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Recife Luanda Raproximacoes Historicas E Culturais

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RECIFE – LUANDA: reaproximações históricas e culturais

José Bento Rosa da Silva

Introdução:

Buscar uma reaproximação histórica entre Recife e Luanda é, para mim, um

desafio, uma vez que nunca estive em Luanda, em Recife estou há menos de um ano.

Mesmo assim aceitei a proposta, com o intuito de apreender um pouco sobre ambas,

também por outros motivos, tais como o envolvimento pessoal com ambas: nas décadas

de quarenta, ao voltar dos campos de batalha da segunda grande guerra, meu pai ficou

hospitalizado no hospital militar do Recife, e ao rememorar o seu passado, não deixava

de mencionar que os recifenses usavam a expressão “arretado” e tinha um outro

significado para a palavra “frango”(pejorativo de homossexual).O segundo motivo, foi

que o tema me remete ao nome de minha filha. Ao nascer, na década de oitenta, eu era

professor de ensino médio na cidade portuária de Itajaí, Santa Catarina, e ministrava

aulas para muitos angolanos refugiados políticos em decorrência do processo de

independência de Angola. Portanto, este desafio me fez reviver este passado não muito

distante.

Tânia Macedo, professora de Estudos Comparados de Literaturas de Línguas

Portuguesa, me apresentou de certa forma um aspecto de Luanda que, ao meu ver,

assemelha-se com Recife, provavelmente por ambas terem um passado colonial cuja

metrópole era a mesma matriz e também com influências holandesas. Diz ela:

“Quem conhece, hoje, a cidade de Luanda, invariavelmente, tem uma sensação

contraditória com relação à capital de Angola. Por um lado, a beleza dessa cidade é

inquestionável: debruçada sobre o mar, com a baía de Luanda aos seus pés, a presença

de duas ilhas muito próximas do continente (a do Mussulo e a de Luanda) e uma

avenida marginal, costeando o mar, com edifícios grandiosos e seus coqueiros, Luanda,

imediatamente conquista seu visitante. A „Baixa‟- parte da cidade que fica próxima ao

mar – traz as marcas da história do país: são numerosos ainda os edifícios do período

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colonial postados em ruas antigas e estreitas, algumas das quais ainda conhecidas pela

denominação d‟antanho: rua da Alfândega, rua Direita, rua dos Mercadores...”1

Mais adiante, ela fala das faces da cidade colonial, onde podemos identificar

uma Recife em Luanda, ou uma Luanda em Recife. Vejamos:

“quando nos referimos à escrita de uma cidade colonizada, como Luanda, é

fundamental que reflitamos sobre o status dessa cidade em função do papel que a

colônia representa no jogo de forças coloniais. Sob esse particular, pode-se verificar

que a cidade fundada pelos colonizadores nos territórios conquistados não mantém um

perfil exclusivo, já que o mesmo varia de acordo com os interesses da metrópole. No

caso das urbes nascidas sob o império colonial português, poderíamos traçar uma

tipologia de alteração do status das mesmas de acordo com o poder imperial e as

relações de autoconsciência da colônia. Assim, podemos dizer que a cidade,

primeiramente, adquire a feição de cidade portuguesa no além mar, representação do

„sonho de uma ordem‟ colonizadora que se pretende duplicada nas praias a que

chegaram as caravelas. Nesse sentido, ainda que prevaleçam a precariedade das

construções e a adversidade do meio, o modelo metropolitano impõe como paradigma

da urbanização e, politicamente, qualquer movimento centrípeto nascido na colônia em

relação ao poderio central é esmagado”2.

Esta pode ser considerada uma primeira aproximação da realidade histórica de

Recife e de Luanda: os movimentos de contestação à ordem colonial portuguesa.

Aprendi, por ter morado a maior parte de minha existência numa cidade

portuária, e também por ter investigado a organização do operariado urbano desta

mesma cidade a partir do início do século XX, que “As cidades portuárias são portas

abertas para o mundo”. Um dos objetivos desta conferência é justamente mostrar,

através de produções historiográficas que, como sugere o tema - Recife/Luanda:

reaproximações históricas e culturais (proposto pela coordenação deste Seminário) que

estas duas cidades estiveram mais próximas no passado, sobretudo através de seu porto.

