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, 11(3) 1997 - Fundação Seade · 2014. 7. 31. · A POLÍTICA MUDOU DE LUGAR 3 A A POLÍTICA MUDOU DE LUGAR OCTAVIO IANNI Sociólogo, Professor do Departamento de Sociologia da

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  • A POLÍTICA MUDOU DE LUGAR

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    A POLÍTICA MUDOU DE LUGAR

    OCTAVIO IANNISociólogo, Professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor de A sociedade global, entre outros

    globalização desafia radicalmente os quadros dereferência da política, como prática e teoria. Hácategorias básicas da ciência política que pare-

    cem ter perdido a vigência ou estão necessitando dereelaboração. Dadas as transformações geoistóricas emcurso no século XX, são bastante evidentes os desenvol-vimentos da transnacionalização, mundialização ou, maispropriamente, globalização. São transformações que nãosó atravessam a nação e a região, mas que também con-formam uma realidade geoistórica de envergadura glo-bal. Trata-se de uma realidade emergente, porém já bas-tante evidente e, simultaneamente, carente de categoriasinterpretativas.

    Entre as categorias do pensamento político que pare-cem desafiadas pelos dilemas e horizontes que se abremcom a globalização estão: sociedade civil, Estado, parti-do político, sindicato, movimento social, opinião públi-ca, povo, classe social, cidadania, soberania e hegemo-nia, entre outras. À medida que essas e outras categoriasforam elaboradas com base na dinâmica da sociedadenacional, como emblema por excelência das ciências so-ciais, provavelmente elas pouco ou nada respondam àsexigências da reflexão sobre a dinâmica da sociedademundial. Sim, as relações, os processos e as estruturas dedominação, mais característicos da sociedade global, comonovo emblema das ciências sociais, podem estar criandodesafios radicais à política, como prática e teoria.

    Cabe reconhecer, desde o início, que está em curso umacrise generalizada do Estado-Nação. A crescente trans-nacionalização da economia não só reorienta como reduza capacidade decisória do governo nacional. Em pratica-mente todos os setores da economia, sem esquecer as fi-nanças, as injunções externas são, com freqüência, deci-sivas para a adoção de diretrizes por parte do governo.

    Também no campo dos transportes, habitação, saúde,educação e meio ambiente cresceram muito as sugestões,os estímulos, as orientações, os financiamentos e as im-posições de organizações multilaterais, dentre as quaisdestacam-se o Fundo Monetário Internacional (FMI) e oBanco Mundial (Banco Internacional de Reconstrução eDesenvolvimento – Bird). Sem esquecer que, muitas ve-zes, as diretrizes dessas organizações articulam-se comos interesses das corporações transnacionais ou dos paí-ses dominantes no âmbito do capitalismo.

    Sendo assim, está em causa a crise do princípio da so-berania nacional. Ao intensificarem e generalizarem asinjunções “externas”, as condições e as possibilidades dasoberania alteram-se, redefinem-se e também reduzem-se. Se cresce a importância das injunções “externas”, con-figurando a dinâmica da globalização, pode reduzir-se aimportância das forças sociais “internas”, no que se refe-re à organização e às diretrizes do poder estatal. Daí ohiato crescente entre a sociedade civil e o Estado. Sãoevidentes os descompassos entre as tendências de boa parteda sociedade civil quanto aos problemas sociais, econô-micos, políticos e culturais e às diretrizes que o Estado élevado a adotar. Talvez se possa dizer que, enquanto asociedade civil está predominantemente determinada pelojogo das forças sociais “internas”, o Estado parece estarcrescentemente determinado pelo jogo das forças sociaisque operam em escala transnacional. Um aspecto parti-cularmente esclarecedor desse impasse revela-se no âm-bito da reforma do Estado. São muitos os países nos quaiso Estado vem sendo reestruturado, com a desregulaçãoda economia, privatização das empresas produtivas esta-tais, abertura de mercados, reforma dos sistemas de pre-vidência social, saúde, educação, etc. Em todos esses ca-sos, é evidente a interferência de injunções “externas”,

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    através das corporações transnacionais e das organizaçõesmultilaterais, cujas diretrizes, em geral, se conjugam. Semesquecer que as injunções “internas”, isto é, aquelas rela-tivas aos setores sociais subalternos, têm escassa ou ne-nhuma presença na maneira pela qual se realiza a reformado Estado. Daí o divórcio entre as tendências fundamentaisda sociedade civil e as orientações predominantes no Esta-do. Sim, as tensões entre o globalismo e o nacionalismo,traduzidas nas diretrizes e práticas neoliberais, agravamos desencontros entre as tendências reais ou potenciais dasociedade civil e as orientações que se impõem, ou sãoadotadas, no âmbito do aparelho estatal.

    Portanto, as forças predominantes na sociedade civil têmreduzidas possibilidades de influenciar ou reorientar asdiretrizes governamentais. Visto que o Estado é crescen-temente obrigado a atender às condições e injunções dasorganizações multilaterais e das corporações transnacio-nais, as orientações das forças predominantes na socieda-de civil, no que diz respeito ao povo, aos setores sociaissubalternos ou à maior parte das classes assalariadas nãoencontram condições políticas ou jurídico-políticas de rea-lização. Precisam reavivar suas instituições ou organiza-ções de atuação política, ou mesmo criar novas, tendo emconta a envergadura dos processos e estruturas que sub-mergem muito do que é nacional do âmbito do global. Aglobalização está pondo as classes subalternas na defensi-va, que passaram a depender de novas interpretações enovas práticas, diagnosticando relações, processos e es-truturas de dominação e apropriação mundiais.

    Estão em causa, pois, as condições de construção erealização da hegemonia, seja das classes e grupos sociaissubalternos, seja de outros e novos arranjos compreen-dendo subalternos e dominantes que desafiem as diretri-zes dos blocos de poder organizados e atuantes nos mol-des do neoliberalismo. Assim, forças sociais importantesda sociedade civil defrontam-se com obstáculos às vezesintransponíveis para traduzir-se em governo, governabi-lidade, dirigência ou hegemonia. A construção de hege-monias conflitantes, alternativas ou sucessivas, pode serum requisito essencial da dialética sociedade civil e Esta-do. Sem hegemonia, fica difícil pensar não só em sobera-nia nacional, mas também em democracia, mesmo ape-nas política.

    Ocorre que a hegemonia, em suas diferentes modali-dades de expressão e realização, tem estado cada vez maissob o controle das organizações multilaterais e das cor-porações transnacionais. Essas instituições habitualmentedetêm poderes econômicos e políticos decisivos, capazes dese sobrepor e impor aos mais diferentes estados-nacionais.Por meio de sua influência sobre governos ou por dentrodos aparelhos estatais, burocracias e tecnocracias, esta-belecem objetivos e diretrizes que se sobrepõem e impõem

    às sociedades civis, no que se refere a políticas econômi-co-financeiras, de transporte, habitação, saúde, educação,meio ambiente e outros setores da vida social nacional.Nesse sentido é que as condições e possibilidades de cons-trução e exercício da hegemonia podem ser decisivamen-te influenciadas pelas exigências da globalização, expressana atuação das organizações multilaterais e das corpora-ções transnacionais.

    As organizações multilaterais e as corporações trans-nacionais são novas, poderosas e ativas estruturas mundiaisde poder. Elas se sobrepõem e impõem aos Estados nacionais,compreendendo extensos segmentos das sociedades civis,isto é, das suas forças sociais. É claro que essas estruturasmundiais de poder têm crescido muito em agressividade eabrangência, influenciando nações e regiões e alcançandocom freqüência o âmbito propriamente global. Atuamsegundo cartografias, mapas do mundo, diretrizes geo-econômicas ou, mais propriamente, geopolíticas de alcanceglobal. São estruturas de poder econômico-político, comimplicações sociais e culturais muitas vezes de grandeinfluência e abrangência. Expressam os objetivos e as práticasdos grupos, classes ou blocos de poder predominantes emescala mundial. Naturalmente, respondem aos objetivos eàs práticas predominantes não só em países centrais, potênciasmundiais ou imperialistas, como também em âmbitotransnacional, mundial ou propriamente global. Já se for-maram e continuam a desenvolver-se estruturas globais depoder, respondendo aos objetivos e às práticas dos grupos,classes ou blocos de poder organizados em escala realmenteglobal.

    Sendo assim, desloca-se radicalmente o lugar da polí-tica. Ainda que se continue a pensar e agir em termos desoberania e hegemonia, ou democracia e cidadania, tantoquanto de nacionalismo e Estado-Nação, modificaram-seradicalmente as condições “clássicas” dessas categorias,no que se refere às suas significações práticas e teóricas.

    “Três elementos da regionalização e da globalizaçãoprecisam ser reconhecidos: primeiro, o modo pelo qual osprocessos de interdependência econômica, política, legal,militar e cultural estão mudando a natureza, o alcance e acapacidade do Estado moderno, e de como a sua capaci-dade ‘regulatória’ está sendo desafiada e reduzida em al-gumas esferas; segundo, o modo pelo qual a interdepen-dência regional e global cria cadeias de decisões e atuaçõespolíticas inter-relacionadas entre os Estados e os seus ci-dadãos, alterando a natureza e dinâmica dos próprios sis-temas políticos nacionais; e, terceiro, o modo pelo qual asidentidades culturais e políticas estão sendo redesenhadase reavivadas por tais processos, levando muitos grupos,movimentos e nacionalismos, em âmbito nacional e regio-nal, a questionar a representatividade e a confiabilidadedo Estado-nação” (Held, 1995:136).

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    Uma face importante da realidade política global com-preende a formação das corporações transnacionais damídia, que organizam e agilizam não só os meios de co-municação e informação, mas também a eleição, seleçãoe interpretação dos fatos, sejam estes sociais, econômicos,políticos ou culturais. Muito do que ocorre no mundo –da África e Indonésia ao Caribe ou do Oriente ao Ociden-te –, seja importante ou irrelevante, divulga-se pelos qua-tro cantos do mundo por intermédio dos recursos e dasdiretrizes das corporações da mídia, compreendendo as mo-dalidades impressas e eletrônicas. É a mídia que forma econforma, ou influencia, decisivamente as mentes e oscorações de muitos, da grande maioria, em todo o mundo,compreendendo tribos, nações e nacionalidades, ou con-tinentes, ilhas e arquipélagos. Isto não significa que o lei-tor, o ouvinte, o espectador, a audiência ou o público sãoinermes, passivos. É claro que eles são sempre ativos,radicados no jogo das atividades sociais, compreendendoas condições concretas de vida e trabalho. E não há dúvi-da de que as situações sociais em que se inserem os indi-víduos e as coletividades são fundamentais no processode elaboração ou desenvolvimento da sua consciência so-cial. Mas também é claro que os meios de comunicação,informação e análise organizados na mídia e na indústriacultural agem com muita força e preponderância, no modopelo qual se forma e conformam as mentes e os coraçõesda grande maioria, pelo mundo afora.

