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Próximo lançamento Vila Rica Sylvio de Vasconcellos Este livro engloba uma série de ensaios sobre teoria da arte, iconografia, esti- los e atitudes estéticas. Numa linguagem sempre clara e acessível aos não- iniciados, o autor desenvolve temas que vão desde a conceituação da obra de arte até a extensa e erudita crítica das obras de Dürer e de Poussin. Panofsky conceitua a obra de arte como um "objeto feito pelo homem, que pede para ser experimentado esteticamente". Comparando forma, ideia e conteúdo, é de opinião que o interesse na ideia pode ser equilibrado ou mesmo eclipsado pelo interesse na forma. Depois de estabelecer, com riqueza de deta- lhes, a diferença entre iconografia e iconología, analisa os sistemas de propor- ção nas artes visuais: longe de constituir algo superficial e de escassa impor- tância, as escalas de proporções refletem a mesma intenção da arquitetura, pintura e escultura que lhes são contemporâneas. A vasta erudição apresentada com naturalidade, jamais inoportuna ou pe- dante, é uma fonte de interesse, às vezes, à margem do assunto principal. O enfoque é sempre estético: o significado da obra artística está estreitamente ligado ao estilo, gosto e modo deser de sua época. ~ eBates e ates e ates arte erwin panofsky SIGNIFICADO NAS ARTES VISUAIS

Erwin panofsky - iconografia e iconologia

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Page 1: Erwin panofsky -  iconografia e iconologia

Próximo lançamentoVila RicaSylvio de Vasconcellos

Este livro engloba uma série de ensaios sobre teoria da arte, iconografia, esti-los e atitudes estéticas. Numa linguagem sempre clara e acessível aos não-iniciados, o autor desenvolve temas que vão desde a conceituação da obra dearte até a extensa e erudita crítica das obras de Dürer e de Poussin.Panofsky conceitua a obra de arte como um "objeto feito pelo homem, quepede para ser experimentado esteticamente". Comparando forma, ideia econteúdo, é de opinião que o interesse na ideia pode ser equilibrado ou mesmoeclipsado pelo interesse na forma. Depois de estabelecer, com riqueza de deta-lhes, a diferença entre iconografia e iconología, analisa os sistemas de propor-ção nas artes visuais: longe de constituir algo superficial e de escassa impor-tância, as escalas de proporções refletem a mesma intenção da arquitetura,pintura e escultura que lhes são contemporâneas.A vasta erudição apresentada com naturalidade, jamais inoportuna ou pe-dante, é uma fonte de interesse, às vezes, à margem do assunto principal. Oenfoque é sempre estético: o significado da obra artística está estreitamenteligado ao estilo, gosto e modo deser de sua época.

~eBatese atese ates arte

erwin panofskySIGNIFICADO

NAS ARTES VISUAIS

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Título do original inglêsMeaning in lhe Visual Arts

© 1955, by Erwin Panofsky

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Panofsky, Erwin, 1892-1968.Significado nas artes visuais / Erwin Panofsky ;

[tradução Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg).-São Paulo: Perspectiva, 2012. - (Debates; 99/dirigida por J. Guinsburg)

. Título original: Meaning in the visual arts.5"reimpr. da 3. ed. de 200 I.Bibliografia.ISBN 978-85-273-0243-2

I. Arte - História 2. Arte - Psicologia 3. Panofsky,Erwin, 1892-1968 - Crítica e interpretação 4. Percepçãovisual 5. Significado (Psicologia) I. Guinsburg, J..11.Título. 111.Série.

04-6926 CDD-709

índices para catálogo sistemático:I. Arte: História 709

3' edição - 5' reimpressão

Direitos em língua portuguesa reservados àEDITORA PERSPECTIVA S.A.

Av. Brigadeiro Luís Antônio, 302501401-000 - São Paulo - SP - BrasilTelefax: (0--11) 3885-8388www.editoraperspcctiva.com.br

2012

SUMÁRIO

Prefácio ", .., ,..,'" , ,,,., "., , ,. 11

17Locais Originais de Publicação "",,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,"""",,.

Introdução: A História da Arte como uma DisciplinaHumanística "." , " .

1. Iconografia e Iconologia: Uma Introdução ao Estudo.da Arte da Renascença .

2. A História da Teoria das Proporções Humanas comoReflexo da História dos Estilos """"""""""""",,.

3. O Abade Suger de S. Denis """""""""""""""" .."". 149

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89

4. A Alegoria da Prudência de Ticiano: umPós-Escrito """""."""""""""""""""".".""."" ... ". 191

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ge o espaço de mil ou três mil anos! Pois, na verdade,pode-se dizer que um homem viveu tantos milêniosquantos os abarcados pelo alcance de seu conhecimentode história" 20.

20. MARSÍLIO FIemo, "Carta a Giacomo Bracciolini" (Mar-siLii Fieini Opera omnia, Leyden, 1676, I, p. 658): "res ípsa[sei!., historia] est ad vitam non modo oblectandam, verum-tamen moribus instituendam summopere necessaria. Si quidemper se mortalia sunt, immortalitatem ab historia consequuntur,quae absentia, per eam praesentia fiunt, vetera iuveneseunt,iuvenes cito maturitatem senis adaequant. Ac si senex septua-ginta annorum ob ipsarum rerum experientiam prudens habetur,quanto prudentior, qui annorum mille, et trium milium impletaetatem! Tot vero annorum milia vixisse quisque videtur quotannorum acta didicit ab historia".

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1. ICONOGRAFIA E ICONOLOGIA: UMAINTRODUÇÃO AO ESTUDO DA ARTEDA RENASCENÇA

Iconografia é O ramo da história da arte que tratado tema ou mensagem das obras de arte em c?~tra-p sição à sua forma. Tentemos, portanto, definir adi tinção entre tema ou significado, de um lado, e for-ma, de outro. .

Quando, na rua, um conhecido me cumpnme.nta, ' . de um ponto de vistatirando o. chapéu, o que vejo,f()rmal, é apenas a mudança de alguns det~lhes dentroda configuração que faz parte do padrao geral de

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cores, linhas e volumes que constitui o mundo da minhavisão. Ao identificar, o que faço automaticamente,essa configuração como um objeto (cavalheiro) é amudança de detalhe como um acontecimento (tirar o

:chapéu), ultrapasso os limites da percepção puramenteformal e penetro na primeira esfera do tema ou men-sagem. O significado assim percebido é de naturezaelementar e facilmente compreensível e passaremos achamá-Io de significado fatual; é apreendido pela símeples identificação de certas fon;nas visíveis com certosobjetos que já conheço por experiência prática e pelaidentificação da mudança de suas relações com certasações ou fatos.

Ora, os objetos e fatos assim identificados produ-zirão, naturalmente, uma reação em mim. Pelo mododo meu conhecido executar sua ação, poderei saber seestá de bom ou mau humor, ou se seus sentimentosa meu respeito são de amizade, indiferença ou hostili-dade. Essas nuanças psicológicas darão ao gesto demeu amigo um significado ulterior que chamaremos deexpressional. Difere do fatual por ser apreendido, nãopor simples identificação, mas por "empatia", Paracompreendê-Io preciso de uma certa sensibilidade, masessa é ainda parte de minha experiência prática, isto é,de minha familiaridade cotidiana com objetos e fatos.Assim, tanto o significado expressional como o fatualpodem classificar-se juntos: constituem a classe dossignificados primários ou naturais.

Entretanto, minha compreensão de que o ato detirar o chapéu representa um cumprimento pertence aum campo totalmente diverso de interpretação. Essaforma de saudação é peculiar ao mundo ocidental eum resquício do cavalheirismo medieval: os homensarmados costumavam retirar os elmos para deixaremclaras suas intenções pacíficas e sua confiança nas in-tenções pacíficas dos outros. Não se poderia esperarque um bosquímano australiano ou um grego antigocompreendessem que o ato de tirar o chapéu fosse, nãosó um acontecimento prático com algumas conotaçõesexpressivas, como também um signo de polidez. Paraentender o que o gesto do cavalheiro significa, precisonão somente estar familiarizado com o mundo prático

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dos objetos e fatos, mas, além disso, com o mundomais do que prático dos costumes e tradições culturaispeculiares a uma dada civilização. De modo invers~,meu conhecido não se sentiria impelido a me cumpn-mentar tirando o chapéu se não estivesse cônscio dosignificado deste ato. Quanto às conotações expressio-nais que acompanham sua ação, pode ou não ter cons-ciência delas. Portanto, quando interpreto o fato detirar o chapéu como uma saudação polida, reconheçonele um significado que pode ser chamado de secun-dário ou convencional; difere do primário ou naturalpor duas razões:' em primeiro lugar, por ser inteligívelem vez de sensível e, em segundo, por ter sido cons-cientemente conferido à ação prática pela qual é vei-culado.

E finalmente: além de constituir um acontecimen-to natural no tempo e espaço, além de indicar, natural-mente, disposições de ânimo e sentimentos, além decomunicar uma saudação convencional, a ação do meuconhecido pode revelar a um observador experimentadotudo aquilo que entra na composição de sua "perso-nalidade'. Essa personalidade é condicionada por serele um homem do século XX, por suas bases nacionais,sociais e de educação, pela história de sua vida passadae pelas circunstâncias atuais que o rodeiam; mas elatambém se distingue pelo modo individual de encararas coisas e de reagir ao mundo que, se racionalizado,deveria chamar-se de filosofia. Na ação isolada de umasaudação cortês, todos esses fatos não. se manifestamclaramente, porém sintomaticamente. Não podemosconstruir o retrato mental de um homem com basenesta ação isolada, e sim coordenando um grande nú-mero de observações similares e interpretando-as nocontexto de novas informações gerais quanto à suaépoca, nacionalidade, classe social, tradições intelec-tuais e assim por diante. No entanto, todas essas qu~-lidades que o retrato mental explicitamente mostranasão implicitamente inerentes a cada ação isolada; demodo que, inversamente, cada ação pode ser inter-pretada à luz dessas qualidades.

