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Trecho: O Desertor

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Confira trecho de O Desertor. Lançamento de outubro da Arqueiro

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O Arqueiro

Geraldo Jordão Pereira (1938-2008) começou sua carreira aos 17 anos,

quando foi trabalhar com seu pai, o célebre editor José Olympio, publicando obras marcantes

como O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Minha vida, de Charles Chaplin.

Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma nova geração de

leitores e acabou criando um dos catálogos infantis mais premiados do Brasil. Em 1992,

fugindo de sua linha editorial, lançou Muitas vidas, muitos mestres, de Brian Weiss, livro

que deu origem à Editora Sextante.

Fã de histórias de suspense, Geraldo descobriu O Código Da Vinci antes mesmo de ele ser

lançado nos Estados Unidos. A aposta em ficção, que não era o foco da Sextante, foi certeira:

o título se transformou em um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos.

Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o próximo, Geraldo

desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram sua grande paixão.

Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vez mais acessíveis

e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é uma homenagem a esta figura

extraordinária, capaz de enxergar mais além, mirar nas coisas verdadeiramente importantes

e não perder o idealismo e a esperança diante dos desafios e contratempos da vida.

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Para Marilyn Ducksworth,

por muitos anos de amizade,

apoio e risadas.

E, como sempre, para minha mulher, Jamie,

e meus filhos, Nicholas e Lily.

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“Se é necessário fazer dano a algum homem,

o dano deve ser tão grave que não seja

preciso temer sua vingança.”

Maquiavel

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PARTE UM

Lances iniciais

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1vladiMirskaya Oblast, rússia

Pyotr Luzhkov estava prestes a ser morto e sentia-se grato por isso.Era final de outubro, mas o outono já se tornara uma lembrança. Ha-

via sido breve e feioso, como uma velha babushka tirando depressa um ves-tido puí do. E agora aquilo: céus de chumbo, frio congelante, neve soprada pelo vento. A cena de abertura do inverno interminável da Rússia.

Mesmo sem camisa e descalço, com as mãos atadas atrás das costas, Pyotr pouco percebia o frio. Na verdade, naquele momento, ele precisaria ser dura-mente pressionado até para lembrar seu nome. Achava que estava sendo levado por dois homens através de uma floresta de bétulas, mas não tinha certeza. Fazia sentido estarem em uma floresta. Era onde os russos gostavam de fazer seu tra-balho sujo. Kurapaty, Bykivnia, Katyn, Butovo... Sempre nas florestas. Luzhkov estava a poucos momentos de se envolver com uma grande tradição russa. Iam lhe conceder uma morte entre as árvores.

Quando se tratava de matar, havia outro costume russo: causar o máximo de dor. Pyotr Luzhkov havia sido forçado a escalar montanhas de dor. Tinham quebrado seus dedos das mãos. Tinham quebrado seus braços e costelas. Ti-nham quebrado seu nariz e seu maxilar. Tinha sido surrado até quando estava inconsciente. Bateram nele porque lhes disseram para assim o fazer. Bateram nele porque eram russos. Só paravam quando estavam bebendo vodca. Depois que a vodca acabava, batiam nele com mais força ainda.

Agora chegara ao trecho final de sua viagem, a longa caminhada até uma cova sem identificação. Os russos tinham uma expressão própria para isso: vysshaya mera, a mais elevada forma de punição. Era normalmente reservada para trai-dores, mas Pyotr Luzhkov não traíra ninguém. Fora enganado pela esposa de seu patrão, o qual acabara perdendo tudo. Alguém tinha que pagar. No final, todo mundo pagava.

Via seu chefe agora, parado sozinho em meio aos troncos finos das bétulas. Casaco de couro preto, cabelos grisalhos, uma cabeça enorme. Estava olhando para a pistola de alto calibre que tinha na mão. Luzhkov tinha que lhe dar cré-dito. Não havia muitos oligarcas com estômago para se incumbir pessoalmente de assassinatos. Mas também não havia muitos oligarcas como ele.

A cova já tinha sido aberta. O chefe de Luzhkov a estava examinando com

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cuidado, como para calcular se seria grande o suficiente para conter um corpo. Quando Pyotr foi forçado a se ajoelhar, sentiu o cheiro característico da colônia dele. Sândalo e tabaco. O cheiro do poder. O cheiro do demônio.

O demônio lhe deu mais um golpe na lateral do rosto. Luzhkov não sentiu. Então, o demônio encostou a arma na parte de trás da cabeça de Pyotr e dese-jou-lhe uma noite agradável. Luzhkov viu um lampejo rosado de seu próprio sangue. Depois, a escuridão. Finalmente estava morto. E era grato por isso.

2lOndres: JaneirO

O assassinato de Pyotr Luzhkov passou despercebido pela maioria das pes-soas. Ninguém chorou por ele; nenhuma mulher se vestiu de preto por

sua causa. Nenhum policial russo investigou sua morte e os jornais russos não se preocuparam em noticiá-la. Nem em Moscou. Nem em São Petersburgo. E certamente tampouco na cidade russa às vezes chamada de Londres. Caso alguma informação sobre o falecimento de Luzhkov tivesse chegado a Bristol Mews, à casa do coronel Grigori Bulganov, o desertor e dissidente russo, ele não teria ficado surpreso, embora talvez sentisse uma pontada de culpa. Se Grigori não tivesse trancado o coitado do Pyotr no cofre pessoal de Ivan Kharkov, o guarda-costas talvez ainda estivesse vivo.

Entre os chefões de Thames House e Vauxhall Cross, as sedes do MI5 e do MI6 situadas de frente para um rio, Bulganov sempre fora uma fonte de muito fascínio e de discussões consideráveis. As opiniões divergiam, mas em geral era isso mesmo o que acontecia quando os dois serviços de inteligência eram obrigados a assumir posições sobre o mesmo assunto. Ele era um presente dos deuses, elogiavam os que o apoiavam. Era uma caixa de surpresas, boas e más, na melhor das hipóteses, murmuravam seus detratores. Sabia-se que um dos expoentes do andar superior da Thames House o definia como o desertor de que Downing Street, a sede do governo britânico, precisava tanto quanto de um vazamento no telhado – como se Londres, que então abrigava mais de 250 mil cidadãos russos, tivesse espaço sobrando para mais um descontente que se especializara em criar problemas para o Kremlin. O homem do MI5 ficara co-nhecido por ter profetizado que um dia todos iriam se arrepender da decisão de

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conceder asilo e um passaporte britânico a Bulganov. Mas até ele ficou surpreso com a rapidez com que esse dia chegou.

Ex-coronel da divisão de contraespionagem do Serviço de Segurança Federal da Rússia, mais conhecido como FSB, Grigori Bulganov tinha dado as caras no final do verão anterior, o inesperado subproduto de uma operação multinacio-nal de serviços de informações contra um tal de Ivan Kharkov, oligarca russo e revendedor internacional de armas. Apenas um pequeno grupo de funcionários britânicos tomou conhecimento da verdadeira extensão do envolvimento de Grigori no caso. Menos pessoas ainda sabiam que, se não fosse ele, uma equipe inteira de agentes israelenses poderia ter morrido em solo russo. Como os ou-tros desertores da KGB vindos antes dele, Grigori desapareceu por um tempo em esconderijos e propriedades rurais isoladas. Uma equipe conjunta anglo--americana lhe fez perguntas dia e noite, primeiro sobre a estrutura da rede do tráfico de armas de Ivan, para a qual Grigori tinha vergonhosamente trabalhado como agente pago, em seguida sobre os métodos de espionagem de seu posto anterior. Os interrogadores britânicos o achavam encantador; os americanos, nem tanto. Eles insistiram em submetê-lo a um detector de mentiras. Ele foi aprovado com louvor.

Depois que os interrogadores se deram por satisfeitos e chegou a hora de decidir o que fazer com ele, os detetives da segurança interna fizeram avalia-ções altamente secretas e emitiram suas recomendações, também em segredo. No final, concluiu-se que Grigori, embora duramente criticado por seus ex--companheiros, não estava sujeito a nenhuma ameaça séria. Até mesmo o ou-trora temido Ivan Kharkov, que se achava na Rússia, lambendo as feridas, foi considerado incapaz de qualquer ato premeditado contra ele. O desertor fez três pedidos: queria manter seu nome, residir em Londres e não ter segurança ostensiva. Manter-se à vista, segundo ele, lhe daria maior proteção contra seus inimigos. O MI5 concordou de pronto com as exigências, sobretudo com a ter-ceira. Equipes de segurança requeriam dinheiro e os recursos humanos pode-riam ser mais bem-utilizados em outros lugares, ou seja, contra os extremistas jihadistas britânicos. Compraram-lhe uma linda casa voltada para um pátio in-terno em um ponto isolado de Maida Vale, providenciaram-lhe um estipêndio mensal generoso e fizeram para ele um depósito único em um banco da cidade, o que com certeza teria causado um escândalo caso o valor se tornasse público. Um advogado do MI5 negociou discretamente um acordo para um livro com um respeitado editor de Londres. O valor do adiantamento fez sobrancelhas se erguerem entre os altos funcionários de ambos os serviços de informações, a maioria dos quais trabalhando em obras próprias – em segredo, claro.