    “A sofisticação da tecnologia de persuasão, no últi-mo meio século, modificou as velhas regras da comu-nicação humana. Na medida em que a indústria da pu-blicidade e relações públicas tornava-se cada vez maishábil em controlar a opinião pública, as posturas, ascrenças e os sistemas de valores, foi tornando-se umimperativo manter o segredo e capacitar a população areprimir a consciência daquilo que os manipuladoresestão tramando. O controle da percepção não pode seralcançado se for reconhecido, o que fez com que proli-ferassem os controles perceptivos em níveis conscien-tes e inconscientes (...) A suscetibilidade humana àpersuasão ideológica é baseada na promessa eternamen-te não cumprida de sentido e ordem, uma resposta es-tereotipada à solidão, à monotonia, ao medo e às amea-ças de fome, doença, insegurança e caos político, moralou social. Estas ameaças são incessantemente suscita-das pela mídia comercial. A mensagem constante damídia com estas ameaças mantém a busca compulsivapor perguntas e respostas, causas e efeitos, e compro-missos ideológicos. A mensagem da mídia indica a úl-tima direção do consumo, divertimento, da política, dosnegócios, da indústria, das questões militares e da reli-gião, com suas relativas promessas de reduzir a ansie-dade” (Key, 1993:313-319).

    Nesse sentido, a mídia transformou-se no intelectualorgânico das classes, grupos ou blocos de poder domi-nantes no mundo. Um intelectual orgânico complexo,múltiplo e contraditório, mas que atua mais ou menosdecisivamente por sobre os partidos políticos, os sindica-tos, os movimentos sociais e as correntes de opinião pú-blica. Enquanto estes continuam a operar principalmenteno âmbito local e nacional, a mídia atua e predomina tam-bém em escalas regional e mundial, formando e confron-tando movimentos de opinião pública, em diferentesesferas sociais – que compreendem tribos, nações e nacio-nalidades – ou atravessando culturas e civilizações. “Aesfera da mídia faz tempo que conta com suas corpora-ções globais, as quais tendem a tornar-se crescentementemaiores e mais poderosas, à medida que o século correpara o seu fim” (Sreberny-Mohammadi, 1991:123).

    Sob muitos aspectos, a mídia transnacional acaba trans-formando-se também no intelectual orgânico dos grupos,classes ou blocos de poder atuantes em escala mundial; sem-pre com fortes ingerências em assuntos sociais, econômi-cos, políticos e culturais também regionais e nacionais.

    “As mudanças que abalam o mundo criam inseguran-ça. Elas exigem que o povo reavalie e mude de atitudes,de modo a administrar as novas mudanças. O povo buscaorientação e informação, mas tem também uma forte ne-cessidade de entretenimento e recreação. Para fazer facea essas diversas necessidades, uma corporação global damídia tem responsabilidades especiais. A comunicação éum elemento básico de qualquer sociedade. A mídia tor-na essa comunicação possível, ajuda a sociedade a com-preender as idéias políticas e culturais, além de contribuirpara formar a opinião pública e o consenso democrático.Hoje, a sociedade usa a mídia para exercer uma forma deautocontrole. Com estas responsabilidades como pano defundo, os executivos da mídia devem estar cientes das suasobrigações, respeitando princípios éticos em suas ativi-dades” (Bertelsmann, 1993:4). Sem esquecer a mobiliza-ção de todos os tipos de tecnologias, ou de todos os re-cursos da razão instrumental, para realizar eficazmenteos meios e os fins destinados a garantir o “autocontrole”da sociedade. “Para combater a resistência do público àtelevisão e à publicidade, a manipulação das emoçõestornou-se ainda mais sofisticada. Ciências sociais e téc-nicas psicológicas foram acrescentadas ao arsenal, com oobjetivo de condicionar o comportamento humano”(Bagdikian, 1993:223).

    Note-se que a atuação da mídia está sempre acom-panhada ou complementada pela publicidade, que pu-blicidade não tem sido apenas de mercadorias, no sen-tido convencional. A publicidade está presente napolítica, religião e diferentes esferas da cultura, tantoquanto nos bens de consumo corrente. Ela envolve a

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    informação e a interpretação de coisas, gentes e idéias,de tal modo que o leitor, o ouvinte, o espectador, aaudiência, ou o público são informados, orientados,induzidos, subordinados ou manipulados. Assim, nas-ce o consumismo, crescente e avassalador, sôfrego ecompulsivo. Mais que isso, a publicidade devido aomodo pelo qual induz ao consumo faz com que indiví-duos, coletividades e multidões, consciente ou incons-cientemente, elejam o consumismo como um exercícioefetivo de participação, inserção social ou mesmo decidadania. São muitos os que se comportam e imagi-nam como se o consumismo fosse o mais imediato,objetivo e evidente exercício de cidadania.

    Deve-se lembrar que a mídia, como meio de comuni-cação, informação e interpretação, envolvendo publici-dade e consumismo, ou a indústria cultural, tem sido emtodos esses e outros níveis, cada vez mais imagem, muitomais do que palavra. Ou seja, a mídia compreende pala-vras, sons, cores, formas e movimentos, em geral articu-lados na profusão das imagens. Na época do globalismo,quando também se intensificam e generalizam as tecno-logias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, o mundoestá sendo colocado sob o signo da imagem. Em largamedida, é assim que a realidade social, econômica, polí-tica e cultural, nos âmbitos local, nacional, regional emundial transforma-se em realidade virtual.

    “A preeminência da palavra, dos grandes relatos e tam-bém do discurso político tem sido nos anos recentes subs-tituída pela imagem. Vivemos imersos em uma cultura daimagem, que altera a idéia que fazemos da política. Parabem ou por mal, já não podemos pensar a política à mar-gem da televisão. Quando o dom da palavra é inibido pelamanipulação da imagem, mudam as estruturas comunica-tivas nas quais se apóiam tanto as relações de representa-ção como as estratégias de negociação e decisão. As téc-nicas de marketing não substituem, mas modificam acapacidade decisória do cidadão. Enquanto os políticoscompetem empenhadamente pela atenção, sempre limita-da, do espectador, este deve enfrentar mudo a invasão deestímulos. Fragmentada em milhares de instantâneosinconexos, a política acaba sendo reconstruída como umcaleidoscópio de flashes. Há uma superoferta de informa-ção que não faz senão ressaltar a erosão dos códigos deinterpretação. Isto nos remete aos desafios que enfrentamas culturas políticas. Além do seu impacto estritamentepolítico, a televisão ilustra a decomposição dos códigoscom os quais habitualmente interpretamos o mundo. Umaavalanche de imagens fugazes e repetitivas dilui a reali-dade, ao mesmo tempo em que a torna avassaladora. Odesconcerto do nosso “sentido de realidade’’ reflete o re-dimensionamento das noções de espaço e tempo’’(Lechner,1996:68).

    Esse é o contexto em que o ouvinte, o telespectador, aaudiência ou o público podem ficar mais ou menos inde-fesos diante das forças predominantes na sociedade. Fi-cam preparados para tomar o consumismo como exercí-cio efetivo de cidadania. Consideram muito do que é arealidade virtual como se fosse experiência, vivência ouexistência, deleitando-se ou indignando-se no exercícioda práxis imaginária.

    O cartão de crédito torna-se, de fato e de direito, o car-tão de identidade e cidadania de muitos, em níveis nacio-nal e mundial. A credibilidade do passageiro, viajante,turista, consumidor, cliente ou outra modalidade de in-tercâmbio e circulação social está relacionada à carteirade identidade, ao título de eleitor, à carteira de trabalho,ao passaporte e ao cartão de crédito. Em praticamentetodas as partes do mundo, esses e outros documentos ousignos entram no processo de caracterização ou qualifi-cação do indivíduo, juntamente com a idade, sexo, cor,língua, religião e outros signos. O que ocorre no mundocontemporâneo, e em escala acentuada e generalizada, éque o cartão de crédito torna-se o principal documentode identidade, credibilidade ou cidadania, transformandoo seu portador em cidadão do mundo, mas enquanto con-sumidor, alguém situado no mercado. E o consumismo,por implicação, transforma-se em expressão e exercíciode cidadania, cotidiana, recorrente e universal. Assim seforma o cidadão do mundo, o cosmopolita, “alheio” à po-lítica, mas produzido no jogo do mercado, como uma es-pécie de subproduto da lógica do capital.

    São vários os indícios de que a política mudou de lu-gar. Na medida em que a sociedade nacional transformou-se em província da sociedade global, são evidentes osdeslocamentos ou esvaziamentos dos princípios de sobe-rania, hegemonia e cidadania, sem esquecer democracia.Se é verdade que esses princípios situam-se classicamen-te no âmbito da sociedade nacional, do Estado-Nação, oudo contraponto sociedade civil e Estado, então fica evi-dente que a soberania, a hegemonia, a cidadania e a de-mocracia mudaram de lugar, perderam significados, ousimplesmente transformaram-se em ficções jurídico-po-líticas de um mundo pretérito.

    Para esclarecer este problema, no que se refere à sobe-rania, hegemonia, cidadania e democracia, cabe mergu-lhar na análise do que é ou pode ser o globalismo, com-preendendo não só a emergência de estruturas mundiaisde poder, mas também a emergência de uma incipiente,mas evidente, sociedade civil global. Já são evidentes al-guns indícios de uma sociedade civil de âmbito global. Odesenvolvimento das relações, processos e estruturas dedominação e apropriação, com alcance mundial, indica aformação de uma configuração geoistórica, isto é, simul-taneamente social, econômica, política e cultural. São

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    relações, processos e estruturas envolvendo diretamenteas condições e as possibilidades de construção ou recons-trução da soberania, hegemonia, cidadania e democracia,em escalas nacional e mundial.