O significado .assim descoberto pode denominar-seintrínseco ou conteúdo; é essencial, enquanto que os

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outros dois ,tipos de significado, o primário ou naturale o ,secunda.rI? ou convencional, são fenomenais. Eposs.Ivel defIm-l? como um princípio unificador ques~bl~~ha _e ~xphc~ os acontecimentos visíveis e suasignificação inteligíve] e que determina até a forma soba qual o acontecimento visível se manifesta. Normal-m~nte, esse significado intrínseco ou conteúdo está tão~clma da esfe~a da vontade consciente quanto o signi-ficado expressíonal está abaixo dela.

. !ransportando os resultados desta análise da vidacotidiana ~ara, u~a obra de arte, cabe distinguir osmesmos tres mvers no seu tema ou significado:

I. Tema primário ou natural, subdividido em[atual e expressional. E apreendido pela identificação~as formas puras, ou seja: certas configurações delinha e cor, ou determinados pedaços de bronze oupedra de f?rm~ peculiar, como representativos de obje-tos naturais tais que seres humanos, animais, plantas,c~sas, ferramentas e assim por diante; pela identifica-çao de suas relações mútuas como acontecimentos' epela percepção de algumas qualidades expression~s,como o caráte~ pesaros~.de uma pose ou gesto, ou aatmosfera caseira e pacííica de um interior. O mundodas formas puras assim reconhecidas como ortad~asde-significados Illimários ou naturais pode s.et..chamadode mundo .dos motivos artísticos. Uma enumeraçãodess~s motivos constituiria uma descrição pré-icono-gráfica de uma obra de arte.

. 11. Tema secundário ou convencional: é apreen-dido pela percepção de que uma figura masculina comum~ ~aca representa São Bartolomeu, que uma figurafeminina .com um pêssego na mão é a personificaçãoda veracldade~ que um grupo de figuras, sentadas auma mesa de J~ntar n~ma certa disposição e pose, re-presenta a O:ltzma Ceia, ou que duas figuras comba-tendo entre SI, numa dada posição, representam a Lutaentr~ o Víci~ .e a Virtude. Assim fazendo, ligamo.!! s~ os artIstIcos e as binações de motivos artís-tI!!..o~(composições) com assuntos e conceitos. 1ÃÕti-VQLIe.Con.ecidos-co~adore5-de um-mgnificado

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~Q_ou-con."encio.naLP.odem chamar-se imagens,sendo que combinações de imagens são o que os anti-gos teóricos de arte chamavam de invenzioni; nós cos-tumamos dar-lhes o nome de estórias e alegorias 1. Aidentifi yã0-cle-tais imagens, estóri e..alegorias é. 'O'omínio da uilo gue é E.~~ mem~hecidoor

'~rafia". De fato, ao falarmos do "tema em opo-síção à forma", referimo-nos, principalmente, à esferados temas secundários ou convencionais, ou seja, aomundo dos assuntos específicos ou conceitos manifes-tados em imagens, estórias e alegorias, em oposiçãoao campo dos temas primários ou naturais manifestadosnos motivos artísticos. "Análise formal", segundoWõlfflin, é uma análise de motivos e combinações demotivos (composições), pois, no sentido exato da pa-lavra, uma análise formal deveria evitar expressões co-mo "homem", "cavalo" ou "coluna", sem falarmos em ~frases como "o feio triângulo entre as pernas de Davi 1.de Michelangelo" ou "a admirável iluminação das jun-tas do corpo humano". :B óbvio que uma análise ico-nográfica correta pressupõe uma identificação exata dosmotivos. Se a faca que nos permite identificar SãoBartolomeu não for uma faca, mas um abridor degarrafas, a figura não será São Bartolomeu. Alémdisso, é importante notar que a afirmação "essa figura

1. Imagens que veiculam a Idéia. não de objetos e pessoasconcretos e individuais (tais como São Bartolomeu, Vênus. Mrs.Jones ou o Castelo de Wlndsor). mas de noções gerais e abstra-tas como Fé, Luxúria, S,abedoria etc., são chamadas personifica-ções ou símbolos (não no sentido cassireriano, mas no comum,e.g., a Cruz, ou a Torre da Castidade). Assim, ~egQ~1!5s, em~stóri~ ser g.efin como combinaç esâee on ces-êTo}L.8ÍmBOJ.õS':"""'Ita, é claro, 'muitas possibilidades

ílíterínefãs. Uma pessoa A 'pode ser retratada sob o disfarceda pessoa B (Andrea Doria de Bronzino como Netuno; LucasPaumglirtner de Dürer como São Jorge), ou na atitude costjr-meira de uma personificação (Mrs. Stanhope de Joshua Reynoldscomo "Contemplação"); retratos de pessoas individuais e con-cretas, tanto humanas como mitológicas, podem combinar-se compersonificações, como é o caso das Incontãveis representaçõesde caráter euloglstico. Uma estória pode comunicar, também,uma idéia alegórica, como é o caso das ilustrações do OvtdeMoralisé, ou POdE,ser concebida como uma prefiguração de uma

-outra estória, con.o na Biblia Pauperum. ou na Speculum Hu-manae Salvationis. Tais significados sobrepostos, ou não entramno conteúdo da obra, como no caso .(ias ilustrações do Ov~deMoralisé, que são visualmente indistingulvels das miniaturas nãoalegóricas .a Ilustrar os mesmos temas ovídíanos: ou podemocasionar uma ambigüidade de conteúdo que, entretanto, podeser ultrapassada ou mesmo transformada num valor adicionalse os ingredientes conflitantes forem fundidos ao calor de umtemperamento artístico ardente como na Galeria dos Mediei,de Rubens. '

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é uma imagem de São Bartolomeu" implica a intençãoconsciente do artista de representar este Santo, emboraas qualidades expressivas da figura possam perfeita-

( mente não ser intencionais.4 I • IH. Significado intrínseco ou conteúdo: é apre-$( endido pela determinação daqueles princípios subja-'" centes que revelam a atitude básica de uma nação, deJ um período, classe social, crença religiosa ou filosó-- fica - qualificados por uma personalidade e conden-i sados numa obra. Não é preciso dizer que estes prin-<y cípios se manifestam, e portanto esclarecem, quer

..§ através dos "métodos de composição", quer da "signi-~ ficação iconográfica". Nos séculos XIV e XV, por" exemplo (os primeiros exemplos datam de cerca de

1300), o tipo da Natividade tradicional, com a Virgem1Maria reclinada numa cama ou canapé, foi freqüen-_q: temente substituído por um outro que mostra a Virgem~ . ajoelhada em adoração ante o Menino. Do ponto de

cl ~ vista da composição, essa mudança significa, falando~ -j grosso modo, a substituição do esquema triangular por0.) outro retangular; do ponto de vista iconográfico, signi-~ fica a introdução de um novo tema a ser formulado

na escrita por autores como o Pseudo-Boaventura e.f Santa Brígida. Mas, ao mesmo tempo, revela uma"fi nova atitude emocional, característica do último período~ da Idade Média. Uma interpretação realmente exaus-

tiva do significado intrínseco ou conteúdo poderia até

1nos mostrar técnicas características de um certo país,período ou artista, por exemplo, a preferência de

_< Michelangelo pela escultura em pedra, em vez de em-, bronze, ou o uso peculiar das sombras em seus de-

senhos, são sintomáticos de uma mesma atitude básicaque é discernível em todas as outras qualidades especí-ficas de seu estilo. Ao 'concebermos assim as formaspuras, os motivos, imagens, estórias e alegorias, comomanifestações de princípios básicos e gerais, interpre-tamos todos esses elementos como sendo o que ErnstCassirer chamou de valores "simbólicos". Enquantonos limitarmos a afirmar que o famoso afresco de Leo-nardo da Vinci mostra um grupo de treze homens' emvolta a uma mesa de jantar e que esse grupo de homensrepresenta a Última Ceia, tratamos a obra de artecomo tal e interpretamos suas características composi-

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11111I18 e iconográficas como qualificações e proprie-IlIul fi a ela inerentes. Mas, quando tentamos compre-

1\ I -la como um documento da personalidade deI (onardo, ou da civilização da Alta Renascença ita-IIIIIU, ou de uma atitude religiosa particular, tratamost obra de arte como um sifitõffiã e algo mais que seI pressa numa variedade íncontável de outros sintomas

interpretaúlos suas características composicionais e('onográficas como evidência mais particularizada desse"nlgo mais". A descoberta ~ interpretação desses va-I Ires "simbólicos" (que, muitas vezes, são desconhe-'idos pelo próprio artista e podem, até, diferir enfati-'umente do que ele conscientemente tentou expressar)o objeto do que se poderia designar por "iconologia"

m oposição a "iconografia".[O sufixo "grafia" vem do verbo grego graphein,

"escrever"; implica um método de proceder puram.entedescritivo, ou até mesmo estatístico. .h ico!lQ.gr.afia,.i,portanto, a descri~ão e clf!Sl·ficação...d im gens, assimcomo a' etnografia é a descrição e classificação dasraças humanas; é um estudo limitado e, como queancilar, que nos informa quando e onde temas especí-ficos foram visualizados por quais motivos específicos.Diz-nos quando e onde o Cristo crucificado usava umatanga ou uma veste comprida; quando e onde foi Elepregado à Cruz, e se com quatro ou três cravos; comoo Vício e a Virtude eram representados nos diferentesséculos e ambientes. Ao fazer este trabalho, a ícono-grafia é de auxílio incalculável para o estabelecimentode datas, origens e, às vezes, autenticidade; e forneceas bases necessárias para quaisquer interpretações ul-teriores. Entretanto, ela não tenta elaborar a interpre-tação->sozinha. Coleta e classifica a evidência, masnão se considera obrigada ou capacitada a investigara gênese e significação dessa evidência: a interaçãoentre os diversos "tipos"; a influência das idéias filo-sóficas, teológicas e políticas; os propósitos e inclin~-ções individuais dos artistas e patronos; a correlaçaoentre os conceitos inteligíveis e a forma visível queassume em cada caso específico. Resumindo, a icono-grafia considera apenas uma parte de todos esses ele-mentos que constituem o conteúdo intrínseco de uma

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obra de arte e que precisam tornar-se explícitos se sequiser que a percepção desse conteúdo venha a serarticulada e comunicável.

