96
Devaneios em Prosa

Livro: Devaneios em Prosa

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Livro: Devaneios em Prosa

Devaneios em Prosa

Page 2: Livro: Devaneios em Prosa

Universidade Estadual do Centro-Oeste Guarapuava - Irati - Paraná - Brasil

www.unicentro.br

Page 3: Livro: Devaneios em Prosa

Devaneios em Prosa

Marcio José de Lima

Page 4: Livro: Devaneios em Prosa

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE

UNICENTRO

Reitor: Vitor Hugo Zanette Vice-Reitor: Aldo Nelson Bona

Copyright © 2011 Editora UNICENTRO

Nota: O conteúdo desta obra é de exclusiva responsabilidade de seu autor.

Editora UNICENTRO

Direção: Beatriz Anselmo Olinto

Assessoria Técnica: Bruna Silva Luiz Gilberto Bertotti, Luciano Farinha Watzlavick, Ruth Rieth Leonhardt, Waldemar Feller.

Divisão de Editoração: Renata Daletese

Revisão Linguística: Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira

Diagramadores: André Justos Czovny, Fernanda Gongra, Lucas Casarini, Marcio Fraga de Oliveira

Diagramação: Lucas Casarini

Capa: Lucas Casarini

Impressão: Gráfi ca UNICENTRO

Publicação aprovada pelo Conselho Editorial da UNICENTRO

Ficha Catalográfi ca

Catalogação na Publicação

Regiane de Souza Martins -CRB9/1372

Lima, Marcio José de L732d Desvaneios em prosa / Márcio José de Lima. – – Guarapuava: Unicentro, 2011. 94 p.

Bibliografi a. ISBN 978-85-7891-119-5 1. Literatura Brasileira. 2. Contos Brasileiros. I. Autor. II. Título.

CDD B869.3

Page 5: Livro: Devaneios em Prosa

Agradeço a Deus acima de tudoE a minha família pelo amor recebido.

Page 6: Livro: Devaneios em Prosa
Page 7: Livro: Devaneios em Prosa

SumárioSumário

Sinestética: um amor em um momento ......... 9

A lenda ...........................................................63

O achado misterioso ....................................67

Uma noite solitária........................................75

Boneco de neve ..............................................81

Na malha fina .............................................. 85

O servo ........................................................... 93

Page 8: Livro: Devaneios em Prosa
Page 9: Livro: Devaneios em Prosa

Sinestéti ca: um amor em um momentoSinestéti ca: um amor em um momento

A dieta da luz

Era um dia como qualquer um outro na vida de Sinestética. Ela comentava com suas amigas que che-gara ao limite do seu peso e que haveria necessidade urgente em começar um regime, precisava manter--se saudável. A amiga mais magra e mais vaidosa, por consequência, comentava que ouvira falar de uma su-per dieta da luz. Sinestética e Monavir nunca ouviram falar, mas queriam saber como que era essa dieta. A esguia explicava que se ela não estava enganada era uma dieta praticada pela esposa do imperador do Ja-pão ou da China, não tinha muita certeza de qual país ela era. Só lembrava que a mulher ensinou: “era como que colher laranjas em uma árvore imaginária em um dia de sol e pronto”. Era só tomar água e comer luz. Todas riram muito. Despediram-se e cada uma foi para sua casa.

Todas solteironas, todavia, Sinestética era a úni-ca que não tivera namorado até agora. Dizia-se feliz como era: solteira e morando sozinha, embora a sua vida fosse uma imensa monotonia.

Page 10: Livro: Devaneios em Prosa

10

A noite chegou e os pensamentos voaram. Sines-tética decidiu começar a dieta. Aquela noite comeria de tudo. E na manhã seguinte, começaria a comenta-da abstinência de alimentos. Comeu muito. Teve que dormir sentada porque passou mal.

Primeiro dia da dieta

Chega a manhã. Três grandes copos de água foram seu alimento. E como uma doida varrida co-meçou sua colheita de laranjas imaginárias. Deve ter colhido quase uma caminhão imaginário - pensou. Riu muito. Quase rolou de rir. Sentiu-se feliz. Com a barriga roncando – no entanto – feliz.

Doméstica era sua profissão. Fazia com tanta de-dicação seu serviço que, ao final do dia, tudo parecia que tinha recebido um toque de mágica pelo brilho dos móveis e pelo agradável perfume de limpeza que exalava da casa que cuidava.

Mais uns dois litros de água, tomou no almoço. Precisava se alimentar. E imaginou-se colhendo de novo as imaginárias laranjinhas. Saiu ao quintal e pôs--se a colhê-las. Uma mãozadinha aqui, outra mãoza-dinha lá e mais uns cem quilos colhidos. Que delícia – delirou ela. A vizinha que estava no sobrado ao lado observava a doméstica pela janela de vidro fumê. Ah!

Page 11: Livro: Devaneios em Prosa

11

Mais uma doida fazendo a dieta da luz – afirmou – isso não vai dar certo. Se bem que se essa ficar um ano sem comer não vai dar muita diferença. - Riu malicio-samente a crítica vizinha.

A barriga parecia que tinha um caminhão ron-cando. Pensou nessa hora em tantas coisas. - Um boi inteiro assando no espeto. - Acho que vai ser pouco. – delirava a caprichosa secretária do lar. Sentou-se um pouquinho, antes de terminar o segundo piso. Olhou uma barra de cereais que trazia na sua mochila. É ago-ra, lá vai ela. Não vai resistir. Seus olhos se arregala-ram. Seus lábios desapareceram. Vai comê-los. – Não vou c-o-m-e-r! E realmente não comeu. Pôs-se a tra-balhar.

A tarde chegou. Hora de ir para casa. Mais uns quatro litros de água. Saiu na janela e começou a co-lheita. Só que agora imaginou uvas. Uma colheita de deliciosas uvas. Contava duzentos e três cachos deli-ciosamente colhidos. Água na boca. Um barulho na barriga. E um turbilhão nos olhos. – Vou me sentar. Pensou “isso passa”. Enfraqueceu-se. Suou um pou-co. Suou mais ainda. Quase lavada de suor resolveu tomar banho.

No banho, começa a lembrar de tudo que co-mera até ali. As guloseimas, os bolos, os salgadinhos um mais gostoso do que o outro: coxinha, risólis, pas-

Page 12: Livro: Devaneios em Prosa

12

téis, quibes, e outros... Seus pensamentos em abrup-to ímpeto mudam de direção. E o intento cada vez fica mais forte: emagrecer, ficar bela, saudável e quem sabe conseguir um amor – casar.

O banho termina. Ela vai para frente do espe-lho. Observa-se, admira-se, gosta-se. Nunca se olhara daquele jeito, nunca se gostara tanto. E a pergunta da aflita: - será que já emagreci? – Riu. Comentou: – que precipitada eu sou. Já quero resultado.

As primeiras horas da noite são muito extensas, demoram a passar. Esta sensação lhe era estranha. A fome. A dor no estômago. Os delírios por comida. - Quantas horas demoram esses minutos? – pensou Si-nestética. - Eu vou sair para ajudar a passar o tempo mais ligeiro. Talvez eu me esqueça um pouco dessa fome.

A rua estava muito iluminada, pois era noite de lua cheia. Lembrou-se do brilho da luz. Resolveu sentar-se no banco da praça e ficar ali a se alimentar da luz da lua. – Agora vou colher o quê? Já sei vou colher lírios. – As flores naquela noite estavam muito iluminadas. A igreja branquinha parecia que possuía luz própria. Os holofotes iluminavam toda a extensão da praça. Dando impressão de que era dia. Observava as crianças correndo no parquinho, brincando muito. Via a felicidade nelas, seus sorrisos ecoavam e a cada

Page 13: Livro: Devaneios em Prosa

13

um deles era como se ela se saciasse um pouco mais. Um sorriso da molecada lhe apagava uma lembrança de um salgadinho. Um beijo de um pai ou uma mãe em filho - um tipo de docinho lhe saía da vontade de comer. E isso começava a lhe dar prazer. Os namora-dos na praça se beijando – davam-lhe a seu paladar o doce do mel, o frescor da menta. E isso lhe deu muito prazer – extasiada - por um minuto ficou atônita. Não entendia bem o que era isso, mas gostou. Quando se sentiu realmente alimentada, decidiu caminhar um pouco. Esqueceu de sua colheita. Achou que não pre-cisaria mais se alimentar naquele momento. – Estou cheia! Agora tenho que caminhar pra gastar essas ca-lorias a mais. – balançou a cabeça em sinal de autos-sarcasmo.

O calor daquela noite lhe dava sede. Resolveu voltar para casa. No caminho tudo lhe era - de cer-ta forma – novo. A maneira como olhava para cada coisa era diferente. Sua vida parecia ter outro sabor. E algo lhe batia no peito galopante, mais intenso – tal-vez a vida se renovando – filosofava.

Chegou em casa depois de caminhar bastante. Tomou muita água, precisava digerir tudo o que viu--viveu.

Fazia muito tempo que não observava as estre-las. Decidiu sair e louvá-las, decifrá-las. Esta noite elas

Page 14: Livro: Devaneios em Prosa

14

estavam muito belas, pareciam um shake de escuri-dão e luz. Alguns minutos observando dava-lhe uma paz sem igual. Sentia que seus horizontes se estendiam para mais longe. Pensou ser um cometa. Viajava por entre estrelas e planetas, mas se emocionou realmente quando passou pela terra e viu um planeta azul com sua grandiosidade e beleza. Pensou em sua perpetua-ção – pensou eu sua preservação – pensou-se como criação – pensou na paz entre os homens. A viagem terminou. E estava na hora de dormir.

Deitou-se, agradeceu a Deus por mais um dia. E como uma criança que conheceu algo de novo no mundo dormiu como um anjo.

Segundo dia da dieta

O sol brilha. Com uma energia fora do comum, sente-se mais viva do que no dia anterior. A fome já não lhe incomoda. Dirige-se à pia e toma seus dois litros de água. Agora sente que a água tem mais gos-to. Delicia-se a cada gole de água tomado. Veste sua roupa. As cores escolhidas por ela deveria naquele dia ser verde e branca. Com esta mistura de cores deter-minaria que seu dia fosse de paz e esperança. – Paz e esperança. - Riu. Não sabia bem o porquê. Mas deveria ser assim...

Page 15: Livro: Devaneios em Prosa

15

Saiu de casa e, antes de iniciar o trabalho resolveu passar na igreja. Teve uma imensa vontade de agrade-cer a Deus pela manhã, pelo canto dos pássaros, pela noite bem dormida, pela natureza, e por tantas coisas que se fosse agradecer por cada uma perderia a hora do trabalho. Fazia muito tempo que não rezava. Fazia, matutinamente, o caminho casa-trabalho e trabalho--casa, poucas vezes passava na igreja rezar, a pressa lhe determinava o trajeto – como se tivesse o com-promisso de chegar em casa em determinado horário.

Começou a notar as pessoas. Suas expressões avivavam nela sentimento de curiosidade - o que pen-sava cada uma, suas histórias, seus sofrimentos, suas vitórias...

A sua frente, ia uma moça de vestido azul escuro. Resolveu, como quem não manda em seus atos, con-versar com ela. Mas como? – pensou. Simplesmente decidiu. Cumprimentá-la com um alegre bom dia. E assim fez. A moça alegremente retribuiu.

- Que belo dia hein? – falou Sinestética.- Parece que hoje vai ser de sol. – retribuiu a

moça de azul num tom de intimidade.- Está indo pra que lado? – - Estou indo para o meu trabalho que fica em

frente do cinema. Trabalho em uma livraria. E hoje tem o lançamento de um livro. Preciso arrumar

Page 16: Livro: Devaneios em Prosa

16

a exposição. O Autor vai estar lá. Tem coquetel e tudo. Se você quiser ir lá será à noite. O escritor dará uma breve palestra de apresentação de seu livro.

- Quem é ele? Qual o nome do livro?- Trata-se de um escritor novo, ele possui uns

oito livros lançados, o nome dele é Maximilliano Di Bruno - é um pseudônimo. O livro é sobre o poder da mente e neurolinguística.

Sinestética riu muito. Pediu desculpas, mas fa-lou que não sabia o que era esse negócio de “neuro... neuro...”

- Neurolinguística. – Traduziu a moça. – Eu tam-bém não sei muito sobre isso, mas ouvi falar que é algo que ajuda as pessoas a serem mais felizes se en-tenderem mais. Dizem até que as pessoas podem mu-dar suas vidas. O livro pelo que ouvi falar tem a ênfase em tornar as pessoas mais confiantes. Dizem que ele ajuda a superar algum de nossos traumas do passado e vivermos melhor.

- Parece muito interessante. Vou fazer o possível para ir.

- Tenho aqui um convite. Você aceita?- Sim, é claro. As duas se despediram e Sinestética seguiu seu

caminho.

Page 17: Livro: Devaneios em Prosa

17

A casa em que trabalhava parecia-lhe maior do que os outros dias. Parou em frente e ficou a admirar a sua forma. Era um sobrado em estilo alemão. Havia na frente um bonito jardim. As janelas eram grandes. As cores da pintura eram creme e marrom escuro. Ha-via no jardim uma estátua de São Francisco de Assis. – História de doação e amor. Pensou ela. Tem que ter coragem e muito amor pra fazer o que este homem fez. Desprender-se de todos os bens e viver uma vida de abstinência e doação.

Abriu o portão eletrônico e entrou. Na entrada da casa, sentiu uma forte dor na barriga. A fome lhe vol-tou. A tontura também. Entrou na casa e foi direto para a geladeira. Tomou um gole de água. Melhorou um pouco. Tomou mais água e sentiu-se melhor. Saiu no jardim e abaixou-se tocando em petúnias, sentiu suas folhas, suas flores, e isto a fez melhorar. Voltou para casa. Começou seu trabalho que foi concluído antes do almoço. A hora do almoço - que ela comeria - foi de-dicada ao jardim. Regou-o, tirou as daninhas, e passou um inseticida não tóxico para cuidar das pragas. Retor-nou à estátua de São Francisco tocou-lhe a mão. Ad-mirou os pássaros que faziam seu cortejo e pensou na integração do homem com o animal. Que luz os atraía? Que luz tinha este homem? Sentou-se. Ficou vendo as joaninhas, as abelhas, os beija-flores, as folhagens.

