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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
RINALDO DOS SANTOS SILVA
A POTENCIALIDADE TEXTUAL DO OBJETO SONORO À LUZ DAS TEORIAS LITERÁRIAS
PORTO VELHO-RO 2013
1
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
RINALDO DOS SANTOS SILVA
A POTENCIALIDADE TEXTUAL DO OBJETO SONORO À LUZ DAS TEORIAS LITERÁRIAS
Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários à Universidade Federal de Rondônia – Unir.
ORIENTADOR: Prof. Dr. José Osvaldo de Paiva
PORTO VELHO 2013
2
FICHA CATALOGRÁFICA BIBLIOTECA PROF. ROBERTO DUARTE PIRES
S5861p Silva, Rinaldo dos Santos
A potencialidade textual do objeto sonoro à luz das teorias literárias / Rinaldo dos Santos Silva. Porto Velho, Rondônia, 2013.
220f.
Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) Fundação Universidade Federal de Rondônia / UNIR.
Orientador: Prof. Dr. José Osvaldo de Paiva
1. Objeto sonoro 2. Objeto musical 3. Literatura 4. Música I. Paiva, José Osvaldo de II. Título
CDU: 82.09
Bibliotecária Responsável: Ozelina Saldanha CRB11/947
3
4
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, José Osvaldo de Paiva, por me estimular a expressar um pensamento embasado em vivências. Às professoras Marisa Martins Gama Khalil e Sônia Maria Gomes Sampaio, que foram membros em minha Banca de Qualificação e Defesa, pelas observações essenciais para o enriquecimento deste estudo. Ao Prof. Rubens Vaz Cavalcante, pelas conversas instrutivas e inspiradoras, desde a graduação. Aos professores do Mestrado em Estudos Literários pelas valiosas aulas, cujos conteúdos aparecem, de um modo ou de outro, neste trabalho. À Coordenação do Mestrado em Estudos Literários, pela oportunidade. Aos alunos, colegas de sala de aula, pela amizade. Aos amigos e familiares, por compreenderem minha ausência. À Sandra Pontieri Silva, pelo sacrifício e compreensão. À minha mãe, por me instruir, desde cedo, na arte de viver. Àquele que está sempre comigo, o qual não sei o nome.
5
RESUMO
A proposta da dissertação é mostrar que os estudos literários podem
contribuir para a compreensão do objeto sonoro como elemento de sintaxe em
estruturas textuais artísticas em que conste a simbiose com a linguagem sonora,
como musica eletroacústica, acusmática e submodalidades, arte sonora, textura
sonora ou gêneros híbridos. As teorias literárias são aptas para contribuir na leitura,
na análise, bem como na composição musical fundada em objetos sonoros, na
condição de signos, compreendendo seus esforços narrativos, descritivos e
poéticos. Pontos de intersecção entre a Literatura e a Música são territórios férteis
de estudo e requerem uma intervenção interdisciplinar, um diálogo entre as
disciplinas. Pretendemos com este estudo sugerir o surgimento de novos gêneros e
subgêneros, considerando que as artes intersemióticas são modalidades em
construção.
Palavras chave: Objeto sonoro, objeto musical, literatura, música.
6
ABSTRACT
The purpose of the dissertation is to show that literary studies may contribute
to the understanding of the sound object as an element of syntax inside artistic
textual structures considering the symbiosis with sound language, such as
electroacoustic music, acousmatic and submodalities, sound art, sound texture or
hybrid genres. Literary theories are able to contribute in reading and analysis, as so
in musical composition based on sound objects, working as signs, including their
narrative, descriptive and poetic efforts. Points of intersection among literature and
music are fertile areas of study and require interdisciplinary intervention, a dialogue
among disciplines. We intend at the study to suggest the arising of new genres or
subgenres, whereas intersemiotic arts are modalities under construction.
Keywords: Sound object, musical object, literature, music
7
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Laerte, sobre a música
Figura 2: Xilogravura Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd
Figura 3: Harmonic partials on strings
Figura 4: Detalhe da Xilogravura Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd
Figura 5: Quadro de Hokusai - A grande onda, que inspirou Debussy em sua obra La Mer
Figura 6: Ilustração de Édouard Manet para a edição do poema L’Après-midi d’dun Faune
Figura 7: Cartaz do filme Tempos Modernos
Figura 8: Tipologia espectral
Figura 9: Da nota ao ruído
Figura 10: Luigi Russolo e Ugo Piatti com o Intonarumori
Figura 11: Sequência das quadro escutas
Figura 12: Objeto sonoro e a representação
Figura 13: Dinâmica da semiose
Figura 14: Tipos de signos, em relação ao objeto
Figura 15: Gráfico do som de flauta
Figura 16: Gráfico do som de flauta com cortes
Figura 17: Ceci n’est pas une pipe, de René Magritte
Figura 18: Esquema de comunicação
Figura 19: Tessitura sonora
Figura 20: Mobilidade espacial de um córrego
Figura 21: Labirinto sonoro
Figura 22: A persistência da memória, de Salvador Dali
Figura 23: Chromatic scale full octave ascending and descending on C.
Figura 24: Melodia no texto literário
Figura 25: Melodia no texto musical
Figura 26: Melodia no texto sonoro
Figura 27:Trecho de partitura dedicado a David Tudor, XIV piano piece for David Tudor 4,
8
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Quadro das funções da escuta
Tabela 2: Baseado relação signo/objeto de Saussure ajustado para o objeto sonoro
Tabela 3: Semiose (processo de significação)
Tabela 4: Adaptação baseada na Classificação das Ciências, de Charles Peirce
Tabela 5: Recorte do quadro Adaptação da Classificação das Ciências, de Peirce
Tabela 6: Diagrama da filosofia peirceana
Tabela 7: Classificação dos signos semióticos, por Peirce
Tabela 8: Comparativo entre as formas de composição
Tabela 9: Graus de poeticidade
Tabela 10: Correspondência entre escala cromática e gama de cores de Castel
9
LISTA DE ANEXOS
Anexo 1: Quadro das funções da escuta
Anexo 2: Quadro evolutivo e comparativo das funções e das intenções da escuta
Anexo 3: “Risveglio di uma città” per intonarumori – Luigi Russolo.
Anexo 4: Synthèse Du dualisme de l’écoute – Luigi Russolo.
Anexo 5: As dez classes de signos decorrentes das três tricotomias sígnicas
Anexo 6: 10 classes de signos (PEIRCE, 2005, p. 58)
Anexo 7: Cruzamento dos signos
Anexo 8: Tabela da classificação das ciências – Charles Peirce
Anexo 9: Poema de Stefan George
Anexo 10: Quadros de René Magritte
Anexo 11: Conceito de Duração
Anexo 12: Manuscrito da Ars Nova
Anexo 13: Diagrama das três matrizes e suas modalidades
Anexo 14: Trecho do poema Salut au Monde!, de Walt Withman (FERRAZ, 2005, p. 82-83)
10
SUMÁRIO
Lista de figuras
Lista de tabelas
Lista de anexos
Sumário
1. Introdução...........................................................................................13
1.1 Há mais mistérios entre os sons e a nossa compreensão...............................13
1.2 ... do que julga a nossa vã distração................................................................13
1.3 Justificativa.......................................................................................................14
1.4 Problematização..............................................................................................16
1.5 Objetivos..........................................................................................................16
1.5.1. Objetivo Geral..........................................................................................16
1.5.2. Objetivos Específicos...............................................................................17
1.6 Procedimentos metodológicos.........................................................................17
2. Relações interdisciplinares..................................................................19
2.1 Espaços de intersecção...................................................................................19
2.2 A teoria.............................................................................................................20
2.2.1 Objetos da Teoria da Literatura................................................................21
2.3 O objeto............................................................................................................26
2.3.1 O que é música?.......................................................................................26
2.3.2 Uma história da música............................................................................28
2.3.3 Corredor histórico.....................................................................................28
2.3.4 O diapasão do mundo...............................................................................29
2.3.5 Communis.................................................................................................32
2.3.6 Mostrar e contar........................................................................................33
2.3.7 Mímesis e diegesis...................................................................................34
2.3.8 A semântica na tradição musical..............................................................37
2.3.9 Tempos modernos....................................................................................45
2.3.10 O mundo em revolução...........................................................................46
2.3.11 L’Arte dei Rumori....................................................................................48
2.3.12 A grande crise da música.......................................................................53
2.3.13 A música concreta..................................................................................56
11
2.3.14 A música eletrônica.................................................................................56
2.3.15 Objeto sonoro e objeto musical..............................................................58
3 Fenomenologia musical de Schaeffer..................................................60 3.1 A redução fenomenológica de Husserl............................................................60
3.2 Do fenômeno....................................................................................................61
3.3 As quatro escutas de Schaeffer.......................................................................62
3.3.1 Écouter......................................................................................................63
3.3.2 Ouïr...........................................................................................................63
3.3.3 Entendre...................................................................................................63
3.3.4 Comprendre..............................................................................................64
3.4 Os três modos de audição de Chion................................................................66
3.4.1 Escuta reduzida........................................................................................66
3.4.2 Escuta causal............................................................................................67
3.4.3 Escuta semântica......................................................................................67
3.5 As três categorias fenomenológicas de Pierce................................................68
3.5.1 Primeiridade..............................................................................................68
3.5.2 Segundidade.............................................................................................69
3.5.3 Terceiridade..............................................................................................69
4 O processo de significação..................................................................73 4.1 A significação...................................................................................................73
4.2 Semiose...........................................................................................................75
4.3 Semiótica.........................................................................................................80
4.4 Categorias de signos.......................................................................................84
4.5 Fenômeno ou signo?.......................................................................................87
4.6 Sintaxe.............................................................................................................90 4.6.1 O objeto sonoro como elemento de sintaxe...........................................105
4.7 Linguagem.....................................................................................................107
4.8 Comunicação.................................................................................................111
4.9 Texto..............................................................................................................112
4.9.1 O texto e sua família...............................................................................113
4.9.2 Textualidade...........................................................................................114
4.9.3 Contextualidade......................................................................................115
4.9.4 Intertextualidade.....................................................................................116
12
4.9.5 Textura....................................................................................................117
4.9.6 Tessitura.................................................................................................118
4.9.7 Contextura..............................................................................................119
4.9.8 Tradução intersemiótica..........................................................................120
4.9.9 Composição textual................................................................................122
4.10 Discurso.......................................................................................................128
4.10.1 Polifonia................................................................................................133
5 Estudos Literários..............................................................................134 5.1 Prática e Teoria..............................................................................................134
5.2 A estrutura de textos artísticos.......................................................................138
5.3 Narrativa.........................................................................................................145
5.3.1 Tempo.....................................................................................................146
5.3.2 Espaço....................................................................................................152
5.3.3 Personagens...........................................................................................159
5.3.4 Narrador..................................................................................................160
5.4 Descrição.......................................................................................................170
5.5 Poesia............................................................................................................173
5.6 Para além da potencialidade textual do objeto sonoro..................................177
5.7 Subgêneros ou novos gêneros?....................................................................180
5.7.1 Musicontos..............................................................................................181
5.7.2 Poemúsicas............................................................................................182
6 Considerações finais..........................................................................185
Bibliografia
Anexos
13
1. Introdução
1.1 Há mais mistérios entre os sons e a nossa compreensão...
O desígnio desta dissertação é apontar para evidências de como os estudos
literários podem contribuir para a compreensão de composições sonoras
estruturadas a partir de gêneros literários. Baseado nas teorias linguísticas
modernas, que têm uma noção de texto mais ampla, que não é exclusiva da
linguagem verbal, se estendendo para outras linguagens, as composições sonoras
são admitidas como textos artísticos, em que a sua unidade sintática é o objeto
sonoro que, sendo elemento material composicional, é manejado em processos
composicionais em música fundada em técnicas eletroacústicas e acusmáticas1,
oriundas da música concreta2.
O século XX testemunhou o surgimento de novas modalidades ou
submodalidades musicais. A tecnologia, com seus avanços constantes, ampliaram
para o artista contemporâneo as possibilidades de materialidades e modalidades.
Desde então, gêneros híbridos, sinestésicos, intersemióticos são mais comuns que
em qualquer época. A simbiose artística sempre existiu, mas a tecnologia, que há
muito tempo deixou de ser apenas um meio de reprodutibilidade, passou a ser um
meio eficiente de apoio à produtividade, criatividade e inventividade, bem como um
meio conciliador e fusionador de linguagens, propiciando o surgimento de
modalidades artísticas em que as linguagens se misturam sem se confundirem. A
arte sonora, textura sonora, poesia sonora, são exemplos, são experiências, que
abrem expectativas e perspectivas de surgimento de modalidades híbridas em que
conste a simbiose da linguagem sonora com outras linguagens, inaugurando novos
gêneros ou subgêneros, considerando que são modalidades em construção.
1.2 ... do que julga a nossa vã distração 1 Música acusmática é um gênero de música composta em estúdio e, posteriormente, se difunde em concerto utilizando-se, exclusivamente, de equipamento de reprodução de som e altofalantes, excluindo-se, assim, completamente, totalmente o intérprete como elemento presente. 2 Música concreta é um gênero de música experimental de vanguarda, ou método de compor, idealizado pelo francês Pierre Schaeffer, e através do qual o compositor procura reunir toda espécie de objetos sonoros (sons musicais e ruídos concretos), já gravados em disco ou em fita magnética (mídias disponíveis em 1948), para transformá-los em seguida por meio de manipulações complexas, e utilizá-los em montagens e colagens, conforme seu pensamento musical.
14
Ao tomarmos contato com um som, este desencadeia um processo de
significação, que compreende desde a percepção do fenômeno sonoro até o modo
como este som está representado na consciência. Esta semiose é condição para a
geração de interpretações, das quais são possibilitadas as relações sígnicas e
consequentemente, as elaborações de estruturas textuais/texturais, bem como as
leituras do receptor e interpretador. Eis um campo em que há muito a ser explorado.
Dentro deste processo sígnico, os sons podem ser compreendidos como
objetos sonoros, que são os fenômenos sonoros em si mesmos, ou como signos
sonoros, ou seja, objetos sonoros carregados de significações, sejam elas concretas
ou abstratas, objetivas ou subjetivas, referenciais ou metafóricas.
1.3 Justificativa
A relação dos elementos sonoros funda uma sintaxe. O uso dos sons com
manobras sintáticas pode resultar em enunciados, frases, sentenças, constituindo
textos. Uma vez revelado o potencial dos objetos sonoros em compor textos, ou
texturas, tanto de natureza narrativa (em que prevalece a habilidade em contar)
quanto descritiva e poética (em que se destaca a capacidade de mostrar), justifica-
se o uso das teorias literárias para o estudo de produções feitas a partir da utilização
de registros sonoros, uma vez que estas obras podem se converter em gêneros
textuais distintos e será necessário o empréstimo do aporte dos estudos literários e
seus conceitos para a compreensão dessas produções.
As composições musicais que se derivaram da música concreta, que, entre
suas técnicas, estão as de coleta e manuseio de sons ambientais, cotidianos, ruídos,
como qualquer composição musical fundada em signos sonoros, poderão ser
abordadas através das teorias literárias.
O uso destes signos sonoros no processo composicional com escopo
poético, descritivo ou narrativo pode ser considerado objeto fecundo e legitimamente
propício aos estudos literários, uma vez, que a semântica e a retórica, através da
sintaxe musical, já reconhecidas como recursos utilizados na linguagem musical,
podem ser aplicadas também à linguagem simplesmente sonora, pois é questão de
uma essencialidade, correspondente à literariedade, alcançar a coerência e a
coesão de um texto/textura sonora.
Este estudo é complemento e embasamento conceitual de um trabalho
artístico que realizo em espaços de interseção entre a literatura e a música.
15
Trata-se de uma pesquisa iniciada a alguns anos em torno da linguagem
musical e linguagem sonora, que tem como produto composições lítero-musicais.
Essa produção consiste na criação de contos e poemas a partir do objeto sonoro,
em que a composição segue estruturas e características de contos e poemas, sem a
obrigatoriedade de utilização da linguagem verbal, que, neste caso, é substituída por
objetos (signos) sonoros, como unidades sintáticas. Essas composições são feitas
com matéria sonora, sintética ou coletada, isto é, gravada, convertida em áudio, que
podem ser modificadas de acordo com a estética pretendida. A composição é feita
em programas de edição de áudio, através de colagens e montagens, intercalando
justaposições e sobreposições sonoras. Não se trata de poemas ou contos com
fundo musical ou com citação incidental, tampouco são músicas em que se abrem
parênteses para a recitação de poemas. São subgêneros que tenho chamado de
musicontos (contos sonoros) e de poemúsicas (poemas sonoros).
Este trabalho deu seus primeiros frutos ao ser selecionado pelo 9º Festival
Internacional de la Imagen, realizado em Manizales, Colômbia, em abril de 2010 e
pelo Festival Internacional de Linguagem Eletrônica – FILE 11, realizado em São
Paulo em julho de 2011. Também está incluso no “Amazônia, A Arte”, catálogo e
exposição, idealizado pelo Museu Vale - Fundação Vale, edição de junho-setembro
de 2010.
Já este projeto de pesquisa possibilitará a oportunidade de unir criação e
teoria, o que me proporcionará uma forma de contribuir no âmbito acadêmico, na
elaboração de proposições e possíveis reforços teóricos, bem como no meio da
produção artística, oferecendo obras de estéticas e conceitos vanguardistas das
linguagens musical, sonora e literária através do uso das novas tecnologias, visando
um produto que oportunize alternativas e possibilidades de novas escutas de música
eletroacústica, de contos e poemas.
Enfim, é pretendido nesta dissertação justificar o apoio dos estudos literários
para prover fundamentos que contribuam na criação e análise de subgêneros,
produtos lítero-musicais intersemióticos, partindo da utilização de métodos e
técnicas da composição de música eletroacústica ou música acusmática, associada
às estruturas de gêneros pertencentes à literatura.
16
1.4 Problematização
Na arte musical, até o início do século XX, o ruído era recusado no discurso
musical do ocidente. O material sonoro da música era composto somente por
timbres instrumentais e vocais. A partir de L’Arte dei Rumori3, de Luigi Russolo4 e a
Musique Concrète5 de Pierre Schaeffer6, os sons naturais, bem como os sons
surgidos da nova configuração ambiental sonora, resultantes da Revolução
Industrial, apesar de terem sido incluídos no acervo como nova gramática musical e
tratados com isonomia nas experiências das vanguardas musicais, que fizeram com
que a criação musical incluísse o ruído como material para criação, ainda não têm o
mesmo privilégio dos sons oriundos dos instrumentos musicais.
Esta realidade reivindica um aprofundamento no processo de significação
dos objetos sonoros, seja por sua força de referencialidade, por sua
representatividade mimética/diegética, ou por seu potencial em acrescer ou
suspender sentidos na construção de textos/texturas, sejam eles objetivos ou
subjetivos. Neste trabalho, consideradas as questões fenomenológicas e semióticas,
o caminho promissor será o de estudar a literariedade destes signos sonoros e isso
é objeto dos estudos literários.
1.5 Objetivos
1.5.1. Objetivo Geral:
Contribuir para os estudos interdisciplinares entre os saberes da literatura e
música, problematizando a significação do objeto sonoro através dos estudos
literários.
3 L’Arte dei rumori (A Arte dos Ruídos, 1913), do pintor e músico Luigi Russolo, introduz conceitos sonoros importantes como o de som, ruído e ruído musical. 4 Luigi Russolo, nascido em Veneza em 1885, foi pintor e foi por causa das artes plásticas, justamente, que se tornou membro do movimento futurista, em 1910. No entanto, instigado pela leitura de Música Futurista, manifesto do compositor Balilla Pratella, de quem era amigo, decidiu redigir, como uma resposta, o manifesto A Arte dos Ruídos, em 1913, considerado hoje um dos mais importantes do século XX, segundo os estudiosos. 5 Musique concrète (do francês, "música concreta") é o nome dado a um tipo de técnica experimental de composição produzida a partir de edição de áudio, que utiliza sons produzidos por objetos variados, de baldes a serras elétricas, por exemplo. Seu inventor foi o francês Pierre Schaeffer. Tudo começou em 1949, em Paris. 6 Pierre Henri Marie Schaeffer foi um compositor da França, conhecido por ter inventado a música concreta.
17
1.5.2. Objetivos Específicos:
1.5.2.1. Apresentar ideias gerais de interesse científico e especulativo a
partir de teorias literárias em torno do objeto sonoro que apontem para uma
necessidade de novas conceituações de estética musical;
1.5.2.2. Detectar indícios históricos de semanticidade da linguagem
musical;
1.5.2.3. Coligar os aspectos passíveis de problematização literária em
composições textuais sonoras, revelados a partir de reflexões, análises e paralelos
estabelecidos;
1.5.2.4 Sugerir diálogos interdisciplinares através da inserção de temas,
disciplinas ou cursos multidisciplinares.
1.6 Procedimentos metodológicos
O objeto sonoro não será abordado através da Análise Literária, tampouco da
Crítica Literária, mas das teorias da Literatura, uma vez que o estudaremos como
uma unidade sígnica formal, estrutural. Os métodos de trabalho serão os da
pesquisa bibliográfica. Os estudos serão feitos através da consulta de bibliografia de
estudos musicais e literários, que possam subsidiar a especulação acerca do objeto
sonoro, na condição de signo linguístico, como unidade portadora de sentido e sua
potencialidade textual e discursiva.
Este trabalho foi organizado em seis capítulos. A ordem dos tópicos foi feita
com o intuito de otimizar metodologicamente as abordagens do projeto. O capitulo 1.
Introdução - foi dedicado à descrição do projeto e do plano de dissertação,
delimitando o contexto dos estudos, expondo a finalidade, traçando os objetivos e
apresentando sua estrutura; O segundo capítulo procura ilustrar que a relação objeto
(sonoro) / teoria (literária), mesmo sendo de áreas e disciplinas distintas, é viável e
que nos espaços de intersecção estejam os focos de abordagem, enfatizando a
importância de estudos interdisciplinares. Por esta razão está subdividido em um
tópico para a teoria e outro para o objeto. O tópico voltado para a teoria inicia
alegando que a constituição do objeto em estudos literários é elemento de
problematização, apontando como possível objeto da Teoria Literária a literariedade,
como essencialidade que pode encontrar correspondência em outros sistemas
sígnicos como o sonoro. Quanto ao tópico que trata do objeto, começa com um
18
questionamento que acompanha a música contemporânea: o que é música? As
suas subdivisões tratam de contar “uma história da música” com o objetivo de
identificar períodos em que a música demonstra a intenção de descrever ou narrar,
ressaltando os arroubos semânticos históricos, bem como marcar o momento do
surgimento da aceitação de elementos considerados “não musicais” em processos
composicionais, refletindo a tensão do mundo moderno, culminando com a criação
do conceito de objeto sonoro por Pierre Schaeffer. Para mostrar a potencialidade
semântica e textual do objeto sonoro é necessário começar pela fenomenologia.
Para isso o Capítulo 3 trata da fenomenologia de Schaeffer, que teve por
fundamento o método de Edmund Husserl. Foram estudadas as quatro escutas
propostas por Schaeffer, associadas aos modos de audição de Michel Chion e às
categorias fenomenologias de Charles Pierce. Estudadas as questões
fenomenológicas, seguimos para os processos de significação por que passa o
objeto sonoro, assuntos do Capítulo 4, que explica o caminho da significação
(semiose) desde o objeto como fenômeno até o objeto assimilado como signo. Esta
questão exigiu estudos de semiótica, linguagem, comunicação e texto. O capítulo 5
se ocupa na análise, a partir das teorias literárias, das estruturas textuais narrativas,
descritivas e poéticas, defendendo a possibilidade do uso do objeto sonoro como
elemento sintático de estruturas textuais sonoras baseadas nas estruturas literárias,
apontando para o surgimento de novos gêneros. Por fim, o capítulo 6 reúne
apontamentos e reflexões conclusivas.
19
2. Relações interdisciplinares
2.1 Espaços de intersecção
Este trabalho se empenha em examinar uma relação objeto/teoria incomum,
ou seja, estudar o objeto sonoro por meio da teoria literária. Na medida em que o
trabalho começou a ganhar consistência, os receios de que isso seria forçar uma
situação foram perdendo a razão de se mostrarem. No início das pesquisas, as
descobertas apontavam para uma relação da música com a literatura. Aos poucos
tudo foi se definindo e nesses espaços de comunhão entre as linguagens ficou claro
que o trabalho não era exatamente sobre literatura e nem sobre música e sim sobre
literariedade, musicalidade e sonoridade. Foi uma descoberta feliz, que evitou
possíveis equívocos sutis, pois estas questões não são centrais em suas áreas,
estão nas fronteiras, são temas esparsos, pulverizados, mas é exatamente nestas
regiões que as áreas se tocam, se misturam.
A intenção maior neste trabalho é a de levantar o máximo de questões que
possam justificar o uso da Teoria Literária para a compreensão do objeto sonoro e
isso é possível a partir da admissão do objeto sonoro como objeto cultural, ou
melhor, como signo. Sabe-se que, antes disso, a constituição do objeto em Teoria
da Literatura é problemática, e antes ainda, a própria Literatura é objeto de uma
problematização.
É claro que sobre esta questão será feita uma abordagem em que o
aprofundamento se dará somente até chegar ao ponto que seja suficiente para
justificar o uso dos conhecimentos teóricos literários para uma compreensão das
relações possíveis do signo sonoro em uma composição textual sonora,
considerando as noções e conceitos de texto defendidos pela linguística moderna,
que aceita outras formas de texto além do verbal.
Vou colocar a questão desta maneira: temos um objeto de uma área: da
música. Para abordá-lo, temos as teorias de outra área: da literatura. Para minimizar
o aparente distanciamento entre objeto e teoria, será preciso promover uma
aproximação que dará um conforto para as conjecturas e hipóteses. Para tanto,
duas coisas serão necessárias: em primeiro lugar mover a teoria para um território
que comporte a existência de um objeto compatível com o seu escopo, com os seus
fins e, em segundo lugar, mover o objeto para um lugar de possibilidades de análise
20
e uso criativo a partir da visão teórica literária. Em termos mais práticos, será feito
um exame sobre o objeto das Teorias Literárias, se há mesmo esse espaço em que
o objeto sonoro possa ser comportado como elemento de estudo, como objeto
analisável e, por outro lado, será estudado o processo de significação do objeto
sonoro, que, de fenômeno, passa pela semiose e converte-se em signo sonoro,
tornando-se, portanto, em uma unidade linguística e elemento de sintaxe textual,
que, sob a ação de propriedades específicas, formam estruturas textuais/texturais
sonoras equivalentes a gêneros literários, como poesia, descrição e narrativa.
2.2 A teoria
No propósito deste trabalho inclui-se o uso das “teorias literárias”. O uso do
termo no plural se dá por uma razão: o termo “Teoria Literária” é muito amplo,
mesmo sem levar em conta as diferenças conceituais entre “Teoria da Literatura” e
“Teoria Literária” (COMPAGNON, 1999, p. 24), pois as noções que serão apontadas
tanto servem para uma quanto para a outra. Por não existir um único método teórico
de investigar literatura e pela variedade de concepções desde o escritor romano
Tácito (55 a 120 d.C.), que é considerado como um dos primeiros teóricos da
literatura, até os dias de hoje, seria ajustado pensar em “teorias da literatura” e não
somente em “teoria da literatura”. Roberto Acízelo de Souza, apesar de admitir que
“há só uma teoria da literatura, subdividida em inúmeras orientações” (SOUZA,
2007, p. 58) argumenta também sobre o fato de ser apropriado falar-se em teorias
da literatura:
Assim, embora o termo teoria da literatura, usualmente empregado no singular, possa dar a entender que existe um acordo conceitual e metodológico quanto ao estudo da literatura, essa pressuposição é incorreta, tendo em vista a circunstância apontada. Aliás, são tantas as correntes contemporâneas de investigação da literatura empenhadas em controvérsias relativas a métodos e conceitos que seria mais apropriado falar-se em teorias da literatura, no plural. (SOUZA, 2007, p. 58)
Se por um lado não se tem uma teoria que possa ser considerada
hierarquicamente superior às demais teorias, dando conta dos estudos literários,
nem mesmo uma teoria consolidada para ser chamada de “a Teoria da Literatura”,
por outro lado, as diversas correntes comporiam a disciplina “Teoria da Literatura”.
Segundo SOUZA:
21
Essas correntes, mais ou menos desvinculadas entre si, despontando em artigos e livros fundadores, seriam objeto de sistematização, combinação e divulgação pelo conhecido tratado de René Wellek e Austin Warren, publicado em 1949, e cujo título — Teoria da literatura — acabaria se tornando o nome adotado por verdadeira nova disciplina. (SOUZA, 2007, p. 39)
Souza torna mais clara esta questão, quando explicita que o termo “Teoria
da Literatura” comporta dois significados: um amplo e outro estrito:
[...] o termo teoria da literatura comporta um significado muito amplo — qualquer problematização ou estudo sistemático da literatura — e um significado estrito — a disciplina constituída no século XX, caso específico e historicamente situado desse estudo sistemático. (SOUZA, 2007, p. 35)
Além do motivo citado anteriormente, o uso do termo “teorias da literatura”,
ou mesmo, “teorias literárias” neste trabalho é mais apropriado, pois os estudos
desta dissertação não se apoiarão em todo o conjunto ou sistematização teórica de
literatura, devido à diversidade das correntes teóricas, da variedade de teorias e
métodos que, ora se centram no autor, ora se apoiam no texto ou no contexto, no
signo, no código, no leitor etc.
Os estudos relacionados às teorias da literatura que nos darão
embasamento serão aqueles com maior proximidade com o objeto de estudo
proposto neste trabalho, ou seja, as teorias que possam comportar o objeto sonoro,
não o objeto em si, por suas qualidades, mas o funcionamento do objeto sonoro
como elemento de estruturas tidas como textuais. Por esta razão, será necessário
compreendermos qual é o objeto estudado pelas teorias literárias, ou, por estar
falando em teorias, devemos falar também em objetos?
2.2.1 Objetos da Teoria da Literatura
Antes mesmo de apostar em uma definição de qual é o objeto da Teoria da
Literatura, é importante ressaltar o que se entende por “Literatura”, no entanto, não
será na direção de procurar a definição sobre o termo “Literatura”, mas na de
delimitar o seu sentido. Vejamos o que é apontado por Souza:
Com relação à palavra literatura, podemos considerar dois significados históricos básicos: 1. até o século XVIII, a palavra mantém o sentido primitivo de sua origem latina — litteratura —, significando conhecimento relativo às técnicas de escrever e ler, cultura do homem letrado, instrução; 2. da segunda metade do
22
século XVIII em diante, o vocábulo passa a significar produto da atividade do homem de letras, conjunto de obras escritas, estabelecendo-se, assim, a base de suas diversas acepções modernas. (SOUZA, 2007, p. 45)
São muitas as acepções da expressão "Literatura", como, por exemplo,
produto da produção escrita de uma determinada época ou localidade; conjunto de
obras diferenciadas pela temática, pela origem ou público alvo; bibliografia sobre um
campo especializado do conhecimento; conjunto de conhecimentos relativos ao
estudo sistemático da produção literária e autores literários, como disciplina, curso,
matéria.
É comum a definição de Literatura em dicionários como sendo a arte de
compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso7. Definições semelhantes
são tratadas como Arte Literária. Além de a Literatura ser tomada como arte, o termo
também é utilizado como ficção, irrealidade, etc. No entanto, para atender aos
objetivos desta dissertação é mais produtivo compreender o que torna um texto
literário do que procurar a definição para o termo “Literatura”. Compreender no que
se distingue uma obra literária de uma não literária, entender o que faz com que nós
leiamos um texto como literatura são questões que nos levarão ao objeto da Teoria
Literária ou objetos das teorias literárias. Souza alega que o objeto da teoria da
literatura corresponde às “propriedades específicas” de que as obras são dotadas:
Observemos o modo pelo qual definimos a literatura, entendida como objeto da teoria da literatura: parte do conjunto da produção escrita e, eventualmente, certas modalidades de composições verbais de natureza oral (não escrita), dotadas de propriedades específicas, que basicamente se resumem numa elaboração especial da linguagem e na constituição de universos ficcionais ou imaginários. (SOUZA, 2007, p. 48)
Entre as propriedades específicas está o que Roman Jakobson chamou de
“literariedade”, como elemento que permite a distinção de um texto literário de outras
composições que não integram a literatura em sentido estrito, mesmo sendo um
texto verbal: “[...] o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade,
isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária”. (JAKOBSON apud
SOUZA, 2007, p. 50). Para Jonathan Culler há outras categorias que funcionam,
referindo-se não a propriedades específicas, mas a uma espécie de essencialidade.
7 Arte de compor ou escrever trabalhos em prosa ou verso com o objetivo de atingir a sensibilidade ou a emoção do leitor ou do ouvinte. (BORBA, 2011, p. 849)
23
Tomemos a questão "O que é uma erva daninha?" Há uma essência de "daninheza das ervas" - um algo especial, um je ne sais quoi, que as ervas daninhas partilham e que as distingue das ervas não-daninhas? Qualquer pessoa que já tenha se oferecido para ajudar a limpar as ervas daninhas de um jardim sabe quão árduo é diferenciar uma erva daninha de uma erva não-daninha e pode se perguntar se há um segredo. Qual seria? Como se reconhece uma erva daninha? Bem, o segredo é que não há um segredo. [...] Talvez a literatura seja como a erva daninha. (CULLER, 1999, p. 29-30)
A maioria das tendências e dos autores da teoria da literatura vê a operação
de certo "desvio" organizado na linguagem como marca distintiva da literatura, um
desvio em relação a outras ocorrências da linguagem consideradas mais usuais e
tidas como normais, ou seja, determinadas composições verbais em que a
linguagem se apresenta elaborada de maneira especial, e nas quais se dá a
constituição de universos ficcionais ou imaginários.
Até aqui foi visto o suficiente para se deduzir que o objeto da teoria da
literatura não está fixo na materialidade, ou seja, na littera, mas também em outros
aspectos como literariedade, musicalidade, ficcionalidade, narratividade, poeticidade
etc.
O desvio organizado, a marca distintiva, a maneira especial, na qual se dá a
constituição de mundos imaginários, bem como a narratividade, a poeticidade não
são exclusividades da linguagem escrita. Aqui a teoria da literatura chega ao ponto
imaginado como o lugar que comportará o objeto sonoro: a teoria da literatura como
grupo de textos sobre tais aspectos.
Teoria, nesse sentido, não é um conjunto de métodos para o estudo literário mas um grupo ilimitado de textos sobre tudo o que existe sob o sol, dos problemas mais técnicos de filosofia acadêmica até os modos mutáveis nos quais se fala e se pensa sobre o corpo. O gênero da "teoria" inclui obras de antropologia, história da arte, cinema, estudos de gênero, lingüística, filosofia, teoria política, psicanálise, estudos de ciência, história social e intelectual e sociologia. As obras em questão são ligadas a argumentos nessas áreas, mas tornam-se "teoria" porque suas visões ou argumentos foram sugestivos ou produtivos para pessoas que não estão estudando aquelas disciplinas. (CULLER, 1999, p. 13)
Neste caso, as teorias que serão utilizadas neste trabalho serão as que
estão voltadas para a literariedade, narratividade, poeticidade, polissemia, entre
outras, desde que alimentem reflexões para além da literatura, para a linguagem
musical/sonora, como permitem os Estudos Literários.
24
Teoria, nos estudos literários, não é uma explicação sobre a natureza da literatura ou sobre os métodos para seu estudo [...]. É um conjunto de reflexão e escrita cujos limites são excessivamente difíceis de definir. (CULLER, 1999, p. 12-13)
Na relação do objeto sonoro, como elemento constitutivo de um texto/textura
sonoro, como possível objeto de estudos da Teoria da Literatura, podem ser
examinadas questões voltadas para a ficcionalidade e, dentro deste aspecto, da
poeticidade e narratividade e os seus elementos de composição. Neste contexto,
serão objetos da Teoria da Literatura:
• a estrutura de obras narrativas sonoras, cuja função é contar a
história (ficção);
• a estrutura de obras poéticas sonoras;
• a estrutura de obras descritivas sonoras, cuja função é mostrar o
lugar em que se desenvolve a história. A descrição compõe o
espaço, como elemento da narrativa ou as imagens sonoras de
poemas;
Para a composição destas estruturas, os objetos serão estudados como
elementos de composição da narrativa, da descrição e do poema. As reflexões
levarão em conta questões como:
- o espaço onde a ação está decorrendo, mas em uma diversidade de
espaços, como físicos, psicológicos, sociais, culturais, etc.;
- o tempo de ocorrência da narração sonora é o cronológico, porém,
como na literatura, pode alcançar o efeito de ficção. O tempo na
narrativa sonora depende da natureza do acontecimento e do ponto de
vista do narrador. O tempo pode ser cronológico, psicológico,
linguístico, histórico, etc.;
- o enredo desenvolvido e o seu contexto;
- o narrador;
- a verossimilhança, ou a suspensão da mesma, e todas as coisas
impossíveis que ela possa dizer;
- os personagens e sua complexidade na composição da narrativa;
25
- a literariedade, ou seja, a forma discursiva em sua riqueza de
expressão, a escolha de objetos sonoros que, intencionalmente,
estabelecem um sentido de recriação da realidade – quando há
literariedade, o plano de conteúdo é expresso de forma sonora, isto é,
numa linguagem sonora;
- a linguagem;
- o conjunto de elementos que constituem o plurissignificado do texto
sonoro;
- o nível de expressão (discurso) e o plano de conteúdo (contexto) de
uma produção.
Visando clarear o entendimento quanto à narrativa ou poesia sonora, vamos
considerar o objeto sonoro, captado e gravado, sendo esta gravação, hoje muito
comum, convertida em arquivo digital, como matéria prima para a feitura da
narração, por meio de um computador. Usando um programa editor de áudio, como
um modo de manipulação de áudio e, sobretudo, como um modo de se pensar a
música, em que fica registrada toda e qualquer ideia que venha compor a textura
sonora, bem como ocorre com os escritores, que se utilizam de um editor de textos
e, desta forma, registram suas ideias até finalizar o texto.
Partindo do estudo desses objetos, vê-se que uma composição sonora é um
conjunto de ideias da realidade ou da imaginação, ou como dizem alguns teóricos da
literatura, é uma suprarrealidade ou um simulacro. O objeto sonoro, enquanto
representação de uma realidade, pode ser usado na sua forma natural, como uma
fotografia ou imagem cinematográfica, com realismo8, compondo uma obra em que
o seu conteúdo reflita com a máxima fidelidade a realidade natural, como pode
sofrer alongamentos, encolhimentos, deformações, que caracterizam o hiper-
realismo, irrealismo, surrealismo, bem como ter um caráter impressionista ou
expressionista, como também, devido ao contexto, imprimir uma carga e uma
densidade maior. O modo de organização pode lhe dar um grau maior de
ficciona
lidade, de literariedade.
8 “O que é realismo para o teórico da arte? É uma corrente artística que propôs como seu objetivo reproduzir a realidade o mais fielmente possível e que aspira ao máximo de verossimilhança. Declaramos realistas as obras que nos parecem verossímeis, fiéis à realidade”. (JAKOBSON apud TOLEDO, 1976, p. 120)
26
A mesma dificuldade em se definir o que é o objeto da Teoria da Literatura,
ou que torna um texto literário, ou mais, o que torna um texto literário uma obra de
arte, encontramos na análise de uma obra sonora, pois requer um empenho
intelectual equivalente, e que, também, não pode propor a última verdade sobre uma
obra. Assim como foi produtivo para este trabalho pensar nas condições que tornam
um texto literário, não seria prudente deixar de reconhecer a relevância das teorias
que não tratam do texto literário como um todo, mas se ocupam em distinguir traços
literários em um texto, pois não é incomum encontrar literariedades em texto não
literário
as razões que fazem com que a Teoria Literária lide com novos
objetos
idade linguística, um elemento de constituição frasal,
textual, sujeito a sofrer a ação das propriedades específicas estudadas e tidas como
ia Literária.
2.3 O obje
2.3.1 O que é música?
s, como também, em textos tidos como literários encontrar trechos em que
carecem de literariedade e que nem por isso deixam de ser textos literários.
Vista como uma das artes, a literatura usa a linguagem como matéria-prima,
assim como a escultura usa a pedra, a pintura usa as cores e a música usa os sons.
Da sua linguagem, a literatura compartilhada com as outras linguagens, a
polissemia, a ficcionalidade e o estranhamento que é capaz de causar no leitor.
Estas são algumas d
como a canção, os quadrinhos, o cinema e, no caso específico, a
composição sonora.
Estas reflexões minimizam o distanciamento objeto/teoria, ou melhor,
reposiciona a teoria para uma melhor apreensão do objeto. O empenho seguinte é o
de reposicionar o objeto, conforme dito anteriormente. O que será estudado a seguir
não é o objeto em si, mas o processo de significação por que passa o objeto desde
a sua condição fenomenológica até o concluso da semiose, quando se faz signo e,
nesta condição, como un
objeto da Teor
to
Figura 1: Laerte, sobre a música
27
A questão “o que é música?” principia os estudos sobre o objeto desta
dissertação. Mesmo sabendo que ainda que fosse possível reunir todas as tentativas
com o intuito de responder esta questão, por mais reflexões que se faça e
conclusões que se tenha, não seria respondida, nem ela, nem a questão “o que é
isso que chamamos de música?”. É curioso como são resistentes estas questões.
Não vou voltar a repeti-las na dissertação, mas estarão em todas as entrelinhas,
pois todo este estudo está movido intrinsecamente por essa não certeza.
Desde o início do Século XX a música tradicional europeia enfrenta uma
crise, provocada pelo esgotamento do modelo convencional somado às novas
expectativas estéticas condizentes aos novos moldes sociais e culturais, resultantes
do progresso tecnológico e das experiências da primeira guerra mundial. Como
reação, surgem diversas tentativas de se afirmar uma nova música, a partir de novas
harmonias, formas e ritmos. Essa “música nova” principia o que hoje conhecemos
por música contemporânea. Desde então, a música entra em uma temporada de
retomadas e experimentalismos que duram até os dias atuais. Esses
experimentalismos que vão desde o neoclassicismo ao serialismo, dodecafonismo,
atonalismo, bem como projetos experimentais que usavam as novidades
tecnológicas, que permitiam as gravações, montagens, filtragens, como na música
concreta, música eletrônica, aleatória, minimalismo etc.
De lá para cá, foram muitas as tentativas de revigoramento da música, mas
essa multiplicidade musical tem sido incompreendida, não tem conseguido uma
condição de comunicabilidade. Esta é uma questão que requer estudos que
relacionem as fontes de sonoridades e os novos modos de escuta que essas
provocam.
Dos caminhos inaugurados irei me ater em um: o do uso de sons cotidianos,
da natureza, da cidade, com suas construções modernas, prática surgida desde a
música futurista, continuada pela musica concreta. Atualmente é muito comum o uso
concreto dessas técnicas na música eletrônica popular.
As pesquisas relacionadas à música concreta, feitas por Pierre Schaeffer,
exploravam os mais diversos sons, que depois de captados, isto é, gravados, eram
tratados e manipulados através de técnicas de composição, na época, inovadoras,
como retrogradação, sobreposição, alteração de andamento, entre outras.
Os sons não musicais na arte nunca tiveram o mesmo privilégio que os sons
musicais, dos instrumentos musicais. Será fundamental estudarmos a
28
fenomenologia musical de Schaeffer e fazer a diferenciação entre o objeto sonoro e
o musical, mas, antes, será preciso contar uma história.
2.3.2 Uma história da música
Apesar de ser o objeto sonoro reconhecido e seu conceito formado apenas
no Século XX, para a sua apreensão se torna necessário apelar para questões que
perpassam a história da filosofia da música, desde a antiguidade até a atualidade.
É necessário que se faça uma contextualização, por isso vou contar uma
história da música. Uma história, porque deixarei de incluir períodos, personagens,
lugares e até movimentos historicamente considerados importantes para dar uma
maior importância a outros que não tiveram tal relevância, mas que subsidiam
melhor este trabalho.
2.3.3 Corredor histórico
Traçar um corredor histórico corresponde a traçar um verdadeiro corredor
polonês, pois será preciso focar no que está proposto e resistir ao bombardeio de
fatos relevantes concernentes aos períodos que serão estudados. A história a ser
contada terá em sua tessitura duas intenções: a de enfatizar os momentos em que a
música quis contar (narrar) e mostrar (descrever), isto é, as ocasiões em que ela
tendenciou para a narratividade, ou descrição; e a outra intenção é afunilar a
contextualização para os indícios e germes que ocasionaram o surgimento do
conceito de objeto sonoro.
Contarei a história cronologicamente sem ter como foco principal datas e
nomes, mas com o cuidado de não perder a visão do processo acontecendo. Alerto
também que as minhas anotações serão, inicialmente, superficiais, mas na medida
em que cronologicamente a história se aproxime da contemporaneidade, irei me
detendo um pouco mais até chegar ao ponto fundamental do contexto, o que exigirá
uma detenção mais cuidadosa e substancial.
29
2.3.4 O diapasão do mundo
Figura 2: Xilogravura Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd (1617)
A gravura/ensaio acima não tem o status de reforço científico, mas é
reconhecível nela uma força metafórica suficiente para justificar o seu uso, ilustrando
a configuração sonora ambiental do planeta. O monocórdio divino simboliza o
mundo como um grande instrumento. A sua única corda retrata a tensão sonora do
planeta. R. Murray Schafer9, em seu livro Afinação do mundo (2001)10 trata o
planeta como uma composição musical macrocósmica.
Nesse livro, Murray fala das primeiras paisagens sonoras, relacionadas às
transformações da água, das vozes do vento, sons de árvores caindo, canto dos
pássaros, sons dos insetos. Esse cenário mostra um ambiente sonoro sem tensão,
por analogia, a afinação do diapasão do mundo era afável e cordial.
9 Raymond Murray Schafer (1933) é compositor, pedagogo musical, artista plástico, escritor, cenógrafo e investigador do universo da música e também do universo sonoro em geral. Desenvolveu uma importante pesquisa a respeito do ambiente sonoro alertando sobre o ruído ambiental indiscriminado e poluição sonora. Trata o mundo como uma vasta composição macro cósmica, composta pelos “músicos”, definidos pelo autor, como “qualquer um ou qualquer coisa que soe”. 10 A Afinação do Mundo (The Tuning of the World), publicado originalmente em 1977 e traduzido para o português pela Editora da Unesp (2001).
30
Fazendo as devidas parecenças, recorro a Pitágoras11, por ter sido o
primeiro, que ao relacionar a matemática à música, conseguiu através de cálculos
cientificar as tensões de seu instrumento musical. Pitágoras teria esticado uma
corda musical que produzia um determinado tom. Fez marcas na corda que a
dividiam em doze secções iguais. Este instrumento, mais tarde, foi chamado de
monocórdio.
Ao tocarmos em uma corda, provocaremos a sua vibração. A tensão da
corda determina a velocidade da vibração e a velocidade da onda sonora determina
a altura do som. As vibrações rápidas produzem sons agudos e os lentos sons
graves, por isso cada nota tem sua frequência (número de vibrações por segundo).
Uma corda frouxa propagará ondas mais lentas, portanto mais graves e até mais
próximas do silêncio. Já o inverso, isto é, se tocarmos uma corda mais tensa, as
ondas se propagam mais rapidamente, produzindo um tom mais agudo ou mais
ruidoso.
Figura 3: Harmonic partials on strings 12
Considerando que no princípio do mundo, a sua natureza estava em
desenvolvimento, com seus altos e baixos, invocamos a imagem da mão que
tenciona a tarraxa do monocórdio de Fludd (Figura 2) em movimentos, entre
11 Pitágoras de Samos, foi um filósofo e matemático grego que nasceu em Samos entre cerca de 571 a.C. e 570 a.C. Pitágoras, através da descoberta do monocórdio, fundiu na época a matemática e a música. 12 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Overtone.jpg (consultado em 15.07.2013.
31
silêncios e sons apocalípticos, procurando a afinação adequada. Ao encontrar a
frequência ideal, vem a estabilidade.
Figura 4: Detalhe da Xilogravura Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd (1617)
Assim como é na natureza, tem sido na arte. Para uma compreensão maior
vamos associar o pensamento de Georg Lukács, que concatena o que ele define
como desarmonia fundamental da existência a uma resolução na forma artística,
com o pensamento de Murray Schafer ao fazer a descrição da provável paisagem
sonora natural nos primórdios:
Toda a forma artística é definida pela dissonância metafísica da vida que ela afirma e configura como fundamento de uma totalidade perfeita em si mesma; o caráter de estado de ânimo do mundo assim resultante, a atmosfera envolvendo homens e acontecimentos é determinada pelo perigo que, ameaçando a forma, brota da dissonância não absolutamente resolvida. (LUKÁCS, 2000, p. 71)
Schafer, ao falar dos primeiros sons que se fizeram ouvir, dá como exemplo
“a carícia das águas”. Esta imagem de Schafer dá o “tom” de toda a paisagem: hálito
ou sussurro do vento que move as folhas ou galhos das árvores, uma paisagem
sonora natural, de onde se supõe um nível baixo de tensão sonora.