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Durante algum tempo, parecia que Grigori viria a ser uma extraordinária ra-ridade no mundo do serviço secreto: um caso sem complicações. Fluente em in-glês, levava a vida em Londres como se fosse um prisioneiro libertado tentando recuperar o tempo perdido. Frequentava o teatro e visitava museus. Recitações de poesia, balé, música de câmara: ele ia a tudo isso. Dedicou-se a trabalhar no livro e, uma vez por semana, almoçava com sua editora, que por acaso era uma beldade de 32 anos com pele de porcelana. A única coisa que lhe faltava era o xadrez. Seu contato no MI5 sugeriu que ele se associasse ao Clube de Xadrez do Centro de Londres, uma instituição venerável fundada por um grupo de fun-cionários públicos durante a Primeira Guerra Mundial. Seu formulário de ins-crição foi uma obra-prima de ambiguidade. Não fornecia endereço, telefone de casa, número de celular nem e-mail. Sua ocupação foi definida como “serviços de tradução”; seu empregador, como “o próprio”. Solicitado a listar passatempos, escreveu “xadrez”.

Porém, nenhum caso de grande destaque é inteiramente livre de controvér-sias e os veteranos preveniram que nunca haviam visto um desertor, muito me-nos um desertor russo, que não demonstrasse ter um parafuso solto de vez em quando. O de Grigori se soltou no dia em que o primeiro-ministro britânico anunciou que um grande plano terrorista fora desmantelado. Aparentemente, a Al-Qaeda planejara derrubar ao mesmo tempo vários jatos comerciais usando mísseis antiaéreos de fabricação russa – mísseis que tinham sido adquiridos do antigo patrono de Grigori, Ivan Kharkov. Vinte e quatro horas depois, Grigori estava sentado diante das câmeras da BBC alegando que havia desempenhado um papel importante no caso. Nos dias e semanas que se seguiram, ele passaria a ser presença obrigatória nos programas televisivos, na Grã-Bretanha e em ou-tros lugares. Tendo consolidado seu status de celebridade, começou a frequentar círculos de russos emigrados e saracotear na companhia de dissidentes russos de todas as tendências. Seduzido pela súbita atenção, usou sua fama recém--descoberta como uma plataforma para fazer acusações exaltadas contra seu antigo serviço secreto e o presidente russo, que ele definia como um Hitler em formação. Após o Kremlin reagir com rumores incômodos sobre russos tra-mando um golpe de Estado em solo britânico, o conselheiro de Grigori sugeriu--lhe mais discrição. O mesmo fez sua editora, que queria guardar alguma coisa para o livro.

A contragosto, o desertor baixou o tom, mas só um pouco. Em vez de ar-rumar briga com o Kremlin, concentrou sua considerável energia no seu livro seguinte e no xadrez. Naquele inverno, inscreveu-se no torneio anual do clube e movimentou-se com facilidade em sua categoria – como um tanque russo pelas

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ruas de Praga, resmungou uma de suas vítimas. Nas semifinais, derrotou o cam-peão sem suar a camisa. Sua vitória na final parecia inevitável.

Na tarde do campeonato, almoçou no Soho com um repórter da revista Va-nity Fair. Ao voltar a Maida Vale, comprou uma planta para sua casa no Horto Clifton e buscou um pacote de camisas na lavanderia da Elgin Avenue. Depois de um breve cochilo, um ritual de antes de jogo, tomou banho e vestiu-se para a batalha, saindo de seu chalé alguns minutos antes das seis.

Tudo isso explica por que Grigori Bulganov, desertor e dissidente, estava an-dando pela Harrow Road, em Londres, às 18h12, na segunda terça-feira de ja-neiro. Por razões que serão esclarecidas mais tarde, ele caminhava num ritmo mais rápido do que o normal. Quanto ao xadrez, naquele momento era a última de suas preocupações.

A partida estava marcada para seis e meia no local habitual do clube, Lower Ves-try House, a casa do conselho paroquial da igreja de St. George em Bloomsbury. Simon Finch, adversário de Grigori, chegou quinze minutos antes. Sacudindo a água da chuva do casaco impermeável, lançou um olhar de soslaio para três avisos pregados no quadro do vestíbulo. Um proibia o fumo, outro solicitava que não se bloqueasse a passagem pelo corredor em caso de incêndio, e um terceiro, afixado pelo próprio Finch, pedia a todos os que usavam o lugar para reciclar o lixo. Nas palavras de George Mercer, diretor e seis vezes campeão do clube, Finch era “um representante empedernido de Camden Town”, com todas as devidas convicções políticas de sua tribo. Libertem a Palestina. Libertem o Tibete. Parem o genocídio em Darfur. Pelo fim da guerra no Iraque. Recicle ou morra. Havia apenas uma causa na qual ele parecia não acreditar, que era o trabalho. Definia a si mesmo como “ativista social e jornalista freelance”, o que Clive Atherton, tesoureiro reacionário do clube, traduzia corretamente como “indolente e parasita”. Porém, até Clive era o primeiro a admitir que Finch pos-suía o mais belo dos jogos: fluente, artístico, instintivo, e impiedoso como uma serpente. “O alto investimento na educação de Simon não foi um desperdício completo”, Clive gostava de dizer. “Só foi mal aplicado.”

Seu sobrenome era um contrassenso, pois significava pintassilgo, um pássaro pequeno, e ele era alto e vagaroso, com cabelo castanho quase até os ombros e óculos de armação de arame, que lhe ampliavam o olhar resoluto de um revolu-cionário. Naquele momento, Finch acrescentou ao quadro de avisos um quarto papel – uma carta elogiosa da igreja de Regent Hall agradecendo ao clube por sediar o primeiro torneio anual de xadrez do Exército da Salvação em prol dos

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desabrigados – e seguiu pelo corredor estreito para o vestiário improvisado, onde pendurou o casaco no cabide dobrável. Na quitinete, colocou 20 pence num cofre em forma de porquinho gigante e tirou uma xícara de café morno de um tubo metálico prateado marcado com a etiqueta clube de xadrez. Jovem Tom Blakemore – um apelido igualmente equivocado, pois o homem tinha 85 anos, no mínimo – esbarrou nele na saída. Finch pareceu não notar. Entrevis-tado mais tarde por um homem do MI5, Jovem Tom afirmou que não se abor-recera com aquilo. Afinal, nem um único membro do clube dera a Finch sequer uma chance remota de ganhar a taça. “Ele parecia que estava sendo levado para a forca”, declarou Jovem Tom. “A única coisa que faltava era o capuz preto.”

Finch entrou no depósito e, numa fileira de prateleiras empenadas, apanhou um tabuleiro, uma caixa de peças, um relógio analógico de torneio e uma folha de pontuação. Com o café numa das mãos e o material do jogo cuidadosamente equilibrado na outra, ele entrou no cômodo principal da sacristia. Tinha pare-des cor de mostarda e quatro janelas sujas: três espiando as calçadas da Little Russell Street e a quarta estreitando os olhos para o pátio. Numa parede, abaixo de um pequeno crucifixo, estava o gráfico com a chave do torneio. Restava uma partida para ser jogada: s. finch vs g. bulganov.

Finch virou-se e examinou o aposento. Seis mesas de cavalete tinham sido montadas para o jogo da noite, uma reservada para o torneio, o restante para os habituais “amistosos”, no jargão do clube. Ateu convicto, Finch escolheu o local mais distante do crucifixo e preparou-se metodicamente para a compe-tição. Verificou a ponta do lápis e escreveu a data e o número do tabuleiro na folha de pontuação. Fechou os olhos e visualizou a partida como esperava que fosse se desenrolar. Então, quinze minutos depois de se sentar, olhou para o relógio: 18h42. Grigori estava atrasado. Estranho, pensou Finch: o russo nunca se atrasava.

Finch começou a mover as peças mentalmente – viu um rei deitado de lado, com resignação, e Grigori baixar a cabeça de vergonha – e acompanhou a mar-cha inexorável do relógio.

18h45... 18h51... 18h58...Onde você está, Grigori? Onde você está, seu cretino?

