto que o segundo caso refere-se a um tipo de atividade socialmente ilegítima. As experiências destes jovens de camadas populares fazem parte do cenário vigente no país no tempo presente, sendo produto de embates entre os interesses das famílias pobres, das políticas sociais do estado brasileiro, dos patrões e dos próprios jovens. Palavras chaves: Família - Infância - Juventude - Relações de trabalho – Memória Abstrat: This paper it is intende the experiences of young males of the city of Florianopolis that develop two specific types of work: playing soccer and market narcotic control, in the period between 1980 and 2005. In the first case, we have a profession considered legitimate, while the latter refers to a type of socially illegitimate activity. The experiences of these young people are part of the current scenario in the country and are product of collisions between the interests of the poor families, social politics of the Brazilian state, the employers and the young people themselves. Keywords: Family - Childhood – Youth - Work - Memory
As relações entre o Estado moderno e a população na sociedade ocidental remontam
ao século XVIII. Para Michel Foucault, a partir dessa época a população adulta masculina e
feminina tornou-se a principal riqueza de um país, pois esta era necessária para assegurar o
povoamento das colônias e compor os exércitos nacionais, bem como para compor a mão-de-
obra do nascente setor industrial (FOUCAULT, 1986). É importante lembrar que nessa época
as taxas de mortalidade, especialmente nos primeiros anos de vida, eram bastante elevadas
chegando em alguns casos a atingir um terço dos recém nascidos vivos. A periodização da
chamada bio-política da população, entre os séculos XVIII e XX, pode ser dividida em três
fases. Na primeira, a sobrevivência da população é transformada em um problema social
através de um conjunto de discursos enunciado por intelectuais, cronistas de jornais, médicos
e religiosos. No segundo momento, emergem saberes que se propõem a analisar os fenômenos
* Departamento de História/Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). A pesquisa conta com a participação das bolsistas de iniciação científica Anelise R. M. de Araújo, Camila S. Daminelli, Giovana M. Suzin e Larissa Ripardo. Em função de problemas enfrentados no Comitê de Ética da referida instituição devido à utilização da história oral apresentaremos neste texto somente as discussões historiográficas.
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sociais. E, em um terceiro momento, a partir da metade do século XIX, verifica-se a criação
de instituições públicas e privadas cujos agentes, de maneira direta, vão intervir nas práticas e
valores dos indivíduos (FOUCAULT, 1986). Esses investimentos da bio-política da
população incidiram com grande ênfase nas relações que se estabeleceram no âmbito da
família.
Na sociedade ocidental, nesse mesmo período, verifica-se a emergência da norma
familiar burguesa e da noção de infância. Essa configuração de família, que surge
inicialmente entre as elites e as camadas médias, caracteriza-se pelo seguinte conjunto de
práticas e valores: pela composição pai, mãe e filhos; pela presença de representações sociais
que conformam o chamado do amor romântico entre os cônjuges, bem como o amor materno
e paterno em relação aos filhos; a sexualidade do casal deveria ser pautada pela prática da
monogamia e pelo heteroerotismo; à mulher caberia a administração do mundo do doméstico
e a maternagem das crianças, enquanto o homem tornar-se-ia o provedor, atuando no âmbito
do público; as relações de parentesco entre os membros da família seriam construídas a partir
de dois eixos, isto é, a consangüinidade e a afetividade. Segundo Michel Foucault, as práticas
e os valores que compõem a norma familiar burguesa, possuem um caráter instrumental no
que tange a gestão da população, ou seja, de garantir que a criança atingisse a idade adulta.
(COSTA, 1989). No Brasil, diferente da Europa e da América do Norte, é somente no século
XX que a família adquire tal conotação.
No ideário da infância, que nasceu atrelado ao da norma familiar burguesa, a criança e
o jovem passam a ser considerados como seres em formação que necessitam de cuidados
materiais e afetivos. Os pais, preferencialmente os consangüíneos, tornam-se os principais
responsáveis pela sobrevivência material e afetiva dos infantes até a fase adulta. Para os
menores, até certa idade, estariam interditadas as práticas sexuais e determinadas atividades
laborais, bem como lhes cabia a obrigação de freqüentar as instituições escolares (ARIÈS,
1981). Os discursos do Cristianismo, da Puericultura, da Pediatria, da Pedagogia, da
Psiquiatria, dos Operadores do Direito e, mais recentemente, da Psicologia e do Serviço
Social, concorrem na conformação desse ideário desde o século XVIII (KUHLMANN
JÚNIOR; FREITAS, 2002).