Page 18: Livro: Devaneios em Prosa

18

O tempo passou e já alimentada pela natureza sentia-se satisfeita. Com mais força retorna ao traba-lho. O dia de trabalho termina. Liga o alarme e segue para sua casa.

A palestra

Chega em sua casa. Checa sua caixa de correios - somente cheia de contas a pagar: água, luz, telefone e crediários. Imagina-se recebendo cartas de amigos, parentes, até de admiradores – quem me dera, secre-tos; também de valores a serem creditados em minha conta. Gargalhou de sua medíocre condição. – Ah! A esperança, florzinha que rego diariamente e que tei-ma em nascer...

Tomou um banho rápido. Tinha que chegar a tempo na palestra. Sentiu-se um pouco fraca. Lem-brou-se da janta. A luz já tinha se ido e agora? Somen-te lhe restava a água. No caminho de casa pegou água mineral de dois litros. Tomou de um gole só mais ou menos um litro e meio. Sentiu o doce da água, tam-bém sua salobridade - sentiu um pouquinho de seu caminho, imaginou-a viajando por rios e mares – mas isso foi só em um repente e retomou a sua missão arrumar-se para ir ao evento. Pegou em seu guarda--roupa sua mais bela vestimenta, um conjunto muito

Page 19: Livro: Devaneios em Prosa

19

bonito de jeans e uma batinha azul-escuro com uma plataforma que nunca fora usada, aliás como todo o resto.

- O que será que vai acontecer lá? Nunca ouvi falar nisso. Vou fazer feio... Aliás vou só conhecer me-lhor sobre isso – na verdade nem estou interessada nesse negócio de neuro... qualquer coisa – vou conhe-cer pessoas diferentes. Quem sabe...

Sinestética não tinha o interesse por palestras. Sempre evitava multidões. Seu interesse no máximo era ir fazer visitas em pizzarias, lanchonetes, em pe-tiscarias e na casa de suas amigas Monavir e Tiseta. Sentia-se estranha. Sentia algumas vontades novas. Amava ultimamente as leituras fúteis, mas por alguns instantes pensava nos clássicos, em alguns problemas do homem. O ócio na maior parte do seu tempo era seu amigo e a tevê sua rede para embalá-la ao sono dos finais de semana e às noites. Agora, sua vida dava uma guinada, se via-se toda arrumada para um lan-çamento de um livro nem sabia de quem, nem sabia para quem, nem sabia por quê. E, quem diria? Toda arrumada, mais bela do que nunca.

Com o convite em mãos, chegou em um hotel muito elegante no centro da cidade. No hall, a nova amiga estava dando boas vindas aos presentes. Ela foi ficando por ali mesmo. – Já chegou muita gente? –

Page 20: Livro: Devaneios em Prosa

20

Você é a primeira. Riu discretamente a amiga. – Nem o escritor chegou. Prometeu que estaria aqui na porta. A propósito, me chamo Durvalina, pode me chamar de Dorva. Minutos depois, começam a chegar os con-vidados. Parece que ficaram na esquina amontoados combinando em chegarem juntos. Também, chegou o escritor. Cumprimentou-as com um largo sorriso. – Es-sas são minhas fiéis escudeiras? Brincou Maximilliano. Dorva cumprimentou, como se estivesse em êxtase, um mega star. – Nos falamos a maior parte do tempo só por telefone, precisamos nos ver mais. Joseph está lá em cima. Ele dará as boas-vindas às pessoas na sala de palestras. Já está tudo arrumado. O coquetel ficará a cargo do hotel. Tudo em ordem. – Agradeceu exaus-tivamente Maxi. – Era como queria ser chamado.

O olhar de Maxi e Sinestética se cruzaram de forma meiga e verdadeira.

- Essa sua amiga é? - Sinestética, muito prazer. – A esta altura Siné

– era como queria ser chamada ali pelo menos – es-tava muito à vontade ajudando Dorva que entre um boa noite aos convidados e uma palavra com Maxi organizavam a recepção e davam um tom intimista ao lançamento – o que era elogiado pela imprensa ali presente bem como por alguns críticos de plantão que taxavam o comportamento do autor de acordo com a

Page 21: Livro: Devaneios em Prosa

21

linha de pensamento adotado em seus livros: - a valo-rização do ser pelo ser. Sem distinção - como se fosse um serviçal que de fato o era - resolveu não vender ali nem um de seus livros – o que era feito por Joseph lá em cima.

- Não se preocupem, autografo depois os livros. Tranquilizou o simpático escritor.

A recepção foi tranquila. As pessoas estavam à vontade. A amizade de Dorva e Siné começou a se desenhar.

O triângulo

Siné percebeu que Dorva olhava cobiçosamente Maxi. Ele com olhar fugidio desviava a admiradora, voltando-se para Siné. Tudo se apagava ao seu redor como se aquilo não estivesse acontecendo a ela como se as pessoas não estivessem ali, só enxergava aquele que em um instante roubou seus sentimentos – amor à primeira vista - pensou.

Dorva percebeu que havia um clima romântico entre os dois. Um leve toque na mão quase que imper-ceptível entre os dois selou tal desconfiança.

- Ah! Que bela amiga esta. Ruminava Dorva. Todavia, resolveu manter-se discreta. Morria ali

– em seus pensamentos medíocres - a possibilidade de

Page 22: Livro: Devaneios em Prosa

22

uma amizade verdadeira. Mas quem realmente sabe-ria o destino desta amizade?

Dorva passou a observar Siné. Seus gestos sua-ves, sua profundidade de pensamento, embora não fosse de falar muito era precisa, ela falava, por isso com veemência e sabedoria. A dor veio-lhe em segun-dos ao seu peito. - A ladra de coração – pensou.

- Quem é esta mulher misteriosa? Respirava Maxi. O acontecimento já lhe rendera a oportunidade de co-nhecer aquela bela moça que exalava um perfume de rosas. Seus cabelos escuros davam-lhe um charme sem igual contrastando com sua pele clara com algumas sardinhas próximas ao seu aquilino nariz.

- Você... sentimento que nasceu em meu cora-ção como se estes minutos que passamos aqui fossem triplicados com tão agradável companhia. – Maxi, falou quase que automaticamente corando frente a Siné, frase ouvida por Dorva que teve em frangalhos seu palpitante coração.

A recepção estava feita. Era subirem à sala. Siné falou que subiria. E o fez, entrando na sala cheia, dei-xando para trás Dorva e Maxi.

Dorva aproveitou o ensejo e atacou Maxi, rou-bando-lhe um beijo no elevador. Maxi atônito ver-melhou, nada falou. E ambos chegaram ao salão sem mais nem uma palavra proferida.

Page 23: Livro: Devaneios em Prosa

23

Joseph compôs a mesa chamando alguns repór-teres e um vereador da cidade que se fazia presente. Maxi expôs durante quarenta minutos o mote do en-contro, falando extasiado sobre a experiência do livro que tratava de forma profunda, mas, segundo ele, com linguagem simples vulgarizando teorias tão comple-xas como a filosofia existencialista e a teoria da relati-vidade de Einstein. Os focos principais eram: a ajuda ao homem para se perceber como homem e aprovei-tar seu tempo dando-lhe uma elasticidade promovida pelo prazer de uma vida vivida em sua plenitude - do homem que aprecia um simples lírio ao homem que descobre Deus na grandiosidade complexa das rela-ções humanas.

A eloquência de Maxi fazia Siné voar por suas palavras, tudo parecia tão claro, tudo tão profundo, viajava numa nebulosa de saber-amor-prazer.

Dorva era ensurdecida pelo ciúme. Os recônditos da sua mente eram abrigados por estratégias de con-quistas. – Como não pude perceber esta traidora no primeiro encontro. Seus olhos ligeiros, seu sorriso ma-licioso. Quanto fui tola. Chamá-la ao meu lado. O lobo vem à casa do cordeiro. Ruía-se por dentro Dorva.

A palestra acabou, os convidados se retiraram, Jo-seph levou as autoridades para um jantar. Saiu dizendo que aguardaria Maxi assim que ele terminasse ali.

Page 24: Livro: Devaneios em Prosa

24

Ficaram Dorva, Maxi e Siné no final. A conversa fluiu em torno do sucesso que foi o lançamento do livro. Maxi elogiou desmedidamente a competência de Dorva. – Esta foi a melhor apresentação que já participei. Muita simplicidade, objetividade, e de um profissionalismo sem igual. Dorva corou e orgulhou--se. Agradeceu afirmando que o evento foi o sucesso que foi pela qualidade do trabalho do escritor que não merecia que fosse diferente.

- Irei fechar a conta. Vocês vem comigo? – Falou Dorva.

- Não ficaremos aqui. Preciso conversar com Siné. Vou chamá-la para trabalhar em meu consul-tório. Você achou uma auxiliar à altura da qualida-de do evento, preciso de alguém assim a meu lado. Declarou Maxi – provocando mais ainda a ira de Dorva.

Os dois a sós. Siné ainda extasiada pela eloquência e charme de Maxi. Parabeniza-o. – Você topa sair comigo logo após o jantar? Convida meio que descrente Maxi.

Rindo discretamente, com a humildade de uma jovem inexperiente – aceita.

- Temos muito que conversar. E com um discreto beijo incendeia as bochechas de Siné. O que é flagra-do pela admiradora de Maxi que fica tristemente para-da no final da escada que dá acesso à cena.

Page 25: Livro: Devaneios em Prosa

25

Despendem-se deixando primeiro Siné em sua casa. Segue levando Dorva ao jantar. – Nos vemos... diz Maxi. – Té Miga. Brigadão... A gente se vê. Despede--se Dorva.

No carro, ao sair para o jantar Maxi deixa claro a Dorva que o relacionamento entre os dois seria apenas profissional. Desculpa-se afirmando: - Dorva não é por nada, você é uma mulher atraente, muito inteligente, madura nos seus atos e palavras, mas... podemos ser amigos e só... acho que encontrei a pessoa que há mui-to procuro. Siné sua amiga... – Ela não é minha ami-ga – braveja Dorva. – Ela foi alguém que conheci no momento errado. Tudo bem podemos ser amigos? Mas, assim que você se decepcionar com aquela imatura es-tou esperando por você. Ambos aceitam a condição, e sobem sem nada se falar, para o jantar.

O amor bateu no coração

Siné vai para a geladeira pega de sua água e a consome como se estivesse no deserto. Meio que atur-dida não compreendia o que estava acontecendo em sua vida. – Tudo tão diferente em tão pouco tempo... – balbuciava a si mesma. Nunca um homem havia a olhado como Maxi. – Aqueles olhos, aquela expressão sábia, sua boca, sua voz, seus cabelos, sua sensibilida-

Page 26: Livro: Devaneios em Prosa

26

de, sua inteligência. – Quantas palavras para descrever o que o coração não entendia, somente sentia. Mais do que nunca a necessidade de conhecer o mundo para impressioná-lo fazia-se presente. – Quero saber mais. Quero viver mais. Quero viajar mais. Quero me embelezar. Quero ser feliz. Tudo isso com meu amor. Jogou-se de cabeça – com palavras – no amor de um desconhecido, que o sabia assim, todavia por alguma razão lhe transmitia confiança.

A lua ainda iluminada no céu com brilho se as-semelhava a um grande copo de leite alvo, luminoso, inspirador.

Ela pôs uma roupa leve e saiu na escada de sua casa que dava para o quintal. De lá, ficou a se alimen-tar da luz da lua, dos sonhos ao lado do seu amado, das verdadeiras amizades como Dorva que lhe ofere-cera até ali o que nem uma amiga lhe tinha oferecido, a oportunidade de ser feliz, de sonhar, de conhecer pessoas diferentes – embora não soubesse o que se passava nos pensamentos de sua rival amorosa. Isso Siné não sabia, pois Dorva dissimulou-se muito bem. Sempre prestativa, sempre sorridente, sempre pronta a responder atenciosamente o que Siné perguntava, aparentemente uma pessoa sensível e autêntica. Tal-vez tenha sido desfigurada pelos flamejantes dragões do ciúme - quem sabe?

Page 27: Livro: Devaneios em Prosa

27

Os planos foram inevitáveis, voltar a estudar. De-cidiu voltar a estudar, preparar-se para o vestibular, pois havia três anos que tinha se formado no ensino médio. – Quero fazer psicologia. Decidi. – Quero fazer poemas. Aliás, esta noite vou fazer um. Adorava poemas. Eles a faziam sentir-se melhor. No entanto, poucas vezes pe-gou da caneta para compor um. Eis a oportunidade. E num ímpeto queria ler sonetos. Queria fazer para o seu amor – por ora platônico – sonetos. Eles ajudariam, também, explicar sua paixão. Talvez idealizá-lo como um cavaleiro que a acompanharia, que estaria a prote-gê-la como a uma donzela em perigo.

O resultado de algumas horas tentando foi fes-tejado logo que saiu a primeira estrofe em um velho caderno:

Meu amor, que de longe imaginadoPensava existir somente em estrela Distante, outrora só em meu fadoAcendeu em mim, da esperança, a centelha.

As tentativas se sucederam e adormeceu sentada no sofá não conseguindo continuar a segunda estrofe.