Em última análise, o papel de Finch seria menor e, na opinião de todos os en-volvidos, felizmente breve. Houve gente que gostaria de ter examinado mais de perto algumas de suas mais lamentáveis associações políticas. Outros se recusa-ram a tocá-lo, tendo avaliado corretamente que Finch era um homem a quem

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nada agradaria mais do que se meter em uma briguinha pública com os serviços de segurança. No final, porém, decidiu-se que seu único crime havia sido contra o espírito esportivo. Porque, às 19h05 – a hora registrada com sua própria letra na folha de pontuação oficial –, ele exerceu o seu direito de reivindicar a vitória por W.O., devido à ausência do oponente, tornando-se o primeiro jogador na história do clube a ganhar o campeonato sem mover uma única peça. Foi uma honra duvidosa, que os jogadores de xadrez do serviço secreto britânico jamais perdoariam por completo.

Ari Shamron, o lendário chefe de espionagem israelense, diria mais tarde que nunca antes tanto sangue correra depois de um começo tão modesto. Mas até ele, responsável por floreios retóricos, sabia que o comentário estava longe de ser inteiramente correto. Pois os acontecimentos que se seguiram tiveram suas verdadeiras origens não no desaparecimento de Grigori, mas em uma rixa criada pelo próprio Shamron. Grigori, ele confidenciaria a seus assistentes mais devotados, fora apenas um complacente tiro de aviso. Uma fogueira acesa em uma torre distante emitindo um sinal. E a isca usada para atrair Gabriel e fazê--lo se expor.

Já na noite seguinte, a folha de pontuação estava no MI5, com o livro de re-gistro do torneio inteiro. Os americanos foram informados do desaparecimento de Grigori apenas 24 horas mais tarde, porém, por razões nunca inteiramente explicadas, o serviço secreto britânico esperou quatro longos dias antes de se decidir a informar os israelenses. Shamron, que lutara na guerra de indepen-dência de Israel e detestava os britânicos desde então, considerou o atraso previ-sível. Em poucos minutos, estava ao telefone com Uzi Navot, dando-lhe ordens. Navot obedeceu com relutância. Era o que ele sabia fazer melhor.

3úMbria, itália

Guido Reni havia sido um homem peculiar, mesmo para um artista. Era propenso a crises de ansiedade, cheio de culpa por sua homossexualidade

reprimida, e tão inseguro sobre seus talentos que trabalhava apenas debaixo da proteção de um manto. Nutria uma devoção particularmente intensa à Virgem Maria, mas detestava tanto as mulheres que não lhes permitia sequer lavar sua

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roupa. Acreditava ser perseguido por bruxas. Seu rosto se ruborizava ao mero som de uma obscenidade.

Se tivesse seguido o conselho do pai, ele teria ido tocar cravo. Em vez disso, aos 9 anos, entrou para o estúdio do mestre flamengo Denys Calvaert e iniciou a carreira de pintor. Ao completar o aprendizado, deixou a casa em Bolonha em 1601 e viajou para Roma, onde rapidamente foi encarregado pelo sobrinho do papa de produzir um retábulo, A crucifixão de São Pedro, para a igreja de San Paolo alle Tre Fontane. A pedido do influente patrono, Reni inspirou-se em uma obra que se encontrava na igreja de Santa Maria del Popolo. Seu criador, um pintor polêmico e extravagante conhecido como Caravaggio, não ficou lison-jeado com a imitação de Reni e jurou matá-lo caso aquilo acontecesse de novo.

Antes de iniciar o trabalho no painel de Reni, o restaurador tinha ido a Roma para ver o Caravaggio outra vez. Reni obviamente copiara seu concorrente – o que mais se notava era o uso da técnica de claro-escuro para infundir vida às figuras e destacá-las do fundo de forma dramática –, mas havia também muitas diferenças entre as pinturas. Caravaggio colocara a cruz invertida na diagonal atravessando a cena, Reni a posicionara na vertical e no centro. O primeiro mostrava o rosto agoniado de Pedro, o segundo o ocultara com habilidade. O que mais impressionou o restaurador foi a representação das mãos de Pedro por Reni. No retábulo de Caravaggio, elas já estavam presas à cruz. Na inter-pretação do imitador, porém, as mãos estavam soltas, a direita estendida em direção ao ápice. Estaria Pedro estendendo a mão para o prego a ser cravado em seus pés? Ou suplicando a Deus para ser poupado de morte tão terrível?

O restaurador vinha trabalhando na pintura havia mais de um mês. Depois de remover o verniz amarelado, dedicava-se à parte final e mais importante do procedimento: o retoque das seções danificadas pelo tempo e pelo desgaste. O retábulo sofrera perdas substanciais ao longo de quatro séculos, desde que Reni o pintara; de fato, as fotos da etapa intermediária da restauração tinham lançado os proprietários da obra numa fase lamentável de histeria e recriminações. Em circunstâncias normais, o restaurador poderia lhes ter poupado o choque de ver a pintura reduzida ao seu verdadeiro estado, mas as circunstâncias eram tudo menos normais. O Reni era agora propriedade do Vaticano. Como o restaura-dor era considerado um dos melhores do mundo – além de amigo pessoal do papa e de seu poderoso secretário particular –, tinha autorização para trabalhar para a Santa Sé como freelance e escolher suas próprias tarefas. Obtivera ainda permissão para não fazer as restaurações no avançado laboratório de conserva-ção do Vaticano, mas numa propriedade isolada no sul da Úmbria.

Conhecida como Villa dei Fiori, estava a uns 80 quilômetros ao norte de Roma,

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em um planalto entre os rios Tibre e Nera. Havia ali uma grande criação de gado e um centro equestre de onde saíam alguns dos melhores cavalos de salto de toda a Itália. Havia porcos que ninguém comia, cabras mantidas para fins de entrete-nimento e, no verão, campos cheios de girassóis. A villa se situava no fim de um longo caminho de cascalho margeado por altos pinheiros-mansos. No século XI, fora um mosteiro. Existiam ainda uma pequena capela e as ruínas de um forno onde os monges assavam o seu pão de cada dia. Na parte inferior da casa, fica-vam uma grande piscina e um jardim com treliças de madeira onde o alecrim e a lavanda cresciam ao longo das paredes de pedra etrusca. Por toda parte se viam cachorros: um quarteto de cães de caça que perambulavam pelos pastos, devo-rando raposas e coelhos, e um par de terriers neuróticos que patrulhavam a área dos estábulos com o fervor de guerreiros dedicados a causas sagradas.

Embora a construção fosse de propriedade de um discreto nobre italiano chamado conde Gasparri, seu dia a dia era supervisionado por uma equipe de quatro pessoas: Margherita, a jovem governanta; Anna, a talentosa cozinheira; Isabella, a meio-sueca etérea que cuidava dos cavalos; e Carlos, um vaqueiro argentino que cuidava do gado, das colheitas e do pequeno vinhedo. O convívio do restaurador e dos funcionários era algo próximo de uma paz fria. Falaram--lhes que ele era um italiano chamado Alessio Vianelli, filho de um diplomata ita liano que havia morado no exterior durante grande parte da vida. Mas nada disso era verdade: seu nome era Gabriel Allon e ele viera do vale de Jezreel, em Israel.

Era um homem de altura abaixo da média, talvez de 1,75 metro, com o físico enxuto de um ciclista. A testa era alta, com o queixo estreito, e o nariz com-prido e ossudo parecia ter sido esculpido em madeira. Os olhos eram de um tom impressionante de verde-esmeralda; o cabelo curto e escuro era levemente grisalho nas têmporas. Sendo ambidestro, pintava bem com ambas as mãos e, no momento, estava usando a esquerda. Ao olhar para seu relógio de pulso, viu que era quase meia-noite. Ponderou se continuaria ou não a trabalhar. Mais uma hora, calculou, e o fundo estaria completo. Seria melhor acabar logo. O di-retor da Pinacoteca do Vaticano fazia questão que o Reni voltasse a ser exposto na Semana Santa, para a grande afluência anual da primavera de peregrinos e turistas. Gabriel havia se comprometido a fazer todo o possível para cumprir o prazo, mas não pudera garantir com firmeza que o conseguiria. Ele era um per-feccionista que via cada tarefa como uma defesa de sua reputação. Conhecido pela leveza do toque, acreditava que um restaurador deveria ser um espírito que passa, que deveria ir e vir sem deixar vestígios, apenas uma pintura devolvida à glória original, o dano dos séculos anulado.

O estúdio ocupava o que devia ter sido antes a sala de estar formal da casa.