[Devido às graves restrições que o uso corriqueiro,especialmente nesse país *, opõem à palavra "icono-grafia", proponho revi ver o velho e bom termo, "icono-logia", sempre que a iconografia for tirada de seuisolamento e integrada em qualquer outro método his-tórico, psicológico ou crítico, que tentemos usar pararesolver o enigma da esfinge. Pois, se o sufixo "grafia"denota algo descritivo, assim também o sufixo "logia"- derivado de logos, que quer dizer "pensamento","razão" - denota algo interpretativo. "Etnologia",por exemplo, é definida como "ciência das raças hu-manas" pelo mesmo Oxjord Dictionary que define"etnografia" como "descrição das raças humanas"; eo Webster adverte, explicitamente, contra uma confusãodos dois termos, na medida em que a "etnografia serestringe ao tratamento puramente descritivo de povose raças, enquanto a etnologia denota seu estudo com-parativo". Assim, concebo a ·cGaele~umaiconografia....que se toma.ínterpretatíaa.a-desse-modo,converte-se em-parte-integr-aLdG-e..S.tudG-da..arte.-., emvez de-fiea limitada ao pape e exa statístico~minar. Há, entretanto, certo perigo de a iconologiase portar, não como a etnologia em oposição à etno-grafia, mas como a astrologia em oposição à astro-grafia.]

Iconologia, portanto, é um método de interpreta-ção que advém da íntese mais ue da ilise. Eassim como a exata identificação dos motivos é o re-quisito básico de uma correta análise iconográfica,também a exata análise das imagens, estórias e ale-gorias é o requisito essencial para uma correta inter-pretação iconológica - a não ser que lidemos comobras de arte nas quais todo o campo do tema secun-dário ou convencional tenha sido eliminado e haja umatransição direta dos motivos para o conteúdo, como éo caso da pintura paisagística européia, da naturezamorta e da pintura de gênero, sem falarmos da arte"não-objetiva" .

• o autor se refere aos Estados Unidos da América doNorte. (N. da T.)

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Pois bem, como poderemos conseguir "exatidão"ao lidarmos com esses três níveis, descrição pré-icono-gráfica, análise iconográfica e interpretação iconoló-·gica?

No caso de uma descrição pré-iconográfica, quese mantém dentro dos limites do mundo dos motivos,o problema parece bastante simples. Os objetos eeventos, cuja representação por linhas, cores e volumesconstituem o mundo dos motivos, podem ser identifi-cados, como já vimos, tendo por base nossa experiên-cia prática. Qualquer pessoa pode reconhecer a formae o comportamento dos seres humanos, animais e plan-tas, e não há quem não possa distinguir um rosto zan-gado de um alegre. :E: claro, às vezes acontece, numdado caso, que o alcance de nossa experiência não sejasuficiente, por exemplo, quando nos defrontamos coma representação de um utensílio obsoleto óu desfamiliarou com a representação de uma planta ou animal des-conhecidos. Nesses casos, precisamos aumentar o al-cance de nossa experiência prática consultando um livroou um perito; mas, mesmo assim, não abandonamos aesfera da experiência prática como tal, que nos indica,é desnecessário dizer, o tipo de perito que se deveconsultar.

Todavia, mesmo nesta área, deparàmos com umproblema especial. Pondo de lado o fato de os objetos,acontecimentos e expressões pintados numa obra de artepoderem ser irreconhecíveis devido à incompetênciaou premeditação maliciosa do artista, é impossível che-gar a uma exata descrição pré-iconográfica ou identi-ficação primária do tema, aplicando, indiscriminada-mente, nossa experiência prática a uma obra de arte.Nossa experiência prática é indispensável e suficiente,como material para a descrição pré-iconográfica, masnão garante sua exatidão.

Uma descrição pré-iconográfica da obra de Rogervan der Weyden, Os Três Magos, que está no KaiserFriedrich Museum, de Berlim (Fig. 1), teria, é claro,que evitar termos como "Magos" e "Menino Jesus"etc. Mas seria obrigada a mencionar que a apariçaoda criança foi vista no céu. Como sabemos que afigura da criança é para ser entendida como uma apa-rição? O fato de estar rodeada de halos dourados não

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é prova suficiente dessa suposição, pois halos similarespodem ser observados em representações da Nativi-dade, onde o Menino Jesus é real. Só podemos deduzirque a criança do quadro de Roger deve ser entendidacomo uma aparição pelo fato de pairar em pleno ar.Mas, corno sabemos que paira no ar? Sua pose nãoseria diferente se estivesse sentada numa almofada nochão; de fato, é altamente provável que o artista tenhausado um desenho ao vivo de uma criança sentadanum travesseiro. A única razão válida para a nossasuposição de que a criança na pintura de Berlim sejauma aparição é o fato de estar configurada no espaço,sem nenhum apoio visível.

Podemos, porém, aduzir centenas de casos em queseres humanos, animais e objetos inanimados parecemestar soltos no espaço, violando as leis da gravidade,sem nem por isso pretenderem ser aparições. Porexemplo, numa miniatura dos Evangelhos de Dto lII,que se encontra na Staatsbibliothek de Munique, umacidade Inteira é representada no centro de um espaçolivre, enquanto que as figuras participantes da açãopermanecem no solo (Fig. 2) 2.

Um observador inexperiente poderia perfeitamen-te presumir que a cidade deveria ser entendida comoestando suspensa no ar por uma espécie de magia.Todavia, neste caso, a falta de apoio nãoimplica umainvalidação miraculosa das leis da natureza. A cidaderepresentada é uma cidade efetiva, Nain, onde se deua ressurreição do jovem. Numa miniatura de cercado ano 1000, o "espaço vazio" não vale realmentecomo meio tridimensional, como acontece num períodomais realista, mas serve como fundo abstrato irreal.O curioso formato semicircular do que deveria ser alinha básica das torres atesta que, no protótipo maisrealista da nossa miniatura, a cidade situava-se numterreno montanhoso, mas foi transposta para uma re-presentação na qual o espaço deixara de ser concebidoem termos de realismo perspectivo. Assim, enquantoa figura sem apoio da obra de van der Weyden é umaaparição, a cidade flutuante da miniatura otoniana nãotem nenhuma conotação miraculosa. Estas interpre-

2. LEIDINGER. G. Das sogenannte Evangeliar Ottos lU. Mu-nique. 1912. pr. 36.

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tações contrastantes nos são sugeridas pelas qualidades"realísticas" da pintura e pelas qualidades "irrealísti-cas" da miniatura. Mas, o fato de apreendermos essasqualidades na fração de um segundo, quase automatica-mente, não nos deve levar a crer que jamais nos sejapossível dar uma correta descrição pré-iconográfica deuma obra de arte sem adivinharmos, por assim dizer,qual o seu locus histórico. Embora acreditemos estaridentificando os motivos com base em nossa experiên-cia prática pura e simples, estamos, na verdade, lendo"o que vemos", de conformidade com o modo peloqual os objetos e fatos são expressos por formas quevariam segundo as condições históricas. Ao fazermosisso, submetemos nossa experiência prática a um prin-cípio "Corretivo que cabe chamar de história doestilo 3.

A análise iconográfica, tratando das imagens, es-tórias e alegorias em vez de motivos, pressupõe, éclaro, muito mais que a familiaridade com objetos efatos que adquirimos pela experiência prática. Pres-supõe a familiaridade com temas específicos ou con-ceitos, tal como são transmitidos através de fontesliterárias, quer obtidos por leitura deliberada ou tradi-ção oral. Nosso bosquímano australiano não seriacapaz de reconhecer o assunto da Última Ceia; esta lhecomunicaria apenas a idéia de um jantar animado. Paracompreender o significado iconográfico da pintura, teriaque se familiarizar com o conteúdo dos Evangelhos.

3. Corrigir.a interpretação de uma obra de arte individualpor uma "história do estilo" que. por sua vez, só pode serconstruida pela interpretação de obras individuais pode parecerum círculo vicioso. Na verdade é um círculo, porém não viciosoe sim metódico (cf. E. WIND, Das Experiment und die Meta-physik, citado acima p. 23; idem, "Some points of contact betweenHistory and Science", citado ibidem). Quer lidemos com fenô-menos históricos ou naturais, a observação individual assume ocaráter de um "fato" somente quando for possível relacioná-Iacom outras observações .análogas de tal modo que a série inteira"faça sentido". Tal "sentido" pode, portanto, perfeitamente seraplicado à interpretação de uma nova observação individualdentro de um mesmo raio de fenômenos. Se, entretanto, essanova observação individual se recusar, definitivamente, a serinterpretada segundo o "sentido" da série, e se se provar aimpossibilidade de erro, dever-ae-á reformular o "sentido" dasérie para incluir a nova observação individual. Este circulusmethodicus se aplica, é claro, não apenas ao relacionamentoentre a interpretação dos motivos e a história do estilo, mastambém ao relacionamento entre a interpretação das imagens,estórias e alegorias e a história dos tipos, e ao relacionamentoentre a interpretação de significados intrínsecos e a históriados sintomas culturais em geral.