    Na época do globalismo, crescentemente dinamizadopelas tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas,a política se desterritorializa, realizando-se principalmentena mídia impressa e eletrônica, compreendendo o marke-ting, o videoclip, o predomínio da imagem, da multimí-dia, do espetáculo audiovisual. Ao mesmo tempo que sedescola, desenraíza ou desterritorializa, a política trans-forma-se em realidade virtual. Tanto é assim, que o dis-curso político torna-se cada vez mais exíguo e fragmen-tário, com apelos ao coloquial, afetivo, privado, suave ouinócuo. Muitas vezes parece réplica ou caricatura do pro-grama de auditório, do show de televisão ou da telenove-la. Está longe do debate político partidário, do comício,da praça pública, do público ou do povo, estes como co-letividades de cidadãos no sentido “clássico”. Transfor-ma o público e o povo em ouvintes ou telespectadorespassivos e inermes, maravilhados ou indignados. Mas unse outros, o político e o público, o partido e o povo, trans-figurados em realidade virtual, uma ficção paródica, umsimulacro pasteurizado.

    Esse é um mundo sistêmico e tem sido crescentementearticulado, em vários níveis e em diferentes configurações,com base nos ensinamentos e nas tecnologias cibernéticas,eletrônicas e informáticas. A partir dos interesses que pre-dominam na economia política mundial, mas influenciandoa política e a cultura, desenvolve-se uma crescente e abran-gente articulação sistêmica do mundo. As corporações trans-nacionais, as organizações multilaterais, os blocos regionaise os Estados nacionais não só se baseiam em tecnológicassistêmicas como também conjugam-se em moldes sistêmi-cos, em suas geoeconomias, em seus mapas do mundo. E éclaro que essa ampla e crescente articulação não se restringeà nova divisão transnacional do trabalho e da produção.Transborda para todos os setores da vida social, compreen-dendo a política, a cultura e a religião, isto é, o cristianismo.Conforme a conjuntura, em âmbito local, nacional ou regio-nal, a articulação sistêmica intensifica-se e generaliza-se. Issoestá ocorrendo cotidianamente, nas diretrizes e atividadesde corporações transnacionais, organizações multilaterais,blocos regionais e Estados nacionais; em geral, à revelia deamplos setores populares das sociedades nacionais, compre-endendo grupos e classes subalternos, partidos políticos emovimentos sociais.

    É claro que o mundo sistêmico não é monolítico. Estáatravessado por diversidades e desigualdades, naciona-

    lismos e fundamentalismos, blocos regionais e imperia-lismos. Juntamente com os processos de integração, de-senvolvem-se processos de fragmentação. A rigor, o glo-balismo tem agravado as condições sociais e engendradonovas, em todos os níveis, nos quatro cantos do mundo.Mas subsistem e desenvolvem-se, simultaneamente, asarticulações sistêmicas, organizando o globalismo desdecima, desde os interesses dos blocos de poder dominan-tes e contraditórios que prevalecem no mundo.

    É claro que as condições de vida e trabalho, assimcomo as de luta e emancipação, das classes subalter-nas situam-se nesse cenário. Mais do que isso, as con-dições de luta e emancipação dos grupos e classes su-balternos, em todo o mundo, dependem da inteligênciadas configurações e dos movimentos da sociedade glo-bal, formando-se como o novo palco da história. Aí pas-sam a se desenrolar outras e novas lutas sociais, alémdas que se desenvolvem habitualmente em níveis lo-cais, nacionais e regionais. Mais do que isso, as lutaslocais, nacionais e regionais adquirem outros signifi-cados, como ingredientes e expressões das lutas queocorrem em escala mundial. Esse é também o cenáriodas ressurgências mundiais do cristianismo e islamismo,tanto quanto das manifestações de nazifascismo. Esseé o cenário em que emergem as manifestações sociais,econômicas, políticas e culturais do que se pode deno-minar de neo-socialismo. Por enquanto, no entanto, aglobalização pelo alto, inclusive no que se refere à suaorganização sistêmica, está sendo articulada pelosideais e pelas práticas de cunho neoliberal. São váriasas ideologias políticas, assim como as utopias, que as-sinalam aspectos fundamentais das configurações e dosmovimentos desse novo palco da história. Esse é o palcono qual a política está sendo reterritorializada.

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    BAGDIKIAN, B.H. O monopólio da mídia. Trad. de Maristela M. de Faria Ri-beiro. São Paulo, Scritta Editorial,1993, p.224.

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    HELD, D. Democracy and the global order (from the modern state tocosmopolitan governance). Cambridge, Polity Press, 1995, p.136.

    KEY, W.B. A era da manipulação. Trad. de Iara Biderman. São Paulo, ScrittaEditorial, 1993.

    LECHNER, N. “Por que la politica ya no es lo que fue?”, Leviatán (Revista deHechos e Ideas). Madrid, Fundación Pablo Iglesias, n.63, 1996, p. 63-73.

    SREBERNY-MOHAMMADI, A. “The global and the local in internationalcommunications”. In: CURRAN, J. e GUREVITCH, M. (ed.) Mass mediaand society. Londres, Edward Arnold, 1991, p.118-138.

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    A DIMENSÃO POLÍTICA DADESCENTRALIZAÇÃO PARTICIPATIVA

    MARCO AURÉLIO NOGUEIRAProfessor de Ciência Política da Unesp e Pesquisador Sênior da Fundap

    esde meados dos anos 70 e, de modo ainda maisacentuado, após o início efetivo da redemocrati-zação do país, a idéia de descentralização tem

    sido uma constante na vida brasileira, ocupando lugarparticularmente relevante na agenda de reformas do se-tor público, sobretudo no que se refere ao problema daformulação e implementação de políticas sociais.

    Como tem sido enfatizado por diversos pesquisadores,estabeleceu-se uma certa confusão entre descentralização,democratização e participação, como se a descentraliza-ção contivesse em si mesma o impulso necessário parafrear o autoritarismo, democratizar a sociedade e ampliara participação dos cidadãos. É que a descentralização,como valor e como proposição operacional, acabou sen-do historicamente determinada pela luta em favor da de-mocratização, tendendo a ser vista como instrumento dela,já que direcionada para reduzir uma intervenção estatalarbitrariamente centralizadora, fragmentada, iníqua e ex-cludente. Ou seja, “a luta pelo fim do Estado autoritário ede seus mecanismos e arranjos de poder fortementecentralizadores fez com que a descentralização se tornas-se, para muitos, sinônimo incontestável de democracia”,fator que “levaria, por si só, a maior eqüidade na distri-buição de bens e serviços e a maior eficiência na opera-ção do aparato estatal” (Silva, 1995:22).

    A Constituição de 1988, como se sabe, desempenhouimportante papel na legitimação do princípio da descen-tralização, tanto ao definir um novo tipo de arranjo fede-rativo com significativa transferência de decisões, fun-ções e recursos do Executivo Federal para os estados emunicípios, quanto ao consagrar a fórmula, estabelecidanos artigos 194 e 204, da “descentralização participati-va” para a gestão da nova área da seguridade social (saú-de, previdência e assistência social). Com isso, a descen-

    tralização, que se vinha afirmando desde o final dos anos70, adquiriu características particulares: não se trata maisde uma descentralização meramente técnica, fiscal ouadministrativa, mas de uma descentralização que tambémse quer de natureza política, já que se pretende colada àparticipação da sociedade. Com o que ficou ainda maisreforçada sua vinculação à idéia de democratização, já queestaria direcionada para ampliar a participação das comu-nidades e “aproximá-las” do governo, propiciando assimum maior controle das ações e decisões governamentais,uma gestão pública mais justa e menos autoritária, e as-sim por diante.

    Estamos frente, portanto, a uma proposta que porta con-sigo uma dupla característica. A descentralização que setenta hoje implementar deseja transferir encargos e, aomesmo tempo, co-responsabilizar a sociedade civil nagestão pública. Ou seja, ela deseja não apenas “aliviar”as instâncias centrais de governo (“desresponsabilizá-las”e desonerá-las em nome da eficiência, da eficácia e daefetividade), mas também envolver a sociedade civil – comtoda sua complexidade associativa e com todos seus inte-resses – no processo mesmo da gestão.

    Acontece que descentralização e participação não sãotermos, e muito menos operações, necessariamente com-plementares. Nem toda descentralização leva automati-camente a maior participação. A descentralização podeser “imposta”, estabelecida. A participação não, pois de-pende de fatores histórico-sociais e de graus de amadure-cimento político-ideológico e organizacional que muitasvezes só aparecem após um longo período de tempo. Comojá foi observado, “a participação não se descentraliza. Elaexiste ou não no processo, não cabendo ao órgão centralconcedê-la ou delegá-la”. Embora prevista em diversosdispositivos descentralizadores, a participação da comu-

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    nidade nem sempre se efetiva; muitas vezes, acaba até mes-mo por ser abertamente manipulada por “oligarquias” ougrupos de interesse. “O que a descentralização permite éuma melhor canalização ou vocalização das demandassociais da população, mas isso só ocorre em comunida-des que estão mobilizadas na defesa de seus interesses.Assim, a descentralização pode ser um instrumento depoder das comunidades organizadas, mas também podeser um instrumento de opressão das comunidades combaixo grau de consciência e organização” (Medici,1995:96).

    Isso significa que a implementação de um modelo degestão descentralizada e participativa está longe de seruma operação simples, que dependa exclusivamente deboas doutrinas, refinadas tecnologias gerenciais, recur-sos metodológicos modernos ou mesmo de uma impetuo-sa vontade política.

    A operação não é simples, antes de tudo, porque dizrespeito tanto ao envolvimento de instâncias sob contro-le do Estado – como prefeituras e câmaras municipais –,quanto ao envolvimento de entidades, movimentos e di-nâmicas societais que fogem da esfera estatal. Nessa me-dida, a gestão pública politiza-se fortemente, expondo-sepor inteiro ao contato com os interesses organizados dasociedade. Em decorrência, todo o esforço por gerenciaro processo de descentralização é amplificado, passando arequerer novos recursos e energias. Isto porque é muitomais difícil descentralizar de modo participativo do quesimplesmente “municipalizar” ou remeter a responsabili-dade pela gestão dessa ou daquela política para outrasinstâncias de governo que não as “centrais”.