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Esvaziada de seu mobiliário, agora não continha nada mais além do material de trabalho, um par de lâmpadas halógenas poderosas e um aparelho de som portátil. La Bohème fluía dos alto-falantes, o volume reduzido ao nível de um sussurro. Era um homem de muitos inimigos, mas não imaginários, como os de Guido Reni. Por isso é que ouvia música baixa – e porque trazia sempre consigo uma pistola Beretta de 9 milímetros carregada. O cabo estava manchado de tinta: um pouco de Ticiano, um pouco de Bellini, uma gota de Rafael e de Veronese.

Apesar da hora, trabalhou com energia e concentração e conseguiu concluir a tarefa quando as notas finais da ópera extinguiram-se no silêncio. Limpou os pincéis e a paleta, depois diminuiu a intensidade das luzes. À meia-luz, o fundo recuou para a escuridão e as quatro figuras brilharam suavemente. Em pé diante do quadro, uma das mãos comprimindo o queixo, a cabeça inclinada para um lado, ele planejou a próxima etapa. De manhã, iria começar a trabalhar no ho-mem do alto, uma figura com um barrete vermelho segurando um cravo numa das mãos e um malho na outra. Sentiu certa afinidade sombria com o carrasco. Em outras vidas, sob outros nomes, ele tinha realizado um serviço semelhante para seus patrões em Tel Aviv.

Apagou as luzes e subiu os degraus de pedra que davam para seu quarto. A cama estava vazia; fazia três dias que Chiara, sua esposa, fora a Veneza visitar os pais. O casal já tivera de suportar longas separações por causa do trabalho, mas aquela era a primeira voluntária. Um solitário por natureza e obsessivo em seus hábitos de trabalho, Gabriel achou que a breve ausência dela seria fácil de suportar. Mas a verdade é que se sentira infeliz sem ela. Esse sentimento dava--lhe um bem-estar. Era normal um homem bem casado sentir falta da mulher. Para Gabriel Allon – filho de sobreviventes do Holocausto, artista e restaurador talentoso, assassino e espião –, a vida fora tudo menos normal.

Sentou-se na cama no lado de Chiara e apanhou a pilha de leituras na me-sinha de cabeceira dela: revistas de moda e de decoração de interiores, edições italianas de romances policiais populares americanos, um livro sobre criação de filhos... Curioso, pensou, pois eles não tinham filhos e, pelo que soubesse, não estavam esperando um. Chiara começara a abordar o tema com cuidado. Gabriel temia que o assunto logo se tornasse um motivo de discórdia no casa-mento. A decisão de se casar de novo já fora demasiado torturante. A ideia de ter outro filho, mesmo com uma mulher que amava tanto, era incompreensí-vel no momento. Seu filho único tinha sido morto por uma bomba terrorista em Viena e estava enterrado no monte das Oliveiras, em Jerusalém. Leah, sua primeira esposa, sobrevivera à explosão e vivia num hospital psiquiátrico no alto do monte Herzl, presa na própria memória e num corpo devastado pelo

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fogo. Fora por causa do trabalho de Gabriel que seus entes queridos haviam tido aquele destino. Ele jurou que nunca mais iria trazer ao mundo outra criança que pudesse ser alvo dos inimigos.

Tirou as sandálias e atravessou o chão de pedra na direção da escrivaninha. Um ícone em forma de envelope piscava na tela do laptop. A mensagem che-gara muitas horas antes. Gabriel esforçara-se para não pensar a respeito porque sabia que só poderia ter vindo de um lugar. Ignorá-la para sempre, no entanto, não era uma opção. Melhor dar logo um fim àquilo. Relutantemente, clicou no ícone e uma linha de rabiscos apareceu na tela. Ao digitar uma senha na janela adequada, a frase cifrada se desfez, deixando aparecer algumas palavras:

malachi solicita encontro. prioridade resh.

Gabriel franziu a testa. Malachi era o código para o chefe de Operações Espe-ciais. A Prioridade Resh era reservada para situações urgentes, geralmente en-volvendo questões de vida e morte. Ele hesitou, depois digitou uma mensagem. A resposta levou apenas noventa segundos para chegar:

malachi está ansioso para encontrar você.

Gabriel desligou o computador e deitou-se na cama vazia. Malachi está an-sioso para encontrar você... Duvidava que isso fosse verdade, pois ele e Malachi não estavam se falando. Ao fechar os olhos, viu a mão estendida para o cravo de ferro. Bateu o pincel em sua paleta e pintou até cair no sono. E então pintou mais ainda.

4aMelia, úMbria

Percorrer a estrada da Villa dei Fiori até a cidade montanhosa de Amelia é ver a Itália em toda a sua antiga glória e, pensava Gabriel com tristeza,

todas as suas atribulações modernas. Havia morado na Itália por grande parte de sua vida adulta e presenciara a marcha lenta, mas sistemática, do país em direção ao esquecimento. Os vestígios da decadência estavam em toda parte:

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instituições do governo tomadas por corrupção e incompetência; uma econo-mia fraca demais para oferecer trabalho suficiente aos jovens; litorais outrora maravilhosos contaminados por lixo e esgoto. De alguma forma, aqueles fatos escapavam à atenção dos escritores de viagens, que a cada ano produziam uma enxurrada de textos exaltando os méritos e a beleza da vida na Itália. Já os italianos tinham reagido à deterioração casando-se tarde – isso quando se casavam – e tendo menos filhos. A taxa de natalidade da Itália era uma das mais baixas da Europa Ocidental e existiam mais italianos com mais de 60 do que com menos de 20 anos, um marco demográfico na história humana. A Itália já era um país de pessoas idosas e estava envelhecendo ainda mais. Se a tendência continuasse inalterável, haveria uma diminuição da população sem precedentes desde a Grande Peste.

Amelia, a mais antiga das cidades da Úmbria, sofrera o último surto de peste negra e, possivelmente, todos os anteriores. Fundada por tribos úmbrias muitos anos antes de Cristo, havia sido conquistada por etruscos, romanos, godos e lombardos antes de finalmente ficar sob o domínio dos papas. Seus muros de cor parda tinham mais de 3 metros de espessura e, em muitas de suas ruas anti-gas, só se podia circular a pé. Poucos amelianos ainda buscavam segurança atrás das muralhas da cidade. A maioria residia na cidade nova, um labirinto sem graça de blocos de apartamentos monótonos e shoppings que se espalhavam pela descida da colina ao sul da cidade.

A rua principal, Via Rimembranze, era o lugar onde a maioria dos amelianos passava boa parte do tempo livre. No final da tarde, eles passeavam pelas cal-çadas e reuniam-se nas esquinas, trocando mexericos e observando o tráfego que descia para o vale em direção a Orvieto. O inquilino misterioso da Villa dei Fiori estava entre os assuntos favoritos das conversas. Um forasteiro que conduzia seus negócios educadamente mas com um ar de reserva e discrição, ele era alvo de considerável desconfiança e de muita inveja. Os rumores sobre a sua presença na villa eram atiçados pelo fato de os empregados se recusarem a discutir a natureza do trabalho do homem. Ele trabalha com artes, respon-diam eles de forma evasiva. Ele prefere ficar sozinho. Algumas mulheres idosas acreditavam que se tratava de um espírito maligno que precisava ser expulso de Amelia antes que fosse tarde demais. Umas mais jovens estavam secretamente apaixonadas pelo estranho de olhos cor de esmeralda e flertavam com ele sem a mínima sutileza nas raras ocasiões em que o homem se aventurava pela cidade.

Entre suas mais ardorosas admiradoras, estava a moça que tomava conta do reluzente balcão de vidro da Pasticceria Massimo. Ela usava uns óculos de ga-tinho de bibliotecária e ostentava um sorriso permanente de leve repreensão.

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Gabriel pediu um cappuccino e um prato de doces variados e se encaminhou para uma mesa no fundo da sala, que já estava ocupada por um homem com cabelo louro-avermelhado e os ombros robustos de um lutador. Fingia ler um jornal local – fingia porque, Gabriel sabia bem, italiano não era um dos idiomas que ele falava.

– Alguma coisa interessante, Uzi? – perguntou Gabriel em alemão.Uzi Navot encarou Gabriel com ar hostil por alguns segundos antes de voltar

a examinar o jornal.– Se não me engano, parece haver algum tipo de crise política em Roma –

respondeu ele na mesma língua.Gabriel sentou-se na cadeira vazia.– No momento, o primeiro-ministro está envolvido num escândalo finan-

ceiro meio confuso.– Outro?– Algo a ver com propinas em vários grandes projetos de construção no norte

do país. Como seria de esperar, a oposição está exigindo uma renúncia. E ele jura permanecer no cargo e lutar.