Quando o homem surgiu na terra já havia uma configuração sonora: o som
do mundo, o som da vida, ou uma “paisagem sonora”13, de acordo com a definição
de Schafer (2001):
Paisagem sonora - O ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente. (SCHAFER, 2001, p. 366)
13 Schafer criou o termo “soundscape” (paisagem sonora), neologismo que pretendia fazer uma analogia com a palavra “landscape” (paisagem).
32
O mundo e suas sonoridades, com todas as suas significações, tem
importância fundamental no processo da evolução do comportamento
comunicacional humano. Diz Schafer:
Os sons fundamentais de uma paisagem são os sons criados por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais. Muitos desses sons podem encerrar um significado arquetípico [...]. (SCHAFER, 2001, p. 366)
Afirmar que os sons surgiram com a origem do mundo, apesar de ser
especulação, é óbvio e lógico. Também não se sabe sobre o surgimento da música
nos primórdios. Neste aspecto temos o prejuízo de não ter testemunho histórico nem
provas que sustentem qualquer teoria. Essa tem sido uma questão, pode-se dizer,
que tem reunido em torno de si, conhecimentos multidisciplinares. Só admitindo os
estudos da biologia, antropologia, linguística, arqueologia, psicologia e outros
conhecimentos de diversas áreas, pode-se chegar a reflexões convincentes a
respeito do surgimento da música e do aparecimento de instrumentos musicais. Mas
todos os estudos se confluem quando admitem que a mola propulsora para a
criação das linguagens foi a necessidade de comunicação.
2.3.5 Communis
COMUNICAÇÃO. Do latim “communicatio”, de “communis” = comum. O
homem necessitou se comunicar, criou linguagens e se expressou. Apesar da
explicação ligeira, esse processo perdurou por milhares de anos. No processo de
interação humana, a linguagem é a mediadora, possibilitando que essa interação se
realize através de signos que, quando organizados, resultam em mensagens. Por
falta de cientificidade, também não é possível dar explicações admitidas pelo padrão
de qualidade acadêmica sobre a origem das linguagens. Apesar disso, teorias
apontavam para o caminho natural que mostra que antes de desenvolver a
linguagem verbal, a necessidade de tornar algo comum a muitos levou o homem a
desenvolver linguagens não verbais como o desenho, o gesto e entre elas a
linguagem sonora, como a imitação dos sons produzidos pelos animais e da
natureza circundante, como o correr das águas, o sopro do vento e o barulho da
chuva, conforme prega a teoria onomatopaica, respaldada pelo fato de existir
onomatopeias em todas as línguas. Outra proposta identifica a semente da
linguagem nas interjeições, nas exclamações de dor, alegria, susto, surpresa, medo
33
e expressões de emoções. Não é intenção, neste momento dos estudos, focar nas
questões da origem do uso da linguagem sonora, muito menos indicar o momento
em que surgiu a linguagem musical. Sobre a comunicação e linguagem, tratarei em
capítulos mais adiante. Como estou apenas tratando de aspectos históricos, não vou
me deter em definições por ora.
O importante, e ponto a ser enfocado, nesta altura deste estudo é já detectar
as tentativas de “mostrar” algo e de “contar” as ocorrências, descrever lugares e
narrar acontecimentos, com intenção de se comunicar, de passar informação
adiante, de se expressar.
2.3.6 Mostrar e contar
As artes sempre se ocuparam em mostrar e contar. Lembremos-nos de
Victor Chklovski, quando destaca a afirmação “a arte é pensar por imagens” de
Potebnia (apud CHKLOVSKI, 1976, p. 39). Esta concepção permeará todo este
trabalho Mostrar é descrever e contar é narrar. No decorrer desta dissertação, estes
conceitos serão tratados como polos, considerando que o efeito destes pontos de
vista será mais contundente e até esclarecedor em abordagens que surgirão e que,
apesar de conhecer que entre mostrar e contar existam graduações de prevalência
em uma narrativa ou em formas criativas de mesclagem, no que se refere à
linguagem musical ou sonora, é necessário fazer a separação em planos. Por
exemplo, na linguagem musical, na melodia é onde se desenvolve a narração, onde
está o plano discursivo, o contar, enquanto no arranjo harmônico está o plano
descritivo, que criará o ambiente, a atmosfera. Com a linguagem sonora ocorre o
mesmo, se divide em planos, onde o primeiro plano que, por analogia, corresponde
à melodia, será o espaço das ocorrências de relações entre os signos sonoros
(objetos sonoros) organizados sequencialmente, formando frases, enunciados,
fragmentos discursivos; enquanto em segundo plano, correspondente ao arranjo, ao
campo harmônico, se descreve, se mostra, é onde se formata o lugar, o cenário, o
ambiente, o clima, a paisagem sonora.
No conceito de arte musical, os sons, os ruídos não tinham o status dos
sons oriundos dos instrumentos musicais. Como arte, somente a linguagem musical
teve os privilégios. A música sempre teve como unidade sintática os sons
produzidos pelos instrumentos musicais. No entanto, em sua história podemos
identificar os momentos em que a música pretendeu evocar ideias ou imagens
34
extramusicais na mente do ouvinte, em formas narrativas (diegéticas) ou descritivas
(miméticas).
2.3.7 Mímesis e diegesis
É importante falar da música da Grécia, pois a música ocidental se formatou
a partir de uma herança grega. Quanto aos aspectos estéticos não é possível fazer
tal afirmativa com tamanha certeza, pois não existem muitos exemplos da música
praticada na Grécia antiga, mas quanto ao pensamento filosófico musical, sem
dúvidas, temos um grande legado que parte das ideias de Pitágoras, Platão e
Aristóteles. Sabe-se que fazer uma reconstituição histórica das concepções musicais
da antiguidade resulta em um grande problema, pois testemunhos referentes aos
séculos anteriores a Platão e Aristóteles são extremamente escassos, fragmentários
e indiretos. Apesar disto, revelam sempre a existência de culturas musicais
consistentes e que possivelmente influenciaram a cultura grega, como a música
egípcia, árabe, indiana, chinesa, hebraica etc.
Apesar de não termos exemplos musicais da Grécia ou informações sobre a
música em si, pois no terreno da música não encontramos conhecimentos tão
relevantes como na filosofia, religião e ciência, mas nas obras gregas encontra-se
subsídios importantes, principalmente na República, de Platão e Poética, de
Aristóteles, no que se refere à mímesis e a diegesis.
Mas, antes ainda, no período pré-socrático, de Pitágoras, Heráclito e
Parmênides, a música (ou musiké) não era vista como uma criação humana, mas
como parte de um sistema cosmológico, a manifestação de um princípio universal,
um arché14. Dentro desse contexto, não se especula sobre o que a música significa,
mas se sente a música.
Quando dizemos que o som era sentido, sua força era de tocar o homem para qualquer lugar e não de fazer o homem refletir sobre este fenômeno, dividi-lo, analisá-lo. Assim, a gestualidade espontânea do corpo é já por si mesma uma certa objetivação, uma certa manifestação do sentido. Ela não é, obviamente, a objetivação de uma ideia, mas a de uma situação no mundo sobre a qual se decalcam as próprias ideias, Tal sentido, que os fenomenólogos consideram a raiz do homem, encerrava imediatamente para o
14 Para os filósofos pré-socráticos, a arché (origem), significa a fonte, a substância inicial, a origem e a raiz de todas as coisas da physis (natureza), de onde as coisas vêm e para onde vão, um princípio presente em todos os momentos da existência de todas as coisas; no início, no desenvolvimento e no fim de tudo.
35
homem a pergunta sobre o mundo e o convidava a sondá-la, sem sair desse sentido. Portanto, a fonte da música, da forma como a compreendemos hoje, só pode estar na experiência auditiva e compulsória do universo. Daí, também, a frase de Heráclito: ouvir o lógos, não para entendê-lo, mas apenas para ouvi-lo e escolher um dos caminhos que aprofundassem a própria audição. (TOMÁS, 2002, p. 50)
Apesar de que Platão tinha suas bases conceituais relacionadas à música
na filosofia pré-socrática, sua filosofia estava voltada para a educação, ou paidéia, e
em seu papel paidético, pedagógico, a música deixava de ser a manifestação do
arché e passava a ser sua imitação, uma representação mimética do mundo ideal.
Na época de Platão, a "representação" artística em geral era chamada de
mímesis15. Para Platão, até mesmo a criação do mundo era uma imitação da
natureza verdadeira (o mundo das idéias). Sendo assim, a representação artística
do mundo físico seria uma imitação de uma imitação. Já Aristóteles via a arte como
representação do mundo, da natureza, não fala de natureza verdadeira. Apesar de
serem visões distintas, são dois pontos de vista, que, para uns, se contradizem e,
para outros, se complementam.
Os gregos clássicos pensavam a arte como uma figuração enraizada na
mímesis, na representação, ou, melhor, na "apresentação" da beleza do mundo, na
produção de imagens e a música era um exemplo privilegiado de mímesis, sem que
seja imitativa no nosso sentido restrito. A música era usada pedagogicamente,
cuidava da alma, tratava-se de uma "modelagem" do aluno, da sua alma.
Para Aristóteles música é um ato mimético, é expressão da vida afetiva, é
interioridade que se exterioriza, subjetividade que se sente, mímesis do anímico, “ao
ouvir tais mimeses, a alma muda de estado” – acompanha e reproduz animicamente
o mélos que ouve, que sente. Para ele, a música representa os estados da alma,
como coragem, brandura, temperança, ira, medo etc.
Platão e Aristóteles também distinguiram mímesis de diegesis, sendo a
diegesis não a representação do real através da arte, mas o que era encenado. Os
atores descreviam e atuavam. Na diegesis, o autor conduzia o espectador a
expressar com liberdade a sua criatividade e as suas fantasias. A diegesis pode ser
compreendida como “contar”. O narrador descreve o pensamento e as emoções dos
15 O conceito ou a tradução por "imitação" faz perder muito do sentido. Inclusive há dificuldade em encontrar um termo equivalente ao grego na Língua Portuguesa.
36
personagens, enquanto a mímesis é vista como “mostrar” o que está acontecendo
com as personagens através de seus pensamentos e suas ações.
Então, desde a Grécia se reconhece a capacidade mimética da música e
durante sua história, a música foi vista como mímesis dos sentimentos, estados de
espírito, das emoções e das paixões.
2.3.8 A semântica na tradição musical
Eu escuto a cor dos passarinhos.16
Manoel de Barros
Sempre recorremos aos filósofos gregos e aos conhecimentos romanos,
pois nenhuma história pode ser contada desconsiderando as contribuições desses
pensadores. Mas não temos modelos, exemplos da música praticada antes da Idade
Média. A história da música ocidental sempre é contada a partir da música da igreja
cristã primitiva e o foco sempre está nas orações, nos cantos devocionais, como os
cantos dos salmos (salmodias), em que as melodias e as formas musicais eram
estabelecidas por sua relação com o texto. Entre essas formas estão o cantochão, o
canto litúrgico e o coral gregoriano, que é reconhecido por sua riqueza melódica,
cantada em ritmo prosódico, devido à sua subordinação ao texto.
Da música religiosa para a música profana: algumas formas musicais
surgiram, ligadas à dança e à poesia lírica popular, cantadas nas aldeias,
consideradas “subversivas”, conhecidas historicamente como música profana.
Dessas combinações entre texto e música, no século XI, surge o movimento
trovadoresco e novas formas de canções profanas (música combinada com a poesia
lírica dos trovadores e ladainhas, formas das antigas epopeias em verso) e, também,
sacras (música combinada com sequências e versículos sacros, hinos ambrosianos,
etc.).
No século XIII, uma espécie de constatação de que a música poderia se
desenvolver de outra forma que não ao modo do texto, moveram a música para uma
tendência polifônica. Diz Carpeux:
Houve, dentro do coral gregoriano, o germe de uma evolução: a contradição entre a obrigação de acompanhar fielmente o texto litúrgico à maneira de recitativo, e, por outro lado, a presença de tão
16 O livro das ignorãças - VII
37
rica matéria melódica, os “melismos” que se estendem longamente quase como coloraturas, sem consideração do valor da palavra. Essa contradição levaria à divisão das vozes: uma recitando o texto; outra, ornando-o melodicamente. São essas as origens das primeiras tentativas de música polifônica, do Organum e do Discantus [...] (CARPEUX, 2009, p. 20)
As composições polifônicas crescem durante o século XIII, mas é no século
XIV que consegue introduzir recursos de organização musical suficientes para lhe
garantir um maior grau de autonomia em relação ao texto. A ars nova17 faz
progressos na notação, com recursos que equilibrariam a melodia, o ritmo e a
harmonia, aperfeiçoando o sistema da pauta, em que se modificaram desenhos e
valores de várias notas e também foram introduzidos diversos símbolos inteiramente
novos18, popularizando várias estruturas novas de composição, privilegiando, desta
forma, os gêneros de música profana.
Apesar da aparente autonomia da parte musical em relação ao texto, essa
relação será estabelecida sobre outros parâmetros mais adiante: a retórica e
oratória. Embora tenham ocorrido mudanças no pensamento ocidental, a partir do
século XV e XVI, que alteraram significativamente a relação entre o homem e
mundo, as músicas da Idade Média e da Renascença, quando miméticas,
continuavam sendo entendidas como representações das paixões, bem ao modo da
antiga tradição grega, sendo conservada. Inclusive, os tratados musicais medievais
e renascentistas, sustentavam as traduções dos antigos textos atribuídos a
Pitágoras, Platão, Aristóteles, Ptolomeu, Plutarco etc. No entanto, neste mesmo
período surgiram indícios de mudanças. A capacidade mimética da música não
ficaria restrita aos sentimentos e paixões do homem, outras qualidades especiais da
música foram descobertas, entre elas a sua capacidade de sugerir cenários
(mostrar) e situações (contar). Desta habilidade surgiu a música conhecida como
descritiva, ou música programática (apesar destas denominações não existirem à
época).
A música de programa, ou música descritiva é a música que tem por objetivo
evocar ideias ou imagens extramusicais, representando musicalmente uma cena,
uma imagem ou estado de ânimo. A música programática pode narrar e descrever.
17 Ars nova (arte nova, em português) foi o nome dado em sua origem, a um novo método de notação musical. Aas grandes facilidades de escrita que o método introduziu propiciaram o desenvolvimento de todo um novo estilo musical, que acabou por receber o mesmo nome. 18 Manuscrito disponível nos anexos.
38
Se nas canções, que são formadas de texto e melodia, podemos entender que cabe
ao texto sugerir, fazendo-nos imaginar lugares, personagens e ações, pois o texto
nos induz a isso, quanto à música instrumental, poderíamos perguntar: terá a música
também esse poder sugestivo? Há séculos essa qualidade da música que envolve
som e pensamento tem sido explorada, chegando ao ponto de se criar um termo
específico para esse tipo de música instrumental: “música programática” ou “música
descritiva” que se contrapunha à música instrumental que não ambicionava sentidos
representativos, que passou a ser denominada “música absoluta”, termo criado para
se fazer a distinção. Ambos os termos foram criados no século XIX, assim, puderam
ser colocadas em polos opostos de intenção. De um lado, a música pura, que almeja
ser apenas música; de outro, a música programática, que tenta representar algo
além dela mesma, que tem a intenção de gerar imagens ou sensações específicas
em nossa mente, nos fazendo imaginar lugares, experiências e narrativas, apenas
por meio de sons musicais.
Os compositores da Idade Média e do Renascimento escreveram uma
abundância de música programática. No século XIV, na Itália, a caccia19, era um tipo
de composição para descrever uma caçada. Os compositores da época, que criaram
essa forma, entendiam que o modo adequado de se fazer essa imitação era através
de cânones20, isto é, uma voz em perseguição da outra. No século XVI, tinham os
madrigais, que não se limitavam em ser apenas fundos para as palavras. Tinha-se,
então, uma noção de que a música poderia ser feita para acompanhar o sentido da
palavra, estar subjacente a ela, isto é, para sentimentos superiores, melodias
ascendentes, para estados inferiores, notas descendentes. Na obra The Battle, o
compositor William Byrd21 produziu descrições de situações dos soldados, como
marcha da infantaria, marcha da cavalaria, trombetas, gaitas de foles, marcha
irlandesa e tabal, flauta e tabal, marcha para a batalha, tropas se confrontando, a
retirada, gala da vitória etc.
19 Caccia, (italiano: "caça" ou "perseguição"), foi uma das principais formas musicais da Itália do século 14. Consistia de duas vozes, em cânone (imitação melódica) no uníssono (mesmo tom), e muitas vezes de uma terceira parte não-canônico, composto por notas longas que alicerça as vozes canônicas, seguido por um ritornello. Os textos Caccia eram tipicamente realistas cenas de caça. 20 Cânone é uma forma polifônica, em que as vozes imitam a linha melódica cantada por uma primeira voz, entrando cada voz, uma após a outra, como uma espécie de corrida onde a segunda jamais alcança a primeira. 21 William Byrd (1543-1623), foi um compositor inglês. Foi considerado o maior compositor de contraponto de sua época na Inglaterra.
39
Johann Kuhnau22 escreveu sonatas bíblicas, Couperin23 fez a peça para
cravo La Forqueray, que era a descrição, ou o “retrato” de Forqueray, esposa de
Antonio Forqueray, músico da corte de Luis XIV.
Bach24 cria a fuga25, forma mais elaborada do cânone. Explora a fuga com a
forma de variações sobre o tema, variando o tom, o ritmo e especialmente a voz,
com uso de imitação. O próprio nome já indica, como se o compositor estivesse
fugindo e perseguindo o tema (uma espécie de perseguição entre as vozes).
No período barroco, as noções de expressividade da música vão mais além.
Os cuidados em encontrar um sistema mais simples e racional com o fim de adaptar
a música às palavras, de encontrar uma correspondência e uma congruência entre
música e o sentido da palavra, pois, tendo cada palavra uma carga semântica, ter-
se-ia que encontrar a harmonia equivalente na música para corresponder por
analogia. A música deveria “mover os afetos” a partir da perspectiva do texto. Para
os cuidados com a palavra no barroco foram criados cuidados correspondentes para
a música instrumental barroca, como a articulação e fraseado. Esse é um momento
em que a musica instrumental se desenvolve rapidamente, pois se estudava a
retórica clássica para um aprimoramento nas composições musicais.
Provavelmente a obra barroca mais famosa seja As quatro estações26, de
Antonio Vivaldi27, um conjunto de quatro concertos para violino e orquestra de
cordas que ilustra as estações do ano com chuva, zumbido das moscas, ventos
gelados, esquiadores sobre o gelo, camponeses em baile e muitas outras coisas.
Estes quatro concertos tinham um programa claro, pois vinham acompanhados por
um soneto ilustrativo impresso na parte do primeiro violino, cada um sobre o tema da
22 Johann Kuhnau (1660-1722), foi um compositor alemão, organista e teorista musical. Precedeu Johann Sebastian Bach como kantor da Igreja de São Tomás, em Leipzig. 23 François Couperin (1668-1733) foi um compositor e cravista francês. 24 Johann Sebastian Bach (1686-1750) foi um compositor, cantor, maestro, professor, organista, cravista, violista e violinista da Alemanha. Praticou quase todos os gêneros musicais conhecidos em seu tempo, com exceção da ópera. Sua habilidade ao órgão e ao cravo foi amplamente reconhecida, sendo considerado o maior virtuose de sua geração e um especialista na construção de órgãos. 25 Fuga é um estilo de composição contrapontista, polifônica e imitativa, de um tema principal, com sua origem na música barroca. Na composição musical o tema é repetido por outras vozes que entram sucessivamente e continuam de maneira entrelaçada. Sua origem se dá na forma musical chamada de cânone. 26 Le quattro stagioni ( As Quatro Estações), são quatro concertos para violino e orquestra do compositor Antoni Vivaldi. As Quatro Estações está entre as peças mais populares da música barroca. 27 Antonio Lucio Vivaldi (1678 - 1741) foi um compositor e músico italiano do estilo barroco tardio. Era conhecido também como il prete rosso (o padre ruivo) por ser um sacerdote católico de cabelos ruivos. É conhecido popularmente como autor dos concertos para violino e orquestra Le quattro stagioni (As Quatro Estações).
40
respectiva estação. Não se sabe a origem ou autoria desses poemas, mas especula-
se que o próprio Vivaldi os tenham escrito.
No período clássico a música programática pouco se desenvolveu, por ser
uma época em que a música nutria-se dos seus recursos internos.
Beethoven28 compôs a Sinfonia nº 6, A Pastoral, que contém descrições dos
cantos dos pássaros, água correndo, camponeses dançando, uma trovoada,
expressões entre a descrição de sentimentos e a descrição de situações da vida no
campo, etc. Beethoven voltou depois à música de programa com a sua Sonata para
piano Op. 81a, Les Adieux, que descreve a despedida e o regresso do seu amigo, o
Arquiduque Rudolfo de Áustria29, Em compensação ao período clássico, a música
programática floresceu na música romântica.
Berlioz30 criou um gênero descritivo, chamado por ele de “sinfonia
descritiva”. O primeiro exemplo é a Sinfonia Fantástica (1830), uma narração
musical de uma historia de amor, vivida pelo autor. Berlioz mescla estruturas como a
forma-sonata e sinfonia tradicional, com elementos narrativos, dramáticos, para
contar a história da Sinfonia Fantástica.
Muitos compositores românticos posteriores a Beethoven, encontravam, em
outras fontes artísticas, como na poesia e pintura, inspiração para compor,
ampliando as possibilidades de expressão, dentro do romantismo. Berlioz tinha um
grande talento literário e vários compositores românticos tinham formação artística e
frequentemente dialogavam com outras artes. Schumann. Mendelssohn e Wagner31,
por exemplo, também pintavam, e foi por seu pioneirismo em avanços da linguagem
musical que Richard Wagner se tornou o compositor mais representativo deste
período. A sua influência vai além da música, é também conhecida na filosofia32,
literatura, artes visuais e teatro. Wagner tinha conceitos artísticos multifacetados e 28 Ludwig van Beethoven (1770 - 1827) foi um compositor alemão, do período de transição entre o Classicismo (século XVIII) e o Romantismo (século XIX). É considerado um dos pilares da música ocidental, pelo incontestável desenvolvimento, tanto da linguagem como do conteúdo musical demonstrado nas suas obras. 29 Rudolf Johannes Joseph Rainier von Habsburg-Lothringen (1788 -1831), italiano, foi um arquiduque e príncipe imperial da Áustria, príncipe da Hungria, arcebispo e cardeal de Olomouc, membro da Casa de Habsburgo-Lorena. 30 Louis Hector Berlioz (1803 - 1869) foi um compositor do Romantismo francês. 31 Wilhelm Richard Wagner (1813 – 1883), foi um maestro, compositor, Suas composições são admiradas por suas texturas complexas, harmonias ricas e orquestração, e o elaborado uso de Leitmotiv. 32 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 - 1900), foi admirador da filosofia de Wagner na música e na arte. Ele admira o poder de Wagner de emocionar e se expressar. Em seu último ano de lucidez (1888-1889), Nietzsche escreve o ensaio crítico Nietzsche contra Wagner. Nele, descreve porque se separou de vez de seu ídolo e amigo, expressando desapontamento e frustração nas escolhas pessoais de Wagner, como a sua conversão ao cristianismo, vistos como um sinal de fraqueza.
41
apesar de por vezes se basear só na música para ilustrar, como uma pintura ou um
poema, também desejava a fusão das artes (cenografia, dramaturgia, coreografia,
poesia, etc.), uma arte total e sinestésica. Dois conceitos wagnerianos são
importantes e por esta razão vou destacá-los:
Leitmotiv (em português, “motivo condutor”), são temas musicais associados
com caráter individual, lugares, ideias ou outros elementos. É uma técnica de
composição introduzida por Richard Wagner em suas óperas, que consiste no uso
de um ou mais temas que se repetem sempre que se encena uma passagem da
ópera relacionada a uma personagem ou a um assunto.
Gesamtkunstwerk (em português, "obra de arte total") é um conceito
estético, refere-se à conjugação de música, teatro, canto, dança e artes plásticas em
uma única obra de arte. Wagner acreditava que, na antiga tragédia grega, esses
elementos estavam unidos, mas, em algum momento, separaram-se. Wagner
resgata o antigo conceito estético, o ideal grego da fusão das artes poéticas, e seus
dramas musicais eram compostos como uma grande sinfonia dramática, para serem
encenadas e cantadas.
Surgem novas possibilidades formais para conter conceitos narrativos, como
o gênero Abertura Sinfônica para expressar argumentos extramusicais, como em
Manfredo, de Schumann, ou como em As Hébridas, de Mendelssohn, a ponto desse
alargamento da forma programática se desenvolver em poema sinfônico, gênero
descritivo especificamente destinado a sugerir imagens extramusicais. Franz Liszt33
foi o inventor do poema sinfônico.
Em 1874, Modest Mussorgski34 compôs uma série de peças descrevendo a
contemplação de dez pinturas e desenhos dos seus amigos numa galeria (Quadros
de uma exposição). O compositor francês Camille Saint-Saëns compôs muitas peças
breves que também qualificou de poemas sinfônicos. O compositor francês Paul
Dukas é recordado pelo seu poema sinfônico O aprendiz de feiticeiro, baseado num
conto de Goethe. Tchaikovsky35, em Abertura 1812, descreve o confronto entre as
tropas imperiais da Rússia e as de Napoleão Bonaparte, incluindo fragmentos onde
33 Franz Liszt (1811 -1886) foi um compositor e pianista húngaro do Romantismo. 34 Modest Petrovich Mussorgsky (1839 - 1881), compositor e militar russo conhecido por suas composições sobre a história da Rússia medieval. 35 Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840 - 1893) foi um compositor romântico russo tendo composto trabalhos como sinfonias, concertos, óperas, balés, música de câmara e obras para coro para as liturgias da Igreja Ortodoxa Russa.
42
se reproduz La Marsellesa, símbolo do exército invasor e o compositor alemão
Richard Strauss36, que compôs poemas sinfônicos como, por exemplo, Don Quixote
(retratando episódios da obra de Miguel de Cervantes), ou a Sinfonia Doméstica
(que narra episódios da vida familiar do compositor). Afirma-se que Strauss afirmou
que com música se pode descrever qualquer coisa, mesmo uma colher de café37.
Debussy38, compositor impressionista é um exemplo contundente da
capacidade em descrever. Em sua obra La mer, usa harmonias e sonoridades
convincentes, para imitar os movimentos e a voz do mar.
Figura 5: Quadro de Hokusai39 A grande onda, que inspirou Debussy em sua obra La Mer
Debussy chegou a ser considerado autor de uma música “literária” e
“pictórica”, devido às suas ligações com a poesia simbolista e com o Impressionismo
nas artes plásticas. O uso de acordes como pontos de parada sonoros têm a mesma
função dos símbolos verbais da poesia simbolista da qual Debussy também é
contemporâneo. Por essas razões foi considerado compositor da poesia simbolista,
chegando a pôr em músicas poemas de Verlaine e Mallarmé. O poema sinfônico de
Debussy, Prélude à L'après-midi d'un faune (Prelúdio à tarde de um fauno) foi
36 Richard Georg Strauss (1864 - 1949), foi um compositor e maestro alemão. Ele é considerado um dos mais destacados representantes da música entre o final da Era Romântica e o início da Idade Moderna. 37 Richard Strauss Biography. Site Humanities Web. Disponível em <http://www.humanitiesweb.org/human.php?s=c&p=c&a=b&ID=60>. Acesso em 11 jun 2013. 38 Claude-Achille Debussy (1862 -1918) foi um músico e compositor francês. 39 Katsushika Hokusai (1760-1849), artista japonês, pintor e gravurista.
43
baseado no poema L'après-midi d'un faune40 de Mallarmé41, publicado em 1876,
com ilustrações do pintor impressionista francês, Édouard Manet.
Figura 6: Ilustração de Édouard Manet para a edição original do poema L’Après-midi d’dun Faune
(1876).
Muitas peças de Debussy tinham títulos poéticos e esses títulos já sugeriam
o seu tom descritivo poético. Por exemplo, a peça para piano La fille aux cheveux de
lin (A menina dos cabelos de linho), Jardins sous la pluie (Jardins na chuva) e
Reflets dans l'eau (Reflexos na água), são títulos que já antecipam que se trata de
uma música impressionista descritiva, que já sinalizam a intenção da descrição
poética.
A aspiração de Debussy em marcar as “impressões” se estende em Ravel42,
seu seguidor, que dá títulos também dotados de poeticidade às suas peças, como
na Pavane pour une enfante défunte (Pavana43 para uma Princesa Defunta). Ravel
também, a exemplo das técnicas da pintura, faz um trabalho minucioso com a
textura e a intensidade em sua obra Em O bolero, uma simples melodia, de
intensidade fraca, desfila vagarosa e, gradativamente, vão ingressando outros
40 O poema conta a história de um fauno que toca sua flauta nos bosques e fica excitado com a passagem de ninfas e náiades, tentando alcançá-las em vão. Então, muito cansado e fraco, cai em um sono profundo e passa a sonhar com visões que o levam a atingir os objetivos que dentro da realidade não tinha alcançado. 41 Stéphane Mallarmé, cujo verdadeiro nome era Étienne Mallarmé, (1842-1898) foi um poeta e crítico literário francês. 42 Joseph-Maurice Ravel (1875-1937) foi um compositor e pianista francês. 43 A pavana era uma dança espanhola tradicional, em movimentos lentos, muito popular entre os séculos XVI e XVII.
44
instrumentos, seduzidos pela melodia, reforçando o discurso melódico, criando uma
dinâmica timbrística, até formar uma textura com toda a orquestra envolvida,
imprimindo uma forte intensidade. A partir do Romantismo, os compositores
passaram a valorizar mais o timbre e a intensidade, tratando-os como propriedades
de suma importância da música, pois as compostas até o período romântico
procuravam privilegiar altura (melodia) e duração (ritmo). Ravel considerava o Bolero
uma peça trivial e a descreveu como "uma peça para orquestra sem música", no
entanto, é a sua obra mais famosa e uma das músicas mais executadas até os dias
de hoje. Ravel é considerado por muitos como o último grande mestre clássico da
música europeia, ou que tenha sido plenamente reconhecido pelo grande público.
Certo ou não, a questão é que depois de Ravel as relações entre o público e os
compositores mudaram.
Quanto à relação sonoridade/pictoridade, encontradas nas obras
impressionistas, com destaques para Ravel e, principalmente Debussy, observa-se
que não se limita a uma afinidade simplesmente analógica, mas que está antes
fundada em um grau de correspondências que se aplica à linguagem em si,
qualquer que seja, independente da arte. Essas influências são recíprocas,
Kandinsky, por exemplo, em seu livro Ponto e Linha sobre Plano (2012), usa a
analogia com a música para descrever características de traço, linha e ponto e suas
relações com a música:
Sabemos o que é uma linha melódica. A maioria dos instrumentos musicais corresponde ao caráter linear. O volume do som dos diferentes instrumentos corresponde à espessura da linha: o violino, a flauta, o flautim produzem uma linha bem delgada; de uma linha mais espessa – produzida pela viola e pela clarineta -, chegamos pelos sons mais graves do contrabaixo e da tuba, às linhas mais espessas. Além de sua largura, a coloração da linha depende também da cor própria dos diversos instrumentos. O órgão é um instrumento tipicamente linear, tanto quanto o piano é um instrumento decorrente da ideia de ponto. Podemos constatar que na música a linha representa o meio de expressão predominante. Ela se afirma aqui, como na pintura, pelo volume e pela duração. Nessas duas artes, o problema Tempo e Espaço é um tema à parte, e sua separação conduz a uma atitude timorata devido à qual as noções Tempo-Espaço e Espaço-Tempo foram demasiado divididas. Os graus de intensidade, do pianíssimo ao fortíssimo, podem encontrar seu equivalente no crescimento ou no decrescimento da linha, ou então em seu grau de clareza. A pressão do gesto sobre o arco corresponde exatamente à pressão do gesto sobre a ponta. (KANDINSKY, 2012, p. 86-87)
45
Debussy foi muitas vezes descrito como um compositor intuitivo,
improvisador e sonhador, quase sempre foi comparado aos pintores impressionistas,
especialmente a Claude Monet; e sua maneira de compor foi rotulada de
impressionista. As suas sequências de acordes, conforme as regras da teoria, eram
substituídas pela sucessão de acordes isolados. Essa técnica deu margem aos seus
contemporâneos associarem à maneira dos pintores impressionistas de cobrir a tela
de manchas coloridas (pointillisme). No entanto, Debussy era um fazedor de
estruturas, de quadros sonoros, que quantificava, que pensava as proporções como
respostas formais às estruturas poéticas dos poemas modelos, como o de Mallarmé.
Com o tempo, suas técnicas foram reconhecidas como inovações musicais e a sua
obra passou a ser compreendida, tornando-se um marco na história da música
europeia, causando uma verdadeira revolução e inaugurando a música moderna.
Mas a convivência entre a música programática e a música absoluta não era
pacífica. Havia uma divisão entre as maneiras de se compor. Durante todo o
romantismo, foram muitas discussões e até disputas quanto à questão estética ou o
valor artístico da música programática, entre teóricos, críticos, maestros e
compositores. Muitos eram contra a intenção de expressar sentimentos com música
e exaltavam o valor musical apenas por suas qualidades intrínsecas,
desconsiderando qualquer atribuição extramusical.
2.3.9 Tempos modernos
Abra a janela e ouça: música44
John Cage
Peço licença para tirar o foco do corredor histórico traçado e fazer uma
parada necessária e abrir uma janela para olharmos os acontecimentos e
acompanharmos as transformações sociais, econômicas, provocadas pelas novas
tecnologias. Esta parada estratégica é determinante para compreendermos as
razões que motivaram tantas tentativas de manuseio, tantos experimentos e
proposições que resultaram em modificações, rupturas, encantos, exageros,
variações, precipitações, erros, ajustes e acertos com a linguagem musical que
ocorreram a partir desse período de transformações em todos os segmentos e
44 FERRAZ, 2005, p. 97
46
aspectos por quais passou a humanidade. De modo algum poderíamos
desconsiderar esses fatos. Não nos situaríamos sem esta parada capciosa.
Figura 7: Cartaz do filme Tempos Modernos (1936)
2.3.10 O mundo em revolução
Há sempre uma sonoridade no fio de Ariadne.45
Deleuse e Gattari
O início do século XX corresponde a um período de grandes mudanças
provocadas pela revolução industrial, que teve o seu início no final do século XVIII
na Inglaterra. Com o surgimento das máquinas e locomotivas, que iniciaram o ciclo
das grandes invenções, uma série de transformações ocorreu no campo da ciência e
da técnica, compondo e decompondo os centros urbanos. O processo de
industrialização criou meios de transportes, máquinas e objetos industriais que
ocuparam a vida do homem, em todos os aspectos, inclusive no mais relevante, no
motivo pelo qual fizemos a nossa parada astuta: a questão do som ambiente. O
homem da cidade começou a ter contato com uma nova configuração sonora do
mundo. Os sons de motores e engrenagens, de produtos feitos de matérias como
ferro, vidro, plástico e outros.
45 Em Acerca do Ritornelo (DELEUSE, 2012, v. 4, p. 122).
47
A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica46, influente ensaio
de Walter Benjamin, fala das novas formas de recepção e de uma estética da guerra
e das perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas consequências,
engendrou nas massas.
O monocórdio imagético que tenciona o mundo reflete bem a condição do
planeta no período industrial em seu aspecto sonoro. Enquanto as primeiras
paisagens sonoras (SCHAFER, 2001), relacionadas aos sons da natureza
mostravam um ambiente sonoro sem tensão, a afinação do monocórdio se mostra
acolhedora e cordial. Com suas graduações e chegado o momento de tensão, no
ápice da revolução industrial, a afinação monocórdica chega a um tom desconhecido
até então, a uma elasticidade transitória que chega no momento crítico de tensão
sonora e dissonância do mundo, que requer da arte uma postura diferente, pois nem
o ambiente sonoro, nem a sociedade, nem a arte e nem a música eram mais os
mesmos.
Foi nesse clima de tensão, em meio ao inconformismo, que surgiu o
futurismo italiano, iniciado a partir do Manifesto Futurista47, publicado pelo poeta
italiano Filippo Tommaso Marinetti48. O futurismo queria uma arte que refletisse o
impacto tecnológico, queria a ruptura com a arte do passado e a celebração das
novas tecnologias.
Em meio aos artistas futuristas estava o pintor Luigi Russolo, que conseguiu
encontrar na música a expressão que melhor traduzia o espírito futurista, e como
consequência fez um dos manifestos mais significativos para a história atual da
música: A arte dos ruídos.
46 A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (no original em alemão, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit) é um ensaio do filósofo Walter Benjamin sobre a arte no século XX, na era industrial, que analisa a sua existência na era da cópia, da fotografia. 47O Manifesto Futurista foi publicado no jornal francês Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909. Este manifesto marcou a fundação do Futurismo, um dos primeiros movimentos da arte moderna. Consistia em 11 itens que proclamavam a destruição do passado e a identificação do homem com a máquina, a velocidade e o dinamismo do novo século. 48 Filippo Tommaso Godoy Marinetti foi um escritor, poeta, editor, ideólogo, jornalista e ativista político italiano. Foi o iniciador do movimento futurista.
48
2.3.11 L’Arte dei Rumori
bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!49
James Joyce
Luigi Russolo, no seu manifesto L’Arte dei Rumori, traduz a intenção
futurística na música, ao recomendar aos músicos futuristas que ampliem e
enriqueçam cada vez mais o campo dos sons, apartando-se progressivamente do
som puro ao ruído, substituindo a limitada variedade dos timbres dos instrumentos
pela infinita variedade dos timbres dos ruídos mecânicos.
É importante, neste momento, explicar que o termo “ruído” utilizado por
Russolo, difere do conceito de ruído para a teoria da informação, como também da
teoria da comunicação, que são os signos indesejáveis que se interpõem ao
processo comunicacional.
Em teoria da informação, designa-se por ruído qualquer perturbação que ocorra na transmissão do sinal, tal como uma voz muito baixa, falta de atenção do receptor, muita informação, linguagem inadaptada ao público ou código mal adaptado. O mecanismo compensatório do ruído designa-se por redundância. A teoria da comunicação adaptou o conceito de ruído para designar tudo aquilo que perturbe a comunicação linguística. Os ruídos podem afetar o plano da produção da mensagem (perturbações na articulação da fala, dificuldades de pronúncia, casos de homonímia lexical ou gramatical, etc.), o plano da recepção da mensagem (falta de atenção, dificuldade de audição, incompreensão do código, etc.) ou ocorrer ao nível do canal (cruzamentos de vozes, por exemplo). A mensagem consiste numa mistura de sinal e de ruído. Se a quantidade de sinal for maior, a comunicação fica assegurada; se pelo contrário a quantidade de ruído for maior, deverão ser ativados mecanismos de redundância para manter a troca de mensagens entre emissor e receptor.50
Para José Miguel Wisnik, em O Som e o Sentido – Uma outra história das
músicas, o ruído é uma perturbação, “é uma mancha em que não distinguimos
frequência constante, uma oscilação que nos soa desordenada” (WISNIK, 1989, P.
27). Ao relacionar e combinar os conceitos, Wisnik define:
49 Como você produz trovão com a voz? James Joyce tentou. Em Finnegans Wake [...] (Schafer, 1991, p. 214) 50 Ruído (linguística). In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-07-15]. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$ruido-(linguistica)>.
49
O ruído é aquele som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o canal, ou desmancha a mensagem, ou desloca o código. A microfonia é ruído não só porque fere o ouvido, por ser um som penetrante, hiperagudo, agressivo e “estourado” na intensidade, mas porque está interferindo no canal e bloqueando a mensagem. Essa definição de ruído como desordenação interferente ganha um caráter mais complexo em se tratando de arte, em que se torna um elemento virtualmente criativo, desorganizador de mensagens/códigos cristalizados e provocador de novas linguagens. (WISNIK, 1989, p.33)
A fala de Wisnik nos dá uma orientação dentre as definições de sons
musicais e ruídos, que são complexas e confusas. Muitos autores fazem a
diferenciação fundamentada no conceito de altura51, enquanto outros acreditam que
o critério de altura não é suficiente para fazer definições.
Não existe uma distinção acústica absoluta entre o que chamamos ruído e o
que chamamos música. Os sons que são dotados com uma altura precisa, que pode
ser identificada pelos ouvidos, Pierre Schaeffer, em seu Traité des objectos
musicaux, chama de sons "tônicos", que comumente chamamos de nota musical, e
os sons que não possuem uma altura precisa, Schaeffer chama de sons
“complexos”. Os sistemas musicais tradicionais escluiam de suas gramáticas os
sons complexos, isto é, os ruídos, os barulhos eram considerados sons não
musicais.
O compositor de música eletroacústica Denis Smalley (1986, p. 65),
desenvolveu uma tipologia espectral (figura 8) que postula a distinção entre notas e
ruídos. Esta tipologia é uma proposta mais simplificada que a proposta de Schaeffer
(1966, p. 518) em sua tabela Classes des textures de masse et de timbre
harmonique52, que reconhecia sete classes.
Figura 8: Tipologia espectral
51 Em música, altura é a propriedade do som que define a frequência fundamental dos sons (o tom). As baixas frequências são percebidas como sons graves (grossos) e as mais altas como sons agudos (finos), ou os tons graves e os tons agudos. Tom é a altura de um som na escala geral dos sons. 52 A tabela Classes des textures de masse et de timbre harmonique encontra-se nos anexos.
50
A definição do conceito de ruído (noise) se dá pela negação ao conceito de
nota (note). Em uma nota se reconhece a frequência predominante, que define a sua
altura, enquanto o ruído só pode ser compreendido pela inexistência de uma altura
definida. Mas cada nota é um conjunto de frequências, harmônicas em sua maioria,
mas eventualmente também inarmônicas em seu espectro.
Conforme aumenta a inarmonicidade, a distinção entre notas e ruídos
torna‐se confusa e imprecisa. Entre a nota e o ruído, pode-se deduzir que existe
uma infinidade de divisões, mas, didaticamente, tanto Schaeffer quanto Smalley
criaram subdivisões para um melhor entendimento. Smalley (1986, p. 67), estipula
uma categoria intermediária no meio do caminho contínuo entre esses dois pontos,
que ele chamou de “nó” (node). O nó não chega a ser um ruído, mas é uma
combinação de frequências em que torna imprecisa e indefinida a altura, não
podendo ser qualificado como nota.
Em seu artigo Spectromorphology: explaining sound-shapes (1997, p. 120),
Smalley refaz a sua própria proposta e a simplifica (figura 9), desconsiderando o tipo
intermediário “nó”.
Figura 9: Da nota ao ruído
Mas a definição de ruído pelos futuristas está mais próxima à do senso
comum. O verbete “ruído”, no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo
(BORBA, 2011, p.1237), entre os significados, tem o seguinte:
RUÍDO – 1 barulho; rumor.
51
Em uma tradução mais aproximada de L’Arte dei Rumori teríamos A arte dos
rumores. Ruído é uma tradução/interpretação mais ajustada para o nosso costume e
entendimento.
Quanto aos futuristas, a nova visão de Russolo sobre a questão musical e a
sua correspondência com o cotidiano, com a tensão da vida, dos homens e do
mundo estava expressa com clareza em seu manifesto, que alertava que a arte
musical deveria readequar seus conceitos de consonâncias e dissonâncias, ajustá-
los à nova realidade, mais próximos aos novos costumes dos ouvidos.
A arte musical buscou e obteve primeiramente a pureza, a limpidez e a doçura do som, em seguida combinou sons diversos, preocupando-se no entanto com acariciar os ouvidos com suaves harmonias. Hoje a arte musical, complicando-se cada vez mais, busca as combinações de som mais dissonantes, mais estranhos e mais ásperos para os ouvidos. Aproximamo-nos assim sempre mais do som-ruído. (RUSSOLO Apud MEZENES, 2009, p. 52)
Russolo caracteriza o universo do ruído como enarmonia e propõe que esta
enarmonia seja trabalhada em uma orquestra de ruídos. Ele, juntamente com Ugo
Piatti53, inventou e construiu um conjunto de instrumentos ruidosos, ao qual ele deu
o nome intonarumori (máquinas de entoar ruídos), uma família de “geradores de
sons” projetados para criar uma ampla gama de sons, modulados semelhantes aos
feitos por máquinas, mas sem imitar ou reproduzir eles. Esses sons devem ser
entendidos mais como “materiais abstratos” libertos de suas origens mecânicas e
agora sob o controle humano, escreveu Russolo em seu manifesto estético A arte
dos ruídos. Ao compor peças para o intonarumori, Russolo também desenvolve uma
nova forma gráfica da partitura54 musical. Em 1914, o primeiro concerto para
intonarumori, uma obra dividida em oito categorias diferentes de sons, causou um
enorme escândalo em Milão, enquanto que em Londres as reações foram mais
favoráveis. Após a Primeira Guerra Mundial, os concertos para intonarumori foram
realizados juntamente com orquestras sinfônicas clássicas. Infelizmente, nenhum
desses instrumentos originais sobreviveu a Segunda Guerra Mundial.
53 Ugo Piatti (1888-1953) foi um pintor italiano. colaborando com Luigi Russolo na construção do intonarumori. 54 O exemplo da partitura “Risveglio di uma città” per intonarumori – Luigi Russolo, encontra-se disponível nos anexos.
52
Figura 10: Luigi Russolo e Ugo Piatti com o Intonarumori
A partir de Russolo, a questão “o que é música?” passa a ter realmente
sentido. Em uma carta, dirigida à Ballila Pratella55, também músico futurista, Russolo
valoriza o ruído e o coloca como mais apropriado para tocar a nova sensibilidade
dos homens:
A vida antiga foi toda silêncio. No século dezenove, com a invenção das máquinas, nasce o ruído. Hoje, o Ruído triunfa e domina soberano sobre a sensibilidade dos homens. Por muitos séculos a vida se desenvolveu em silêncio, ou, no melhor dos casos, em sordina. Os ruídos mais fortes que interrompiam este silêncio não eram nem intensos, nem prolongados, nem variados. Pois que, se negligenciarmos os excepcionais movimentos telúricos, os furacões, as tempestades, as avalanches e as cascatas, a natureza é silenciosa. (RUSSOLO Apud MEZENES, 2009, p. 51-52)
Ainda em sua carta, Russolo propõe que o ruído seja encarado seriamente
como elemento construtor da narrativa musical, dizendo:
Caro Pratella, exponho a teu gênio futurista estas minhas constatações, convidando-te à discussão. Não sou músico; não
55 Franceso Balilla Pratella foi um compositor italiano. Faz parte do grupo de artistas futuristas, ao lado de Luigi Russolo.
53
possuo portanto predileções acústicas nem obras para defender. Sou um pintor futurista que projeta fora de si em uma arte muito amada a sua vontade de renovar tudo. Por isso, menos temerário de quanto poderia sê-lo um musicista profissional, não me preocupando com minha aparente incompetência, e convicto de que a audácia tenha todos os direitos e todas as possibilidades, pude intuir a grande renovação da música mediante a Arte dos Ruídos. 1913. (MEZENES Apud RUSSOLO, 2009, p. 55)
Era mesmo um momento de transformações e acontecimentos que
marcaram a história da humanidade. Walter Benjamin, fala de um deslocamento no
status da arte tradicional, à medida que o aparecimento de meios técnicos de
reprodução, tais como a fotografia e o cinema, começam a dominar a imaginação do
público em geral.
Todas essas mudanças provocam na sociedade as mais diversas volições
ocasionando uma nova vida, uma nova visão de mundo e é claro que exigiram do
artista uma reação distinta, uma resposta condizente. Paul Griffiths, ao falar da
música moderna e suas mudanças, cita uma fala de Schoenberg:
[...] se vivêssemos numa época normal, normal como antes de 1914, a música de nosso tempo estaria numa situação diferente. (SCHOENBERG apud GRIFFITHS, 1998, p. 97)
Otto Maria Carpeaux, sobre a questão, considera não só as mudanças na
música, mas da arte em geral, relacionando às transformações ocorridas em tantos
aspectos da vida moderna:
Depois das catástrofes políticas, econômicas e sociais pelas quais a humanidade passou durante a primeira metade deste século, já não é possível fazer arte como se estivéssemos vivendo em outro século, passado. A bancarrota de tantos credos e ideologias leva à mesma conclusão. (CARPEAUX, 2009, p. 433)
2.3.12 A grande crise da música
... nossa raça em geral não é amante da música. Para nós a música mais amada é a paz do silêncio; nossa vida é dura e, mesmo quando procuramos nos livrar de todas as preocupações diárias, já não sabemos nos elevar a coisas tão distantes do nosso cotidiano como a música.56
Franz Kafka
56 KAFKA, 1998, ,p. 37.
54
Fechemos a janela e voltemos ao corredor histórico. A esta altura, no meio
musical, brota um mal estar entre aqueles que estão encantados com as novas
possibilidades tecnológicas e os que os acusam de ter rompido com toda a tradição
dos séculos. Tal acusação não resiste à análise de Capeaux.