No Brasil, o processo de introdução do ideário da infância para as elites, as camadas
médias e os grupos populares rurais e urbanos teve seu início também no século XX. É
possível classificar as atividades laborais realizadas pelos menores de ambos os sexos no
referido período nos seguintes setores: o agrícola-pesqueiro, o relativo aos serviços
domésticos, o industrial, o comercial e o artístico/esportivo. Essa setorização não foi
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elaborada somente em função das características de cada profissão, mas também devido a um
conjunto de fatores relacionados com a forma de recrutamento da mão-de-obra (familiar ou
assalariada), ao tipo de remuneração auferida pelos menores nesses labores (salário ou de
outra natureza, tal como “cama e comida”) e com relação às áreas em que o Estado brasileiro
procurou regulamentar através da legislação trabalhista e menorista. É importante observar
que, até meados dos anos de 1970, em um significativo número de cidades brasileiras as
moradias possuíam hortas, pomares e animais domésticos que demandavam o cuidado dos
infantes. Há ainda um outro setor ocupado pelos meninos e meninas oriundos das famílias
pobres: a mendicância nas praças e ruas da urbe. Essa atividade que, pelos padrões burgueses
é considerada como não trabalho, também é integrante desse quadro (AREND, 2007).
Os dados estatísticos oriundos da demografia histórica, do Instituto Brasileira de
Geografia e Estatística (os considerados oficiais) e dos relatórios feitos pela UNICEF e por
outras Organizações Não Governamentais demonstram que a prole das famílias de menor
poder aquisitivo durante o século XX ingressou no mercado de trabalho desde a tenra idade
(CAHIERS DU BRÉSIL CONTEMPORAIN, 2000; RIZZINI, 1996). Esse fato não pode ser
explicado somente a partir de argumentos de cunho econômico, sintetizados na seguinte
máxima: o labor infanto-juvenil é de fundamental importância para a subsistência de todos os
membros da família. Entendemos que os aspectos histórico-culturais são de extrema
relevância nesse debate. O problema não se restringe somente ao aumento da renda da família
(que promove a aquisição de bens materiais), mas implica em mudanças de práticas e de
valores que, muitas vezes, ocorrem em uma ou duas gerações (SEGALEM, 1986). Para os
grupos populares urbanos, cuja configuração de família não está pautada nos padrões
burgueses, os descendentes são percebidos como mão-de-obra. Para que mudanças se operem
é preciso então resignificar a relação de filiação construída a partir da noção de
“reciprocidade” e as que envolvem os campos da maternidade e da paternidade (FONSECA,
1995).
No Brasil, no século XIX, a socialização dos meninos e meninas pobres, que
habitavam no mundo rural ou urbano, era realizada através das relações de trabalho
remuneradas ou não remuneradas (RIZZINI, 1998). A partir do início do século XX, quando
os primeiros republicanos brasileiros assumem o processo da gestão da população, a
escolarização passa a ser o “ofício da criança e do jovem” para todos os grupos sociais. O
discurso da Pediatria foi a principal “voz” nesse processo de introdução da noção de infância
no país fundamentado, inclusive, outros discursos, tais como, o jurídico e o pedagógico. Para
os médicos higienistas, eram inúmeros os males advindos do considerado “trabalho precoce”,
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sobretudo, o realizado nos estabelecimentos industriais: alto índice de mortalidade,
tuberculose, “defeitos físicos e orgânicos, falhas na vista, no olfato, no coração e nas
glândulas de secreção interna”(AREND, 2007). Nessa perspectiva, o que interessava era a
preservação do corpo físico dos menores para que pudessem alcançar a idade adulta aptos
para o trabalho. Do ponto de vista dos pobres urbanos brasileiros, especialmente para os afro-
descendentes, ainda há um outro elemento que deve ser levado em conta na discussão da
socialização dos infantes pelo trabalho. Ser trabalhador é sinônimo de cidadão, isto é, ao
garantir que crianças e jovens ingressem desde cedo no mercado de trabalho, supõe-se que
estão alcançando um melhor patamar social. (ZALUAR, 1985).