– Talvez fosse melhor se a Igreja ainda mandasse nisto aqui.– Você está sugerindo uma reconstituição dos Estados Pontifícios?– Melhor o papa do que um primeiro-ministro playboy com graxa de sapato

no cabelo. Ele elevou a corrupção a uma forma de arte.– Nosso último primeiro-ministro também tinha graves fraquezas quanto à

ética.– Isso é verdade. Mas, felizmente, não é ele quem está protegendo o país de

seus inimigos. Esse trabalho ainda é feito no King Saul Boulevard.O King Saul Boulevard era o endereço do serviço de inteligência israelense

no exterior. O órgão recebera um nome longo e propositalmente enganoso que tinha muito pouco a ver com a verdadeira natureza de suas atividades. Os que trabalhavam lá referiam-se a ele apenas como “o Escritório”.

A moça colocou o cappuccino na frente de Gabriel e um prato de doces no centro da mesa. Navot fez uma careta.

– O que houve, Uzi? Não me diga que Bella pôs você de dieta outra vez?– Por que acha que eu cheguei a sair da dieta?– Sua cintura em expansão.– Nem todos são abençoados com um físico como o seu, nem com seu meta-

bolismo acelerado, Gabriel. Meus antepassados eram judeus austríacos gordos.– Por que lutar contra a natureza? Coma um, Uzi, pelo menos para não cha-

mar atenção.

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O escolhido por Navot, um doce em formato de trombeta com recheio de creme, desapareceu em duas mordidas. Ele hesitou, então escolheu um rechea do com pasta de amêndoa doce, que desapareceu no espaço de tempo que Gabriel levou para despejar o conteúdo de um pacotinho de açúcar em seu café.

– Não tive tempo de comer no avião – explicou Navot, encabulado. – Peça um café para mim.

Gabriel pediu outro cappuccino, depois olhou para Navot. Ele estava com os olhos pregados nos doces novamente.

– Vá em frente, Uzi. Bella nunca vai saber.– Isso é o que você pensa; Bella sabe tudo.Bella tinha trabalhado como analista no escritório do serviço secreto na Síria

antes de assumir uma cátedra em História do Levante na Universidade Ben--Gurion. Navot, um agente secreto veterano e treinado na arte da manipulação, era incapaz de enganá-la.

– O boato é verdadeiro? – perguntou Gabriel.– Que boato?– Sobre você e Bella terem se casado. Sobre um casamento discreto à beira-

-mar em Cesareia só com um grupo pequeno de amigos próximos e de familia-res. E o Velho, é claro. O chefe de Operações Especiais não poderia se casar sem a bênção de Shamron.

A Divisão de Operações Especiais era o lado negro de um serviço sombrio: realizava os trabalhos que ninguém mais queria levar adiante – ou não se atrevia a fazer isso. Seus agentes eram carrascos e sequestradores; malandros e chanta-gistas; homens de grande intelecto e engenhosidade com uma faceta criminosa maior do que a dos próprios criminosos; poliglotas e camaleões que estavam à vontade tanto nos melhores hotéis e salões da Europa quanto nos piores becos de Beirute e Bagdá. Navot nunca conseguira superar o fato de ter recebido o comando da unidade pelo fato de Gabriel tê-la recusado. Ele era a competên-cia em oposição ao brilhantismo de Gabriel, a cautela em oposição à eventual imprudência de Gabriel. Em qualquer outro serviço secreto, em qualquer outro país, Navot teria sido uma estrela. Mas o Escritório sempre valorizara agentes como Gabriel, homens de criatividade sem as peias da ortodoxia. Navot era o primeiro a admitir que ele era um mero ajudante de ordens, e passara a carreira inteira labutando à sombra de Gabriel.

– Bella queria um mínimo de pessoal do Escritório. – O tom de voz de Navot não pareceu muito convincente. – Ela não queria que a recepção parecesse um encontro de espiões.

– Por isso não fui convidado?

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Navot dedicou vários segundos à tarefa de juntar migalhas para formar um morrinho minúsculo. Gabriel registrou mentalmente o gesto; os behavioristas do Escritório referiam-se a essas táticas retardatórias óbvias como atividade de deslocamento.

– Vá em frente, Uzi. Você não vai ferir meus sentimentos.Navot empurrou as migalhas para o chão com as costas da mão e olhou para

Gabriel por um momento em silêncio.– Você não foi convidado para o meu casamento porque eu não queria você

no meu casamento. Não depois do golpe que você deu em Moscou.A moça colocou o café em frente a Navot e, percebendo a tensão, recolheu-se

atrás da sua barricada de vidro. Gabriel espiou para fora da janela, para três ho-mens idosos que vinham devagar pela calçada, fortemente agasalhados contra a friagem cortante. Seus pensamentos, porém, voltaram para uma noite chuvosa de agosto em Moscou. Estava parado na pracinha malcuidada em frente ao alentado bloco de apartamentos da era stalinista conhecido como Casa da Margem. Navot apertava seu braço com toda a força e lhe falava baixinho no ouvido que a operação de roubo dos arquivos particulares de armas do negociante russo Ivan Kharkov havia fracassado. Que Ari Shamron, mentor e chefe de ambos, tinha mandado que batessem em retirada para o Aeroporto de Sheremetyevo e embarcassem para Tel Aviv num avião que os esperava. Que Gabriel não tinha escolha a não ser deixar para trás sua agente, a mulher de Ivan, que enfrentaria a morte certa.

– Eu precisava ficar, Uzi. Era a única maneira de Elena voltar viva.– Você desobedeceu uma ordem expressa de Shamron e minha, seu superior

direto, ainda que nominal. E colocou a vida de toda a equipe em perigo, in-cluindo a de sua mulher. Como acha que fez o resto da divisão me ver?

– Como um chefe sensato que manteve a cabeça enquanto uma operação estava indo para o brejo.

– Não, Gabriel. Você me fez parecer um covarde disposto a deixar um agente morrer em vez de arriscar o próprio pescoço e a carreira. – Navot colocou três pacotes de açúcar no café e o mexeu com um único gesto irritado da colher de prata minúscula. – E sabe de uma coisa? Eles teriam razão se dissessem isso. Menos a parte de eu ser um covarde. Não sou covarde.

– Ninguém jamais o acusaria de fugir de uma briga, Uzi.– Mas preciso admitir que tenho um instinto de sobrevivência bem aguçado.

É preciso ter, neste tipo de trabalho, não só em campo como também no King Saul Boulevard. Nem todos somos abençoados com os seus talentos. Existe gente que precisa de um emprego. Existe gente que fica de olho numa promoção.

Navot bateu com a colher na borda da xícara e depositou-a no pires.

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– Me vi no meio de uma verdadeira tempestade ao voltar para Tel Aviv na-quela noite. Eles nos apanharam no aeroporto e nos levaram direto para o King Saul Boulevard. Quando chegamos lá, você estava desaparecido havia horas. Telefonavam do gabinete do primeiro-ministro a cada minuto para ter notícias e Shamron parecia prestes a assassinar alguém. Ainda bem que ele estava em Londres; caso contrário teria me matado com as próprias mãos. O pressuposto era que você estava morto. E fora eu quem deixara que isso acontecesse. Fica-mos lá durante horas a fio esperando um contato. Foi uma noite ruim, Gabriel. Nunca mais quero passar outra como aquela.

– Nem eu, Uzi.– Não duvido. – Navot fitou a cicatriz junto do olho direito de Gabriel. – Ao

amanhecer, nós todos já tínhamos desistido de vê-lo vivo. Então, um funcioná-rio do setor de comunicações entrou correndo na Sala de Operações e disse que você tinha acabado de ligar pela linha especial. E da Ucrânia, veja só. Quando ouvimos a sua voz pela primeira vez, foi um pandemônio. Não só você conse-guira sair vivo da Rússia com os segredos mais obscuros de Ivan Kharkov como ainda trazia consigo um carro cheio de desertores, incluindo o coronel Grigori Bulganov, o oficial com a mais alta patente do FSB a mudar de lado em toda a história. Nada mal para uma noite de trabalho. Moscou está entre os seus me-lhores momentos. Mas, para mim, será uma mancha permanente numa ficha de trabalho até então limpa. E você é o responsável, Gabriel. Por isso é que não foi convidado para o meu casamento.

– Me desculpe, Uzi.– Desculpar você pelo quê?– Por colocar você numa situação difícil. – Mas não por se recusar a obedecer a uma ordem? Gabriel ficou em silêncio. Navot balançou a cabeça devagar. – Você é um cretino arrogante, Gabriel. Eu deveria ter quebrado seu braço em

Moscou e o arrastado para o carro.– O que você quer que eu diga, Uzi?– Quero que diga que isso nunca mais vai acontecer.– E se acontecer?– Primeiro, vou quebrar seu braço. Depois, vou me demitir do cargo de chefe

de Operações Especiais e não haverá outra opção a não ser nomear você. E eu sei o quanto você quer isso.