Às duas horas da manhã, bateu-lhe à porta Maxi. Meio que atordoada, abriu-a. Surpreendeu-a com um caliente beijo. E a noite lhe ofereceu a inspiração que precisava para terminar seu soneto. O que foi descrito

Page 28: Livro: Devaneios em Prosa

28

logo de manhã, após Maxi ter se despedido com bei-jo, enquanto ela dormia, deixando o número de seu telefone e as juras de amor eterno presas pelos ímãs em sua geladeira num bilhete: “Que desta noite ecoe o mais puro amor dos nossos corações. Tomei a liber-dade de ver seus versos. Amei-os. Bjs.”

Emaranhei desejo não gozadoEm gotas de orvalho na lapelaNunca havia deste mel experimentadoSinto-me agora tinta em sua tela.

Controlava, o pecado, meus conceitosE você, meu amor, os olhou se querCom carinho ignorou meus defeitosE com amor selou uma mulherQue jamais sonhara tais deleitosQue docemente em minha vida se fez mister.

Dia de folga

Ainda atônita, perguntava-se se era digna de tan-ta paixão. Nunca imaginou que em tão pouco tempo começaria em sua vida um momento deveras sublime.

A fome lhe veio como algo inesperado, como o verme que lhe rói as vísceras. Com ela, a sensação

Page 29: Livro: Devaneios em Prosa

29

do esgotamento tomou seus membros. Resolveu ca-minhar para esquecê-la. Foi até a uma fonte no cen-tro da praça próxima à sua casa. Lavou-se: a cada vez que tocava sua face lhe vinha à mente suores, ofegos, calafrios, felicidade... Embora, a felicidade fosse um mar em que se encontrava submersa, estremeciam-se suas entranhas e o medo do amor frustrado toldava--lhe por alguns instantes a luz que cintilava sorrisos na alma que cobriam as mais densas lembranças de uma vida sofrida. Aqui-agora-felicidade, pensou.

Vestia amarelo claro. Sentia na boca o gosto do enxaguante bucal que lhe enjoava. Sentou-se em um banco bem de frente à igreja. Os raios solares, lam-biam-lhe o rosto, refletidos nas águas da pequena la-goa em que nadavam alguns patinhos. A água naquele dia tinha que ser reflexivamente apreciada goles cal-mos no fundo ensalobros, salgado-doce. O coração sentia-o bater aceleradamente. Mais água, os patos pareciam não se mover, aliás tudo parecia não se mo-ver – pelo menos é o que parecia.

Apreciou um velho ipê amarelo. Seus galhos cobertos por um ponche verde claro davam-lhe uma imponência real. Lembrou-se do rei Salomão, suas ri-quezas, sua sabedoria, sua mortalidade, do sermão do padre na quarta-feira de cinzas, da simplicidade dos lírios da praça... O sofrer pelas coisas terrenas. A cor-

Page 30: Livro: Devaneios em Prosa

30

reria do dia a dia em busca de se eternizar por um momento, em um mísero momento. O fato de não ter que animalescamente perder a eternidade para garantir um tórrido pedaço de pão. Riu-se, xingou-se “boba, isso não é tua realidade! Esquece. Ô ô volte à tua aguinha!”

Sua voz ordenou para que voltasse de seu mo-mento de reflexão. O homem, às vezes, animaliza--se busca de seus ideais, esquece de sua origem su-bliminar e prende-se ao predatório materialismo. Espiralava seus sentidos tal reflexão. “Já sei a fome. Quero mais água”. Saciou-se por mais alguns se-gundos.

Não queria se lembrar da incrível noite – o medo do abandono a atormentava – a eternização daquele momento era seu locus amoenus. “Apra-zíveis caminhos me levam ao meu Amor. Seu ce-lular... Vou ligar... Nem que eu queira meus dedos não me obedecem, nem minha razão... Não posso ser aquela que rasteja... Mas é o meu amor... Não posso...”

- Minhas amigas. – Lembrou-se de suas amigas. Mas de todas, Dorva era a que lhe puxava o fio da me-mória.

Admirava-a, sua paciência, sua sabedoria, seu conhecimento. – Minha mentora. – Balbuciou.

Page 31: Livro: Devaneios em Prosa

31

As amigas

Já não se sentia tão faminta. Dirigiu-se à livra-ria em que trabalhava Dorva. Ao chegar à vitrine da loja, um choque correu-lhe à vértebra. O livro de Maxi exposto, um grande folder à porta com a fotografia de Maxi segurando o fruto de seu trabalho e o slogan “Viver um fardo? Ou um presente divino? Você faz a escolha.”

Para ela, a escolha do amor gerava-lhe uma dú-vida, mesclada de satisfação e esperança.

Ficou alguns segundos em um plano diferente daquele em que estava. As coisas ao seu lado ofusca-ram-se. Maxi saía do folder lhe abraçava, satisfazia--lhe, saciava-lhe, entendia-lhe. Maxi talvez não sou-besse a que intensidade incendiara esta rica criatura. O amor de Siné era algo que, segundo muitos, não existe mais em nossos dias. Em pouco tempo - como uma adolescente – entregara-se aos encantos de uma paixão.

A mulher madura degladiava-se com a sonhado-ra que habitava os recônditos de sua essência. A pri-meira alertava-a à possível decepção, à superficialida-de dos relacionamentos, à maturidade da mulher que não se aprisiona, mas deixa a paixão livre como um cavalo selvagem. Já a segunda... possessiva, louca de

Page 32: Livro: Devaneios em Prosa

32

paixão... a entrega certa... a espera do príncipe encan-tado... algo edipiano, o casamento, a casa limpinha... a dona de casa, a comidinha, os filhinhos, os cachor-ros, as juras de amor eterno...

Alguém a desperta com leve toque ao ombro. Com um sobressalto, interrompe-se a divagação. Olha para trás e Dorva lhe recepciona com um largo sor-riso. Siné a abraça sinceramente. A amiga – pensou - porto seguro, conselho certo.

- Como vai você? Desculpe-me o jeito. Onde você estava? Sorriu maliciosamente Dorva.

- Longe, muito longe. Aqui no meu peito tem um navio que navega sem rumo. Ora no mar, ora no cais. Filosofa Siné.

- Ah malandrinha, apaixonada não é?- Digamos que... talvez...- Seus olhos não enganam. Maxi é um Don Juan

com as mulheres, um legítimo gentleman. Esse Maxi, apontou com o dedo. Não se entregue fácil. É das mais difíceis que ele mais gosta. Alertou tardiamente Dorva.

Siné só sorriu.- Maxi esteve aqui hoje cedinho. Ele passou aqui

assinar o contrato com a editora. Joseph estava muito contente com a expectativa positiva do livro frente às vendas. Já é um sucesso. Comemorou Dorva.

Page 33: Livro: Devaneios em Prosa

33

Siné sorriu. – Ele é muito inteligente. Inteligência e carisma

são um prato cheio para o sucesso. Reafirmou Dorva.- E você como está Dorva? - Estou ótima. Vou ganhar uma promoção. Vou

ser responsável pela turnê de Maxi. Vou viajar com ele no lançamento do livro na Europa por uns três meses. Depois me estabeleço na França, por mais seis meses na filial de lá me aperfeiçoando e volto para gerir os negócios aqui no Brasil, na região sul. Extasiava-se Dorva comemorando oceanicamente.

Os olhos de Siné arderam, a palpitação, a falta de ar. Engoliu tudo isso a seco e falou:

- Que bom! Quando vocês viajam?- Daqui uns quinze dias. – Pausa. - A propósito você não quer trabalhar aqui? Uma

de nossas atendentes vai ficar no meu lugar e vai so-brar uma vaga o que você acha? Joseph amou seu trabalho, você ontem se saiu muito bem. Vou acertar com você, você foi ótima. Dorva acatou muito bem a ordem. A discrição era pedido de Maxi para que Siné não desconfiasse que o pedido viera dele. Ele acreditava nela, mas, quem daria trabalho nesta área para uma pessoa que não tem muito conhecimento em literaturas. Deveria ela conhecer muito. Mas, isso não era problema para Siné, gostava de leitura, em-

Page 34: Livro: Devaneios em Prosa

34

bora não tivesse ainda frequentado uma faculdade. Era autodidata, aprendia com a vida, aprendia com a natureza. Um espírito inquieto, uma mente limpa, um coração mais limpo ainda, uma malícia pueril que decifrava o espírito das coisas. Talvez foi isso que só Maxi percebeu. O conteúdo e não o frasco daquela incomensurável fragrância.

- Amei o que fiz ontem. Não se preocupe apren-do rápido, amo livros. Aceito o emprego. Quando co-meço? Abraçou Dorva agradeceu-a exaustivamente.

A situação era nova. Poucas vezes decidiu tão prontamente por alguma coisa. Sabia que o desa-fio era grande. Mas que engrandecida sentia-se. Era uma sensação de felicidade e um dedinho de preo-cupação com seus patrões. Sempre confiaram nela... e assim sair de repente, deixá-los na mão. Eles en-tenderiam, pensou. Sempre torceram por mim e sa-bem que o meu momento chegou. Tenho que voar, tenho que conhecer coisas diferentes. Sempre estive-ra anônima na multidão. Os rostos das pessoas lhe pareciam não focarem em sua direção. Sempre uma anônima. Mais uma carinha assustada que caminha na rua. Seus sentimentos, sua vida, sua história, não interessava a ninguém... às vezes, nem a ela que pro-curava recalcar tudo que a fazia infeliz. Tudo que a diminuía. Sua tristeza embora embalasse seus dias,

Page 35: Livro: Devaneios em Prosa

35

empurrava-a à uma vida diferente de sublimação de apreciação das coisas pequenas: do canto dos pássa-ros, das flores amarelinhas que faziam sua vida mais feliz, dos cachorros na rua com seus olhares tristes, solitários, famintos, às vezes doentinhos... Chorava por não poder cuidá-los como deveria, o tempo lhe era pouco. Cuidava poucos dias, encaminhava-os a alguém que pudesse criá-los, o último que adotou morreu... Decidiu por um tempo não tê-los. A pos-se: quem tem quem? Síntese quase perfeita: homem x cão: amizade e não solidão. Pensou “Seria muito infeliz se não tivesse sido curada da solidão pela pre-sença em minha vida no momento em que mais pre-cisava de um amigo cão”.

Dorva selou neste momento, sem perceber, um contrato de amizade. Uma amiga verdadeira. Daque-las que briga por aqueles que a cercam.

Por outro lado, na ótica de Dorva, teria Siné por perto. Vigiaria sua concorrente. Pelo fato de como mencionou que seria companhia a Maxi em sua turnê já causou – bem no íntimo de Siné – ciúme. Dorva co-memorava o fato de quem ficaria com Maxi seria ela. Era uma questão de tempo e em poucos dias seriam um casal.

- Que mesquinha sou eu! Por que estes pensa-mentos me rondam? Não posso pensar isso. Esta po-

Page 36: Livro: Devaneios em Prosa

36

bre alma amou aquele homem... Ela confia em mim... Pobre menina perdida...

Por um instante, Dorva compadeceu-se de Siné.A viagem de Maxi trazia ao coração de Siné a

realidade dura, dura realidade, e, isso a puxava ao seu mundo.

- Sei que Maxi não gosta de mim! O conflito entre paixão possessiva e consciência desconcertou Siné. E por alguns segundos entregou-se à figura de amiga. – Talvez eu seja a ele uma amiga, mais uma em sua vida. Seja o que for, foi ótimo.

Um calor imenso corou Siné e Dorva notou. Mas não comentou, apenas percebeu que fazia algum tem-pinho que estava falando sobre o trabalho. O que deve-ria fazer. Ela balança a cabeça e pede que ela continue.

- Vamos tomar um café, assim a coisa flui melhor. E Dorva sai com Siné como duas amigas confidentes, traçando planos de quando ela começaria.

- Você folga hoje, amanhã você começa. Acerta a tua vida. Tudo bem? Sorriu Dorva, muito prestativa.

Siné festejou mais uma vez: carteira assinada, uma chance diferente, um universo diferente...

Por outro lado, a família que há dois anos a ado-tara seria deixada. Sentiu-se traidora. Mas, a mudança teria que acontecer e o pedido de conta: o choro, a despedida, o início de uma nova vida.

Page 37: Livro: Devaneios em Prosa

37

A tarde do passeio

Siné resolveu retirar-se do mundo, pois precisa-va refletir sobre sua mudança repentina de vida. Tudo a aturdia: o amor, a dieta, o novo trabalho, novas ami-zades, passou a gostar-se.

Saiu diretamente do café e embarcou no ônibus. Ao adentrá-lo, as pessoas a fitavam alegremente. Algu-mas a olhavam com inveja. Interrogava-se se era para ela mesma que olhavam. Não se sentia neste momen-to como antes – invisível ao olhar das pessoas – era como se uma luz despertasse aqueles que a cercavam. Sentou-se na poltrona. A brisa daquela tarde entrava alegre pela janela lavando-lhe ainda mais suas desi-lusões passadas. Sentia-se linda, sentia-se desejada, sentia-se como se a vida lhe valesse a dura pena que pagara até aquele momento... “a dor me edificou, hoje mereço o que vivo pela imensa dor que senti. Va-leu ser uma boa moça e ter um amor verdadeiro, pelo menos o meu é verdadeiro, e é isso que realmente conta.” No seu interior, Siné sabia que a sua dor não era tão imensa como daquelas pessoas que sofrem de doenças, ou daquelas que sofrem privadas da liber-dade, ou males maiores. Todavia, havia algo nela que poderia ter-lhe tirado a vida. Sentia que às vezes não tinha liberdade, pois não a vivia na sua mais profunda

Page 38: Livro: Devaneios em Prosa

38

significação. Vivia presa dentro de si mesma. Havia de se libertar. E essa nova vida estava lhe oferecendo a oportunidade de sair de seu interior e no mais íntimo de seus desejos viajar muito longe. Absorver a vida, que raiava nas manhãs, e que ela por muito tempo a ignorou optando por ficar na escuridão que toldava seu desejo de presenciar coisas tão simples como o raiar de uma manhã ensolarada.