A tradição não é tão tradicional como parece: não se trata de milênios, mas penas de séculos; e de poucos. Nossa música nasceu na Europa Ocidental no século XIII. As primeiras obras que já podemos esteticamente apreciar, são do fim do século XV. Se excetuarmos a sobrevivência de Palestrina na música sacra católica e a recente renascença de Monteverdi, não consta no nosso repertório nenhuma obra anterior a 1700. A tradição musical, que é tida como tão antiga, tem apenas 250 anos de idade. Nossa música é a mais nova das artes, a menos tradicional. (CARPEAUX, 2009, p. 434-5)
Enfim, se estabelece uma crise. Vamos dimensionar melhor: a grande crise
da música tradicional. Em decorrência da crise, surgiram as mais diversas vertentes
experimentando novos paradigmas com o intuito de se achar novos caminhos e
direcionamentos que solucionassem o indigesto impasse do tonalismo. É importante
constatar que esta crise não é só resultado do esgotamento da linguagem musical
ou das experimentações dos novos compositores, mas o puro reflexo da realidade,
pois o público, aos poucos, começou também demonstrar uma certa rejeição.
Um crítico que sempre foi um dos protagonistas da música moderna, Theodor W. Adorno, explica a procura de novos mundos sonoros pelo enjoo dos mundos sonoros antigos. Há concertos sinfônicos e de câmara em todas as grandes e em muitas pequenas cidades do mundo: mas sempre se nos oferece o mesmo repertório histórico, de Bach e Handel até Brahms e Debussy, a safra de menos de 200 anos. É ainda mais conservador o repertório das casas de ópera: de Gluck até Richard Strauss, e nada mais. (CARPEAUX, 2009, p. 499)
Ao mesmo tempo, com o surgimento da fonografia, a escuta musical das
salas de concerto migrou para dentro dos rádios e gramofones. Ou seja, a música
que só era ouvida na presença de instrumentos musicais, passava a ser ouvida pela
reprodução de alto-falantes. Essa mudança que surgiu devido à mediação
tecnológica em relação à maneira de como se apreciava musica provocou
alterações significativas na relação que os ouvintes tinham com a música, tendo que
aprender novos códigos de comportamento ante os aparelhos de difusão sonora.
Surgiram, então, outras maneiras de lidar com o musical, não mais pautado apenas
55
na execução de um instrumento ao vivo, mas na criação de instrumentos de escuta
baseados nos alto-falantes (gramofones, rádios, vitrolas, aparelhos de som etc.).
Esse passo tecnológico criava a possibilidade de se ouvir música a qualquer
instante, aumentava o acesso ao acervo existente através dos LP’s (Long Plays),
mas de modo algum atenuava a crise, pois ela estava localizada na criação. Essas
tecnologias teriam que servir para a esfera da composição.
O disco Long-Play ampliou grandemente o repertório acessível aos amigos da música. Mas é, outra vez, um repertório histórico, incluindo Monteverdi e Vivaldi, Couperin e Domenico Scarlatti. Toda música executada e ouvida pertence, sempre, ao mesmo sistema de organização dos elementos sonoros. O público continua satisfeito. Mas quem sente vocação criadora, não pode fugir ao fenômeno de “enjoo”. (CARPEAUX, 2009, p. 499)
Com o desenvolvimento das tecnologias surgiram as ferramentas eletrônicas,
que se propagaram e revelaram grande quantidade de formas alternativas de se
compor. Dentre os vários inventos, a fita magnética, como suporte de gravação,
permitiu versatilidade na manipulação e produção dos sons. Tal versatilidade se
relaciona à facilidade que o uso desta mídia proporcionava para a execução de
atividades como cortar, colar, combinar e reproduzir em diferentes velocidades.
É sobre o fenômeno dos equipamentos de escuta desenvolvidos a partir da
revolução elétrica que Pierre Schaeffer irá trabalhar e pensar a música. Em 1948, no
estúdio da Rádio Francesa (ORTF – Office de Radiodiffusion-Télevision Française),
Schaeffer experimentou as primeiras gravações sonoras utilizando técnicas musicais
de composição como retrogradação, sobreposição, alongamento, contração,
alteração de andamento entre outras. Estes procedimentos eram inusitados na
época e resultou na sua primeira composição chamada Étude aux Chemins de Fer57
(1948) usando uma variedade de fenômenos sonoros para reproduzir a paisagem
sonora de um trem e iniciando um novo conceito de composição sonora com
instrumentos tecnológicos. Desta forma Schaeffer propõe que se coloque a
percepção como fundamento da composição e pesquisa musical. Dentro desse
aspecto, Schaeffer desenvolve o conceito de “música concreta”.
57 Étude aux chemins de fer (Estudo com trens), foi sua primeira peça completa, resultado de seus experimentos. Consiste em uma montagem de looping que trazia sons de trens em movimento, ferragens e apitos, gravados em estações de trem de Paris.
56
2.3.13 A música concreta
[...] a poesia é mais próxima ao homem comum, ao homem das ruas [...] As palavras são usadas para os corriqueiros propósitos diários e são o material do poeta, tal como os sons são o material do músico. 58
Robert Louis Stevenson
A música concreta explorava empiricamente os fenômenos sonoros de
qualquer origem, que eram captados na fonte pela gravação e manipulados por
meios eletroacústicos, criando novos padrões composicionais e auditivos. Esses
sons cotidianos coletados se tornavam os materiais sonoros dos quais os
compositores dispunham, e suas manipulações se davam através de montagens por
meios técnicos e que exigiam tateio, audição prática e habilidade em selecionar sons
adequados para o manejo.
O termo “música concreta” foi utilizado por Schaeffer para descrever esse
tipo de música, considerando que o compositor iria lidar com sons concretos pré-
gravados e também serviu para distinguir bem o sentido de suas experiências e para
realçar a oposição de suas propostas aos trabalhos musicais vigentes. Sendo a
música uma linguagem abstrata, o seu propósito era recorrer ao sonoro concreto e
abstrair deles os valores musicais que continham em potencial, isto é, transformar
qualquer som em um som musical.
2.3.14 A música eletrônica
Paralelamente, no estúdio da Rádio de Colônia, na Alemanha, surgiu a
música eletrônica, que se difere da música concreta, pois ela fabrica os seus
próprios sons. Os equipamentos sintetizavam esses sons, mais musicais, mais
propícios às abstrações, enquanto que a música concreta, como o nome já sugere,
estava mais voltada para a tradução do concreto.
Como gênero musical, tanto a música concreta quanto a música eletrônica,
experimentaram um declínio, mas suas técnicas passaram a ser fundamentais e
indispensáveis em qualquer processo composicional e de editoração, além de
abrirem perspectivas diversas quanto aos recursos tecnológicos possíveis, mantidas
58 STEVENSON, apud BORGES, 2000, p. 83.
57
até os nossos dias e que continuarão a inspirar e estimular a criação ou adaptação
de novos componentes tecnológicos a serviço da música, do rádio e cinema.
Uma curiosidade é que “música eletrônica” quer dizer musica criada ou
modificada por meios de equipamentos e instrumentos eletrônicos, ao longo dos
anos deixou de ser um gênero musical e passou a ser apenas uma técnica de
composição musical pela qual derivaram outros gêneros, mas nos anos 70/80 a
alguns estilos de música pop dançante aderiram aos instrumentos e equipamentos
eletrônicos e passaram a ser conhecidas pela denominação de música eletrônica,
apesar de serem subgêneros diferentes.
As músicas concretas e eletrônicas tinham muito em comum. Seus produtos
finais eram composições registradas em fitas magnéticas ou em outra mídia. Da
mistura dessas técnicas surgiu a música que é conhecida como eletroacústica. Os
sons cotidianos em suas complexidades e os procedimentos de manipulação e
sintetização de sons são traços inequívocos da contemporaneidade na música, pois
marcam o impacto nos paradigmas da música tradicional, pois o compositor, que
tradicionalmente teria que escrever a sua obra em partituras e submeter a terceiros
para a execução, sujeitas às mais diversas interpretações e uso de instrumentos
com suas variações ou até mesmo divergências timbrísticas, tinha, a partir das
novidades tecnológicas, a responsabilidade de finalizar a obra em suas mãos,
podendo lidar diretamente com o timbre e expressão da obra e fazer
experimentações, modificações a partir das escutas e seu trabalho de compor se
vinculou ao trabalho no estúdio.
Dessas técnicas surgiu a música eletroacústica, também conhecida por
música acusmática. Este termo foi criado por François Bayle para indicar uma forma
de música eletroacústica criada em estúdio, para futura difusão através de alto-
falantes.
Como alertei anteriormente, deixei de incluir nomes e períodos
historicamente importantes, delimitando e traçando intencionalmente um corredor
histórico, pela manutenção de um foco naquilo que aponta para as alternativas da
linguagem musical que se apresentaram na música moderna como reflexo e
correspondência aos fenômenos da modernidade. Aqui encerro a história da música
que me propus a contar. O que não me impedirá de mais adiante fazer alusões
mencionando novas referências, mas agora é preciso focar no objeto alvo deste
estudo: o objeto sonoro.
58
2.3.15 Objeto sonoro e objeto musical
Pierre Schaeffer estabelece em seus escritos dois tipos de objetos auditivos,
dando as seguintes denominações: objeto sonoro e objeto musical.
O objeto musical é o objeto da linguagem musical envolve a
comunicabilidade entre o artista e o ouvinte através da linguagem musical com suas
características melódicas, harmônicas e rítmicas. A linguagem musical é sempre
conduzida por meio de uma melodia e suas relações harmônicas.
O objeto sonoro não está limitado aos sons de tons definidos. A sua
abrangência é maior, pois além dos objetos da linguagem musical, constitui-se
também de elementos sonoros como os ruídos, o silêncio e sons de qualquer
natureza. O objeto sonoro é entendido como um recorte sonoro, percebido como um
todo, de forma isolada do seu contexto original.
Para uma distinção entre objeto sonoro e musical, podemos pensar na
situação de estarmos ouvindo o som de um instrumento musical. O que ouvimos é o
objeto sonoro, uma fração de percepção, que antecede a percepção musical,
diferentemente de musical, que seria um juízo de valor atribuído ao som. O objeto
sonoro é aquilo que se capta, o pré-significante, o que existe antes de quaisquer
regimes de significação, nem mesmo musical.
A aplicação destes fatores gera uma composição que não utiliza os
instrumentos musicais tradicionais e os signos da escrita musical vigente, portanto,
rompe com a linguagem musical estabelecida há vários séculos. A possibilidade da
gravação permitiu novas relações com o fenômeno musical tradicional e surgiu a
possibilidade de manipulação do som na sua essência.
Se admitirmos que existam uma linguagem musical e uma linguagem
sonora, não musical, temos que admitir também que cada linguagem tem a sua
sintaxe e, portanto, a sua própria unidade sintática significativa. Não podemos dizer
que as significações dos objetos sonoros sejam de natureza semântica, mas de um
caráter intrínseco, independente de qualquer representatividade, uma unidade
portadora de uma essencialidade, portanto comunicativa.
A música concreta procurou a musicalidade dos sons enquanto os músicos
impressionistas achavam sonoridades na música. Estas questões tanto
fundamentam dúvidas e incertezas como levam a convicções de que “tudo é
59
música”. Isto pode ser dito como força de expressão, até poeticamente, ou com
fundamentos. John Cage reuniu tudo isso, com sua imaginação fértil e profundo
conhecimento musical. Toda a sua obra musical foi voltada para uma nova maneira
de pensar a música, pautada na experimentação, na poesia e seus questionamentos
refletem sobre a noção tradicional de obra musical, sobre os fundamentos da
música, usando eventos sonoros até então considerados inutilizáveis por músicos,
ao modo de Duchamp59, como por exemplo, o silêncio.
Enfim, o objeto musical é a unidade de sintaxe da linguagem musical, ou
seja, a nota musical, enquanto que o objeto sonoro é a unidade sintática da
linguagem sonora, um fenômeno sonoro, qualquer som, inclusive o musical. A sua
percepção se dá através de uma escuta intencional que se volta às qualidades
puramente sonoras, sem referência à fonte que causou o som ou a qualquer sentido
ou conotação exterior às suas características intrínsecas. Esta é uma questão
totalmente fenomenológica que envolve a escuta.
Esta escuta diz respeito apenas aos efeitos do som: forma e matéria do objecto percebido. Ao nível do sonoro, no entanto, não prejulguemos tão rapidamente estas três intenções de escuta tão díspares, que levam a nossa atenção seja [1] para as fontes do ruído, seja [2] para as significações do discurso, seja [3] para o valor intrínseco dos sons. Queremos descobrir uma regra que se aplique provisoriamente a toda a cadeia sonora, e permita daí extrair o elemento bruto, isolado das suas estruturas, a que chamaremos precisamente o objecto sonoro. (SCHAEFFER, 2007, p. 66)
59 Marcel Duchamp (1887 – 1968) foi um pintor, escultor e poeta francês e inventor do conceito de ready made, que é o transporte de um elemento da vida cotidiana, a princípio não reconhecido como artístico, para o campo das artes. Sua obra de maior repercussão é A Fonte, trata-se de um urinol comum, branco e esmaltado, comprado numa loja de construção. A fonte é uma obra precursora da arte conceitual e é considerada um gesto iconoclasta sem precedentes na história da arte moderna.
60
3 Fenomenologia musical de Schaeffer
3.1 A redução fenomenológica de Husserl
O que me apontaram nunca estava ali
estava ali só o que ali estava.
Alberto Caiero60
Fenomenologia (do grego phainesthai - aquilo que se apresenta ou que se
mostra - e logos - explicação, estudo). Fenômeno é o objeto mostrado, em si
mesmo, na sua essência, independentemente de suas causas e significações.
A fenomenologia é um método de investigação filosófica fundada por
Edmund Husserl61, que dá importância aos fenômenos da consciência, os quais
devem ser estudados em si mesmos e que tudo o que podemos saber do mundo
resume-se aos fenômenos e a esses objetos ideais que existem na mente, cada um
representa a sua essência, sua "significação".
Merleau-Ponty, em sua obra Fenomenologia da percepção (1999), tece
comentários sobre os primeiros trabalhos de Housserl, e assim define a
fenomenologia:
A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”. É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico. É a ambição de uma filosofia que seja uma “ciência exata”, mas é também um relato do espaço, do tempo, do mundo “vividos”. É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer [...] (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 1-2)
60 Alberto Caeiro da Silva foi um personagem ficcional (heterônimo) criada por Fernando Pessoa. 61 Edmund Husserl (1859-1938), foi filósofo, matemático e lógico. É o fundador da Fenomenologia como método de investigação filosófica e estabeleceu os principais conceitos e métodos que seriam amplamente usados pelos filósofos desta tradição.
61
Muitas são as formas de entender a importância histórica da fenomenologia
de Husserl: mito, nova filosofia, moda, movimento, entre outras. O certo é que seus
estudos inspiraram muitos nomes, como Hegel, Kierkegaard, Marx, Nietzsche, Freud
e tantos outros, entre eles, Pierre Schaeffer.
Schaeffer acreditava que a crise na produção musical erudita do século XX
não poderia ser resolvida enquanto são se repensassem os pressupostos sobre os
quais se produzia a música e, sobre os quais o próprio “som musical” era concebido.
Por esta razão, Schaeffer iniciou uma reconceituação daquelas noções mais
elementares da teoria musical como instrumento, objeto sonoro, objeto musical,
escuta, etc.
Para isso, o método fenomenológico musical por ele utilizado levava em
consideração os conceitos desenvolvidos por Husserl, principalmente a noção de
redução fenomenológica, ou epoché62, a partir da qual Schaeffer se baseia para
chegar ao conceito de escuta reduzida.
3.2 Do fenômeno
Ver as coisas é que eram as coisas.
Clarice Lispector
Husserl tinha uma posição gnosiológica, oposta a uma “fenomenologia
psicológica descritiva”, da esfera das vivências, Ele pretendia distinguir a forma de
fenomenologia empírica da fenomenologia transcendental. O interesse da
fenomenologia transcendental dirige-se para a consciência, única capaz de realizar
a crítica da razão, não lhe interessando nenhum axioma objetivo, mas sim de
desfazer os “tormentos da obscuridade”. Husserl, decidido a fazer luz sobre si
próprio, escreve em sua agenda o seguinte:
Em primeiro lugar, menciono a tarefa geral que tenho de resolver para mim mesmo, se é que pretendo chamar-me filósofo. Refiro-me a uma crítica da razão. Uma crítica da razão lógica, da razão prática e da razão valorativa em geral. Sem clarificar, em traços gerais, o sentido, a essência, os métodos, os pontos de vista capitais de uma ciência da razão; sem dela ter pensado, esboçado, estabelecido e demonstrado um projeto geral, não posso verdadeiramente e sinceramente viver. Os tormentos da obscuridade, da dúvida, que
62 O termo epoché na fenomenologia husserliana implica a "contemplação desinteressada", a suspensão de juízo fenomenológica se abstem de emitir juízos sobre o fenômeno.
62
vacila de um para o outro lado, já bastante os provei. Tenho de chegar a uma íntima firmeza. Sei que se trata de algo grande e imenso; sei que grandes gênios aí fracassaram; e, se quisesse com eles comparar-me, deveria de antemão desesperar... (HUSSERL, sd, p. 12)
Husserl entendeu que o único método para a crítica da razão é a
fenomenologia levado às suas extremas consequências (ou redução
fenomenológica), um retorno à consciência. Na prática, o caminho para esse retorno
é o retorno às coisas, ao objeto em si, ao fenômeno, e para isso é necessário o
descarte de qualquer inferência, pois a mais simples cogitação esconderia
transcendências de toda índole.
Esse silêncio conceitual, causal, permite que a consciência descubra o
fenômeno em seu movimento, sem contextualizações, sem conhecimentos, aberta à
experiência.
Para a fenomenologia reduzida só importa o fenômeno. Assim, Schaeffer
criou o conceito de escuta reduzida, que tinha a intenção de não escutar mais do
que o objeto sonoro, a busca do fenômeno sonoro em si, o que colocava a
percepção em tipos diferenciados de condicionamento da escuta.
3.3 As quatro escutas de Schaeffer
Nunca ouviste passar o vento. O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira, E a mentira está em ti.
Alberto Caiero
As experimentações da música concreta exigiam uma escuta diferente, sem
vícios, descondicionada, e por isso mesmo uma escuta concreta, mais voltada para
as qualidades sonoras.
A música, até então fundamentada em um sistema de abstração das notas
musicais, passa a ser construída a partir dos fenômenos sonoros, gravados,
transformados e prontos para serem cortados, colados, mixados a ponto de serem
disparados por algum equipamento.
A essa experiência do ouvinte, Schaeffer chamou de escuta acusmática, que
é escutar um som sem ver a fonte que o produz, como o som vindo de um rádio
(exemplo da época) ou de um sampler (exemplo atual). Essa reeducação vai desde
63
a escuta ao solfejo63. Schaeffer se ocupou em encontrar um novo solfejo para essa
nova música
Em seu livro Traitée des objets musicaux, Pierre Schaeffer, distingue quatro
níveis de relação com a matéria sonora, alegando que a experiência auditiva
depende de quão intensamente o ouvinte se expõe ao material auditivo, desta
forma, os níveis de reconhecimento dos sons ouvidos e das relações sonoras do
objeto e suas possíveis significações são consequências dos determinados modos
de escuta. São eles:
3.3.1 Écouter
O modo escutar é ser atingido por um som e aplicar o ouvido para recebê-lo,
é dar crédito aos sons por ter algum interesse por eles, por exemplo, quando
dirigimos a atenção voluntariamente para alguém ou alguma coisa que é
apresentada por seu som. Esse modo de escuta acontece na revelação de um
fenômeno que se apresenta para a percepção, associando o som a um modo de ser
produzido.
3.3.2 Ouïr
Ouvir é perceber pelo ouvido. É oposto a escutar, pois escutar satisfaz a
uma atitude ativa, voluntária. Já o ouvir pressupõe uma passividade na atenção, pois
o ouvinte não seleciona o que lhe chega aos ouvidos. O que se ouve é aquilo que se
é dado na percepção. É a captação do mundo e suas sonoridades pela audição,
independente da atenção. Ouvir é ser tocado pelos sons. Identificar o som pela fonte
sonora.
3.3.3 Entendre
Entender, pensando etimologicamente, é tender para algo. Representa a
característica intencional da escuta. É fazer uma seleção nas coisas ouvidas, situar
os ruídos, separar por próximo ou distante, privilegiar uns sons em relação aos
outros. No aspecto musical também é um modo de escuta que se dirige às
63 Com Schaeffer nasce um novo tipo de solfejo. Um solfejo que não vem das partituras, das escalas musicais, mas de uma graduação de sons.
64
características pré-musicais do som, descontextualizado do sistema tonal. Percebe
o som como um objeto em si mesmo.
3.3.4 Comprendre
Compreender significa captar o sentido, pelo êxito da atividade consciente.
Abstrair os sons na forma de linguagem. Expressa a busca pela compreensão para
além do sentido imediato, tratando o som como um sinal, um signo, o ouvinte
apreende valores que o levam a produzir sentidos variados.
Neste tipo de escuta, os sons têm seus valores atribuídos por suas funções
dentro de um sistema que os articula, se apoia em algum idioma musical ou sonoro
socialmente convencionado que delimita o sentido, o léxico, a sintaxe e enfim a
história e o território em que se insere este idioma. Por exemplo, quando certa nota
musical, ostenta um valor expressivo dentro de um determinado discurso musical
(melodia) articulado sobre um sistema hierarquizado e gramaticalizado (sistema
tonal), ela tem outros valores por si própria. Por si mesma ela é um código, inserida
em um discurso melódico ela é outro código, determinado mais pelo relacionamento
com as outras notas e sua importância dentro do discurso, pois ela pode ser uma
nota tônica ou fundamental. Quanto aos sons não musicais, sejam eles ambientais,
ruídos, etc. cada um tem sua carga de significado, com graus de referencialidade
distintos, isolados são representação de objetos, mas inseridos em um contexto são
passagens de fluxos narrativos, sendo os contextos variáveis, culturais, o mesmo
fenômeno sonoro pode produzir sentidos diferentes64. Fazendo uma analogia com a
linguagem verbal em que as palavras só têm sentido no contexto dos idiomas em
que elas são pronunciadas.
Pierre Schaeffer (1966, p.116) apresenta um quadro demonstrativo dos
quatro modos de escutas e suas funções, de uma maneira bastante elucidativa.
Abaixo está o quadro explicando as funções da escuta, traduzido por Carlos
Palombini65.
64 Em um momento de orientação, o Prof. José Osvaldo de Paiva trouxe um exemplo que lhe ocorrera. Ao ouvir o som de uma latinha de cerveja sendo aberta surge a indagação: qual seria a percepção de algum indígena de alguma comunidade sem contato com esses produtos da indústria? 65
65
Tabela 1: Quadro das funções da escuta66
4. COMPRENDRE
— para mim: signos
— diante de mim: valores (sentido-linguagem)
Emergência de um conteúdo do som e referência a, comparação com, noções extra-sonoras
1. ÉCOUTER
— para mim: índices
— diante de mim: eventos exteriores (agente-instrumento)
Emissão do som
3. ENTENDRE
— para mim: percepções qualificadas
— diante de mim: objeto sonoro qualificado
Seleção de certos aspectos particulares do som
2. OUÏR
— para mim: percepções brutas, esboços do objeto
— diante de mim: objeto sonoro bruto
Recepção do som
3 e 4: abstratos 1 e 2: concretos
1 e 4:
objetivos
2 e 3:
subjetivos
Pensando resumidamente sobre nossas ações normais do cotidiano: eu
ouço tudo o que me cerca, mas seleciono o que escutar, entendo o que me
interessou e que quero compreender e a compreensão é o que resulta, é a leitura
auditiva.
Enfim, ouvir é acolher, escutar é escolher, entender é decodificar e
compreender é assimilar, produzir sentidos.
66 PALOMBINI, Carlos. A música concreta revisada. Disponível em: Http://www.rem.ufpr.br/ REMv4/ vol4/art-palombini.htm. O . quadro original (Tableau des fonctions de l’écoute), encontra-se nos anexos.
66
Figura 11: Sequência das quatro escutas
Schaeffer enfatiza em seus estudos as questões da escuta reduzida, que é
uma escuta despojada de uma intenção de compreender "significados" como
também busca escapar de uma identificação de causas instrumentais. Ela é dirigida
aos atributos do som em si, ou seja, ao objeto sonoro. A escuta reduzida é a busca
pela essência, seria como a escuta do bebê que traz um ouvido ainda
descondicionado e é ela que dará sustentação para o conceito de objeto sonoro.
Schaeffer escreve a respeito desta intenção de escuta:
[…] poderíamos, eventualmente, livrando-nos do banal, 'expulsando o natural', tanto quanto o cultural, encontrar um outro nível, um autêntico objeto sonoro […] que seria acessível a todo homem ouvinte? (SCHAEFFER, 1993, p. 247)
3.4 Os três modos de audição de Chion
Michel Chion (1994, p. 25-34), baseado nos estudos de Schaeffer faz
distinção da escuta e relaciona, portanto, três modos: a escuta reduzida, a escuta
causal, e a escuta semântica.
3.4.1 Escuta reduzida
A escuta reduzida explicada por Chion guarda correspondência com a
escuta definida por Schaeffer, por essa razão Chion mantém o nome. Na escuta
reduzida, a atenção está voltada para as características fisiológicas do som, visando
somente às qualidades do objeto sonoro. O enfoque está no som em si mesmo,
alheio a qualquer indício de causas ou significados. O som é tratado como “objeto
sonoro”, trazendo como significado suas próprias características, ao invés dos da
67
fonte ou simbologias que ele possa carregar. Cada som, com suas características
físicas, pode provocar determinadas sensações sem que necessariamente nos
remetamos a elementos extrassonoros.
3.4.2 Escuta causal
A escuta causal é aquela cujo interesse está na identificação da origem de
determinado som. Chion (1994) afirma que quando a causa ou fonte sonora é
visível, o som pode nos trazer informações complementares, como quando se bate
em um recipiente fechado, o som nos indica se ele está cheio ou vazio. Quando não
vemos a fonte sonora, o som pode ser nosso principal recurso de informação e
quando a causa do som não é visível, a identificação se dá a partir de algum
conhecimento prévio ou prognóstico lógico. A escuta causal, portanto, raramente
parte do “zero”. Quando ouvimos o latido de um cão, por exemplo, podemos até
deduzir se o animal em questão é de médio ou grande porte, porém se ouvirmos
latidos de cães da mesma raça, provavelmente não distinguiremos entre um
indivíduo e outro.
3.4.3 Escuta semântica
A escuta semântica está vinculada ao aspecto simbólico, ao conteúdo
extrassonoro proveniente de qualquer outro código que está vinculado ao som. O
significado implícito do som pode ser convencionado, como na linguagem falada, em
que cada palavra possui seus significados dentro de um determinado idioma: no
código Morse, em que a duração e repetição dos sons estão ligadas aos fonemas,
nos sinais de alerta do computador, ou, referindo-se a aspectos musicais, os
aprendidos culturalmente, como o hino de um país, que carrega um caráter
patriótico, ou um canto gregoriano, que possui caráter religioso.
O significado do som não está puramente em suas características físicas,
apesar de ser identificado graças a elas, nem em sua fonte ou causa, apesar de
necessitar das mesmas para existir, mas sim na carga simbólica que lhe é atribuída.
Na linguagem visual-sonora, a escuta semântica está ligada aos sons de
conceituação e, pela manipulação desse modo de escuta, é possível, entre outras
coisas, transmitir ideias, conceitos, além de atribuir sentido poético à cena. É,
contudo, importante destacarmos que o que ocorre quando nos deparamos com um
68
fenômeno visual e sonoro é que as mesclas desses modos de escuta, na maioria
das vezes, são impossíveis de serem separadas.
3.5 As três categorias fenomenológicas de Pierce
O que nós vemos das cousas são as cousas. Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Alberto Caieiro
Vimos sobre duas formas de apreensão de um objeto mais específico, que é
o som. No caso de Peirce67, a fenomenologia não é restrita ao objeto sonoro, é
voltada para o fenômeno, de qualquer natureza, sendo este qualquer coisa que seja
percebida pelos sentidos externos, como o som de uma chamada telefônica que
ouvimos ou a luz que vemos das lanternas de um carro, qualquer cheiro, sensação
tátil como o frio e calor ou percebida internamente, como dor, recordação, emoção,
apreendido pela mente, poderá ser de três maneiras, segundo Peirce: primeiridade
(qualidade), secundidade (relação/reação) e terceiridade (representação/mediação),
sendo que cada um dos elementos desse sistema permite uma relação monádica,
diádica e triádica de decifração do fenômeno.
3.5.1 Primeiridade
Na primeiridade a relação é monádica, ou seja, da mônada, do Ser consigo
mesmo. A consciência em primeiridade é a primeira apreensão do fenômeno,
corresponde ao que é visto concretamente, sem ir mais além da mera qualidade em
si mesma, sem nenhuma relação, representação ou interpretação intelectual. A
primeiridade, então, está relacionada a uma percepção imediata de uma qualidade
que ainda não foi correlacionada ao objeto (secundidade) e que, também, não
produziu ainda nenhum significado (terceiridade). Nas palavras de Peirce:
Primeiridade, Oriência ou Originalidade. Seria algo que é aquilo que é sem referência a qualquer outra coisa dentro dele, ou fora dele, independentemente de toda força e de toda razão. (PEIRCE, 2005, p. 24)
67 Charles Sanders Peirce (1839-1914), foi um filósofo, cientista e matemático americano. Seus trabalhos apresentam importantes contribuições à lógica, matemática, filosofia e, principalmente à semiótica.
69
Originalidade é ser o que se é, “independentemente de qualquer coisa”
(2005, p. 27). Associam-se à primeiridade o acaso, qualidade pura de sentimento,
espontaneidade, nascimento, imediaticidade. É sempre novidade, indefinida, livre e
pré-reflexiva.
Primeiridade é sensação primária, o primeiro a ser sentido, pois o sentir,
“mero tom de consciência” é o modo mais imediato da apreensão. É o que está
prontamente presente à consciência no instante presente, é a impressão, e esta
antecede o pensamento e independe de algo mais, é tenra, tênue e frágil. É tão
tênue que nos escapa e é tão frágil que se a tocamos, se degenera.
3.5.2 Secundidade
Apreender a qualidade do fenômeno não é tudo, pois ela é apenas parte do
fenômeno, ela é o fenômeno em potencial. O fenômeno é a qualidade materializada,
é a potência convertida em matéria, por isso a secundidade é diádica, depende da
relação entre qualidade e existência.
Está ligada ao que vem depois da primeiridade, depois da sensação
percebida. A secundidade é o factual, é a ação frente ao fato concreto, é o impacto
da própria existência do fenômeno, é a resposta da consciência sobre a impressão,
mas ainda irracional, é uma reação específica ao estímulo, quando já se relaciona a
qualidade ao objeto, ou o fenômeno a algo, sem interpretação, sem a interferência
da camada mediadora da razão. A identificação, o reconhecimento do fenômeno já
se constitui em uma relação de dupla faceta, pois a percepção sensível conduz a
informação pertencente ao fenômeno e imprime na mente, onde é codificada.
À secundidade refere-se às ideias de ação e reação, dualidade,
conhecimento, referencial, força bruta, relação, resistência e dependência.
3.5.3 Terceiridade
A terceiridade é triádica, é, conforme sugere, o terceiro instante ante o
fenômeno e que dialeticamente produz, a partir do primeiro e do segundo, uma
síntese intelectual, uma elaboração cognitiva. É precisamente nesta categoria
fenomenológica que se consuma a ação de semiose e o signo se firma. A
terceiridade satisfaz à relação de síntese intelectual entre a primeiridade e
secundidade que corresponde aos processos de representação e interpretação do
70
mundo por meio dos signos. Segundo Peirce, o signo é a ideia mais simples da
terceiridade.
Esta categoria abrange as ideias de representação, inteligência,
interpretação intelectiva, abstração, aprendizagem, compreensão, mediação.
Lucia Santaella68 fala das três categorias apresentadas pela fenomenologia
peirceana.
A primeiridade aparece em tudo que estiver relacionado com acaso, possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade, liberdade, mônada. A secundidade está ligada às idéias de dependência, determinação, dualidade, ação e reação, aqui e agora, conflito, surpresa, dúvida. A terceiridade diz respeito à generalidade, continuidade, crescimento, inteligência. A forma mais simples da terceiridade, segundo Peirce, manifesta-se no signo, visto que o signo é um primeiro (algo que se apresenta à mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, se refere ou representa) a um terceiro (o efeito que o signo irá provocar em um possível intérprete). (SANTAELLA, 2005, p. 7)
A partir dessas categorias fenomenológicas, entende-se que tudo o que se
apresenta à mente pela audição pode se constituir em meras qualidades acústicas
(Primeiridade), como códigos (Secundidade), ou como signos (Terceiridade). Essas
são possibilidades de apreensão e modos de compreender o objeto, alvo da escuta.
Entendamos que a terceiridade só é possível a partir da secundidade e que a
mesma depende da primeiridade, isto é, a terceiridade pressupõe a secundidade e
primeiridade; a secundidade pressupõe a primeiridade; já a primeiridade é livre.
Desta forma, a compreensão de um evento natural ou uma obra de arte está
condicionada às gradações do modo como reagimos diante dos constituintes da
experiência. Sobre este aspecto, Santaella (1994) nos diz:
[...] a contemplação estética se dá na mistura das três categorias, envolvendo elementos próprios ao sentir (primeiridade), o esforço interpretativo implícito na observação do objeto (secundidade), e na promessa de compreensão e assentimento intelectivo com que esse objeto nos acena (terceiridade). (SANTAELLA, 1994, p.183)
68 Maria Lucia Santaella Braga (1944) é uma pesquisadora brasileira. É fundadora do "CS games", Grupo de Pesquisa em Games e Semiótica da PUC-SP, além de professora nas áreas de Novas Tecnologias e Novas Gramáticas da Sonoridade, Relações entre o Verbal, Visual e Sonoro na Multimídia e Fundamentos Biocognitivos da Comunicação.
71
A escuta reduzida corresponde à primeiridade. Os sons de imersão, aqueles
inseridos na cena para criar “atmosferas” e “climas” são os que irão se encaixar
nesta categoria, pois, tendem a nos afetar pelas suas próprias características.
Assim como a escuta reduzida está ligada à primeiridade, a escuta causal
está atrelada à secundidade. São os sons de interação, que estão presentes na
cena para reforçar alguma ação colocando o foco na sua causa, têm a intenção de
que o espectador realmente se dê conta ou até sinta o impacto de determinado
acontecimento. Podem, também, funcionar como índice de materialidade de
personagens e elementos que não estão presentes visualmente na cena.
A escuta semântica é aquela que corresponde à terceiridade. Os sons de
conceituação pertencem a esta categoria, por serem simbólicos. É através de uma
interpretação intelectiva que o signo, de natureza sonora alcança algum significado
comunicacional. Os sons inseridos na cena, ao serem apresentados ao ouvinte, vão
depender do próprio repertório do ouvinte ou de situações já estabelecidas na
narrativa, para que sejam percebidas as cargas simbólicas que o som carrega para
agregar significados à imagem. Os signos sonoros estão sujeitos a inúmeras
interpretações, dependendo do modo como foi assimilado pelo receptor.
Essas escutas se diferem pelo grau de imersão, pelo foco. Quanto mais
reduzida, mais proximidade ao objeto, e o oposto também é dedutível: uma escuta
mais semântica, correspondente ao modo comprendre, mais próxima está do sujeito,
das subjetividades. Se estivéssemos falando da visão, poderíamos dizer que são
pontos de vistas diferentes. São escutas que nos levam do concreto ao abstrato, do
objetivo ao subjetivo, do real ao irreal, hiperreal, surreal, do ponto à linha, da
plataforma ao grão dimensional. É um caminho que pode nos conduzir ao “focar no
fenômeno” até entrar com a consciência nele, desprezando quaisquer inferências e
simplesmente experimentar a transcendentalidade pretendida por Husserl, como
pode também nos levar aos dialogismos, polifonias, hipertextos, e aos rizomas
pretendidos por Deleuze.
Musicalidade ou sonoridade, música semântica ou não-semântica, são
caminhos, sem destino à verdade, são simplesmente caminhos, que nos levam às
experiências. Melodias, silêncios, sinos, ruídos, sons da natureza ou de
sintetizadores, cada um com seu grau de concretude, são fenômenos e são signos.
O mesmo som é fenômeno e signo, dependendo da escuta. Da mesma maneira,
72
posso escutar um som e modificar ou oscilar o modo de conduta, por falta de
controle ou intencionalmente.
A questão é que não podemos deixar de admitir que todo som é um
fenômeno e nem podemos desconhecer que cada pessoa faz a sua própria leitura, e
que as possibilidades de construção de sentido são infindáveis e impossíveis de
enumerar, portanto existem inumeráveis modos de escuta, cada um de nós tem o
seu próprio modo, a sua própria condição a cada momento.
Smalley (1997, p. 110) tem uma posição mais prudente, e até mesmo mais
abrangente e considera tanto as qualidades puramente sonoras (intrínsecas) quanto
os predicados extramusicais (extrínsecas), pois entende que uma peça musical não
é um artefato autônomo e fechado e que ela não se refere apenas a si mesma, mas
depende de uma gama de experiências externas. Os aspectos intrínsecos são
analisados através da espectromorfologia, que descreve as características
espectrais dos sons, enquanto os aspectos extrínsecos estão relacionados às
questões culturais. Smalley também explica que a música é uma construção cultural
e que o contexto cultural é uma base extrínseca necessária para que a intrínseca
tenha sentido.
Para Smalley, os recursos extrínsecos e intrínsecos são interativos e essa
transcontextualidade musical envolve uma dependência relacional. Ao falar da
música eletroacústica, observa que as qualidades intrínsecas criadas por um
compositor possam impactar as mensagens extrínsecas e que o mundo sonoro da
música eletroacústica incentiva as conexões extrínsecas imaginativas devido a
variedade e ambigüidade de seus materiais.
Não há o que se especular do além do fenômeno, do intrafenômeno, ou
daquilo que a escuta reduzida em seu grau máximo pode revelar, pela sua própria
natureza, pois qualquer elucidação, qualquer explicação, por mais êxito que se
tenha em formulá-la, será, descritiva, de ordem objetiva, oposta à natureza da
transcendentalidade pretendida pela fenomenologia. Já, ao que vem depois do
fenômeno, do seu processo de conversão ao signo (signi-ficação), do
encapsulamento de significados e sentidos, são múltiplas as facetas do signo
sonoro69, por isso vale a pena conhecermos conceitos e lógicas do signo.
69 Entenda-se que, neste trabalho, todas as menções ao signo sonoro ou musical referem-se à sua natureza acústica. Este esclarecimento é necessário para não cairmos em outras interpretações e pensarmos em sinais
73
4 O processo de significação
4.1 A significação
O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Alberto Caeiro
O objeto por si só, é tão somente um fenômeno. Significados, sentidos,
acepções, estão atreladas àquele que o percebe, que acolhe o que lhe é mostrado,
são preenchimentos, prolongamentos, frutos das inferências da mente.
A signi(fic(a)ção) é a ação que leva o objeto a ficar signo, que move a
representação “pura” ao significado construído. Esses movimentos são
determinados pela intencionalidade. No caso de processos relacionados aos objetos
sonoros, pelo “foco” da escuta, da força que se tem para insurgir, do desejo de
imersão. Todo o processo sígnico compreende desde a percepção do fenômeno até
o modo como foi apreendido na consciência e das relações desses signos nas
dinâmicas que ocorrem na mente interpretativa.
Figura 12: O objeto sonoro e a representação
O objeto sonoro, tal como demonstrado por Schaeffer não é mais que o
fenômeno sonoro, no entanto qualquer sentido, significado ou significações, vindos
de uma percepção, é associação, é parecença, afinidade, identidade e construção,
decorrente do modo de escuta, determinado pela astúcia e agudeza da percepção musicais notados em partituras, que também são signos musicais, mas que pertencem a outro tipo de semiose musical: o da notação musical.
74
combinado à finura e atilamento do ser. Da mesma forma, o objeto sonoro, como
fenômeno só será apreendido pelo modo de escuta específico para tal: a escuta
reduzida.
Como vimos anteriormente, durante toda a história da musica ocidental,
inúmeros pensadores, filósofos e compositores se ocuparam nas questões
relacionadas à significação musical, à ideia de que a música seria uma
representação. O conceito de música absoluta está atrelado à compreensão do
fenômeno musical, à ideia de que a música é pura forma musical e a forma de
descrição desses fenômenos é pela análise objetiva de suas propriedades
estruturais e formais, daí a importância da notação das obras em partituras. Por
outro lado, temos a música cuja significação não está contida em si mesma, que faz
parte de algo além da linguagem musical, que quer representar outras esferas da
realidade.
Leonard Meyer, em seu livro Emotion and meaning in music, ao falar das
teorias do significado musical aponta para dois paradigmas: absolutistas e
referencialistas (MEYER, 1956, p.33). As teorias absolutistas veem a música por
suas próprias estruturas, cuja significação está contida em si mesma, sem nenhuma
relação com os aspectos extramusicais; enquanto que as teorias referencialistas
entendem a música como representação das emoções humanas ou de eventos
quaisquer de natureza extramusical.
As teorias referencialistas ajudam a compreender os objetos sonoros não
musicais, como os sons ambientais naturais (incluem-se os sons emitidos pelo corpo
humano) ou dos cenários urbanos, por serem reconhecíveis, como representações
de objetos da cidade e de coisas da natureza.
A discussão acerca do significado musical que atravessa toda a história da
música ocidental, que procura compreender na música o desejo de comunicar
emoções e/ou imagens, conduziu ao surgimento de novos estudos e pesquisas
musicais considerando a aplicação dos processos semióticos e linguísticos. Ao
processo de significação dá-se o nome de semiose.
75
4.2 Semiose
Nenhuma coisa que seja
onde a palavra faltar.70
Stefan George
Semiose é o processo interpretativo, a atividade do signo. As formas de
entendimento dessa relação de signos e objetos são muitas. Saussure fala na
relação entre um significante e um significado, isto é, fala de um signo linguístico.
Jakobson (2003, p. 30) também vê duas faces do signo e faz a identificação e a
diferenciação em dois níveis, servindo-se de termos usados por Santo Agostinho71:
signans (o significante) e signatum (o significado do signo). Para Peirce, esta relação
não se apresenta de um jeito duplo, mas em um tríplice aspecto (2005, p. 28). Ele
explica que um signo é tudo aquilo que está relacionado com uma segunda coisa,
com seu objeto. Vamos aos casos.
O modelo semiótico de Saussure (2006, p. 79-80) estabelece que a unidade
linguística é uma coisa dupla. O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra,
mas um conceito e uma imagem acústica.
A “imagem acústica” é uma metáfora criada por Ferdinand Saussure para
ilustrar o representante, que não é o som material, físico; é mental, reside no
cérebro, é a impressão psíquica dos sons, como quando falamos conosco ou
recordamos de alguém falando, e isso ocorre “sem movermos os lábios nem a
língua” (SAUSSURE, 2006, p. 80). Ao trazer esse conceito para o que se apresenta
neste trabalho, vemos que o seu caráter metafórico se dilui e o torna praticamente
referencial, pois neste caso a imagem acústica passa a ser a imagem criada pela
nossa imaginação, quando ouvimos um som que nos indica algo, é a impressão
(reprodução sobre pressão numa superfície) psíquica resultante do contato com o
fenômeno, é uma paisagem carimbada em nossa mente, e como toda paisagem,
contém a “imagem” e a “acústica” (sonoridades). Enquanto escrevia as linhas
anteriores, passou por aqui um avião, no entanto, eu estava concentrado e não
70 “Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar” (Kein ding sei wo das wort gebrieht), do poema publicado em 1919, A palavra, de Stefan George, citado por Heidegger em seu livro A caminho da linguagem, na pág. 124. O poema, na íntegra, está disponível nos anexos. 71 Jakobson utiliza os mesmos termos usados por Santo Agostinho, que fez adaptações a partir da distinção estoicista.
76
acompanhei conscientemente a sua passagem, mas, quando me dei conta, pude
recapitular e assistir em meus domínios mentais a passagem do avião, desde a
extrema direita à extrema esquerda e sem a necessidade ou intenção de fazê-la, de
forma natural, automática, pude configurar a espacialidade, sendo preservadas as
propriedades sonoras, como duração, volume, intensidade, pois podemos recriar
uma paisagem e o seu movimento é possível pelos seguidos enquadramentos, o
que possibilita que a imagem tenha ação, a partir do que Saussure chama de
“testemunho de nossos sentidos”:
Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação dele que nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato. (SAUSSURE, 2006, p. 80)
Baseado nesta proposição de Saussure, podemos aplicar esta relação do
signo ao objeto sonoro em um processo criativo composicional. Uma coisa (objeto
físico) é representada por um signo (sonoro), que será percebido pelo sentido da
audição e impresso no cérebro a imagem acústica (correspondência psíquica do
signo sonoro) que será associada ao conceito (representação abstrata do objeto).
Por exemplo, podemos representar um lobo (objeto físico, natural) pelo uivo (signo
sonoro). As ondas sonoras se propagarão, serão percebidas por nossos ouvidos,
transformando-se em impressões sensoriais e serão decodificadas em nosso
cérebro. Em nossos domínios psíquicos, não estarão as ondas sonoras, mas a
reprodução, a memória do que acabamos de ouvir, do uivo que ecoa, podemos até
ouvi-lo mentalmente. Esta imagem acústica se unirá ao conceito de lobo, que
construímos ao longo do tempo, por um vínculo de associação, como ilustrado no
esquema gráfico abaixo:
77
Tabela 2: Baseado na relação signo/objeto de Saussure e ajustado para o objeto sonoro
Desta forma, podemos entender que o significado é uma construção mental
e por esta razão, limitado. Os limites, que vão desde os físicos, sensoriais, aos
psíquicos e culturais, determinam o conceito, ou o signo. No esquema acima, o que
denominei por signo é a representação, mas como estou tratando do processo de
significação, entendo que o signo é o resultado semiótico e por esta razão uso esse
termo. Saussure (2006), para evitar ambiguidades, busca uma precisão nas
terminologias e explica que signo é a combinação do conceito e da imagem
acústica.
A ambigüidade desapareceria se designássemos as três noções aqui presentes por nomes que se relacionem entre si, ao mesmo tempo que se opõem. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante; estes dois termos têm a vantagem de assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total que fazem parte. Quanto a signo, se nos contentamos com ele, é porque não sabemos por que substituí-lo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro. (SAUSSURE, 1999, p. 81).
Nos estudos de Peirce, a relação do signo com o objeto e do signo com o
sujeito tem outros fundamentos:
Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen. (PEIRCE, 2005, p. 46)
Farei uma adaptação simples, considerando o objeto sonoro, usando os três
elementos sígnicos de Peirce. Como vimos em sua definição acima, interpretante
78
está relacionado ao signo criado na mente do intérprete e não diretamente ao
intérprete, no caso, o ouvinte.
Tabela 3: Semiose (processo de significação)
Semiose (processo de significação) Peirce
1 - Signo Qualquer som (fenômeno sonoro) perceptível
Representação acústica de um objeto Refere-se ao objeto
2 - Objeto A quem se refere o signo
Pode ser perceptível ou imaginável Existe à margem do signo.
3 - Interpretante Pensamento interpretativo do signo
Representação mental do objeto
Sendo um processo, a semiose começa na apreensão do fenômeno, segue
na transformação do fenômeno apreendido em um signo equivalente, um objeto
mental, um terreno psicológico, uma realidade refletida.
O representamen banca o objeto, representa algum ou muitos aspectos do
objeto, limitado por sua natureza, estará sempre em falta com o objeto. Esta falta
exigirá da mente interpretadora a geração de um interpretante que proporcionará o
complemento, uma signo mais completo, correlato à sua realidade cultural,
contextual, isto é, sua condição social, psicológica, cultural influencia a geração dos
significados. Por exemplo, se ouvirmos o som de um carro em movimento será o
suficiente para fazermos a leitura da situação. O carro está representado apenas por
alguns aspectos entre tantos: o som inconfundível do motor, a sensação de
movimento do som, de um sentido para o outro, enfim, o som (representamen) nos
chega e é impresso em nossa mente. No entanto, não imaginamos o som em
movimento; em nossa imaginação está a imagem de um carro (interpretante), que
representa melhor o carro (objeto). O terceiro elemento dessa dinâmica completa
esse processo de interpretação, mas não o finaliza, pois o interpretante, em seu
processo de transformação, gera um novo signo. O signo, ao desenvolver-se em
interpretante, irá desenvolver-se em outro, posteriormente, e assim por diante, pois a
transferência da representação por parte do interpretante indica que o signo é
incompleto em relação ao objeto que ele representa.
79
Na relação entre signos e sentidos na composição de uma peça sonora,
vista a partir da perspectiva da Teoria Semiótica de Charles Sanders Peirce,
conciliada aos conceitos de escuta de Pierre Schaeffer, percebemos a dinâmica de
significação entre os três pontos de ação: o signo (som), o objeto (coisa
representada) e o interpretante (formulação do ouvinte), A interpretação do discurso
sonoro é alcançada pelos diferentes modos de escuta, com seus graus de alcance,
como pelas etapas (categorias) de percepção, que conduzem à formação do
interpretante, desde o primeiro contato do ouvinte com os signos sonoros
provocando sensações (primeiridade), passando para a etapa que antecede o
significado (secundidade), na qual se reconhece e identifica o signo como algo
existente, concreto, inserido no contexto, até chegar ao passo em que se configura a
representação simbólica (terceiridade) e seus significados.