Gabriel levantou a mão direita.– Nunca mais, Uzi. No campo ou em qualquer outro lugar.– Desenvolva.

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– Sinto muito pelo que aconteceu entre nós em Moscou. E juro que nunca mais vou desobedecer outra ordem direta sua.

Navot pareceu instantaneamente apaziguado. O confronto pessoal nunca fora o seu forte.

– Então é isso, Uzi? Você veio até a Úmbria porque queria um pedido de desculpas?

– E uma promessa, Gabriel. Não se esqueça da promessa. – Não esqueci.– Ótimo. – Navot apoiou os cotovelos sobre a mesa e se inclinou para a frente.

– Porque eu quero que me escute com muita atenção. Nós vamos voltar para sua villa de flores e você vai arrumar as malas. Depois vamos para Roma passar a noite na embaixada. Amanhã de manhã, quando o voo das dez horas decolar do Aeroporto Fiumicino para Tel Aviv, vamos estar nele, na segunda fila da pri-meira classe, lado a lado.

– E por que vamos fazer isso?– Porque o coronel Grigori Bulganov se foi.– Como assim, se foi?– Estou lhe dizendo que ele se foi, Gabriel. Já não está entre nós. Desapareceu.

Sumiu.

5aMelia, úMbria

– Há quanto tempo ele sumiu?Navot hesitou antes de responder:

– Faz mais ou menos uma semana.– Seja específico, Uzi.– O coronel Grigori Bulganov foi visto pela última vez entrando no banco de

trás de um sedã Mercedes na Harrow Road às 18h12 da terça-feira.Andavam em meio à luz do crepúsculo, ao longo de uma rua estreita no cen-

tro antigo de Amelia. Alguns passos atrás, vinham dois guarda-costas de vigilan-tes olhos castanhos. Era um sinal preocupante. Navot normalmente viajava com apenas uma bat leveyha, uma oficial de escolta, para proteção. O fato de ter tra-zido matadores treinados indicava que levava a sério a ameaça à vida de Gabriel.

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– Quando foi que os ingleses decidiram nos contar? – Eles fizeram uma ligação discreta para o escritório de Londres na tarde de

sábado, quatro dias após o ocorrido. Por ser o sabá, o oficial de serviço era um garoto que não entendeu muito bem a importância do que foi dito. Ele enviou a mensagem para o King Saul Boulevard como se fosse de prioridade baixa. Felizmente, o oficial de serviço no Escritório Europeu compreendeu do que se tratava e, de imediato, fez o favor de ligar para Shamron.

Gabriel balançou a cabeça. Fazia anos que Shamron havia realizado sua última operação como chefe, mas o escritório ainda era muito o seu feudo particular. Es-tava cheio de policiais como Gabriel e Navot, homens que tinham sido recrutados e preparados por Shamron, homens que trabalhavam de acordo com um credo, e até falavam uma língua que ele criara. Em Israel, Shamron era conhecido como o Memuneh, “a pessoa encarregada”, e como tal permaneceria até o dia em que finalmente decidisse que o país estava seguro o suficiente para ele poder morrer.

– E suponho que Shamron ligou para você – completou Gabriel.– Ligou, mas o que me falou não tinha nitidamente nenhuma cortesia. Man-

dou lhe dar um recado. Depois me disse para convocar uns dois rapazes e pegar um avião. Parece que é este o meu destino na vida: ser o filho mais jovem obe-diente que é despachado para o fim do mundo de tantos em tantos meses para ir atrás do irmão mais velho rebelde.

– Grigori estava sob vigilância quando entrou no carro?– Aparentemente não.– Então, como é que os ingleses têm tanta certeza do que aconteceu?– Os pequenos ajudantes eletrônicos deles estavam assistindo.Navot se referia ao CCTV, a rede onipresente de dez mil câmeras de circuito

fechado de televisão que deu à Polícia Metropolitana de Londres a capacidade de monitorar a atividade, criminal ou não, em quase todas as ruas da capital britânica. Um estudo recente do governo havia concluído que o sistema falhara em seu objetivo principal: desencorajar o crime e deter criminosos. Apenas três por cento dos roubos de rua eram resolvidos utilizando a tecnologia de CCTV e as taxas de criminalidade em Londres estavam subindo. Funcionários da polí-cia, constrangidos, explicavam o fracasso observando que os criminosos agora adaptavam suas táticas às câmeras, passando a usar máscaras e chapéus para esconder suas identidades. Aparentemente, ninguém no comando tinha consi-derado essa possibilidade antes de gastar centenas de milhões de libras e invadir a privacidade da população numa escala sem precedentes. Os súditos do Reino Unido, berço da democracia ocidental, agora viviam num mundo orwelliano, onde cada movimento seu era vigiado pelo Estado.

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– Quando foi que os ingleses descobriram que ele desapareceu? – perguntou Gabriel.

– Só na manhã seguinte. Ele era obrigado a confirmar que estava tudo bem por telefone toda noite às dez horas. Ele não ligou na terça-feira, mas seu guarda não ficou muito preocupado. Grigori jogava xadrez toda terça à noite num clube pequeno em Bloomsbury. Na última terça haveria o jogo decisivo do torneio anual de seu clube. Esperava-se que Grigori fosse ganhar com facilidade.

– Eu nunca soube que ele jogava xadrez.– Acho que ele não teve oportunidade de mencionar isso durante a noite que

vocês passaram juntos nas salas de interrogatório de Lubyanka. Devia estar ocu-pado demais tentando descobrir como é que um funcionário de nível médio do Ministério da Cultura israelense conseguira desarmar e matar dois assassinos chechenos.

– Pelo que me lembro, Uzi, eu não estaria naquela escada se não fosse por você e por Shamron. Foi um daqueles trabalhinhos que vocês dois estão sempre inventando. Daquele tipo que supõem que não vai dar problemas. Em que nin-guém vai se machucar. Mas parece que nunca é assim que acontece.

– Alguns homens nascem grandes. Outros só recebem todas as grandes in-cumbências do King Saul Boulevard.

– Incumbências que fazem com que sejam jogados dentro das celas do porão de Lubyanka. E se não fosse pelo coronel Grigori Bulganov, eu nunca teria saído vivo daquele lugar. Ele salvou minha vida, Uzi. Duas vezes.

– Eu me lembro – disse Navot em tom irônico. – Todos nós lembramos.– Por que os ingleses não nos contaram antes?– Eles pensaram que Grigori tivesse simplesmente se afastado da zona reser-

vada. Ou que estivesse escondido com uma garota num hotelzinho à beira-mar. Queriam ter certeza de que desaparecera antes de soar o alarme. Ele se foi, Ga-briel. E o último lugar na face da Terra onde sabem que ele esteve foi naquele carro. É como se o veículo fosse um portal para o esquecimento.

– Tenho certeza disso. Eles já têm alguma teoria?– Já. E desconfio que você não vá gostar dela. Porque, Gabriel, os manda-

chuvas do serviço secreto britânico concluíram que Bulganov voltou para a Rússia.

– Voltou para a Rússia? Você não pode estar falando sério.– Estou. E tem mais: eles estão convencidos de que ele era um agente duplo

o tempo todo. Acreditam que veio ao Ocidente para nos tapear fornecendo um monte de porcarias russas e para obter informações sobre a comunidade dissi-dente russa em Londres. E agora, depois de conseguir o que queria, sumiu do

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mapa e voltou para casa, onde será recebido como herói. E adivinha quem eles culpam por essa catástrofe?

– A pessoa que trouxe Grigori para o Ocidente.– Isso mesmo. Eles culpam você.– Que conveniente. Mas Grigori Bulganov é tão agente duplo quanto eu. Os

ingleses inventaram essa teoria ridícula a fim de transferir a culpa pelo desapa-recimento dos ombros deles, onde merecia estar, para os meus. Nunca deveriam ter permitido que ele vivesse às claras em Londres. Não se podia ligar a televisão na BBC ou na CNN Internacional no outono passado sem ver o rosto dele.

– Então o que acha que aconteceu com ele? – Ele foi assassinado, Uzi. Ou pior.– O que poderia ser pior do que ser sequestrado por uma tropa de ataque

russa?– Ser sequestrado por Ivan Kharkov.Gabriel parou de andar e se virou para Navot na rua vazia.– Mas disso você já sabe, Uzi. Não estaria aqui se não fosse por isso.