    Além disso, a operação é tão mais complexa na medi-da em que implica uma espécie de “perda”, abdicação ou“roubo” de poder: do centro para entidades periféricas,do Estado federal para as instâncias subnacionais, do es-paço da democracia representativa para o espaço da “de-mocracia direta”, e assim por diante. Este fato que, numpaís como o nosso, cuja estrutura administrativa e cujoprocesso decisório estão tomados por um jogo federativofracamente cooperativo, cortado por práticas predatóriase por uma forte manipulação política dos fundos públi-cos, representa uma autêntica reviravolta. Precisamentepor isso, existem motivos de sobra para se imaginar que aimplementação efetiva de um modelo de gestão descen-tralizada e participativa não só encontrará inúmerasresistências políticas e culturais, como também far-se-áacompanhar, por um lapso de tempo difícil de estimar, dasobrevivência de práticas, mentalidades e valores nostál-gicos de uma época pretérita, mais centralizadora.

    Por outro lado, a operação também fica complicada pelolado da sociedade civil e dos movimentos sociais. É queestes, ao serem conclamados a participar do processo

    descentralizador, acabam por ser envolvidos nos compli-cados e desgastantes meandros da gestão pública. Ocorre,assim, uma espécie de requalificação da esfera da partici-pação: dilata-se a vertente dos “interesses” em detrimentoda opinião política, sobrecarregam-se os protagonistas deobrigações técnico-gerenciais em prejuízo das atividadesde esclarecimento e educação política. Promove-se, destaforma, uma certa “despolitização” de parcela significati-va do movimento social de cidadania, que é arrastado paraa vocalização de interesses tópicos, em geral particularis-tas, direcionados muito mais ao fustigamento dos gover-nos do que à oposição democrática ao Estado. Aumentam,além do mais, os “custos da participação” mencionadospor Carlos Estevam Martins, já que aqueles que desejamparticipar ficam obrigados não só a ampliar o tempo dedi-cado a deslocamentos e reuniões como também, e sobre-tudo, a arcar com o custo derivado da necessidade de acu-mular e absorver novas informações, regra geral denatureza técnica mais sofisticada (Martins, 1994:215-217).Dado que a operação resulta em poucos ganhos de escalaimediatos – seja no campo específico da melhoria da gestãopública, seja no que se refere ao fortalecimento das organi-zações “civis” –, o risco de desmobilização e retrocesso nomovimento de cidadania cresce expressivamente.

    Em suma, com o binômio descentralização/participa-ção imagina-se não só melhorar a performance do serviçopúblico em termos de eficiência, eficácia e efetividade, mastambém democratizar o Estado. Ou seja, formou-se entrenós uma espécie de consenso: ou se consegue descentrali-zar e estabelecer critérios participativos na gestão públicaou esta continuará definhando, sem conseguir cumprir suasfunções e atender às expectativas da sociedade. A pers-pectiva da descentralização, na verdade, foi-se difundin-do com tanta firmeza na área pública, nos recintos acadê-micos e nos ambientes estruturados pelos movimentossociais que parece ter adquirido força suficiente para im-por-se categoricamente e converter-se em padrão efetivode gestão.

    Os inegáveis méritos técnicos, gerenciais e políticosda proposição, porém, nem sempre são analisados criti-camente pelos que estão envolvidos nos processosdescentralizadores. São tratados ora como itens de umaboa doutrina, ora como conquista de um movimento pelacidadania que nem sempre faz sentir sua presença. Entreos que se empenham para que a proposta descentraliza-dora avance, poucas vezes tem-se percebido, por exem-plo, a necessidade de se fixar critérios rigorosos para adescentralização, com a conseqüente banalização do temaconexo da coordenação. Tampouco costumam ser consi-derados os variados aspectos de ordem política e culturalque podem bloquear ou “corromper” os modelos descen-tralizados de gestão, transformando-os no avesso do aves-

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    so, em formas disfarçadas de clientelismo, ineficiência einoperância. Além do mais, como a descentralização ten-deu a se tornar um valor de “todos” – ajustando-se aosdiscursos liberais, conservadores ou social-democratas,assim como às preocupações dos que querem resolver acrise fiscal e financeira do Estado e aos programas dosque desejam ampliar as margens de justiça social –, tor-nou-se vital perceber a substância real (teórica e política)das diversas propostas descentralizadoras, o que nem sem-pre é levado em conta.

    Pior que isso, porém, é constatar que, embora seja pos-sível reconhecer que a descentralização das políticas so-ciais já está se tornando uma realidade no Brasil, seusefeitos “no que diz respeito à igualação de oportunidadese à inclusão econômico-social têm sido extremamente li-mitados” (Albuquerque e Knoop, 1995:1).

    Além do mais, a vida não parece ser maleável ao dis-curso: apesar de se falar tanto em descentralização e par-ticipação, pouco se avança no sentido da implantação efe-tiva de estruturas descentralizadas e participativas.Pode-se, portanto, perguntar: dado o consenso que pare-ce ter-se formado em torno da questão, o que está blo-queando e dificultando o avanço da descentralização par-ticipativa no Brasil?

    COMPLICANDO O ARGUMENTO

    Para começar a discutir esta questão com alguma con-sistência, é interessante recordar rapidamente uma dascaracterísticas mais marcantes da dinâmica brasileira daúltima década. Ao longo desses anos – que, como sabe-mos, coincidem com a passagem do país para uma fasemais densa de reorganização democrática –, registra-se umgrande predomínio das políticas de estabilização sobretodos os demais esforços governamentais. O combate àinflação tornou-se estratégico na vida brasileira e na per-formance do Estado. E sabemos muito bem que toda equalquer política de estabilização requer um conjunto de“sacrifícios” da sociedade, mas também um conjunto de“adaptações” do próprio aparato público, que tende a seconcentrar fortemente no combate à inflação e a rever umasérie de questões estratégicas (a do déficit público, porexemplo). Ao mesmo tempo, na experiência brasileira, nemsempre a busca de estabilização tem conseguido preser-var o desenvolvimento; trabalha-se com a idéia de que aeconomia não pode “aquecer-se” e de que o Estado preci-sa arrefecer seu ímpeto desenvolvimentista e atrofiar seusmecanismos de regulação e intervenção, de modo a redu-zir gastos, encargos e dívidas. Seja como for, o fato é queo predomínio das políticas de estabilização na agenda go-vernamental não tem facilitado a implementação de ou-tras políticas no âmbito do Estado.

    Embora se reconheça que o fim da inflação é um pres-suposto efetivo para que novas políticas possam ser ado-tadas e para que se alcance um padrão mais racional eprodutivo de ação estatal, também é evidente que o com-bate à inflação não se faz com base em um único métodoou política, podendo ser mais cruel ou menos cruel com odesenvolvimento econômico, com os setores desfavore-cidos e com o futuro do país. Ao menos em tese, quantomais uma política de estabilização utiliza mecanismosrecessivos e socialmente injustos e quanto mais é conce-bida de modo exclusivista, como a “grande meta” dosgovernos, mais ela tende a hegemonizar as ações gover-namentais e a dificultar a adoção de outras políticas pú-blicas.

    A realidade seria simples se o problema fosse apenasesse. O problema é muito mais grave, pois as diversaspolíticas de estabilização adotadas na última década (ex-ceção feita à primeira fase do Plano Cruzado), além decomplicarem o delineamento e a implementação de polí-ticas por parte dos governos, acabaram por ser formatadasem um quadro marcado por uma série de problemas e pelaaceleração das múltiplas crises típicas do final do séculoXX, que problematizaram de modo muito particular asrelações Estado-sociedade e política-cidadania.

    As crises deste fim de século estão de tal modo en-trosadas que é como se estivéssemos diante de uma únicagrande crise. Não há mais dimensões da vida que estejamdistantes do fenômeno. A crise é tão forte e está tão gene-ralizada que cria a sensação de estarmos inteiramente es-magados por ela, incapacitados para encontrar qualquertipo de refúgio ou saída. A tal ponto que falar em criseacaba sendo muitas vezes um exercício sem sentido, a jus-tificativa para todo tipo de desacerto, inação, incúria, pas-sividade e desorientação. Apesar disso, é impossível nãodar a devida ênfase à crise em que nos encontramos. Ela éreal e precisa ser analisada com todo rigor. Precisa, tam-bém, ser tratada como um fato abrangente, repleto denegatividade mas também de positividade: afinal, toda crisetraz consigo elementos de questionamento e renovação queajudam a dissolver cristalizações conservadoras a impul-sionar a criatividade e a preparar o futuro. Em suma, crisenão é sinônimo de morte e pode, muitas vezes, ser vividacomo o início de um novo caminho.

    A primeira dessas crises – a mais importante e segura-mente a que condensa as demais – é a crise do Estado. Acrise do Estado, como sabemos, tem várias dimensões.Trata-se de uma crise da intervenção do Estado na eco-nomia, de uma crise dos processos de regulação, de umacrise na capacidade de formular, implementar e planejarpolíticas, de uma crise da representação política. Trata-se, pois, de uma crise geral, não de uma crise que digarespeito a esse ou aquele governo, nem que tenha sido

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    provocada por um ou outro erro governamental, por umou outro defeito político facilmente identificável. É umacrise de natureza estrutural que vem, digamos assim, domundo, chega ao Brasil e se combina com algumas ca-racterísticas da história nacional bastante cristalizadas. Acrise do Estado é também uma crise da administração, doaparato administrativo com que se governa. O que signi-fica dizer que é uma crise da gestão, do funcionalismo,da forma de organização da burocracia pública, e assimpor diante. É ainda uma crise da dimensão política doEstado, das instituições com as quais se viabilizam as re-lações entre Estado e sociedade, regulam-se os conflitosentre os grupos e processam-se as demandas e reivindi-cações societais. Como já acentuou Martins (1994:304),a crise manifesta-se sob a forma de uma desarticulação:“Há um desencontro entre a sociedade e o Estado. A so-ciedade não se identifica com o Estado existente, não oapóia nem o prestigia. O Estado, por sua vez, não conse-gue reagir e, muito menos, impor-se, assumindo a posi-ção que lhe cabe na liderança do processo nacional.” Exa-tamente por isso, a crise do Estado – instituição centralda sociedade – espelha e exponencia a crise dos própriosfundamentos da ordem social.

    Uma segunda crise é a crise da federação, que integraa crise do Estado, mas tem uma dimensão bastante par-ticular. Hoje, no Brasil, a relação entre a União, os esta-dos e os municípios já não obedece, rigorosamente, a umpadrão. As regras a partir das quais os níveis da federa-ção se relacionam já não são suficientes para fixar nexosvinculatórios, responsabilizações recíprocas ou repartiçõesnegociadas de encargos e receitas. O pacto que deveriasustentar a federação não funciona mais.