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Quando se trata da representação de temas outros querelatos bíblicos ou cenas da história ou mitologia que,normalmente, são conhecidos pela média das "pessoaseducadas", todos nós somos bosquímanos australianos.Nesses casos, devemos, também nós, tentar nos fami-liarizar com aquilo que os autores das representaçõesliam ou sabiam. No entanto, mais uma vez, emborao conhecimento dos temas e conceitos específicos trans-mitidos através de fontes literárias seja indispensável esuficiente para uma análise iconográfica, não garantesua exatidão. E tão impossível, para nós, fornecer umaanálise iconográfica correta aplicando, indiscriminada-mente, nosso conhecimento literário aos motivos, quan-to fornecer uma descrição pré-iconográfica certa apli-cando, indiscriminadamente, nossa experiência práticaàs formas.

Um quadro, de autoria de um pintor veneziano doséculo XVII, Francesco Maffei, representando uma bo-nita jovem com uma espada na mão esquerda e, nadireita, uma travessa na qual está a cabeça de umhomem degolado (Fig. 3) foi publicado como o retratode Salomé com a cabeça de São João Batista 4. Defato, a Bíblia afirma que a cabeça de São João Batistafoi apresentada a Salomé numa bandeja ou prato. Mas,e a espada? Salomé não decapitou o santo com aspróprias mãos. Pois bem, a ~íblia nos fala de umaoutra bela mulher em conexão com o degolamento deum homem: Judite. Neste caso, a situação é exata-mente inversa. A espada no quadro de Maffei estariacorreta, porque Judite decapitou Holofernes com aspróprias mãos, mas a travessa não concorda com suaestória, pois o texto diz, explicitamente, que a cabeçade Holofernes foi posta num saco. Assim, temos duasfontes literárias aplicáveis à mesma obra, com os mes-mos direitos e mesma incoerência. Se a interpretarmoscomo o retrato de Salomé, o texto explicaria a travessa,mas não a espada; se a interpretarmos como figuraçãode Judite, o texto explicaria a espada, mas não atravessa. Estaríamos inteiramente perdidos se depen-dêssemos apenas das fontes literárias. Felizmente, essenão é o caso. Assim como pudemos suplementar e

4. FIOcco, G. Venetían Paíntíng 01 the Seicento and theSettecento, Florença e Nova York, 1929, pr. 29.

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ÕC,)o:!=~:----------~------ corngrr nossa expenencia prática investigando a ma-

neira pela qual, sob diferentes condições históricas,objetos e fatos eram expressos pelas formas, ou seja,a história dos estilos, do mesmo modo podemos suple-mentar e corrigir nosso conhecimento das fontes lite-rárias, investigando o modo pelo qual, sob diferentescondições históricas, temas específicos ou conceitoseram expressos por objetos e fatos, ou seja, a históriados tipos.

No caso presente, teremos que perguntar se havia,antes de Maffei pintar seu quadro, quaisquer retratosindiscutíveis de Judite (indiscutíveis porque incluiriam,por exemplo, a criada de Judite) que apresentassem,também, travessas injustificadas; ou quaisquer retratosindiscutíveis de Salomé (indiscutíveis porque inclui-riam, por exemplo, os pais desta) que apresentassemespadas injustificadas. Pois bem! Embora não possa-mos aduzir nenhuma Salomé com uma espada, vamosencontrar, tanto na Alemanha quanto na Itália do Nor-te, várias pinturas do século XVI representando Juditecom uma travessa 5; havia um "tipo'tde "Judite coma travessa", porém, não havia um "tipo" de "Salomécom a espada". Daí podemos, seguramente, concluirque também a obra de Maffei representa Judite e não,como se chegou a pensar, Salomé.

Caberia ainda, indagar por que os artistas se sen-tiram no direito de transferir o motivo da travessa deSalomé para Judite, mas não o motivo da espada· deJudite para Salomé. Esta pergunta pode ser respon-dida, investigando mais uma vez a história dos tipos,com duas razões. Uma é que a espada era um atributoestabelecido e honorífico de Judite, de muitos mártirese de algumas virtudes, como a Justiça, a Fortaleza etc.;

5. Uma das pinturas do Norte italiano é atribuída a Roma-nino e encontra-se hoje no Berlin Museum, onde era antescatalogada como Salomé a despeito da aia, de um soldado dor-mindo e da cidade de Jerusalém ao fundo (n. 155); outra éatribuída ao discípulo de Romanino, Francesco Prato da Cara-vaggio (catalogada no Catálogo de Berlim) e uma terceira é deautoria de Bernardo Strozzi, que nasceu em Gênova mas atuouem Veneza mais ou menos na mesma época que FrancescoMaffei. É bem possível que o tipo de Judite com uma travlessase originasse na Alemanha. Um dos primeiros exemplos conhe-cidos (de autoria de um mestre anônimo de cerca de 1530,relacionado com Hans Baldung Grien) foi publicado por G,POENSGEN,Beí trâge zu Baldung und seinem Kreis, Zeitschrift[ur Kunstgeschichte, VI, 1937, p. 36 e ss.

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assim, não poderia ser transferida, com propriedadepara, uma jovem lasciva. A outra razão é que, durant~os _seculo.sXIV e XV, a bandeja com a cabeça de SãoJoao Batista tornara-se uma imagem devocional isolada(Andachtsbild) muito popular nos países nórdicos eno Norte da Itália (Fig. 4); fora extraída da represen-tação da estória de Salomé do mesmo modo como ogrupo de São João Evangelista descansando no colo doSenhor viera a ser extraído da Última Ceia, ou a Vir-gem no parto da Natividade. A existência dessa ima-gem devocional estabeleceu uma associação fixada deidéias entre a cabeça de um homem decapitado e umatravessa, e assim, o motivo da bandeja substituiria maisfacilm~nte o motivo do saco na estória de Judite queo motivo da, espada poderia se encaixar numa repre-sentação de Salomé.

. Finalment~,.a i,nterpretação iconológica requer algo~~IS que a fa~IlIandade ,com conceitos ou temas espe-CIfIC?Stransmitidos atraves de fontes literárias. QuandodeseJ~mos nos assenhorear desses princípios básicos quenorteíam a escolha e apresentação dos motivos, bemcomo da. produção e interpretação de imagens, estóriase ~legonas, e que dão sentido até aos arranjos for-mais e aos processos técnicos empregados, não pode-m~s ~s?erar, e.ncontrar um texto que se ajuste a essespnncipros básicos, como João 13:21 se ajusta à ico-nograf!a da Última Ceia. Para captar esses princípios,necessitamos de uma faculdade mental comparável àde um clínico nos seus diagnóstícos - faculdade essaque só me é dado descrever pelo termo bastante desa-creditado .de "intuição sintética", e que pode ser maisdesenvolvida num leigo talentoso do que num estudiosoerudito. -

Entretanto, quanto mais subjetiva e irracional fores~~ fonte d~ interpretação (pois toda abordagem in-tuitiva estara condicionada pela psicologia e Weltans-chauung do intérprete) tanto mais necessária a aplica-~ão. dessc:s ~orr~tivos e controles que provaram ser'índíspensãveis !~onde estavam envolvidas apenas aanalise iconográfica e a descrição pré-iconográfica. Senossa experiência prática e nosso conhecimento das~on~es!it~rárias podem nos transviar quando aplicados,mdIscnmmadamente, as obras de arte, quão mais peri-

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II O não seria confiar em nossa intuição pura e sim-pl! I Assim, do mesmo modo que foi preciso corrigir111' nas nossa experiência prática por uma compreensãolI. maneira pela qual, sob diferentes condições histó-I I as, objetos e fatos foram expressos pelas formas(história dos estilos); e que foi preciso corrigir nossoI unhecimento das fontes literárias por uma compreensão.ln maneira pela qual, sob condições históricas dife-I ntes, temas específicos e conceitos foram expressospor objetos e fatos (história dos tipos), também ou11 nda mais, nossa intuição sintética deve ser corrigidapor uma compreensão da maneira pela qual, sob dife-r ntes condições históricas, as tendências gerais e essen-'lais da mente humana foram expressas por temasspecíficos e conceitos. Isso significa o que se podehamar de história dos sintomas culturais - ou "sím-

bolos", no sentido de Ernst Cassirer - em geral. Ohistoriador de arte terá de aferir o que julga ser osignificado intrínseco da obra ou grupo de obras, aque devota sua atenção, com base no que pensa serO significado intrínseco de tantos outros documentosda civilização historicamente relacionados a esta obraou grupo de obras quantos conseguir: de documentosque testemunhem as tendências políticas, poéticas, re-ligiosas, filosóficas e sociais da personalidade, períodoou país sob investigação. Nem é preciso dizer que,de modo inverso, o historiador da vida política, poesia,religião, filosofia e situações sociais deveria fazer usoanálogo das obras de arte. É na pesquisa de signifi-cados intrínsecos ou conteúdo que as diversas disci-plinas humanísticas se encontram num plano comum,em vez de servirem apenas de criadas umas das outras.

Concluindo: quando queremos nos expressar demaneira muito estrita (o que nem sempre é necessáriona linguagem escrita ou falada de todo dia, onde ocontexto geral esclarece o significado de nossas pala-vras) , incumbe-nos distinguir entre três camadas detema ou mensagem, sendo que a mais baixa é comu-mente confundida com a forma e a segunda é o domínioespecial da iconografia em oposição à iconologia. Emqualquer camada que nos movamos, nossas identifica-ções e interpretações dependerão de nosso equipamento

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subjetivo e por essa mesma razão terão de ser suple-mentados e corrigidos por uma compreensão dos pro-cessos históricos cuja soma total pode denominar-setradição.