O interpretante se desenvolve desde a fase da primeiridade, alargando-se
na secundidade e fechando o seu círculo na terceiridade, pois a mediação
interpretativa entre alguém e o fenômeno tem sua origem na primeira apreensão do
objeto (primeiridade), mesmo que sutil como uma película. Esta é a semiose,
processo de geração sígnica.
Figura13: Dinâmica da semiose
A ciência que estuda a semiose é a semiótica. Esta analisa as relações entre
uma coisa e seu significado, isto é, do objeto e toda a dinâmica do seu processo de
significado.
80
4.3 Semiótica
A cor e o som são como dois rios que possuem suas nascentes numa mesma montanha [...] 72
Goethe
A Semiótica73 estuda todos os fenômenos em seus sistemas de significação.
Ela investiga todas as linguagens possíveis, pois os processos sígnicos estão em
várias áreas das mais diversas ciências. A semiótica alastra-se nos diversos
terrenos por conta do seu objeto: o signo, e por isso é considerada, quase que
consensualmente, como ciência geral dos signos. Winfried Nöth (1995, p. 17)
considera a semiótica como “a ciência dos signos e dos processos significativos
(semiose) na natureza e na cultura”, admitindo ser uma definição possível e
pluralista.
A abrangência da semiótica é tamanha que se fizermos uma pesquisa
simples em algum desses sítios de busca na internet, encontraremos diversos tipos
de semióticas, como da linguagem, da arte, da cultura, do espaço, até mesmo do
corpo e da vida. Nos campos das ciências, a semiótica é vista, por uns, apenas
como campo de pesquisa, por outros, como teoria, método e até mesmo como
ciência. Esta “ciência por se fazer” (SANTAELLA, 2004, p. 71) aponta para diversos
caminhos pelos quais o objeto desta dissertação poderia ser estudado: a semiótica
da linguagem, da arte, da música, do som, da literatura, enfim, a semiótica que
possa estudar o fenômeno como elemento de produção de significações e de
sentidos e seus efeitos e consequências que são produzidos no receptor, neste
caso, o ouvinte.
Desta maneira, me sirvo do sistema de classificação das ciências criado por
Peirce para mapear e situar o curso destes estudos, sendo possível ter uma noção
clara da trilha já percorrida e do caminho por vir, como ilustrado no esquema abaixo,
em que dei destaque às divisões que comportam os estudos fenomenológicos e
discursivos que envolvem o objeto sonoro. As outras divisões, sem destaque (em
72 A cor e o som são como dois rios que possuem suas nascentes numa mesma montanha mas que fluem em condições de todo distintas rumo a regiões completamente opostas, e isso de tal forma que em nenhum momento um pode se comparar com o outro. (GOETHE apud SCHUBACK, 1999, p. 31) 73 Semiótica (do grego σημειωτικός (sēmeiōtikos) - literalmente, "a técnica dos sinais").
81
escala de cinza), apresentam suas ramificações e gradações, no entanto não as
descreverei.
Tabela 4: Adaptação baseada na Classificação das Ciências74, de Charles Peirce (CP 1.180, 1.238)75
Peirce começa a sua classificação repartindo em dois filos (CP 1.239) que
são as ciências teóricas e ciências práticas. As ciências teóricas são divididas em
dois subfilos (ibidem), chamados de ciências da descoberta e ciências de revisão.
As ciências da descoberta são compostas por três classes: a matemática (CP
1.240), a filosofia (CP 1.241) e as ciências especiais (CP 1.241-242). Estas classes
se diferenciam pelo modo de observação empregado por cada uma delas. A
observação da Filosofia é a observação da experiência comum, que não depende de
meios nem instrumentos especiais (CP 1.241), mas dos modos como a realidade se
apresenta enquanto possibilidade fenomênica. Portanto, a filosofia comporta a
fenomenologia, as ciências normativas e a metafísica (CP 1. 186) como suas três
subclasses. A fenomenologia estuda os modos como sistemas mentais
experienciam os fenômenos e as formas dessas experiências, como esses sistemas
interagem com mundo. Como já vimos anteriormente, depende das categorias
fenomenológicas o modo como o objeto é entendido, se como fenômeno apenas ou
como forma representativa.
Peirce vê na fenomenologia (faneroscopia), ou Doutrina das Categorias (CP
1.280) o princípio, o começo de toda descoberta, a primeira coisa com o que a
filosofia deve se ocupar, pois ela exige um tipo singular de pensamento em que a
maneira de olhar e ver é que determinará o que se vê (CP 2.197). Abaixo, usando
74 Quadro de Classificação das Ciências completo está disponível nos anexos. 75 Para as citações dos Collected Papers de Charles Sanders Peirce, foram adotadas as formas convencionais de referências CP, seguidas do algarismo que corresponde ao volume e o último número faz referência ao parágrafo. No caso, CP 1.180, CP = Collected Papers, 1 = volume e 180 = parágrafo.
82
um recorte do quadro usado anteriormente (Tabela 4) farei um enfoque mais
aproximado.
Tabela 5: Recorte do quadro Adaptação baseada na Classificação das Ciências,, de Charles Peirce
A filosofia peirceana está arquitetada hierarquicamente, com suas divisões e
subdivisões assim:
Tabela 6: Diagrama da filosofia peirceana
1— Fenomenologia
2 — Ciências Normativas
2.1 — Estética
2.2 — Ética
2.3 — Semiótica ou Lógica
2.3.1 — Gramática pura ou especulativa
2.3.2 — Lógica Crítica
2.3.3 — Retórica pura ou Metodêutica
3 — Metafísica
Aqui temos uma situação importante, pois estudar os fenômenos tal como
aparecem é função da fenomenologia, enquanto que as ciências normativas estão
voltadas para a compreensão de como podemos agir sobre eles e eles sobre nós.
Nesse mapeamento proposto cabe estudar a fenomenologia e as ciências
normativas. A fenomenologia como contraponto, para fazer oposição e clarificar os
motivos dos estudos das ciências normativas; e estas, por comportarem, como uma
de suas ordens, a lógica, ou semiótica, que, por sua vez, contém a subordem
83
gramática pura ou especulativa. A semiótica trata do fenômeno concebido como
signo e a gramática especulativa tem outra função: a de estudar a fisiologia dos
signos, como também suas naturezas e significados, conforme explicitação de
Peirce:
[...] Sendo todos os pensamentos realizados por meio de signos, a lógica pode ser considerada como a ciência das leis gerais dos signos. Ela tem três ramos: 1. Gramática Especulativa, ou a Teoria geral sobre a natureza e os significados dos signos; 2. Crítica, que classifica argumentos e determina a validade e o grau de força de cada espécie; 3. Metodêutica, que estuda os métodos que devem ser perseguidos na investigação, na exposição, e na aplicação da verdade. Cada divisão depende da que precede. (CP 1.191)
Sendo do caráter da Gramática Especulativa teorizar sobre a natureza dos
signos, os textos de Peirce indicam que os signos são apenas mediadores de uma
relação, sendo o signo um primeiro, que intermedia uma relação entre um segundo
(objeto representado) e um terceiro (interpretante). Para compreendermos essa
mediação que guarnece uma comunicação entre sujeito/objeto, é necessário o
estudo dos níveis de representação sígnica e saber até que ponto o signo
representa o objeto, conforme a definição de Peirce, segundo Santaella:
Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determina naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo, e da qual causa mediata é o objeto, pode ser chamada de interpretante. (PEIRCE apud SANTAELLA, 2001, p. 42-3)
O signo pensado por Charles Peirce é um signo em movimento. Por esta
razão a sua semiótica os divide também em categorias ou modos gradativos de
representação do objeto.
84
4.4 Categorias de sígnos
Assim é, se lhe parece. 76
Luigi Pirandello
Classificar os signos não está nos planos deste trabalho, porque
perderíamos o foco, devido à diversidade dos signos. São diversas as taxonomias
criadas por tantos semióticos, considerando os mais diferentes aspectos, as mais
distintas relações sígnicas e todas são necessárias para uma análise mais rigorosa,
pois não se podem tratar os signos por igual, ignorar as diferenças, afinal os signos
se diferenciam pela fonte, pelas inferências, pela especificidade, pela intenção e
grau de consciência do seu emissor, pelo aparelho receptor humano, pela relação
ao seu significado, pela replicabilidade do significante, pelo tipo de relação
pressuposta com o referente, pelo comportamento que estipulam no destinatário,
pelas funções do discurso e por tantos outros motivos. Uma passagem de Lucia
Santaella é elucidativa, nesse sentido:
Se levarmos ainda em consideração que o estudo da ação dos signos não se reduz a um mero formalismo descritivo das propriedades internas dos signos, mas inclui suas relações de referência, suas ligações contextuais, seus processos de emissão, os efeitos que estão aptos a produzir nos receptores e, sobretudo, se levarmos em conta que signo é mediação entre algo a que ele se refere ou aplica-se e os efeitos que serão produzidos no receptor, o que inclui as conseqüências que disso podem advir no futuro, as relações entre a comunicação e a semiótica ficam mais intrincadas e muito mais substanciais do que pode parecer à primeira vista. Todavia, há um grande complicador incluso nessas colocações: o fato que ‘signo’ não é um termo univalente e que cada escola semiótica o define ao seu próprio modo, do que decorre que há tantos signos quantas escolas semióticas existem (SANTAELLA, 2004, p. 77)
Desta maneira, o enfoque a ser feito neste trabalho está voltado para o
modo como o signo é usado no processo composicional, como irá representar o
objeto, uma vez que substitui o fenômeno e, assim, passa ser aquele que se
76 Così è (se vi pare) ("Assim é, se lhe parece" em português) é o título de uma peça de teatro escrita em 1917 por Luigi Pirandello, escritor italiano, A peça foi definida por ele mesmo como uma "farsa filosófica". Pirandello coloca os personagens numa situação paradoxal para demonstrar o contraditório da existência. Para o autor, o homem, apesar de seus esforços, não consegue penetrar até o fim do labirinto das aparências, nem conhecer o que está encerrado nas formas das quais é responsável e por sua vez, prisioneiro.
85
“mostra”. Por este motivo elegi abordar o assunto sob o ponto de vista peirceano da
relação dos signos com os objetos.
A semiótica de Peirce estabelece uma classificação para os níveis de
relações associados às categorias fenomenológicas (Primeiridade, Secundidade e
Terceiridade). São eles: significação (do signo em si mesmo), objetivação (do signo
com o objeto) e interpretação (do signo com o interpretante).
Tabela 7: Classificação dos signos semióticos77, por Peirce
Significação Objetivação Interpretação Categorias Fenomenológicas Signo em si mesmo Signo com o objeto Signo com o interpretante
Primeiridade Quali-signo Ícone Rema
Secundidade Sin-signo Índice Dicente
Terceiridade Legi-signo Símbolo Argumento
Da interseção das três tricotomias sígnicas descritas pela aplicação de três
regras lógicas resultam dez classes de signos78. Vou me deter somente na
objetivação que trata da relação do signo com seu objeto, pois esta perspectiva está
mais casada com a referencialidade e com os processos composicionais. Este ponto
de vista associado às teorias referencialistas vão se complementando e se
mostrando como ferramentas indispensáveis para a compreensão do uso dos
objetos sonoros não musicais, como signos, elementos que compõem um texto.
Desta forma, as três classes básicas de signos são:
Ícones
Signos Índices
Símbolos
Figura 14: Tipos de signos, em relação ao objeto
O ícone é um tipo de signo que se refere ao objeto por associações de
semelhança, por imitação, ele lembra ou imita o objeto como se tivesse alguma de
suas qualidades. A forma é uma das qualidades do objeto, portanto, quando o signo 77 Um quadro mais complexo, contendo os cruzamentos de signos, que correspondem às relações permitidas entre as tricotomias, encontra-se disponível nos anexos. 78 O quadros contendo as 10 classes de signos, encontra-se disponível nos anexos.
86
assemelha-se pela forma, compartilhando da mesma qualidade, o signo representa
o objeto pela sua semelhança formal. Um exemplo de natureza musical/sonora seria
um som musical realista, que ocorre quando um flautista emite o som de seu
instrumento musical imitando sons de pássaros ou quando um percussionista de
orquestra, usando timbales, imita os sons de trovões. Em ambos os casos, os sons
são (per)(formá)ticos79, imagéticos, como é natural em um signo icônico.
O índice é um signo que tem vínculo de causa, direta, real com seu objeto, a
sua relação é de contiguidade, indica o objeto, desperta a atenção para o objeto,
suas características são do objeto. Como o som da chuva, o badalar de um sino de
uma igreja, o canto dos pássaros, o ruído dos liquidificadores, que são sons que
indicam as suas fontes. Não podemos deixar de salientar que o som da flauta e dos
timbales, dados anteriormente como exemplos de signos icônicos, são, ao mesmo
tempo, signos indicadores, pois logo identificamos que se trata do som de um
instrumento específico, isto é, o seu timbre indica que é de uma flauta ou de um
timbale e que, performaticamente, imitam as nuances e dinamismos, buscando um
realismo, por vezes de forma onomatopaica, do objeto representado.
O símbolo é um signo que se refere ao objeto por uma conexão arbitrária,
por um hábito ou uma convenção socialmente estabelecida, de que tal objeto deva
ser representado por tal signo e isso terá que ser aprendido no contexto. A
associação entre significante e significado não depende de qualquer semelhança ou
relação causal com o objeto. Como exemplo musical, temos os hinos dos clubes, os
jingles. Como exemplos sonoros, não musicais, temos o som do apito do juiz de uma
partida de futebol. O apito tem o seu código de linguagem, que segue leis, regras e
convenções para assinalar significados específicos. Com um pequeno sopro, o juiz
ordena o início do jogo e com assobios longos, curtos, fortes, estridentes, discretos
ou cortantes, simboliza ordens e advertências. Com o apito, o juiz inicia, interrompe,
reinicia e determina o fim do jogo e, em casos de partidas em que algum jogador fala
um idioma diferente ao do juiz, esse problema é superado pelas convenções e leis
do jogo.
Nas palavras de Peirce compreendemos a que nível se dá a conexão do
signo com o seu objeto representado:
79 A palavra performance tem sua origem no latim, formada pelo prefixo latino per mais formáre (formar, dar forma).
87
O Ícone não tem conexão dinâmica alguma com o objeto que representa; simplesmente acontece que suas qualidades se assemelham às do objeto e excitam sensações análogas na mente para a qual é uma semelhança. Mas, na verdade, não mantém conexão com elas. O Índice está fisicamente conectado com seu objeto; formam, ambos, um par orgânico, porém a mente interpretante nada tem a ver com essa conexão, exceto o fato de registrá-la, depois de ser estabelecida. O Símbolo está conectado a seu objeto por força da idéia da mente-que-usa-o-símbolo, sem a qual essa conexão não existiria. (PEIRCE, 2005, p.73)
As três formas de signos não são excludentes uma das outras, pois um
signo pode ser um índice, um ícone ou um símbolo; como pode ser uma combinação
entre eles. Tudo isso vai depender do modo como o signo é percebido ou como vai
ser utilizado. O mesmo signo pode estar carregado dessas características.
Tomemos como exemplo o som de timbales na obra Abertura 181280, de
Tchaikovsky, que são signos indiciais, pois indicam que são sons de um instrumento
musical específico, são icônicos por estarem imitando o som de tiros de canhões e
são simbólicos, pois representam o ponto de maior tensão da invasão francesa à
Rússia, para esta conclusão é necessário considerar o contexto da narrativa musical
de Tchaikovsky. Da mesma maneira, um signo pode ser utilizado iconicamente em
um contexto e simbolicamente em outro, por esta razão os signos não podem ser
classificados sem que se façam referências aos propósitos e contextos em que
foram usados.
4.5 Fenômeno ou signo?
É o ponto de vista
que cria o objeto.81
Ferdinand de Saussure
Como vimos anteriormente, o modo de escuta é o que determina a atitude
de interpretação do som percebido. A disposição da escuta vai dar causa a
interpretação objetiva ou subjetiva. De acordo com a categoria de escuta, podemos
80 A Abertura Solene Para o Ano de 1812 é uma obra orquestral de Pyotr Ilyich Tchaikovsky comemorando o fracasso da invasão francesa à Rússia em 1812 e a subsequente devastação do "Grande Armeé" de Napoleão Bonaparte. É uma obra descritiva e mostra desde a partida dos soldados russos ao ponto culminante da guerra e o retorno dos soldados vitoriosos da Rússia. É uma obra de grande impacto pela sua sequência de tiros de canhão que é, em alguns concertos ao ar livre, executada com canhões verdadeiros. 81 (SAUSSURE, 2006, p. 15).
88
simplesmente ouvir e não buscar o sentido do som, ao modo do “mestre ingênuo”
Alberto Caeiro, ou fazer abordagens e produzir significações à medida das
gradações da escuta.
Na fenomenológica schaefferiana, ao se manter na primeiridade, ou seja, ao
chegar a uma redução no modo de audição, eliminando as possibilidades de
referencialidade do objeto sonoro, ouvem-se tão somente as qualidades do
fenômeno sonoro, libertas dos caracteres icônicos, indiciais e simbólicos e das
funções sígnicas.
O objeto sonoro concebido por Pierre Schaeffer é tão somente um
fenômeno, um acontecimento sonoro, escutado somente numa atitude de escuta
reduzida, sem qualquer sentido decorrente de inferências, abordagens, simbologias
e significações, no entanto, ele reconhece que cada escuta é diferente:
É um facto reconhecido que cada escuta é diferente para diferentes pessoas, e mesmo para as diferentes escutas de cada um. Necessitamos então de afirmar a objectividade do objecto, quer dizer, que qualquer coisa no objecto resiste a essas abordagens, resta imutável, permite a diversos ouvintes, como a diversas escutas [por parte do mesmo ouvinte], de confrontar tantos aspectos quantas maneiras de focar o ouvido nas múltiplas atenções ou intenções de escuta. (SCHAEFFER, 2007, p. 58)
Existem saudáveis controvérsias aos conceitos schaefferianos, que
consideram que o fenômeno em si representa apenas um aspecto do signo.
Fazendo contraponto aos conceitos dos que entendem que tudo é signo, Peirce
avalia de um outro modo: “Nada é signo a menos que seja interpretado como signo”
(PEIRCE, 2005, p. 76).
A potencialidade textual do objeto sonoro começa onde termina o
comprendre de Schaeffer. Os estudos que continuarão se voltarão para o
conhecimento da desenvoltura do objeto sonoro quando recebido como signo,
desencadeando um processo de significação. Vamos direcionar os estudos desta
maneira, admitindo que as aparentes oposições sejam somente caminhos
diferentes, sejam pontos de vista distintos.
Do objeto fenomênico à representação sígnica há um percurso, há uma
passagem. Da natureza à cultura, do sensível ao inteligível, do mito à razão, do
fenômeno ao signo ou do cru ao cozido, como Claude Lévi-Strauss descreve as
representações entre a natureza e a cultura. Do objeto sonoro ao signo sonoro há
89
um campo semiótico em que o receptor se situa de acordo com a sua postura
fenomenológica, com a sua atitude de escuta.
Umberto Eco estabelece determinados limites de extensão entre a natureza
e a cultura, entre o campo não semiótico e o campo semiótico, fazendo
diferenciações entre signos e não signos, tendo como critério mais forte a
convencionalidade, ou melhor, a convenção cultural e social. Esses limiares
semióticos direcionam sua teoria semiótica para uma semiótica cultural. Winfried
Nöth aponta para algumas dificuldades relacionadas às delimitações das fronteiras
estipuladas por Eco:
Entretanto, onde começa a convenção e onde termina a natureza? Eco não fornece respostas claras. A ciência cognitiva, por exemplo, tem enfatizado a dependência da cognição nas estruturas da mente humana e a impossibilidade de qualquer acesso direto à natureza "real" dos fenômenos. Muitas de nossas cognições são universais e não culturalmente variáveis, uma vez que elas se desenvolveram de acordo com leis universais da evolução biológica. (NÖTH, 1998, sn)
Essas questões que envolvem o fenômeno e o signo, da natureza e a
arbitrariedade, demonstram o quanto é ambíguo o signo, pois podem ser frutos de
construções e conceitos lógicos, no entanto, nada garante que serão reconhecidos
como signos pelo ouvinte.
Sendo o homem um ser, ao mesmo tempo, lógico e sensível, tem a
capacidade de perceber o fenômeno, seja um acontecimento ou uma obra de arte, e
criar concepções, construídas desde as sensações da experiência. Ao perceber o
objeto, somos estimulados a criar significados e dar sentidos às coisas, atribuindo
nexos e fazendo associações signicas, produzindo a nossa própria leitura.
Compor, ouvir, a partir de matérias sonoras, fenômenos, signos ou símbolos,
tudo é extremamente relativo quanto aos resultados. Ao compositor não cabe fazer
determinações, não está em suas mãos a condução de uma relação sujeito/objeto
que garanta que sua obra será percebida sob uma condição fenomenolócia ou
cultural, nenhuma linguagem artística pode assegurar isto. Qual a categoria
fenomenológica adotada pela percepção ou o critério psicologico de semiose que se
adequa a uma fruição ou a uma análise? O signo poderá ser percebido de uma
maneira que não está condicionada à vontade do compositor.
90
O estudo da potencialidade textual do objeto sonoro parte da ideia de signo,
do inteligível, da razão, do cultural, no entanto admite as extensões fenomenológicas
articuladas em composições textuais.
É importante também constatar que os objetos sonoros, sendo unidades
portadoras de significação como outros signos (palavras, gestos, imagens, etc.)
formam sistemas de signos que se combinam e se transformam em linguagem.
4.6 Sintaxe
O que enunciamos em palavras nunca é, em língua alguma, aquilo que dizemos. 82
Heidegger
Os signos enquanto unidades portadoras de significados, por si só, pouco
podem representar sem a significação que o contexto lhes atribui. Para Hjelmslev
(1975, p. 49), o signo que representa algo, “é de definição realista e imprecisa”. Os
signos, quando decompostos fora de um contexto, são apenas signos que, às vezes,
nada ou quase nada significam. O seu maior desempenho, sua gradação máxima de
significação se dará pela relação que mantêm com outros signos, em função do
contexto. Sobre o assunto, Hjelmslev diz que:
Considerado isoladamente, signo algum tem significação. Toda significação de signo nasce de um contexto, quer entendamos por isso um contexto de situação ou um contexto explícito, [...]. (HJELMSLEV, 1975, p. 50)
Estas concepções encontram consonâncias com os pontos de vista de Eni
P. Orlandi83 sobre a relação entre as palavras e o texto na interpretação de um
discurso:
[...] eu diria que as palavras não significam em si. É o texto que significa. Quando uma palavra significa é porque ela tem textualidade, ou seja, porque a sua interpretação deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade significativa. (ORLANDI, 1995, p.111)
82Citação de A experiência do pensamento, de Heidegger (TOMÁS, 2002,, p. 27) 83 Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi (São Paulo) é uma pesquisadora e professora universitária brasileira. Foi a precursora, no final dos anos 70, da Análise do Discurso no Brasil.
91
O signo é uma unidade de significação, que associado a outros signos forma
uma nova unidade de significação maior. Nesta nova unidade de nível maior, os
signos não estão amontoados, eles se agrupam, se organizam segundo regras. O
estudo destas organizações é feito pela semiótica em seu nível sintático. Para
Charles Sanders Peirce, a semiótica é constituída nos níveis sintático, semântico e
pragmático:
- Sintático - relação que o signo tem com o seu interpretante;
- Semântico - relação existente entre o signo e o seu referente (objeto);
- Pragmático - relação do signo com ele mesmo e com outros signos.
Charles Morris, baseado na semiótica peirceana, faz as seguintes
considerações quanto às dimensões sintática, semântica e pragmática da semiose:
• Sintática – está relacionado ao nível da estrutura dos signos, o modo em
como eles se relacionam e as suas possíveis combinações. As regras da
sintaxe são as de formação e transformação que tratam de combinações de
signos e respectivas relações;
• Semântico – analisa as relações entre os signos e os respectivos significados,
aos objetos que denotam ou possam denotar. A regra semântica designa,
dentro da regra semiótica, uma regra que determina sob que condições um
signo é aplicável a um objeto ou a uma situação; tais regras correlacionam
signos e situações denotadas por signos;
• Pragmática – Morris explica que o termo “pragmática” foi cunhado em
referência ao termo “pragmatismo”, que estuda a relação dos signos e os
seus utilizadores, enquanto que “pragmática” designa-se a “ciência da
relação dos signos aos seus intérpretes” e que, “historicamente, a retórica
pode ser vista como uma forma primitiva e limitada de pragmática (MORRIS,
[s.d.], p. 32). As regras pragmáticas são as regras de formação e
transformação da língua em que os veículos sígnicos em questão são
normalmente utilizados.
92
Sobre as regras dessas dimensões da semiose, e das relações por elas
determinadas, Charles Morris arremata:
Regras sintácticas determinam as relações sígnicas entre veículos sígnicos; regras semânticas correlacionam os veículos sígnicos com outros objectos; regras pragmáticas estabelecem as condições nos intérpretes em que o veículo sígnico é um signo. (MORRIS, , p. 37)
Agora, mais do que antes, é preciso considerar a importância da
semelhança entre uma construção musical, ou sonora em relação a uma construção
literária, ao nível de estruturas e combinações de signos, das regras da sintaxe.
Vimos anteriormente o quanto os compositores e os estudiosos da música ocidental
faziam associações entre as linguagens musical e literária, procurando
correspondências entre a música e a palavra e outras equivalências musicais em
relação ao texto, tanto da poesia e da oração, ou como nos casos em que os cortes
musicais semelham a pontuação das frases, ou pela construção musical através do
uso de elementos da retórica. Sempre foi conveniente aos estudos musicais recorrer
a termos, conceitos e teorias de outras artes, mas principalmente das literárias.
Estes conhecimentos são considerados de suma importância para o
desenvolvimento musical, e é por esta razão que se recorre a um termo da
linguística para compreender as organizações musicais: me refiro a sintaxe musical.
Apesar de ter feito toda esta proximidade é importante compreender que
essas associações requerem muito cuidado, pois é importante identificar as
unidades semióticas musicais/sonoras para se falar em sintaxe.
A sintaxe, de acordo com o Dicionário Unesp do Português
Contemporâneo84, é a "parte da Gramática de uma língua que se constitui de um
conjunto de regras de combinatória entre as formas livres ou palavras para compor
os diversos níveis de construção com o intuito de comunicação”, enquanto que no
dicionário Aurélio85 é a “parte da gramática que estuda a disposição das palavras na
frase e a das frases no discurso, bem como a relação lógica das frases entre si;
construção gramatical”.
Émile Benveniste argumenta sobre a necessidade de explicitar a noção de
signo enquanto unidade semiótica, bem como a sua dependência nos planos de
enunciação: 84 BORGES, 2001, p.1291. 85 FERREIRA, 2004.
93
Dizer que a língua é feita de signos é dizer antes de tudo que o signo é a unidade semiótica. Essa proposição, sublinhamo-lo, não está em Saussure, talvez porque ele a consideraria como uma evidente decorrência, e nós a formulamos aqui no início do exame que estamos fazendo; ela contém uma dupla relação que é necessário explicitar: a noção de signo enquanto unidade e a noção de signo como dependente da ordem semiótica. (Benveniste,1989, p. 224)
Identificar a unidade mínima de um sígno sonoro, isto é, de um objeto
sonoro, por analogias ou associações se apresenta como uma dificuldade, pois não
é possível estabelecer uma correspondência do objeto sonoro com nenhuma
unidade linguística.
Na linguagem musical, Nattiez trouxe as concepções de Saussure, de
significante e significado e adotou o conceito tradicional de "nota" como unidade
mínima do significante musical. A gramática tradicional já compreendeu a palavra
como unidade mínima, ideia que, há muito, já foi abandonada. Na linguagem verbal,
fonema, monema, morfema, lexema, semantema são unidades linguísticas munidas
de significação, no entanto, qual a mínima porção sonora significante de um objeto
sonoro não musical, como os sons naturais do ambiente ou mesmo os sons
artificiais que compõem a paisagem nossa de cada dia?
A obra Solfejo do objeto sonoro, de Pierre Schaeffer tem uma grande
importância nos aspectos que distingue um fenômeno sonoro de um signo. Nela
Schaeffer faz comparações e distinções do objeto sonoro com o musical, nos
levando a entender a dimensão da dificuldade em distinguir uma unidade de
significação. Dois temas essenciais de suas reflexões são: a duração e a altura86
dos objetos sonoros. Pensando sob o prisma da fenomenologia, conjecturamos
sobre qual a porção que podemos considerar uma unidade significante, isto é, de
que maneira se mostra e quanto tempo dura?
Em sua obra, Schaeffer faz considerações sobre os objetos sonoros e a
necessidade de um novo solfejo, levando em conta suas características
86 Em música, altura é uma das propriedades do som, refere-se ao tom (frequência fundamental dos sons). As frequências baixas correspondem aos sons graves e as mais altas com os sons agudos. O mais comum é que se utilize os nomes das notas. Existem muitas escalas possíveis, mas a mais conhecida pelos ocidentais é a escala diatônica, com suas sete notas: dó, ré, mi, fá, sol, lá e si, no entanto se diz que ela possui oito graus, sendo o oitavo a repetição do primeiro.
94
assimétricas, descontínuas, anamorfas87, irregulares, insólitas, ilógicas, granuladas,
rugosas, e seus vestígios rítmicos, entre outras.
Na música, as notas tem altura (tonalidade) e duração (métrica) definida. Por
exemplo, pode se fazer a notação de uma semínima (duração) de dó (altura) na
partitura, mas como fazer o solfejo dos sons de um córrego ou de pedras rolando?
Como fazer divisões se são assimétricos. Segundo Schaeffer, “um som assimétrico
é marcado pelo sostenuto88 e pela ressonância” (2007, p. 23), e que a “informação
significativa pode estar contida em um ou dois décimos de sua duração métrica”
(2007, p. 24), e ainda acresce:
as nossas regras do solfejo, relativas ao valor das notas, não se aplicam senão numa zona privilegiada dos sons sustentados e homogéneos. Os elementos da forma [ou seja, perfil dinâmico] ou de informação perturbam consideravelmente os seus valores métricos. Assim, será um erro confiarmos no cronómetro ou no duplo-decímetro, e a existência de um esquema ou de um plano não assegura que se trate de uma partitura científica. Se existe uma máquina de calcular para calibrar música, nós já possuímos uma, prodigiosa, portátil, económica: senhoras e senhores, é o nosso ouvido. (SCHAEFFER, 2007, p. 24)
Nossos ouvidos são aptos para apreciar qualidades sonoras mesmo que a
sua duração seja muito breve, assim o tempo não se qualifica só pela duração, “ele
pode ser subvertido, “anamorfoseado” pelo ouvido” como acontece com o espaço
quando “são anamorfoseadas por um espelho deformador” (SCHAEFFER, 2007, p.
36), ao mesmo tempo, existem limites do aparelho auditivo em que determinados
sons soam indiferentes à natureza dos estímulos. A duração musical está mais
relacionada a densidade de informação, a quantia de acontecimentos energéticos,
numa dada fase de um determinado objeto, do que com a sua medição.
Acrescentemos que a memória musical não retém apenas as proporções do tempo de escuta, mas também a importância daquilo que se passou. (SCHAEFEER, 2007, p. 23)
São muitos os pontos importantes desse modo de pensar a música, voltado
para o solfejo de Schaeffer. Poderia escrever mais sobre estas questões, aprofundar
os estudos, mas para isso seria necessário um trabalho de maior amplitude que o
87 A “anamorfose” é utilizada aqui em sentido figurado e refere-se à deformação que sofre a imagem de um objeto refletida num espelho curvo em relação ao próprio objeto. 88 Na música , sostenuto é um termo italiano que significa "sustentado".
95
proposto na elaboração do plano dissertativo. Abaixo farei algumas citações
complementares, que compreendo serem indispensáveis:
O objecto sonoro não é de forma alguma o fragmento gravado mas no entanto ambos se assemelham muito. Pode-se crer acreditar que o capturámos e, com efeito, esse fragmento ao ser lido à mesma velocidade [de gravação], restitui-nos o fenómeno sonoro original [...] (SCHAEFFER, 2007, p. 57)
Um objecto sonoro é delimitado pela sua coerência causal; ela coincide com a curta história de um acontecimento acústico. Mas no entanto, isso não assegura a unidade do objecto musical. (SCHAEFFER, 2007, p. 58)
Desconfiemos também dos cortes temporais. Um íman quebrado em pedaços dá como resultado vários ímanes. Assim um objecto sonoro fraccionado em três, resulta em três objectos sonoros que possuem, cada um deles, um início, um corpo e uma queda [...] (SCHAEFFER, 2007, p. 58)
Mostrarei abaixo um gráfico de um editor de áudio. Nele vemos ilustradas as
ondas sonoras que formam o som de uma flauta (figura 15), com duração menor que
um segundo (743 milésimos de segundo). Através de ferramentas de corte podem
ser feitos tantos cortes quanto necessários.
Figura 15: Gráfico do som de flauta
Na figura abaixo, o mesmo som, porém dividido em três partes. Os cortes
feitos resultam em três objetos.
Figura 16: Gráfico do som de flauta com cortes
A complexidade da identificação de uma unidade de significação pode ser
verificada na citação anterior e na posterior seguinte. Na anterior temos o exemplo
de um corte vertical, isto é, na duração, em que o objeto foi dividido em porções de
tempo e na citação a seguir o corte é horizontal, as porções são separadas por suas
96
frequências, mantendo a duração. No exemplo, Schaeffer descreve a experiência de
uma chapa metálica percutida sobre o seu bordo, produzindo um objeto cuja
unidade é inegável, mas que pode ser notado que este objeto sonoro contém pelo
menos dois objetos musicais detectados por filtragens:
Uma filtragem aguda [HPF]89 reterá os principais critérios de ataque: [...] Uma filtragem grave [LPF]90 não conservará senão a ressonância grave [...] (SCHAEFFER, 2007, p. 58)
Ainda sobre a questão de descompor, ou fracionar o som, Haroldo de
campos (1969, p. 46) cita Henri Pousseur91, que, em sua “busca do material sonoro
elementar, ao pré-som, que fica à raiz dessa ruptura da garra de ferro da matéria
utilizavel na musica tradicional”, acrescenta:
Quanto ao universo sonoro duma ductilidade ideal – ambição da música atual – o único meio de se chegar a êle consiste sem dúvida em reduzir a ‘matéria’ a seu estado mais simples, mais comum, amorfo e maleável: o som sinusoidal de laboratório, tal como o pode produzir um gerador de frequências. Uma vez que todo ruído, todo som, todo acontecimento sonoro, pode ser analisado como soma de um certo número de elementos parciais – nós os distinguiremos tendo em vista sua altura, sua intensidade, bem como a evolução de sua freqüência e de sua dinâmica em relação ao tempo, em relação, finalmente à sua direção em si própria – tudo o que é audível, portanto, é passível de ser construído a partir de um ‘som puro’. (POUSSEUR apud CAMPOS, 1969, p. 46-47)
Qual a duração de um fenômeno? Como se distingue o que é uma porção
daquilo que se mostra para os nossos sentidos de percepção? Se estivéssemos
tratando do sentido da visão, poderíamos falar que é o que vemos de imediato,
como um quadro, uma impressão que, feito um carimbo, se fixa como “imagem
acústica” em nossa mente, em termos saussureanos. Mas os campos dimensionais
das impressões visuais e auditivas são distintos. O suporte dimensional das imagens
é o espaço e o dos sons é o tempo, assim, que fração de tempo de um som pode
ser compreendido como um fenômeno? Sobre este aspecto, tomemos, então,
conhecimento de algumas reflexões de Edmund Husserl: 89 High pass Filter (filtro passa-alto) é um tipo de equalizador que elimina as frequências abaixo de um ponto de corte especificado. O usuário escolhe, por exemplo 40 Hz, desta forma, abaixo de 40 Hz será eliminado e o equalizador irá deixar passar apenas as frequências altas, acima de 40 Hz. 90 Low pass Filter (Filtro passa-baixa), como o nome já sugere, é o oposto do HPF, é um tipo de equalizador, filtro divisor de frequências, que permite que as frequências abaixo do nível especificado sejam preservadas. 91 Henri Pousseur (1929 - 2009) foi um compositor belga devotado à pesquisa da música de vanguarda, participou ativamente do dodecafonismo e foi um dos protagonistas da música eletrônica e serial.
97
Se olharmos de mais perto e advertirmos como, na vivência, por ex., de um som, mesmo depois da redução fenomenológica, se opõem o fenómeno (Erscheinung) (*) e o que aparece e como se opõem no seio do dado puro, ergo, da imanência autêntica, ficamos perplexos. Por exemplo, o som dura; temos aí a unidade evidentemente dada do som e da sua distensão temporal com as suas fases temporais, a fase do agora e as fases do passado; por outro lado, se reflectirmos, o fenómeno da duração do som, que é em si algo de temporal, tem a sua respectiva fase do agora e as suas fases do passado. E numa fase seleccionada do agora do fenómeno não só é objecto o agora do próprio som, mas o agora do som é apenas um ponto numa duração sonora. Esta indicação – análises maispormenorizadas pertencem às nossas tarefas especiais no que se vai seguir – é suficiente para nos fazer ver o que aqui há de novo: o fenómeno da percepção de um som e, claro, da percepção evidente e reduzida, exige uma distinção entre o fenómeno e o que aparece no interior da imanência. Por conseguinte, temos dois dados absolutos, o dado do fenómeno e o dado do objecto; e o objecto, dentro desta imanência, não é imanente (1) no sentido incluso, não é um fragmento do fenômeno: a saber, as fases passadas da duração do som são agora ainda objecto e, no entanto, não estão inclusivamente contidas no ponto do agora do fenómeno. (HUSSERL, sd, 31-32)92
Com todas essas considerações, podemos perceber a complexidade em
fazer determinações de duração do fenômeno sonoro. Enfim, não intento chegar a
conclusões quanto à medição de um objeto, extrair porções ou mesmo fragmentar o
fenômeno, pois isto não está na mira desta dissertação, pois é uma questão da
fenomenologia da música. Também não objetivo fazer definições sobre os níveis de
unidades significativas, no entanto toca fazer algumas observações quanto às
possibilidades de equivalência do objeto sonoro em relação às unidades sígnicas da
linguagem verbal, como também da linguagem musical.
Alguns aspectos importantes para se cogitar são os questionamentos e
reflexões sobre estrutura frasal, suas regras, descrições, tanto da língua como
musical, quanto às suas partes constituintes.
Diz Saussure (2006, p. 122): “pois que é uma frase senão uma combinação
de palavras, e que existe mais fácil de perceber?”. Apesar de a palavra não ser
considerada como a mínima unidade, ela é uma unidade central, uma referência,
seja para ser fracionada em unidades menores ou para compor unidades maiores,
em termos de estabilidade sintática e semântica. Nos seus fracionamentos temos
como subunidades os sufixos, prefixos e radicais, cada uma com seu sentido, cada
92 Notas extraídas do livro: (*) No sentido ‹‹manifestação››, ‹‹aparição›› (i.é, vivência) e (1) No manuscrito está: ‹‹transcendente››. (HUSSERL, sd, 31)
98
uma com papel próprio. Entre os grupos maiores, temos as unidades fraseológicas,
como os compostos, as locuções, expressões idiomáticas, frases lexicais, etc.
Saussure decompõe a palavra em prefixos, raízes, radicais, sufixos, desinências, e
também apresenta o processo de aglutinação ao tratar da formação dos itens
lexicais complexos:
[...] quando um conceito composto é expresso por uma seqüência de unidades significativas muito usual, o espírito tomando por assim dizer um atalho, renuncia à análise e aplica o conceito em bloco ao grupo de signos, que se torna então uma unidade simples. (SAUSSURE, 2006, p. 206)
Entre a sintaxe musical e a sintaxe verbal há uma grande semelhança. Isto
está demonstrado quando estudamos sobre as formas musicais. Cabe conhecer
alguns pontos de vista sobre unidade semiótica e organização musical.
Uma composição musical é a organização de ideias musicais. De acordo
com a sua organização vão se constituindo as formas, as estruturas, os gêneros,
etc. Schoemberg diz que a coerência e a lógica são requisitos para a compreensão
da obra:
Sem organização, a música seria uma massa amorfa, tão ininteligível quanto um ensaio sem pontuação, ou tão desconexa quanto um diálogo que saltasse despropositadamente de um argumento a outro. Os requisitos essenciais para a criação de uma forma compreensivel são a lógica e a coerência: a apresentação o desenvolvimento e a interconexão das idéias devem estar baseados nas relações internas, e as idéias devem ser consideradas de acordo com sua importância e função. (SCHOEMBERG, 1991, p. 27)
A organização das ideias musicais é feita por divisões, subdivisões, de forma
hierárquica. Existem várias definições e denominações dos elementos formais,
emprestados do universo das artes plásticas, como desenho e forma, outros da
linguagem verbal, das teorias dos textos, enunciados, fraseologias, etc., como
“frase”, “período” e “sentença”. Existe também um sistema de pontuação, que atuam
como “vírgulas”, pontos de “exclamação”, “interrogação”, “final”, com suas
correspondências nas “cadências” musicais. A música tradicional é organizada de
forma muito semelhante ao da linguagem verbal. Abaixo, alguns teóricos e as
divisões propostas por eles.
- Schoemberg (período ou sentença, frase, motivo);
99
- Giulio Bas (período, frase, semifrase, motivo ou inciso);
- Riemann (período, semiperíodo, grupo, motivo);
- Zamacois (frase, período, subperíodo, membros do subperíodo, motivo;
Clemens Kühn (2003, p. 77) mostra exemplos históricos de mesclas e
combinações de formas como frase con antecedente de tipo período; período con
semifrases de tipo frase; superposiciones; potenciación. Em seu livro Tratado de la
forma musical, Kühn argumenta sobre essas possibilidades, a partir de exemplos de
Haidn, Beethoven e Mozart:
Frase y período no solo se traducen em ideas formales contrapuestas. lo característico son, precisamente, los casos em que ambos se solapan o se dan juntos. Equilibrio del período atravessado por energia motívica, empuje apremiante de la frase sosegado por las fuerzas armónicas: esta es la regla clássica, y no la excepción. Esta penetración mutua es la que nos revelará las señas de identidad, formales. (KÜHN, 2003, p. 77)
Depois dessas reflexões, não podemos deixar de considerar que as sintaxes
verbal e musical não comportam o objeto sonoro, mais especificamente, os sons do
cotidiano, como os ambientais ou os sons gerados pelos artefatos modernos,
usados como signos em uma composição/textura sonora. Esses objetos não tem
correspondência fixa com a palavra, frase, sentença, oração, enunciado, exatamente
porque pode corresponder à qualquer uma dessas unidades. Por exemplo, o som de
chuva, pode corresponder com a palavra “chuva” representar a chuva, como
também pode corresponder à construção “está chovendo”.
A soma dos objetos sonoros forma uma língua, um sistema, com linguagem
própria, portanto requer uma sintaxe combinada, pois entendo que todo o aporte das
duas sintaxes, das unidades verbais ou musicais, são necessariamente
fundamentais para se compreender uma possível sintaxe sonora, sem se descuidar
das relações com outras sintaxes, afinal essas semelhanças são encontradas
também na comparação com outras artes.
A música tradicional tinha como unidade mínima a nota musical (tom) e uma
sintaxe baseada no sistema tonal. As possibilidades da sintaxe tonal já haviam sido
exploradas em, praticamente, todo o seu potencial, então, em função dessa crise da
linguagem musical da tradição, as músicas que surgiam, conhecidas também como
100
“música moderna”, “nova música”, “contemporânea” ou “música de vanguarda”,
buscavam romper com as convenções, com aquilo que se julgava falido: o tom.
As possibilidades da sintaxe tonal já haviam sido exploradas em todo o seu
potencial, e dessa busca, que era também investigação, surgiram experimentos de
música que pretendiam se emancipar do mundo tonal, desde as que exploravam os
instrumentos tradicionais, extraindo sons não convencionais às que se utilizavam de
sons sintetizados, sons concretos e ruídos. Como exemplo de experimentos que
atacavam diretamente o tonalismo podemos citar alguns métodos de composição
musical e o modo como se dava o embate com o tonalismo; são eles: atonalismo,
serialismo, microtonalismo e a música futurista e também a concreta. A musica
atonal, que negava o tonalismo, mas não o tom, isto é, transgredia a sintaxe, no que
se referia a algumas regras, por exemplo, ao poder de atração de certos graus e
intervalos, mas não negava o sistema, no entanto, os compositores que usavam
este método começaram a perceber a dificuldade de se conseguir dar coerência no
discurso musical atonal, surgindo a música serial, por exemplo, o dodecafonismo,
que estabelecia preliminarmente à composição da peça um série de doze notas da
escala cromática93, com o intuito de garantir uma direção e ordem, dando uma
coerência à obra. A musical microtonal, que apesar de modificar o sistema de notas,
ampliando, como o caso de Julián Carrillo94, que descobriu a décima sexta parte de
um tom, ainda tinha a mesma entidade formal; ou a música futurista, que no ponto
de vista de Mondrian95, não avançaram com as intenções de renovação baseadas
na introdução de ruídos (explosões, gemidos, sussurros, vozes de animais, sons de
madeira e metal, etc.) em suas composições, inclusão dos ruídos na música.
Mondrian elogia Russolo, que criou o intonarumori para a emissão desses sons, que
eram acionados por uma alavanca, mas o critica por ter projetado para que
realizasse padrões melódicos diatônicos e cromáticos, demonstrando com isso não
93 A escala cromática é formada de 12 sons. A escala é formada pelas 7 notas padrão da escala diatónica, acrescidas dos 5 tons intermediários: - Dó - Dó# - Ré - Ré# - Mi - Fá - Fá# - Sol - Sol# - Lá - Lá# - Si 94 Julián Carrillo Trujillo (1875 - 1965) foi um compositor mexicano, também maestro, violinista e teórico da música, conhecido por desenvolver uma teoria da música microtonal, que ele apelidou de "Sonido 13". Quando experimentava com seu violino em 1895, descobriu dezesseis sons nitidamente diferentes entre os tons Sol e Lá, emitidos pela quarta corda do violino. Julián Carrillo reformulou as teorias e a física da música. Ele inventou uma notação musical numérica simples, que pode representar qualquer subdivisão imaginável). Ele inventou instrumentos musicais novos, e adaptou outros para produzir microintervalos. Compôs uma extensa quantidade de música microtonal e gravou cerca de 30 de suas composições. 95 Pieter Cornelis Mondrian, mais conhecido por Piet Mondrian (1872 - 1944) foi um pintor Holandês modernista. Participou do movimento artístico Neoplasticismo e colaborou com a revista De Stijl.
101
ter compreendido sua própria descoberta e o alcance de seus propósitos. Para
Mondrian, Russolo e os futuristas não souberam chegar às últimas consequências
de seus aportes iniciais, pois poderiam definir o valor do ruído como nova entidade
formal, no entanto se conformaram em inserir os ruídos aos instrumentos, não
renunciando a estrutura da música tradicional, pretendendo com o seu intonarumori
gerar algo semelhante às melodias (PIANA, 1995, p. 72). As queixas de Mondrian se
dão porque entendia que a musica futurista de Luigi Russolo e Balilla Pratella não
deveria buscar a acumulação, mas uma nova ordenação, um novo sistema de
relação dos sons.
Os futuristas acreditavam que a música deveria expressar a “alma da
sociedade”. É legítima a reivindicação dos futuristas, pois a “alma da sociedade”
estava contagiada por novos signos, produtos dos avanços tecnológicos, que
imprimiam novo ritmo e tensão à vida, que a caracterizavam de moderna: o avião, os
trens, carros, máquinas, equipamentos, etc.
A música concreta incorporou esses elementos concretos, mas de maneira
diferente, através de amostras sonoras, de gravação de sons e a música eletrônica
se empenhou na criação tímbrica, de espectros sonoros novos, enquanto a música
eletroacústica é considerada uma continuação das duas vertentes, na busca de
novas poéticas a partir de modelos de criação musical amplamente mediado por
tecnologias eletrônicas.
Os estúdios eletroacústicos modificaram os modos de concepção sonora no
âmbito da composição (IAZETTA, 2009, p. 149), pois os computadores se infiltraram
nos estágios de produção musical e um programa musical não é uma ferramenta
neutra.
Às vezes, especialmente quando novas tecnologias são aplicadas, há risco de que dado programa ou tecnologia seja mais decisivo na elaboração da composição que a inspiração musical. (Brech, 2002, p. 211)
Simultâneo a todo esse período, os compositores também romperam com a
métrica e padrões tímbricos. Entre tantas tentativas, experiências, erros, acertos,
exageros, ninguém foi mais radical que John Cage96, pois rejeitou as sintaxes, os
96 John Milton Cage Jr. (1912 - 1992) foi um compositor, teórico musical, escritor e artista dos Estados Unidos. Cage foi um pioneiro da música aleatória, da música eletroacústica, sendo considerado um dos mais representativos compositores da música de vanguarda.