    São vários os sintomas dessa crise da federação. Semquerer nos deter em um assunto que tem ocupado a aten-ção de tantos pesquisadores,1 vale destacar, para efeitoda discussão que aqui nos interessa, alguns pontos.

    O mais forte indicador da crise da federação é a inope-rância reformadora do governo federal. Apesar de firme-mente apoiado na disposição de realizar profundas refor-mas estruturais na vida brasileira, o Executivo federal nãoconsegue superar as dificuldades e resistências que seantepõem insistentemente a seus projetos. Independente-mente de indicar a maior ou menor dose de habilidadecom que o governo se porta neste terreno, a inoperânciagovernamental revela com clareza que o Executivo fede-ral – “centro” da federação – já não mais opera como ar-ticulador dos interesses da sociedade, nem como fator deprocessamento de seus conflitos e reivindicações.

    Mas a inoperância reformadora do governo federal, alémde espelhar a crise da federação, é sobredeterminada poroutro dado da situação política nacional: é que o sistemapolítico não facilita a formação de bases parlamentares

    sólidas para os governos, seja pela excessiva “liberdade”que é concedida aos políticos vis-à-vis seus partidos, sejapelos efeitos fragmentadores derivados do modo mesmocomo são organizadas as eleições, invariavelmente carac-terizadas, dentre outras coisas, por uma forte competiçãointrapartidária e por uma disputa política bastante desre-grada (Nicolau, 1993). As reformas empacam, sobretudo,porque o sistema federativo, em sua dimensão imediata-mente política, não possibilita maiores sintonias entre osníveis federal, estadual e municipal: o que uma dada coli-gação partidária define como diretriz no “centro”, porexemplo, não é necessariamente seguido nas instânciassubnacionais, que funcionam em outro ritmo, com outrasprioridades, com base em coligações diferentes, etc. Atensão entre os acertos de “cúpula” e as motivações dasbases estaduais e municipais explode no Congresso Na-cional, inviabilizando qualquer programação de reformas.Não se trata, neste caso, apenas de inoperância do Execu-tivo federal (ou de sua base parlamentar), mas de uma ino-perância reformadora generalizada.

    Isso significa que a crise da federação alcança clara-mente o plano da representação política. Como se sabe, oscidadãos dos diversos estados federados participam daesfera política superior da nação conforme regras institu-cionais politicamente estabelecidas. No caso brasileiro, osestados se fazem representar na Câmara dos Deputadosde modo proporcional à sua população, de modo que ne-nhuma das unidades federadas tenha menos de oito ou maisde 70 deputados. Já o Senado Federal é composto de re-presentantes dos estados eleitos segundo o princípio ma-joritário: cada unidade elege três senadores. Essa sistemá-tica, como tem sido apontado por diversos estudiosos(Nicolau, 1993; Lima Jr., 1991; Trindade, 1992), acaboupor introduzir na representação política brasileira umaacentuada “desproporcionalidade” na composição das ban-cadas de cada estado na Câmara dos Deputados, fato ge-rador de diversas distorções: super-representação dos es-tados menos populosos (regiões Norte, Nordeste eCentro-Oeste); sub-representação das regiões Sul e Sudes-te; peso diferenciado do voto nas eleições para deputadofederal. Em decorrência, acaba por ser deformada a com-posição partidária da Câmara e impactada negativamentea disposição “modernizadora” do Poder Legislativo, já queos partidos mais “ideológicos” tendem a sofrer mais como sistema, pois captam votos sobretudo nos grandes cen-tros urbanos, regra geral localizados nos estados maiores.Desdobramento quase inevitável: cresce a perda de confi-ança da opinião pública na política e aumenta a animosi-dade para com a idéia mesma de representação, para comos próprios institutos representativos.

    O espaço da governabilidade, além do mais, é con-dicionado hoje pela crise fiscal do Estado brasileiro, agu-

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    dizada ao longo dos anos 80, em meio aos efeitos dareconstitucionalização do país, dos sucessivos planos deestabilização econômica e da negociação da dívida ex-terna. Em decorrência, o Executivo deixou de ser o gran-de investidor e o grande financiador, com o qual estavamtodos acostumados, e os recursos federais, relativamentediminuídos, passaram a ser intensamente disputados,muitas vezes de modo predatório e desregrado. Por outrolado, o menor protagonismo do Governo Federal estimu-lou o aprofundamento da disputa por recursos fiscais en-tre as instâncias subnacionais. Passou-se, assim, a viverem clima de desarranjo fiscal, exponenciado pela com-petição aberta entre estados e municípios no que se refe-re, por exemplo, à instalação de indústrias, à concessãode subsídios e vantagens tributárias. Isto desencadeouentre os governadores, e muitas vezes entre os prefeitos,uma verdadeira guerra de natureza predatória e liqui-dacionista, uma guerra que traz em si o germe da nega-ção da idéia mesma de federação. Vive-se em clima deleilão, para saber quem oferecerá mais vantagens aos in-vestidores, uma corrida desenfreada para se apropriar dosbenefícios decorrentes da instalação de uma empresa emuma dada região, seja em termos fiscais-tributários, sejaem termos de geração de empregos ou dinamização domercado (Affonso, 1995a).

    A dimensão fiscal da crise também ajuda a entender avelocidade com que se avançou, nos últimos anos, no ter-reno da descentralização, sobretudo no que se refere, comoé evidente, ao seu aspecto propriamente tributário. Se éverdade que a Constituição de 1988 promoveu uma ex-pressiva transferência de recursos fiscais para os estadose, sobretudo, para os municípios, também é verdade quea isto não correspondeu um progresso mais expressivo noque diz respeito à harmonização do processo de descen-tralização ou mesmo das relações federativas. Segundodiversos pesquisadores, não se sustenta a idéia de que anova Constituição proporcionou aos estados e municípiosganhos de receitas sem a contrapartida de encargos. O maiscorreto é afirmar que, ao longo dos anos 90, as esferassubnacionais de governo aumentaram sua capacidade fi-nanceira e assumiram maiores encargos, “embora de ma-neira descoordenada e diferenciada entre as regiões”.Passou-se a viver, no país, nos quadros de “um arranjofederativo razoavelmente descentralizado mas ainda nãoconsolidado, extremamente desorganizado e conflitivo”(Affonso, 1995a:67).

    Um último sintoma da crise da federação está no fatode que sociedade já não vê a burocracia federal como pro-tagonista efetiva do processo de desenvolvimento e deorganização do Estado, tal como ocorreu durante boa parteda história republicana posterior a 1930. Hoje, estão pos-tos em xeque sua idoneidade, seu “desinteresse”, sua ca-

    pacidade de manter-se impermeável às pressões cliente-listas. A burocracia federal, além do mais, tem sido siste-maticamente desorganizada pelas sucessivas tentativas dereformar “quantitativamente” a administração pública, aolongo da última década e meia. Acabou por se tornarmenos “competitiva” que as burocracias estaduais e mu-nicipais, cuja performance melhorou nos últimos anos,acompanhando a própria dinâmica do desenvolvimentoregional, com suas correspondentes necessidades de pla-nejamento e coordenação estatal.

    Esta combinação de crises – do Estado, da administra-ção, da federação, da representação política – está na basedo desajuste que se verifica no campo da descentraliza-ção. Embora prevista em lei e aceita como meta meritóriapor todos, a descentralização produz poucos resultados.Permanece no papel, a espelhar uma grave desarticula-ção política e societal. A espelhar, antes de tudo, umaespécie de “omissão” do centro, isto é, uma ausência decomando unificado, legitimado e em condições de coor-denar, planejar e viabilizar a descentralização. Como de-monstrou Marta Arretche ao analisar os principais pro-gramas sociais brasileiros, em nenhuma das áreas pôde-seregistrar a presença de uma “política deliberada de des-centralização por parte do governo federal”, com a con-seqüente confusão em termos de divisão de encargos,competências e recursos. Parte dos avanços que podemser observados, por exemplo, na área da assistência so-cial, deve-se a iniciativas de governos estaduais e muni-cipais, responsáveis por uma elevação da despesa públi-ca em programas assistenciais. “À ausência de uma direçãodo ‘centro’ soma-se o caráter heterogêneo e difuso dosinteresses envolvidos, o que dificulta enormemente a for-mação de uma coalizão pró-descentralização, com con-seqüências evidentes sobre o caráter errático do proces-so” (Arretche, 1996:55).

    Em suma, a descentralização participativa avança a du-ras penas, quando avança, em boa medida porque “falta”governo central, ou seja, faltam coordenação, regulaçãoe planejamento no que se refere à implantação do novomodelo de gestão. Opera, aqui, o paradoxo já apontadopor vários autores: para que a descentralização se com-plete é preciso mais (e não menos) governo central, ouseja, requer-se um movimento prévio de fortalecimentodo governo central. “Longe de implicar desestatização, adescentralização requer reestatização, vale dizer, purifi-cação do poder estatal, reconquista dos territórios inva-didos e reafirmação da singularíssima posição do Esta-do frente à vida dos homens em sociedade” (Martins,1994:310). Dado que o processo da descentralização secaracteriza invariavelmente pela reiteração de desigual-dades, por batalhas políticas e choques de interesses lo-cais, regionais e estaduais, ele está sempre na dependên-

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    cia da intervenção de uma instância superior, ao menosem tese, descolada dos particularismos e capaz de totalizaros termos em disputa: “A superação das dificuldades nãopode ocorrer apenas por iniciativa dos governos locais,dada exatamente sua heterogeneidade na capacidade demobilizar recursos próprios e dada a escala local de suaatuação. Apenas o governo central pode desempenhar essatarefa, sob pena de que se aprofundem as desigualdadesregionais” (Arretche, 1996:57). O princípio constitucio-nal da descentralização participativa, portanto, em quepesem seus méritos técnicos e a adesão generalizada deque desfruta, não se transforma em fato, acabando por seaproximar perigosamente daquela tendência à “descen-tralização desagregadora, desvirtuada e regressiva, que de-veria ser chamada de centrifugação” (Martins, 1994:297).