6aMelia, úMbria

Subiram as ruas sinuosas até a piazza no ponto mais alto da cidade e con-templaram as luzes brilhando como topázios e granadas no fundo do vale.

Os dois guarda-costas pararam do lado oposto da praça, longe do alcance das vozes deles: um segurava um celular ao ouvido; o outro, um isqueiro para acen-der um cigarro. Quando Gabriel vislumbrou a chama, uma imagem surgiu em sua memória. Amanhecia e ele atravessava as planícies enevoadas do oeste da Rússia no banco do carona num sedã Volga, a cabeça latejando, o olho direito fechado por um curativo tosco. Duas mulheres bonitas dormiam como crianças pequenas no banco de trás. Uma era Olga Sukhova, a mais famosa jornalista da oposição na Rússia. A outra era Elena Kharkova, mulher de Ivan Borisovich Kharkov: oligarca, traficante de armas, assassino. Sentado ao volante, com um cigarro aceso entre o polegar e o indicador, estava Grigori Bulganov. Falava baixo para não acordar as mulheres, os olhos fixos numa estrada russa inter-minável.

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Sabe o que fazemos com traidores, Gabriel? Nós os levamos para uma salinha e os fazemos se ajoelharem. Então os matamos com um tiro na nuca usando uma arma de grosso calibre. Procuramos nos certificar de que o tiro saia pelo rosto para que não reste mais nada para a família ver. Depois jogamos o corpo numa cova sem identificação. Muitas coisas mudaram na Rússia desde a queda do comu-nismo. Mas o castigo para a traição continua o mesmo. Prometa-me uma coisa, Gabriel. Prometa-me que não vou acabar em uma cova sem identificação.

Gabriel ouviu um súbito ruído de asas e, olhando para cima, viu um bando de gralhas brigando e girando em torno do campanário românico da piazza.

– Pode ter certeza de uma coisa, Gabriel – falou Navot. – A única pessoa que Ivan Kharkov quer ver morto mais do que Grigori é você. E quem poderia culpá-lo? Primeiro você roubou os segredos dele. Depois roubou a mulher e os filhos.

– Eu não roubei nada. Elena se ofereceu para desertar; eu só a ajudei.– Duvido que Ivan veja dessa forma. Memuneh pensa o mesmo. Memuneh

acha que Ivan está de volta aos negócios. E que deu seu primeiro passo.Gabriel ficou calado. Navot levantou a gola do sobretudo.– Você deve se lembrar que estávamos recolhendo relatórios no outono pas-

sado sobre uma unidade especial que Ivan criou dentro de seu serviço de segu-rança pessoal. Essa unidade recebeu uma tarefa simples: encontrar Elena, levar seus filhos de volta e matar todos os que participaram da operação contra ele. Nós nos permitimos acalentar a ideia de que Ivan tinha se aquietado. O desapa-recimento de Grigori sugere o contrário.

– Ivan nunca vai me encontrar, Uzi. Aqui, não.– Está a fim de apostar sua vida nisso?– Cinco pessoas sabem que estou no país. O primeiro-ministro italiano, os

chefes de seu serviço secreto e de segurança, o papa e o secretário particular do papa.

– Já é gente demais. – Navot colocou a mão grande no ombro de Gabriel. – Quero que você me escute com muita atenção: se Bulganov deixou Londres voluntariamente ou sob a mira de uma pistola russa é de pouca ou nenhuma importância. Você está envolvido nisso, Gabriel. E vai sair daqui esta noite.

– Já estive envolvido antes. Além disso, Grigori não tem conhecimento do meu nome falso nem de onde estou vivendo. Ele não pode me trair e Shamron sabe disso. Está usando o desaparecimento de Grigori como sua mais nova des-culpa para me levar de volta a Israel. Assim que eu chegar lá, vai me confinar. E tenho certeza de que, quando minhas defesas estiverem no nível mais baixo, vai me oferecer uma saída. Eu vou ser o diretor e você vai ser encarregado das

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Operações Especiais. E Shamron vai poder enfim morrer em paz, sabendo que seus dois filhos favoritos estão no controle de seu amado Escritório.

– Essa pode ser a estratégia básica de Shamron, mas no momento ele está apenas preocupado com sua segurança. Não tem segundas intenções.

– Shamron é a segunda intenção em pessoa, Uzi. E você também.Navot tirou a mão do ombro de Gabriel.– Receio que isto não seja um debate, Gabriel. Você pode vir a ser o chefe um

dia, mas por enquanto eu estou mandando você sair da Itália e voltar para casa. Não vai desobedecer a outra ordem, vai?

Gabriel permaneceu em silêncio.– Você tem inimigos demais para ficar sozinho no mundo, Gabriel. Pode

achar que seu amigo, o papa, vai tomar conta de você, mas está errado. Você precisa de nós tanto quanto precisamos de você. Além disso, somos a única família que você tem.

Navot deu um sorriso perspicaz. As horas incontáveis que havia passado nas salas de reuniões executivas do King Saul Boulevard tinham afiado bastante sua capacidade de argumentação. Era agora um oponente considerável, a se enfren-tar com cuidado.

– Estou trabalhando numa pintura – alegou Gabriel. – Não posso ir embora enquanto não terminar.

– Quanto tempo vai levar? – perguntou Navot.Três meses, pensou Gabriel, mas respondeu:– Três dias.Navot suspirou. Dirigia uma unidade composta de várias centenas de agentes

altamente qualificados, mas só um cujos movimentos eram ditados pelo ritmo inconstante do trabalho de restaurar pinturas dos Grandes Mestres.

– Soube que sua mulher ainda está em Veneza.– Ela volta hoje à noite.– Ela deveria ter me contado que estava indo para Veneza antes de partir.

Você pode ser autônomo, Gabriel, mas sua mulher é uma funcionária em tempo integral das Operações Especiais. Como tal, deve manter o seu superior hierár-quico, eu, a par de todos os seus movimentos, pessoais e profissionais. Talvez você pudesse me fazer o favor de lembrá-la deste fato.

– Vou tentar, Uzi, mas ela nunca ouve o que eu digo.Navot olhou com ar carrancudo para seu relógio de pulso, um modelo

grande, de aço inoxidável, que fazia de tudo, exceto marcar o tempo exato. Era uma versão mais recente do que Shamron usava, principal razão pela qual Na-vot o comprara.

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– Tenho uns negócios a resolver em Paris e Bruxelas. Vou estar de volta daqui a três dias para buscar você e Chiara. Vamos retornar juntos a Israel.

– Tenho certeza de que conseguimos encontrar o aeroporto sozinhos, Uzi. Nós dois estamos bem treinados.

– Isso é o que me preocupa. – Navot se virou e olhou para os guarda-costas. – E, a propósito, eles vão ficar aqui com você. Pense neles como hóspedes for-temente armados.

– Não preciso deles.– Você não tem opção – replicou Navot.– Suponho que não falem italiano.– São colonos da Judeia e da Samaria. Mal falam inglês.– Como é que vou explicar a presença deles para os empregados?– Isso não é problema meu.Navot levantou três dedos grossos diante do rosto de Gabriel.– Você tem três dias para terminar a maldita pintura. Três dias. Depois, você

e sua mulher vão voltar para casa.

7villa dei FiOri, úMbria

O estúdio de Gabriel estava na penumbra, o retábulo envolto em sombras. Gabriel tentou passar direto por ele, mas não conseguiu – como sempre,

a atração por um trabalho em andamento era forte demais. Acendeu uma única lâmpada halógena e olhou para a mão pálida se estendendo para o ponto mais alto do painel. Por um instante, ela deixou de pertencer a São Pedro, era a mão de Grigori Bulganov. E não era para Deus que se estendia, mas para Gabriel.

Prometa-me uma coisa, Gabriel. Prometa-me que não vou acabar numa cova sem identificação.

A música que alguém cantava veio perturbar a visão. Gabriel apagou a luz e subiu os degraus de pedra que levavam a seu quarto. A cama, desfeita quando ele saíra, agora parecia ter sido preparada para uma sessão de fotos por um es-tilista profissional. Chiara estava dando uma ajeitada final num par de almofa-das decorativas, dois discos inúteis arrematados com renda branca que Gabriel sempre jogava no chão antes de entrar debaixo dos lençóis. Uma pequena mala

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se achava ao pé da cama, com uma Beretta 9 milímetros. Gabriel colocou a arma na primeira gaveta da mesinha de cabeceira e abaixou o volume do rádio.

Chiara levantou os olhos, como se surpresa com a presença dele. Vestia uma calça jeans desbotada, um suéter bege e botas de camurça que acrescentavam 2 centímetros à sua boa altura. O cabelo escuro e revolto fora domado por uma presilha na nuca e puxado para a frente sobre um dos ombros. As íris cor de caramelo estavam um tom mais escuro do que o normal: não era um bom sinal; os olhos de Chiara eram um indicador preciso de seu humor.