Resumi, num quadro sinóptico, o que tenteiexplicar até agora. Devemos, porém, ter em menteque essas categorias nitidamente diferenciadas, que noquadro sinóptico parecem indicar três esferas indepen-dentes de significado, na realidade se referem a aspectosde um mesmo fenômeno, ou seja, à obra de arte comoum todo. Assim sendo, no trabalho real, os métodosde abordagem que aqui aparecem como três operaçõesde pesquisa irrelacionadas entre si, fundem-se nummesmo processo orgânico e indivisíveI.

II

I

11

Saindo dos problemas da iconografia e iconologiaem geral para os problemas da iconografia e iconologiada Renascença em particular, é natural que nos inte-ressemos pelo fenômeno do qual derivou o próprio no-me desse período artístico: o renascimento da Anti-guidade clássica.

OBJETO DA INTERPRETAÇÃO ATO DA INTERPRETAÇÃO

L Tema primário ou natural-:- (A) fatual, (B) expres-sional - constituindo o mun-do dos motivos artísticos.

Descrição pré-iconográfica (eanálise pseudoformal).

11. Tema secundário ou con-vencional, constituindo omundo das imagens, estôriase alegorias.

Análise Iconográjica.

lU. Significado intrínseco ouconteúdo, constituindo o mun-do dos valores "simbôlicos",

Interpretação iconolágica.

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s primeiros escritores italianos que se dedicaramI fi I ria da arte, como Lorenzo Ghiberti, Leone Bat-

I 111 Alberti e principalmente Giorgio Vasari, pensavam1/111 11 arte clássica fora derrubada no começo da eraI I I e não revivera até servir de fundamento para oI I 10 da Renascença. As razões para esta derrubada;1111 nvam esses escritores, foram as invasões dos povosII irbaros e a hostilidade dos primeiros padres e eruditoslllslãos.

Tais escritores estavam ao mesmo tempo certos e( irados pensando como pensavam. Errados, na medidat 111 que não houve uma verdadeira quebra de tradiçãodurante a Idade Média. Concepções clássicas, literá-I as, filosóficas, científicas e artísticas sobreviveramutravés dos séculos, particularmente depois que foramI liberadamente revivificadas no tempo de Carlos Mag-

11 e seus sucessores. Entretanto, esses primeiros escri-tores estavam certos na medida em que a atitude geralpara com a Antiguidade se modificou fundamentalmentequando o movimento renascentista apareceu.

A Idade Média não foi, de modo algum, cega anteaos valores visuais da arte clássica e interessava-se,

EQUIPAMENTO PARA AINTERPRETAÇÃO

PRINCÍPIOS CORRETIVOS DEINTERPRETAÇÃO

(História da Tradição)

Experiência prática (familia-ridade com objetos e eventos).

História do estilo (compreen-são da maneira pela qual, sobdiferentes condições históricas,objetos e eventos foram ex-pressos pelas formas).

Conhecimento de fontes lite-rárias (familiaridade comtemas e conceitos específicos).

História dos tipos (compreen-são da maneira pela qual,sob diferentes condições his-tóricas, temas ou conceitosforam expressos por objetos ee\entos).

Intuição sintética (familiari-dade com as tendências essen-ciais da mente humana), con-dicionada pela psicologia pes-soal e Weltanschauung:

História dos sintomas cultu-rais ou "símbolos" (compre-ensão da maneira pela qual,sob diferentes condições his-tóricas, tendências essenciaisda mente humana foram ex-pressas por temas e conceitosespecíficos) .

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I"orundamente, pelos valores intelectuais e poéticos da1IIIIulura clássica. Mas é significativo que, precisa-uu-utc no auge do período medieval (séculos XIII c

IV ), os motivos clássicos não fossem usados para a11' prcsentação de temas clássicos, enquanto que, inver-unente, temas clássicos não fossem expressos por mo-

I vos clássicos.Por exemplo, na fachada da Catedral de São Mar-

I'OS, em Veneza, vêem-se dois grandes relevos de mes-1110 tamanho, sendo um obra romana do século IIId.. e o outro executado em Veneza quase que exata-mente mil anos depois (Figs. 5 e 6)6. Os motivos sãoI 10 parecidos que somos forçados a supor que o es-cultor medieval tenha deliberadamente copiado a obraclássica a fim de fazer uma réplica, mas, enquanto orelevo romano representa Hércules carregando o java- .li de Erimanto para o rei Euristeu, o artista medieval,substituindo a pele do leão por um encapelado drape-jumento, o rei assustado por um dragão e o javali porum cervo, transformou' a estória mitológica numa ale-goria da salvação. Na arte italiana e francesa dosséculos XII e XIII. encontramos um grande númerode casos similares, ou seja, empréstimos diretos e de-liberados dos motivos clássicos, sendo que os temaspagãos eram transformados segundo as idéias cristãs.Basta citar os mais famosos exemplares do chamadomovimento proto-renascentista: as esculturas de St.Gilles e Arles; a célebre Visitação da Catedral deReims, durante muito tempo considerada como obrado século XVI; ou a Adoração dos Magos, de NiccolõPisano, na qual o grupo da Virgem Maria com oMenino Jesus mostra a influência de um PhaedraSarcophagus ainda existente no Campo santo de Pisa.Entretanto, ainda mais freqüentes que tais cópias dire-tas são casos da sobrevivência contínua e tradicionalde motivos clássicos, alguns dos quais foram usadossucessivamente para uma grande variedade de imagenscristãs.

Via de regra, tais reinterpretações eram facilitadasou mesmo sugeridas por certas afinidades iconográfi-

6. Ilustrado em E. PANOFSKY e F. SAXL, Classical Mytho-logy in Mediaeval Art, em MetTopolitan Museum Studies, IV. 2,1933, p. 228 e S5., p. 231.

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cas, como, por exemplo, quando a figura de Orfeu foiempregada para a representar Davi ou quando o tipode Hércules puxando Cérbero para fora do Hades foiusado para retratar Cristo tirando Adão do Limbo 7.

Mas há casos em que o relacionamento entre o protó-tipo clássico e sua adaptação cristã é apenas compo-sicional.

Por outro lado, quando um iluminista gótico temque ilustrar a estória de Laocoonte, este se torna umvelho calvo e irado, em trajes contemporâneos, queataca o touro sacrificial com o que deveria ser ummachado, enquanto os dois meninos flutuam no fundoda pintura e as serpentes marinhas repentinamenteemergem de uma poça d'água 8. Enéias e Dido sãomostrados como um elegante casal medieval jogandoxadrez ou podem aparecer como um grupo que maisparece o Profeta Nataniel diante de Davi do que oherói clássico em face de sua amante (Fig. 7). ETísbé espera Píramo sentada numa lápide gótica quetraz a inscrição "Hic situs est Ninus rex", precedidapela cruz habitual (Fig. 8) 9.

Quando perguntamos a razão para essa curiosaseparação entre motivos clássicos investidos de signi-ficados não-clássicos e temas clássicos expressos porfiguras não-clássicas num cenário não-clássico, a res-posta óbvia parece residir na diferença entre a tradi-ção representacional e textual. Os artistas que usaramo motivo de um Hércules para a imagem de Cristo, ouo motivo de um Atlas para as imagens dos Evangelis-tas (Figs. 9 e 10)1°, agiram sob a impressão dos mode-

7. Ver K. WEITZMANN.Das Evangelion im Skevophylakionzu Lawra. em Seminarium Kondakovianum, VIII. 1936,p. 83 e ss.

8. Cod. Vat. lato 2761, ilustrado em PANOFSKYe SAXL,op. cít.,p. 259. .

9. Paris, Bíbhothêque Natlonale, ms. lato 15158, datado de1289, Ilustrado em PANOFSKYe SAXL,op. cít., p. 272.

10. C. TOLNAY,The Visionary Evangelists of the ReichenauSchool, Burlington Magazine, LXIX, 1936, p. 257 e ss., fez aimportante descoberta de que as imponentes imagens dos evan-gelistas sentados sobre um globo e sustendo a glória celeste (queaparece pela primeira vez no Cod. Vat. Barb. lato 711; nossaFig. 9) combinavam as caracteristicas do Cristo em Majestadecom as dessas divindades celestes greco-romanas. Entretanto,como o próprio Tolnay verifica, os Evangelistas do Cod. Barb. 711"sustentam com visivel esforço uma massa de nuvens que nãolembra em nada uma auréola espiritual e se parece muito maiscom um peso material composto de vários segmentos de círculos,alternadamente azuis e verdes, cujo contorno total forma umcirculo... 1: uma representação mal entendida do céu em forma

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i,

I·9. São João Evangelista. Roma, Biblioteca do Vaticano CodBarb. lat. 711, fe;> 32, ca. 1000. ' .

10. Atlos e Nimrod, Roma, Biblioteca do Vaticano, Cod.PaI. lat. 1417, f';l 1, ca. 1100.

los visuais que tinham diante dos olhos, quer hajam icopiado diretamente um monumento clássico ou imi- "ttado uma obra mais recente derivada de um protótipo 3clássico através de uma série de transformações inter-mediárias. Os artistas que representaram Medéia fcomo uma princesa medieval ou Júpiter como um juizmedieval traduziram em imagens uma simples descri-ção encontrada em fontes literárias. .

Isso é bem verdadeiro, e a tradição textual atravésda qual o conhecimento dos temas clássicos, principal-mente da mitologia clássica, foi transmitido à IdadeMédia e persistiu em seu decurso é da máxima impor-tância não apenas para o medievalista como tambémpara o estudioso da iconografia renascentista. Pois,mesmo no Quatrocentos italiano, foi dessa tradiçãocomplexa e muitas vezes corrompida, mais que dasfontes genuinamente clássicas, que muitos artistas hau-riram suas noções de mitologia clássica e assuntosconexos.

