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Segunda-Feira de Fevereiro, 2016 Meu Caro, Podes sempre contar com os conselhos dos mais velhos, principalmente, para te recomendar que não faças como nós fizemos quando tínhamos a tua idade, quando tínhamos a sorte de todo o nosso mundo se resumir a um Campus, aos auditórios do cp1, às olheiras que levávamos para os exames, às noites exageradas num BA em que o chão colava, aos trabalhos de grupo com as meninas mais bonitas da turma na Biblioteca, à constatação empírica de que haveríamos de comer caldo verde na cantina logo depois de cortarem a relva... Sei bem que era tão mais fácil se, do Futuro, te enviasse uma receita, mas as receitas não deixam de ser formas supersticiosas de manter a tradição. Tenho andado fascinado com o conceito de viagem no Tempo. (Não me interessa muito a forma como os Físicos têm estudado esta questão.) A minha curiosidade prende-se antes com o poder intemporal das narrativas: uma boa história é uma boa forma de olhar o mundo; uma boa história viaja no tempo, julgo que é isso uma lenda. Do Futuro te envio este postalinho, e, não levarás a mal, que te adiante dois ou três pensamentos transversais ao tempo: os hábitos e rotinas que hoje tens, nesse teu presente, são quem te domina, quem te leva a algum lado e quem te pode também afastar dos teus objectivos. Aqui vai uma história curtinha que aprendi de David Foster Wallace, um dos grandes que o tempo recordará. Um dia, dois jovens peixes estavam a nadar e cruzam-se com outro peixe mais velho que lhes acena e diz "Bom dia rapazes! Como está a água?". Os dois jovens continuam nadando até que um, ainda remoendo no que o peixe velho dissera, se vira e pergunta espantado: "Mas que raio será a água??!!". Nós, os velhos do Futuro, estamos a contar convosco para que, ainda na água saibam o que é estar (na água). Nós, os velhos do Futuro, contamos que vocês sendo estudantes façam mais do que o que nós fizemos, porque diz a lenda que a próxima geração será sempre melhor e mais bem preparada. Bem entendida, não é pressão que estamos a colocar, é fé!

Um postal do Futuro

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Segunda-Feira de Fevereiro, 2016

Meu Caro,

Podes sempre contar com os conselhos dos mais velhos, principalmente, para te

recomendar que não faças como nós fizemos quando tínhamos a tua idade, quando

tínhamos a sorte de todo o nosso mundo se resumir a um Campus, aos auditórios

do cp1, às olheiras que levávamos para os exames, às noites exageradas num BA

em que o chão colava, aos trabalhos de grupo com as meninas mais bonitas da

turma na Biblioteca, à constatação empírica de que haveríamos de comer caldo

verde na cantina logo depois de cortarem a relva...

Sei bem que era tão mais fácil se, do Futuro, te enviasse uma receita, mas as

receitas não deixam de ser formas supersticiosas de manter a tradição.

Tenho andado fascinado com o conceito de viagem no Tempo. (Não me interessa

muito a forma como os Físicos têm estudado esta questão.) A minha curiosidade

prende-se antes com o poder intemporal das narrativas: uma boa história é uma boa

forma de olhar o mundo; uma boa história viaja no tempo, julgo que é isso uma

lenda.

Do Futuro te envio este postalinho, e, não levarás a mal, que te adiante dois ou três

pensamentos transversais ao tempo: os hábitos e rotinas que hoje tens, nesse teu

presente, são quem te domina, quem te leva a algum lado e quem te pode também

afastar dos teus objectivos.

Aqui vai uma história curtinha que aprendi de David Foster Wallace, um dos grandes

que o tempo recordará. Um dia, dois jovens peixes estavam a nadar e cruzam-se

com outro peixe mais velho que lhes acena e diz "Bom dia rapazes! Como está a

água?". Os dois jovens continuam nadando até que um, ainda remoendo no que o

peixe velho dissera, se vira e pergunta espantado: "Mas que raio será a água??!!".

Nós, os velhos do Futuro, estamos a contar convosco para que, ainda na água

saibam o que é estar (na água). Nós, os velhos do Futuro, contamos que vocês

sendo estudantes façam mais do que o que nós fizemos, porque diz a lenda que a

próxima geração será sempre melhor e mais bem preparada. Bem entendida, não é

pressão que estamos a colocar, é fé!

Do Futuro, deixa-me dizer-te que serão raras as segunda-feiras em que te sentirás

preparado. Todas custam o mesmo.

Neste tempo em que te escrevo, já nem os calendários são como era habitual, vejo

muito quem saia à rua todos os dias com cara de segunda-feira de manhã chuvosa;

Sei bem que era tão mais fácil se, do Futuro, te enviasse uma receita, mas não sei

se existirão mais indicações do que reflectir sobre o que ouvires de velhos peixes

que contigo se possam cruzar.

Repara que ser-te-á dito para seres bom menino, para te acompanhares de boas

meninas, para não pores os cotovelos na mesa, para pores o teu diploma na parede

e te fazeres à vida. Dir-te-ão também que agora os diplomas não asseguram, que

empreender é preciso, que ir para fora tem de ser...

Detestaria que te perdesses pelo caminho, confinado à tua área, enamorado pelo

teu diploma, resignado ao diz-que-disse, submisso dos teus hábitos e rotinas.

A vida é um mundo de possibilidades e não de fatalidades, oxalá aprendas, com

tanto estudo aí pelo campus, onde podes dar o teu contributo, e como podes contar

a tua história com os olhos postos no Futuro.

Habitua-te a que a tua vida seja um projecto teu. Faz tu. Pratica já. Expõe-te às

possibilidades e deixa que possas ser inovador, empreendedor ou só autor do teu

próximo passo. E depois do seguinte. E, enquanto isso, vai tirando notas que

acrescentaremos ao grande guia para as surpresas e incertezas, cheio de receitas.

O Futuro está cheio de robots e autómatos, como nos tinham dito, alguns deles já

nem conseguem ser pessoas. Foram perdidamente domadas pela rotina.

Como habitualmente, despeço-me com amizade,

Alexandre Mendes