Junto com a brisa veio-lhe gritinhos. Era da fi-lhinha de uma senhora que estava com uma pequena menina. A criança chamava-lhe a atenção. Como se quisesse conversar com ela. Sorriu-lhe altivamente e se escondia atrás da mãe. Fez várias vezes e Siné retri-buía com um sorriso tão largo quanto o da menina.

- Linda menina... uma princesinha. Falou Siné elogiando meio que timidamente.

- Ela realmente é muito linda, é minha menini-nha. Não é filha? Encolheu-se muito mais a criança quase que desaparecendo atrás da mãe.

- Você tem filhos? Indagou a mãe da menina se-gurando a menina que queria sair do colo.

Siné respondeu: - Não, mas tenho veneração por elas. Elas me relembram um tempo em que somente as crianças me eram verdadeiras.

A mãe sorriu meio reticente. – Elas nos enten-dem, embora sua consciência de mundo seja limitada

Page 39: Livro: Devaneios em Prosa

39

e ingênua, seus olhinhos veem coisas que nós adul-tos não enxergamos. Elas nos pregam, às vezes, uma imensa lição.

Siné encantada com a menina viajou a sua infân-cia. Infância dura de uma família de poucos recursos. O pai era biscateiro e a mãe trabalhava como diarista. Seu pai, semianalfabeto, assim como a mãe. Mas a ho-nestidade e o valor à vida, pela vontade de sobreviver, era o que segundo eles deixariam a ela. O pai sempre lhe falava: “te darei estudo filha e ele não é tudo, mas é o que não podem te tirar, meu maior presente a você. Enquanto eu puder te sustentarei para você estudar”. Esta possibilidade não durou muito tempo, haja vis-ta ter tido a necessidade de trabalhar bem nova para ajudar sua família no sustento da casa. Ajudava sua mãe de manhã e à tarde ia para a escola. Sua sofrida vida nem era percebida. As dores lhe açoitavam, no entanto, com sua valentia as suportava, e no fundo acabava até se divertindo com as poucas coisas que lhe davam prazer. “Siné é muito madura para idade dela” falavam as amigas da mãe. Essa menina um dia será alguém na vida. A inteligência de Siné era elo-giada pelas patroas da mãe. “Uma menina com olhar vivo, com atitudes vivas, e uma luz muito grande.” Foi assim que foi definida Siné por uma historiadora dona de uma das casas em que a mãe dela faxinava. “Eu

Page 40: Livro: Devaneios em Prosa

40

lhe darei alguns livros e você os leia, assim que puder te darei mais. Conseguirei para você uma carteirinha da biblioteca.” Esse foi um dos maiores presentes que Siné ganhou, pois lhe traria uma lucidez de espírito que a faria forte em sua caminhada.

Trabalhando, estudando, vivendo. As dores lhe eram diversões, fortaleciam-lhe. Sua sofrida vida pas-sava e os sofrimentos não lhe eram assimilados. Mas, com o passar do tempo veio-lhe a ansiedade. E sua dieta calórica, oferecida pelos poucos recursos, lhe daria os contornos, os quais odiaria e lhe faria, como vaga desculpa – infeliz com sua aparência. Mesmo assim, no seu interior, dizia-se feliz, e seus pais até o final de sua adolescência sempre estiveram com ela dando-lhe companhia e força para suportar as dificul-dades da vida e a sua desenfreada busca, quase que inutilmente, em entendê-la. Lembrava-se, também, que às noites o pai contava histórias e não raras as vezes seus pais cantavam embalados à luz do lampião. Definia aqueles momentos como sua riqueza, sua inte-gridade. Seus pais cuidando, instintivamente, em seu pouco entendimento, da integridade emocional da fi-lha, queriam que ela não se ferisse. Protegê-la, pois ela era a eles “sua menininha”.

Aproximava-se o ponto de parada precisava descer. Beija calorosamente a menina no rosto, bem

Page 41: Livro: Devaneios em Prosa

41

como sua mãe e desce. “Você valeu o dia!” disse doce-mente Siné despedindo-se.

Havia, perto de onde ela desceu, um santuário. Tirou as sandálias e andou pela grama até chegar à ca-pela central. Uma pequena capela em volta muitas ár-vores ao longe um vale. Precisava olhar longe libertar sua mente. O céu tocava o verde. Sentou-se embaixo de uma árvore. O canto dos pássaros se fizeram sua música, relaxava-a. A lucidez precisava fazer-se amiga dela, pois nesse momento ela precisava mais do que nunca ser lúcida. Entendia que a felicidade podia ser momentânea e neste momento ela poderia toldar-lhe seus sentidos.

Rezou alguns instantes. Entregou a Deus suas de-cisões. Entregou a Deus seu amor por Maxi.

Ficou o resto da tarde ali. Depois foi para casa.

As juras de amor

Quando chegou próximo a sua casa viu que o carro de Maxi estava estacionado em frente. Sentiu uma imensa alegria, e também insegurança. Não sa-bia o que falar. Gostaria de poder encantá-lo, mas a criatividade é um animal selvagem. Às vezes, não con-seguimos domá-lo, às vezes, nem conseguimos nem se quer vê-lo.

Page 42: Livro: Devaneios em Prosa

42

Maxi estava sentado na pequena varanda que havia na saída para o jardim.

- Olá? Como vai? Perguntou Maxi.- Muito bem e você?- Já conseguiu assimilar a nova vida que você vi-

verá daqui para frente? Sorriu Maxi.- A maior mudança aqui é você. Justificava Siné,

com um largo sorriso.Ele a beijou suavemente, pegou suas mãos. E in-

terrogou: - Você não vai me convidar para entrar?Siné sorriu novamente e abriu a porta. Abre toda

a casa. Sentam-se na sala.A conversa foi longa. Havia coisas para serem

tratadas. Maxi disse que era como se ele a conhecesse há muito tempo. Não precisava conversar muito com ela para saber que havia algo de muito bom nela.

- O que você viu em mim? Não tenho nada de interessante. Sou uma menina sem a metade do seu conhecimento de mundo. Você é viajado. Não sei nada de você.

Nesse instante Maxi põe levemente a mão nos lá-bios de Siné e suavemente pede que ela não fale mais nada. Beija carinhosamente sua mão. E diz: - Amanhã você entenderá. Poderia te dizer tudo o que senti por você, mas passei a tarde inteira escrevendo sobre isso. Seria tautológico. Portanto, amanhã leia minha crô-

Page 43: Livro: Devaneios em Prosa

43

nica que publiquei sobre nosso amor. Peço desculpa se expus a gente. Mas precisava falar para o mundo inteiro. Eternizar um momento que para mim foi um dos mais felizes da minha vida. A mulher que sempre sonhei. Mas... Amanhã você lerá e entenderá tudo. Agora vamos aproveitar este momento.

Resolveram sair. Precisavam aproveitar o tem-po. Maxi dispensou seus compromissos e entregou-se a Siné.

- Vamos jantar depois, vamos ao cinema. Não sabia da dieta de Siné. Logo saberia. Ficou

meio atônito, todavia resolveu respeitar. Não sem an-tes aconselhá-la como quem tem conhecimento de causa, por ter como aconselhadas várias meninas que sofriam de anorexia.

- Você não sabe o quão triste é o sofrimento des-sas meninas, o quanto sofrem suas famílias e aqueles que as amam. Pense profundamente no que você está fazendo. Na livraria, você encontrará vários livros a respeito do assunto.

Siné contrargumenta afirmando que não está passando fome, só mudou seu alimento. E desde que mudara, sua vida também mudou. E agora ela se sen-tia muito feliz.

- Olhe Maxi. (pausa) Desde que mudei meu foco de vida cresci muito. Talvez, não seja o momento de

Page 44: Livro: Devaneios em Prosa

44

eu parar. Eu supervalorizava algumas coisas. E não aproveitava outras. Deixei de me alimentar da vida. E é isso que entendi.

Sentada à mesa com Maxi se alimentava de suas palavras de sua preocupação, de seu amor quase que paternal. E a noite passou agradável. Com cada um contando sua história de vida.

Mais Siné falava, Maxi só ouvia como que se so-nhasse.

A crônica

Maxi saiu antes de amanhecer. Um bilhete na ge-ladeira: “os sonhos que mais nos prendem são aqueles a que nos entregamos sem nem uma reação. Um agra-dável dia a você. Um início ótimo de trabalho. Boa sorte. Passo à tarde aqui. Com amor Maxi.”

Siné era toda empolgação. Seus olhos flameja-vam. Era um sonho que não sonhara, mas que o vivia com intensidade. As colegas de trabalho a receberam com bonomia. Foram simpáticas e dispostas. Embora uma delas, a mais velha, aparentemente falou com ar de graça “aqui se muito trabalha, pouco se ganha, mas muito se diverte, boa sorte colega. Aliás livros novos chegaram, você já tem o que fazer. Axulina você ensi-na Siné na catalogação?”.

Page 45: Livro: Devaneios em Prosa

45

Era um ambiente bem arejado, uma iluminação ótima, havia uma sala de leitura com confortáveis al-mofadas, um ambiente Hi-Fi, e tudo que uma livraria bem montada precisava ter, inclusive um ambiente in-fantil com salinha de leitura e jogos lúdicos. Era algo muito agradável a Siné. O saber batia em sua porta. Ali com certeza aprenderia muito.

Axulina chegou com um exemplar do jornal de circulação regional em mãos. Falou a Siné. Dorva pe-diu que eu o entregasse a você. Tem algo muito impor-tante aí que te interessa. Siné continuou catalogando. Observava as pessoas que entravam. E cada uma de-las apresentava um ar que despertava nela o interesse de saber um pouco de suas vidas. Aproximava-se para vê-las qual eram suas preferências de leitura. Estuda-va-as e sem perceber a cada pessoa que entrava arris-cava mais ou menos a que sessão se dirigiria, algumas vezes acertava, e isso se fazia uma interessante brin-cadeira. As colegas, às vezes, não muito simpáticas abandonavam os clientes muitas vezes nem pergun-tando no que se interessaria. O que desejaria. E assim, passou a manhã. Dorva chegou perto da hora de Siné sair para o almoço. Abraçou-a e falou:

- Siné, hoje estou conversando com algum de nossos clientes e fornecedores, caso você precise de alguma ajuda só você me ligar te deixo meu núme-

Page 46: Livro: Devaneios em Prosa

46

ro de celular com você. Ligue não se apure. Se você precisar de algum livro para você se familiarizar te-mos todos em versão digital. Alguns dos editores nos abrem para conhecermos seu conteúdo com sinopses muito interessantes. A senha te entregarei também. Não se envergonhe em perguntar. Todas as meninas estão muito bem aconselhadas em não te deixar na mão. Você é minha amiga. Eu não vou te deixar na mão (insistiu). Dorva falava ligeiro, Siné só balançava com a cabeça concordando. – A propósito tenho que ir ligeiro em casa almoçar, à tarde continuo com meus serviços externos. Até mais Siné. Amanhã conversa-mos mais. Beijão.

Dessa forma, sem Siné dizer alguma coisa Dorva falou com uma das meninas e saiu apressada.

Logo após, sai Siné para a hora do almoço.Curiosa Siné dirigiu-se à igreja. Benzeu-se. Sen-

tou-se e tirou de sua bolsa o jornal. Foi folhando até chegar na coluna de Maxi. E começou a ler:

“O amor em sonhos e realidades. Prezados lei-tores. Sempre venho a vocês semanalmente falar das relações humanas e suas dificuldades. Atualmente, tenho vivido um conto de fadas. Lembram-se vocês de alguma vezes ter citado em minhas crônicas uma mulher que sempre sonhei? Era minha companheira ideal. Não digo que não tenho que agradecer às mui-

Page 47: Livro: Devaneios em Prosa

47

tas mulheres a que conheci e que, muitas vezes, tra-çamos histórias muito felizes. Decepções vivi sim. E mesmo elas, ajudaram-me a definir o meu padrão do que realmente quero para minha vida. Agora volto a falar de minha companheira ideal. Vejam só os se-nhores. Sairei de minha formal maneira de escrever baseada na ciência, para de maneira quase que colo-quial, traduzir o que estou vivendo. Há poucos dias, no lançamento de meu último livro havia feito um pedido aos céus. Que precisaria conhecer alguém especial. E foi, nessa mesma noite, que conheci. Eu antes mesmo de conhecê-la pessoalmente, já a ima-ginava há muito tempo. A descrição era a mesma: fi-sicamente, intelectualmente e sentimentalmente. Ela poucos dias, em forma de sonho, já havia se apresen-tado a mim. Seu rosto não conseguia enxergar, mas sua voz para mim era clara, era a mesma da mulher que me ajudou ter sucesso num dos eventos mais im-portantes a que participei. Meu maior contrato com uma editora. Minha maior chance de minha vida. So-bretudo, minha noite mais feliz depois de tantas que se passaram como que se fosse a repetição de outras opacas noites. Saliento que sua luz era sem igual. Sua aura de bondade era um coisa fora do normal. Sua aparência física era completada por uma sabe-doria, daquelas imanentes, daquelas que nasce com

Page 48: Livro: Devaneios em Prosa

48

a pessoa. Confesso que ela não precisa dizer muitas coisas. Como já falei, eu já a conhecia. Senti medo disso. Mas o amor é maior. As viagens que fiz me conduziram para caminhos desconhecidos. A cada uma delas a novidade me trazia algo um pedaço do desconhecido e necessário à minha vida. Sinto que de todas as viagens amorosas essa é a que mais tem a me trazer algo novo. (Desculpo-me aqui aos meus amores passados a que tenho muito que agradecer). Confesso que pensei que não confessaria nunca um amor. Principalmente a vocês leitores. Nunca fui tão pessoal nas minhas escritas destinadas a vocês. Mas, achei que esta seria a chance de me fazer conhecer – uma pessoa sensível, leitor de poesias, que se emo-ciona com um filme, que se emociona com a nature-za, que se compraz com aqueles que padecem, e que também sofre, mas não deixa de acreditar. Em meus artigos, vocês sempre encontrarão um pouquinho de mim. Hoje vocês tiveram a chance de ver muito de mim. E isso graças a uma mulher que colocará com certeza nos meus próximos livros, se ela mesma quiser, um charme maior às minhas manifestações por quanto tempo ela assim desejar. Termino, hoje, afirmando que vale a pena se entregar ao amor, ele é o remédio a todos os males trazidos pelo tédio. Uma ótima e iluminada semana.”