102
discursos e formas. A sua postura não só subverteu o tom, sua música não foi só
atonal, mas aformal também, além de suspender o próprio conceito de obra. Seu
exemplo mais contundente é a peça denominada 4’33” (quatro minutos e 33
segundos). Esta peça não contém nenhuma matéria sonora, é feita de silêncio, isto
é, não possui nenhuma nota, sendo composta inteiramente por pausas. No entanto,
o silêncio de Cage não equivale ao vazio, nem à ausência, mas a um campo de
possíveis composições musicais-sonoras, pois, enquanto dura a peça (intervalo de
tempo que corresponde ao nome da obra), cada ouvinte escuta uma música, uma
composição de ruídos ocasionais, uma música formada pelos sons ambientes, que,
conforme o modo de escuta, são elegidos uns sons enquanto outros são rejeitados e
cada ouvinte processa texturas sonoras complexas, aleatórias e distintas. Ao
enfatizar o silêncio, Cage nega as formas e estruturas, renunciando a noção de
ordem, além do que o grau de “abertura” que sua obra alcança, no que se refere ao
material sonoro, é extraordinário, pois ela está composta por todo e qualquer som
ouvido durante a sua duração, portanto, tudo o que for ouvido, cabe. Nesta
concepção, todos os signos sonoros podem se relacionar, uma vez que tudo o que
for ouvido, seja lá o que for, não foi forjado, é uma obra sem as tramas da
dissimulação, é uma obra do acaso e da aleatoriedade.
Quanto aos diversos e possíveis níveis de abertura de uma obra, Umberto
Eco (1991), analisando a linguagem da arte contemporânea detecta que a música
liberta “a audiência dos trilhos obrigatórios da tonalidade e multiplica os parâmetros
com que organizar e degustar o material sonoro” (ECO, 1991, p.92), em mobilidades
que propiciam uma variedade de interpretações:
Das estruturas que se movem àquelas em que nós nos movemos, as poéticas contemporâneas nos propõem uma gama de formas que apelam à mobilidade das perspectivas, a multíplice variedade das interpretações. Mas vimos também que nenhuma obra de arte é realmente "fechada", pois cada uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma infinidade de "leituras possíveis”. (ECO, 1991, p. 67)
Essas experiências radicais subverteram profundamente a sintaxe musical,
desorganizando-a, no entanto, podemos entender que a maioria das transgressões
103
é somente uma ruptura ao modelo sintático ditatório e não uma negação à sintaxe,
conforme Phillipot97:
[...] a tomada de posse da totalidade do universo sonoro não justifica nem o ‘deixar correr’, nem o acaso, nem a incoerência; e a organização consciente continua, ainda hoje, o mais seguro critério da música. (PHILLIPOT apud CAMPOS, 1969, p. 46)
Os progressos, oposições, birras, melhoras, aversões, evoluções, pirraças,
desenvolvimentos, enjôos, revoluções, enfim, as múltiplas reações em relação aos
sistemas musicais tradicionais, retratam as mudanças culturais, que, como sistema
de significações, desencadeiam práticas expressivas, como as atividades artísticas e
intelectuais, pois ao passo que ocorrem mudanças nos estilos de vida ou
organização social, muda-se a cultura, e culmina com a mudança nas formas
tradicionais de produção intelectual, artística (nos seus sistemas formais e de
linguagem). Georg Lukács entende este processo como uma dissonância da
existência:
A arte - em relação à vida - é sempre um 'apesar de tudo'; a criação de formas é a mais profunda confirmação que se pode pensar da existência da dissonância" [...] a forma alimenta-se da dissonância, de que ela constitui no entanto a afinação, unindo em acorde sons de outro modo destoantes. (LUKÁCS, 2000, p. 71)
Na arte, como em um processo dialético, a vida apresenta a antítese, a
dissonância, para que o artista encontre a síntese, isto é, uma nova forma de arte
(por consequência, dissonante em relação aos costumes). No caso específico da
música, as diversas mudanças, mencionadas anteriormente, eram gradações de
dissonâncias. A dissonância maior, apontada por Lukács (metafísica, fundamental)
exigiu um grau máximo de resposta artística, resultando em uma mudança que foi
para além do sistema musical e atingiu a materialidade, mudando a própria entidade
formal, que foi ampliada, não se restringindo só à nota musical, mas se estendendo
ao ruído. A história é feita de mudanças culturais. Para Raymond Williams (1969, p.
305), “a história da cultura é a história do modo por que reagimos em pensamento e
em sentimento à mudança de condições por que passou nossa vida”.
97 Michel Paul Philippot (1925 - 1996) foi um compositor, matemático, musicólogo, esteticista e educador francês.
104
A busca de um novo material sonoro estava em consonância com a busca
de novos objetos em outras artes. Haroldo de Campos, em sua obra A arte no
horizonte do provável e outros ensaios, dedicou um capítulo sobre A poética do
precário, em que os objetos do cotidiano e o lastro rejeitado pela vida moderna
constituem obras de artistas como Kurt Schwitters, ou o entulho do idioma cotidiano
na poesia de Anna Blume e na prosa de Joyce, ou mesmo o material sonoro na
música futurista de Russolo continuada pela música concreta de Pierre Schaeffer,
que se lança à escafandria dos ruídos, usando recursos eletroacústicos, seguido por
Pierre Boulez98, que estava convicto “de que a uma nova morfologia correspondem
uma sintaxe, uma retórica e uma sensibilidade novas” (CAMPOS, 1969, p. 46).
A vanguarda musical propiciou novos meios, dos quais não se tem mais um
código comum, mas uma liberdade, uma abertura. Assim, cada transgressão deixou
sua marca e cada compositor forjou sua própria sintaxe. Neste contexto, observa
Santaella:
Hoje, cada estúdio de música eletroacústica é um laboratório de sintaxe e cada composição que é nele produzido, um tubo de ensaio sintático. (SANTAELLA, 2001, p. 116)
A autora, em seu livro Matrizes da Linguagem e pensamento, propõe A
sintaxe como eixo da matriz sonora. Para Santaella (2001, p. 112), a sintaxe é “o
modo pelo qual elementos se combinam para formar unidades mais complexas”.
Etimologicamente, a palavra "sintaxe" é formada por syn, que significa "junto", "com", e taxis, significando "arranjo". Desse modo, a sintaxe pressupõe a existência de elementos (objetos) a serem combinados. (SANTAELLA, 2001, p. 112)
A autora também comenta:
Um aspecto bastante presente nos estudos estruturalistas da sintaxe realizados neste século é a determinação do elemento que funciona como unidade mínima a ser combinada em seqüências para se obter os vários agrupamentos e níveis sintáticos. (SANTAELLA, 2001, p. 112-113)
98 Pierre Boulez (1925) é um maestro e compositor francês. Estudou dodecafonismo e escreveu música atonal num estilo serial. Boulez foi um dos líderes filosóficos do movimento pós-guerra nas artes, em favor de maior abstração e experimentação. Boulez é também um escritor sobre música.
105
Enquanto a música concreta, através de Pierre Schaeffer, incorporou os
elementos concretos e revelou uma materialidade dotada de formas que não se
fixam, de signos propensos às múltiplas possibilidades de relações sintéticas, a
música eletroacústica assume características pós-modernas, como uma poética
fragmentária, uma relação de imediaticidade, acasos, experimentalismos,
contrapondo-se a quaisquer formas fixas de sintaxe, contribuindo, desta forma, para
a formação da linguagem da música pós-moderna.
4.6.1 O objeto sonoro como elemento de sintaxe
Ceci n’est pas une pipe.
René Magritte99.
O objeto sonoro na condição de signo é aquilo que mostra e que representa.
As referências sonoras, em sequência ou sobrepostas, compõem um quadro,
descrevem uma paisagem sonora, compõem um texto. Representar o espaço,
colocar esses enquadramentos em movimento, fazer acontecer e contar algo são
intencionalidades que poderão levar à criação de narrativas e descrições sonoras a
partir do domínio da linguagem, da codificação dos objetos sonoros.
Esses objetos, em uma criação como representação da realidade, com ou
sem fidelidade, têm a função de retratar, de figurar uma coisa, um objeto, um lugar,
como Peirce coloca: Estar em lugar de, isto é, estar numa tal relação com o outro
que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse
outro. (PEIRCE, 2005, p. 46)
O objeto sonoro pode narrar, assim como a música programática pode
narrar. Como vimos anteriormente, uma das qualidades da música é sua capacidade
de descrever cenários, sugerir situações e despertar sentimentos. Aqui estamos
falando da linguagem musical, do objeto musical, mas, e quanto ao objeto sonoro?
A esta altura, podemos deduzir que para mostrar ou contar, isto é, descrever
ou narrar, o objeto sonoro, excede grandemente o escopo do objeto musical, de
outro lado, sua aptidão para projetar as qualidades sensoriais de pessoas, lugares e
eventos é menor na mesma medida, quanto à arte da literatura.
99 René François Ghislain Magritte (1898 ― 1967) foi um dos principais artistas surrealistas belgas. René Magritte praticava o surrealismo realista, ou “realismo mágico”.
106
Separar o “mostrar” do “contar” neste ponto é necessário somente pelo fator
didático. No entanto, o costume prático de construções narrativas demonstra que a
diegese é um entrecruzamento da descrição e da narração. Não se conta se
omitindo o lugar, o clima, a atmosfera.
Figura 17: Ceci n’est pas une pipe100, de René Magritte
Cada signo sonoro é objeto de coesão e fluxo de narração e em uma
estrutura textual pode ter a função equipotente à de um fonema, palavra, enunciado
etc., pois ao conceito de objeto sonoro não é possível fixar uma correspondência
com qualquer unidade lingüística.
Os conceitos de linguagem e semióticos aplicados à música, contribuem
muito, mas nem sempre podemos considerá-los suficientes, pois a música é uma
linguagem onde os signos têm natureza simbólica no contexto de uma narrativa
musical, mas o mesmo não pode ser dito quanto aplicados ao objeto sonoro, que, no
mesmo contexto, pode ser também icônico e indicial.
Um texto, sendo uma montagem de signos, é construído conforme as
convenções associadas com um gênero, utilizando uma sintaxe específica de
comunicação.
100 Ceci n’est pas une pipe (“Isto não é um cachimbo”), de 1929, é uma das obras mais famosas do pintor René Magritte. A fama da obra decorre dos questionamentos gerados: “Ceci n’est pas une pipe.”. Uma frase que contradiz o que o olho enxerga. O que vemos não é um cachimbo real, mas uma representação de um cachimbo. A imagem é só um signo, um símbolo, e não “a coisa em si”. Foucault faz reflexões importantes sobre esta obra de Magritte em um livro que leva o mesmo nome da obra: Isto não é um cachimbo (em português). Em 1952, Magritte fez um desenho, com a frase Ceci continue de ne pas être une pipe – “Isto continua a não ser um cachimbo”. Um ano antes de morrer, Magritte voltaria mais uma vez ao tema, com Les deux mysteres (“Os dois mistérios”): Nesta tela, ele o primeiro quadro “Ceci n’est pas une pipe” em um cavalete e, fora do quadro, um outro cachimbo flutuando na tela. Cópias destas obras estão disponíveis nos anexos.
107
4.7 Linguagem
A linguagem fala
Heidegger101
“Qual é o objeto, ao mesmo tempo integral e concreto da Linguística? A
questão é particularmente difícil”. Assim Saussure (2006, p. 15) inicia o terceiro
capítulo, sob o título Objeto da Lingüística, do seu livro Curso de linguística geral.
Procurando atenuar a dificuldade da questão, Saussure faz uma diferenciação entre
“língua” e “linguagem”:
[...] o exercício da linguagem repousa numa faculdade que nos é dada pela Natureza, ao passo que a língua constitui algo adquirido e convencional, que deveria subordinar-se ao instinto natural em vez de adiantar-se a ele. (SAUSSURE, 2006, p. 17)
Para Ferdinand de Saussure (2006, p. 17), a língua “não se confunde com a
linguagem; é somente parte determinada, essencial dela”. No que tange ao objeto
sonoro, pertencente a outro sistema semiológico, distinto ao verbal, em termos
comparativos, podemos entender que os sons que escutamos e registramos,
passivamente, serão armazenados e constituirão um acervo, um repertório, uma
gramática, uma “língua”. Sobre a constituição da língua, Saussure pondera:
Se pudéssemos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos, atingiríamos o liame que constitui a língua. Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo. (SAUSSURE, 2006, p. 21)
A lógica desta citação pode ser aplicada ao objeto sonoro. Se a lermos,
considerando que o processo de formação de uma gramática própria, constituída de
objetos sonoros é possível a partir da prática da escuta, constataremos a concretude
desses signos, associada e ratificada pela percepção e conhecimento. O signo
101 HEIDEGGER, 2003, p. 9.
108
(sonoro102) é tangível e “pode traduzir-se numa imagem visual”. Os signos “são
realidades que têm sua sede no cérebro” (SAUSSURE, 2006, p. 23). Para reforçar
esta perspectiva, citarei abaixo mais um pensamento saussureano, fazendo a devida
associação e comparação com o objeto sonoro:
É esta possibilidade de fixar as coisas relativas à língua que faz com que um dicionário e uma gramática possam representá-la fielmente, sendo ela o depósito das imagens acústicas, e a escrita (objeto sonoro103) a forma tangível dessas imagens. (SAUSSURE, 2006, p. 23)
Os objetos sonoros, enquanto unidades portadoras de significação, assim
como outros signos (palavras, gestos, imagens, etc.) formam sistemas de signos
(línguas), no entanto, a linguística afirma que há linguagem quando existe um
conjunto sistemático de signos que permita uma comunicação. Esse processo
pressupõe a existência de um código comum ao autor e ao receptor, conforme dita
Iuri Lotman:
Para que o receptor compreenda o emissor da informação, a existência de um intermediário comum – o código – é-lhes necessária. Assim, a linguagem põe-se como um código, com a ajuda do qual o receptor decifra a significação da comunicação que o interessa [...] (LOTMAN, 1978, p.42)
No caso da linguagem sonora, os signos são os objetos sonoros. A juntura
significativa dos elementos que constituem o código resulta no que a linguística
entende por "mensagem". Na perspectiva da Teoria da Comunicação, Balsebre diz
que:
A mensagem é um agrupamento acabado, ordenado de elementos concentrados em um repertório que constitui uma seqüência de signos reunidos segundo certas leis. E a comunicação só é possível quando o repertório de elementos é conhecido pelo emissor e receptor. (BALSEBRE, 2005, p. 327)
Roman Jakobson, em seu livro Linguística e comunicação (2003), expõe os
fatores constitutivos de todo processo linguístico, de qualquer ato de comunicação
verbal:
102 Acréscimo meu. 103 Idem.
109
O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao DESTINATÁRIO. Para ser eficaz, a mensagem requer um CONTEXTO a que se refere (Ou "referente", em outra nomenclatura algo ambígua), apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou suscetível de verbalização; um CÓDIGO total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário (ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da mensagem); e, finalmente, um CONTACTO, um canal físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os capacite a ambos a entrarem e permanecerem em comunicação. (JAKOBSON, 2003, p. 123)
Segundo Roman Jakobson, “a linguagem deve ser estudada em toda a
variedade de suas funções”. Ele também demonstra um esquema como ilustração
dos seus apontamentos sobre as funções da linguagem em um processo
comunicativo.
CONTEXTO
REMETENTE MENSAGEM DESTINATÁRIO
--------------------------------------------------------- CONTACTO
CÓDIGO
Figura 18: Esquema de comunicação
A linguagem não está presente somente na emissão, mas também na
audição, existindo, então, regras para o remetente e regras para o destinatário.
Lotman comenta a proposta de Jakobson:
[...] torna-se perfeitamente evidente a legitimidade da proposta de Jakobson e de outros sábios, segundo o qual, no processo de transmissão da informação, se utiliza de facto, não um só, mas dois códigos, um código que nota a informação e um outro que a decifra. (LOTMAN, 1978, p. 43)
Só é possível a interpretação por aquele que tenha em sua consciência um
domínio da linguagem, pois “compreender um texto significa sempre aplicá-los a nós
próprios” (GADAMER, 1997, p. 579), é apropriar-se daquilo que ouviu e interpretá-lo
e interpretar é dialogar com o texto. Esta apropriação do intérprete é “fusão de
horizontes” (GADAMER, 1997, p. 566), é a realização da compreensão; ambas são
conversação hermenêutica. Toda execução de uma peça musical/sonora é fruto de
interpretação, resulta de expressões baseadas nas experiências, visões,
percepções, leituras dos fenômenos.
110
[...] a linguagem é o médium universal em que se realiza a própria compreensão. A forma de realização da compreensão é a interpretação. (GADAMER, 1997, p. 566)
Toda linguagem tem sua gramática ou sintaxe; seu significado intrínseco,
mas a gramática não é estática no tempo, não é perfeita. Ela pode evoluir, ser
renovada, apresentar modificações nas regras que a governam. O mundo moderno
acarretou o surgimento de uma gama de sons que ampliaram nosso thesaurus. No
século XX, o ruído foi incorporado ao elenco musical e se abriram novas
possibilidades de compreensão da linguagem sonora. Os equipamentos que
chegaram e as inovações tecnológicas também alargaram as possibilidades de
exploração, de análise e de criação musical.
A linguagem sonora, considerada a sua gama de sons, não estaria presa a
uma gramática, nem mesmo a uma única sintaxe. Temos que considerar os
aspectos polifônicos, harmônicos e texturais, que são formados a partir de sintaxes
sonoras simultâneas.
A simultaneidade não se dá apenas entre os elementos sonoros. Isto pode
ocorrer em combinações entre os tipos de linguagem. Santaella (2001, p. 20),
defende que “a grande variedade e a multiplicidade crescente de todas as formas de
linguagens estão alicerçadas sustentadas em não mais do que três matrizes” de
linguagem e pensamento: a sonora, a visual e a verbal.
Sem negar a multiplicidade e a diversidade das linguagens, multiplicidade, aliás, que só tende histórica e antropologicamente a crescer cada vez mais, postulo que, por baixo dessa multiplicidade manifesta, há três matrizes lógicas a partir das quais, por processos de combinação e mistura, originam-se todas as formas diferenciadas de linguagem. (SANTAELLA, 2001, p. 20-21)
Literatura, música, teatro, pintura, gravura, escultura, arquitetura, etc.,
partem de combinações e misturas dessas matrizes, que, somadas ao suporte
específico em que cada linguagem é veiculada (foto, cinema, televisão, rádio, jornal,
etc.) tornam-se distintas e específicas. Segundo Santaella:
Vale acrescentar, ainda, que essas misturas se constituem numa chave para a compreensão das linguagens híbridas, tais como, por exemplo, a dança (entre o visual e o sonoro), a linguagem verbal oral (mistura do verbal, sonoro e mesmo visual, na gestualidade de que se faz acompanhar) etc. [...] (SANTAELLA, 2001, p. 21)
111
Cabe, a esta altura, ressaltar que os sons, objetos de uma composição
sonora, somente gozam do status de linguagem quando são abstraídos na condição
de signo, isto é, quando o modo de escuta corresponde ao comprendre de Schaeffer
ou, em termos peirceanos, na condição fenomenológica da terceiridade, pois é nesta
categoria fenomenológica que a semiose é consumada como síntese intelectual
entre a primeiridade e secundidade e é nesses processos de representação que os
signos se firmam e são abstraídos em forma de linguagem. Décio Pignatari e Luiz
Angelo Pinto, em Novas linguagens, nova poesia, um manifesto da poesia semiótica,
afirmam:
Entendemos por linguagem qualquer conjunto de signos e o modo de usá-los isto é, modo de relacioná-los entre si (sintaxe) e com referentes (semântica) por algum intérprete (pragmática). (PINTO, PIGNATARI apud ANTONIO, 2008, p. 93)
Entendido o signo como representação do objeto que substitui, seu aspecto
denotativo tem a capacidade de nomear o universo sensível que referem: o ruído do
trânsito, o som de água correndo sobre pedras, etc. Porém, no aspecto conotativo,
como explica a teoria da comunicação, o signo é portador de significados afetivos,
portanto não há um som que possa ser classificado como som de mar: há sons de
mares.
Assim entenderemos como os elementos sonoros se articulam nas
mensagens sonoras e se estruturam no discurso sonoro, pois linguagem
sonora/musical é a comunicação através de organizações de sons e objetos
sonoros; são os signos, que são usados para representar coisas, conceitos, ideias,
sentimentos.
4.8 Comunicação
Comunicação é uma palavra derivada do termo latino "communicare", que
significa "partilhar, participar algo, tornar comum". Através da comunicação, os
seres humanos e os animais partilham diferentes informações entre si, tornando o
ato de comunicar uma atividade essencial para a vida em sociedade.
O termo “comunicação” comporta inúmeras definições, em conformidade
com os diversos contextos das áreas em que é estudada. Visando escapar da
polissemia e, considerando ainda que a comunicação é um campo em construção, é
112
importante perceber que a noção que mais se enquadra no plano de organização
deste trabalho é a da comunicação semiótica.
Para a Semiótica, o ato da comunicação consiste na materialização do
pensamento, bem como do sentimento em signos que são reconhecidos pelas
partes envolvidas. A comunicação humana é um processo que envolve a troca de
informações, e utiliza os sistemas simbólicos. Não há comunicação sem o signo, já
que comunicação refere-se a transmissão de mensagem e toda mensagem é feita
de signos. No entanto, não se trata simplesmente de uma soma de signos. Estes se
relacionam e condicionam-se reciprocamente formando o texto, ao qual se
subordinam.
Uma arrumação coesa de signos que forma uma unidade de sentido, que
tenha uma coerência, já não é mais uma demanda para a semiótica. Uma vez no
texto, os signos se relacionam e estão sujeitos a uma nova estrutura e a novas operações. O texto passa a ser o objeto de estudo da Linguística do Texto. Segundo
Ingedore Villaça Koch:
A Linguística Textual toma, pois, como objeto particular de investigação não mais a palavra ou a frase isolada, mas o texto, considerado a unidade básica de manifestação da linguagem, visto que o homem se comunica por meio de textos e que existem diversos fenômenos linguísticos que só podem ser explicados no interior do texto. (KOCH, 2013, p.11)
Koch afirma também que o texto é reputado pelos linguistas como “uma
unidade linguística com propriedades estruturais específicas” (KOCH, 2013, p.7), já
que “um texto não é simplesmente uma sequência de sentenças isoladas”.
As abordagens que faremos, a partir daqui, darão ênfase à noção de texto
como unidade linguística, como objeto de significação e aos mecanismos que lhe
conferem ordem e unidade composicional. Seguindo, o estudo terá o enfoque no
texto artístico, entendendo que “a arte é um dos meios de comunicação” (LOTMAN,
1978, p. 33).
4.9 Texto
O conceito de “texto” não é um conceito preso e exclusivo da linguagem
verbal, assim como não depende dos meios que ele emprega para manifestar-se. As
teorias linguísticas têm uma noção de texto mais ampla e se estende do verbal para
113
outras linguagens. Bakhtin se refere ao “texto” no sentido em que extrapola o
linguístico.
Se tomarmos o texto no sentido amplo de conjunto coerente de signos, então também as ciências da arte (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) se relacionam com textos (produtos da arte). Pensamentos sobre pensamentos, uma emoção sobre a emoção, palavras sobre as palavras, textos sobre os textos. (BAKHTIN, 1997, p. 329)
Desta forma, pode-se falar em textos verbais, textos pictóricos, textos
musicais, textos sonoros, textos cinematográficos, entre diversas formas textuais
produzidas a partir de outras linguagens.
4.9.1 O texto e sua família
A palavra texto provém do latim textu e significa "tecido". Um tecido, como
sabemos, não é um amontoado de fios soltos, trata-se de uma trama. Os
entrecruzamentos dos fios, transversais ou longitudinais vão garantir uma unidade à
peça, de uma maneira figurada podemos dizer que “os fios precisam se entender”.
Da mesma maneira, um texto não é uma montoeira de frases. Para que essas frases
constituam uma unidade, uma estrutura, suas partes dependem umas das outras e
também dependem do texto como um todo. Quando se pensa em composição
sonora como texto, o conceito de Eni Puccinelli Orlandi104 é bastante elucidativo e
apropriado: “texto é uma peça de linguagem, uma peça que representa uma unidade
significativa” (ORLANDI, 1995, p.111).
Não é o bastante amontoar os signos. Palavras soltas não formam um texto,
assim como notas musicais soltas não formam uma melodia. O mesmo acontece
com os objetos sonoros, se estiverem desconexos não formam texto sonoro algum.
Por exemplo: nós sabemos que existe uma diferença determinante entre uma série
de notas desconexas tocadas por um leigo de algum instrumento e uma sequência
de notas melódicas que são executadas por um instrumentista virtuose.
Desconsiderando a técnica de ambos, se fizermos a notação das duas
performances e a submetermos a um instrumentista experiente, ouviremos, de um
lado, a execução de um texto musical coeso melodicamente e, do outro, a execução
104 Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi (São Paulo ) é uma pesquisadora e professora universitária brasileira. Foi presursora da Análise do Discurso no Brasil.
114
de fragmentos de ideias musicais que não se relacionam, sem uma continuidade
que transmita algum sentido, porque falta o ligâmem: a coesão, que faz a
conexidade entre as unidades, chegando à uma coerência, ou seja, “fazendo
sentido”.
A relação dos objetos sonoros em uma composição musical/sonora pode se
dar por mecanismos de estruturação textual, isto é, pode preencher requisitos e
apresentar as condições exigidas para o estabelecimento de uma textualidade, pois
é um elemento de referencialidade, em muitos aspectos, compatível com os signos
da linguagem verbal.
Se o que se quer é que haja interpretação, se há uma intenção
comunicativa, esses signos devem ser encadeados de forma coerente, portanto,
amontoar signos é diferente de fazer uma montagem, uma composição de signos
em que o critério é estabelecer uma textualidade.
Para entender como os signos se organizam em um texto é importante
dimensionar e diferenciar, bem como aproximar, conceitos e noções de texto,
contexto, textualidade, intertextualidade, textura, tessitura, contextura e tantos outros
conceitos que fazem parte da mesma família semântica. Por exemplo: o que faz com
que um texto seja um texto e não só a soma de signos é a textualidade.
4.9.2 Textualidade
Orlandi (1995), ao citar Michael Halliday, enfatiza que o texto é a unidade
primeira e que para ser texto é preciso ter textualidade, sendo a textualidade função
da relação do texto consigo mesmo e com a exterioridade (ORLANDI, 1995, p.111).
Beaugrande e Dressler, segundo Koch (2013, p.8), apresentam um elenco
de fatores responsáveis pela preservação da textualidade no texto: coesão,
coerência, informatividade, situacionalidade, intertextualidade, intencionalidade e
aceitabilidade. Aqui cabe aplicar um empenho no estudo de coesão textual, por ser
entre os fatores aquele que está mais ligado à estrutura textual, ou seja, junto com a
coerência, é um fator centrado no texto, enquanto os outros fatores são centrados
nos usuários. Como a coesão sempre está de mãos dadas com a coerência e os
conceitos de ambas são muitas vezes contaminados um pelo outro, farei apenas um
contraponto, pois o compreendo como suficiente para dispensar definições que
pouco contribuiriam para o desenvolvimento deste tópico.
115
• A coesão diz respeito ao modo como ligamos os elementos textuais
numa sequência;
• A coerência textual, diz respeito aos conceitos e às relações semânticas
que permitem a união dos elementos textuais.
Para se assinalar determinadas relações de sentido que estabelecem a
coesão há um grupo de mecanismos: oposição ou contraste; finalidade; meta;
consequência; localização temporal; explicação; justificativa; adição de argumentos
ou ideias:
É por meio de mecanismos como estes que se vai tecendo o “tecido” (tessitura) do texto. A este fenômeno é que se denomina coesão textual. (KOCH, 2013, p. 15)
Quando os signos se relacionam com outros signos, deixam de ser unidades
significativas e juntos passam a ser uma unidade maior. Os signos se unem por
esse cimento, formando um bloco maior. Este bloco passa a ser outra unidade, que
dependerá de uma outra para a formação de uma nova unidade ou um novo núcleo.
4.9.3 Contextualidade
O maior desempenho de cada unidade, sua gradação máxima de
significação se dará em função do contexto. “Toda significação de signo nasce de
um contexto” (HJELMSLEV, 1975, p. 50). Desta forma, uma unidade significativa só
é devidamente compreendida dentro de uma unidade maior, dentro do contexto da
nova formação nuclear. Isto é, a compreensão de uma palavra depende do contexto
da frase e a compreensão desta frase vai depender do contexto do parágrafo,
enquanto a compreensão do parágrafo dependerá do contexto do texto. Vamos
entender esta questão em uma composição sonora: podemos utilizar um áudio
contendo um som de fogo, de chamas ardendo, com pequena duração. Apesar de
ser um signo polissêmico, a interpretação mais lógica seria: “algo está queimando”,
não deveríamos ir além desta interpretação. No entanto, se a mixarmos com sons de
copos brindando, sorrisos e conversas, a gradação de significação será ampliada
devido aos sons que sugerem um contexto maior, talvez de um ambiente festivo,
etc. Mas se fizermos uma sobreposição do som de chamas com a sirene do carro de
bombeiros, a interpretação já se direciona para outra situação contextual. A junção
116
dos signos, as conexidades contextuais, as formações nucleares, formam a
disposição textual sonora.
Sempre que se chega a uma unidade precisaremos da coesão para formar
grupos maiores e formar o texto como um todo. Entender um texto como um todo
não significa prendê-lo em si mesmo. Todo texto tem relações de dependência com
outros textos, sejam eles antecedentes ou contemporâneos, ou seja, está ligado,
conectado. O que permite a comunicação entre os textos é um laço de coesão e a
essa relação é dado o nome de intertextualidade.
4.9.4 Intertextualidade
O trabalho da semiótica Júlia Kristeva é referência indispensável para se
pensar em intertextualidade, porque foi a primeira a empregar a expressão. O termo
"intertexto" se refere ao entrelaçamento dos fios no ato de tecer. Para Kristeva
(1974, p. 64) “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é a
absorção e transformação de um outro texto”:
[...] é uma permutação de textos, uma intertextualidade: no espaço de um texto, vários enunciados, vindos de outros textos, cruzam-se e neutralizam-se. (KRISTEVA, 1968, P.143)
A definição de intertextualidade proposta por Kristeva faz concordância
explícita com as reflexões de Bakhtin quando postula que todo discurso é
essencialmente dialógico, por representar sempre uma resposta ou uma
antecipação ao discurso do outro. Da mesma maneira, Roland Barthes faz suas
consonâncias à Kristeva:
Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido nessa textura o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos dos neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia da aranha). (BARTHES, 1987, p. 82-83)
Em termos de composição sonora, não existe dificuldade em se pensar em
intertextualidades, que podem se dar na sua materialidade ou nas suas tramas
dialógicas. Atualmente é muito comum o uso de samplers em composições a partir
117
de técnicas herdadas da música concreta e música eletroacústica. A inclusão do
material coletado possibilita ao compositor fazer desde citações incidentais através
da inserção consciente de trechos extraídos de composições de fácil
reconhecimento até mesmo diluir fragmentos pela extensão do texto sonoro,
conscientemente ou de forma inconsciente. Segundo Barthes, o texto é lugar em
que a língua se alastra e se realiza concretamente.
O texto redistribui a língua (é o campo dessa redistribuição). Um dos caminhos dessa descontrução-reconstrução é permutar textos, retalhos de textos que existiram ou existem em torno do texto considerado e finalmente nele: todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, com formas mais ou menos reconhecíveis. [...] A intertextualidade, condição de todo texto, seja ele qual for, não se reduz, evidentemente, a um problema de fontes ou influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é detectável, de citações inconscientes ou automáticas, dadas sem aspas. (BARTHES apud CAVALCANTE, 2004, p. 11)
A intertextualidade que se apresenta na materialidade não passa pelos
critérios do dialogismo, pois este irá determinar a intertextualidade interna ou a
interdiscursividade.
4.9.5 Textura
O termo “textura” é frequentemente usado nas artes plásticas. A textura está
ligada à substância, que é o que estabelece a sensação percebida do signo. Isso se
dá por conta do material utilizado. A textura pode ser lisa, enrugada, consistente,
macia, granulada, áspera, dúctil, porosa, sutil, concreta, aerada, porque a sua
materialidade é definidora quanto às sensações que provoca através do tato e da
visão, mas texturizar não é privilégio apenas das linguagens visual ou tátil. Diversas
formas de entrelaçamentos sonoros são possíveis na composição sonora, a partir de
diversos recursos de mixagem, sequenciamento, alteração de frequências, bem
como a alternância da materialidade sonora/musical. A entidade formal, o material
sonoro empregado em uma composição sonora, desde o futurismo, passando pelo
concretismo e culminando com Cage, é ampliado, passa a considerar o ruído e o
silêncio de modo a modificar a amplitude de texturas sonoras/musicais. Até então,
nos estudos de música, “textura” significava a forma como estão organizadas as
linhas melódicas que estruturavam uma peça musical. A composição organizada por
118
uma linha melódica que se destaca entre outras linhas, que servirão apenas de
acompanhamento, chama-se de textura monofônica. Ao uso de vozes variadas em
contraponto, denomina-se textura polifônica.
John Cage definia que “música são sons, sons a nossa volta, estejamos ou
não em salas de concerto” (WISHART apud SANTAELLA, 2001, p. 121). Por suas
desconstruções, Cage é frequentemente citado como uma espécie de Derrida da
música. Para Cage, os sons e ruídos podem se combinar, não tem obstáculos,
podem conviver uns com os outros, regidos pelas possibilidades do acaso. Assim
como Duchamp, Cage não só reagiu à tradição, em ambos vemos atos de
desconstrução de conceitos, não no sentido de oposição, mas de desvio. Neste
caso, os conceitos de monofonia e polifonia ainda são essenciais para a
compreensão da textura musical/sonora, no entanto devem ser considerados a partir
de uma infinidade de possibilidades de junções de signos sonoros, combinadas no
tempo/espaço e que, apesar de sobrepostos, são distinguíveis. Portanto, é preciso
fazer uma pergunta equivalente à que se faz diante de um texto “o que faz com que
um texto seja um texto e não só a soma de signos?”. Silvio Ferraz, em seu Livro das
sonoridades (FERRAZ, 2005, p.33) fez esta equivalência: “o que torna uma sopa
sonora, um amontoado de sons, uma música?”. Por lógica, as respostas também
são equivalentes: para a primeira, a textualidade; para a segunda, a texturalidade.
As relações texturais não estão atreladas a sintaxes fixas, elas são
inesperadas, livres, combinadas, porém sem determinações. Configuram um espaço
sonoro complexo, formatado por diferentes sobreposições. Por exemplo, pode-se
seguir uma sintaxe idealizada a partir do tonalismo, no entanto, usando corpos
sonoros que representam coisas do cotidiano, separadas por uma das propriedades
do som: a altura. O critério de distinguir os objetos de altura baixa (graves) das altas
(agudas) permite sequenciar sintaticamente tais objetos fazendo um desenho quase
melódico, onde pode ser definida uma tessitura de frequências irregulares.
4.9.6 Tessitura
Na música, o termo tessitura corresponde ao conjunto de notas da mais
grave até a mais aguda que um determinado instrumento musical consegue
produzir, com a qualidade necessária à sua execução, onde se encontra a melhor
sonoridade, a emissão mais natural. No caso da voz humana, refere-se ao conjunto
119
de notas que um cantor consegue articular sem esforço de modo a que o timbre saia
com a qualidade necessária.
Figura 19: Tessitura sonora
A tessitura delimita a nota mais alta e a mais baixa. Em uma composição
sonora, pode se usar critérios de circunscrição de frequências. A disposição dos
sons será de acordo com a contextura pretendida pelo compositor. A fonte utilizada
pelo compositor também está submetida a questão da qualidade de emissão, assim
como é com o instrumento musical ou a voz. Por mais que se estenda a frequência,
tanto para cima como para baixo, haverá um limite tessitural. Em temos de altura ou
frequência, a tessitura mostra até onde pode ir a composição.
4.9.7 Contextura
Um texto sonoro está sujeito a um contexto sonoro. Uma textura sonora está
sujeita a uma contextura. Esta situação é mais perceptível quando o texto/textura se
desenvolve em simbiose com outras linguagens, como por exemplo, a linguagem
cinematográfica. Como tal, o texto/textura sonora é um texto em outro texto, é um
produto e um processo. É um produto, pois é um texto construído, dado como
pronto. É um processo, pois sua estrutura está comportada em uma estrutura maior,
mais complexa, sendo tão somente parte na rede de significados contida no texto
como um todo, na obra.
Em uma arte híbrida, um texto, de qualquer linguagem, contribui sendo
apenas parte da composição, sendo um fio de um texto maior que é a obra em sua
totalidade. Cada texto, de cada linguagem, neste caso, preenche hiatos dos outros
sistemas semióticos e todos os textos são compreendidos no contexto da
composição, em que os diferentes sentidos do receptor são estimulados, incitando-o
a uma percepção sinestésica e a uma leitura intersígnica e intersemiótica.
120
As relações, correlações e correspondências entre signos e sistemas
sígnicos, as diferentes formas de linguagens coexistindo no mesmo espaço artístico,
se complementando, demonstram um grau de equivalência no que se refere à
potencialidade textual das linguagens, possibilitando a realização de um produto
intersemiótico, bem como fazer transcriações de formas, conhecidas também como
tradução intersemiótica.
4.9.8 Tradução intersemiótica
O artista é tradutor universal105
Octavio paz
A noção de que “texto” não é um conceito preso e exclusivo da linguagem
verbal, ganha uma importância maior neste ponto desta dissertação. O conceito de
tradução intersemiótica, atribuído a Roman Jakobson, demonstra que as linguagens,
através de seus signos, têm a potência de criar estruturas textuais. A passagem de
um texto verbal para um não verbal é compreendida como um processo tradutório.
Segundo Julio Plaza:
A primeira referência (explícita) à Tradução Intersemiótica que tive oportunidade de conhecer foi nos escritos de Roman Jakobson. De que tenho notícia, Jakobson foi o primeiro a discriminar e definir os tipos possíveis de tradução: a interlingual, a intralingual e a intersemiótica. A tradução Intersemiótica ou 'transmutação' foi por ele definida como sendo aquele tipo de tradução que 'consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais', ou 'de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura', ou vice-versa, poderíamos acrescentar. (PLAZA, 2003, p. XI)
Após a citação feita por Plaza, cabe conhecer então as descrições das três
espécies de tradução de um signo verbal, por Roman Jakobson:
1). A tradução intralingual ou reformulação (rewor-ding) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua.
2) A tradução iriterlingual ou tradução propriamente dita ‘consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua.
105 (PLAZA, 2003, p. 1)
121
3) A tradução inter-semiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais. (JAKOBSON, 2003, p. 64-65)
Na tradução intersemiótica, segundo Jakobson (2003, p. 65), “o tradutor
recodifica e transmite uma mensagem recebida de outra fonte”, assim, “a tradução
envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes”. Esta
transcodificação se opera de uma forma criativa entre os códigos, de uma linguagem
para outra.
Na tradução Intersemiótica como transcriação de formas o que se visa é penetrar pelas entranhas dos diferentes signos, buscando iluminar suas relações estruturais, pois são essas relações que mais interessam quando se trata de focalizar os procedimentos que regem a tradução. Traduzir criativamente é, sobretudo, inteligir estruturas que visam à transformação de formas. (PLAZA, 2003, p. 71)
Esta percepção de que a eficácia linguística se estenda do verbal para
outras linguagens corrobora com a ideia de o objeto sonoro ter uma potencialidade
textual. O objeto sonoro, como signo sonoro, passa a ser um elemento de sintaxe,
com legítimas condições de se organizar, de modo coeso e coerente, permitindo as
mais diversas texturas e contexturas, senha aberta para intertextualizações e
relações rizomáticas. Porém, não é prudente se conformar, é fundamental, neste
ponto compreender melhor determinadas singularidades dos signos e suas
prováveis gradações de articulação textual, uma vez que um texto realizado pela
organização de signos sonoros é um ato de criação, é uma composição que
depende de qualidades criativas do compositor/tradutor no que se refere ao diálogo
entre os signos, na leitura e recriação. Plaza descreve a Tradução Intersemiótica
como prática criativa, enquanto cita Octávio Paz:
Traduzir é muito difícil, não menos difícil do que escrever textos mais ou menos originais – mas não é impossível (...) Tradução e criação são operações gêmeas. De um lado, ... a tradução é indistinguível muitas vezes da criação; de outro, há um incessante refluxo entre as duas, uma contínua e mútua fecundação (PAZ apud PLAZA, 2003, p. 26).
Como enxerga Octávio Paz, a tradução não é impossível. Estimulado por
esta visão otimista e me valendo dos ensinamentos de Lévi-Strauss, busco
compreender melhor os níveis de articulação textual com o intuito de robustecer o
mote que pondera sobre a qualidade textual do objeto sonoro.
122
4.9.9 Composição textual
O impacto das tecnologias contemporâneas propicia a multiplicidade das
diversas linguagens e novas sintaxes, hibridez, novas lógicas de expressividade e
produção. Corroborando com esta visão, Mangueneau expõe:
[...] a diversificação das técnicas de gravação e de reprodução da imagem e do som vem modificando consideravelmente a representação tradicional de texto: este não se apresenta mais unicamente como um conjunto de signos sobre uma página, mas pode ser um filme, uma gravação em fita cassete, um programa em disquete, uma mistura de signos verbais, musicais e de imagens em um CD-ROM... (MANGUENEAU, 2005, p. 57)
Os estudos sobre texto e textualidade não devem ser conformados e presos
aos seus próprios conceitos e concepções, mas devem ser repensados
considerando as contribuições de outras experiências, como da Análise do Discurso
e da Conversação, das teorias da enunciação, da Pragmática, dos estudos sobre a
língua falada, que estão em constante progresso e suprem lacunas em nossas
reflexões sobre os fenômenos linguísticos.
Dentro das perspectivas de que texto é composição, é possível fazer
estudos do objeto sonoro e o seu potencial textual a partir das teorias textuais e
teorias de linguagem e semiótica, fazer distinções entre tipologia textual e gênero
textual, se existem tipos puros, se nos gêneros os tipos se realizam, se há
miscelânea de tipos e gêneros. Teorias que fazem diferenciações entre gêneros de
heterogeneidade tipológica, conjunção tipológica, texto injuntivo, intertextualidade
intergêneros, intercâmbio de tipos e toda classe de hibridismo textual também
podem fornecer amparos e fundamentações para a compreensão desta unidade
sintática sonora, desta célula do corpo textual.
As analogias com a composição musical (sintaxe tonal) e composição textual
são indispensáveis para a compreensão da composição sonora. Deste modo, pode-
se dizer que a música se organiza por microestruturas, que são as notas ou
harmônicos de um som (que corresponderiam aos fonemas); por frases, períodos;
cadências (que corresponderiam à pontuação); por articulações, tensões e outros
fragmentos do discurso (que corresponderiam ao enunciado); compondo uma
macroestrutura, uma forma maior, que seria o texto.
123
O antropólogo Claude Lévi-Strauss (1978, p. 75) diz que é possível
estabelecer um paralelo entre a música, linguagem e mito. Ele traça paralelos a
partir da linguística e das pesquisas que foram desenvolvidas por Jakobson na área
de fonologia. Os paralelos traçados são entre os fonemas e as notas musicais.
Segundo ele, na linguagem verbal os elementos básicos são os fonemas, que em si
mesmo não têm significado, que só produzem significação quando combinados
formando as palavras que por sua vez formam as frases, enquanto que na música
ocorre o mesmo com as notas, isto é, só produzem sentido quando combinadas,
fornecendo à música “um primeiro nível de articulação” (LÉVI-STRAUSS, 2004, p.
36), neste caso não há um equivalente às palavras, dos elementos básicos passa-se
logo para as frases melódicas. Strauss criou o conceito de “sonema” (ou “tonema”
na tradução em inglês), referindo-se às notas musicais para estabelecer uma
relação de similaridade entre o fonema e sonema.
Abaixo fiz um esquema comparativo e nele me sirvo do conceito de sonema,
inclusive tirando proveito também da tradução tonema, pois me parecem oportunas
as duas formas para estabelecer uma distinção entre o som e o tom. Desta forma,
usarei tonema para referir-me ao tom (nota musical) e sonema para referir-me ao
som (corpo sonoro).
Tabela 8: Comparativo entre as formas de composição
Lévi-Strauss (1978, p. 76) observa que a linguagem possui três níveis, que
são o do fonema, o da palavra e o da frase, enquanto que a música só possui o
equivalente a dois deles, faltando, portanto, à música o nível que corresponde à
palavra na estrutura frasal e textual (no quadro comparativo, Figura 8, o nível
faltante está destacado de cinza).
124
Em uma composição sonora, ou seja, um texto/textura sonoro, podemos
dizer que o objeto sonoro em si mesmo, isto é, como fenômeno, representaria em
um texto verbal ao fonema. Uma vez que o objeto tenha alguma referencialidade, ou
que figure algo, ou mesmo que se passe por um símbolo, uma metáfora, ele passa a
ter a correspondência de um semantema, uma sentença, frase, enunciado etc.
Por estas razões, os estudos sobre o objeto sonoro devem tirar proveito de
todo conhecimento acumulado, de todo o saber teórico já produzido sobre texto, de
onde formará conceitos mais ajustados, adaptados, fazendo-se as adequações
pertinentes.
As adequações e ajustes de que falamos, são necessárias para que se
forme uma contundência teórica capaz de instrumentalizar os feitores de
textos/texturas sonoras. Um aporte teórico mais específico, capaz de dar mais
consistência e reforço às noções da potencialidade da linguagem sonora em
expressar conceitos, reflexões, ideias e como uma forma de produção de
conhecimento.
Como uma forma de produção de conhecimento, sim. O livro Texturas
sonoras do pesquisador Sérgio Bairon (2005), que, segundo Olgária Matos (apud
BAIRON, 2005, p. 9), tem por método de pesquisa as “correspondências” (entre
cores, conceitos, sons, imagens), traz uma crítica do conhecimento e propostas de
revisões da metodologia científica e indissociabilidade entre arte, ciência, filosofia,
sugerindo as texturas sonoras.
Sérgio Bairon (2005, p. 19) comenta que, a partir do século XVIII, no
Ocidente, se desenvolveu “uma metodologia científica como matéria obrigatória em
todas as ciências”, e acrescenta:
Essa tradição elegeu a expressividade verbal (escrita e impressa) como única grande “representação” confiável de um pensamento reflexivo e de uma análise consequente. [...] esse movimento, apesar de ter sofrido todo tipo de interferência filosófica e teórica, produziu e divulgou o conhecimento científico sempre a partir da escrita, delegando à imagem e às manifestações sonoras um patamar secundário à construção do conhecimento. As divisões institucionais entre arte e ciência nos dias de hoje ainda guardam esta tradição. (BAIRON, 1995, p. 19)
Bairon sugere uma metodologia hipermidiática de pesquisa científica,
incumbida “de produzir nosso pensamento a partir de uma ‘leitura’ multimidiática”, o
125
que demandaria uma busca de equilíbrio da “relação entre os textos científicos e o
universo expresso pela arte” (BAIRON, 2005, p. 21).
O que Bairon propõe não significa uma postura contrária à escrita, só se
opõe à concepção que evita associar o pensar com produções sonoras e visuais.
Sua investida está direcionada para a cumplicidade entre arte e ciência, propondo
uma rearticulação do diálogo entre as linguagens científica e artística, no caminho
da necessidade de “reaprendermos a formalizar nossas reflexões não mais somente
com a escrita” (BAIRON, 2005, p. 24), ou seria, aprender o que já soubemos um dia
e que foi esquecido, como diz Olgária Matos:
Foi a compartimentação do saber em áreas circunscritas que separou a diversidade dos âmbitos do conhecimento, opondo filosofia e ciência, metafísica e movimento, metáfora e conceito, ver e pensar – em nome da coerência, constância e unicidade do ato de escrever, aquele que esquece suas origens no desenhar, no “desenhar com as sombras”, como faziam os pintores gregos. (MATOS apud BAIRON, 2005, p. 10-11)
De acordo com Bairon, esse reaprendizado pode ocorrer através das
possibilidades hipermidiáticas oferecidas nos sistemas de programação e criação
visual e sonora. Sérgio Bairon apresenta um trabalho de composição, com
montagens e sampleagens, qual deu o nome de Textura sonora, conceituando da
seguinte maneira:
A defesa do conceito de textura sonora direciona-se à expressividade verbal como predomínio do pensar. Questiona a possibilidade que reflexões, características de uma linguagem teórico-analítica, por meio de texturas sonoras consigam oferecer compreensões com a mesma competência que o texto científico já o faz. Para tanto, as texturas sonoras devem oferecer correlações, não somente entre si, como com todo o caminho de demonstração que se situa para além da teoria, explorando, cada vez mais, o que não pode ser simplesmente descrito pela linguagem científica formal. A ideia, portanto, é que as texturas sonoras fazem parte de um todo correlacionado no interior de hipermídias. (BAIRON, 2005, p. 40)
As composições das texturas sonoras de Bairon reúnem textos, imagens,
sons, em um jogo de linguagens, apresentando conceitos, reflexões e
questionamentos sobre linguagem hipermidiática. Os textos que aparecem nas
texturas são reflexões, em diversas línguas, de vários autores, como Heidegger,
Bakhtin, Wittgenstein, Bairon, Santaella, Lacan, Aristóteles e Arnaldo Antunes e
outros.