1 MACEDO, Tânia. Luanda, Cidade, Literatura E História De Angola. In. AMÂNCIO, Iris Maria da Costa

(Org.) África- Brasil- África: Matrizes, Heranças e Diálogos Contemporâneos. Belo Horizonte: Ed. PUCMINAS/ Nandyala, 2008,p.145-146. 2 Idem., p. 149-150.

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Marcus Joaquim Carvalho, através de um estudo exaustivo, apontou a

presença de conhecidos navios negreiros no Recife, como O Formiga, União,

Providência e Andorinha, declinando também o nome de alguns dos traficantes

estabelecidos em Pernambuco nos anos quarenta do século XIX: Bento José da Costa,

José Ramos de Oliveira, Gaudino Agostinho de Barros, José Pinto da Fonseca e Silva,

Gabriel Antônio, José Francisco de Azevedo Lisboa, Antônio José de Magalhães Bastos

e Elias Batista da Silva3. E mais, identificou alguns traficantes sediados do outro lado

do Atlântico, em Angola, com os quais os daqui mantinham contactos: Inocêncio e José

Maria Matozo de Andrade Câmara, Arcênio Pompílio de Carpio, Anna Joaquina dos

Santos, Anna Obertalli, Augusto Garrido, Joaquim e José Francisco Regadas, Jácome

Felipe Torres e Joaquim Ribeiro de Britto”4. Todos eles, acrescenta Marcus, enviaram

carregamentos de escravos para Pernambuco nos anos trinta e quarenta do século XIX.

Muitas destas embarcações não chegavam ao porto de Recife após 1831, devido a lei

proibindo a entrada de africanos no Império, mas descarregavam nos arredores do

Recife(Barra de Catuama, Itamaracá,Pau Amarelo, Cabo de Santo Agostinho, Porto de

Galinhas, Barra de Sirinhaém, foz do Rio Formoso, Tamandaré e Uma); mas os navios

aportavam aqui para reabastecer de víveres necessários para o retorno ao continente

africano.

Carvalho, citando Joseph Miller, diz que na segunda metade da década de 1810,

pelo menos umas 49.233 pessoas saíram de Luanda para Pernambuco; destes a grande

maioria 33.812, foram trazidos entre 1816 e 18205. Considerando que aquela lei de

1831 ainda não havia sido „inventada‟6. Não havia razão para desembarcar estes

luandenses nos arredores da cidade, portanto, devem ter sido desembarcados aqui

mesmo, no porto do Recife. Portanto, as duas portas estavam abertas para o contato

3 CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. A Guerra Dos Moraes ( A luta Dos Senhores De Engenho Na

Praieira)Recife: UFPE, 1986 ( Dissertação de Mestrado Em História),p. 21-22. _________________________________. CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Liberdade: Rotinas e rupturas do escravismo Recife, 1822-1850. Recife: Ed. UFPE,2002,p.118 4 CARVALHO, Marcus Joaquim M. de. A Guerra Dos Moraes ( A luta Dos Senhores De Engenho Na

Praieira)Recife: UFPE, 1986 ( Dissertação de Mestrado Em História),p. 21-22. p.23. 5 CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Liberdade: Rotinas e rupturas do escravismo Recife, 1822-

1850. Recife: Ed. UFPE,2002,p.112-113. 6 Esta lei promulgada a 7 de novembro de 1831, pelos regentes Lima e Silva, Bráulio Muniz e Costa

Carvalho; declarava livres todos os escravos que, vindo de fora, entrassem em território brasileiro; e reprimia com penas corporais os importadores clandestinos. O que raramente ou nunca aconteceu, sendo por isso apelidada de “lei para inglês ver. Sobre esta questão. Ver: LEI PARA INGLÊS VER. In. MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. SP: Edusp., 2004,p.240.

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entre estas duas cidades, embora em situação adversa para os luandenses na condição de

escravos, mas sabemos que nos navios negreiros, conhecidos como tumbeiros, devido

às condições subumanas nas quais eram trazidas estas pessoas, vinham além de

músculos: idéias, sentimentos, mentalidades ritmos, formas de ver a vida; como se verá

adiante.