Se nos limitarmos à mitologia clássica, os cami-nhos dessa tradição podem ser delineados da seguintede esfera (o grifo é meu). Dai podemos inferir que o protó-.tipo clássico para estas imagens não era Coelus que segura, semesforço, um drapejamento ondulado (o Wettenmantet) e simAtlas que se esforça sob o peso dos céus (cf. G. THIELE,AntikeHimmelsbitder. Berlim, 1898.p. 19 e ss.) . O São Mateus no Cod.Barb. 711 (Tolnay, pr. I, a), com sua cabeça curvada sob opeso da esfera e a mão esquerda colocada perto do quadrilesquerdo lembra, particularmente. o tipo clássico de Atlas; outroexemplo impressionante da pose caracterlstica de Atlas aplicadaa um Evangelista encontra-se em Clm. 4454, f.o 86, V. (ilustradoem A. GOLDSCHMIDT,German Iltumination, Florença e Nova York,1928. V. lI, pr. 40). Tolnay (notas 13 e 14) não deixou deperceber essa semelhança e cita as representações de Atlas eNimrod no Cod. Vat. PaI. lato 1417. f.o 1 (ilustrado em F. SAXL,Verzeichnis astrologischer und mythologischer Handschriften deslateinischen Mittelalters in romischen Bibtiotheken [Sitzungsbe-richte der Heidelberger Akademie der Wissenschaften, phil.--híst. Klasse, VI, 1915, pr. XX, Fig. 42]; nossa Fig. 10); masparece considerar o tipo de Atlas como um mero derivativo dotipo de Coelus. No entanto, mesmo na arte antiga, as repre-'sentações de. Coelus parecem ter evoluído a partir das de Atlas,e na arte carollngia, otoniana e bizantina (particularmente naEscola Reichenau) a figura de Atlas, em sua forma clássicagenuína, é infinitamente mais freqüente que a de Coelus, tantocomo personificação' de uma personalidade cosmológica comouma espécie de cariátide. Também do ponto de vista icono-gráfico, os Evangelistas são mais comparáveis 3 Atlas que aCoelus. Acreditava-se que Coelus governasse 'JS céus; supunha--se que Atlas os sustentasse e, num sentíd.r alegórico, os "conhe-cesse"; pensava-se que. tivesse sido um grande astrônomo quetr.ansmitiu a scientia coeti a B:ércules (Sérvio, Comm. in Aen,VI, 395; mais tarde em. i!.g., ISIDoRo,Etymologiae, lll, 24, 1;Mythographus IlI, 13, ~, em G. H. BODE,Scriptorum rerum mythi-carum tres Ronw~ nuper reperti, Celle, 1834, p. 248). Portanto,

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maneira: os últimos filósofos gregos já haviam come-çado a interpretar os deuses e semideuses pagãoscomo simples personificações ou de forças naturais oude qualidades morais, e alguns deles haviam mesmochegado a ponto de explicá-Ias como seres humanoscomuns deificados subseqüentemente. No último sécu-lo do Império Romano, estas tendências aumentarammuito. Enquanto os Pais da Igreja se esforçavam porprovar que os deuses pagãos ou eram ilusões ou demô-nios malignos (transmitindo assim numerosas informa-ções valiosas sobre eles) o próprio mundo pagão sealheara de tal modo de suas divindades que o públi-co culto precisava informar-se a respeito delas emenciclopédias, em poemas ou novelas didáticas, em tra-tados especiais de mitologia e em críticas e comentá-rios aos poetas clássicos. Relevantes, entre esses es-critos do final da Antigüidade, nos quais as persona-gens mitológicas eram interpretadas de forma alegóricaou "moralizadas", para usar a expressão medieval,eram a Nuptiae Mercurii et Philologiae, de MarcianoCapeIla, a Mitologiae, de Fulgêncio, e, sobretudo, oadmirável comentário de Sérvio sobre Virgílio, que étrês ou quatro vezes maior que o texto deste e que foitalvez amplamente lido.

Durante a Idade Média, esses escritos e outrosde mesmo tipo foram exaustivamente explorados eainda mais desenvolvidos. Assim, a informação mito-lógica sobreviveu e tornou-se acessível aos poetas eartistas medievais. Primeiro, através das enciclopédias,cujo desenvolvimento começou com escritores tão an-tigos como Bede e Isidoro de Sevilha, continuou comHrabanus Maurus (século IX) e chegou ao auge nasextensas obras do alto medievo de Vicêncio de Beau-vais, Brunetto Latini, Bartolomeu Anglicus e assimpor diante. Segundo, nas exegeses medievais de textosclássicos e do fim da Antiguidade, sobretudo a Nuptiae

era coerente usar o tipo de Coelus para as representações deDeus (ver 'I'olnay, pr. I. c) e era igualmente coerente usar otipo de Atlas para os Evangelistas que, como ele, "conheciam"os céus, mas não os governavam. Enquanto que Hibernus Exuldiz que Atlas Sidera quem coeli cuncta notasse votunt (Monu-menta Germaniae, Poetarum !atinorum medii aevi, Berlim, 1881,1923, v. I, p. 410), Alcuíno apostrofa assim São João, o Evan-gelista: Scribendo penetras cae!um tu, mente, Johannes (ibidem,p. 293).

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de Marciano Capella, que foi anotado por eruditosirlandeses como João Escoto Erígena e comentada, comgrande autoridade por Remígio de .~uxerre ,(sec~loIX) 11. Terceiro, nos tratados especrais d.e mitologia,tais como os assim chamados Mythographz I e lI, quedatam de muito cedo e foram baseados sobretudo emS' '0 e Fulgêncio 12. A obra mais importante desseervl . ' ttipo, a chamada Mythographus IlI, foi tentattyamen eidentificada com um inglês, o grande escolástico Ale-xandre Neckham (falecido em 1217)13; s~u tratad,?'um impressionante apanhado de toda a l.n~o~açaodisponível por volta de 1200, mer~ce a qualificação d,ecompêndio conclusivo da mitografia da Alta Idade Me-dia e chegou mesmo a ser usado por Petra!ca quandoeste descreve as imagens dos deuses pagaos no seupoema Africa.

Entre a época do Mythographu~ ll~ e Petr~r~a,foi dado mais um passo para a morahzaç~o da~ divin-dades clássicas. As figuras da antiga mitologia e~amnão apenas interpretadas de uma form~. ~oraltstageral mas eram também, de um modo definitivo, rela-cionadas com a fé cristã, de modo que, por exemplo,Píramo era interpretado como Cristo, Tisbé como aalma humana e o leão como o Mal conspurcando suasvestes, enquanto que Saturno servia de exemplo nobom e no mau sentido, para o comportamento dosclérigos. Exemplos desse tipo de escritos são, 015fran-cês Ovide Moralisé 14, Fulgentius Metaioralis , deJohn Ridewall Moralitates, de Robert Holcott, oGesta Romano;um, e sobretudo, o Ovidio Morallzado,em latim, escrito por volta de 1340 ~r um teólogofrancês chamado Petrus Berchorius ou Pierre Bersuire,

16 S b 'que conhecia pessoalmente Petr~rca., ua o ra eprecedida por um capítulo especial dedicado aos deu-

11. Ver H. Ln:BESCHÜTZ, Fu!g~ntius Metaforatis .. , (Stud!:~der Bibliothek Warburg, IV), Lelpzig, 1926, iPi 15 ~ p. ~~3ee ~'t., também, PANOFSKYe SAXL,op. cit., espec a men e p. .

12 BODE.Op. cit., p. 1 e ss. .13: BODE. Ibidem, p. 152 e ss. Quanto à .questão da autoria,

ver H. LIEBESCHÜTZ, op. cit., p. 16 e s. e pas~m~; .14 Editado por C. de BOER,"Ovide Moral1sé , Verhandetmge.n

der k·on. Akademie van Wetenschapen, Afd. Letterkunde, sérienova, XV, 1915, XXI, 1920; XXX, 1931-32.

15 Ed H. L!EBESCHüTZ, op, cito . ..16: "Thomas Walleys" (ou Valeys), 11~.etamory~ostSOvtdtana

moraUter explanata, aqui usada na edlçao parisrense de 1515.

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ses pagãos, baseada em grande parte no Mythogra-phus Ill, mas enriquecida por moralizações especifica-:mente cristãs, e essa introdução, sem as moralizaçõesque foram cortadas em prol da brevidade, alcançougrande popularidade sob o nome de Albricus, Libellusde Imaginibus Deorum 17.

Um novo e sumamente importante passo foi dadopor Boccaccio. Na sua Genealogia Deorum 18, nãoapenas efetuou um novo levantamento do material,grandemente aumentado desde cerca de 1200, comotambém tentou, conscientemente, retomar às fontesgenuínas da Antiguidade e confrontá-Ias, cuidadosa-mente, umas com as outras. Seu tratado assinala ocomeço de uma atitude crítica ou científica para coma Antiguidade clássica e cabe considerá-lo um precursorde tratados verdadeiramente eruditos da Renascençacomo o De diis gentium . .. Syntagmata, de L.G. Gy-raldus que, de seu ponto de vista, podia olhar para oseu popularíssimo predecessor medieval como um "es-critor, proletário e indigno de confiança" 19.

Cumpre notar que até a Genealogia Deorum deBoccaccio, o foco da mitografia medieval era uma re-gião muito afastada da tradição mediterrânica direta:Irlanda, Norte da França e Inglaterra. Isso tambémé verdade quanto ao Ciclo Troiano, o mais importantetema épico transmitido pela Antiguidade clássica àposteridade; sua primeira redação medieval com auto-ridade, o Roman de Troie, muitas vezes condensadasumariada e traduzida para outras línguas vernáculas,deve-se a Benoit de Sainte More, natural da Bretanha.Podemos, na verdade, falar de um movimento proto-humanista, ou seja, de um interesse ativo por temasclássicos, independentemente dos motivos clássicos,centrado na Europa Setentrional, em oposição ao mo-vimento proto-renascentista, ou seja, um interesseativo por motivos clássicos independentemente de te-mas clássicos, centrado na Provença '(França) e naItália. É um fato memorável, que devemos ter em

17, Cod. Vat. Reg, 1290. ed, H. LIEBESCHÜTZ,op. cít., p. 117 eSS., com uma série completa de ilustrações.