126
Não por acaso, imagens, sons e textos em línguas estrangeiras comparecem, no sentido de desestabilizar as práticas universitárias usuais, devolvendo aquela experiência, a da admiração e do maravilhamento filosóficos: em vez de recair, ingenuamente, na idéia de um “desencantamento do mundo” weberiano mal-compreendido – o “sagrado laico”, nesta obra, é “imanente”, migrou para “as próprias coisas”, ou para o “senso comum” em sentido wittgensteiniano: não se trata do místico, do “inapreensível pela linguagem gramatical”, mas das coisas mais simples poderem reaver seu estatuto próprio, depois do longo processo de despoetização do mundo. (MATOS apud BAIRON, 2005, p. 10)
Este aspecto da manifestação sonora que envolve uma cumplicidade entre
arte e ciência nos provocam boas reflexões: o produto pode ser arte, pode ser
ciência, bem como pode ser “ciência e arte em uma única compreensão”. (BAIRON,
2005, p. 21). No entanto, inúmeros fatores teriam determinado a valorização da
escrita metodológica. Segundo Bairon, ao longo dos últimos três séculos, em nome
da evidência racional, ocorreu o detrimento das expressividades imagéticas e
sonoras na produção do pensamento. Outra questão relevante foi a separação dos
complementares ethos-pathos, dando surgimento ao antagonismo entre razão e
paixão. Essas reflexões nos incitam a fazer uma consulta às abordagens de Claude
Lévi-Strauss em Mito e significado (1978).
Lévi-Strauss sustenta que o pensamento mitológico “passou para segundo
plano no pensamento ocidental da Renascença e do século XVIII”, período em que
apareceram os romances, “em vez de histórias ainda elaboradas segundo o modelo
da mitologia” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 67). Segundo ele, neste período a música
tradicional ocidental atingiu a sua máxima expressividade, o que lhe pareceu ter uma
relação:
[...] o aparecimento dos grandes estilos musicais, característicos do século XVII e, principalmente, dos séculos XVIII e XIX. Foi como se a música mudasse completamente a sua forma tradicional para se apossar da função –função intelectual e também emotiva que o pensamento mitológico abandonou mais ou menos nessa época. Quando falo de música, devia, com certeza, qualificar o termo. A música que assumiu a função tradicional da mitologia não é um determinado tipo de música, mas a música tal como surgiu na civilização ocidental, nos primeiros quartéis do século XVII, com Frescobaldi, e nos primeiros anos do século XVIII, com Bach, música que atingiu o seu máximo desenvolvimento com Mozart, Beethoven e Wagner, nos séculos XVII e XIX. (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 67)
127
Expondo o objeto sonoro ao contexto apresentado, observamos a sua
potencialidade textual bifurcada: como elemento constitutivo de um texto mais
objetivo ou como elemento de expressividades subjetivas, signo icônico para uma
possível arte sonora. A mesma bifurcação deixa o objeto sonoro entre o mito e o
significado, sendo matéria para uma dureza ou fluidez textual. A sua potência o
permite, como signo, se relacionar com outros signos, de uma forma mais cartesiana
de organização, observando aspectos como linearidade, coesão, coerência, bem
como aceita a existência de nexos entre as qualidades sensíveis, que revelam a sua
própria natureza não adequada à organização sequencial cartesiana das divisões,
admitindo divergências dessas sequências.
O objeto sonoro, como referente ou portador de significações se porta como
elemento constitutivo de um texto ou de uma textura sonora, dado o seu potencial
sintático, semântico e discursivo. Destacar a potencialidade textual do objeto sonoro
não significa distanciar-se do mito (mítico). Existe um percurso, uma caminho, sem
sobressaltos que infelizmente nossos modelos textuais e analíticos não comportam.
Esta é a razão por que devemos estar conscientes de que se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo de jornal, ou seja linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito, porque temos de o apreender como uma totalidade e descobrir que o significado básico do mito não está ligado à sequência de acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos diferentes da História. Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase musical da página só adquire significado se se considerar que faz parte e é uma parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e assim por diante. Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita, mas simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber que cada página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender como uma totalidade, e extrair o seu significado. (Lévi-Strauss, 1978, p. 67)
Assim, da mesma maneira como a semiótica musical vê a composição
musical, pode ver a composição sonora: como um texto. Uma vez compreendida a
potencialidade textual do objeto sonoro enquanto signo, como unidade sintética e
corpo sonoro de uma composição textual, decorre entender que o seu potencial de
128
significação, de produção de sentido é dependente de uma rede de implicações que
formam o processo de mobilização do texto: o discurso.
4.10 Discurso
Um texto, seja sua materialidade o som, a imagem, etc., compreendido
como unidade linguístico-composicional, comporta discursos, senão seria somente
uma materialidade textural, ou um material tecido. O que diz Roman Jakobson a
respeito:
[...] nada contém que seja específico da literatura: a questão das relações entre a palavra e o mundo diz respeito não apenas à arte verbal, mas realmente a todas as espécies de discurso. É de se esperar que a Lingüística explore todos os problemas possíveis de relação entre o discurso e o "universo do discurso": o que, deste universo, é verbalizado por um determinado discurso e de que maneira. (JAKOBSON, 2003, p. 119)
Várias correntes teóricas trabalham com diferentes noções de discurso, mas
nos interessam os pontos de vista do termo “discurso” relacionados à estrutura, à
organização, naquilo em que discurso se difere do texto, bem como as relações
entre os signos e o discurso.
Algumas definições de discurso estão presentes na obra A Arqueologia do
saber (2008), de Michel Foucault, que entendia que a palavra discurso tinha
significação flutuante e acreditava ter multiplicado os seus sentidos ao emitir várias
definições, como discurso é “domínio geral de todos os enunciados” ou “grupo
individualizável de enunciados” (p. 90), como também “prática regulamentada dando
conta de um certo número de enunciados” e ainda “um conjunto de enunciados, na
medida em que se apoiem na mesma formação discursiva” (p. 132) e que o discurso
é constituído de um “número limitado de enunciados para os quais podemos definir
um conjunto de condições de existência” (p. 132-133).
Para Foucault, o discurso não forma uma unidade sintática ou formal. Ele é
“fragmento de história, unidade e descontinuidade da própria história” (FOUCAULT,
2008, p.133), um nível no qual a obra se revela:
[...] em todos os seus fragmentos, mesmo os mais minúsculos e os menos essenciais, como a expressão do pensamento, ou da experiência, ou da imaginação, ou do inconsciente do autor, ou ainda das determinações históricas a que estava preso. [...] todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que este já-
129
dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um "jamais-dito", um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro. Supõe-se, assim, que tudo que o discurso formula já se encontra articulado nesse meio-silêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto não passaria, afinal de contas, da presença repressiva do que ele diz; e esse não-dito seria um vazio minando, do interior, tudo que se diz. (FOUCAULT, 2008, p.28)
Para Orlandi (1995) um discurso não tem origem e não tem unidade
definitiva, assim como não é igual a um texto e “na perspectiva do discurso, o texto é
o lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de funcionamento da
discursividade”:
O texto, dissemos inúmeras vezes, é a unidade de análise afetada pelas condições de produção. O texto é, para o analista de discurso, o lugar da relação com a representação física da linguagem: onde ela é som, letra, espaço, dimensão direcionada, tamanho. É o material bruto. Mas é também espaço significante. (ORLANDI, 1995, p. 117)
Dominique Maingueneau (2004) tem uma noção de que o discurso
ultrapassa uma abordagem linguística. Pare ele “o discurso é uma organização
situada para além da frase”:
Isto não quer dizer que todo discurso se manifeste por seqüência de palavras de dimensões obrigatoriamente superiores à frase, mas sim que ele mobiliza estruturas de uma outra ordem que as da frase. (MAINGUENEAU, 2004, p. 52)
Segundo Orlandi, “um texto é uma peça de linguagem de um processo
discursivo muito mais abrangente” que é “o que faz o texto significar” (ORLANDI,
1995, p. 117). Foucault adverte que os discursos não são laços tão fortes entre as
palavras e as coisas:
Gostaria de mostrar que os "discursos", tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são, como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras [...]. (FOUCAULT, 2008, p.54-55)
Foucault não trata os discursos como conjuntos de signos (elementos
significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como “práticas
que formam sistematicamente os objetos de que falam”. No entanto, admite que “os
130
discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos
para designar coisas” (FOUCAULT, 2008, p.55).
As relações discursivas, como se vê, não são internas ao discurso: não ligam entre si os conceitos ou as palavras; não estabelecem entre as frases ou as proposições uma arquitetura dedutiva ou retórica. Mas não são, entretanto, relações exteriores ao discurso, que o limitariam ou lhe imporiam certas formas, ou o forçariam, em certas circunstâncias, a enunciar certas coisas. (FOUCAULT, 2008, p.51)
Para que entendamos um discurso sonoro, necessitamos entender a
utilização dos sons como uma linguagem. O discurso se dará, pela disposição
desses sons em sucessão, sendo os signos sonoros os condutores de um
encadeamento. O signo se relaciona sintaticamente com outros signos, se
organizando, com o fim de compor significações semânticas que atendam as
aspirações discursivas de um plano ideológico.
As variadas definições de “discurso” de Foucault dão a multiplicidade de
sentidos pretendida por ele e não perdem de vista o “enunciado”. Os sentidos são
múltiplos, são variados, mas o enunciado permanece nas definições porque para
Foucault:
[...] o enunciado aparece como um elemento último, indecomponível, suscetível de ser isolado em si mesmo e capaz de entrar em um jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele; como um ponto sem superfície mas que pode ser demarcado em planos de repartição e em formas específicas de grupamentos; como um grão que aparece na superfície de um tecido de que é o elemento constituinte; como um átomo do discurso. (FOUCAULT, 2008, p. 90)
Foucault logo problematiza esta questão: “se o enunciado é a unidade
elementar do discurso, em que consiste?... Que lugar ocupa entre todas as unidades
já descobertas pela investigação da linguagem...?” (FOUCAULT, 2008, p. 91). “E a
frase? Não seria preciso admitir uma equivalência entre frase e enunciado?”
(FOUCAULT, 2008, p. 92):
Os próprios gramáticos reconhecem, em semelhantes formulações, frases independentes, mesmo que tenham sido obtidas por uma série de transformações a partir do esquema sujeito-predicado. Além disso, atribuem o status de frases "aceitáveis" a conjuntos de elementos linguísticos que não foram corretamente construídos, contanto que sejam interpretáveis; atribuem, em compensação, o status de frases gramaticais a conjuntos interpretáveis, contanto que
131
tenham sido corretamente formados. Com uma definição tão vasta - e, em um sentido, tão laxista - da frase, não se vê como reconhecer frases que não sejam enunciados, ou enunciados que não sejam frases. Entretanto, a equivalência está longe de ser total [...] (FOUCAULT, 2008, p. 92)
Foucault dá exemplos de enunciados em que não se reconhecem as frases,
como uma árvore genealógica, um livro contábil, as estimativas de um balanço
comercial, uma fórmula algébrica, um gráfico, uma curva de crescimento, uma
pirâmide de idades, um esboço de repartição. Afirma que, em muitos casos, apenas
um número infinito de frases poderia equivaler a todos os elementos que estão
explicitamente formulados nessa espécie de enunciados (FOUCAULT, 2008, p. 92).
Quanto ao enunciado enquanto estrutura sígnica, Foucault diz não ser
possível admitir que qualquer série de signos seja suficiente para constituir um
enunciado, porque se assim fosse, “o limiar do enunciado seria o limiar da existência
dos signos” (FOUCAULT, 2008, p. 95).
É importante situar o signo no discurso e no enunciado, compreendendo o
seu papel, o seu conduto, dentro da estrutura, do composto, do texto, sendo ele um
elemento de ligação, um veio do fluxo textual e discursivo.
O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles "fazem sentido" ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. (FOUCAULT, 2008, p. 98)
O enunciado não é estrutura, mas é sempre apresentado por uma espessura
material, “tem necessidade dessa materialidade” (FOUCAULT, 2008, p. 113),
“precisa ter uma substância, um suporte, um lugar e uma data”, contudo o enunciado
não é imediatamente visível. Ele “é, ao mesmo tempo não visível e não oculto”
(FOUCAULT, 2008, p. 124).
Ora, por mais que o enunciado não seja oculto, nem por isso é visível; ele não se oferece à percepção como portador manifesto de seus limites e caracteres. É necessária uma certa conversão do olhar
132
e da atitude para poder reconhecê-lo e considerá-lo em si mesmo. (FOUCAULT, 2008, p. 98)
O enunciado não sendo uma unidade, como as frases ou outras unidades,
encontra-se dentro delas, porém na seguinte relação: “Um enunciado pertence a
uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto” (FOUCAULT, 2008,
p. 132)
Foucault define a função do enunciado como “função de existência”
(FOUCAULT, 2008, p. 98) e afirma ainda que o enunciado em si não constitui uma
unidade, mas se encontra na transversalidade de frases, proposições e atos de
linguagem (FOUCAULT, 2008, p. 97), argumentando que “ele é sempre um
acontecimento, que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”
(FOUCAULT, 2008, p. 31), bem como:
O enunciado, longe de ser o princípio de individualização dos conjuntos significantes (o "átomo" significativo, o mínimo a partir do qual existe sentido), é o que situa essas unidades significativas em um espaço em que elas se multiplicam e se acumulam. (FOUCAULT, 2008, p. 112)
Para uma compreensão maior sobre enunciado, Maingueneau faz oposição
entre enunciado e enunciação explicando que “o enunciado é a marca verbal do
acontecimento que é a enunciação” (MAINGUENEAU, 2004, p. 56). Assim sendo,
enunciado é produto, enunciação é produção.
Foucault, depois de dar vários sentidos ao discurso e ao enunciado, em que
o discurso é constituído por um conjunto de sequências de signos, enquanto
enunciados (FOUCAULT, 2008, p.122), fixa também o termo discurso: “conjunto de
enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação” busca uma definição
plena:
Pode-se então, agora, dar um sentido pleno à definição do "discurso" que havia sido sugerida anteriormente. Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber como e por que ele
133
pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico - fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOUCAULT, 2008, p.132-133)
4.10.1 Polifonia
Polifonia é um conceito bem utilizado na linguística contemporânea. Foi
inicialmente desenvolvido por Bakhtin, na análise da obra Problemas da poética de
Dostoiévski. Bakhtin observou determinados elementos que justificaram a formação
do conceito: não acabamento, dialogismo, consciências autônomas e o choque de
diferentes discursos de personagens distintas. São as múltiplas vozes, os diálogos e
as contraposições dos discursos em um texto que caracterizam a polifonia.
O termo “polifonia” foi emprestado da arte musical. Na música é entendida
como “o efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas independentes,
mas harmonicamente relacionadas. Bakhtin adaptou o conceito e o empregou na
análise da obra de Dostoiévski, considerando-a como um romance polifônico.
134
5 Estudos Literários
Em tempos em que no mundo inteiro
lê-se cada vez menos, Literatura para quê?
Antoine Compagnon
5.1 Prática e Teoria
O meu desejo inicial, aquele que moveu o meu ânimo para a realização
deste estudo foi o de unir prática e teoria. Não para medir forças ou eficiência entre
as duas, mas para abrir portas e janelas e deixar o sol entrar.
Teorizar sobre a arte ou sobre o processo criativo é um trabalho duro e, ao
mesmo tempo, delicado, pois não se fala em arte desconsiderando-se a intuição e,
como sabemos, teoria e intuição são incompatíveis, como afirma Compagnon (1999,
Conclusão): “esse é até mesmo o primeiro interesse da teoria; sua pertinência está
nisso: ir contra a intuição”. No entanto, apesar da incompatibilidade entre teoria e
intuição, ambas podem conviver e servirem de apoio basal ao processo criativo e à
análise científica. A obra de arte não resulta somente de impulsos intuitivos; também
fecundam a arte: a crítica, a razão, as conjecturas intelectuais. Desconsiderar estes
aspectos delimitaria em demasia a relação sujeito/objeto artístico, resultaria na
privação da percepção de determinadas facetas da arte. Da mesma maneira, a arte
também não pode se fundamentar somente no conhecimento teórico. Jakobson
aponta que ao contrário de uma busca deliberada e racional dos mecanismos
teóricos, a intuição tem lugar essencial no fazer poético.
A obra de arte vai nos mostrar, apresentar o que está para se ver. O artista
se vale da pré-visão, daquilo que antecede o intelecto, tocando a realidade do objeto
numa “intuição imediata”, pregada por Henry Bergson (1999, p. 80). O artista “crê
sem ver”, isso é um modo de visão, no entanto, receber e manipular a imagem vista
é atributo da imaginação. O artista transforma o que antessente em imagens e nos
mostra, porque precisamos “ver para crer”. Cabe recordar aqui a frase de Potebnia,
“a arte é pensar por imagens”, citada por Chklovski (1976, p. 39). É importante para
a compreensão dos anelos desta dissertação perceber a essência da frase de
Potebnia, pois está nela o enfoque para compreender uma das lógicas em que se
135
apóia este trabalho: o pensamento por imagens elabora textos por imagens e,
melhor, compõe textos artísticos por imagens, no caso, imagens sonoras, que irão
configurar espaços, cenários, ambientes, paisagens sonoras, que não se restringe
às artes plásticas, mas refere-se à arte em geral, como a poesia, a arte sonora etc.
Quanto às teorias, como se moveriam sem a intuição e a imaginação?
Deleuze, ao dedicar sua atenção aos conceitos de Bergson, eleva a intuição ao
patamar de método filosófico:
A intuição é o método do bergsonismo. A intuição não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado, e mesmo um dos mais elaborados métodos da filosofia. Ele tem suas regras estritas, que constituem o que Bergson chama de "precisão" em filosofia. É verdade que Bergson insiste nisto: a intuição, tal como ele a entende metodicamente, já supõe a duração. "Essas considerações sobre a duração parecem-nos decisivas. De grau em grau, elas nos fizeram erigir a intuição em método filosófico. (DELEUZE, 1999, p. 7)
Deleuze (1999, p. 115) vê semelhanças entre Bergson e David Hume
(1995), ao tratar da imaginação ante as impressões percebidas. Podemos
estabelecer relações com o que diz Püschel:
[...] a imaginação tem algo que não é dedutivo (pelo duto, pelo caminho lógico; do geral para o particular) nem indutivo (dentro do duto, do caminho; do particular para o geral). Há algo que Peirce chama de abdutivo (afastado do duto previsível; a eureka de Arquimedes, o insight (grosseiramente falando), o modelo do átomo vislumbrado pela cobra que morde a própria cauda em Kekulé; a lendária ou não maçã newtoniana). Aliás, é a abdução o caminho criativo, é o que aproxima cientistas e artistas a quererem buscar o novo. (PÜSCHEL, 2000, p. 63)
Nos estudos de Compagnon é possível identificar um provável equilíbrio que
nos levam a evitar o erro de fazer da teoria ou da intuição um “demônio”. Visando
este equilíbrio entre a teoria e a prática, bem como o equilíbrio da organização desta
parte da dissertação, dividirei minhas especulações em duas partes: na primeira,
prevalecerão as teorias; na segunda, as práticas. O uso das teorias nesta
dissertação será específico, voltado para as estruturas poéticas, narrativas e
descritivas, na perspectiva do uso do objeto sonoro em texturas sonoras/musicais
tecidas em conformidade com as estruturas dos gêneros especificados. A utilização
das teorias não terá o caráter de teoria escolástica, mas conterá, ao modo de
Compagnon (1999, Conclusão) ao citar Barthes, uma atitude: a da aventura teórica.
Ao falar de aventura, só estou evitando cair em “círculos fechados” ou
“maniqueísmos”. Estou simplesmente escolhendo caminhos, pois como afirma
136
Compagnon (1999, p. 26): “não é possível tudo ao mesmo tempo. Na pesquisa
literária, ‘mais é menos’, motivo pelo qual devemos escolher”.
Antes de iniciar o que está proposto, ou seja, estudar o objeto sonoro,
explorando a sua textualidade, como também o seu potencial de poeticidade e
narratividade, é importante ressaltar que os estudos literários tem acolhido teorias
sobre questões não literárias, relativas às outras artes e outros saberes, como, por
exemplo, textos filosóficos, psicanalíticos, como também a teoria da literatura se
relaciona de perto com as “disciplinas diretamente derivadas da expansão da
linguística”, como a semiótica e a teoria da comunicação (SOUZA, 2007, p. 67),
motivo de queixas por muitos (CULLER, 1999, p. 11).
Este relacionamento interdisciplinar foi saudável para esta dissertação, pois
para compreender o objeto sonoro desde a sua natureza ao objeto cultural, do
sensível ao inteligível, do mitológico ao racional, enfim, do fenômeno ao signo,
recorri às contribuições teóricas da filosofia (fenomenologia) e da linguística
(semiótica, linguagem, comunicação). Da mesma maneira, os estudos literários
podem ser aplicados às reflexões sobre outras artes, outras linguagens, conforme
Foucault acreditava:
É verdade que a literatura é feita com linguagem, como, afinal de contas, a arquitetura é feita com pedra. Mas deve-se concluir daí ser possível aplicar-lhe indiferentemente as estruturas os conceitos e as leis que valem para a linguagem em geral [...] a análise da literatura, como significante e se significando a si mesma, não se limita unicamente à dimensão da linguagem. Ela penetra em um domínio de signos que ainda não são signos verbais e, por outro lado, ela se estica, se eleva, se volta para outros signos muito mais complexos do que os signos verbais. (FOUCAULT, 2005, p. 166)
A partir de agora, os estudos procurarão embasamentos nas teorias
literárias, o que não descartará novas investidas em outras noções, conceitos
relacionados às artes e às linguagens em geral.
Ao buscar a compreensão das paridades e das barreiras entre a arte literária
e as artes visuais ou sonoras recorro a Gotthold Ephraim Lessing106, que via a
poesia como uma arte de signos arbitrários alinhados no tempo e a pintura como
106 Gotthold Ephraim Lessing (1729 — 1781) foi um poeta, dramaturgo, filósofo e crítico de arte alemão. É considerado um dos maiores representantes do Iluminismo e gozava de grande reputação como crítico. Suas peças e seus escritos teóricos exerceram uma influência decisiva no desenvolvimento da Literatura Alemã moderna, da qual é considerado fundador.
137
uma arte de signos “naturais” dispostos no espaço e achava que “a poesia deve
simplesmente buscar elevar os seus signos de arbitrários para naturais; e apenas
deste modo ela se diferencia da Prosa e torna-se Poesia” (LESSING apud
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 195).
A arte sonora, sob este prisma, pode ser entendida como uma arte de signos
tanto “naturais” quanto arbitrários arranjados no tempo. Nesta comparação entre as
artes convém recordar que, em relação aos signos naturais ou arbitrários, a arte
pictórica fez um caminho oposto ao da música e da literatura. A pintura, por muito
tempo foi referencial, somente no início do século XX passou a trabalhar com o
abstrato, através de Kandinsky, com o seu estilo abstracionista. Neste cenário,
destaca-se também Mondrian, que buscava a não referencialidade da pintura. A
música fez o reverso, sempre usou o signo arbitrário (nota musical) e abstrato e só
passou a trabalhar com o concreto, com o signo natural, na musica concreta. Na
literatura, a “concretude” como tentativa de restituição da “linguagem natural”
(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 195) e maior proximidade com as coisas, buscada
pela poesia concreta, também caminhou em contramão com a pintura.
Poderíamos contestar que a literatura e a música ocupam o espaço, mas
Lessing não se refere ao espaço como elemento da narrativa, mas ao suporte
dimensional. É importante também notar que a pintura igualmente trabalha com o
conceito de narrativa, portanto tem o tempo (elemento da narrativa) como
componente de sua composição.
É por se deter em conceitos de narrativa e descrições, estruturas poéticas
que os estudos literários auxiliam o entendimento do uso dos signos, naturais,
artificiais, arbitrários, simbólicos etc. e suas relações estruturais e formais de
gêneros.
138
5.2 A estrutura de textos artísticos
A arte é o oriente dos signos 107
Décio Pignatari
Como adiantamos quando apresentamos a teoria, vamos estudar a
narratividade e a poeticidade. Recordemos, então, a preocupação presente no
capítulo mencionado, recorrendo à indagação de Jakobson: “Que é que faz de uma
mensagem verbal uma obra de arte?” (JAKOBSON, 2003, p. 118-119)
Para fazermos as devidas diferenciações temos que compreender que esses
textos estão relacionados a uma postura de pensamento e por isso a uma lógica.
Isto pode ser percebido ao se examinar a lógica dos textos informativos, narrativos e
poéticos.
No texto em que importa a informação, entre eles o dissertativo e
argumentativo, a preocupação é mais referencial. São textos que se desenvolvem
em uma linearidade em que cada oração exige uma complementação que obedece
a injunções que visam significações objetivas, cada palavra segue a outra, se
emendando linearmente, conforme Raul de Souza Püschel:
A dissertação trabalha com uma espécie de linearidade, já que desdobra todas as consequências possíveis de sua argumentação [...] Assim, por mais complexo que seja um pensamento teórico, em última instância ele terá um encadeamento, suas explicações mostrarão cada uma de suas pregas. Aliás, é sempre bom lembrar que etimologicamente a palavra explicar (do latim explicare) possui o prefixo ex (= fora de) e o radical plicare (= pregar). (PÜSCHEL, 2000, p. 59)
Já a narrativa, sendo uma prosa de ficção, como o romance, o conto e a
novela entre outros, também se obriga a um certo encadeamento, a um
desenvolvimento, também obedece a determinadas injunções, no entanto, “muito
menos severas que as impostas aos textos dissertativos e argumentativos”. A
narrativa tem o poder de “inventar cenários, personagens e sequências que
transcendem as limitações do mundo real” (PÜSCHEL, 2000, p. 59), mas ainda
assim tem uma limitação maior que a do texto poético.
A poesia se diferencia da prosa, trabalha com frases mais livres e soltas,
apesar de ter versos que servem de ponto de partida, o encadeamento não se dá de 107 (PIGNATARI, 2004, p. 20)
139
forma linear. A natureza da poesia se reveste de uma lógica diversa da existente na
prosa. Um poema não trabalha com frases que seguem uma lógica, não uma lógica
formal. Os versos seguem uma outra lógica, uma lógica criada pelo próprio poema.
O importante nestas estruturas não é informar, mas fazer uso de palavras
selecionadas para se provocar efeitos pretendidos. É uma pratica que requer mais
criatividade linguística e menos vínculo a uma sintaxe.
Ainda neste contexto, Salvadore D’Onofrio afirma que o que distingue uma
forma literária de outra é o grau maior ou menor de poeticidade com que atuam. Na
tabela a seguir serão demostradas as graduações de poeticidade (D’ONOFRIO,
1983, s/n):
Tabela 9: Graus de poeticidade Grau de
poeticidade 0 1 2 3 4 Máximo
Linguagem do cientista homem
comum crítico romancista poema sem rima e sem
metro
poema integral
Com isso, compreendemos que há poesia ou poeticidade em textos
diferentes aos conhecidos como poéticos, ou seja, aos poemas. D’Onofrio opina que
“um romance é um poema expandido e um poema um romance condensado”
(D’ONOFRIO, 1983, s/n), e expõe a opinião de Jean Cohen:
A prosa literária não é senão uma poesia moderada em que a poesia, por assim dizer, constitui uma forma veemente da literatura, o grau paroxístico do estilo. O estilo é uno. Apresenta um número finito de figuras, sempre as mesmas. Da prosa para a poesia, e de um estado de poesia para outro, a diferença está na audácia com que a linguagem utiliza os processos virtualmente inscritos na sua estrutura. (COHEN apud D’ONOFRIO, 1983, s/n)
Lotman também não faz relações do discurso poético com as formas
prosa/poesia, mas reconhece que há distinções entre o discurso usual e o discurso
artístico, pois “o pensamento de um escritor realiza-se numa determinada estrutura
artística”:
O discurso poético representa uma estrutura de uma grande complexidade. Em relação à língua natural, ele é consideravelmente mais complexo. E se o conjunto da informação contida no discurso poético (verso e prosa, neste caso, isso não tem importância) e no
140
discurso usual fosse semelhante, o discurso artístico perderia todo o direito à existência e desapareceria sem dúvida alguma. (LOTMAN, 1978, p. 39)
Jakobson, em seu estudo linguístico da função poética fala de “dois modos
básicos de arranjo utilizados no comportamento verbal” (JAKOBSON, 2003, p. 129):
o da “seleção” e da “combinação”. Na combinação, as palavras são juntadas, uma a
uma, em um encadeamento linear, de maneira favorável à informação. Na seleção,
as palavras são selecionadas de forma criativa para causar efeitos, em jogos de
sons e sentidos.
Antônio Cândido (1996) também nos dá uma contribuição quanto às
diferenças entre prosa e poesia ou literatura e texto não literário, observando que o
estudo da poesia apresenta certas dificuldades, o que ocorre com menos frequência
com o meio de expressão da prosa, por estar mais próximo da linguagem cotidiana,
o que torna mais fácil a nossa familiarização com o texto prosaico. No entanto,
Cândido diz que “as acepções variam conforme as línguas” e que elas estão
relacionadas ao conceito geral de literatura, conforme consta em seu livro O estudo
analítico do poema (CÂNDIDO, 1996, p. 11):
Em português, não ha duvida: a literatura é o conjunto das produções feitas com base na criação de um estilo que é finalidade de si mesmo e não instrumento para demonstração ou exposição. Mais restritamente, é o conjunto de obras em estilo literário que manifestam o intuito de criar um objeto expressivo, fictício na maior parte. Noutras línguas, porém, as coisas são menos simples, e demonstram com mais força do que na nossa o alto conceito que se faz geralmente da poesia como categoria privilegiada de criação espiritual.
Foi feito até aqui um esforço em transparecer as distinções entre “texto feito
com arte” e “texto usual”, para uma melhor compreensão das relações signicas
contidas nas estruturas textuais. Destacamos anteriormente a classificação mais
conhecida dos signos peirceanos, que é a relativa à ligação signo/objeto. Nela, os
signos são os seguintes: ícone (primeiridade), índice (secundidade) e símbolo
(terceiridade).
Décio Pignatari relaciona os signos aos níveis de criação dizendo que “o
ícone é o signo da arte; o símbolo, o signo da ciência e da lógica” enquanto os
índices funcionam “como pontes” (PIGNATARI, 2004, p. 19-20).
141
Creio já ter convocado as noções necessárias para auxiliar na compreensão
de como funcionará um texto sonoro artístico. Façamos novamente a indagação de
Jakobson: “Que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte?”
(JAKOBSON, 2003, p. 118-119). Para o que pretendo será necessário fazer uma
adaptação desta frase, ficando assim: Que é que faz de uma mensagem sonora
uma obra de arte? Por esta razão foram feitas as diferenciações anteriores entre
texto e texto artístico.
Um texto, artístico ou não, vai se fixando por meio dos signos. Se os dois
tipos de textos são formados por signos, onde descansará a diferença? Comecemos
por estudar o processo de organização dos signos, das formas como são
arranjados. O arranjo dos signos é feito a partir de duas operações que Roman
Jakobson assim define:
1) A combinação. Todo signo é composto de signos constituintes e/ou aparece em combinação com outros signos, Isso significa que qualquer unidade lingüística serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou encontra seu próprio contexto em uma unidade lingüística mais complexa. Segue-se daí que todo agrupamento efetivo de unidades lingüísticas liga-as numa unidade superior: combinação e contextura são as duas faces de uma mesma operação. 2) A seleção. Uma seleção entre termos alternativos implica a possibilidade de substituir um pelo outro, equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro. De fato, seleção e substituição são as duas faces de uma mesma operação. (JAKOBSON, 2003, p. 39-40)
As ideias de Roman Jakobson sobre o duplo caráter da linguagem e as
definições de combinação e seleção são desdobramentos do pensamento de
Ferdinand de Saussure sobre as definições de sintagma e paradigma. Esses
conceitos se equivalem aos de similaridade e a contiguidade, de David Hume. Vou
tomar por base as explicações de Décio Pignatari porque nelas estão inclusas todas
essas acepções, além de estar mais em conformidade ao estudo do comportamento
dos signos em arranjos textuais. Comecemos pela sua conceituação:
Partindo das duas formas fundamentais e fundantes de associação (segundo o filósofo inglês David Hume, do século XVIII), a similaridade e a contigüidade, temos que as associações por similaridade constituem os paradigmas, eixos paradigmáticos ou de seleção de qualquer sistema de signos; já as associações por contigüidade formam os sintagmas, eixos sintagmáticos ou combinatórios. (PIGNATARI, 2004, p. 22)
142
Em síntese, os signos são organizados em um texto por similaridade ou
contiguidade. A similaridade é a analogia. O ícone é o signo da analogia, da
similaridade com o objeto representado, contendo, com este, algum traço em
comum. Neste eixo, também conhecido como paradigmático, se desenvolve o texto
com tendência poética. A narrativa se faz pela contiguidade, se dá pela sequência
lógica, pelo encadeamento, pela linearidade, pela horizontalidade. Os textos
contíguos artísticos diferem dos dissertativos por ter uma preocupação mais estética,
mais subjetiva, podem inventar cenários e personagens que extrapolam o senso de
realidade.
Os objetos sonoros dispostos em uma organização submetida ao eixo
sintagmático se associam entre si, signo a signo, por dependência contextual, isto é,
um objeto sonoro depende do contexto do objeto anterior e, da mesma forma, impõe
novo contexto para a escolha do objeto seguinte, fixando assim um enredamento de
contiguidade. Quando os objetos sonoros estão dispostos sob o eixo paradigmático,
mudam as regras de segmentação. A poesia se dá pelo desvio da lógica contígua. A
forma poética de pensar não é lógica, é analógica, baseia-se nas simetrias e
assimetrias.
Este modo semiótico de estudar as estruturas é complementar e
fundamentalmente básico para compreendermos as estruturas de composições
sonoras a partir dos estudos literários. Devido ao tecido conceitual existente, às
técnicas e termos variados, recaímos sempre aos conceitos de estruturas literárias.
Esta tem sido a linha, ou o fio, da malha teórica, que temos puxado. A semiótica
auxiliará na compreensão dos signos, uma vez que estamos estudando um tipo de
signo que difere do verbal e as teorias literárias auxiliarão na compreensão do
funcionamento dos signos em estruturas textuais sonoras que são construídas sob
as regras pertencentes às estruturas literárias. É preciso enxergar a estrutura, a
forma, de outro modo, como poderíamos afinar e vibrar o diapasão sem sequer ver o
instrumento? No entanto, o formalismo e o estruturalismo, apesar de atenderem ao
propósito de constatação da capacidade sígnica do objeto sonoro, como elemento
material de uma composição sonora não dariam conta das perspectivas discursivas
e culturais de textos sonoros, o que não resultará em prejuízo, pois não serão
estudadas neste trabalho por força delimitativa, ou seja, será estudada somente a
potencialidade textual e não discursiva.
143
A Teoria da Literatura passa a ser um questionamento sistemático acerca da
obra sonora, estando apta para decompor esse tipo de obra (peça, composição,
texto/textura etc.). Através da Teoria da Literatura em geral, o texto sonoro deixa de
ser apenas um mero (no entanto, emocionante) simulacro, para figurar como
produção textual discursiva, expressão da realidade, da vida, do desejo e do
pensamento.
Para fazermos uma figuração inicial de como funciona uma composição
sonora no editor de áudio será usado um conceito básico de narrativa, por ser
propício ao entendimento de uma narrativa como "organização de materiais numa
ordem sequencial cronológica e a concentração do conteúdo numa única história
coerente" (STONE, 1979, p.3). Esta noção corresponde a um eixo de narração, que
pode ser organizado junto a outros, de forma justaposta ou sobreposta.
Considerando a possibilidade de entrecruzamento ou enlaçamento de narrações na
mesma obra narrativa, possíveis pela capacidade de simultaneidade, característica
das linguagens sonora e musical em poder ocupar dois ou mais espaços ao mesmo
tempo, no procedimento de composição, a narrativa pode ser composta em partes,
em pistas de áudio, permitindo uma maior mobilidade criativa quanto à ordem
sequencial e cronológica, bem como no cruzamento de enredos e histórias. Sendo
os materiais sonoros registros de áudio, ou seja, arquivos analógicos ou digitais, que
podem ser ordenados em múltiplas pistas de áudio e editados com o propósito de
fusionar narrações ou narrativas, de modo simultâneo, podem resultar em uma
polifonia narrativa baseada em paralelismos discursivos. Assim, em uma pista, uma
narração sonora consiste em arranjar uma sequência de objetos sonoros, na qual os
personagens se movimentam num determinado espaço à medida que o tempo
passa.
Esta definição de narrativa, na forma mais simplificada, nos serve para
formar a ideia de texto sonoro narrativo que iremos abordar a seguir, pois a
importância dos estudos literários está em ampliar esta noção e esboçar
perspectivas da potencialidade do objeto sonoro em diversas modalidades
narrativas. O texto sonoro narrativo está sujeito a todas as complexidades baseadas
na ação que envolve personagens, tempo, espaço e conflito, ou melhor, nos
elementos constituintes da narrativa. Lukács diz que “a arte da narração não só
permite como estimula uma infinita variedade de formas de composição (LUKÁCS,
1965, p. 81)”.
144
As descrições são pinturas sonoras com abrangência textual de
referencialidade e de poeticidade. Os métodos de composição voltados para a
espacialidade permitem ao compositor representar com exatidão realista, com
plasticidade, sensibilidade e divagação. Os níveis referenciais são alguns dos
critérios que definem o caráter descritivo ou poético da composição.
Já a invenção sonora poética consiste em sequenciar objetos sonoros que
constituam imagens sonoras, em justaposição ou sobreposição, pois a possibilidade
da simultaneidade possibilita a polifonia, a ambiguidade, o desvio discursivo, o
estranhamento, a recorrência, bem como outros efeitos como a suspensão, a
quebra, o eco etc.
Para o cumprimento desses estudos, serão utilizadas teorias que pensam,
refletem e analisam alguns dos elementos constitutivos dos gêneros narrativo,
descritivo e poético, no entanto, nesse sentido, são objetos da Teoria da Literatura
questões como:
- a estrutura da obra;
- a literariedade;
- a poeticidade;
- a narratividade;
- a descritividade;
- a verossimilhança;
- o espaço;
- o tempo;
- os personagens;
- o enredo;
- o narrador;
- o discurso;
- a linguagem.
As composições sonoras contêm atributos que se assemelham aos outros
textos artísticos, como também tem características próprias enquanto linguagem
particular. Admitindo as composições como textos sonoros, serão extraídas e
levadas em conta as semelhanças e as diferenças, para o estudo através das
teorias gerais dos sistemas de signos e dos estudos literários, nos valendo de que “a
145
arte pode ser descrita como uma linguagem secundária e a obra de arte, como um
texto nessa linguagem” (LOTMAN, 1978, p. 38).
5.3 Narrativa
É dentro da perspectiva da “arte como linguagem” e da “obra artística como
texto” que começamos a pensar em narrativa elaborada a partir de um sistema
sonoro. Como emaranhar uma estrutura narrativa a partir dos objetos sonoros?
Roland Barthes diz que são “inumeráveis as narrativas do mundo”, e ainda
acrescenta que:
Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto [...] na pintura, no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disso, sob essas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade [...] (BARTHES, 1971, p.19)
Os recursos da linguagem, relacionados aos eixos sintagmáticos e
paradigmáticos, são instrumentos artísticos que irão estruturar os textos sonoros
conferindo-lhes caracteres que os farão distintos, em diversas graduações entre o
narrativo e o poético. Através do eixo em que se organizarão os objetos sonoros se
definirá o grau de poeticidade da obra, pois, em contigüidade, os signos são mais
utilitários e referenciais, enquanto que por similaridade, multiplicam-se os
significados, gerando a ambiguidade poética, desvencilhando o signo sonoro de sua
função objetiva. A escolha do material é basilar e o efeito que se pretende é a mola
que impulsiona a criação; ambos são determinantes nos resultados artísticos.
Os estudos literários são fundamentais, pois oferecem conceituações dos
aspectos estruturais relacionados à organização dos signos dentro das estratégias
narrativas. As articulações narrativas ocorrem através de elementos constituintes
como: espaço, tempo, personagem, ponto de vista narrativo, enredo e narrador.
Os objetos sonoros dispostos em uma organização submetida ao eixo
sintagmático se associam entre si, signo a signo, por dependência contextual, isto é,
um objeto sonoro depende do contexto do objeto anterior e, da mesma forma, impõe
146
novo contexto para a escolha do objeto seguinte. Obedecem as injunções e regras
de segmentação da narrativa, formando frases sem “jamais se reduzir a uma soma
de frases”, conforme Barthes: “a narrativa é uma grande frase, como toda frase
constatativa, é de uma certa maneira o esboço de uma pequena narrativa”
(BARTHES, 1971, p. 24).
O objeto sonoro é um ponto na linha narrativa, podendo interromper, desviar
ou permitir o fluxo narrativo. Ele pode manter ou alterar o nível referencial de um
enunciado sonoro. Está contida no objeto sonoro a decisão tomada pelo compositor,
de representar ou de causar efeitos. Se for a de representar, em que medida será e
qual o nível de referencialidade. Barthes, sobre a mímesis diz:
[...] a função da narrativa não é a de “representar”, é de construir um espetáculo que permanece ainda para nós muito enigmático, mas que não saberia ser de ordem mimética; a “realidade” de uma sequência não está na continuação “natural” das ações que a compõem, mas na lógica que aí se expõe, que aí se arrisca e que aí se satisfaz [...] (BARTHES, 1971, p. 59-60).
Como o assunto da narrativa é muito amplo, serão tratadas aqui apenas
algumas questões voltadas para os elementos da narrativa, como maneira de
acionar reflexões que demandem uma tarefa maior sobre a complexidade das
relações sígnicas a que estão sujeitos os objetos sonoros. Comecemos pelo
elemento tempo.
5.3.1 Tempo
O sonho encheu a noite Extravasou pro meu dia
Encheu minha vida E é dele que eu vou viver
Porque sonho não morre. 108
Adélia Prado
A arte envolvendo elementos sonoros se diferencia já de imediato por ser o
tempo a plataforma da composição sonora. O terreno a ser ocupado pelo som é
linear, é temporal. “A estrutura da obra repousa numa armação temporal histórica:
cronologia determinada” (NUNES, 1995, p. 43). Todos sabemos que uma música
não ocupa espaço, mas dura um determinado tempo, suporte inequívoco da
108 Disponível em: < http://www2.uol.com.br/fernandamontenegro/donadoid.htm >. Acesso em: 01 dez. 2013.
147
narração sonora. Música, composição sonora e narrativa se desdobram no tempo.
Benedito Nunes afirma que é mais fácil perceber as ligações do tempo com a
música que com a literatura:
[...] por ser esta basicamente articulada segundo medidas temporais (ritmo, compasso e andamento ou velocidade), do que com as formas narrativas, nas quais se apresenta quase sempre de modo implícito. (NUNES, 1995, p. 6)
O tempo de ocorrência da narração sonora é o cronológico, porém, como
acontece na literatura, pode ser alcançado o efeito de tempo ficcional. Gérard
Genette (1979, p. 32) comenta que a oposição entre o “tempo da história” e o “tempo
da narrativa” não é uma característica exclusiva da narrativa cinematográfica.
Genette reforça seus argumentos citando Christian Metz:
A narrativa é uma sequência duas vezes temporal...: há o tempo da coisa-contada e o tempo da narrativa (tempo do significado e tempo do significante). Não só é esta dualidade aquilo que torna possíveis todas as distorções temporais de que é banal dar conta nas narrativas [...]; mas fundamentalmente, convida-nos a constatar que uma das funções da narrativa é cambiar um tempo num outro tempo. (METZ apud GENETTE, 1979, p. 31)
Na composição sonora ocorre, como na literatura, que o tempo na narrativa
sonora depende da natureza do acontecimento ou do ponto de vista do narrador, de
como o autor queira que o ouvinte sinta o transcorrer do tempo. O tempo em uma
narrativa sonora, mesmo com efeito ficcional é elaborado a partir da experiência
temporal. Paul Ricouer fala da relação tempo/narrativa:
O mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal [...] o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal. (RICOUER, 1994, p. 15)
Ricouer explica que a complexidade da representação temporal não pode
ser expressada pela ordenação linear dos acontecimentos e que a representação
linear do tempo não corresponde à experiência temporal subjetiva.
A narrativa se desenvolve em um ”tempo que toca à realidade, um outro que
dela se desprende“ (NUNES, 1995, p. 15). O tempo subjetivo que irá condicionar e
dar o andamento do tempo ficcional é reflexo do tempo experimentado, repetindo as
mesmas expectativas temporais na narrativa. Walter Benjamin, ao diferenciar a
148
narrativa tradicional dos romances modernos, citou Paul Valéry, ponderando o
seguinte: “[...] já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje
não cultiva o que não pode ser abreviado” (VALÉRY apud BENJAMIN, 1987, p.
206). Para Benjamin, “o homem conseguiu abreviar até a narrativa”.
O tempo na narrativa está sempre conjugado ao espaço. Não se pode
constituir, por exemplo, um espaço realista, sem signos espaciais e temporais
referenciais. Em uma composição descritiva sonora realista, levando-se em conta a
natureza dos eventos, ao se criar um espaço, correspondente ao físico, em que
poderão ocorrer fatos narrativos, o aparecimento de sons relacionados à natureza,
deve transcorrer em um curso natural, seguir um tempo físico, que reforça o realismo
da descrição espacial. Para espaços, hiper-reais, surreais, irreais, um tempo
combinado, pois não se pode desconjugar tempo e espaço sob a pena do fracasso
ficcional.
O tempo físico corresponde à duração dos eventos, enquanto o tempo
psicológico corresponde à duração dos estados internos. Para representar estas
questões através dos objetos sonoros podemos fazer associações. Exemplos de
tempo cronológico, físico, natural, cósmico, como segundos, minutos, duração de
fenômenos naturais, podem ser representados desde um som de relógio em
funcionamento, aquele icônico e onomatopaico tic-tac tão reconhecido, quanto ao
simbólico som do canto do galo anunciando o amanhecer. Mas o fundamental é que
os eventos ocorram no tempo considerado normal, em um tempo objetivo, realista.
Quanto às representações de um tempo mais subjetivo, isto envolve o aparecimento
do narrador ou de algum personagem. São os acontecimentos ocorrendo em tempo
modificado, alterado pelo estado psicológico de quem está narrando. O tempo
interior pode ser alongado ou encurtado, tornado lento ou acelerado a partir de
recursos de edição. É um tempo que está sob o efeito do estado psicológico de
quem conta a história. Segundo Nunes:
A experiência do movimento exterior das coisas prepondera na elaboração do conceito de tempo físico, natural ou cósmico: tanto pode ser a medida do movimento como relação entre o anterior e o posterior, conforme Aristóteles escreveu em sua Fisica109, quanto o próprio processo de mudança - processo objetivo, porque independente de consciência do sujeito, além de quantitativo, porque expresso mediante grandezas [...] A experiência da sucessão dos nossos estados internos leva-nos ao conceito de tempo psicológico
109 ARISTOTELES
149
ou de tempo vivido, também chamado de duração interior. O primeiro traço do tempo psicológico é a sua permanente descoincidência com as medidas temporais objetivas. Uma hora pode parecer-nos tão curta quanto um minuto se a vivemos intensamente; um minuto pode parecer-nos tão longo quanto uma hora se nos entediamos. (NUNES, 1995, p. 18).
Quando ouvimos uma narrativa sonora, ouvimos a narração, ou seja, as
ações em ocorrência, no presente, se são sons de passos, de aplausos, de toques
nas teclas de um computador, enfim, qualquer exemplo que pensarmos, o tempo da
ocorrência é o presente, no entanto este presente é um ponto, um núcleo que pode
comportar o passado e o futuro.