Cláudia Viana Torres, investigando as organizações de escravos urbanos em

Recife, identificou a presença de angolanos em Pernambuco (1804- 1818), sem a

preocupação de especificar a localidade de onde eles teriam embarcado; possivelmente

muitos em Luanda, que era um dos portos de embarque, pois já havia um comércio

direto para Benguela e Luanda com carregamento de fumo e aguardente oriundos do

Brasil. Pois bem, a autora apresentou um quadro que a soma perfaz um total de 37.172

escravos angolanos; sendo o maior número o do ano de 1818: sete mil setecentos e doze

angolanos7. Recife tinha uma presença significativa de africanos nos séculos XVIII e

XIX, pode-se dizer que, era uma extensão da África, de Angola, de Luanda, separada

por um “Rio Chamado Atlântico”, - usando uma expressão de Alberto da Costa e Silva -

; esta presença foi registrada não apenas pelo número dos africanos na condição de

escravos que para cá foram transladados, na colônia e no império, mas pelas

permanências materiais e imateriais constatadas por estudos posteriores, como

mostraremos posteriormente.

É preciso que se diga que, antes dos séculos XVIII e XIX, no século XVII, outro

fator havia possibilitado a aproximação entre Recife e Angola foi a presença dos

holandeses, tanto cá, quanto lá, conforme análise de Alberto da Costa e Silva,

apresentada na obra: A Manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700:

“Os flamengos tinham a firme intenção de instalar-se ao sul do cabo Lopez.

Na foz do Zaire, em Luanda e em Benguela, se possível. De vez em quando, um barco

deles atacava embarcações ou agredia os portos, tomando os navios neles surtos.

Como se deu, em novembro de 1633, em Benguela. De sobressalto em sobressalto, era

natural que as autoridades de Luanda, além de insistir com Lisboa por mais navios de

guerra, por mais soldados e por mais armas e munições, procurassem consolidar e

ampliar as fortificações da cidade, que continuaram, porém, tão precárias, que o

7 TORRES, Cláudia Viana. Um Reinado De Negros Em Um Estado De Bancos: organização de escravos

urbanos em Recife no final do século XVIII e início do século XIX. Recife: UFPE,1997( Dissertação de mestrado em História).

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governador português, Pedro César de Meneses, delas diria que se chamavam

fortificações, „mas não o eram‟. Algum socorro vinha da metrópole ou da Bahia, mas

sempre muito aquém das necessidades”8.

E continua o historiador, que também foi embaixador do Brasil na Nigéria e

no Benin, tendo estudado profundamente a relação histórica entre a África e o Brasil;

estudos que nos últimos anos tem enriquecido a historiografia sobre a África no Brasil e

fornecido uma maior aproximação de conhecimentos entre ambos os lados do oceano,

inclusive para os que não tiveram ainda a oportunidade de conhecer as duas margens do

Atlântico. Pois bem, vejamos o que ele nos diz acerca da importância dos holandeses

nesta aproximação pretérita entre Recife e Luanda:

“Em meados de dois dias, de 24 a 26 de agosto de 1641, os holandeses

tomassem a cidade: eles haviam saído de Pernambuco com 21 navios e cerca de três

mil homens, dentre os quais três companhias de brasilienses (200 ameríndios e

provavelmente alguns mamelucos)”9 .

René Ribeiro também destacou o impacto dos holandeses no tráfico de

angolanos para Pernambuco, sobretudo para a cidade do Recife:

“Antes da invasão holandesa no período de 1620 a 1623 registravam os livros

da Alfândega que 15.000 negros haviam sido introduzidos, todos procedentes de

Angola[...] No período de 1636 a 1645 chegaram a introduzir os holandeses 23.163

escravos africanos, numa média anual de pouco mais de dois mil. Essa importação

regular de escravos obtidos nos portos de Elmina e Loanda, conquistados

respectivamente em 1637 e 1641 – o último porque sendo grandíssima a importância do

resgate dos negros no reino de Angola, por imprescindíveis aos trabalhos das

minerações reais e dos engenhos brasileiros, prouve a Maurício levar a guerra também

lá –só viria a ser descontinuada por eles a partir de 1646 quando os seus navios

negreiros começaram a se afastar do Recife em virtude da revolução pernambucana”10

8 COSTA E SILVA, Alberto da. A Manilha E O Libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. RJ: Nova

Fronteira, 2002, p. 466. 9 Idem. p.466.