Page 49: Livro: Devaneios em Prosa

49

A quinzena de amor

A crônica de Maxi aumentou ainda mais o amor de Siné, bem como a admiração do público-alvo de seus livros que o viam como um homem da ciência que escrevia friamente, mas não de forma vazia, sobre o homem e seus recônditos, suas fraquezas e seus ca-minhos alternativos para sair da depressão e enfrentar de frente este mundo capitalista predador. Este con-flito, admiradores e Siné não perturbavam Maxi que tinha bem claro seu caminho, seus ideais: ter filhos, viver um grande amor, fazer profissionalmente o que sentia prazer: escrever.

Os quinze dias passavam rapidamente. Siné não abandonou sua dieta que já não a incomodava – o sol, as alegrias, as idas a lugares floridos ou em que a natureza cantava silenciosamente uma canção, a igreja, os templos, suas amizades, seu novo trabalho que a cada dia mais a impressionava pela riqueza que possuía as infinitas páginas das obras que se ofereciam carinhosamente a ela – que servia como mediado-ra entre objeto desejado e ávido consumidor. Enfim alimentava-se, às vezes, enfastiando-se de vida que se fazia abundante ao seu lado.

Esses dias foram transcritos em uma poesia em seu diário:

Page 50: Livro: Devaneios em Prosa

50

“Fez-se enfim primaveraFez-se em mim felicidadeE a quinzena... Já era.”

A viagem de Maxi

Chegou o dia da viagem de Maxi. Abre-se aqui um parêntese para comentários a respeito do tem-po. Os dias, antes da revolução na vida de Siné, eram muito extensos, a sua dor, muitas vezes sem motivo, pareciam infindáveis. Suas mágoas regurgi-tavam em suas vísceras e o tempo regurgitava dessa forma. Seu sofrimento diário sempre era novo. No seu interior a dor era intensa – fibromiálgica. Em-bora buscasse externar-se como pessoa feliz, sorri-dente, muito pronta a tudo, quase uma mãe de suas amigas. Era estoicista, sofria por suas amigas, por ela mesma, pelo mundo, pelas estrelas... Agora as novidades de uma vida radiante aceleravam sua vida, páginas novas no livro de sua existência, eram páginas prazerosas de serem folheadas e quando re-vistas reavivavam mais ainda seu dia a dia. Tornou--se solidária, agora, de sorrisos, de bons conselhos, porém sem deixar-se contaminar pela dor do ou-tro. Sentia prazer e, ser fonte de luz aos outros. Uma nova vida.

Page 51: Livro: Devaneios em Prosa

51

Com essa radiância acordou ao lado de seu ama-do. As malas estavam prontas. Era o dia. Maxi afirmou que noivaria com ela no retorno e, ela ficava na in-cumbência da organização do noivado. Sentou-se aos pés de Maxi a olhá-lo, era como um sonho que ainda não acreditava, o amor em um tempo em que senti-mentos puros são raros em meio a tanta atitude mes-quinha com o semelhante em que as pessoas parecem ter saído de um iceberg.

O avião partiria às 15 horas, até lá buscaria fazer o que pudesse para disfarçar a Maxi a imensa saudade que iria sentir e a que já estava sentindo, mesmo antes da partida. Precisava ser forte. E de fato o dia foi mui-to agradável, conseguindo aproveitá-lo mesmo diante de tal situação.

O fato que mais marcou o dia de Siné, foi Maxi ter feito um noivado simbólico no meio da praça. O que ele fez a Siné, foi tirar suas sandálias, ele tirou os seus sapatos. Embaixo de um pé de plátamo, apanhou um galho de uma flor branca fazendo-o à forma de uma grinalda. No celular, o toque da marcha nupcial. Mas, o cortejo da natureza e dos pássaros foi o que mais impressionou o momento – embora não planeja-dos – pareciam que o fora. Siné achou muito engraça-do, muito espontâneo, Maxi parecia muito feliz, mais do que nunca, e seu sorriso ora quase que orbital, seus

Page 52: Livro: Devaneios em Prosa

52

olhos em chama não o deixaria mentir diante de tão grande evento: natural, original, poético. Ao fim sela-ram um amor, uma aliança. E devido à demora, quase que Maxi perdeu o avião, saiu um pouco do planeja-do. Dorva estava preocupadíssima – ligando sem pa-rar a Maxi. Até que ele chegou e ela se sentiu aliviada.

- Cuida bem dele, Dorva.- Cuidarei como meu irmão. Não se preocupe

Siné.Siné abraçou calorosamente Maxi, em seus olhos

o amor, em seus olhos a saudade, em seus olhos uma história que parecia não ter fim. O choro-riso inevitá-veis. Olhar vivo de ambos: o amor celebrado em uma rica e transparente taça de cristal.

- Contigo vai meu coração. As lágrimas em seu olhos marejados caíram ti-

midamente, sua tez resplandeceu, e uma indescritível fragrância floral foi sentida por Maxi, as flores abenço-ando uma união.

A solidão

Siné sentiu-se muito só. Em seus primeiros dias sem Maxi, ainda ecoavam seus momentos de felicida-de ao seu lado. Com o passar dos dias o sol já não brilhava para ela da mesma forma. Nem os e-mails de

Page 53: Livro: Devaneios em Prosa

53

Maxi com as fotos dos lugares aos quais visitara conse-guiam colocá-la para cima.

Certo dia, quando caminhava na rua, viu um se-nhor sentado na calçada. Era um dia muito quente. O homem lhe pediu uma moeda para comprar pão. Ela parou e enquanto procurava em sua carteira moedas o senhor a interrompeu.

- Minha filha você está triste. Não se preocupe... Ele voltará.

Ela pegou as moedas e as entregou ao pedinte.- Este homem não merece seu sofrimento.- Como assim? – Indagou Siné.- Ele trairá você com sua melhor amiga. – Meio

que sussurrou o homem com um imenso bafo de ca-chaça.

- O senhor não conhece meu noivo. Não me co-nhece.

- Não o conheço. Mas sei que ele não é fiel a você.Siné sentiu um choque correr por seu corpo.

Sua garganta quase que se fechou, seu coração pal-pitou. Suas mãos suaram. Sua mente pedia-lhe que não contra-argumentasse, que nada falasse, afinal era somente um bêbado, alguém fora de seu juízo normal. Mas, tem coisas que a razão não explica, como o nosso corpo reage instintivamente quando provocado.

Page 54: Livro: Devaneios em Prosa

54

- O senhor diz isso porque a maior parte das pes-soas trai. Nós somos muito felizes. Ele não vai me trair.

Num súbito impulso, Siné deu por si e resolveu sair dali. “Esse senhor está blefando. Quanto sou tola, dando importância ao que diz esse bêbado”. Quando se afastou um pouco mais, o senhor insistiu:

- O escritor... O escritor vai te trair.Aí foi o golpe final. Siné fitou profundamente

aquele homem. Formigava seu estômago. O medo apoderou-se de seus sentidos. E, ela afastou-se rapida-mente com os olhos marejados. A angústia. A dúvida. “Não vou acreditar... Esse bêbado com certeza conhe-ce Maxi... Ele deve ter nos visto.” Assim pensava, assim esperava, assim rezava.

Mesmo tendo duvidado das palavras do men-digo – pelo menos era assim que insistia em pensar – elas ecoavam em sua mente. Agora a dieta era tam-bém de noites dormidas. Os seus livros lidos passaram a ser os ultrarromânticos. A dor. A nostalgia. A fuga. Trabalhava o dia todo e à noite se internava na leitura. Suas amizades se preocupavam com ela, mas o tele-fone não o atendia. Os e-mails de Maxi ficaram sem resposta e os colegas de trabalho entregavam inutil-mente os recados a ela. Os postais chegavam à sua casa esbofeteando-a como uma imensa mão que tra-zia escrita em seus vãos dos dedos a palavra: traição.

Page 55: Livro: Devaneios em Prosa

55

Siné resolveu conversar com o mendigo. Dias ela desviou o caminho em que ele poderia se en-contrar. Todavia, chegou o momento em que ela enfrentaria seus temores. Aproximou-se da esquina em que ficava aquela esfarrapada criatura – pensa-va-o assim por seu incrustado ódio. Parou. Decidiu retornar e não o enfrentar. “Não. Decididamente preciso ir.” O mundo nesta hora girou. Quase des-maiou. Sentia as veias do corpo inteiro, seu coração a pulsar fortemente. Seus braços estavam formigan-do. Passa uma moça com olhar assustado e pergun-ta a Siné ali parada.

- Tudo bem com você?- Só estou um pouco enjoada. Isso pode ser gra-

videz minha filha. - Sorriu a moça.Sentou-se havia esquecido da possibilidade de

gravidez.- Não, não é minha senhora, estou em dia.- Então pode ser o sol minha filha. Se alimente

com comida leve. Beba muita água. Aliás já te trago um pouco de água pra você. Assim, entrou a senhora na lanchonete trazendo em seguida água a ela.

- Obrigada minha senhora, pode deixar estou melhor.

Siné recuperou-se um pouco e decidiu continu-ar no empreendimento.

Page 56: Livro: Devaneios em Prosa

56

Quando virou a esquina olhou o senhor que es-tava sentado no mesmo lugar que o vira antes. Ao ob-servá-lo mais de perto, não o reconheceu como sendo o mesmo daquele dia.

- Uma moedinha para o “veinho”, minha filhinha.- O senhor sabe onde está o homem que estava

sentado aqui dias atrás?- Aqui é meu ponto minha filha. Não tem outro

que pode ficar aqui minha filha. É a lei da selva. Tudo para sobreviver. Depois eu contribuo com a cachaci-nha para os irmãos. Assim, sorriu largamente o senhor com muitas falhas nos dentes.

Siné insistiu.- O Senhor me conhece?- Já vi você passar por aqui. Mas nunca falei an-

tes com você. Difícil alguém me enxergar aqui minha fiinha. Ainda mais moça bonita assim...

- Atônita Siné teve sua visão tolhida. Quase des-maiou.

- Tudo bem moça? Perguntou um homem de ter-no que passava por ali.

- Tô bem. Tô bem. E saiu Siné apressada dirigin-do-se à igreja.

Siné não entendia. Parecia estar alucinada. Ven-do coisas estranhas. Era a falta de Maxi? Era a dieta? Não conseguia resposta.

Page 57: Livro: Devaneios em Prosa

57

A resposta talvez estivesse nos livros. Mas, em que livro? Mergulhou na leitura sobre o assunto. Me-tafísica não era seu forte, mas aos poucos ganhou for-ça, apegando-se com santos e anjos para enfrentar o momento.

Deixou-se esquecer do que havia ocorrido. Des-ligou-se da saudade de Maxi. Embora às vezes ela a açoitasse. Suas chagas: trabalhos voluntários aos fi-nais de semana. Assim, distraía-se. E os dias passa-vam.

A invisibilidade

Aquele dia ao se acordar sentiu-se diferente. A luz parecia-lhe mais amiga que outrora. Conseguia - como se seu corpo fosse o fim de uma aresta - ver as diversas cores da branca luz que lhe transpassava. A corpulência desse evento distraía-lhe os sentidos. No-tou suas mãos diferentes – muito brilhantes. Sua face quase translúcida ao espelho também refletia muito forte a luz. Ao sair à janela, um beija-flor parou em sua frente, quase imóvel, tentou beijar-lhe os lábios, o que conseguiu de leve. Ficou atônita diante de tal acontecimento.

“Um beija-flor tentou provar de meu néctar.” Brincou consigo mesma. Sentia como se formigas de-

Page 58: Livro: Devaneios em Prosa

58

vorassem seu estômago. A luz, agora, transpassava-lhe completamente. A fome se intensificava. A saudade de Maxi, suas palavras. Precisava abrir seus postais, seus e-mails. Decidiu em meio a tudo aqui, ir à tarde a uma lan house. Era domingo, não trabalhava. Precisava ir ao parque, ir à igreja. O abraço dos idosos um dia an-tes a reanimara, assim como a umas palavras em sinal de gratidão e carinho de uma senhorinha de cabelos azuis: “viva o amor como se ele fosse o único motivo de sua vida, o tempo passa e só ele é a lembrança que mais nos impulsiona a viver mais. Lembre-se disso, pois ainda vivo intensamente aqui cada ato de amor que vivi (apontava para o coração). Vale muito a pena, pode ter certeza, pois é uma das poucas que tenho”. Sentia uma imensa vontade de sair. Apressou-se em se arrumar. Foi apanhar a escova dental, segurou-a, mas ela caiu. Achou natural “escorregou”, pensou. Con-tinuou logo após, arrumando-se. Ao tentar fechar a porta, caiu-lhe da mão a chave. Tentou pegá-la quase que não conseguiu. No entanto, teve dificuldades, mas fechou a porta – a esse momento o medo e a loucu-ra eram tolhidos por um resquício de sobriedade que não deixa nós pobres mortais acreditarmos em coi-sas do gênero. “Que está acontecendo??!!” – indagou Siné. Descartou a loucura, ignorou o fato e seguiu. Viu ao longe uma colega de trabalho. Ao se aproximar,

Page 59: Livro: Devaneios em Prosa

59

esta não a viu. O que foi autojustificado como sen-do sua amiga “orgulhosa. Finge que não vê as outras pessoas. Normal, isso hoje em dia. Falsas amizades, falsos colegas.” O padre de sua paróquia, amigo de Siné, também não a enxergou. Aliás, todos pareciam não enxergá-la. “Opa, opa, opa, tem algo de estranho aqui!.” - Sentia alguma coisa que não sabia bem o que era. Ela só sabia que isso não era o que deveria sentir. Nesta situação os sintomas de um ataque de nervos seria o mínimo razoável. Mas... não era o que estava acontecendo com ela.