É deslocável o presente, como deslocáveis são o passado e o futuro. De "uma infinita docilidade", o tempo da ficção liga entre si momentos que o tempo real separa. Também pode inverter a ordem desses momentos ou perturbar a distinção entre eles, de tal maneira que será capaz de dilatá-los indefinidamente ou de contraí-los num momento único, caso em que se transforma no oposto do tempo, figurando o intemporal e o eterno. (NUNES, 1995, p. 25)
Determinados sons, podem nos remeter a determinados fatos históricos, por
seu caráter simbólico, associativo, representado acontecimentos singulares, como
uma guerra (lembremos a Abertura 1812, de Tchaikovsky, que descreve o confronto
da Rússia com a França. Em certo momento incluem-se fragmentos de La
Marsellesa110, símbolo do exército invasor), uma festividade (imaginemos sons
festivos como copos brindando, gargalhadas, entre outros, indicam que o evento é
uma festa; o que definirá o tipo de festividade são sons que condizem com o tipo de
comemoração: de fundo, uma música natalina ou carnavalesca, junina será
determinante quanto ao tipo de festividade), movimento político (imaginemos sons
relacionados a manifestações públicas, como o alarido, sirenes, etc. que comporiam
somente uma manifestação, mas se incluirmos, de fundo, canções como Coração de
estudante, de Milton Nascimento ou o Hino nacional cantado por Fafá de Belém, que
se tornaram símbolos das manifestações “Diretas Já”, mudaria completamente o
contexto na questão histórica). Estes são acontecimentos específicos que nos levam
a uma representação do passado.
110 La Marseillaise (A Marselhesa, em português) é o hino nacional da França.
150
Existe o tempo que é impresso pela própria linguagem, pelos expedientes
que lhe são próprios e que podem se equivaler aos recursos criativos e técnicos, em
que podemos contar ou mostrar, invertendo a ordem passado/presente/futuro; ou
voltar os acontecimentos, fazendo uso do recurso chamado reverse, em que os
eventos sonoros ocorrem de trás para frente; como também alterar o andamento dos
fatos, tanto de forma brusca como progressivamente ou digressivamente. A
ordenação dos acontecimentos se dá, neste caso, por meio da própria linguagem.
Tudo isso, ainda pode ser distorcido pelo ponto de vista do narrador, pois se é uma
cena alegre, é adequado a cena que transcorra em um andamento rápido, e quando
o contrário ocorre, isto é, a cena conta o que sente o personagem, e seus
sentimentos apontam para a melancolia, a tristeza, o tempo parece não passar,
exigindo que o evento se dê em um andamento lento, sendo rítmico ou arrítmico,
sempre projetando o tempo psicológico do personagem ou narrador. Estes
resultados provocam uma ilusão de movimento, podendo ser compreendidos, muitas
vezes, como efeitos poéticos. Além disso, podemos considerar também as soluções
musicais na utilização da natureza do compasso apropriado, visando configurar o
caráter da composição, pois apesar da notação musical mostrar-se como um fluxo
que segue em uma direção, numa sequencia linear, essa sucessão de tempo da
música não é uma simples passagem de tempo na música. A música tem um tempo
interior, ela é pulsante, daí a necessidade de orientar o caráter da peça musical pelo
tipo de compasso, seja ele binário, ternário ou quaternário.
Ao compositor cabe não perder o foco narrativo, o ponto de vista do
narrador para ajustar os planos temporais da narrativa, pois na narração o tempo
sempre será relativo, variando de acordo com o que a narração pede, ora o tempo é
realista, isto é corre de acordo com o relógio, ora é retrospectivo, prospectivo, lento,
acelerado ou simultâneo.
Esta questão da simultaneidade, por exemplo, como já foi estudado antes
sobre polifonia, é simples para a técnica composicional lidar com discursos
ocorrentes ao mesmo tempo, cabendo apenas a decisão da colocação dos
discursos em seus respectivos planos. Na literatura, devido ao caráter consecutivo
da linguagem verbal, a narrativa só consegue representar ocorrências simultâneas
na ordem sucessiva. O efeito de simultaneidade consegue-se empregando um
recurso como: “Enquanto isso...”, estancando o fluxo narrativo, abrindo um
“parêntese”, um novo tempo em que ocorrerá um novo curso narrativo, que será
151
interrompido ou concluído para que se retorne à narração anterior, isto é, o
simultâneo tem o caráter de efeito, no entanto terá que ocorrer de forma linear,
horizontal e sequencial no texto escrito. Na composição textual sonora o “enquanto
isso” é suprimido e um fragmento narrativo pode estar acontecendo, enquanto isso,
outro ocorre ao mesmo tempo. Esses eventos narrativos alteram a linearidade
discursiva, uma vez que podem ser provocados efeitos de paralelismos ou
cruzamentos narrativos através da sobreposição de objetos sonoros.
Na arte sonora, os objetos sonoros são imagens que formam quadros em
movimento. Sem o movimento seria tão somente uma descrição estática, como são
as fotografias. O movimento significa a ação do tempo, representa o espaço vivo,
como na arte cinematográfica. Sendo uma simulação de espaços vivos, os
elementos de composição se movem em um tempo condizente e compreensível
dentro do espaço criado. Essa medida temporal não coincide com as medidas
objetivas, ela tem uma duração que Bergson denominou de “duração interior” (apud
DELEUZE, 1999, p. 114), captado pela intuição na experiência.
De um ponto de vista filosófico, não obstante, com propósitos que
facilmente se comungam com os procedimentos artísticos, Gilles Deleuze e Félix
Guattari (2012) articulam sobre conceitos de Pierre Boulez, relacionados ao tempo e
ao espaço:
Foi Pierre Boulez quem primeiro desenvolveu um conjunto de oposições simples e de diferenças complexas, mas também de correlações recíprocas não-simétricas, entre espaço liso e espaço estriado. Criou esses conceitos e esses termos no campo musical, e os definiu justamente em diversos níveis, a fim de dar conta ao mesmo tempo da distinção abstrata e das misturas concretas. No nível mais simples, Boulez diz que um espaço-tempo liso ocupa-se sem contar, ao passo que num espaço-tempo criado conta-se a fim de ocupar. Desse modo, ele torna sensível ou perceptível a diferença entre multiplicidades não métricas e multiplicidades métricas, entre espaços direcionais e espaços dimensionais. Torna-os sonoros e musicais. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 195-6)
O tempo estriado é o tempo pulsado, isto é, que tem um pulso como
referência, que facilitam o reconhecimento é destituído de métrica, não confundamos
com métrica irregular, que altera um compasso de binário à ternário, ou altera um
andamento de andante para alegretto. Essas alterações que mudam o ritmo ou a
velocidade ocorrem, no entanto, continuam mantendo um tempo pulsado. O tempo
152
estriado é métrico e quando se foge desta fixidez passa-se para um tempo não
pulsado.
O tempo liso é esse tempo não pulsado, amorfo, não medido por relógios,
cronômetros ou metrônomos. O pulso é subjetivo, não se conta para ocupar, mas
ocupa-se o tempo sem a necessidade de contar e sem parâmetros lógicos. O tempo
liso é o “tempo fora dos eixos”, o “tempo enlouquecido”, libertado dos
acontecimentos que compunham seu conteúdo, revertendo sua relação com o
movimento, descobrindo-se, em suma, como forma vazia e pura (DELEUZE, 2000,
p. 92).
Na criação sonora o tempo e o espaço são inseparáveis como na vida. É um
arranjo da narração com a descrição. A narração conta através do tempo enquanto a
descrição mostra o espaço. Conforme Bergson: “a percepção dispõe do espaço na
exata proporção em que a ação dispõe do tempo” (BERGSON, 1999, p. 29).
5.3.2 Espaço
A pintura transforma o espaço em tempo; a música, o tempo em espaço.111
Hugo Von Hofmannsthal112
O compositor, da mesma maneira que um pintor, terá que criar espaços. As
composições sonoras, assim como as pinturas, podem mimetizar o real, ou seja,
evocar imagens referenciais do mundo real, sendo que podem ser compostas de
forma realista, isto é, com um grau de referencialidade elevado, muito comum nas
pinturas de paisagens, como pode ter o mesmo fundo realístico, no entanto,
carregado das impressões do artista ressaltadas nas linhas, formas e proporções,
sombras e luzes, como os jardins impressionistas de Monet. Os sons ambientais
naturais ou da cidade formam um discurso mimético. O enfoque destes sons é
mimético por natureza, ao ouvi-los em uma composição, logo são identificados, são
objetos sonoros de prontidão para as mais diversas combinações, que permitem a
invenção de novos mundos, em que o objeto sonoro mimético pode ser desfigurado,
111 HARGRAVES, 2002, p. 64 112 Hugo Laurenz August Hofmann, Edler von Hofmannsthal (1874 — 1929), foi um escritor e dramaturgo austríaco. Seu prestígio internacional se deve a sua colaboração com escritos para as óperas do compositor e maestr alemão Richard Strauss.
153
deformado, como os relógios derretidos de Dali na sua obra A persistência da
memória.
Refletir sobre as definições “a arte é pensar por imagens”, de Potebnia (apud
CHKLOVSKI, 1976, p. 39) em consonância com “toda imagem é, de certo modo,
uma narrativa”, de Barthes (2004, p. 39) nos ajudam a compreender o potencial dos
objetos sonoros como representações. Os objetos sonoros, no contexto desta
dissertação, são signos, e como signos representam algo, no caso, seres e coisas
que ocupam espaços. A representação do espaço em um texto sonoro é feita por
meio da descrição, da mostração. Os espaços se constituem da organização de
elementos sígnicos. Os objetos sonoros são dispostos levando em conta questões
como espacialidade, ambientação e movimento (conjugada com o tempo), bem
como cenário, lugar etc.
O espaço, como elemento da narrativa, tem o seu papel de complemento,
de expansão. A narrativa ocorre dentro do tempo e do espaço, todas as ações
precisam acontecer em algum lugar: o espaço. Para se compreender como é feita
uma configuração do espaço na narrativa sonora é preciso pensar na noção de
espacialização fictícia da narrativa. Cabe aqui uma observação para que não
ocorram desvios interpretativos. Para o compositor, a sua composição funciona no
tempo, ou seja, os sons vão estar dispostos na sequencia temporal, pois o suporte
da composição é o tempo: o tempo em que decorre a contação da história.
Entendamos que o som não ocupa espaço e, sim, decorre em um lapso de tempo,
portanto o espaço pretendido na composição é o espaço fictício. Como reforço desta
informação, vai ser usado um exemplo de uma composição narrativa sonora, vamos
colocar assim: a composição (que contém a narração) funciona no tempo, nela, os
signos ocupam o tempo; por outro lado, na narrativa da composição, os signos
transcorrem no espaço, não se trata de espaço físico, mas de um espaço fictício,
lugar onde se dão os acontecimentos contados na narração. Os signos tendem a se
situar nos espaços fictícios de maneira similar ao modo como se situam no “mundo
dos signos de uma sociedade”, conforme explica Michel Foucault ao afirmar que a
obra literária é feita “com linguagem”, “a partir de um sistema de signos”: “Mas esse
sistema de signos não é isolado. Ele faz parte de uma rede de outros signos que
circulam em dada sociedade” (FOUCAULT, 2005, p. 163).
Em um primeiro momento basta compreender que a espacialização sonora
consiste em dispor os sons, lado a lado, um sobre o outro (em pistas distintas), de
154
forma linear, em uma única dimensão. Mas a fidelidade exige mais e será
necessário tridimensionar o espaço, ou seja, fazer um simulacro, uma simulação de
um espaço mais real, onde será necessária a definição das localizações precisas,
das direções e distâncias dos objetos.
As localizações no contexto fictício podem estar atreladas a um espaço
onde a ação está decorrendo, como pode estar relacionada a uma diversidade de
espaços além dos físicos, como psicológicos, sociais, culturais, etc.
A representação do espaço, quando naturalizante, valoriza signos que
representam objetos físicos, concretos. Um espaço físico, caso a intenção seja
mostrar realismo, pode ser representado por objetos sonoros que possam formar a
imagem sonora do lugar pensado (sons de animais, sons pertencentes ao ambiente
de uma indústria, sons relacionados ao trânsito, etc.). Somam-se aos objetos os
cuidados espaciais, questões de direção, sentido, profundidade etc. Um espaço
físico pode ser o espaço geográfico, como pode ser indicado através de referências
físicas, podem ser mais especificados, se interior ou exterior, fechado ou aberto, etc.
Neste aspecto, contribuições fundamentais foram dadas por R. Murray
Schafer, com seus conceitos atuais de “paisagem sonora”, muito bem aclarados nas
obras A afinação do mundo e Ouvido Pensante.
O conceito de paisagem sonora proposto por Schafer, visa à retomada da
consciência em relação ao espaço em que estamos, que ocupamos no mundo.
Envolve diretamente a possibilidade de entender sonoramente o que está diante de
nossos olhos.
Ainda nesta perspectiva, Fonterrada (2004, p.44) enfatiza:
Em relação ao ruído é impossível nos afastarmos dele; cada pessoa é o centro do seu ambiente sonoro, num círculo cujo diâmetro é o limite da escuta. Permanentemente, quer tenhamos consciência disso ou não, os sons produzidos nesse âmbito de escuta nos afetam...
Em uma narrativa sonora, o espaço pode ser configurado de modo a não
resultar em um pano de fundo apenas, a não ser apenas um retrato, uma imagem
imutável. Em espaços realistas, pode-se criar um âmbito sonoro vivo, um mundo
sonoro espacialmente móvel, compensando defasagens dimensionais apontadas
por Barthes:
155
O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura. Que o real não seja representável - mas somente demonstrável - pode ser dito de vários modos: quer o definamos, como Lacan, como o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem). Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a literatura não quer, nunca render-se. (BARTHES, 2004, p. 22)
A arte não quer se render. Baseado na ideia de que a audição não é plana
nem linear e que temos a capacidade auditiva de perceber perspectivas, podem ser
criadas descrições do espaço, através de recursos técnicos de qualquer editor de
audio em que simula uma espacialização tridimensional, pois se consegue fixar ou
mover o som, na dimensão da largura (orientação esquerda/direita), como o recurso
PAN, na perspectiva da altura (orientação cima/baixo), com o recurso EQUALIZER,
que possibilita os filtros de frequência, dando a impressão da fonte do som ser mais
acima ou mais abaixo; e a sensação de profundidade (orientação frente/trás), com o
recurso VOLUME, que proporciona diferenças de intensidade entre os objetos
sonoros. A tridimensionalidade em uma composição sonora, com os novos recursos
tecnológicos que estão ao alcance do compositor pode ser alcançada de forma
surpreendente.
Com técnicas de som surround113 é possível a criação de espaços sonoros
minuciosos com exatidão acústica Uma composição sonora pode transmitir
sensações espaciais com muita fidelidade. Com a utilização de um microfone
binaural se consegue produzir efeitos 3d (tridimensionais) muito reais, pois a
gravação de um áudio binaural simula a captação dos sons pelo ouvido humano. O
microfone binaural é altamente sensível e foi projetado considerando que o campo
auditivo é omni-direcional. Uma gravação feita por este tipo de microfone permite
perceber os sons que vem de todos os lados, com todas as sensações de altura,
distância e direção. Este método de microfonação foi cuidadosamente estudado. É
uma técnica minimalista, no sentido de imitar o nosso aparelho auditivo,
113 Som Surround é o conceito da expansão da imagem do som em três dimensões, recriando um ambiente mais realista de áudio. Esse efeito se consegue ao colocar diversos alto-falantes em torno do ouvinte para reproduzir áudio vindo de direções diferentes.. Este sistemaestá presente nos cinemas, teatros, vídeos, jogos de computador, dentre outros.
156
proporcionando uma sensação surpreendente de realismo, pois reproduz a
complexidade natural dos sons.
As contribuições de Gilles Deleuze e Félix Guattari quanto às noções de
espaço, abrem novas perspectivas para os compositores, uma vez que os espaços
sonoros da composição se ampliam, se abrem em espaços lisos, estriados, que
podem ser explorados em jogos de movência e desterritorialização.
Sucedeu-nos com frequência encontrar todo tipo de diferenças entre dois tipos de multiplicidades: métricas e não métricas; extensivas e qualitativas; centradas e acentradas; arborescentes e rizomáticas; numerárias e planas; dimensionais e direcionais; de massa e de malta; de grandeza e de distância; de corte e de frequência; estriadas e lisas. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 205)
O espaço estriado é o lugar da ordem e do controle e os seus trajetos estão
limitados às particularidades do espaço que os determinam. O espaço liso é um
lugar sem trajetos previamente determinados, se abre ao devir, ao nomadismo, ao
performativo, ou seja, é um espaço aberto para novas sensibilidades e realidades.
Deleuze e Guattari dão definições dos fragmentos espaciais em seus
aspectos tridimensionais, ilustrando que “tanto no espaço estriado como no liso
existem pontos, linhas e superfícies”. No espaço liso “a linha é um vetor, uma
direção e não uma dimensão ou uma determinação métrica” (DELEUZE;
GUATTARI, 2008, p. 197). O liso é um espaço direcional, enquanto o estriado é
dimensional. O espaço estriado fecha-se em uma superfície, se reparte em
intervalos determinados e o espaço liso “distribui-se” num espaço aberto.
Os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari criaram o conceito de
ritornelo, que é visto por eles mesmos como uma de suas criações mais importantes.
Para eles o ritornelo era um movimento ligado à questão do território, ora indo em
direção a ele, ora se instalando nele, ora saindo dele. Estes três movimentos são
capitais na concepção do ritornelo e esta para a filosofia de Deleuze e Guattari: a
territorialização, a desterritorialização e a reterritorialização. Em um movimento, o
ritornelo sai do caos em busca de um território, de um agenciamento territorial; em
outro movimento se organiza e traça um território em torno do centro. No último
movimento se sai do agenciamento territorial, em direção a outros agenciamentos. O
ritornelo está sempre relacionado a um agenciamento territorial. O ritornelo “é a
repetição que demarca um território, mas que ao mesmo tempo traça-lhe suas linhas
de fuga” (FERRAZ, 1998, p. 27).
157
Conceitos em torno do espaço e do tempo são sempre esclarecedores no
que se refere à movência dos signos em uma composição sonora. A dinâmica dos
significantes demonstra o quanto o texto sonoro é espacial. Espaços objetivos ou
subjetivos, realistas ou imaginários, podem ser pensados e colocados em
movimento no texto ficcional sonoro. Imaginemos um córrego, em uma
representação naturalista. Todas as curvas e declives podem ser simulados fazendo
o uso dos recursos computacionais descritos anteriormente. Podemos desenhar o
caminho feito pela água (Figura 20) e reproduzir a distância e o ritmo que for
pretendido.
Figura 20: Mobilidade espacial de um córrego
Uma outra situação pode ser forjada. Podemos sintetizar algum som não
identificável, isto é, não referencial, podem ser dadas qualidades de acordo com as
abstrações do compositor, como por exemplo, um som “aerado”, com uma textura
que passe a sensação de uma brisa ou ventania e colocá-lo em um lugar qualquer
que imaginemos, como um labirinto (Figura 21), estreito, alto, com características e
reverberações espaciais diversas, todas possíveis de simulação.
Figura 21: Labirinto sonoro
Com os mesmos recursos, podemos criar situações concretas ou abstratas.
Não só os espaços realistas, mas qualquer espaço, como cenário, como mundo, é
criado sempre considerando a verossimilhança, mesmo que alterado e distanciado
de uma situação mais referencial, essas alterações são contrapontos e tem o seu
ponto de partida em uma noção de similaridade.
158
Em síntese, nas composições sonoras, as representações do espaço com
tendências naturalizantes são feitas a partir de objetos sonoros que apresentam
características físicas, concretas, para formar cenários, possíveis lugares de trânsito
dos sujeitos ficcionais. São representações mais objetivas, como por exemplo,
temos os espaços urbanos, florestas, etc. Sons do vento, do mar, dos animais, de
aparelhos eletrônicos, motores, vozes, comporão os cenários, as paisagens
sonoras, dando forma mais realista.
Por outro lado, as representações do espaço psicológico envolvem
atmosferas subjetivas, projeções vagas, de sensações, expectativas, vontades,
afetos dos personagens e narradores, desde sutis perturbações a delírios e até
crises existencialistas. Os efeitos mais subjetivos podem ser conseguidos utilizando
os mesmos objetos, no entanto serão necessários manejos através de recursos de
edição que modificarão os objetos, seja na velocidade, nas frequências,
modulações, mudanças de ambientações, demonstrando que a visão de quem narra
está perturbada, distorcida. Por exemplo, é muito comum em cenas
cinematográficas, quando algum personagem está pensando ou sonhando o som é
projetado com efeitos de ecos, reverberações, vozes se sobrepondo, alterações de
intensidade dos sons causando ondulações sonoras que podem provocar vertigens
no ouvinte etc.
Os espaços sociais e culturais podem ser indicados por referências que
indicam o meio social, econômico, ideológico e cultural em que as personagens
transitam. Os sons indicam as classes e grupos sociais das personagens através
das suas ideologias, costumes, valores, tradições e posição na sociedade.
A plástica sonora espacial será sempre resultada da capacidade de
descrição somada a visão imaginativa do compositor. Para a concepção
naturalizante do espaço, uma descrição concreta; para uma concepção psicológica
do espaço, uma descrição mais envolvida aos filtros emocionais, resultando em
audições vagas, confusas, delirantes etc. e para uma concepção idealizante do
espaço, uma descrição abstrata.
O compositor pode fazer uso de seus prismas perceptivos para buscar o
espaço. Nessa busca, as probabilidades de visões e planos são infindas, podendo
abarcar desde as lentes da fenomenologia espacial bachelardiana aos conceitos e
noções de duração bergsonianas (tempo) e as frames goffmanianas (espaço) entre
tantas.
159
É por meio da feição do espaço que se atinge uma completude da obra, por
ser ele um recurso de contextualização da ação, pois os elementos de uma narrativa
estão conectados ao espaço e ao tempo. No texto, o recurso responsável por situar
o ouvinte/leitor no ponto de vista do autor/compositor/narrador/personagem é o
espaço. Este espaço apresentado propicia os tipos distintos de visão. A instância
narrativa se dá pela voz e pelo olhar do narrador. Na composição sonora, o narrador
pinta o espaço, mostra contando, conta mostrando. A percepção do espaço é
simultânea à narração. Em qualquer situação vivida, o espaço é uma presença
simultânea, assim, na arte o espaço é signo de simultaneidade, a passagem do
tempo se dá em todos os lugares. Para sentimos o tempo passar, precisamos estar
ocupando algum espaço.
A simultaneidade do espaço somada aos seus aspectos psicológicos e
sociais são índices significativos de ambientes de transito e lugares de
pertencimento dos personagens da narrativa.
5.3.3 Personagens
Os espaços psicológicos e sociais podem trazer indícios do modo de viver,
dos costumes e hábitos ou do modo como cada personagem experiência um espaço
específico físico. O modo de representar com a arte sonora está ligado ao modo de
escuta. São diversas as relações de personagens com o espaço. É o ponto de vista
de cada personagem ante um espaço que vai ser mostrado. Os sons pertencentes a
estes espaços indicam as classes sociais das personagens, as crenças, rotinas,
mentalidade, tradições etc.
A criação do espaço e do tempo narrativo, combinando cena e sumário,
distinguidos por Lubbock (LEITE, 1991, p.15), formando uma pintura dos
acontecimentos, quando a narrativa, geralmente em estilo indireto livre, se confunde
com a narrativa a partir da mente de uma personagem traduzindo a “realidade” com
maior ou menor interferência, que determina o foco narrativo, o ponto de vista,
adequando ao efeito buscado, funcionando como uma espécie de espelho refletor
das idéias do autor.
Georg Lukács desconfia do método descritivo para representar o homem,
entendendo que esse método “se compromete em uma vã competição com as artes
figurativas” alegando: “Aplicado à representação do homem, o método descritivo só
pode transformar o homem em natureza morta” (LUKÁCS, 1965, p. 74).
160
Exemplos da presença direta de uma personagem podem ser verificados
quando há sons que indicam ação, que mostram a presença de alguém, seja
andando, falando ou executando alguma atividade.
Cabe, neste momento, resgatar mais um pensamento de Potebnia: “a
imagem é um predicado constante para sujeitos variáveis”, citada por Chklovski
(CHKLOVSKI, 1976, p. 40). Sob este aspecto, as imagens sonoras que representam
personagens nem sempre são identificáveis e isto é mais uma questão de critérios e
escolhas do compositor do que falta de recursos ou capacidade da linguagem.
O personagem narrador pode ser notado quando há alguma alteração de
consciência. Ex: Na peça se ouve sons de cavalos em cavalgada, logo esses sons
se alteram e reproduzidos lentamente, sugerindo uma imagem executada em slow
motion (câmera lenta)114 Este efeito indica uma alteração mental de quem narra.
Outra forma que denota variação no estado de consciência do narrador-personagem
pode ser conseguida aplicando o efeito de delay (eco), causando repetições ou
reverber (reverberação), simulando outros ambientes, indicando que o narrador-
personagem experimenta estados oníricos ou de loucura, embriaguês etc.
5.3.4 Narrador
Este assunto é de suma importância para o estudo de uma composição
sonora, visto que é o que aproxima a compreensão do ato de composição, pois
sendo o compositor o próprio autor, resta posicionar-se e criar sua estratégia de
narração. Para narrar não basta dispor os objetos sonoros em contiguidade e por
suas naturezas sígnicas. Outro elemento importante em narrativas é a perspectiva
pela qual o narrador narra os acontecimentos da trama. Através dela é possível se
medir o distanciamento que o narrador mantém daquilo que está contando, isto é, o
quanto o discurso é direto ou indireto. Então, como narrar? Quem é o narrador? De
que ângulo fala o narrador? Qual a distância que ele mantém entre o ouvinte (leitor)
e a narrativa. De modo algum estaria nas ambições deste trabalho sequer arranhar
estes questionamentos que atravessaram o século XX e ainda representam desafios
114 Câmera lenta é o efeito especial de cinema e vídeo em que os movimentos e ações são vistos numa duração maior do que a normal, dando a sensação de que o tempo está passando mais devagar. Este efeito cinematográfico sempre é aplicado à imagem/som, que faz com que o tempo lento tenha o efeito sonoro com características mais graves. Quando o efeito é oposto, ou seja, a câmera acelerada, faz com que o som se apresenta com características mais agudas.
161
enormes aos estudiosos da narrativa. No entanto não posso me privar de comentar
que estudar tais temas focando o objeto sonoro é um modo de ampliar o
entendimento tanto do objeto quanto da teoria. Desde os problemas de transição
entre a velha forma de contar histórias e os modos romancistas de vanguarda
apontados por Benjamin e Adorno, até os questionamentos mais modernos, como
os prefácios de Henry James, relacionados aos pontos de vista do narrador, são
apontamentos teóricos aplicáveis em processos de criação sonora narrativa bem
como na análise de tais gêneros.
A grande importância do narrador está na narração como comunicação, ou
seja, a narrativa é um objeto de comunicação, portanto se há narrativa, se
pressupõe que de um lado está o narrador, do outro o ouvinte ou leitor. Daí, a
importância dos códigos. Segundo Barthes:
Os signos do narrador parecem à primeira vista mais visíveis e mais numerosos que os signos do leitor (uma narrativa diz mais frequentemente eu que tu); na realidade, os segundos são simplesmente mais disfarçados que os primeiros; assim, cada vez que o narrador, cessando de ‘representar’, relaciona fatos que conhece perfeitamente mas que o leitor ignora, produz-se, por carência significante, um signo de leitura, porque não teria sentido que o narrador desse a si mesmo uma informação [...] isto é um signo do leitor, próximo do que Jakobson chama de função conativa da comunicação. (BARTHES, 1972, p. 47)
Roland Barthes fala de três concepções que apontam quem é o doador da
narrativa: na primeira, a narrativa é emitida por uma pessoa, por um autor. Nesta
concepção a narrativa “não é mais que a expressão de um eu que lhe é exterior”. Na
segunda concepção o narrador tem uma consciência total, “aparentemente
impessoal” e conta a história de uma posição privilegiada, de um “ponto de vista
superior, o de Deus”, sabe tudo o que se passa com os personagens e, na terceira
concepção, o narrador limita sua narrativa “ao que podem observar ou saber os
personagens”. Barthes considera essas concepções constrangedoras por serem
“realistas”, “como se a narrativa se determinasse originalmente em seu nível
referencial” (BARTHES, 1972, p. 48).
Ora, ao menos em nosso ponto de vista, narrador e personagens são essencialmente ‘seres de papel’; o autor (material) de uma narrativa não se pode confundir em nada com o narrador desta narrativa; os signos do narrador são imanentes à narrativa, e por conseguinte perfeitamente acessíveis a uma análise semiológica; mas para decidir que o próprio autor (que se mostre, se esconda ou se
162
apague) disponha de ‘signos’ com os quais salpicaria sua obra, é necessário supor entre a ‘pessoa’ e sua linguagem uma relação signalética que faz do autor um sujeito pleno e da narrativa a expressão instrumental desta plenitude: a isto a análise estrutural não se pode resolver: quem fala (na narrativa) não é quem escreve (na vida) e quem escreve não é quem é. (BARTHES, 1972, p. 48-9)
Como exemplo, usarei duas teorias para a compreensão desta questão. A
primeira é a teoria do foco narrativo, baseada em prefácios de Henry James e
análises de Percy Lubbock; a segunda se baseia no texto O ponto de vista na ficção,
de Norman Friedman. Ligia Chiappini Moraes Leite, em seu livro O foco narrativo
(1991), comenta que James defendia um “ponto vista único” e tinha antipatia pelas
“interferências que comentam e julgam, pelas digressões que desviam o leitor da
história”.
E tudo em nome da VEROSSIMILHANÇA, como é também em seu nome que ele ataca a NARRATIVA em primeira pessoa. O ideal, para James, e que passa a ser o ideal para muitos teóricos a partir dele, é a presença discreta de um narrador que, por meio do contar e do mostrar equilibrados, possa dar a impressão ao leitor de que a história se conta a si própria, de preferência, alojando-se na mente de uma personagem que faça o papel de REFLETOR de suas idéias. Uma espécie de centro organizador da percepção, que tenha uma rica sensibilidade, uma inteligência penetrante, para a expressão da qual têm de ser trabalhados coerentemente os outros elementos da narrativa: da linguagem ao ambiente em que se movimentam as personagens. (LEITE, 1991, p. 13)
Segundo a autora, da mesma maneira que Henry James, Lubbock também
condenava as interferências do narrador e só considerava “arte de ficção” as
narrativas que não cometiam essa indiscrição. Para Lubbock, a “distinção entre
narrar (telling) e mostrar (showing)” tinham a ver com a “intervenção ou não do
narrador”.
Quanto mais este intervém, mais ele conta e menos mostra. Por outro lado, completa essa dupla (narrar e mostrar) a oposição CENA e SUMÁRIO (PANORAMA). Na CENA, os acontecimentos são mostrados ao leitor, diretamente, sem a mediação de um NARRADOR que, ao contrário, no SUMÁRIO, os conta e os resume; condensa-os, passando por cima dos detalhes e, às vezes, sumariando em poucas páginas um longo tempo da HISTÓRIA. (LEITE, 1991, p. 14)
Lubbock não defendia “diretamente uma dessas possibilidades, justificando
a sua escolha pela adequação da forma ao tema e ao efeito que se busque” (LEITE,
163
1991, p. 15). Leite explica que, depois de Lubbock surgiram muitos teóricos
dedicados a questão do narrador, como Wayne Booth. Para ele “o autor não
desaparece, mas se mascara constantemente, atrás de uma personagem ou de uma
voz narrativa que o representa”. Leite tece o seguinte comentário:
A ele devemos a categoria do AUTOR IMPLÍCITO, extremamente útil para dar conta do eterno recuo do narrador e do jogo de máscaras que se trava entre os vários níveis da narração. (LEITE, 1991, p. 18)
Leite fala também das “visões” de Jean Pouillon (LEITE, 1991, p. 19), que
em seu livro O tempo no romance, “procura adaptar uma visão fenomenológica do
mundo, inspirada em Sartre, a uma teoria das visões na narrativa, articulada à
questão do tempo”. Para ele, haveria três possibilidades na relação narrador-
personagem: a VISÃO COM, a VISÃO POR TRÁS e a VISÃO DE FORA.
Na VISÃO POR TRÁS, O narrador domina todo um saber sobre a vida da personagem e sobre o seu destino. É onisciente, poderíamos dizer. Sabe de onde parte e para onde se dirige, na narração, o que pensam, fazem e dizem as personagens; uma espécie de Deus, ou demiurgo que lhes tolhe a liberdade. [...] Na VISÃO COM, o NARRADOR limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos. Renunciando à visão de um Deus que tudo sabe e tudo vê (e a quem, fatalisticamente, se submete o destino dos seres ficcionais, como o destino dos seres reais para a visão cristã), assume-se aqui a plena liberdade da criatura jogada no mundo, capaz de, sartrianamente, assumir o nada para ser. [...] a VISÃO DE FORA, em que se renuncia até mesmo ao saber que a personagem tem, e o narrador limita-se a descrever os acontecimentos, falando do exterior, sem que possamos nos adentrar nos pensamentos, emoções, intenções ou interpretações das personagens. (LEITE, 1991, p. 19-21)
Norman Friedman retoma essas ideias dos diversos críticos literários sobre o
foco narrativo e o desaparecimento do autor no século XX. Para ele, o ponto de vista
na ficção é a tensão fundamental da literatura: Mostrar ou contar. Ele compara a
literatura com outras artes, destacando o grau de dificuldade em mostrar e contar de
cada arte:
A arte da literatura, por oposição às outras artes, é, em virtude de seu médium verbal, a um só tempo amaldiçoada e abençoada com uma capacidade fatal de falar. Seus vícios são os defeitos de suas virtudes: de um lado, sua amplitude e profundidade de significação excedem grandemente o escopo da pintura, da música ou da escultura; de outro, sua aptidão para projetar as qualidades sensoriais de pessoas, lugares e eventos é menor
164
na mesma medida. Pode-se expressar mais ideias e atitudes, apresenta imagens qualitativamente mais débeis. Basta ao pintor servir-se de sua paleta para obter a nuança certa no local certo; mas o escritor fica continuamente abalado entre a dificuldade de mostrar o que uma coisa é e a facilidade de dizer como se sente a respeito dela. O escultor pode apenas mostrar; o músico, excluindo-se a música programática, não pode nunca narrar. (FRIEDMAN, 2002, p. 168)
Cabe aqui localizar a arte sonora dentro do contexto apresentado por
Friedman. O estudo dos objetos sonoros como elementos de textos sonoros
baseados em estruturas literárias nos faz compreender que se trata de uma
linguagem intermediária. A condição diegética do objeto sonoro o situa entre as duas
artes: literatura e música. A linguagem sonora não musical não tem a mesma
dificuldade encontrada na linguagem literária, muito menos na linguagem musical,
em projetar qualidades sensoriais, isto é, de mostrar o que uma coisa é. A
capacidade da composição sonora em apresentar imagens é comparável com a da
pintura, considerando que ambas omitem aspectos sensoriais e só projetam
imagens concernentes ao modo de percepção a que se equivalem. Ao mesmo
tempo, sua dificuldade em descrever o que se sente é maior que na literatura e na
música. É importante esclarecer que o que está sendo exposto só funciona em
relação às inferências e não às exposições fenomenológicas, só atinge a imagem e
não a ideia.
Para aprofundar mais um pouco o entendimento da capacidade de contar e
mostrar em relação aos objetos sonoros, considerando o que foi ponderado
anteriormente quanto ao fato desta linguagem estar situada entre a música e a
literatura e não ter amparo teórico para esta questão, farei alguns paralelos entre
duas teorias: uma literária, sobre o ponto de vista na ficção, de Friedman; e outra
teoria da música, que trata das funções diegéticas da música usada no cinema, de
Claudia Gorbman.
Começarei pelas definições de Gorbman (1987), que separou em três
categorias a música que se utiliza no cinema, segundo a sua relação com o espaço
e tempo da narrativa: música diegética, música não diegética e música meta
diegética. Para isso, Gorbman se apoiou nas definições de diegesis de Gérard
Genette e Étienne Souriau, definindo então diegesis como “mundo espaço-temporal
165
narrativamente implícito das ações e personagens” (GORBMAN, 1987, p. 21).
Falemos, então, sobre as categorias:
• Música diegética - é a que faz parte do contexto ficcional, é tocada por uma fonte real no filme (em um bar, alguém cantando ou o som mecânico de alguma música). É uma música que poderia ser percebida pelas personagens.
• Música não diegética – é a que não faz parte do contexto ficcional, é aquela que toca "fora" do acontecimento, que acompanha a cena do filme (a música que toca quando surge o herói, como o Batman, Zorro etc.). Só quem assiste sabe da música, as personagens desconhecem-na.
• Música meta diegética - é aquela que se refere ao que se passa no pensamento ou nas emoções de um personagem. A música usada pode indicar o estado psíquico de algum personagem, nos permitindo "ler" os seus pensamentos.
Ajustando estas concepções ao objeto sonoro (que inclui o musical),
podemos falar em sons diegéticos, não diegéticos e meta diegéticos. Os sons
diegéticos são todos os sons que pertencem ao ambiente ficcional, ao lugar dos
acontecimentos (vozes, sino de uma igreja, apito de fábrica, sirene de um carro
policial, mugido de um boi, trovão etc.); enquanto os não diegéticos são sons que
não pertencem ao evento ficcional, mas é usado para dar algum reforço ou efeito,
como alguns sons engraçados que geralmente são associados a cenas também
engraçadas em filmes e animações. Por exemplo, sons que dão mais graça a um
tombo de um personagem, sons que são usados para socos e pontapés,
escorregões, como os sons em comédias que acompanham as “bolas foras”, os
“micos”. O drama e o suspense também tem o seu repertório sonoro usado para se
alcançar efeitos. A música também é parte desse repertório, não se pode esquecer,
música é som, quando separamos música e som é simplesmente para efeito
didático. Os sons meta diegéticos são os que estão ligados ao espaço psicológico
dos personagens, como as vozes da consciência (geralmente representadas em
animações por um anjinho e um diabinho) ou quando o personagem escuta a “voz
de Deus”, músicas que indicam algum sentimento do personagem, enfim, sons que
estão relacionados ao que pensa, sente ou imagina o personagem. Essas
concepções já satisfazem e já podemos consultar a teoria do ponto de vista ficcional.
Friedman entende que o grande conflito entre mostrar e contar está
diretamente relacionado ao grau de interferência autoral, ou seja, quanto mais o
autor aparece, mais ele conta e, quanto menos ele interfere, mais ele mostra. O
166
estudo do ponto de vista, segundo Friedman, oferece o “modus operandi para
distinguir os possíveis graus de extinção autoral na arte narrativa)” (FRIEDMAN,
2002, p. 169).
Segundo Leite, Norman Friedman tentou sintetizar as diversas teorias dos
críticos mencionados antes, para chegar a uma “tipologia mais sistemática, e, ao
mesmo tempo, mais completa” (LEITE, 1991, p. 25), levantando questões a serem
perguntadas: Se há alguém narrando, quem é? De que posição ou ângulo conta a
história? Que canais de informação usa para comunicar a história e a que distância
ele coloca o leitor da história? Sobre estas questões, diz Friedman:
E, ademais, já que nossa principal distinção é entre “contar” e “mostrar”, a sequência de nossas respostas deveria proceder gradualmente de um extremo a outro: da afirmação à inferência, da exposição à apresentação, da narrativa ao drama, do explícito ao implícito, da ideia a imagem. (FRIEDMAN, 2002, p. 172)
Para se chegar do geral para o particular, Friedman define concretamente a
sua principal distinção: “sumário narrativo (contar) versus cena imediata (mostrar)”.
Friedman forneceu elementos para responder a estas questões especificando
categorias de narrador, no entanto, a forma como serão apresentados a seguir
sofreu ajustes, inclusive alguns baseados nos conceitos de sons diegéticos, mas
sem prejuízos, para se adequar ao entendimento de uma composição sonora, mas o
foco principal é marcar o percurso entre a subjetividade e a objetividade; quanto
mais subjetivo, mais o autor aparece, mais ele conta, quando mais objetivo, menos
interferência do autor/narrador, mais ele mostra:
• Autor Onisciente Intruso – o foco deste tipo é amplo, total. Onisciência
neste contexto significa um ponto de vista totalmente ilimitado. No texto
encontram-se sinais de uma visão que somente o autor poderia ter, ou seja,
isso indicia a sua presença. O autor onisciente pode focar o lugar dos eventos
de qualquer ponto no espaço e no tempo. O sumário narrativo cobre qualquer
extensão ou para além do tempo e espaço. Esse é o tempo-espaço da
subjetividade, que pode graduar, degradar etc. A intromissão do autor esta na
administração de sons não diegéticos e meta diegéticos.
167
• Narrador Onisciente Neutro – Este ponto de vista se alcança dando um
passo em direção à objetivação. O autor passa o bastão para o narrador. O
narrador é onisciente, mas evita se expor. As características são as mesmas
do AUTOR ONISCIENTE INTRUSO, se distinguindo pela ausência de
intromissões autorais diretas.
• “Eu” como testemunha – o passo que o narrador dá é o de entrar na
estória. O NARRADOR-TESTEMUNHA é um personagem, dentro da estória,
mais ou menos envolvido na ação, mais ou menos familiarizado com os
personagens principais, como personagem secundária que pode observar,
desde dentro, os acontecimentos. O autor escolhe deixar o personagem
contar ao leitor/ouvinte aquilo que ele, como observador, poderia descobrir,
como explica Friedman:
Assim como declinou comentários pessoais ao mover-se do Autor Onisciente Intruso para o Narrador Onisciente Neutro, ao mover-se para a categoria “Eu” como Testemunha, ele entrega completamente seu trabalho ao outro. (FRIEDMAN, 2002, p. 175)
Mais um passo é dado quando o narrador transfere a responsabilidade da
narrativa para um dos personagens principais, que é o NARRADOR, personagem
central.
• Narrador protagonista – Com a transferência da narrativa, isso implica em
alguns pontos de vantagem perdidos devido ao papel subordinado na estória.
Aí desaparece a onisciência. Ele narra de um centro fixo, limitado quase que
exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos.
• Onisciência seletiva múltipla – Aqui se chega a eliminação do autor. Neste
caso, o leitor “escuta a ninguém” e “a estória vem diretamente das mentes
dos personagens”. Segundo Friedman:
“O próximo passo em direção à objetivação do material da estória é a eliminação não somente do autor, que desaparece com o espectro do ‘Eu’ como Testemunha, como também de qualquer espécie de narrador.” (FRIEDMAN, 2002, p. 177)
168
Portanto, sem autor e sem narrador, sem sons não diegéticos ou meta
diegéticos. Até este ponto, o autor e, depois, o narrador administravam os sons extra
diegéticos. Os sons a serem ouvidos são os mesmos sons que estão se
apresentando aos personagens. A partir deste ponto os sons são mais realistas, os
signos mais referenciais. A tendência é ir na direção da cena, diferenciando-se
essencialmente em relação à onisciência normal por transmitir “pensamentos,
percepções e sentimentos” à medida que eles passam através da mente (cena), “ao
passo que o outro os sumariza e explica depois que ocorrem (narrativa)”
(FRIEDMAN, 1987, p. 177).
• Onisciência seletiva – No afunilamento focal, aqui o leitor/ouvinte fica
limitado à mente de apenas um dos personagens, e não sendo mais permitida
uma composição de diversos ângulos. Como estamos tratando de audição,
devemos compreender que diferentemente da visão, que precisamos estar de
frente e direcionar o olhar para ver, a audição é ampla, percebemos os sons
vindos de todos os lados, ângulos e distâncias. Neste caso, os focos são
simulações de distâncias entre os objetos e não um olhar artístico.
• O modo dramático – Já eliminados os pontos de vista do autor, do narrador
e do personagem, são eliminados os estados mentais e as informações
limitam-se ao que os personagens falam e fazem, sem maiores
detalhamentos. Não se sabe o que eles percebem e pensam, só se ouvem os
seus diálogos e o leitor não ouve ninguém senão os próprios personagens.
• A câmera – Para Friedman, este “parece ser o último em matéria de exclusão
autoral”. Neste ponto de vista o objetivo é “transmitir, sem seleção ou
organização aparente um ‘pedaço da vida’ da maneira como ela aparece”
(FRIEDMAN, 1987, p. 179). Assim é uma câmera, apenas faz um recorte da
paisagem sonora, de forma realista, apenas flashes da realidade.
Para Norman Friedman, a escolha do mesmo ao se escrever ficção é, no
mínimo, tão crucial quanto à escolha da forma do verso ao se compor um poema; e
da mesma forma como há coisas que não se consegue que sejam ditas em um
soneto, cada uma das categorias detalhadas por ele possuem amplitude provável de
funções que consegue desenvolver dentro de seus limites e cada tipo de estória
169
requer o estabelecimento de um tipo particular de ilusão que a sustente
(FRIEDMAN, 1987, p. 180).
Vimos aqui que o foco vai se estreitando, a cada passo o narrador vai
perdendo a onisciência e o enquadramento que é passado ao leitor/ouvinte vai
ficando mais recortado. A partir daí, dá-se o desaparecimento manhoso do narrador,
na medida em que se deseja. Qualquer efeito utilizado pelo autor muda o foco
narrativo, ou qualquer ponto de vista do narrador exige um conhecimento técnico do
compositor quanto aos recursos a serem utilizados para proporcionar o efeito
auditivo correspondente à intenção narrativa, pois quem conta na mesma medida se
mostra; e quem mostra, em medida oposta, não se leva em conta.
Para ilustrar essas questões, mostro um exemplo de ponto de vista do
narrador: um compositor poderia criar uma paisagem sonora contendo relógios. Para
isto, poderia utilizar sons de relógios, como o clássico tic-tac, em posições
diferentes, controlando as espacialidades. Isto seria uma descrição realista, a partir
de um foco narrativo de um narrador-observador câmera. Nesta cena não se detecta
a presença de nenhuma personagem. Agora, imaginemos o compositor aplicando
alguns recursos (efeitos e filtros) nas pistas dos relógios da mesma peça sonora,
fazendo com que o tic-tac soasse como um tlic-tlac lento, sugerindo a imagem de
relógios derretendo ou amolecidos, como o quadro A persistência da memória115
(figura 22), de Salvador Dali116, com seus relógios moles. Esta imagem seria uma
descrição a partir do ponto de vista de um narrador-observador oniciente, no caso de
uma narrativa realista, pois o panorama criado não pode ser considerado como uma
descrição realista. O olhar de quem descreveu a imagem, seja o narrador ou uma
personagem, é um olhar delirante, irreal, neste caso específico, surreal. Esse olhar
delirante retrata um ponto de vista típico na poesia ou na narrativa fantástica.
115 A Persistência da Memória é uma pintura de 1931 de Salvador Dalí. A pintura está localizada na coleção do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque. 116 Salvador Domingo Felipe Jacinto Dali i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol (1904 —1989), conhecido apenas como Salvador Dalí, foi um importante pintor surrealista italiano.
170
Figura 22: A persistência da memória, de Salvador Dali117
Estas alterações ou contrapontos podem ser consideradas intromissões do
autor/narrador. Ao narrador cabe mostrar e contar, compondo um quadro
harmonioso. Fazendo uma analogia com a linguagem musical, uma narrativa sonora
desacompanhada da descrição sonora seria como um solo melódico à capela, isto é,
sem acompanhamento harmônico.
Como dissemos anteriormente, os elementos de uma narrativa estão ligados
ao espaço e ao tempo. O espaço apresentado é o espaço pré-visto pelo narrador ou
por algum personagem. Os planos espaciais se destacam porque o narrador joga luz
em determinados pontos que os seus procedimentos artísticos indicam. O narrador é
quem pinta o espaço. O compositor, por meio da narração faz conduções, atrai,
arrasta, desloca, direciona, guia o ouvinte para lugares sob tempos psicológicos
variáveis, podendo oferecer alternativas de fugas e acomodações. Os signos
sonoros são senhas para a experiência, que pode ocorrer sob quaisquer condições
fenomenológicas, permitindo ao ouvinte deslizar entre visões fenomenológicas e
semantizadas.
Para um compositor, a descrição em um texto sonoro pode ser um recurso
lúdico, um sofisma de distração (por que não?), uma sedução para a evasão que
pode levar a algum lugar ou simplesmente levar o ouvinte a um beco sem saída (os
lugares precisam acertar?). O movimento espaço-temporal pode nos levar a uma
charada, a um enigma, a um labirinto, a um koan.
5.4 Descrição
117 Disponível no site do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque. Consulta feita em 11/09/2013. In http://www.moma.org/collection/browse_results.php?object_id=79018
171
Segundo Philippe Hamon (1972, s/n) a descrição é um “lugar privilegiado,
onde se organiza (ou se destrói) a legibilidade de toda a narrativa”, é o “lugar em
que a narrativa marca uma pausa ao mesmo tempo que se organiza”.
[...] a descrição será o lugar onde a narrativa se interrompe, onde se suspende, mas, igualmente, o espaço onde se armazena a informação, onde se condensa e se redobra, onde personagens e cenário, por uma espécie de ginástica semântica, entram em redundância; o cenário confirma, precisa ou revela a personagem como feixe de traços significativos simultâneos, ou, então, introduz um anúncio para o desenrolar da ação. (HAMON, 1972, s/n)
Hamon vê a descrição como complemento, como expansão da narrativa. O
que é a descrição? No que se difere da narração? As noções de descrição devem
ser acompanhadas de outras reflexões relacionadas ao papel ou à função da
descrição em obras artísticas. Comecemos a especular a descrição naquilo em que
ela provoca mais polêmica: no equilíbrio entre o seu virtuosismo e a sua
necessidade. Qual é a medida de descrição que faz a distinção entre o supérfluo e o
necessário? Até que ponto uma descrição acresce em significações uma obra? O
bom ou o mau emprego deste ingrediente em uma narrativa pode dar vivacidade a
obra ou torná-la tediosa, enfadonha, ruidosa.
