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Imanência Márcio Otávio Ferreira Pereira Resumo: O presente trabalho pretende estabelecer relações entre o conceito de imanência, a partir de ideias apresentadas por Georges Didi-Huberman no texto A imanência estética, e a prática do desenho. Essa relação se fez possível ao estabelecer uma aproximação entre o corpo do desenhador, seus gestos e suas projeções mentais, que conecta a experiência do desenhar com tempo/espaço, e o resultado final, apresentado através do desenho. Abstract: This paper aims to establish relations between the concept of immanence , from ideas presented by Georges Didi-Huberman in the text Aesthetics immanence, and the practice of drawing . This relationship is made possible by establishing a connection between the body of the drawer, their gestures and mental projections, which connects the experience of the draw with time / space , and the end result , presented through drawing. Corpo e pensamento em um mesmo plano. A imanência no desenho. Segundo o dicionário Aurélio, poderíamos usar o termo imanência para descrever aquilo que está intimamente ligado à vida, que não pode ser encontrado do

A imanência e o desenho

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Page 1: A imanência e o desenho

Imanência

Márcio Otávio Ferreira Pereira

Resumo: O presente trabalho pretende estabelecer relações entre o conceito

de imanência, a partir de ideias apresentadas por Georges Didi-Huberman no

texto A imanência estética, e a prática do desenho. Essa relação se fez

possível ao estabelecer uma aproximação entre o corpo do desenhador, seus

gestos e suas projeções mentais, que conecta a experiência do desenhar

com tempo/espaço, e o resultado final, apresentado através do desenho.

Abstract: This paper aims to establish relations between the concept of

immanence , from ideas presented by Georges Didi-Huberman in the text

Aesthetics immanence, and the practice of drawing . This relationship is made

possible by establishing a connection between the body of the drawer, their

gestures and mental projections, which connects the experience of the draw

with time / space , and the end result , presented through drawing.

Corpo e pensamento em um mesmo plano. A imanência no desenho.

Segundo o dicionário Aurélio, poderíamos usar o termo imanência para

descrever aquilo que está intimamente ligado à vida, que não pode ser

encontrado do lado de fora, algo inerente, inseparável, intríseco. Da mesma

forma poderíamos pensar o desenho.

Não podemos conceber o desenho como algo externo ao próprio ato de

desenhar ou mesmo à própria ação do intelecto que projeta o desenho. O

desenho nasce de uma ação, é circunscrito por uma ação. Desta forma, para

se pensar o desenho é necessário pensá-lo em sua condição imanente.

No texto A imanência estética, Geoges Didi-Huberman analisa alguns

procedimentos gráficos e poéticos em desenhos do poeta, dramaturgo e

artista francês Victor Hugo e aponta para uma estética da imanência.

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Segundo Didi-Huberman essa estética privilegiaria o gesto e não a

representação, o processo e não simplesmento o aspecto, o contato ao invés

da distância.

O desenho constitui a modalidades artísticas mais imanente por excelência.

Por si é constituido por gestos corporais e especulações mentais que se

transformam em registros gráficos, em sua grande maioria. Uma sucessão de

movimentos provocados pelo desenhador que ficam registrados em algum

suporte ou que dão forma à alguma coisa. O desenho seria uma forma direta

de transmitir o que se passa no corpo e pensamento do desenhador.

Também seria a inscrição do movimento do tempo e espaço e a inauguração

da forma.

Neste trabalho trataremos de uma das várias modalidades do desenho,

denominada esboço. Por acreditar que essa modalidade comporta o fazer e o

pensar ao mesmo tempo, ou seja, o esboço ser um tipo de desenho em que

o artista pensa enquanto faz, esta modalidade permitirá aqui aproximar o

desenho da ideia de imanência.

O desenho reencontra no gesto seu propósito existencial. E o gesto, o que

seria? Os gestos fazem parte de uma linguagem corporal utilizados para

comunicar de forma não verbal, possuem uma certa codificação e dizem do

corpo, se inscrevendo no espaço e tempo em que acontecem. Um desenho

se faz exister por este mesmo processo e não por aspectos exteriores a si

mesmo.

Seria então o desenho a síntese perceptiva e um rítmo que nasce do

encontro do corpo com o espaço/tempo no qual este mesmo corpo habita?

Para isso teríamos que pensar que esse mesmo desenho, a partir de

oscilações corporais, variações de intensidades e amplitudes, constituindo

um acontecimento1.