18. Aqui usado na edição veneziana de 1511.19. L. G. GYRALDUS,Opera Omnia, Leyden, 1696, v. I, Col.

153: "Ut scribit ALbricus, qui auctor mini proLetarius est, necfidus satis".

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111 nte para poder compreender o movimento renas-I I ntista, que Petrarca, ao descrever os deuses de seusIIlllcpassados romanos precisasse consu.ltar. u:n c~m-li ndio escrito por um inglês,. e que o~ l~u.mmIstas,íta-111110S, que ilustraram a E~elda. d.e Virgílio no secu~o

V, tivessem de recorrer as míníaturas ?e manuscr~-tos como o Roman de Troie e seus denva~os. POISI. tcs, sendo matéria de leitura favorita do leigo nobr~,toram amplamente ilustrados muito a~tes que o pro-prio texto de Virgílio, lido p~r erudlÍ~s .e e~co;oares,uraíssem a atenção dos ílumínístas profissionais :

Na verdade, é fácil compreender que os artIst~sque desde o começo do século XI te~taram, traduzir'!TI imagens esses textos proto-humamstas so ~onse-uissem configurá-Ios de um modo t~tal~ente diíeren-

I da tradição clássica. Um dos pnmeiros exemplosstá entre os mais importantes: uma miniatura de cer-.u de 1100 provavelmente executada na escola. deI egensburgd, e que representa as di~i~dades cláss.Icas, gundo as descrições do Comenta:1O a Marczano'apella, de Rernígio (Fig. 1-1)21. Ve-se Apelo n~~a

simples carroça de camponês, segurando uma espéciede ramalhete com os bustos das Três Graças, Satumomais parece uma romântica figura de um~r.al que opai dos deuses olímpicos, e o corvo, d~ Juplte!, apr:-senta uma pequena auréola c~mo a a~u.Ia de Sao Joao'vangelista ou a pomba de Sao Gregono. . ~

Não obstante, só o contraste entre a tradiçãorepresentacional e textual, por .impor~ante que s~Ja,não pode explicar a estranha dlcotomla dos motI~osc temas clássicos característica da arte do alto medie-

20 o mesmo se aplica a Ovidio: há pouquíssimos ma~lUs-'rltos' de Ovídio em latim ilustrados durante óa Ida~e Meg~~~

à Eneida de Virgílio, pessoalmente s con ~Ç? .~~~~~~ritos latin~s realmente "ilustrados" ,entre o COdICIOdo

culo VI da Biblioteca do Vatic.ano e o ~rcar~hano do sécuJ~;XV' Nápoles Biblioteca Nacional, Cod. olirn VIena 58 (trazI I\0 'meu conhecimento pelo Professor Kurt Weitz,?ann, ao. quatambém devo a permissão de reproduzir uma mInIatura (FIg. ,7)do século X; e Cod. Vat. lato 2761 (cf. R. FosTER, Laoc,oon 1::'Mlttelalter und m der Reinaissance, em Janrbucn der KontfLt:Preussiscnen KunstsammLungen, XXVI~, 1906, p. 1(~ : ~. BO~6culo XIV. [Outro manuscrIto do seculo ~IV x or ,

tllcian Library, ms. Cano Class. lato 52, deSCrIto em F. SAXL e1( MEXER,CataLogue oi AstroLogicaL and M!itnoL?gtcaL ~~n~~-I'~ipts ot tne Latin Midd!e Ages, lU, Mianuscnpts tn EngL~, ' ~-braries, Londres, 1953, p. 320 e ss.) tem apenas algumas InICIaIS"Istoriadas.l it21 Clm. 14271, ilustrado em PANOFSKYe SAXL, op. CI.,n. 260.

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Munique, Staatsbibliothek, Clm.

t I, Pois, mesmo quando houve uma tradição repre-ututiva em' certos campos das imagens clássicas, essa

11 ulição representativa foi deliberadamente abandona-ti 1 srn favor de representações de caráter inteiramente11 ro-ciássico logo que a Idade Média alcançou estilo1'1 ( prio,

Exemplos desse processo encontram-se primeiro11 IS imagens clássicas que ocorrem incidentalmente emII prcsentações de assuntos cristãos, como as personi-I 'ações das forças naturais no Saltério de Utrecht.por exemplo, ou o sol e a lua na Crucifixão. Enquan-10 que os marfins carolíngios ainda mostram os tiposperfeitamente clássicos da Quadriga Solis e Bigat.unae .22, esses tipos clássicos são substituídos porIHI -clássicos nas representações românticas e góticas.As personificações da natureza tendiam a desaparecer;ipenas os ídolos pagãos, freqüentemente encontradosm cenas de martírio, preservaram sua aparência clás-

sica durante mais tempo que outras imagens por seremos símbolos por excelência do paganismo. Em segun-do lugar, e muito mais importante, genuínas imagensclássicas aparecem em ilustrações de textos que já ha-viam sido ilustrados no final da Antiguidade, de modoque os artistas carolíngios tinham à disposição mode-los visuais: as comédias de Terêncio, os textos incor-porados no De Universo, de Hrabanus Maurus, aPsychomachia de Prudência, e escritos científicos, so-bretudo os tratados de astronomia, em que as imagensmitológicas aparecem tanto entre as constelações (taiscomo Andrômeda, Perseu, Cassiopéia) como entre osplanetas (Saturno, Júpiter, Marte, Sol, Vênus, Mer-cúrio, Lua).

Em todos esses casos podemos observar que asimagens clássicas foram copiadas de maneira fiel, em-bora às vezes canhestramente, nos manuscritos caro-língios e mantidas em seus derivados, mas foramabandonadas e substituídas por outras inteiramentediferentes nos séculos XIII ou XIV, no mais tardar.

Nas ilustrações do século IX de um texto de as-tronomia, figuras mitológicas como Boates (Fig. 15),

22. A. GOLDSCHMIDT. Die E!fenbeinsku!pturen aus der Zeitder karo!ingischen und sachsischen Kaiser, Berlim, Hi14-26. V. I.pr.~, n. 40, ilustrado em PANOFSKY e SAXL, op. cit., p. 257.

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12. Saturno. Da Cronografia de 354 (Cópia da Ren~cen_ça), Roma, Biblioteca do Vaticano, Cod. Barb, lar, 2154, f9 8.

13. Saturno, Júpifer, lano e Netuno. Monte Cassino, lJls.132, p. 386, datado de 1023.

A Marte e Mercúrio.14.' Saturno, Iúpiter, 16;~;,S'f9 85, século XIV.Staatsbibliothek, Clm.

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li, Hércules OU Mercúrio são representadas de11111 lorma perfeitamente clássica e o mesmo se aplica

divindades pagãs que aparecem na Enciclopédia deII1I1 hunus Maurus ~a. Apesar de toda a sua canhes-I1 t t loque se deve principalmente à incompetênciathl pobres copistas do século XI, responsáveis pelas1111 Irações dos manuscritos carolíngios hoje perdidos,11 I'iguras da obra de Hrabanus não são, evidente-IIII'IHe, moldadas apenas com base em descrições tex-111 ds, mas estão ligadas aos protótipos antigos por umaII «Iição representacional (Figs. 12 e 13).

Entretanto, alguns séculos mais tarde, essas ima-I IIS verdadeiras tinham caído no esquecimento e eramubstituídas por outras - parte inventadas e parte

dorlvadas de fontes orientais - que nenhum especta-dor moderno reconheceria corno divindades clássicas.V nus é mostrada como uma encantadora jovem to-cnndo um alaúde ou cheirando uma rosa, Júpiter como11mjuiz com as luvas na mão e Mercúrio como umvelho sábio ou mesmo como um bispo (Fig. 14)~4.Foi só na Renascença propriamente dita que Júpiterreassumiu a aparência do Zeus clássico e que Mercú-rio readquiriu a beleza jovem do Hermes clássico 25.

Tudo isso atesta que a separação entre os temasclássicos e os motivos clássicos se deu, não apenas porfalta de tradição representacional mas também a des-peito dela. Sempre que a imagem clássica, ou seja,a fusão de um tema clássico com um motivo clássico,foi copiada durante o período carolíngio de assimila-·ção febril, tal imagem clássica foi abandonada tãologo a civilização medieval chegava ao seu auge,para não ser reaproveitada até o Quatrocentos italia-no. Foi um privilégio da verdadeira Renascença rein-

23. Cf. A. M. AMELLI, Miniature sccre e profane deH'anno1023, iUustranti !'encic!opedia medioeva!e di Rabano Mauro,Montecassino, 1896,

24. Clm. 10268 (século xrv), ilustrado em PANOFSKYe SAXL,op. cit., p. 251, e todo um grupo de outras ilustrações baseadasno texto de Michael Scotus. Sobre as fontes orientais dessesnovos tipos, ver ibidem, p. 239 e ss., e F. SAXL,Bertrãge zueiner Geschichte der Planetendarstellungen in Orient undOccident, Der Is!am, 111,1912, p. 151 e ss.

25. Sobre um interessante prelúdio dessa reafirmação (reto-mada dos modelos carolingios e arcaicos gregos) ver PANOFSKYe SAXL,op. ,cit., pp. 247 e 258,

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tegrar os tem~s com os motivos clássicos depois deum Intervalo que pode ser chamado de hora zero.