    A necessidade de se atribuir claras funções de coman-do e coordenação ao Executivo federal tem sido ampla-mente tratada pela literatura especializada. Assim, porexemplo, afirma-se que “só a União pode traçar uma es-tratégia nacional de combate à pobreza e de redistribui-ção de renda; só ela pode coordenar esforços de estados emunicípios; só ela pode estabelecer programas integra-dos e articular espacialmente as intervenções na área desaúde, educação, assistência e habitação” (Aureliano,1997:53). Do mesmo modo, reconhece-se que “não hárazão para pensar que descentralização implique inexo-ravelmente redução da importância da instância nacional.Ela pode resultar seja na criação de novos âmbitos de ação,seja na definição de novos papéis normativos, regulado-res e redistributivos que convivam com a expansão dasresponsabilidades de estados e municípios” (Almeida,1996:16).

    Cabe reconhecer, portanto, que “o que está hoje emjogo não é mais a disjuntiva descentralização e centrali-zação, mas a definição de qual descentralização e, princi-palmente, para que descentralizar”. Trata-se de saber comodescentralizar uma federação assentada sobre profundasdisparidades regionais sem comprometer sua articulação,que é, em última instância, “sua razão de existir” (Affonso,1995a:68).

    Chega-se, assim, a um verdadeiro ponto arquimediano.Se é verdade que o Estado está em crise e, dentro do Es-tado, a administração e a representação estão em crise,como é possível avançar, rapidamente, em termos de for-mulação e implementação de novas políticas públicas ouem termos de introdução de novas estruturas administra-tivas e de novos procedimentos gerenciais? Se há um mal-estar na federação, como é que as coisas poderiam ga-nhar velocidade maior? Como o processo poderia ser mais“simples” ou harmonioso? Embora não impeçam que sereconheçam avanços e conquistas, estas são questões quenos obrigam a admitir que os avanços dependem de mui-

    to empenho e têm ocorrido ao sabor de iniciativas desco-nectadas, erráticas, como se as energias reformadoras deque dispomos colidissem com uma realidade que parececonspirar contra a implementação de todo e qualquer tipode reforma.

    EFEITOS DA GLOBALIZAÇÃO

    Devemos agregar a esse quadro o que tem sido cha-mado, nos últimos tempos, de processo de globalização.Impossível não fazê-lo, mesmo que pela enésima vez. Éque a globalização produz efeitos que complicam aindamais as relações Estado-sociedade.

    Globalização é o conceito que se tem utilizado paradefinir a atual fase histórica de organização das relaçõesinternacionais e de estruturação das economias nacionais.Corresponde, portanto, ao processo de objetivação docapital. A globalização, nesse particular, radicaliza umadas mais típicas características constitutivas do capitalis-mo: a internacionalização, ou seja, a abertura e a integra-ção dos mercados nacionais. Embora contenha em si ogerme de uma “nova ordem mundial”, a globalização,sobretudo em seus momentos iniciais, provoca especial-mente desorganização e desordem. Ela se impõe ao Bra-sil porque o Brasil faz parte do mundo e deseja se inte-grar ao mundo. Queremos que as portas do mundo seabram para o país e acabamos por abrir as portas do paíspara o mundo. Somos invadidos pelo mundo: uma ava-lanche de produtos importados, intensas transações co-merciais e financeiras, empresas estrangeiras se instalan-do, associadas ou não a empresários nacionais, inúmerasfusões e incorporações. Mas as coisas vão além. O mun-do entra no país pela via da quebra da soberania; não ape-nas da econômica, mas da soberania como princípio maisgeral. Nas palavras de um atento analista, “global e glo-balização são termos que não devem ser confundidos cominternacional e internacionalização. Global e globaliza-ção referem-se não a relações entre nações, mas a forçassupranacionais que, sem ter compromissos maiorescom suas bases territoriais de origem, condicionam portoda parte o funcionamento das sociedades nacionais”(Martins, 1997:20).

    O Estado nacional hoje, em qualquer lugar do mundo– mais em alguns países, menos em outros –, já não podeser dono de suas fronteiras nem senhor absoluto de suasações, tem menos autonomia para decidir qual políticaadotar, como alocar seus recursos, como se relacionar comseus credores, etc.

    É acentuado o impacto negativo de tal processo sobreo desempenho do Estado. O Estado, que por sua própriatrajetória histórica já não vinha a pleno vapor, chega aofinal do século buscando estabelecer um novo tipo de re-

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    lação com o mundo e, com isso, tendo de empenhar ener-gias – energias intelectuais, energias técnicas, recursoshumanos, recursos financeiros – para monitorar essa novarelação. A globalização, em suma, desorganiza o Estado.Faz com que esta instituição mergulhe em grave proces-so de esvaziamento e perca funções, recursos e poder:“Faltam-lhe, cada vez mais, condições para controlar suasfinanças. Falta-lhe também capacidade para atuar comomotor do desenvolvimento já que as decisões de investi-mento, assim como a geração de progresso técnico, sub-metem-se cada vez menos a critérios decorrentes de al-gum tipo de planejamento governamental. Faltam-lhe,finalmente, os meios para atender, de modo satisfatório,as necessidades de educação, saúde, habitação, segurida-de, meio ambiente e segurança pública” (Martins, 1997:40).

    Em decorrência desta grave erosão das bases territo-riais, da autonomia e das capacidades do Estado-Nação,a globalização desorganiza o sistema político, afetandoparticularmente a democracia e os partidos políticos. Amenor soberania do Estado faz par com a menor sobera-nia popular: cresce o desinteresse político, diminui a dis-posição de participar politicamente – isto é, em prol deuma opinião “geral”, não de uma demanda tópica –, dila-ta-se a distância entre o cidadão e a política. Em lugardisso tudo, multiplicam-se iniciativas e movimentos des-conectados da intermediação política, voltados paraalgum tipo de “ação direta”, para o fustigamento do Es-tado, para a defesa de interesses particulares. Em decor-rência, a governabilidade democrática fica dificultada etende a se esvaziar de capacidade reformadora (Noguei-ra, 1995).

    A globalização também se combina a uma profundaredefinição da questão produtiva e, particularmente, daquestão do trabalho. Traz consigo uma revolução tec-nológica de proporções avassaladoras, que mexe comas estruturas da produção, interfere na relação traba-lho/máquina, altera a divisão do trabalho, afeta a for-ma de gerenciar as indústrias, provoca desemprego. Pro-voca desemprego no Brasil, provoca desemprego nosEstados Unidos. O chamado desemprego estrutural podeser maior ou menor conforme o país, conforme as po-líticas de governo, conforme o padrão industrial. Sejacomo for, a revolução tecnológica não é um fator quedinamiza a criação de empregos. De alguma maneira,o vínculo entre globalização e revolução tecnológicaextingue postos, anacroniza profissões e expulsa pes-soas do mercado formal de trabalho. Desorganiza otrabalho e, com isso, as bases mesmas da vida em so-ciedade, na medida em que amplia as margens da ex-clusão, promove a expansão do trabalho informal, au-menta a sensação de insegurança dos indivíduos,

    dessencializa as funções e os equilíbrios da família, eassim por diante.

    Desorganiza também o mundo dos interesses, ao abrirespaço a novas e incessantes polarizações entre incluídose excluídos, entre “inempregáveis” e desempregados, entrejovens e antigos trabalhadores e a novos segmentos e no-vos valores profissionais; ao transformar as expectativas,os cálculos e as visões de futuro – o que acaba por vitimizaros tradicionais institutos de organização e representaçãode interesses. Ao mesmo tempo, tensiona ainda mais asrelações entre os grupos sociais, entre os interesses parti-culares e o “interesse geral”, entre as reivindicações tópi-cas e a demanda política, entre o discurso corporativo e aopinião democrática, entre os sindicatos e os partidospolíticos.

    Como se não bastasse, a globalização ainda desorga-niza os espaços territoriais, excluindo países e regiõesdo concerto econômico, promovendo polarizações entreregiões de um mesmo país, estimulando a adoção de prá-ticas segregacionistas voltadas para a defesa da estabili-dade de certas posições grupais ou geopolíticas. Nas pa-lavras de Martins (1997:33), “existem ilhas de afluênciaespalhadas por todos os continentes, circundadas pormanchas mais ou menos extensas de atraso, estagnação edesalento. Além disso, a distribuição espacial da prospe-ridade é eminentemente instável: qualquer área que hojeé privilegiada pode amanhã ser marginalizada em proveitoda expansão de alguma outra nova área emergente. Piorainda: como essas desconexões dependem apenas do jogode forças objetivas e externas, as regiões vitimadas nadapodem fazer para evitá-las”.

    Podemos imaginar o efeito dessas “desorganizações”sobre a nossa base social impregnada historicamente depobreza e exclusão. O estrago é exponenciado: os po-bres do passado andam de mãos dadas com os pobres dofuturo. A revolução tecnológica e a globalização aumen-tam o número de excluídos e inviabilizam muitas empre-sas nacionais. “Complicam” a economia e geram desem-prego não só porque dilapidam patrimônios, mas tambémporque condenam à morte certas atividades especializa-das, liquidando com os trabalhadores que não são capa-zes de se reciclar. Estes serão pobres daqui a alguns anos,porque o sistema produtivo não precisará mais deles. Omesmo ocorre com quem perde o emprego e perambulapor um período relativamente longo em busca de uma novacolocação: fora do mercado concreto, esse trabalhadorcorre o risco de ficar superado pela revolução tecnológi-ca e de não conseguir mais um emprego.

    As “desorganizações”, além de tudo, exponenciam acrise da federação antes mencionada. No mínimo, tornamainda mais difícil a superação da tendência à descentrali-zação anárquica, a recomposição da federação e a dimi-

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    nuição das pressões centrífugas que a tensionam e estio-lam.

    Tudo isso gera uma forte ampliação da demanda so-cietal, que, por sua vez, acaba por esbarrar dramaticamentena “desorganização” do Estado: a sociedade dos “excluí-dos”, dos pobres de ontem e de hoje, já não pode contarincondicionalmente com um aparato estatal vocacionadopara dar cobertura, proteger, integrar, compensar dese-quilíbrios, traçar políticas sociais. Em boa medida, a me-nor autonomia dos Estados nacionais e as políticas neoli-berais de “desregulamentação” seguidas por muitos delesobstaculizam a execução dessas suas tradicionais funçõessociais.