10 RIBEIRO, René. Cultos Afro-Brasileiros Do Recife: um estudo de ajustamento social. Recife: Instituto

Joaquim Nabuco De Pesquisas Sociais, 1978, p.12-13.

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Era a época em que Nzinga era rainha e negociara tanto com os portugueses

quanto com os holandeses de Nassau em África. Não é por acaso que evidências da

tradição oral recolhida na cidade do Recife, sobretudo por Câmara Cascudo registrou

narrativas acerca de Nzinga, mais conhecida como Rainha Jinga. Era o „espírito da

rainha Jinga acompanhando os africanos escravizados de Luanda e arredores, a

Pernambuco e Minas Gerais. Cascudo foi enfático: “os angolanos trouxeram consigo a

odisséia da rainha negra de Matamba”...11

Luiz Felipe de Alencastro dedicou o capítulo sexto da obra O Trato dos

Viventes, às guerras pelos mercados de escravos, momento em que reproduz o conselho

do jesuíta Gonçalo João à sua Majestade o Rei de Portugal com os seguintes dizeres:

“Sobretudo é necessário que Vossa Majestade mande com brevidade socorro àquela

praça [refere-se a Luanda], por ser de grande importância, porque sem Angola não há

Brasil”, - urgia, acrescenta, Alencastro expulsar primeiro os holandeses de Luanda, para

fazê-los largar o Brasil12

. Diante desta afirmativa acreditamos não ser uma heresia

histórica afirmar, parafraseando o jesuíta que „sem Luanda não haveria Recife‟.

Luanda! Luanda!

Este é o título do décimo quarto capítulo da obra de Luiz da Câmara Cascudo,

intitulado Made in África, cuja primeira edição data do ano de 1965. Recolhendo

cantigas populares e fragmentos de memórias em diversas cidades brasileiras, disse não

acreditar que “nenhuma cidade deste mundo estivesse nas cantigas brasileiras como

Luanda”. Citou a cidade do Recife como uma delas:

“Nos tempestuosos Maracatus do Recife, sacudindo a multidão, estrondo de

tambores contagiantes, a grande voz uníssona atroa, inesgotável no solidarismo

instintivo e lúdico:

Rosa Aluanda, qui tenda, tenda,

Qui tenda, tenda, qui tem tororó!”13

11

Sobre esta questão. Ver: GLASGOW, Roy. Nzinga. SP: Perspectiva, 1982,p.146. 12

ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. SP: Cia. Das Letras, 2000,p. 226. 13

CASCUDO, Luís da Câmara. Made in África. SP: Global, 2002, 4ª. Ed., p. 93.

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O Maracatu do Recife foi a fonte onde muitos pesquisadores encontraram

representações da cidade de Luanda, muitas vezes metamorfoseada numa entidade, num

lugar de memória, ou numa memória coletiva dos descendentes dos luandeses que aqui

desembarcaram na condição de escravos, nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.

Ascenso Ferreira cantando o Maracatu:

“Zabumbas de bombos,

Estouros de bombas

Batuques de ingonos,

Cantigas de banzo

Rangir de ganzás

Luanda, Luanda, aonde estás?

Luanda, Luanda, aonde estás?

As luas-crescentes

De espelhos luzentes,

Colares e pentes,

Queixares e dentes

de maracajás...

Luanda, Luanda, aonde estás?

Luanda, Luanda, aonde estás?

A balsa no rio

Cai no corrupio,

Faz passo macio

Mas toma o desvio

Que nunca sonhou...

Luanda, Luanda, aonde estou?

Luanda, Luanda, aonde estou?”14

14

Idem. p. 93-94.

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Guerra Peixe publicou, em 1955, Maracatus do Recife na cidade de São Paulo,

registrando Luanda que, segundo Câmara Cascudo, era uma obsessão temática:

“Princesa Dona Emília

Pra onde vai? –Vou passeá.

Eu vou para Luanda,

Vou quebrá saramuná!

Vou pra Luanda,

Buscá miçanga pra saramuná!

Vamos vê Luanda, ô miçanga,

Chegô, chego!

A bandêra é brasilêra,

Nosso Rei veio de Luanda,

Ô, viva Dona Emília,

Princesa pernambucana!...

Quando eu vim lá de Luanda

Trusse cuíca e gugué...