Vinha-lhe uma outra colega de trabalho em sua direção e - esta daria graça se não a visse mesmo - o que acabou acontecendo. Queria chorar. Não conse-guia. Gritou, ninguém a ouviu. Olhou-se: o corpo em luz, radiante, muito belo. Seus pés levitavam. “Subli-minar” pensou. “Agora sou um anjo” - não deixando de lado seu senso de humor. “Que sonho mais demo-radinho esse!” devaneava ironicamente.

No fundo, ela pensava-se num sonho. Aparen-temente não era. E esse frio da dúvida corria-lhe pelo seu subliminar corpo.

“Cadê meus sentimentos? Se dissiparam com... com... – não sabia definir. – Deve ser... isso?!” Que êx-tase. Sentiu-se inebriada. As pessoas ao seu comando andavam devagar, bem devagar.

Page 60: Livro: Devaneios em Prosa

60

Pensou “Sei...! eu acho que... como é que eu vou dizer isso? Eu...” Resolveu não dizer o que acha-va o que tinha ocorrido. Mas então deve se igual aquele filme “O sexto sentido”. Então...” Parou na praça em frente à fonte e ao velho ipê. Voltou no tempo na noite de lua cheia e viu-se sendo ilumi-nada. Viu-se bela. Viu-se plena... A solidão a deixou. Cada pessoa que passava perto dela agora a alimen-tava. Seus sabores corriam - como se fossem essên-cia – aos seus olhos. Suas dores, felicidades e an-gústias. Escutava-lhes seus pensamentos – quando assim desejava. Tudo isso a aturdia, mas não a inco-modava. Andou, viajou, viveu de forma diferente. Sentiu prazer no canto do pássaro o qual contou com sua presença por alguns instantes. Se emocio-nou ao ver vida no ninho e a mãe alimentando seus filhotinhos. Continuou andando na rua. Ao passar pela esquina em que tinha visto o mendigo, o avis-tou novamente. Ela parou em sua frente. Encarou-o com coragem, mas ele abaixou sua cabeça. Confe-riu - não foi o segundo que negou conhecê-la. Ela parou poucos instantes ali. O senhor lhe dirigiu a palavra:

- Você ainda tem dúvida minha filha?- O senhor consegue enxergar-me?- Sim, até seu lindo interior.

Page 61: Livro: Devaneios em Prosa

61

- Procurei o senhor novamente, mas não estava aqui.

- Eu estava aqui. Você não me enxergou. Éramos dois.

- Então... Um silêncio imperou. Siné resolveu não enten-

der o que havia realmente ocorrido. O fato é que ela conseguiu vê-lo. As indagações eram menores que a ânsia de talvez aproveitar o estado em que se encon-trava: feliz, em paz.

- O que está acontecendo? O senhor quem é?- Você estava muito confiante em um amor e eu

resolvi testá-la. Hoje, poucas pessoas amam de forma que você está amando. – A face do senhor era tão ex-pressiva quanto suas palavras, como um druida res-pondia Siné com sabedoria e paciência.

- Eu o amo muito...- Você quer vê-lo?- Sim muito.- Então, que se faça.Tudo se espiralou ao seu lado em fechos de luzes

multicolores. Pararam em frente à janela do aparta-mento em que estava hospedado Maxi. Pela janela, Siné observou Maxi abraçado com Dorva. Neste mo-mento, compreendeu as palavras que a alertavam à traição. Mas não se enfureceu, apenas observou. Não

Page 62: Livro: Devaneios em Prosa

62

entendeu porque a fúria não invadiu seu coração que parecia bloqueado. Ficaram ali alguns instantes.

- Nos aproximemos mais.Ao se aproximarem ela viu que Maxi chorava.

Durva Consolava. Abraçados Maxi afirmou:- Siné. (pausa) – O que aconteceu com ela?Em um repuxo tão forte Siné e o misterioso ho-

mem saíram dali. Retornaram à esquina. Siné fitou o senhor, pegou a sua mão, beijou-lhe a face e atônita retirou-se.

Em frente à igreja, sentada sentia os primeiros pingos de chuva. A chuva engrossou e a água come-çou a lhe trazer de novo à materialidade. Pouco tem-po depois a mãe e a criança que ela havia acompa-nhado no ônibus se aproximaram e a menina ao colo da mãe lhe sorriu, jogou-lhe um beijo com as mãos, sua mãe não percebeu o que ocorria.

Siné seguiu para casa. No caminho desmaiou. Uma mão quente tocou-lhe à face. Abriu lentamente os olhos e com um sorriso, um médico - com a mes-ma face do mendigo – lhe falou:

- Você menina precisa se alimentar... (sorrindo brincou) agora você precisa comer por dois.

Page 63: Livro: Devaneios em Prosa

A LendaA Lenda

Na clareira, uma alegre festa à luz dos lampiões.Amantes se embalam ao som do violão.Noite de lua cheia.Um moço com olhar apaixonado mira uma lin-

da moça de olhos azuis que acompanha a só os balan-ços de uma noite festiva.

A moça ao aproximar da meia-noite, olha a es-curidão e corre sorrateiramente para a mata.

O moço atrás sai com passos ligeiros a se preo-cupar com a forasteira que ao primeiro olhar se apai-xonara.

No escuro, um barulho... uma fera. Ao ver do moço, atacara sua pretendida.

Sem nada entender e, a pronto, saca de sua arma.

A fera da moça se aproxima, olham-se. A moça chora silenciosamente e como as águas do Amazonas, nesta noite de lua cheia, brilharam suas lágrimas.

O moço no vão das árvores, atentamente, com receio de provocar de vez a ira do monstro e ele ata-car sua vítima, observa e espera o momento certo.

A luz da lua a brilhar, mais resplandecente do que nunca, brilha no Gigante Amazonas oferecendo um

Page 64: Livro: Devaneios em Prosa

64

espetáculo sem igual. Para o moço, aquele momento era apavorante; para natureza, algo incomum...

A vida pede socorro; o amor intenta vencer pre-conceitos, o ódio de outrora, o ciúme que destrói, e a maldição que aprisionou um amor em segredo que revoltava a todos.

Um pedido insano da separação, justificativa impensada-insensata: o pobre e o rico... inimigos de sangue... inimigos de idéias... inimigos daqueles que padeciam... talvez uma provável esperança da paz... mas que não era desejada.

A dor aprisionou, mas o Amor ainda resiste...O valente moço, atônito naquele momento que

parecia eterno, solta o fogo de sua arma, que como vaga-lumes, alcança insanamente a Suçuarana que cai ao chão.

A moça com o desespero dos amantes enlouque-ce aos prantos. Desmorona-se em lágrimas ao lado da fera que padece.

A fera, agora quase homem, despede-se da moça com olhar suplicante. A moça segue para o rio... olha para trás... vê seu amado em seu último suspiro e, já não mais caminha... levita-se nas asas da misteriosa Mãe-d’água, meio ser fantástico, meio mulher... des-pede-se.

Do valente moço, ninguém mais sabe nada.

Page 65: Livro: Devaneios em Prosa

65

Mas, muito se fala da viúva-moça que às noites de lua-cheia chora em águas límpidas a falta de seu amado.

Page 66: Livro: Devaneios em Prosa
Page 67: Livro: Devaneios em Prosa

O Achado Misterioso O Achado Misterioso

Era um dia como qualquer um outro.Juvenal, um jovem catador de recicláveis, ento-

ava uma melodia aos assobios quando avistou uma mala. Era uma linda mala. Olhou par a os lados para tentar avistar se havia alguém que a reclamaria. Nin-guém aparecia naquele beco, eram sete horas da ma-nhã. Pensou em ficar esperando até que o dono apa-recesse. Colocou a mala em seu carrinho, escondeu-a. Lembrou-se de ver quais eram os detalhes dela para ver se a pessoa que aparecesse reclamá-la saberia des-crevê-la. Daí sim a devolveria.

Juntou o reciclável do beco e nada. As janelas se abriam. As pessoas punham as roupas nos varais. As chaminés cuspiam fumaça, saíam pais para levarem suas crianças à escola. Uma senhora que saía muito cedo caminhar estava a voltar de sua matinal cami-nhada. Juvenal disfarçava e ficava a esperar... E nada...

Nove horas da manhã. O pobre catador aguar-dava... Sua barriga roncava. Seu pensamento neste momento era de deixar a mala ali e seu dono que vol-tasse buscá-la.

Mas, será que outra pessoa, que não seu dono, a encontraria. Enfim, deixá-la não. Resolveu aguardar.

Page 68: Livro: Devaneios em Prosa

68

Dona Jurubeba sai à janela e estranha a inusitada permanência do homem da reciclagem mais do que os quinze minutos habituais os quais demorava para fazer a coleta. Mas, mesmo assim ela se recolhe.

Juvenal se incomoda e, ninguém... Pensa, nin-guém mesmo vem buscá-la.

Resolve ficar sentado na praça à frente do beco e aguardar o descuidado que deixara uma linda mala ali a esmo.

Olho fixo e um senhor se aproxima. Distinta pes-soa, ao ver do Juvenal, muito bem vestida, com um impecável terno. Deve ser ele o proprietário, pensou o preocupado Juvenal. Bateu à porta da mulher do nú-mero 18 e conversou ligeiramente saindo com uma caixa pequena embaixo do braço, que após passar perto do nosso herói, descobriu uma caixa com xíca-ras pelo desenho que tinha na mesma. Cumprimen-tou o simpático senhor e este foi embora. Concluiu que não era o dono.

Quem deixaria ali aquela maleta? Quem vol-taria para reclamá-la? Será que alguém saberia dizer alguma coisa a respeito. Em quem confiar? Como per-guntaria às pessoas? Faltavam idéias ao homem que cuidava tão bem do lixo. Até que chegasse a resposta, resolveu comer alguma coisa. Trazia em sua sacola um pedaço de pão e uma garrafa de refrigerante com

Page 69: Livro: Devaneios em Prosa

69

chá dentro. Comeu, a cada mordida se preocupava, quando iria sair dali.

O lanche acabou e ainda nada. Ninguém apa-recia para levar a mala. Pensou em jogar fora e fim do problema. “Mas que ideia a minha, que falta de consideração com as pessoas” refletiu nosso honesto homem.

Faltava-lhe conhecimento. A quem entregar a mala? O medo passava-lhe pelos nervos como um choque a lhe arrepiar. “Por que medo?” Decidiu ver melhor a mala. Chacoalhou-a. Parecia haver algo lá dentro que pareciam papéis. Achou que podia ser di-nheiro.

Por um momento, sentiu-se feliz. Ajudar alguém. Talvez a pessoa que perdeu o dinheiro voltasse para buscá-lo. Certamente, o pagamento do mês. Pensou de pronto: as crianças em casa à espera do pai com a compra do mês, a esposa pronta para cumprir suas obrigações... “Que prazer ajudar alguém”, devaneava Juvenal.

A tarde vem e a sombra já não conseguia impe-dir os ardentes raios solares que queimavam a pele es-cura do esforçado agente ecológico.

Este a imaginar a chegada do homem que esque-cera ou perdera o dinheiro.

“Será mesmo que é dinheiro?” Interrogou-se.

Page 70: Livro: Devaneios em Prosa

70

Sentado quase o dia todo, poucas pessoas ha-viam notado nosso reflexivo homem. Os pássaros lhe faziam companhia. Ele ficava a indagar a eles, em pen-samento, se sabiam de quem era aquela bendita mala.

Decidiu. Em um lapso de pensamento decidiu pela libertação. Ver o que havia na mala. O coração quase lhe sai pela boca. Palpitava-lhe que seria con-fundido com um ladrão, um bandido. Mas precisava abrir e ver se havia ali alguma pista que levasse ao seu irresponsável dono.

Agora o suor escorria-lhe ao rosto, lavava-lhe a alma, talvez fosse o momento... Nunca imaginou que partiria daquela forma. “Não, decididamente, não! Não vou morrer!” Mesmo que seu coração lhe falasse o contrário. Não tinha sentido tal sensação até aquele momento. Mas... a curiosidade era maior e pensou “Já que vou morrer quero saber o que vai me levar!”

A mala olhava quase que sorridente àquele infe-liz. Justiça seja feita, por que se preocupar tanto com um ser tão ignóbil? Uma pessoa que deixava uma ma-leta em qualquer lugar pode ter feito propositalmen-te, talvez um descuido ou até mesmo para se desfazer dela. Qual destas indagações seria a correta? Filosofa-va Juvenal.

A emoção, a curiosidade, o medo, a sublima-ção... Nunca havia refletido tanto. Nunca pensara tan-

Page 71: Livro: Devaneios em Prosa

71

to para encontrar uma resposta. Seu coração nunca sentira tanta emoção. A preocupação era com outrem e, nem ao mesmo o conhecia. Um desconhecido nun-ca o influenciara desta forma. A preocupação com outra pessoa se fazia clara ao nosso paciente catador.

Sempre gostou do que fazia. Não sabia bem de-finir o que o movia diariamente àquele ofício. Achava que era só a ânsia de viver e ter por que viver. Todavia, naquele momento sentia-se importante, não sabendo exatamente por quê.

A angústia. A curiosidade. O peso na consciência que o fazia sentir culpado. Tudo isso o atormentava. As mãos suavam, a cabeça rodava, a falta da esposa neste momento se fazia grande - pois saberia ela o que fazer – mas ele...