    PARADOXOS E CONTRADIÇÕES

    Em suma, a situação histórico-social com a qual nosdefrontamos está marcada por paradoxos. Ela exige for-mas mais sofisticadas e firmes de intervenção estatal, mascorrói as bases mesmas do Estado; exige novas modali-dades de gestão pública mas cria todo tipo de dificuldadepara sua adoção. A lentidão com que se progride (ou não)rumo a métodos gerenciais mais ágeis e eficientes estádiretamente associada às possibilidades de se conseguiratravessar bem esse fim de século. Justamente porque esseavanço é tão urgente e tão necessário, ao mesmo tempoem que estão em crise sujeitos e instituições vocacionadospara a intermediação e a direção política, estamos perma-nentemente expostos ao risco da paralisia. Assim comoestamos expostos ao risco de nos atirarmos erraticamenteem busca do melhor modo de progredir, acabando comisso por inviabilizar a própria progressão. Estamos pre-midos demais pela urgência de fazer “alguma coisa”. Es-tamos carentes demais de instâncias capazes de unificare coordenar esforços e idéias. É algo semelhante ao su-jeito que se joga tão obstinada e cegamente sobre o obje-to de seu desejo que acaba por tropeçar em seu própriodesejo, perdendo a chance de realizá-lo.

    Não se trata de uma metáfora gratuita: ela serve paramostrar que hoje em dia, dadas as condições concretas emque se trava a batalha pela erradicação da pobreza e pelarenovação da vida política e administrativa do país, a im-plementação do modelo descentralizado e participativo degestão é muitas vezes atropelada pela necessidade mesmade reformar. Se não temos boas diretrizes governamen-tais, se não fixamos corretamente as prioridades, se nãoplanejamos a reforma e não buscamos implementá-la comrealismo, construindo os apoios políticos de que ela ne-cessita e dominando o instrumental técnico e gerencial in-dispensável, acabamos por ser engolidos pela vontade dereformar. Isto vale de modo muito particular para a im-plementação do princípio da descentralização participati-

    va. Nunca antes estivemos perante um consenso tão largoem favor deste princípio. Tudo parece impulsionar a rea-lidade para esta direção. Porém, se os obstáculos ao avan-ço diminuíram na quantidade, eles aumentaram na quali-dade. Hoje, é impossível não considerar a questão: comodar curso a uma operação que é essencialmente política edemocrática num momento em que a política já não pro-voca tanta aderência? Em que “faltam” sujeitos capazesde agregar vontades em nível superior? Em que as insti-tuições de intermediação e a idéia mesma da intermedia-ção não gozam de muito prestígio?

    Na medida em que a descentralização se quer partici-pativa e, portanto, conclama a sociedade a participar, elatraz o mundo dos interesses para a esfera pública. Trazpara a esfera pública os interesses em estado bruto, ex-pressos por uma miríade de entidades dos mais variadostipos. Toda essa multiplicidade de interesses invade, agora,até mesmo com estímulo e proteção legal, a esfera dagestão. E isso num momento em que se vive, no Brasil,uma situação muito particular de crise política. Uma cri-se que não tem a ver com a atuação dos políticos, dospartidos ou das instituições políticas, mas sim com oatritamento das articulações entre a sociedade e a políti-ca. Na medida em que a sociedade se diferenciou e sefracionou demais, a política não conseguiu acompanhá-la; ficou, digamos assim, sem muitas condições de pro-cessar as tensões, as demandas, as pressões dos múltiplosinteresses que emergem na sociedade. Em decorrência,os interesses afirmam-se com soberania quase absoluta,congelam-se neles mesmos e tendem, com isso, a ficarainda mais predatórios, ou seja, a buscar para si o máxi-mo possível de vantagens, de recursos, de posições depoder, etc. A sociedade, assim, se coloca em posição dehostilidade diante da política. Tudo isso complica extre-mamente o processo da descentralização participativa eimpõe novas exigências aos seus gestores.

    Trata-se, no fundo, de compreender um fato essencial:o Brasil tornou-se moderno. Foi alcançado por uma mo-dernização precária, é verdade, desigual, perversa, bruta,impregnada de resquícios de eras pretéritas, mas nem porisso menos moderna.

    Ficamos modernos sem nos convertermos em uma so-ciedade mais justa, equilibrada ou harmoniosa. Não nostornamos um povo melhor: estamos mais carentes, maispobres, mais cruamente cortados por desigualdades gri-tantes. Mas o país se modernizou. Conseguiu consolidarseu parque industrial, vai-se tornando uma economia com-petitiva, já produz tecnologia avançada, possui uma agres-siva indústria cultural. Em que pesem nossas imensas áreasde pobreza, já não parecem prevalecer na sociedade ospadrões tradicionais de organização da vida, das cabeças,da política, dos credos, das relações humanas. Estamos

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    mais modernos até mesmo porque algumas elites dizemque os problemas diminuíram.

    Somos modernos sobretudo naquilo que a moderniza-ção tem de mais singular: o aumento da diferenciaçãosocial. Toda sociedade, ao se modernizar, assiste à multi-plicação de seus grupos sociais, de suas individualidades,de seus interesses. Mas, como contraponto, surgem tam-bém tendências à formação de novas e superiores instân-cias de agregação (sindicatos, partidos, associações). E asociedade passa a viver tensionada por essas duas forçasque se negam e se completam: a da diferenciação-frag-mentação e a da agregação superior. Quanto mais se fazsentir a força da agregação – que depende tanto da insti-tucionalidade política da sociedade quanto, sobretudo, dograu de integração nela existente e de seus padrões cultu-rais historicamente constituídos –, menos riscos corre asociedade de ver o processo da diferenciação projetar-secomo fragmentação e “des-solidarização”. Seja como for,o povo que se torna moderno torna-se mais individualistae mais vazio de vida comunitária.

    A crise do Estado e da política, bem como as fortestransformações socioeconômicas e tecnológicas estão dei-xando as sociedades indefesas, sem recursos para esca-par da fragmentação. Elas estão sendo comidas pelo cor-porativismo, ou seja, por uma agregação inferior, dedicadaa viabilizar interesses estritamente particulares, que, en-tre outras coisas, impede a política de funcionar comoespaço de universalização, de construção do “bem co-mum”. Assim, os interesses se exacerbam, tendendo sefechar em seus particularismos, “desinteressando-se” devínculos coletivos mais expressivos e perdendo de vistao valor da construção de determinados “interesses gerais”.

    Isso acontece nos diversos cantos do planeta. Mas en-tre nós, que formamos um povo historicamente carentede tradições democráticas, de instituições estáveis, deequilíbrio social, a fragmentação explode com a força deum tornado. Invade todos os poros da sociedade, afetan-do particularmente as instâncias originariamente conce-bidas para processar demandas e viabilizar alguma “paz”entre os interesses. A fragmentação não respeita partidosnem ideologias, atropela sindicatos e movimentos sociais,reproduz-se de modo irrefreável, levando ao surgimento,dentro de cada pedaço da sociedade, de inumeráveis lín-guas e linguagens, uma mais estranha que a outra.

    O ápice é o Congresso Nacional, onde não se conse-gue pôr em curso uma dinâmica procedimental que faci-lite o entendimento, a aprovação de leis, a tomada de de-cisões e a responsabilização do Executivo. Os consensossurgem com dificuldade espantosa, como se ninguémpudesse ceder em relação a nada, como se todos cami-nhassem às cegas, ofuscados por seus próprios umbigos.Quando se cede, é quase sempre com base numa lógica

    de “troca”, de barganha, às vezes de chantagem. O coti-diano legislativo se despovoa de partidos e de grandescorrentes de idéias. Torna-se o reino dos lobbies e das“corporações”: ruralistas, nordestinos, paulistas, bancá-rios, evangélicos, empresários, metalúrgicos, médicos,professores e outros quantos viabilizarem.

    Eventualmente, essas “bancadas” se diluem, os deputa-dos refluem para os partidos e há algumas votações gerais.No dia-a-dia, porém, a guerra dos interesses prevalece, ge-rando paralisia e confusão, potenciação dos atritos com oExecutivo, rebaixamento da competição política. Pior do queisso: incapacitação política geral. Desguarnecido de decisõese responsabilizações parlamentares, o Executivo fica lento,errático, improdutivo. Ao mesmo tempo, deixando de cum-prir suas funções, o parlamento torna-se ele mesmo um in-teresse, fecha-se em si, e desgasta-se perante a sociedade. Opróprio Executivo ajuda a transmitir para a sociedade a ima-gem de que o Legislativo não coopera. Resultado: a socie-dade vira as costas para a política e para seus políticos, per-de a confiança neles. Com isso, fica sem condições de imporo chamado “interesse público” e se entrega a seus interessesde parte, que pulam gulosamente sobre o Estado e o contro-lam.

    A modernização está nos fragmentando. Está nos im-pedindo de encontrar um eixo para estruturar a ação coti-diana e delinear uma perspectiva para o país. A fragmen-tação refreia o impulso reformador da política. Torna-amenos compreensível e menos valorizada diante da po-pulação. Rouba-lhe sentido. Retarda, tumultua e onera oavanço das reformas que todos sabem ser indispensáveis.

    EXIGÊNCIAS E REQUISITOS DADESCENTRALIZAÇÃO PARTICIPATIVA

    Quais os requisitos que faltam, então, para que a des-centralização participativa ganhe coerência e velocidade?Se o quadro traçado anteriormente é minimamente ver-dadeiro, o primeiro deles é encontrar uma forma de equi-librar participação e representação. Pois não se podehipostasiar a vertente participação, como se ela fosse in-dependente e pudesse resolver todos os problemas. Nomundo moderno, aliás, participação sem representação nãoleva a lugar nenhum. Isso significa que é preciso encon-trar um equilíbrio entre a manifestação de direitos e inte-resses particulares, que se afirmam pela participação, e aconstrução de “interesses gerais”, que se formam pela viada luta política, da representação e do Estado.

    A participação como “critério gerencial” não pode dei-xar de prestar atenção a isso. Será preciso inventar ummodo de alcançar esse equilíbrio, pois inexistem modelosque possam ser seguidos e aplicados. Além do mais, a vidasocial é dinâmica e rigorosamente conflituosa, e os equi-

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    líbrios são sempre precários. No mundo em que vivemos,causas, direitos e interesses explodem e se renovam inin-terruptamente. Impossível encontrar uma solução ótimaou definitiva para os vínculos entre representação e parti-cipação. Ainda assim, deve-se sempre tentar avançar dealgum modo nessa direção. No mínimo, para que o pro-blema não fique relegado a uma posição secundária nasdiscussões.