– Não ouvi seu carro chegar.– Talvez ouvisse se o rádio não estivesse tão alto.– Por que Margherita não fez a cama?– Eu disse a ela para não entrar aqui enquanto você estivesse fora.– E é claro que você não podia ser incomodado.– Não encontrei as instruções.Ela balançou a cabeça para demonstrar decepção.– Se você é capaz de restaurar pinturas antigas, Gabriel, também pode arru-

mar uma cama. Como fazia quando era menino? – Minha mãe tentava me obrigar a arrumar a cama.– E...?– Eu dormia em cima das cobertas.– Não admira que Shamron o tenha recrutado.– Na verdade, os psicólogos do Escritório acharam que isso era revelador.

Disseram que mostrava um espírito de independência e capacidade de resolver problemas.

– Então é por isso que você se recusa a fazer a cama agora? Porque quer de-monstrar sua independência?

Gabriel respondeu com um beijo. Os lábios dela estavam muito quentes.– Como foi, em Veneza?– Foi quase suportável. Quando o tempo está frio e chuvoso, é quase possível

imaginar que Veneza ainda é uma cidade de verdade. A Piazza di San Marco está tomada por turistas, é claro. Eles bebem cappuccinos de 10 euros e posam para fotos com aqueles pombos horrorosos. Me diga, afinal, Gabriel, que férias são essas?

– Pensei que o prefeito tivesse acabado com o negócio dos vendedores de alpiste.

– Os turistas os alimentam de qualquer maneira. Se gostam tanto assim dos pombos, deveriam levá-los para casa como suvenir. Sabe quantos turistas vie-ram a Veneza este ano?

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– Vinte milhões.– Isso mesmo. Se cada pessoa levasse só uma dessas aves imundas, o pro-

blema estaria resolvido em alguns meses.Era estranho ouvir Chiara falar de Veneza com tanta dureza. Na verdade,

houvera um tempo, não muito antes, em que ela nunca teria imaginado viver longe dos canais pitorescos e vielas estreitas de sua cidade natal. Filha do ra-bino-chefe da cidade, passara a infância no mundo insular do gueto antigo, de onde saíra apenas para cursar o mestrado em História pela Universidade de Pá-dua. Retornou a Veneza depois da graduação e aceitou um emprego no pequeno museu judaico do Campo del Ghetto Nuovo, onde poderia ter continuado para sempre se não tivesse sido notada por um observador de talentos do Escritório durante uma visita a Israel. O homem apresentou-se num café de Tel Aviv e per-guntou a Chiara se ela estava interessada em fazer mais pelo povo judeu do que trabalhando no museu de um gueto moribundo. Chiara respondeu que sim e desapareceu por um tempo no programa de treinamento secreto do Escritório.

Após um ano, ela retomou sua vida antiga, já como agente secreta israelense. Uma de suas primeiras tarefas foi ficar na retaguarda de um assassino do Escri-tório chamado Gabriel Allon, que tinha ido a Veneza para restaurar o retábulo de San Zaccaria de Bellini. Chiara revelou-se a ele pouco tempo depois, em Roma, após um incidente envolvendo tiroteios e a polícia italiana. Preso a sós com Chiara em um esconderijo, Gabriel sentiu uma vontade desesperadora de tocá-la. Esperou até que o caso fosse resolvido e eles voltassem a Veneza. Lá, numa casa à beira de um canal em Cannaregio, fizeram amor pela primeira vez, numa cama com frescos lençóis de linho. Era como fazer amor com uma figura pintada por Veronese. E essa mesma figura agora franziu a testa quando ele tirou a jaqueta de couro e a jogou nas costas de uma cadeira. Chiara deu um espetáculo enquanto a pendurava no armário, abriu o zíper de sua malinha de fim de semana e começou a tirar o que havia lá dentro. Todas as roupas estavam limpas e meticulosamente dobradas.

– Minha mãe insistiu em cuidar da minha roupa antes de eu retornar.– Ela acha que não temos máquina de lavar?– Ela é de Veneza, Gabriel; não acredita que seja bom para uma moça morar

numa fazenda. Pastos e gado a deixam nervosa. – Chiara começou a colocar a roupa nas suas gavetas da cômoda. – E então, por que você não estava aqui quando eu cheguei?

– Tive uma reunião.– Uma reunião? Em Amelia? Com quem?Gabriel respondeu.

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– Pensei que vocês dois não estivessem se falando.– Concordamos em deixar o passado para trás.– Que lindo – disse Chiara com frieza. – Será que meu nome surgiu na con-

versa?– Uzi se irritou por você por não ter informado sua ida a Veneza.– Era uma viagem particular.– Você sabe que não existe isso de particular quando se trabalha para o Es-

critório.– Por que você está tomando o partido dele?– Eu não estou tomando o partido de ninguém. Foi apenas a simples consta-

tação de um fato.– Desde quando você dá a mínima para as normas e regulamentos do Escri-

tório? Você faz o que quer, quando quer, e ninguém se atreve a pôr um dedo em você.

– E Uzi lhe dá um tratamento preferencial porque você está casada comigo.– Eu ainda estou com raiva dele por ter deixado você para trás, lá em Moscou.– Não foi culpa do Uzi, Chiara. Ele tentou me fazer ir embora, mas eu não

lhe dei ouvidos.– E você quase morreu por causa disso. Teria de fato sido morto se não fosse

por Grigori. – Ela se calou por um momento, redobrando duas peças de roupa. – Vocês dois comeram alguma coisa?

– Uzi devorou uns cem doces lá no Massimo. Eu tomei café.– Como está o peso dele?– Parece que está com alguns felizes quilos pós-nupciais a mais.– Você não ganhou peso nenhum depois que nos casamos.– Imagino que isso queira dizer que estou profundamente infeliz.– Está?– Deixe de ser boba, Chiara.Ela correu um dedo por dentro do cós da calça jeans azul.– Acho que estou ganhando peso.– Você está linda. Ela franziu a testa.– Você não deve me dizer que estou linda. Deve é me tranquilizar dizendo

que não estou ganhando peso.– Sua blusa está um pouco mais justa do que o normal.– É a comida da Anna. Se eu continuar comendo assim, vou ficar igual àque-

las senhorinhas da cidade. Talvez fosse melhor comprar um vestido preto e aca-bar logo com as dúvidas.

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– Dei a noite de folga para a Anna. Achei que seria bom ficarmos sozinhos um pouco para variar.

– Graças a Deus. Vou preparar alguma coisa para você comer. Você está ma-gro demais. – Chiara fechou a gaveta da cômoda. – E então, o que trouxe Uzi até aqui?

– Ele está fazendo sua turnê semestral pelos contatos europeus. Dando tapi-nhas nas costas das pessoas. Fazendo visitas oficiais, dando as caras.

– Será que detectei um leve ressentimento na sua voz?– Ora, e por que eu estaria ressentido?– Porque deveria ser você a fazer o grand tour dos nossos contatos europeus

em vez de Uzi.– Viajar não é mais o que era antes, Chiara. Além disso, eu recusei o em-

prego.– Mas nunca apreciou o fato de que esse emprego foi dado a Uzi após a sua

recusa. Você acha que ele não tem intelecto nem criatividade para o cargo.– Shamron e seus acólitos no King Saul Boulevard discordam disso. E, se eu

fosse você, Chiara, ficaria de bem com Uzi. É provável que um dia ele venha a ser o diretor.

– Não depois de Moscou. De acordo com os rumores, Uzi teve sorte em con-seguir manter o posto.

Ela se sentou na beirada da cama e fez uma tentativa não muito empenhada para tirar a bota direita.

– Ajude aqui – pediu, estendendo o pé em direção a Gabriel. – Não quer sair do lugar.

Gabriel segurou a bota pela ponta e pelo calcanhar e a fez deslizar com faci-lidade para fora do pé dela.

– Da próxima vez, talvez você devesse tentar puxar.– Você é muito mais forte do que eu. – Ela levantou a outra perna. – Então,

quanto tempo vai me fazer esperar desta vez, Gabriel?– Esperar o quê?– Para me dizer por que Uzi veio até a Úmbria ver você. E por que dois

guarda-costas do Escritório acompanharam você até em casa.– Pensei que você não tivesse me ouvido chegar.– Eu estava mentindo.Gabriel tirou a segunda bota de Chiara.– Nunca minta para mim, Chiara. Coisas ruins acontecem quando amantes

dizem mentiras uns para os outros.