Em um relance helicoidal, a mala espiralava-se em um escuro buraco negro que lhe tolhera aos poucos sua consciência. A mala às mãos. Agora ao peito. Resolveu sentar-se recostado ao carrinho, quando... o mundo co-meçou a fugir-lhe, levando consigo seus sentidos.

Em um grande sonho surreal, ele abria a mala e de lá saíam mansões, carros dos mais variados tipos e marcas cada um mais belo e brilhante que o outro, comidas que não saberia descrever - pareciam-lhe de-liciosas – mas distantes se faziam, assim doía-lhe ainda mais seu estômago.

Page 72: Livro: Devaneios em Prosa

72

Sua família – como se fosse espectadora desse sonho – apreciava atônita tamanho acontecimento. Tais coisas os distanciavam cada vez mais, até que Ju-venal já ao longe dos seus, sente-se muito só. Muito só. Ele unicamente deseja transpor as barreiras impostas pelo que saía da maleta. A mesma é alvejada por uma inesperada pedra – vinda não sabe de onde. Ela se fe-cha. E o que dela saiu some.

Assim, nosso herói se sente aliviado, pois se vê novamente próximo de seus familiares. Eles o abra-çam e aliviado despede-se.

Alguns minutos depois, retoma seus sentidos e, avista ao seu lado a maleta. Estava aberta. Atônito vê em seu interior um livro velho e um maço de papéis escritos.

O homem que faz a coleta do reciclável não sabe ler. A curiosidade lhe corrói a alma. Por que não estu-dei? – indagou Juvenal. Os conselhos de sua mãe para que estudasse açoitava-lhe. No entanto... teria imedia-tamente saber o que estava escrito naqueles papéis e o que era aquele livro.

Para a sua sorte vinha alegremente um meni-no que pela rua assoviava sem parar. Sem ceri-mônia ele foi parado. Perguntou-lhe se ele sabia ler. Respondeu – meio com receio - com a cabeça que sim. Deu-lhe os papéis – mesmo o menino achando

Page 73: Livro: Devaneios em Prosa

73

aquilo muito estranho - leu meio que silabicamen-te, mas leu. A primeira página dizia assim: “Que-ro desculpar-me da forma que achei para repartir do muito que colecionei em minha vida. Os anos se passaram e descobri nisto que deixei registrado nas folhas que se seguem um grande tesouro, que me fez um homem feliz, livre e, sobretudo solícito. Resolvi repartir com você, pois certamente saberá assimilar com sabedoria o que lhe deixo. Acredito que se mudou a minha vida, poderá mudar a sua. Deixo-lhe um exemplar desta preciosidade que para mim é uma bússola num mundo em que as pessoas andam sem saber para onde e por quê. Um grande abraço de um amigo”

Inesperadamente, a ira nos olhos de Juvenal era visível. Os papéis foram lançados furiosamente em seu carrinho. “Quem me roubou? Levou o que havia nesta maleta me deixando só estas folhas sem valor. Talvez houvesse joias, dinheiro ou sei lá o que mais. Pobre de novo! Somente desejei ter uma casa digna. Comida...” Afirmou furiosamente.

O menino lhe perguntou “Hei, o senhor vai que-rer este livro?” O homem disse que poderia ficar com ele. “Obrigado moço” disse o menino sorrindo – e le-vando consigo um exemplar usadíssimo da Bíblia Sa-grada.

Page 74: Livro: Devaneios em Prosa
Page 75: Livro: Devaneios em Prosa

Uma Noite SolitáriaUma Noite Solitária

O vento batia violentamente na parede da ve-lha casa. Soprava uivante como lobos em noite de luar. Os trovões, os raios e os relâmpagos se suce-diam em um espetáculo assustador, pelo menos para as mentes daqueles que não possuíam uma alma pura para enfrentar o medo proporcionado por uma apocalíptica noite. Logo começou a chover. O ven-to se exaltava cada vez mais, trazendo consigo os primeiros pingos violentos daquela que seria uma tempestade dantesca. Ramiro assustava-se com tudo isso. Os galhos das árvores batiam na parede, no te-lhado; dava-lhe a impressão de que alguém tentava derrubar a casa.

Ramiro sempre ouvira as histórias dos mais ve-lhos a respeito das pessoas que foram atingidas por raios, por isso tremia freneticamente de medo como se fosse uma apavorada criança, embora estivesse com dezessete anos. A cada raio, pulava. Estava sozi-nho. Seus pais haviam saído ver seu tio, irmão de seu pai que se encontrava muito doente.

Seu tio era para ele um herói, contava mui-tas histórias de viagens, de passeios, de fantasmas e de lendas de tesouros escondidos. Narração que vinham seguida de uma vivacidade pungente, que

Page 76: Livro: Devaneios em Prosa

76

o emocionava arrancando sensações mais puras e verdadeiras que somente os narradores mais elo-quentes conseguem.

Vinha-lhe à mente a história do velho João, que seu tio sempre comentava como testemunho de que a alma é imortal e, o corpo é um simples abrigo desta. Dizia ele que na noite em que o velho João falecera escutou um barulho, como se algo tivesse caído. Foi ver o que era. Caminhou pela casa toda e tudo esta-va em perfeita harmonia, tudo estava em seu lugar. Sentiu um frio correr pelo corpo inteiro, mas dizia ele a si mesmo que estava tranquilo, “era uma reação natural dos nervos!” Voltava à velha poltrona. Lia um livro de contos de Edgar Poe. Julgava ele que tais sen-sações eram geradas pela temática dos contos lidos. Após alguns minutos, novamente ouviu alguma coi-sa cair, desta vez a intensidade do barulho era mais alta e, dava-lhe a impressão de que caiu no piso da cozinha. Pensou... “É ladrão”. Pegou a vassoura que se encontrava perto – era só o que se encontrava por perto e podia defendê-lo naquele momento pensou - e caminhou sorrateiramente. O coração em batidas violentas parecia que sairia correndo e deixaria quem dele precisava. O suor em seu rosto vertia como água salobra dos gêiseres. Tentou acalmar-se um pouco e planejava o ataque. Talvez contra um ladrão. Apro-

Page 77: Livro: Devaneios em Prosa

77

ximou-se da porta da cozinha e pela fresta observou lentamente, mas nada viu. Caminhou pela casa toda e nada percebeu de anormal. Tudo em seus lugares. Olhou pela janela e tudo estava bem. A curiosidade o assombrava. Queria saber o que era. Interrogava--se, levantava hipóteses do que podia ser. Sentou-se à mesa da cozinha, ficou a refletir, pensou em rezar. Às primeiras avemarias, escutou o telefone tocar. Uma voz baixa e triste de uma mulher lhe disse: “meu irmão se foi. E, como você era muito amigo dele, lembrei--me de ligar a você.” Tudo isso lhe vinha à memória. E o pavor era cada vez maior. Falava baixinho “meus pais, meus pais”...

“Não sei por que as coisas que nos amedrontam parecem imperceptíveis quando estamos com nossos pais”, pensou Ramiro. O vento soprava, parecia-lhe cada vez mais forte dando-lhe a impressão de que a velha casa construída há mais de cinquenta anos não aguentaria. Interrogou-se se poderia gritar para espantar o horror. Pensou “estou sozinho, e as casas vizinhas ficam no mínimo a dois quilômetros”, pois morava em uma chácara. E, em um ato de desespero berrou. Berrou como o pobre personagem Eurico o presbítero - que se atirou em um ato insano contra um exército sarraceno que o perseguira com o intuito de matá-lo -. E nesse instante uma paz interior o invadiu

Page 78: Livro: Devaneios em Prosa

78

como algo digno dos grandes heróis, ou como o silên-cio que prenuncia algo pior a acontecer.

Ouvia a chuva, e, de certa forma, começava a se acostumar. Já o vento não soprava tão forte, e os raios já não eram despejados com a mesma frequência. Ramiro mirava o retrato de casamento de seus pais, contemplava a face de ambos, sentindo a saudade dos solitários ermitões. Relembrou da noite anterior em que seus pais o aconselhavam para melhorar suas no-tas escolares.

Num abrupto instante, escuta um estrondo – como jamais ouvira antes -. Algo precedido de uma imensa luminosidade que tolheu seus sentidos. Sentia--se como se estivesse gritando apavoradamente, tudo brilhava ao seu lado. Sua visão não oferecia nitidez que dá ligação do real, do lógico, ou do possível para nossas mentes racionais. Era um sonho, um devaneio, talvez o mesmo que sentiu Dante Alighieri quando viu tais céus e infernos, como ele mesmo afirma ter visto com os olhos humanos maravilhas e horribilidades que a men-te depois se esvai na tentativa de relembrá-las...

Tudo se distorcia. A porta já não estava no mes-mo plano em que se encontrava. Estava ela para ele à distância, era como se estivesse bem distante, tal-vez no horizonte, e sua magnitude era como se fos-se a porta celestial. Gritava ele, mas o som que saía

Page 79: Livro: Devaneios em Prosa

79

parecia aos seus ouvidos algo incompreensível, quase inaudível; afinal ele nem sabia para quem gritar e o que gritar. A porta se aproxima dele. Como algo que vem automatamente, como a vida dos humanos, ou como o movimento das máquinas. Não sentia suas mãos, que aos seus olhos pareciam disformes, ora agi-gantadas, ora minúsculas. Seu coração batia em um ritmo descomunal, como se lhe fosse sair do peito. A saudade batia juntamente com seu peito num frenesi desvairado, galopava em sua frente sua fé com algo que ele acreditava, mas há muito havia esquecido – pela correria do seu quotidiano, ou pelo desleixo dos afazeres fúteis -.

A porta se aproxima muito mais. Alguém saiu de lá, não se apresentava nitidamente. Fecha-se a porta. Abre-se novamente e mais alguém sai de lá. Ambos revestidos de muito mais luz que o seu ambiente atual, que já se encontrava aparentemente muito iluminado.

Ramiro agora, sente-se correr para a porta em uma i-n-f-i-n-d-á-v-e-l correria, num caminho tranqui-lo e já não tão assustador. Olha mais para as pessoas que se aproximavam dele e, percebe-os um homem e uma mulher. Chega mais perto. Suas pernas amole-cem e ele cai. Quando olha para perto de si observa duas sandálias e logo mais duas e, ouve uma voz doce e suave que diz em coro “meu filho”.

Page 80: Livro: Devaneios em Prosa
Page 81: Livro: Devaneios em Prosa

Boneco De NeveBoneco De Neve

A neve caía branquinha. Cobria toda a cidade. As crianças brincavam. O mais velho deu a ideia de construir um boneco de neve. Logo, a criançada co-meçou a construção, com baldes, pazinhas seguia feliz a empreitada. A criança mais velha somente moldava, organizava seus companheiros conforme a idade.

Construiu-se a base. Reuniram-se todos e fica-ram a contemplar carinhosamente a criação. Descan-saram. Faziam planos para o dia seguinte. Cada um viria com uma peça de roupa para vestir o boneco: um traria cachecol, outro traria um chapéu velho que o pai não mais usava, outro tampinha de garrafa des-cartável para fazer os olhos e botões da blusa; enfim cada um procuraria o que trazer para deixá-lo com uma boa aparência.

A noite cai. A criançada procurou dormir cedo para levantar mais cedo ainda e continuar a constru-ção. Cada uma delas possuía uma paz e satisfação por participar da criação de tal criaturinha.

As portas se abrem. A neve ainda estava muito espessa e o frio era muito intenso. Baldinhos, pazinhas se unem novamente. Continuam seus ofícios. A se-gunda parte concluía-se. A cabeça já estava moldada.

Page 82: Livro: Devaneios em Prosa

82

Três partes unidas em uma só. A menorzinha questio-nava como se colocaria o coração no boneco, pois ele deveria ser capaz de amar seus amiguinhos, pois a sua mãe lhe falou que o amor vem do coração, e é ele que nos faz ser capaz de amar...

Os braços de galhos eram como se tivessem de-dos nas pontas. Os olhos de tampinhas de garrafas descartáveis eram azuis. O chapéu velho trazido pelo garoto ruivo era na verdade uma cartola velha, mas deixou o boneco como um aspecto de cavalheiro. O cachecol e os botões foram engenhosamente dis-postos. O nariz teve que ser fabricado. Um pedaço de papel vermelho feito cone deu um ar de gripado ao boneco. A boca foi um desafio ao grupo. A menorzi-nha fez cara feia da expressão infeliz do “boeco”. Não queria ela um risco. Queria uma forma de uma meta-de de lua. Ele deveria ter cara de feliz.

Em um zape, as crianças concluíram. Houve uma grande comemoração. Os gritos de alegria se su-cediam. Era para elas um dos dias mais felizes de suas vidas.

A escuridão caiu. Eles se recolheram, meio que a contragosto. Nas janelas, todas vigiavam o boneco, como se alguém pudesse levá-lo dali. Com certeza todos sonhariam com o resultado do suor de seus rostos.

Page 83: Livro: Devaneios em Prosa

83

A solidão da escuridão deu a uma fadinha que passava por ali a ideia de dar vida ao boneco. Ela per-guntou a ele qual seria seu desejo, ele respondeu que gostaria de subir o monte mais alto daquela região e ver toda a cidade e o vale onde ela se localizava, com toda sua natureza exuberante e os mais longínquos lu-gares em que pudesse avistar. E como num passe de mágica o boneco já podia andar.

Iniciou sua subida, mas antes se despediu da fada, que se perguntava o porquê dele não querer ser um garoto... A nevasca que caía não fazia com que nosso herói desistisse de sua jornada. Em poucas ho-ras já estava no mais alto de um monte que naquela região era o maior.