Quem brinca em Cambinda Estrêla,

Êste baque é da Guiné!”15

No carnaval do ano de 1989, ainda sob o calor do centenário da Lei Áurea,

quando a África foi cantada em versos e prosas por algumas organizações carnavalescas

de diversas regiões do Brasil, Katarina Real que já havia pesquisado o carnaval do

Recife nos anos sessenta, registrou a presença de Luanda num maracatu, muito

semelhante à registrada por Guerra Peixe passado trinta e quatro anos; com pequenas

mudanças: Agora a princesa não era Dona Emília, mas Dona Clara; não havia menção

15

Idem., Ibidem., p. 94.

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às miçangas, nem à bandeira brasileira, tampouco à cuíca e gungué trazidas de Luanda,

mas a Luanda estava lá, presente na letra da cantiga, ainda que com mais curta em

relação à registrada por Guerra Peixe. O que ele registrou foi:

“Princesa Dona Clara

Pra onde vai? – Vou passeá,

Eu vou para Luanda

Vou quebrá saramuná.

Eu vou, eu vou

Eu vou, eu para machá

Eu vou para Luanda

Eu vou para Luanda

Vou quebrá saramuná”16

Dentre as referências de Luanda citadas por Cascudo, uma remonta o ano de

1924, passados trinta e seis anos da abolição da escravidão no Brasil. Tratava-se de

cantiga de trabalhadores da cidade de Goiana, que ao descarregarem abacaxis na

Avenida Martins de Barros, à frente do Hotel Lusitano cantavam:

“Vou me embora pra Luanda,

A vida lá é mió...

Escalé de doze remo

Meia lua e meio só...”17

Câmara Cascudo, tal como um Sherlock Holmes, seguiu as pistas de uma

cantiga ouvida no Maractu do Recife que falava de uma certa Rosa Aluanda. Os versos

segundo ele eram: “Rosa Aluanda, que tenda, tenda/que tenda, tenda/ que tem tororó”.

Diz ele que ninguém sabia mais o significado da toada. Rosa Aluanda, supôs ele que

fosse Rosa de Luanda, quando esteve em Luanda, consultou Oscar Bento Ribas,

autoridade no assunto. A resposta foi a seguinte:

16

In. SILVA, Leonardo Dantas. Estudos Sobre A escravidão Negra – 2. Recife: fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 1989, p.50. 17

CASCUDO, Luís da Câmara. Made in África. SP: Global, 2002, 4ª. Ed., p. 95.

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“Tenda tenda é a forma reduplicativa do verbo Kutenda, lembrar-se

de alguém, pensar em alguém, sentir saudades. E tororó, pelo que me parece, deve

constituir um derivado aportuguesado de kutolola, abater. Portanto, abatimento. Mas

apenas em sentido figurado, pois o verbo com sentido real é kutoloka, partir-se. Em

face disso, alarguemos a tradução em toda a sua extensão. Será: „A Rosa de Luanda,

que sente saudades imensas, que sente saudades imensas, e que tem abatimento‟. Ou

mais simplesmente: „A Rosa de Luanda, que se enche de saudades, que se enche de

saudades, e que tem quebramento‟.

“Em kimbundo, a conjugação „quando‟ corresponde a ki. Se não fosse

o último qui, a coisa ficaria: „A Rosa de Luanda, quando se enche de saudades, tem

quebramento!‟ Se eu conhecesse mais alguns versos seguintes, talvez me decidisse por

uma tradução mais concreta. Enfim, é o que posso dizer”18

- completou Oscar Bento

Ribas.

Mas quem poderia representar melhor Angola e Luanda pelas ruas de Recife

senão a Calunga? Personagem indispensável no Maracatu foi exaustivamente

investigado por pesquisadores, tais como Pereira da Costa, Mário de Andrade, Arthur

Ramos dentre outros. Visando estabelecer uma possível relação da Calunga dos

Maracatus do Recife com a cidade de Luanda capital de Angola, recorri a Alberto da

Costa e Silva, que no capítulo vigésimo da obra A Enxada E A Lança – África Antes

Dos Portugueses, apresenta a Kalunga no Baixo Zaire e Nos Planaltos de Angola.