    O segundo requisito é conseguir um outro equilíbrio,só que agora no plano da federação: o requisito do equi-líbrio federativo, digamos assim. Este não resultará ex-clusivamente de avanços legais, ou seja, de uma nova lei,de uma nova Constituição ou de uma emenda constitucio-nal. Mas passará, necessariamente, por um amplo enten-dimento político nacional, que leve à depuração dos vá-rios interesses regionais e à remodelação das instituiçõesque dão vida à federação. Passará, mais ainda, por umaprofunda mudança de valores, de modo a remover os tra-ços da cultura clientelista e fisiológica, bem como o cará-ter “corporativo” e a perspectiva paternalista presentes emmuitos segmentos do setor público e em muitas entidadesda sociedade civil. Passará, enfim, por uma limpeza nacultura política e administrativa dos brasileiros, porqueas idiossincrasias da federação já impregnaram a alma dasociedade, já contagiaram operadores políticos, técnicos,parlamentares, associações e entidades, que vivem emfunção da federação e que vão ter de mudar sua maneirade pensar e viver a federação. O equilíbrio entre União,estados e municípios, entre impostos e encargos, entrenormatização, controle e execução, é um requisito de gran-des proporções, correspondente à grandeza territorial doBrasil, e que, por isso mesmo, não poderá ser alcançadono curtíssimo prazo ou por efeito de uma nova legisla-ção. Portanto, a passagem da modalidade de federalismocentralizado, congênita ao presidencialismo brasileiro,para uma modalidade de federalismo cooperativo precisaobrigatoriamente ser incluída nas discussões, já que faráparte da agenda durante bom tempo.

    O terceiro requisito aponta para a necessidade de des-centralizar sem perder a capacidade de articulação e co-ordenação. A gestão descentralizada que interessa tem deser participativa e cooperativa, sob pena de não se com-pletar. Ela requer, por isso, a recuperação do planejamentocentral e a difusão da idéia de planejamento em todas asinstâncias subnacionais. Requer um governo nacional quegoverne e, ao mesmo tempo, seja capaz de abrir mão depoder, isto é, seja capaz de desvincular-se da utilizaçãoclientelista das políticas sociais como moeda de troca nosacordos políticos; um governo, em suma, que impulsionea construção de um poder local efetivamente democráti-co, capacitado para garantir a execução das políticas des-centralizadas. Requer uma definição clara de quem coor-

    dena o que, e de quais serão as funções de cada esfera degoverno no planejamento e na execução das políticas so-ciais. A falta de clareza na definição de funções ou a mera“entrega” de receitas e encargos para os níveis subnacio-nais – tal como ocorre, por exemplo, na área da assistên-cia social 2 – não pode ser vista como fator de estímulo àdescentralização, mas apenas como expressão de omis-são e descoordenação.

    O quarto requisito, por fim, diz respeito particularmenteaos técnicos e gestores de políticas públicas, personagensnão da política-representação, mas da política-execução.Trata-se do desafio de adquirir uma outra cultura técni-ca. Nossa cultura gerencial está hoje desfocada: ainda nãoconsegue, por uma série de problemas, entrar no novomundo que temos pela frente. Essa cultura gerencial teráde ser forçosamente reciclada. Precisamos mudar nossamaneira de pensar a gestão das políticas públicas e traba-lhar no Estado. Precisamos descartar os restos de “patri-monialismo” que privatizam a esfera pública, assim comoa dinâmica formalista que nos atormenta o cotidiano – adinâmica que torna os gestores dependentes da norma, detal modo que se mantenham permanentemente preocupa-dos, às vezes exclusivamente, com o controle dos pro-cessos e não com os resultados. Trata-se, em suma, deestabelecer outro tipo de hierarquia. O que é mais impor-tante: as normas ou os resultados, os regulamentos esta-tutários ou a criatividade das pessoas? Uma grande quan-tidade de normas que colidem e se justapõem, ou aexistência de normas claras, consistentes e respeitadasrigorosamente?

    A nova cultura gerencial deve estar capacitada a de-senvolver a gestão cooperativa, a promover a cooperaçãoe a colaboração institucional. Isso tem a ver diretamentecom a descentralização almejada, com a necessidade deaprimorar as relações federativas, com a revolução tecno-lógica em curso, com sua impressionante capacidade dedifundir e processar informações com grande rapidez. Éum critério que pode ser o eixo de uma nova forma depensar o complexo mundo de hoje. Como viver no mundoda complexidade sem a perspectiva da cooperação e dacomunicação, isto é, da cooperação comunicativa? Coo-peração, aqui, não é sinônimo de solidariedade, mas deinterinstitucionalidade, de um processo em que as agên-cias trabalhem sintonizadas, articuladas, otimizando seusrecursos particulares, intercambiando idéias, socializan-do conquistas e responsabilidades. O capítulo da gestão deredes, da gestão intergovernamental ou interorganizacionaldeverá integrar, assim, de maneira privilegiada, a nova cul-tura gerencial. É em torno dela que devemos concentrar osesforços de treinamento e formação, sem os quais uma novaforma de gestão dificilmente conseguirá se difundir e ga-nhar aderência no setor público.

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    Se aceitarmos que os termos, os requisitos e as exi-gências da descentralização participativa são os que aquiexpusemos, podemos então concluir enfatizando que oprocesso apenas ganhará velocidade e coerência se seguiralgumas boas “regras de prudência” para poder contor-nar os obstáculos com que se defronta. A primeira dessasregras é a da flexibilidade: descentralizar com base na ri-gorosa consideração da heterogeneidade do País. A se-gunda, a do gradualismo: para descentralizar, é precisoentabular negociações entre as três esferas de governo eentre os entes públicos e o setor privado; é preciso reno-var valores e procedimentos; é preciso agregar capacida-de gerencial na ponta da execução. Tudo isto demandatempo (Aureliano, 1997:53).

    Assim, não dá para imaginar que o processo será fácilou possa ser acelerado simplesmente por decreto. Sabe-se que a gestão de políticas sociais não é algo simples eque, para ser bem feita, requer uma complexa massa crí-tica, composta de conhecimentos, recursos humanos, cul-tura administrativa, e assim por diante. Quando pensa-mos em descentralização, talvez imaginemos a existência,no plano municipal e/ou regional, de condições “ótimas”em termos de recursos humanos, conhecimentos técnicose nível de capacitação, embora saibamos o quanto isto édifícil na esfera pública brasileira, sobretudo no plano mu-nicipal. Mesmo porque a massa crítica a que nos referi-mos não se confunde com nenhuma das características,digamos assim, do governo em geral. Não se trata, porexemplo, de sensibilidade política, honestidade ou cons-ciência ética, por mais indispensáveis que sejam essas qua-lidades. Trata-se de uma massa crítica de natureza técni-co-gerencial – o que é bem diferente. Não basta que ummunicípio ou região tenha sido governado por políticossensíveis, honestos, leais com sua comunidade. Hoje, es-ses atributos são insuficientes para o governar. As prefei-turas terão de dominar um arsenal técnico-gerencial quenão possuem.

    O quadro brasileiro é evidentemente diferenciado. Háprefeituras, independentemente de seu tamanho ou de suaimportância, cuja experiência administrativa e técnico-gerencial já foi suficiente para acumular essa massa críti-ca. Mas essa não é, ao que tudo indica, a situação da grandemaioria dos municípios. O que é exitoso no Ceará, não énecessariamente em São Paulo ou no Rio Grande do Sul,e aquilo que se mostra difícil em São Paulo talvez não oseja no Nordeste, e assim por diante. Como ter um mode-lo único de descentralização em um país tão grande e comtamanha heterogeneidade? Melhor: como fixar um únicocronograma de organização do sistema descentralizado?Nem sempre o que é mais desenvolvido do ponto de vistaeconômico/social, por exemplo, é o que está mais pro-penso à descentralização, até mesmo porque o pólo mais

    desenvolvido é sempre o mais complexo do ponto de vis-ta da política, da articulação da sociedade, dos interesses,das parcerias, dos conflitos.

    Isso deve servir de alerta para que não tentemos acele-rar demais o processo, correndo o risco de sermos atro-pelados por ele no momento da operacionalização. No casodas diversas áreas sociais, por exemplo, é preciso dese-nhar com cuidado uma fase de transição, na qual se possatransferir recursos, atribuições, responsabilidades geren-ciais e de coordenação. Um processo de descentralizaçãoque pretendesse delegar radical e abruptamente todas asresponsabilidades para o nível local certamente não fun-cionaria. Feito isto de modo progressivo, maiores são aschances de respeitar as particularidades locais e equacio-nar suas carências e necessidades. Dessa perspectiva, ofator capacitação será vital: estaremos protagonizando umprocesso de construção da descentralização participati-va, para o qual os próprios executores deverão ser igual-mente construídos, isto é, formados, treinados e capaci-tados.

    Um segundo complicador nasce da inversão do argu-mento anterior: não basta apenas uma nova capacidadegerencial, é preciso que a nova capacidade gerencial sejaacompanhada de uma nova capacidade de entendimentopolítico e de uma nova consciência ética. Isso fica evi-dente quando pensamos a dinâmica do mundo atual. Quaisos riscos que municípios, nações e sociedades corremhoje? São os riscos derivados da tentativa de alcançarsoluções particularistas, soluções egoístas. Seria trágico,por exemplo, se nossos municípios adquirissem capaci-dade gerencial mas optassem por colocar em prática po-líticas de tipo segregacionista. Políticas destinadas a im-pedir a livre circulação de migrantes pobres, a desviar –sem qualquer plano maior, sem qualquer política popula-cional mais consistente – o fluxo migratório para outrasregiões. Não se trata de um exemplo gratuito, pois sabe-mos que fatos como esses acontecem em muitos municí-pios brasileiros (no próprio Estado de São Paulo), com oapoio da população, que não quer ter sua segurança e sua“privacidade” sujadas, perturbadas, incomodadas pelachegada de pobres. A adesão a formas abertas ou veladasde “paroquialismo mundializado” – baseadas em cone-xões econômicas extra-nacionais, na formulação de polí-ticas unilaterais de atração de investimentos e em moda-lidades de isolacionismo segregacionista (Vainer, 1996)– está hoje inscrita na “lógica” da globalização.

    Pode-se também ter capacidade gerencial e, ao mesmotempo, colocar em prática políticas ao estilo do velho clien-telismo localista, baseadas na disputa predatória dos fun-dos públicos, que comprometem as relações dos municí-pios entre si, tensionam a própria convi