Podemos dividir a História das relações de trabalho infanto-juvenis no Brasil durante o
século XX em três fases distintas. Entre o início do século XX até a década de 1950
encontramos uma grande quantidade de menores de ambos os sexos trabalhando nos setores
agrícola-pesqueiro, no relativo aos serviços domésticos, no industrial, no comercial e no
artístico/esportivo. A regulamentação promovida pelo Estado brasileiro, tendo em vista as
prescrições do Código de Menores de 1927 e da Consolidação das Leis Trabalhistas,
paulatinamente afastou os menores do setor industrial (AREND, 2007). As mudanças que se
verificaram no período posterior estão associadas muito mais ao fenômeno da urbanização e
da modernização do país do que às intervenções realizadas pelas autoridades. Entre 1950 e
1990, no mundo urbano, as crianças e os jovens passam labutar cada vez menos nos setores
agrícola-pesqueiro. O setor comercial, por sua vez, passou por uma primeira grande
regulamentação quando a mão-de-obra familiar é substituída pela mão-de-obra assalariada. A
partir de 1990, com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, temos uma outra
ruptura. O estado brasileiro, através de um conjunto de políticas públicas (Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil, Programa Social Bolsa Escola/Bolsa Família, Programa
Social Família Assistida, etc), bem como da aplicação da lei através da atuação dos
Conselheiros Tutelares, dos operadores do Direito, dos representantes do Ministério do
Trabalho entre outros, buscou intervir nos setores comercial (em especial no ramo da
prostituição feminina), no relativo ao serviço doméstico e no artístico/esportivo (COHN,
2004). A mendicância infanto-juvenil durante décadas permaneceu sendo combatida pelos
representantes do Estado sendo que, somente na última fase, esta atividade deixou de ser
“criminalizada”.
Ao longo do século XX observamos que determinadas atividades ou profissões
desempenhadas pelas crianças e jovens passaram ser consideradas legítimas enquanto que
outras se tornaram ilegítimas (ZELIZER, 1992). Consideramos que o atual cenário vigente no
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Brasil é produto de embates entre os interesses, quase sempre divergentes, das famílias
pobres, dos representantes do Estado brasileiro, dos patrões e dos próprios infantes. Dentre as
atividades ou profissões consideradas legítimas destacam-se a de jogador de futebol. Já entre
as percebidas como ilegítimas destacam-se as atividades desempenhadas pelos menores do
sexo masculino no comércio de entorpecentes. De maneira geral as atividades ou profissões
infanto-juvenis legítimas e ilegítimas na atualidade caracterizam-se pelos seguintes aspectos:
exigem uma determinada socialização ou aprendizagem que deve ocorrer nessa fase da vida;
socialmente são percebidas como serviço de criança ou jovem, pois não prescindem do saber
escolar; demandam um corpo “infantil ou juvenil”; ou ainda promoveriam a ascensão social
do indivíduo e de sua família. As discussões no âmbito da História Social da Família, bem
como de outros campos do saber relativas às relações de trabalho infanto-juvenis têm se
ampliado rompendo com a visão dualista de condenação ou aceitação das mesmas.
Referências Bibliográficas:
AREND, Silvia Maria Fávero. Legislação menorista para o trabalho: infância em construção (Florianópolis, 1930-1945). Uberlândia, Caderno Espaço Feminino, v.17, n.1, jan./ju., 2007, p. 269-292. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. Cahiers du Brésil Contemporain. Brésil. Les siécle des grandes transformations. Paris, n°. 40, 2000. COHN, Amélia. O modelo de proteção social no Brasil: qual o espaço da juventude? In: NOVAES, Regina. VANNUCHI, Paulo (Org.) Juventude e sociedade. Trabalho, educação, cultura e participação. Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 160 -179.
FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
___. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
KUHLMANN JÚNIOR, Moisés; FREITAS, Marcos Cézar. (Orgs.) Os intelectuais na história da infância. São Paulo, Cortez, 2002. †RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma; HOLANDA, Fernanda B. A criança e o adolescente no mundo do trabalho. Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária, 1996. RIZZINI, Irma. Pequenos Trabalhadores do Brasil. In: PRIORE, Mary del (Org.) História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1998, 376-405. SEGALEM, Martine. A revolução industrial: do proletário ao burguês. In: BURGUIÈRE, André et alli (Dir.). História da família. O ocidente: industrialização e urbanização. Lisboa: Terramar, 1997, 5-35.
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ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. As organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1985. ZELIZER, Viviana. Repenser le marche: la construction social du “mache aux bébés” aux Etats-unis, 1870-1930. Actes de la recherche en sciences sociales. Paris, EHESS, vol. 94, p. 3-26, 1992.
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