Talvez a Kalunga que aqui chegou, tenha saído pela porta de Luanda que é o porto, e

entrado pela porta do Recife, que também é o porto; pois como afirmei no início, as

cidades portuárias são portas para o mundo... Pois bem, Costa e Silva diz que:

“Como entre os lubas e os lundas, um grande caçador não o era somente

porque hábil no manejo do arco e da flecha, mas sobretudo pelos seus poderes

mágicos. Tinha, sob a guarda, discípulos com os quais estabelecia uma relação de

autoridade e respeito. Os aprendizes iam engrossar a sociedade secreta dos caçadores,

que talvez tenha exercido, tal qual entre os lubas e os lundas, um papel considerável na

formação e consolidação dos estados ambundos. Do que sabemos, dos pendes do rio

Lui, emergem, porém, outras personagens principais: os cabeças de certas linhagens

que custodiavam uma boneca de madeira, a lunga ou calunga.

18

Idem., p. 170

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Segundo a lenda, o herói civilizador ambundo, Angola Inene, teria trazido de

terras do nordeste ou, conforme outras versões, do mar, as lungas (ou malungas, que é

o plural em quimbundo da palavra). Esta última origem seria o resultado de

interpolação européia, do traduzir equivocado de Calunga, „as grandes águas‟, por

oceano Atlântico, e contrasta com o papel agrário da escultura de madeira, ligada aos

ritos de chamar a chuva e da fertilidade. As „grandes águas‟ podem ter sido um dos

afluentes do Zaire ou qualquer outro lago ou rio. Os europeus, além disso,

interpretaram Calunga como uma alta divindade e talvez tenham contagiado com este

novo conceito as crenças ambundas.

Cada lunga vivia num determinado curso d‟água. Era guardada por uma

linhagem, cujo chefe conhecia o segredo da comunicação com as forças espirituais que

a boneca continha. Essa linhagem sobrepunha-se às outras e seu cabeça possuía

autoridade territorial sobre toda a área banhada pelo riacho ou pedaço de rio onde

morava a lunga. Era ele quem alocava as terras a novas famílias que para ali

quisessem mudar-se, paulatinamente, senhor das chuvas e da fertilidade da terra

passou a receber tributos e a concentrar riquezas e poder. Estabeleceu-se também uma

hierarquia entre os vários guardiões de calungas: o custódio da estatueta dório

principal era mais importante do que os dos riachos tributários, a graduação da

autoridade fazendo-se conforme a hidrografia.

A calunga tornou-se assim, e desde há bastante tempo – a contar do fim do

século XIII(talvez) – fonte de poder político e de uma organização social fundada na

terra, num sítio preciso, e não apenas na estrutura de parentesco. Muito embora tenha

sido suplantada, em quase toda parte, por novos símbolos da centralização estatal,

persistiu como emblema dominante no baixo Lui, e ligada ao nome de numerosos

ancestrais e fundadores de reinos, bem como aos títulos de vários sobas. Entre os

cubas, houve uma Calunga; Calala LLunga foi o herói civilizador dos lubas; os quiocos

possuem um Calunga entre os seus maiores; os povos do sul do lago Maláui dizem que

Calunga lhe trouxe as novas instituições; a palavra aplicava-se, entre os lundas, ao

senhor, ao chefe, ao rei, e, entre os congos, era, a um só tempo, o título mais comum

dos quitomes, uma grande extensão de água e a vasta corrente mítica a separar as duas

montanhas que formavam o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A boneca, com o

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seu nome, atravessou o Atlântico e sobrevive nos maracatus brasileiros”19

- conclui

Costa e Silva.

Resignificada, a Calunga passeia pelas ruas do Recife nos Maracatus, um

símbolo de possível elo entre o passado e o presente que pode sugerir que através da

cultura os dois portos: o de Luanda e o do Recife podem voltar a reaproximarem-se,

mas agora sem que um deles (o de Luanda) esteja em situação adversa, como aconteceu

no período da diáspora africana para o denominado Novo Mundo.

Concluo com uma frase atribuída ao filósofo Nietzsche, acerca da história: “se

a história não serve para a vida, ela não serve pra nada.” Acredito que a história destas

duas cidades possa orientar os nossos passos numa aproximação maior no contexto do

mundo em globalização, sem prejuízo para nenhuma delas.

19

COSTA E SILVA, Alberto da. A Enxada E A Lança – A África Antes Dos Portugueses. RJ: Nova Fronteira, 1996, 2ª. Ed., p.503-504.