De lá de cima, admirou as luzes que brilhavam lá embaixo. Lembrou-se das crianças e seus empenhos para formá-lo o que era agora. Desejou em sua cur-ta vida de boneco ser uma gigantesca bola de neve. Pensou em rolar o monte ganhando assim tamanho e força. Novamente em seus ouvidos ecoaram os gri-tos repetitivos da molecada. Pensou que se de lá de cima rolasse possivelmente causaria uma avalanche e um imenso estrago nas suas casas que no vale es-tavam erigidas. Sentia ainda pulsar em seu peito um coração imaginário que a menorzinha o criara. Batia assim uma saudade do chão que o acolhera e decidiu

Page 84: Livro: Devaneios em Prosa

84

se eternizar pela alegria oferecida às crianças. Resol-veu voltar ao seu lugar.

Na metade do caminho, um lobo que o acom-panhava sem ser percebido o questionou por que não descia rolando, iria mais rápido. Justificou o boneco que dessa forma era a correta, pois se rolasse a muitos machucaria; principalmente aqueles que dedicaram muito a ele. Em pouco tempo este serzinho absorveu o que de melhor havia nas pessoas: a preocupação com aqueles que dedicavam pelo menos um pou-co de suas vidas aos outros, sorrisos, a criatividade, a união, a pureza, a malícia ingênua, a preocupação com o semelhante; enfim ele conheceu a pureza do coração das crianças.

Chega novamente àquele lugar a que reconhe-ceu como sua casa. Durou poucos dias, pois logo che-gou a primavera e com ela os primeiros raios de sol. Imaginou que sua missão de boneco estava cumprida e amanhã faria parte das águas que subiriam ao céu e de lá retornaria alegremente em um novo ofício - o de água - levando vida a todos os lugares até chegar novamente ao imenso e indescritível mar.

Page 85: Livro: Devaneios em Prosa

Na Malha FinaNa Malha Fina

Era mais um dia de trabalho para Genildo, au-ditor de tributos. Com uma ordem de serviço em mão, sua missão era investigar uma declaração de Imposto de Renda, de uma pessoa de 68 anos de ida-de, na qual ela declarava um patrimônio milionário em bens não tangíveis, mas não possuía uma renda compatível para aquele patrimônio, declarando-se como aposentado que ganhava um salário mínimo e meio.

O auditor saía com planejamento em mãos e uma rotina bem definida. Sua hipótese inicial era de erro na declaração, pois uma pessoa que possu-ísse tal valor em bens não moraria onde esta pessoa morava – sabia onde era a localidade pois a avistava em seu computador em que mostrava uma área bem pobre de ocupação. Descartava inicialmente a sus-peita do investigado ser um laranja, pois não havia indícios em seus arquivos pelo cruzamento de dados, e também seu instinto bem apurado de auditor não lhe dizia isso.

Com seu carro, entrou no bairro. Crianças brin-cavam na rua, cachorros aos montes faziam o cortejo em uma verdadeira algazarra, mulheres conversavam nas esquinas, muito desconfiadas miravam o estra-

Page 86: Livro: Devaneios em Prosa

86

nho. Num fim de rua, em uma casa muito precária praticamente em um banhado, ele avista um senhor de barba comprida acinzentada, estava vestindo ca-misa branca social surrada pelo tempo, calça preta bem descorada e sandálias de tiras remendadas por costura. No olhar do senhor havia muita firmeza. Nos lábios um sorriso. E a voz firme cumprimenta o moço da receita com um:

- Bom dia, em que posso servi-lo?- Bom dia! Respondeu o auditor. - Em que posso servi-lo? Ele se apresentou como funcionário da Receita.

Falou que precisaria conversar sobre Declaração do Imposto de Renda. Também, perguntou seu nome e outros dados do contribuinte checando-os com seus registros.

Com estas informações em mãos, continuou.- Tenho uma notificação para o senhor, não se

assuste, vou explicar pro senhor do que se trata, mas antes tenho que fazer algumas perguntas, é o protoco-lo. Riu discretamente, para quebrar o gelo e tornar a missão menos árdua e mais tranquila.

O senhor muito solícito, falou que estava às or-dens.

- Nossos arquivos apontam que o senhor decla-rou um valor milionário em bens. Mas pelo que vejo...

Page 87: Livro: Devaneios em Prosa

87

O senhor riu, ainda meio discretamente, o que foi acompanhado pelo entrevistador.

- Enviamos ao senhor notificações pelos cor-reios, mas elas retornaram com o não localizado, e por isso estou aqui. Justificava a autoridade.

- Meu filho, tudo que você quiser saber eu lhe contarei. Respondia o senhorzinho em um tom meio que intimista.

Genildo voltou ao carro, pegou alguns papéis, travou a porta e, retornou a casa, que a adentrou com o convite do seu dono.

- Sente-se, fique à vontade, só não ligue que é uma casa simples. Explicou o anfitrião.

- Obrigado, ficarei! Agradeceu a visita.Sentado em uma cadeira de palha, Genildo mi-

rava as paredes escuras da casa, as panelas penduradas debaixo do fogão a lenha chamavam-lhe a atenção, pois estavam muito bem limpas e chegavam a brilhar. O assoalho de madeira, com muitos nós, também bri-lhavam. Tudo isso remetia-lhe ao seu passado, lembra-va de sua casa e a casa de seus avós. Lembrava-se dele limpando o assoalho de sua casa, que possuía muitas frestas, mas à sua brincadeira de puxar os irmãos em um pano velho rendia-lhe um brilho sem igual que o orgulhava – simples, pobre, mas muito limpo era sua ideologia. Isso tudo lhe dava uma imensa saudade de

Page 88: Livro: Devaneios em Prosa

88

seu tempo passado. Uma infância rica de carinho e muita brincadeira.

- Você aceita um café? Interrompe o auditado.- Não obrigado. - Então, toma mate? Aceita um? Eu não vivo sem

chimarrão. Comenta o senhor.- Aceito! - Isso não vai interromper meu trabalho

-. Pensa o servidor.O senhor de barba acinzentada pegou de sua

chaleira e cuia e serviu um mate ao servidor público. Tomou o chimarrão. Agradeceu. Falou que precisa-va continuar, pois haviam outras atividades previstas para aquele dia, mas agradecia a hospitalidade.

- O senhor pelo que me consta aqui é aposenta-do? Inquiria o auditor.

- Sim senhor!- De que mais vive?- De apanhar latinhas de alumínio.- O senhor ajuda alguém?- Não, vivo sozinho. Não tenho filhos, nem ou-

tras pessoas que vivem comigo.Houve uma pausa e senhor abaixou levemente

a cabeça.- Eu vivi desde os 19 anos com minha esposa até

os 60 anos. Foi quando ela se foi. Daí pra frente vivi sozinho. Com uma imensa saudade...

Page 89: Livro: Devaneios em Prosa

89

Novamente houve uma pausa. O Clima ficou meio triste, mas o ofício tinha que continuar.

- O senhor pode continuar. Pedia o ancião.O homem da receita indagou sobre seus bens e

seguiu-se:- O que pude perceber o senhor não possui, apa-

rentemente, o que declarou. Meio que constrangido segue.

- Quem fez sua declaração?- Eu mesmo. Falou firme o interpelado.- Tudo que possuo de valor está aqui em meu

rancho, inclusive ele, tudo que tenho aqui é o meu tesouro. A vida que estas paredes testemunharam não tem valor. Aqui aconteceram os melhores anos de mi-nha vida. O sentimento de gratidão aos céus me fez pôr nestas paredes um preço sem igual. Os amigos que aqui passam deixam muito, o que faz este lugar valer mais. Enfim, desconheço a pobreza - a de espíri-to é lógico – sempre fui rico, pois possuo o que muitos não possuem – a liberdade, felicidade, dignidade e a gratidão ao bom Deus que tudo criou -.

A autoridade fiscal riu discretamente. Em sua mente, muito bem treinada pelos anos de estudo que o ofício pedia, encontrava uma situação nova. E como mensurá-la? O que fazer? O que apontavam os livros e manuais? Deixava-se convencer pelas explicações

Page 90: Livro: Devaneios em Prosa

90

lógicas, ou render-se ao valor subjetivo atribuído pelo senhor a tudo que o cercava? Enfim que parecer dar?

- Me vê mais uma cuiada desse chimarrão. Pedia um tempo o auditor para aliviar a tensão e melhor dar termo àquela situação.

Mais um gole e as palavras soltas do senhor dava--lhe o ar da sapiência simples, mas autêntica de uma pessoa que passava exemplo de vida. Termina a cuia de chimarrão.

- Termino por aqui meu serviço. Era o que tinha por hoje. Estou indo. Falou Genildo.

- Tudo bem! O senhor, como todos que aqui vêm, sempre será bem-vindo a minha casa. Dizia com ar autêntico o sábio senhor.

Levanta-se, sai lentamente o auditor. Mas quan-do sai, a cortina do quarto levanta-se ao vento e ele percebe no quarto um lindo quadro, de uma delicade-za sem igual. Possuía traços impressionistas. Sabia o auditor por sempre apreciar as belas artes. Pensou ele, quem é este senhor? Perguntou:

- Que belo quadro hein? - Lindíssimo. Um dos meus maiores tesouros,

empreguei nele tudo que ganhei em minha vida, mas sem o arrependimento, pois ele por sua apreciação me inspira a ser um homem melhor. Enfatiza o se-nhorzinho.

Page 91: Livro: Devaneios em Prosa

91

Com um adeus, um aperto de mão bem forte, despedem-se os senhores.

No relatório. Ordem cumprida. O parecer: “Nada consta de Anormal ou Inadequado na Declaração Au-

ditada”.

Page 92: Livro: Devaneios em Prosa
Page 93: Livro: Devaneios em Prosa

O ServoO Servo

Olhava sempre ao alto, sua tez resplandecia com os últimos raios solares daquela maravilhosa e límpi-da tarde.

Estava solitário. Os pássaros faziam o cortejo, como se aquele fosse um rei. O azul-celeste de seus olhos fitava o verde vivo das videiras, e o marrom seco do solo queimado, que ao sopro suave da brisa, soltava uma poeira fina, a qual cobria a vegetação ras-teira do caminho.

Caminhava o homem, sem descansar e olhar para trás. Seu olhar sério refletia sua compenetração e a contemplação de tudo que o cercava. Um sorri-so esboçava-se em seu rosto ao perceber os pássaros cantantes, que retornavam aos seus ninhos, felizes se abrigavam para passar a noite. A brisa fazia seus cabe-los ondulados esvoaçarem. O caminhar era calmo. Os passos eram sequenciais e constantes, quase não para-va. O olhar fixo ao cume do morro fazia-o ainda mais distante, como se chegasse ao céu, e lá permaneceria.

O caminho estava coberto por poeira, que ao longe quando se movia parecia possuir vida própria com helicoidais figuras autônomas criadas pelo vento, vegetação rasteira com pequenas flores rosa e brancas que ofereciam ao caminho uma rósea imagem de paz

Page 94: Livro: Devaneios em Prosa

94

e conforto; e algumas pedrinhas soltas pelo caminho que ora ou outra entrava em suas sandálias, que eram retiradas pacienciosamente como se elas o fizessem refletir. Seus pés estavam levemente empoeirados e cansados pelo longo caminho percorrido.

O homem olhou à sua frente e percebeu uma fonte de água que saía das pedras e jorrava cristalina formando um pequeno córrego e logo desaparecia ao meio das liquentas rochas. Ficou a admirar a limpidez da água e logo juntou as suas mãos, como uma con-cha, e bebeu-a agradecendo-a ao Pai por sua função de dar vida a todas as criaturas da terra. Molhou o ros-to e os cabelos e seguiu caminho.

No cume do morro morava, em uma imponente casa, uma família que optou em viver longe de tudo e de todos. Da família eram três pessoas pai, mãe e um filho. Semanalmente, ordenavam a um dos empregados bus-car na cidade mantimentos e o que precisassem. O em-pregado de confiança da família estava muito doente há mais de um mês e a família começava a sentir falta de al-gumas coisas para casa. O serviçal não recebeu nenhum medicamento para o tratamento de um mal súbito que o enfraquecera a ponto de não se pôr mais em pé. A fa-mília recolhera-se, ainda mais, e deixara o pobre empre-gado a sofrer num quarto escuro e fétido pelo bolor das paredes. O pobre suplicava por ajuda. Clamava ao céu

Page 95: Livro: Devaneios em Prosa

95

principalmente. Sua dor era muito mais pelo abandono do que pela doença em si. Via-se próximo da morte, mas agonizava esperançoso pela clemência dos seus senho-res aos quais sempre se doou pela troca de pão e lugar para as noites recostar sua cabeça.

O agonizante escuta passos se aproximarem do quarto. Os passos se aproximam cada vez mais. Uma paz tomou completamente o serviçal, o qual perce-beu através das frestas o sol resplandecente e os pás-saros a cantar à procura de ninhos nos beirais do ca-sarão para passar a noite. O homem esperou os passos desaparecerem. Lembrou-se do seu passado dedicado apaixonadamente à família, seus senhores. Alegrava--se pela certeza do dever cumprido: ordens sempre recebidas e executadas com a devoção dos santos. As mãos grossamente calejadas juntavam-se em um ato solene ao peito. Os lábios proferiram palavras sacras de clamor por piedade. A luz que lhe era próxima faz--se distante, até que lhe são toldados os sentidos.

Alguém bate a porta. O patrão a abre. Aparece--lhe um homem de vestes brancas numa alvura im-pressionista que se apresenta como seu servo.

A voz do senhor segue-se friamente:- Você começa amanhã. Alfred acaba de falecer.

Page 96: Livro: Devaneios em Prosa

Divulgação Editora UNICENTRO

Projeto Gráfi co

Editora UNICENTRODiagramação

Editoração

Formato 130mmX190mm

Mancha 98mmX156mm

Tipologia Belwe LT BT

Cluff HmkBold

Miolo Papel Sulfi te 75 g.

Capa Couche fosco 230 g.

Impressão

Gráfi ca MarinerAcabamento

Número de páginas 96