1 Aqui o uso do termo acontecimento remonta ao conceito desenvolvido por Gilles Deleuze e apresentado por Francois Zourabichvili no livro O Vocabulário de Deleuze. O verbete Acontecimento neste vocabulário e apresentado “como aquilo que, na linguagem, distingue-s da proposição, e aquilo que no mundo distingue-se dos estados de coisas”.

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Segundo Didi-Huberman poderíamos caracaterizar imanência por: “o fluxo

generalizado, a dobra de cada coisa em cada coisa, a vida em toda parte, a

matéria porosa destinada às turbulências.” (Didi-Huberman, 2003)

O desenho visto como imanência requisita acesso direto ao tempo, ele se

inscreve no tempo atraves do corpo do desenhador. Ele existe enquanto

movimento, enquanto pulsação. Poderíamos então pensar o ato de desenhar

como o ato se colocar exposto a este fluxo, como uma forma de perceber e

especular a partir dessa matéria porosa destinada a tais turbulências.

Em outra passagem do texto, Didi-Huberman nos descreve como essas

caracteristicas se encontravam presentes em um dos desenhos de Victor

Hugo:

Num pequeno folheto conservado na Biblioteca Nacional da França, Hugo desenhou o perfil severo de um homem de barba; uma espécie de mancha, na frente de sua boca, parece fazer as vezes de sopro sombrio, como este caos "vomitado de volta à terra" pela goela do homem-peixe. Embaixo, à direita, está inscrito: "Demócrito ria/ Heráclito chorava/ Aristóteles observava". Depois, em letras grandes: "Lucrécio sonha". Como em vários outros desenhos, o rosto traçado a pena parace exalar esta visão – esta "ciência terrível" – que a aguada torna indistinta como um turbilhão no qual tudo é chamado a se afogar, a se dissolver. (DIDI-HUMERMAN, 2003)

Seria então desenhar uma tentativa de entrar em contato com algo que se

encontra em plena transformação, em constante metamorfose? O desenho

pderia servir como instrumento para tentar captar o que Victor Hugo chamou

de “a substância2 e imagem que é irradiada de todos os corpos”3?

Na sequência do texto A imanência estética, Didi-Huberman aproxima a ideia

de imanência à imagem do mar. O fluxo das ondas, seu rítmo incessante, sua

extensão e profundidade, uma pulsação que está intimamente ligada à ideia

2Segundo Spinoza, a substância “é algo em si e e que é concebido por sí, isto é, isso cujo conceito não necessita do conceito de nenhuma outra coisa a partir do qual deva ser formado” (SPINOZA, 2007).

3 Hugo, V. "Philosophie prose" (1840, 1854 e 1860). Océan: 64, 69 e 109; "Science – Questions relatives à la forme sphérique" (1843). Océan: 130-1 e "Critique" (1840 ?). Océan: 148.

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de vida. Talvez isso explique o interesse imenso que Victor Hugo nutria por

essa paisagem e tudo que se via associado a ela.

Em seus desenhos que tematizavam o mar ou as ondas, também

apresentados pelo texto de Didi-Huberman, pode se perceber um movimento

de ir e vir produzido pela pena embebida em tinta marrom e aguada que

procura não simplesmente reproduzir a figuração do mar. Ao contrário,

parece que Victor Hugo ao desenhar procura através dos gestos recriar esse

movimento em sua qualidade imanente. Asiim como afirma Didi-Huberman:

“o poeta verdadeiro será ondas e fará ondas”. (Didi-Huberman, 2003)

Meu Destino, 1864. 17,4 x 25,9 cm

Pena, aguada de tinta marrom e guache sobre papel velino.

Paris, Maison de Victor Hugo (Inv. 927)

E exatamente nesse momento, em que o ato de desenhar se faz imanente,

no qual o desenhador não quer simplesmente representar algo, mas sim

disponibilzar seu corpo a uma experiência maior, “fazer elevar em si o

trabalho do mar”. (Didi-Huberman, 2003)

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O desenho entendido como imanência então atua através dessa experiência

com o instante espacial de realização do desenho. Esse desenho carrega em

si a vitalidade dos gestos do desenhador. E seria através dessa vitalidade

que o artista tenta captar o movimento infinito que há nas coisas,

possibilitando ao desenho seus traçados e as intensidades que ele

apresenta.

Referências bibliográficas:

A imanência estética. Didi-Huberman,Georges Alea : Estudos Neolatinos 2003-07-01 info:eu-repo/semantics/article text/html http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2003000100009 por info:eu-repo/semantics/publishedVersion

ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2004.

SPINOZA, Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988