Georg Lukács (1965) tem um posicionamento mais rigoroso quanto à
narração e descrição. Está bem clara a sua posição na sua afirmação: “a narração
distingue e ordena. A descrição nivela todas as coisas” (LUKÁCS, 1965, p. 62).
Enquanto faz elogios a Tolstoi, em seu romance Karenina ao dizer que “Tolstoi não
descreve uma ‘coisa’: narra acontecimentos humanos” (LUKÁCS, 1965, p. 45), faz
também críticas a Zola, em seu romance Naná, pela descrição minuciosa que,
apesar de todo o seu virtuosismo literário, não passa de “uma digressão dentro do
conjunto do romance”, pois os acontecimentos são “debilmente ligados ao entrecho
e poderiam facilmente se suprimidos” (LUKÁCS, 1965, p. 44).
Lukács implica com a tendência naturalista e argumenta que a descrição ter
passado a ser um método dominante da composição épica se deu em um período
em que se perdeu “a sensibilidade para os momentos essenciais da literatura épica”.
Afirma ainda que a descrição servia para “encobrir a carência de significação épica”,
e que esta era uma relação de causa e conseqüência. Segundo Lukács:
O predomínio da descrição não é apenas efeito, mas também se torna causa: causa de um afastamento ainda maior da literatura em
172
relação ao significado épico. A tirania da prosa do capitalismo sobre a íntima poesia da experiência humana, a crueldade da vida social, o rebaixamento do nível de humanidade são fatos objetivos que acompanham o desenvolvimento do capitalismo e desse desenvolvimento decorre necessariamente o método descritivo. (LUKÁCS, 1965, p. 61)
Para Lukács, o que se descreve? Descrevem-se “situações estáticas,
imóveis”, “estados de alma dos homens ou estado de fato das coisas” ou “naturezas
mortas” (LUKÁCS, 1965, p. 65-66). Por esta perspectiva, se a descrição de um
estado de ânimo de uma personagem ou a descrição de um cenário ou de coisas
não estiver conectada essencialmente às ações narradas, será irrelevante, sem
propósito narrativo. Assim, conforme Lukács:
De qualquer modo, o fato de se perder a ligação (própria da narração) entre as coisas e a função que elas assumem em concretos acontecimentos humanos implica na perda de significação artística das coisas. (LUKÁCS, 1965, p. 66)
A descrição é o aspecto da literatura que mais se aproxima das artes
visuais. A descrição em uma composição sonora tem uma proximidade maior ainda.
Como já dissemos, muitos conceitos das artes visuais são assimilados pelas
técnicas e procedimentos composicionais. Uma composição descritiva não se faz
apenas com a matéria sonora referencial, ou seja, não basta para o compositor ter
disponibilidade de samplers, por exemplo, de sons naturais como o latido de um
cachorro, o cricrilar de um grilo, o som do vento etc. É necessário posicionar esses
elementos no espaço, fazer enquadramentos, ter uma visão panorâmica, enfim,
pintar a imagem, constituir a paisagem, criar a atmosfera a partir de noções de
espacialidade, perspectiva, profundidade etc., para estabelecer as camadas, os
planos. Descrever por imagens, não de uma natureza morta, mas em movimento,
pintar quadros de movência, como uma verdadeira écfrase sonora.
Nos tratados antigos de retórica e poética, encontram-se uma figura de
retórica de descrição conhecida como écfrase, cujo termo grego é ékphrasis,
equivalendo à descrição latina, descriptio, que associada ao ut pictura poesis118
expressado por Horácio (2008, 55)119 sempre motivaram discussões sobre as
118 Expressão usada por Horácio na sua Arte Poética, que significa “como a pintura, é a poesia”. 119 HORACIO FLACO, Quinto. El arte poetica de Horacio, Ó Epístola a los Pisones. traducida en verso castellano por D. Tomas de Yriarte. Madrid, en la Imp. Real, 1777. Reproducción digital de 2008 a partir de la edición de Colección de Obras en verso y prosa de D. Tomás de Yriarte. Tomo IV, Madrid, en la Imp. Real,
173
qualidades visuais que são próprias da pintura comparadas às qualidades da
oratória e do discurso. A écfrase é um meio de descrever, de retratar, de produzir um
“quadro verbal” de um objeto, de um lugar, de uma personagem.
Se aplicarmos o conceito de écfrase ao objeto sonoro temos a écfrase
sonora, que é uma pretensiosa representação sonora de uma representação visual.
Uma paisagem sonora, uma escultura sonora, são descrições, são mostrações, para
que o receptor (ouvinte) as assistam, as observem. Não se trata de substituir ou
traduzir um suposto lugar ou objeto original, mas de construir um novo lugar, um
novo objeto.
Compor é desenhar um lugar, preestabelecer o que tem por lá, pôr algumas pedras, umas passagens, umas saídas, criar umas ranhuras que possam, quem sabe, atrapalhar uma visão que era clara. E este é o plano de composição pelo qual se passeia. (FERRAZ, 2005, p. 97)
O artista do som, ao descrever um espaço, ao constituir a imagem sonora da
paisagem imaginada não tem o domínio de garantir que o receptor a perceba como
ele deseja, pois isto está na dependência do modo de escuta, da imersão do
ouvinte, no entanto, cabe ao artista imprimir o seu “ponto de vista”, pois a arte se
distingue da natureza. Por seus procedimentos, o artista aponta, focaliza, ilumina,
destaca determinados pontos, de acordo com o plano e a perspectiva idealizados.
Este enfoque do compositor irá definir o caráter da descrição, se é simplesmente
referencial ou se está sob a lente da poeticidade, se é fato ou se é poesia.
5.5 Poesia
Eu ouço você dizer: "Isso tudo não é fato; é poesia." Bobagem!
A má poesia é falsa, eu suponho; mas nada é mais verdadeiro
do que a verdadeira poesia. 120
Charles Peirce
A forma poética de pensar não é lógica, é analógica, baseia-se nas simetrias
e assimetrias. Como regras que condicionam as associações de um objeto sonoro a 1777, pp. LXV, 1-124. Localización: Biblioteca Nacional (España). Disponível em http://www.traduccionliteraria.org/biblib/H/H101.pdf. Acesso: 21.10.13 120 (CP, 2.315.)
174
outros temos a analogia das semelhanças, em que se verificam identificações e
afinidades, mas pode se associar por meio da analogia dos contrários, por
antagonismo, por repulsão, com objetos opostos, antitéticos, que provocam o efeito
estético do dualismo, muito comum em textos poéticos, que conduz ao
estranhamento provocado pela sensação antagônica ou paradoxal. A poesia se faz
pelo desvio da lógica contígua, criando lógicas, criando enigmas para serem
decifrados.
Da mesma maneira como ficou compreendido que as noções de texto se
estendem para outras linguagens, podemos entender que esta lógica se aplica à
noção de obra de gênero literário, no caso, a poesia. Processos criativos
relacionados à arte verbal são aplicáveis a outras artes. Temos, nesta parte deste
trabalho, a pretensão de mostrar o potencial do objeto sonoro submetido aos
procedimentos poéticos em composições sonoras.
É evidente que muitos dos procedimentos estudados pela Poética não se confinam à arte verbal. Podemos reportar-nos à possibilidade de converter O Morro dos Ventos Uivantes em filme, as lendas medievais em afrescos e miniaturas, ou L’aprés-midi d’un faune em música, balé, ou arte gráfica. Por mais irrisória que possa parecer a idéia da Ilíada e da Odisséia transformadas em histórias em quadrinhos, certos traços estruturais de seu enredo são preservados, malgrado o desaparecimento de sua configuração verbal. O fato de discutir-se se as ilustrações de Blake para a Divina Comedia são ou não adequadas, é prova de que as diferentes artes são comparáveis. (JAKOBSON, 2003, p. 119)
A citação acima, de Roman Jakobson, trata da potencialidade de conversão,
de tradução intersemiótica. O que estamos tratando é da possibilidade de se gerar
textos sonoros, a partir de uma ideia, de um pensamento original e não de se
transcrever um texto verbal para outro sistema sígnico, baseando-se em
comparações e associações. Neste aspecto, temos também um respaldo em
Jakobson:
Em suma, numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas a toda a teoria dos signos, vale dizer, à Semiótica geral. Esta afirmativa, contudo, é válida tanto para a arte verbal como para todas as variedades de linguagem, de vez que a linguagem compartilha muitas propriedades com alguns outros sistemas de signos ou mesmo com todos eles (traços pansemióticos). (JAKOBSON, 2003, p. 119)
175
Jakobson afirma que a poesia é um “fenômeno universal, exatamente como
a linguagem”. Diz ainda que ela “é o domínio mais criador da linguagem” e que a sua
questão fundamental está “nas relações entre som e sentido” (JAKOBSON, 1973, p.
5-6).
Antônio Cândido (1996, p. 9) escala como fundamentos do poema: a
sonoridade; o ritmo; o metro e o verso. Destes, vamos nos deter no verso e na
sonoridade, mais precisamente no seu recurso mais usado para se obter efeitos
especiais de sonoridade no verso; a rima.
O que diz Jakobson, considerado por Haroldo de Campos como “o poeta da
linguística”, sobre rimas e versos? O meu interesse por estudar estes aspectos da
poesia se dão pelo fato de que terei que deixar o mais claro possível a relação deste
gênero com os objetos sonoros e para iniciar um estudo como este o melhor é,
seguindo o conselho do próprio “poeta da linguística”: “começar pelos polos”
(JAKOBSON, 1973, p. 6) e não se ocupar das “formas transitivas”, mistas, híbridas,
isto é, sem rima, sem métrica, sem verso, como o poema em prosa do Romantismo.
Vamos começar por estudar o verso. Aqui também é prudente manter o
conselho de Jakobson, que se harmoniza com a conclusão a que chegou
Tomachevski, citado por Lotman:
Será mais natural e mais fecundo estudar o verso e a prosa não como dois domínios de fronteiras sólidas, mais como dois pólos, dois centros de atracção em volta dos quais se dispõem historicamente fatos reais [...] É legítimo falar de fenômenos mais ou menos prosaicos, mais ou menos versificados. (TOMACHEVSKI apud LOTMAN, 1978, p. 183)
Fazer a distinção entre verso e prosa como polos é necessário para o
estudo da poesia, como uma forma mais típica. É mais propício para se chegar às
questões fundamentais, pois é sempre injusto se estabelecer fronteiras entre
conceitos. Mais importante em um texto é identificar as “marcas distintas do verso e
da prosa” (LOTMAN, 1978, p. 183).
Versus (verso) “quer dizer ‘retorno’, um discurso que comporta regressos”.
No verso encontramos todas as unidades linguísticas. “De onde vem a importância
da repetição”? [...] “a repetição desempenha um papel de que estamos conscientes”.
“Projeta-se na linguagem poética o princípio da equivalência na sequência”
(JAKOBSON, 1973, p. 6).
176
Segundo Boris Umbegaun (apud LOTMAN, 1978, p. 183), “o verso é um
discurso ordenado, organizado, isto é, um ‘discurso não livre’, ele declara que a
própria noção de verso livre é uma antinomia lógica”. A liberdade do verso livre se
dá apenas por não possuírem restrições métricas.
Quanto à rima, Antonio Cândido afirma que todo poema é basicamente uma
estrutura sonora e que a rima é o seu recurso mais usado para se obter efeitos
especiais de sonoridade no verso. Diz que ela nunca foi abandonada e que uso do
verso livre, que tinha ritmos mais pessoais ela pôde ser deixada de lado, mas no
verso metrificado, ora foi usada, ora não. Quanto à sua função, discorre:
A função principal da rima e criar a recorrência do som de modo marcante, estabelecendo uma sonoridade continua e nitidamente perceptível no poema. Frequentemente a nossa sensibilidade busca no verso o apoio da homofonia final; e do sistema de homofonias de um poema extrai um tipo próprio de percepção poética, por vezes independente dos valores semânticos. E o esqueleto sonoro formado pela combinação das rimas. (CÂNDIDO, 1996, p. 40)
Diz ainda Cândido que, de modo geral, “a poesia moderna se apoia mais no
ritmo do que na rima” e que a poética sempre esteve ocupada com os tipos de rimas
e os modos de combiná-las, distinguindo diversas modalidades e estabelecendo
regras:
Estas chegaram ao máximo de exigência com os parnasianos. Todas visam a evitar a banalidade, de um lado, o preciosismo, de outro; a extrair o máximo da sonoridade da combinação; a determinar a distância e a posição das rimas. Mas todas estas regras são relativas, e o poeta pode fazer boa poesia, da mais convincente eficácia sonora, violando muitas delas. (CÂNDIDO, 1996, p. 40)
A definição de poesia já foi limitada a um o gênero da Literatura
caracterizado pelo uso da linguagem metrificada, do verso e da rima. As concepções
modernas de poesia admitem a poesia não metrificada, os versos livres, a ausência
de rimas, desde que nelas existam propriedades artísticas e/ou ficcionais.
A poesia não se distingue da prosa literária pela presença da rima (há poemas sem rima), nem do metro (há poemas de metro irregular ou sem metro), nem do ritmo (a prosa literária também pode ter um ritmo poético), nem da estrofe (como há romances sem divisão em capítulo, assim há poemas sem divisão estrófica). A diferença reside na presença ou não do verso. Verso, do latim versus, significa “retorno”, “volta para trás”; ao passo que prosa, do latim prorsus,
177
significa “ir para a frente”, “avançar sem limites”. (D’ONOFRIO, 1983, s/n)
Na visão semiótica de Décio Pignatari, na poesia predominam as formas; na
prosa, os conceitos. A “poesia tenta ser ou imitar o objeto ao qual se refere, por meio
das formas analógicas” (PIGNATARI, 2004, p. 24).
As analogias ocorrem nos signos referenciais, nas transferências semânticas
semoventes (metáforas) e nos efeitos sonoros (rimas, assonâncias, paranomásias,
anagramas etc.).
O modo poético de ver o mundo não é lógico, é analógico. O modo de
conceber o mundo é proveniente do ponto de vista. O método de organizar objetos
sonoros em estruturas textuais é analógico. É assim com a arte, pois na voz de
Potebnia “não existe arte e particularmente poesia sem imagem” (apud
CHKLOVSKI, 1970, p.39). Por ter este e outros aspectos que são comuns entre as
linguagens, a arte sonora pode se valer de conhecimentos relacionados aos
procedimentos de outras artes, principalmente das noções de pintura, literatura e
música (aqui é ressaltada a distinção entre arte sonora e arte musical).
5.6 Para além da potencialidade textual do objeto sonoro
A língua sonora, a linguagem sonora está em um local de interseção. Suas
parecenças com as linguagens verbal, musical e pictória são maiores do que
podemos imaginar. A história das artes mostra que simbioses entre musica/pintura,
pintura/literatura, literatura/musica são antigas. Bem sabemos que no Renascimento,
os compositores estudavam retórica clássica com o intento de compor peças
musicais persuasivas, porém nos tratados de retórica já se encontravam o conceito
de écfrase, que consistia em uma técnica retórica de fazer uma representação
verbal de uma representação visual. O padre francês Louis-Bertrand Castel é citado
por Lévi-Strauss (1997, p. 99) por ter ficado famoso no século XVIII graças à
invenção do cravo ocular (Clavecin pour les yeux), ou cromático. Um teclado
semelhante ao de um cravo comum comandava o jogo dos tubos e a aparição de
cores, ou de pinturas, às vezes de uma lanterna de vidros coloridos. As luzes
produzidas em cores diferentes dependiam das teclas pressionadas durante a
execução da música. É interessante observar que o termo “cromático” usado para a
escala musical de doze notas, formada pelas sete notas musicais da escala
178
diatônica, sendo acrescida dos cinco tons intermediários, é um termo relativo ás
cores.
Figura 23:Chromatic scale full octave ascending and descending on C.
Lévi-Strauss nos conta que Rousseau, Diderot e Voltaire121 zombaram da
ideia do padre, “de que o jogo das cores pudesse agradar a visão, como a música
fazia com a audição”. De acordo com Roger Cotte, o padre Castel pretendia
proporcionar aos cegos uma ideia ou sensação das cores por meio dos sons.
Tabela 10: Correspondência entre escala cromática e gama de cores de Castel122
A potencialidade do objeto sonoro em relações textuais, por vezes supera o
alcance da linguagem verbal e isso pode ser constatado exatamente em situações
em que a literatura se vale de recursos que surgiram de associações e
correspondências com a linguagem musical como, por exemplo, melodia, harmonia,
polifonia, entre outros. A melodia é um elemento da música, mas pode ser
encontrada em textos literários, mais frequentemente em textos poéticos.
A melodia em um poema não tem uma correspondência frasal como
acontece na música, ou seja, na música uma sequência de notas, relacionadas de
forma coesa é considerada uma frase (para se fazer equivalência com o texto
121 Voltaire comentou ironicamente que os surdos de Paris poderiam frequentar os concertos. 122 (COTTE apud CAZNOK, 2008, p. 36)
179
verbal), mas a melodia no poema não forma frases ou discursos, ela pode ser
percebida nas inflexões que perfazem as frases.
As inflexões são mais comuns no texto falado. No texto escrito estão
contidas nas acentuações, pontuações e nas palavras, sendo que, neste caso, as
inflexões estão na sua carga semântica, como é o caso da poesia com os seus
desvios. No texto falado, também é mais percebida na poesia. O desenho da
melodia em um poema está mais disperso e não se constitui em um discurso, mas
pode acrescer sentidos no texto, pode dramatizar, ironizar, tensionar, suavizar etc.
Este desenho melódico é interrompido por silêncios (Figura 24), em alguns
momentos o traço é reforçado, em outros é suavizado . Em um texto literário, as
marcas do desenho correspondem às inflexões enquanto as falhas do desenho
representam as omissões melódicas, são sílabas ou palavras pronunciadas sem
uma marca de flexão. A inflexão contribui dando curvaturas à linha melódica textual.
Infletir é mudar a direção da palavra, é provocar desvios no texto. Por esta razão é
que ela é mais comum no texto poético.
Figura 24: Melodia no texto literário
Em um texto musical, a melodia é protagonista, está no primeiro plano, é o
texto em si, o fio de destaque em meio à textura de um tecido. É frase, é desenho, é
traço, enfim, é texto. Nas palavras de Murray Schafer:
Parafeaseando Paul Klee, uma melodia é como levar o som a um passeio. Para termos uma melodia, é preciso movimentar o som em diferentes altitudes (frequências). Isto é chamado mudança de altura. Uma melodia pode ser qualquer combinação de sons. Há melodias mais e menos bonitas, dependendo do propósito para o qual foram pensadas. Algumas são livres, outras rigidamente organizadas, mas não é isso que as faz mais ou menos belas. (SCHAFER, 1991, P. 81)
180
Figura 25: Melodia no texto musical
Um texto sonoro pode tirar maior proveito da melodia, pois cada objeto
sonoro, mesmo já estando organizado na estrutura textual, está à disposição para
sofrer qualquer intervenção, pode ser manejado de modo a alterar a sua frequência,
isto é, cada objeto pode se modulado, através do recurso pitch de um editor de
áudio, a tal ponto que seus tons sejam modificados e se aproximem das notas
musicais, tornando possível se fazer uma quase melodia.
Figura 26: Melodia no texto sonoro
Ao se falar em harmonia na literatura, refere-se à trama das vozes, ao
aspecto eufônico, ao modo como se dispõem as frases, como se conjugam os
assuntos e como se organizam os discursos. No entanto, sendo o texto escrito
linear, esses enunciados, de qualquer maneira, estarão dispostos em justaposição.
Na música, as notas musicais e as frases melódicas podem se organizar em
sobreposições. A produção simultânea de notas musicais, observados os intervalos,
é chamada de acorde, que em relação a outros acordes formam um campo
harmônico. A diferença determinante da harmonia na literatura e na música é que na
literatura a disposição do texto é linear, é horizontal, enquanto que na música, pela
possibilidade da simultaneidade, pode ser formada uma linha vertical de sons.
Um texto sonoro, por ter a mesma materialidade do texto musical, isto é, o
som, em uma trama de vozes, ou de eventos, pode se desenvolver por uma linha
vertical, já que se desenvolve no tempo.
O estudo ou a aplicação de conceitos de uma linguagem em outra
linguagem tem uma tendência redutora e, em alguns casos, ampliadora, neste caso,
chegando a distorcer. O uso da linguagem sonora em composições com ímpeto
textual está, em muitos aspectos, em um entre lugar, o espaço entre a literatura e
música, um lugar que permite, muitas vezes, recuperar o sentido de determinados
conceitos.
5.7 Subgêneros ou novos gêneros?
181
Para reforçar o aspecto da prática proposto anteriormente, farei uma
exposição de experiências pelas quais pude me envolver com maior proximidade ao
objeto de estudo. Trata-se de um trabalho artístico que realizo envolvendo a
linguagem musical e linguagem sonora, que tem como produto composições em que
são utilizadas técnicas herdadas da música eletroacústica/acusmática, bem como da
música concreta e da música eletrônica. Apesar da materialidade musical/sonora, as
composições seguem estruturas de textos literários, no caso, de contos e poemas.
“Musicontos e poemúsicas” foi o nome dado a este trabalho de composições feitas a
partir do objeto sonoro, matéria sonora coletada, isto é, gravada, convertida em
áudio. A composição é feita a partir da organização destes objetos em programa de
edição de áudio, através de sampleagens, montagens e colagens.
A partir do entendimento da arte sonora como sistema semiótico foi possível
dar a essas composições estruturas textuais sob a lógica de que a linguagem verbal,
neste caso, é substituída por objetos (signos) sonoros, como unidades sintáticas e
organizadas em justaposições e sobreposições resultando em textos artísticos.
Estes textos, tratados aqui como subgêneros, tanto da música quanto da literatura,
tenho os chamado de musicontos (contos sonoros) e de poemúsicas (poemas
sonoros).
Este trabalho foi selecionado pelo 9º Festival Internacional de la Imagen,
realizado em Manizales, Colômbia, em abril de 2010 e pelo Festival Internacional de
Linguagem Eletrônica – FILE 11, realizado em São Paulo em julho de 2011.
Também está incluso no “Amazônia, A Arte”, catálogo e exposição, idealizado pelo
Museu Vale - Fundação Vale, edição de junho-setembro de 2010.
As composições sonoras são transfigurações de enquadramentos da
realidade. São recriações feitas através do ímpeto artístico, que são transmitidas
através dos signos sonoros para as estruturas dos gêneros literários, no caso,
contos e poemas, podendo ser compreendidas como subgêneros ou novos gêneros,
com os quais ela toma corpo e nova realidade.
5.7.1 Musicontos
O musiconto conta e também mostra. É uma narrativa sonora. Tem os
elementos da narrativa e tem o caráter de conto por sua concisão. Tem sido comum
o surgimento de subgêneros da modalidade conto, como os minicontos e os
microcontos. Estes estilos, entre outros, frutos de uma poética da brevidade são
182
respostas ao modo vertiginoso de se viver, à rapidez da cultura. Basta vermos na
literatura os exemplos de poemas sintéticos tão comuns na atualidade, na arte
cinematográfica temos os videoclips, filmes de um minuto.
A confecção dos minicontos se dá pelas praticas de edição de materiais de
áudio, compreendidos como signos sonoros organizados de forma contigua, com
possibilidades de discursos paralelos, polifônicos, de curta duração, baseadas na
estrutura narrativa, mais precisamente dos contos.
Entendo que a poética contemporânea está desiludida dos dogmatismos e
absolutismos e está afinada aos conteúdos carregados de questionamentos do
pensamento pós-moderno.
Ao longo do século XX podemos observar uma crescente dissolução dos limites entre diferentes meios de expressão e também do conceito de arte em geral. É possível imaginar uma pintura sem tela, uma música sem sons, um livro sem escritura, uma poesia sem palavras ou uma peça teatral sem narrativa. (QUARANTA, p. 1)
A arte pós-moderna está cada vez mais ajustada às exigências,
perspectivas, anseios, ou seja, aos contextos culturais. Novos gêneros surgem, pois
surgem novos materiais, novas concepções, novos espaços. Não são reações ao
tradicional, são reflexos em estilos breves.
A linguagem da poesia é mais convencional e impõe uma atenção maior, sobretudo porque ela se manifesta geralmente, nos nossos dias, em peças mais curtas e mais concentradas, que por isso mesmo são menos acessíveis ao primeiro contato. (CÂNDIDO, 1996, p. 11)
Tanto o gênero do conto quanto o poético são sintéticos. Os musicontos são
estórias de curto tempo, são instantes ficcionais, porém com início, meio e fim. A
brevidade é comum também às poemúsicas.
5.7.2 Poemúsicas
A poemúsica é um jeito de se fazer uma arte sonora, às vezes mais próxima
da arte pictória, outras vezes mais associada à arte literária, no entanto sempre, por
sua própria natureza, nas concavidades ou convexidades da arte musical. A
poemúsica coopta com as outras artes porque é uma arte de mostrar, ela é feita de
imagens. Farei a seguir uma explicação sobre poemusica, partindo da associação
com o conceito simplório de poema como estrutura feita de versos e rimas. Isso,
183
para melhor ilustrar a concepção de poemúsica, no entanto a complexidade que
envolve o gênero aspirado é obvia, pois detém mecanismos e nuances de
construção das estruturas musicais, literárias e pictórias, além de seus próprios
trejeitos, que são competentes à sua linguagem particular. Então, vamos à
associação:
Assim como um poema é feito de versos e rimas, a poemúsica é feita de
versons e rimagens:
- Versons são sons, são versões de versos que nos levam a ver sons.
- Rimagens são sons-imagens que rimam e se atraem como imãs.
Rimagem é um termo usado por François Bayle123, citado por Rodolfo
Caesar124 em seu livro Círculos ceifados, que esboça bem a possibilidade de se
fazer rimas de imagens:
Propusemos ‘i-som’ como objeto retórico, artificial e imaginal, considerado como um ‘mi-som’ [meio-som] movendo-se em um ‘mi-lieu’ [meio-lugar]. Isto quer dizer que será muito interessante sondar a sobreposição de camadas da produção da escuta predisposta pelo modo acusmático... E isto por efeito da parada sobre a imagem e de sua volta ao movimento, propriedade que eu resumo com o termo ‘rimagem’, que se poderá tanto compreender como um retorno sobre a imagem quanto como uma rima, assonância de ecos internos que somente o trabalho sobre o i-som pode experimentar e explorar. (BAYLE apud CAESAR, 2008, p. 87-88)
A citação de Caesar é seguida de seu comentário (CAESAR, 2008, p. 88):
“Uma rimagem de espaço. Seria isto uma recorrência também da intensidade
emocional daquele ‘som’ que ‘rimou’?”.
As “rimas”, os ecos de sons são imagens sonoras que figuram uma
paisagem sonora. Ao falar de paisagem, falamos de lugar, assim se configura o
lugar sonoro, o lugar da poesia, o lugar do texto sonoro. Quando a poemúsica
mostra seus signos, no caso, a disposição dos sons em versos (versons) da
composição, em seus fluxos e refluxos, ao passo que a ouvimos, somos
observadores da imagem, pois forma inicialmente na mente receptora a “imagem 123 François Bayle (1932) é um compositor francês de música concreta e música eletroacústica. Estudou nos anos 1950 com Olivier Messiaen, Pierre Schaeffer e Karlheinz Stockhausen. No mundo da música eletrônica, Bayle é considerado um dos mais ilustres compositores e tem uma produção constante até os dias atuais. 124 Rodolfo Caesar (1950) é um compositor e professor brasileiro. Estudou com Pierre Schaeffer. É pesquisador e professor na Escola de Música da UFRJ, onde coordena o Laboratório de Música e Tecnologia, o LaMuT. Suas obras tem sido apresentadas em concertos e eventos como o Cycle Acousmatique em Paris, a International Conference of Computer Music, o Akustika Festival em Viena, o Fylkingen Festival em Estocolmo e outros.
184
acústica” saussureana, desencadeando semioses seguidas de associações e
mediações que resultarão em bases textuais em formas de versos na mente
interpretativa.
A poesia trabalha com imagens. Assim como o poema é uma verbalização
de arte visual, a poemúsica é uma sonorização de arte visual. O uso de figuras é
bastante frequente. A poesia é a “linguagem que faz uso abundante de figuras de
linguagem” (CULLER, 1999, p. 72).
Esta oportunidade de unir criação e teoria, que envolve o projeto
“Musicontos e poemúsicas” a esta dissertação me proporcionou compreender a
importância do uso das novas tecnologias, visando um produto que oportunize
alternativas e possibilidades de novas escutas (leituras) de música eletroacústica,
bem como novas leituras (escutas) de contos e poemas.
Os objetos sonoros são sons que comportam tanto a linguagem musical
quanto a linguagem sonora. O sistema de sons é integrado por ruídos125 e sons
ambientais (sons de animais, pessoas, máquinas, motores etc.) que são signos
icônicos. O sistema musical é formado pelos sons dos instrumentos musicais ou da
voz com definição tonal ou por ruídos (sem a definição tonal, sem a possibilidade de
identificação da altura tonal, ou seja, o tom (nota musical)). Portanto, a similaridade
também se dá pela analogia e os signos são os sons icônicos. A contiguidade se dá
pela associação e os signos compreendidos são também os sons icônicos, mas no
caso de uma comparação com o texto verbal corresponderiam aos signos
simbólicos, ou seja, às palavras simbólicas, de cunho arbitrário.
Os processos semânticos, retóricos, sintáticos da linguagem sonora não têm
as mesmas limitações referenciais que na linguagem musical, mas não têm o
alcance da linguagem verbal. Os pontos de intersecção são territórios férteis de
estudo e requerem uma intervenção interdisciplinar, um diálogo entre as disciplinas
de Literatura e Música.
125 Para José Miguel Wisnik, em O Som e o Sentido – Uma outra história das músicas, o ruído é uma perturbação, “é uma mancha em que não distinguimos frequência constante, uma oscilação que nos soa desordenada” (WISNIK, 1989, P. 27). Ver também página 33.
185
6 Considerações finais
[...] Je pense que, devant l’accroissement, toujours plus large et plus
rapide du champ de la Science, la confrontation des disciplines
deviant plus que jamais nécessaire.126
Jacques Monod127
No capítulo 2 falamos da música e a ênfase recaiu sobre as consequências
da modernidade. Nenhuma arte teve impactos tão definitivos quanto a música. As
transformações históricas da música são afinações de uma arte em relação ao
sujeito. Compreender o sujeito da pós-modernidade é uma forma de não resistir ao
andamento natural da linguagem musical ou sonora e isto cabe a todas as formas de
expressão artística. Os discursos de Benjamin não serão interrompidos. A tecnologia
que já foi julgada em tempos passados como a vilã do distanciamento da aura
benjaminiana, das correspondências baudelaireanas, do silêncio cageano, o do mito
de Lévi-Strauss, já é bem mais compreendida e pode ser um caminho promissor.
O século XX foi rico em manifestações interativas entre as linguagens, com
os fenômenos multimidiáticos e de interação semiótica das artes. A arte
contemporânea se caracteriza pela coexistência das artes dos períodos anteriores e
por perspectivas das futuras manifestações artísticas. Na música, a partir da
utilização de métodos e técnicas da composição de música eletroacústica ou música
acusmática, associada às estruturas de gêneros pertencentes à literatura, pode-se
gerar subgêneros, produtos lítero-musicais.
Esta demanda é fruto inevitável de uma questão mais fundamental e
inevitável ainda: a “crise” da arte desde o início do modernismo. Entendo que é mais
proveitoso tê-la como transição. No que se refere à música, essa crise é percebida
no Futurismo, que pressente a necessidade da inclusão de todos os sons, musicais
ou não musicais, reivindicando uma mudança que, ao seu tempo, é aceita pela
música concreta, de onde deriva a música eletroacústica. É neste contexto que se
indaga desde o início da crise da música tradicional: o que é Música?
126 “Penso que, diante do crescimento sempre maior e mais rápido do campo da Ciência, o confronto de disciplinas torna-se mais do que nunca necessário.” (MONOD apud JAKOBSON, 2007, p. 11) 127 Jacques Lucien Monod (1910 — 1976) foi um biólogo francês, vencedor do Nobel de Fisiologia/Medicina de 1965, por descobrir atividades reguladoras no interior das células.
186
Esta tensão não reside apenas no esgotamento do sistema tonal. Essa é
uma convulsão da própria linguagem musical ante uma possível dilatação, fazendo-
se necessário refletir sobre as suas delimitações entre o musical e não musical. Com
a inclusão de objetos sonoros não musicais, desde o Futurismo até os dias atuais,
configurou-se um universo de musicalidade e sonoridade, um caminho promissor,
que tem muito a ser explorado e longe de estar esgotado.
Os estudos literários podem ser uma ferramenta eficiente quando se fala do
objeto sonoro na condição de signo. Há muitos modos de apreensão entre o
fenômeno sonoro e o objeto carregado de significado, bem como são muitas as
possibilidades de significações. O signo sonoro é uma unidade sintática capaz de
constituir textos ou texturas sonoras que, por sua vez, constituem-se em material
passível de análises textuais, linguísticas, semióticas e discursivas. As teorias
literárias são aptas para contribuir na leitura, na análise, bem como na feição, na
composição musical fundada em signos sonoros, comportando todos os seus
esforços narrativos, descritivos e poéticos.
A democracia no conhecimento nasce do aprender a ver, a estabelecer semelhanças, reconhecê-las, criá-las, entrecruzá-las. Trata-se de reunir o saber disperso pela “educação dos cinco sentidos”. (MATOS apud BAIRON, 2005, p. 9)
A importância da continuidade da ampliação da concepção acadêmica de
texto leva às definições mais ajustadas ao momento pós-moderno ao qual,
irreversivelmente, experimentamos e que nos leva a considerar possibilidades de
novas definições sobre o objeto da Teoria da Literatura. Pela mesma razão, nos
importa compreender, dentro dessas perspectivas, o que torna uma composição um
texto e o que torna um texto uma obra de arte. Essa importância não se limita aos
conhecimentos de aplicação das teorias, mas está atrelada à compreensão de uma
época e do que isto representa no processo histórico da própria literatura.
Se pensarmos que a literatura é uma arte, que ela é um meio de comunicação
específico que envolve uma linguagem também específica, que se apoia em signos,
como unidades de significação, que formam unidades sintagmáticas, constituindo
textos em que se caracteriza uma determinada modalidade de discurso, e
considerarmos que esta mesma lógica se aplica ao objeto sonoro como signo,
podendo também se configurar em textos, vemos uma composição sonora como um
documento artístico, passível de uma análise por via da teoria literária.
187
O objeto sonoro, por natureza, objeto de estudo pertencente aos domínios
musicais, culturalmente podem ser examinados à luz de pressupostos da Teoria da
Literatura. Do objeto enquanto natureza ao objeto na sua extensão cultural ocorre a
semiose, processo fenomenológico/semiótico de significação, explicado com o
auxílio da Lingüística e da Semiótica.
Mas, afinal, para que serve a Semiótica? Serve para estabelecer as ligações entre um código e outro código, entre uma linguagem e outra linguagem. Serve para ler o mundo não-verbal: “ler” um quadro, “ler” uma dança, “ler” um filme – e para ensinar a ler o mundo verbal em ligação com o mundo icônico ou não-verbal. A arte é o oriente dos signos; quem não compreende o mundo icônico e indicial não compreende corretamente o mundo verbal, não compreende o Oriente, não compreende poesia e arte. A análise semiótica ajuda a compreender mais claramente por que a arte pode, eventualmente, ser um discurso do poder, mas nunca um discurso para o poder. O ícone é um signo de alguma coisa; o símbolo é um signo para alguma coisa. Mas o ícone, como diz Peirce, é um signo aberto: é o signo da criação, da espontaneidade, da liberdade. A Semiótica acaba de uma vez por todas com a idéia de que as coisas só adquirem significado quando traduzidas sob a forma de palavras. (PIGNATARI, 2004, p. 20).
A organização dos objetos sonoros em estruturas de textos artísticos se
apresenta para o receptor (ouvinte) para ser escutada, decodificada, lida e
interpretada. Uma vez estando a composição sonora estruturada como texto
narrativo ou poético, isto é, preenchendo condições de artisticidade, de uma
essencialidade equivalente à literariedade na linguagem literária, são, por assim
dizer, textos artísticos, dispostos à análise literária. Esta foi a premissa pela qual
iniciamos esse estudo, onde pudemos alegar ser possível criar e, por consequência,
analisar essas obras sonoras através de conjeturas linguísticas, semióticas e
literárias.
Estas questões mostram que uma obra, resultado do empreendimento
artístico, que fez uso do objeto sonoro, pode ser comparada à obra literária, em uma
analogia objetiva, sem especulações ou considerações abstratas, sendo
fundamentada em conhecimento científico. Neste caso, o objeto de estudo
primordial foi o objeto sonoro, que se estende para a obra sonora.
Migrar os conceitos da área de letras para entender a matéria sonora
organizada como texto nos permite constatar como o compositor desse tipo de obra
atém-se aos sons, que se tornam materiais à disposição para qualquer montagem,
isenta das servidões e utilidades que os instrumentos musicais ou o material sonoro
188
musical carregam com eles. Ele pode agir traduzindo o concreto, como pode
desfigurá-lo, deformando, transfigurando, afetando, amplificando, criando idéias
abstratas ou imagéticas da realidade, traduzindo o concreto para além do concreto,
de acordo com o seu subjetivismo.
Uma composição de objetos sonoros, de natureza narrativa ou poética, pode
ser esmiuçada, através de uma leitura fina, com o objetivo de desmontar, ao modo
de Derrida, isto é, não é destruir, mas decompor por meio da Teoria da Literatura.
Essa questão de objetos principais, temas que são âmbito de disciplinas
específicas, segundo Perrone-Moisés:
[...] os culturalistas, em sua maioria, manejam de modo insuficiente. Cada uma dessas ciências exige uma formação particular, uma bagagem de leituras especificadas que os diplomados em letras geralmente não têm. (PERRONE-MOISÉS, 2007: 167)
Quanto a isso, não pretendo utilizar a Teoria da Literatura para o estudo do
objeto sonoro como fenômeno, pois é matéria para as áreas da Música e Filosofia.
Pretendo, sim, utilizar das teorias literárias para o estudo do objeto em movimento,
em circulação, da linguagem em pleno uso, do signo agitado.
Sendo a articulação dos saberes expressa por diversas formas, posso dizer
que a relação entre sujeito e objeto pode ser realizada por diferentes pontos e
campos da estética. Os diferentes pontos vão desde a intertextualidade, do fluxo de
consciência, da fragmentação, da inovação artística, entre outras características da
literatura contemporânea.
Assim, vejo a Teoria da Literatura como uma instrumentalização para a
desconstrução, para a leitura fina de composições feitas, tendo como matéria
primeira o objeto sonoro, pois, mesmo com tanto potencial e apesar de ter muitos
compositores e pesquisadores em frente de batalha há mais de um século, ainda
pode ser considerada escassa a produção artística e científica que explore a
potencialidade textual e literariedade do objeto sonoro.
Lamentavelmente há uma escassez de abordagens que se aproximem
exatamente desse aspecto relacional da música com a literatura. A quase totalidade
de artigos, dissertações e teses abordam a linguagem musical através das suas
características melódicas, harmônicas e rítmicas. Uma parte menor se volta para o
estudo das características eletroacústicas do som, e também, o que já é mais
189
animador, uma parcela que estuda a questão da fenomenologia musical e a escuta.
É mais animador porque a partir deste aspecto é que são feitas as pontes.
Análises do potencial textual do objeto sonoro em criações de peças sonoras
não são comuns nos estudos musicais, muito menos nos estudos literários. Há um
campo nebuloso entre essas duas áreas, vários pontos cegos, lacunas conceituais.
Ressalto aqui a importância do curso de mestrado de Estudos Literários, na linha de
pesquisa da Literatura e outras artes e outros saberes, oferecido pela Universidade
Federal de Rondônia, que oportuniza o diálogo entre a disciplina da Literatura e a
Música, o que, sem dúvida, foi determinante para a minha investidura neste projeto,
no qual posso unir os conhecimentos das minhas graduações em Letras (UNIR)128 e
Música (UFRGS)129. Essas trilhas multidisciplinares iluminam as interseções entre
esses estudos. Não é a toa que referências desta pesquisa, nomes importantes para
a música migraram de outras áreas, como Luigi Russolo, um pintor que muito
contribuiu para o conceito de música futurística, com o seu manifesto A arte dos
ruídos, bem como Pierre Schaeffer, homem da literatura, com seus conhecimentos
de escrita fundamenta suas ideias musicais, e ao retomar ideias futurísticas criou a
música concreta e o trabalho com o som coletado. Aqui citei Wassily Kandinsky e
Paul Klee, pintores que emprestam conhecimentos imprescindíveis para a
compreensão de determinados aspectos da música. Na filosofia de Deleuse e
Guattari, conceitos como Ritornelo e sobre o espaço O liso e o estriado, são
indispensáveis para uma abrangência nas questões de musicalidade e sonoridade.
Em seu conceito de Rizoma, encontrei um contraponto ao desejo de Schaeffer em
se fazer música a partir da escuta reduzida. Esses extremos de Schaeffer (objeto
sonoro como signo em si mesmo, sem carga de significações) e Deleuze (rizoma
como grau máximo de possibilidades de relações semânticas e estéticas do signo
para além de si mesmo) não resultam contraditórios, são dois caminhos, mostram
possibilidades de apreensão de um objeto sonoro e suas possíveis relações: uma
intrínseca, monádica, que resiste às inferências da razão e das emoções, que visa
uma transcendência, que parte da desconstrução dos mecanismos já estabelecidos,
sejam eles intelectuais, culturais ou sociais, em um mergulho centrípeto com destino
à consciência; a outra extrínseca, diádica, que se vale de todas as afluências
possíveis, dos diálogos, das correlações, das hipertextualizações, que vai alinhavar 128 UNIR – Universidade Federal de Rondônia 129 UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
190
e estabelecer os mecanismos intelectuais, culturais ou sociais, em voo centrífugo
rumo ao “riacho sem fim” descrito por Deleuze:
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e... e... e..." Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. Gilles Deleuze e Félix Guattari 130(DELEUZE, 1995, capa)
Esse surto centrífugo desenha a função rizomática das sonoridades e
musicalidades, tão bem ilustrado na primeira página da Introdução: Rizoma, do livro
de Gilles Deleuze e Felix Guattari Mil Platôs, v.1:
Figura 27:Trecho de partitura dedicado a David Tudor, XIV piano piece for David Tudor 4,
Encontrei também, muitas referências importantes e de muita valia, inclusive
de estudiosos e compositores brasileiros como poderão ser constatados ao longo da
dissertação, além de ter contado com contribuições importantes nos estudos da
linguagem cinematográfica e radiofônica. Por esta razão, vejo a necessidade de uma
interferência dos estudos literários, como uma área profícua e adequada para suprir
uma carência já mais específica.
Essas reflexões sinalizam para as possibilidades da disponibilização de seus
resultados para diversas aplicações, como geração de novas ideias e conceitos, de
elementos de organização de saberes anteriores, dados técnicos e teóricos para as 130 Capa do livro Mil Platôs (DELEUZE, 1995, v.1)
191
relações interdisciplinares, confronto de ideias e contextos controversos, e
divulgação da pesquisa com o objetivo da criação de bases mais sólidas para o
entendimento do fenômeno sonoro ou musical permitindo que pessoas que
trabalham com música ou literatura associadas a outras disciplinas compartilhem
uma maior quantidade de conceitos teóricos lítero–musicais mais consistentes.
Vejo também a importância de releituras das teorias, pressupostos,
premissas, saberes estabelecidos, que antecederam o conceito de objeto sonoro.
Na era da informação e informatização é necessário reestudar tais conceitos
considerando esse novo acervo, uma vez que surge um objeto de estudo, um novo
conceito de unidade significativa.
Os avanços da tecnologia da Era Eletrônica não influem apenas no campo
da produção, da composição, eles não apontam somente para o futuro, mas também
para as questões conceituais do passado, pois nos permitem avaliar com novos
olhos, recuperar ou até regenerar informações, em alguns casos, não
compreendidas, talvez por estarem à frente do seu tempo. As releituras de obras
anteriores ao conceito de objeto sonoro, no mínimo nos levam a reorganizar nossas
bases a partir de uma realidade recente, toda apoiada em novas plataformas, novos
materiais, novos apoios, podendo nos induzir a recriação.
Refletir sobre a Poética de Aristóteles, Horácio, ou A origem da Tragédia de
Friedrich Nietzsche, o Soneto das Correspondências de Charles Baudelaire, A
Doutrina dos Sons de Goethe, O Arqueômetro de Saint-Yves D'Alveydre, a
Gesamtkunstwerk pretendida por Richard Wagner, considerando uma nova mídia,
com este novo elemento sonoro como unidade de sintaxe para a composição, sem
dúvida nos trarão uma maior elucidação destes tratados, desses conhecimentos,
bem como nos sugerirão novos modos de experimentação do objeto sonoro.
É imprescindível refazer essas conceituações. Estudar o objeto sonoro a
partir das diversas teorias e da mesma forma fazer o inverso: é indispensável a
releitura também da análise do discurso, da semiótica, da semântica, sintaxe, figuras
de linguagem, estilo, estética, textualidade a partir desse objeto de estudo.
Algumas questões não terão a consistência pretendida, a devida exatidão
que se exige em postulados científicos, até porque o conhecimento literário e o
musical estão em constante variação e que suas teorias estão em permanente
progresso. Por esta razão, creio ser válido qualquer estudo que procure
compreender a evolução e perspectivas desses saberes em consonância. Parece-
192
me que cada geração fica presa em conceitos imprecisos, onde o legado científico
pode ser dividido em uma parte já assimilada e aceita, outra parte em construção,
que somadas às hipóteses constituem uma dinâmica dialética necessária para
qualquer desenvolvimento teórico onde o novo é imprescindível.
Em pleno momento em que a música passa a ser obrigatória nas escolas, se
faz indispensável uma reflexão quanto ao potencial desse saber. A linguagem
sonora revela diversas possibilidades de uso da criatividade dos alunos, sendo um
excelente meio de expressão. Os softwares de edição de áudio transformam
qualquer “leigo” em profissional experiente.
O áudio tem linguagem própria. Não resta dúvida quanto à importância da
linguagem sonora. Por isso, é necessário incluir novas tecnologias no domínio da
escola, para a possibilidade de domínio da linguagem, como meio de expressão, de
identidade, aproveitando a afinidade e gosto pelas novidades tecnológicas que os
alunos sempre demonstram.
O ensino de textos não verbais em escolas deveria ter maior importância e
ser explorado em sala de aula. Um texto diferente requer uma leitura distinta.
Sabemos que os alunos não possuem o hábito da leitura. O contato com os textos
não verbais, sejam eles sonoros, visuais, gestuais, colocam o aluno ante a
possibilidade da leitura. Assistir filmes, ouvir músicas, são formas de leitura. É a
partir das leituras que os alunos desenvolvem opiniões críticas, que se refletem na
experiência da vida, pois aprender a ler as imagens, os sons e sinalizações que o
cercam no mundo. Ler, compreender, interpretar, são habilidades imprescindíveis
para se fazer uma leitura dos significados da realidade.
Esta dissertação me dá a conveniência de poder unir criação e teoria,
envolvendo o projeto “Musicontos e poemúsicas”, proporcionando uma oportunidade
de contribuir no âmbito acadêmico, na elaboração de proposições e possíveis
reforços teóricos, bem como no meio da produção artística, apresentando obras de
estéticas e conceitos vanguardistas das linguagens musical, sonora e literária
através do uso das novas tecnologias, visando um produto que oportunize
alternativas e possibilidades de novas escutas de música eletroacústica e de novas
leituras de contos e poemas.
Em toda a dissertação optei por conhecer teorias distintas, porque entendo
que não é hora de ser partidário de uma ou de outra teoria, de um ou de outro
teórico. Entendo que já passou o tempo das desconfianças, ou mesmo de se tachar
193
de reducionista àquela teoria da qual se diverge, de dar predominância ou
exclusividade a uma ou outra teoria. A contemporaneidade exige que saibamos que
as teorias são dististas porque cada uma ressalta aspectos, acentua mecanismos,
são abordagens complementares.
Fala-se em pós-modernidade, em rupturas com o moderno ou
transformações, no entanto o relevante mesmo são as evidências de mudanças, de
novas interpretações e discussões sobre ideias e conceitos do moderno que revelam
a atual complexidade e sensibilidade cultural, com conceitos menos lineares e mais
expansivos. As novas perspectivas, as novas vozes, as novas tensões derivadas da
modernidade são as vozes do sujeito globalizado, do sujeito ecológico, enfim, do
sujeito pós-moderno e suas múltiplas faces. No campo artístico, essas
transformações tem suscitado novas formas estéticas na literatura, na música, na
dança, no teatro, na arquitetura, no cinema, na pintura etc. As fusões, os
hibridismos, os sinestesismos não são sintomas de evolução, tampouco de
revolução, são ajustes e afinações. As novas poéticas não são rupturas, são
consequências.
194
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