Pa.r,a a. men~e medieval, a Antiguidade clássicaestava ja muito distanciada e, ao mesmo tempo, muitofort;mente 'pr~s~nte para ser concebida como umf~n~meno ~Istonco. Por um lado, sentia-se uma tra-dição contínua, pois o imperador germânico porexemplo, era considerado sucessor direto de César eAugusto, os Iingiiistas viam Cícero e Donato comoseus a~cestrals e os matemáticos traçavam suas ori-gens ate Euclides. Por outro lado, sentia-se que exis-tia ~ma ?re_c~a intransponível entre as civilizações~aga e cnsta 6. Estas duas tendências não podiama.mda ser contrabalançadas para permitirem um sen-tlJ~e~to de distância histórica. Para muitos, o mundoclássico assumia um caráter remoto, de lenda como Este pagão contemporâneo, de modo que 'ViIlar~~e Honnecourt podia chamar um túmulo romano deIa sepoutu~e t!~un sarrarin", enquanto que Alexandre

M,agno, e Virgílío chegaram a ser considerados magos~n~ntals. Para outros, o mundo clássico era a fonte.ultl~~ ~e conhecimentos altamente apreciados e demShtUlç~es sagradas. Porém, nenhum homem medie-v~ podia encarar a civilização antiga como um fe-nomeno compl~to ~m si 'mesmo, contudo pertencenteao passAadoe historicamente desligada do mundo con-t~mporaneo - como um cosmo cultural a ser inves-tigado e, se possível, a ser reintegrado, em vez de seru.~ mundo de maravilhas e uma mina informativa. Osf~losofos esco~ásticos podiam usar as idéias de Aris-totel.es ~ fundl:las com as suas próprias, e os poetasm~dl.evals podiam basear-se livremente nos autoresclassl~os, ~as neD:hum espírito medieval podia pensarem ftl~lo~a clássica. Os artistas podiam empregar,c~mo ja vimos, os motivos dos relevos e estátuas clás-srcas, mas ?enh?~ espírito medieval podia concebera arqueologia clássica. Do mesmo modo que era im-

IIIII

d~6, Um dualísmo semelhante é caracteristico da atitudeme íevat relatívamente a aeTa sub lege: por um lado a Sina o aera represe.nt,ada como sendo cega e associada com a n~Jemorte. demcmo e, animais impuros; por outro lado, os profeta~judeus eram consIderados como inspirados pelo Espirito Santoaneats persdonagens do Antigo Testamento eram veneradas COmo

epassa "S' de Cristo,

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possível para a Idade Média elaborar um sistema mo-:demo de perspectivas, que se baseia na conscientizaçãode uma distância fixa entre o olho e o objeto e permí-I assim ao artista construir imagens compreensíveis

coerentes de coisas visíveis, assim também lhe era .Impossível desenvolver a idéia moderna de história, ba- ~seada na conscientização de uma distância intelectual~entre o presente e o passado que permite ao estudiosourmar conceitos compreensíveis e coerentes de perío-dos idos.

Podemos, facilmente, perceber que uma épocaincapaz e sem vontade de compreender que tanto osmotivos quanto os temas clássicos faziam parte de umtodo estrutural, na realidade evitou preservar a uniãodesses dois. Logo que a Idade Média estabeleceu seuspróprios padrões de civilização e encontrou seus mé-todos próprios de expressão artística, tomou-se im-possível apreciar ou mesmo entender qualquer fenô-meno que 'não tivesse um denominador comum comos fenômenos do mundo contemporâneo. O observa-dor do alto medievo podia apreciar uma bela figuraclássica se apresentada como a Virgem Maria, ou apre-ciar uma Tisbé retratada como uma jovem do séculoXIII sentada numa lápide gótica. Porém, uma Vênusou Juno de forma e significação clássicas seria con-siderada um execrável ídolo pagão, enquanto que umaTisbé vestida em roupagens clássicas e sentada numtúmulo clássico seria uma reconstrução arqueológicainteiramente além de suas possibilidades de aborda-gem. No século XIII, mesmo a escrita clássica eratida como algo totalmente "estrangeiro"; as inscriçõesexplanatórias da obra carolíngia Cod. Leydensis Vossolat. 79, escritas em belas Capitalis Rustica, foram co-piadas, para benefício dos leitores menos eruditos, naescrita angular do alto gótico (Fig. 15).

Entretanto, a impossibilidade de perceber a "uni-dade" intrínseca dos temas e motivos clássicos podeser explicada, não apenas por uma falta de sentimentohistórico, mas também pela disparidade emocionalentre a Idade Média cristã e a Antiguidade pagã. En-quanto o paganismo helênico - pelo menos como serefletia na arte clássica - considerava o homem como

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16. Rapto de Europa. Lyon, Bibliothêque de Ia Ville, ms.

742, f9 40, século XIV.

uma unidade integral de corpo e alma, o conceitojudeu-cristão do homem baseava-se na idéia do "pe-daço de barro" forçadamente ou mesmo, miraculosa-mente, unido à alma imortal. Desse ponto de vista,H admirável fórmula artística que na arte grega e ro-mana expressara a beleza orgânica e as paixões ani-mais, pareciam admissíveis apenas se investidas de umsignificado mais que orgânico e mais que natural; ouseja, quando tornadas subservientes aos temas bíblicosou teológicos. Nas cenas seculares, ao contrário, taisfórmulas tinham que ser substituídas por outras, deconformidade com a atmosfera medieval de maneirascorteses e sentimentos convencionais, de modo que asdivindades pagãs e os heróis loucos de amor e cruel-dade apareciam como príncipes e damas elegantes cujaaparência e comportamento estavam em harmoniacom os cânones da vida social do medievo.

Numa miniatura extraída de um Ovide Moralisédo século XIV, o Rapto de Europa é representadopor figuras que certamente demonstram pouca agita-ção apaixonada (Fig 16)27. Europa, vestida à manei-ra do final da Idade Média, cavalga em seu pequeno einofensivo touro como uma jovem fazendo seu calmopasseio matinal e suas companheiras, ataviadas damesma maneira, formam um pequeno e tranqüilogrupo de espectadoras. É claro que estão ali para semostrarem angustiadas e gritarem, mas não o fazem,ou pelo menos não nos convencem de que o estejamfazendo, pois o iluminista não era capaz nem estavapropenso a visualizar paixões animais.

Um desenho de autoria de Dürer, copiado deum protótipo italiano, provavelmente durante sua pri-meira estada em Veneza, enfatiza a vitalidade emo-cional que não existia na representação medieval (Fig.65). A fonte literária que Dürer usou para seu Raptode Europa não é mais um texto em prosa em que otouro é comparado a Cristo e Europa à alma humana,mas os próprios versos pagãos de Ovídio, revividos emduas estâncias deliciosas de Ângelo Policiano: "Pode--se admirar Júpiter transformado num belo touro pela

27. Lyon, BibI. de la Ville, ms. 742, f.o 40; ilustrado emSAXL e PANOFSKY, op. cit., p. 274.

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força do amor. Foge com sua doce e aterrorizadacarga e ela volta o rosto para a praia perdida, seulindo cabelo dourado esvoaçando ao vento que ondulaseu vestido. Com uma das mãos agarra um chifredo touro enquanto que, com a outra, se agarra às suascostas. Levanta os pés como se tivesse medo que omar os molhasse e assim, curvando-se com a dor e omedo, chama em vão por socorro. Pois suas docescompanheiras permanecem na praia florida, cada qualgritando, 'Europa, volte!' Toda a região litorânearessoa com 'Europa, volte' e o touro se volta (ou'continua nadando') e beija-lhe os pés" 28.

O desenho de Dürer dá vida a esta descrição sen-sual. A posição agachada de Europa, seu cabelo es-.voaçante, suas roupas batidas pelo vento, revelando,o corpo gracioso, os gestos de suas mãos, o movimen-to furtivo da cabeça do touro, a praia salpicada pelascompanheiras em pranto: tudo isso é fiel e vivamenteretratado; e ainda mais, a própria praia se mexe coma vida dos aquatici monstriculi, para usarmos as pala-vras de outro autor do Quatrocentos 29 enquanto queos sátiros saúdam o raptor.

Esta comparação ilustra o fato de que a reinte-gração dos temas clássicos nos motivos clássicos, queparece ser característica da Renascença italiana emoposição às numerosas e esporádicas revivificações dastendências clássicas durante a Idade Média, não é

28. L. 456, também ilustrada em SAXLe PANOFSKY,op. cit.,p. 275. Damos a transcrição das estâncias de Angelo Policiano(Giostta, I, 105, 106):

"NelI'altra in un formoso e bianco tauroSi vede Giove per amor conversoPortarne il dolce suo ricco tesauroE lei volgere il viso aI lito persoIn atto paventoso: e i be' crin d'auroScherzon nel petto per 10 vento avverso:La veste ondeggia e in drieto fa ritorno:L'una man tien al dorso, e l'altra al corno"Le igriude piante a se ristrette accoglieQuasi temendo il mar che lei non bagne:Tale atteggiata di paura e dogliePar chiami in van le sue doIci compagne:Le qual rimase tra fioretti e foglieDolenti 'Europa' ciascheduna piagne.'Europa', sona il lito, 'Europa, riedi' -E'I tor nota, e talor gli bacia i piedi."

29. Ver adiante, pp. 314-315,nota 22.

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11111 nte uma ocorrência humanística como humana.I 11111 elemento muito importante daquilo que Burck-huult e Michelangelo chamavam "a descoberta tantodi I mundo quanto do homem".

Por outro lado, é por si mesmo evidente 9-ue a11 ntcgração não podia ser u~a sim~les revers~<? aoII I sado clássico. O período interveniente ~odifi~araI mentalidade dos homens, de modo que nao podiamII tornar ao paganismo; e mudara seus gost~s e teI?--II ncias criativas, de modo que sua arte nao podia

mplesmente renovar a arte dos gregos e roman,.?s.t'lnham de lutar por uma nova forma d~ ~xpress~,

tilística e graficamente diferente da cl~ssIca assimcomo da medieval, mas no entanto relacionada comumbas e devedora de ambas.

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