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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA RINALDO DOS SANTOS SILVA A POTENCIALIDADE TEXTUAL DO OBJETO SONORO À LUZ DAS TEORIAS LITERÁRIAS PORTO VELHO-RO 2013

A Potencialidade... · A proposta da dissertação é mostrar que os estudos literários podem contribuir para a compreensão do objeto sonoro como elemento de sintaxe em estruturas

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

RINALDO DOS SANTOS SILVA

A POTENCIALIDADE TEXTUAL DO OBJETO SONORO À LUZ DAS TEORIAS LITERÁRIAS

PORTO VELHO-RO 2013

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FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

RINALDO DOS SANTOS SILVA

A POTENCIALIDADE TEXTUAL DO OBJETO SONORO À LUZ DAS TEORIAS LITERÁRIAS

Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários à Universidade Federal de Rondônia – Unir.

ORIENTADOR: Prof. Dr. José Osvaldo de Paiva

PORTO VELHO 2013

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FICHA CATALOGRÁFICA BIBLIOTECA PROF. ROBERTO DUARTE PIRES

S5861p Silva, Rinaldo dos Santos

A potencialidade textual do objeto sonoro à luz das teorias literárias / Rinaldo dos Santos Silva. Porto Velho, Rondônia, 2013.

220f.

Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) Fundação Universidade Federal de Rondônia / UNIR.

Orientador: Prof. Dr. José Osvaldo de Paiva

1. Objeto sonoro 2. Objeto musical 3. Literatura 4. Música I. Paiva, José Osvaldo de II. Título

CDU: 82.09

Bibliotecária Responsável: Ozelina Saldanha CRB11/947

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, José Osvaldo de Paiva, por me estimular a expressar um pensamento embasado em vivências. Às professoras Marisa Martins Gama Khalil e Sônia Maria Gomes Sampaio, que foram membros em minha Banca de Qualificação e Defesa, pelas observações essenciais para o enriquecimento deste estudo. Ao Prof. Rubens Vaz Cavalcante, pelas conversas instrutivas e inspiradoras, desde a graduação. Aos professores do Mestrado em Estudos Literários pelas valiosas aulas, cujos conteúdos aparecem, de um modo ou de outro, neste trabalho. À Coordenação do Mestrado em Estudos Literários, pela oportunidade. Aos alunos, colegas de sala de aula, pela amizade. Aos amigos e familiares, por compreenderem minha ausência. À Sandra Pontieri Silva, pelo sacrifício e compreensão. À minha mãe, por me instruir, desde cedo, na arte de viver. Àquele que está sempre comigo, o qual não sei o nome.

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RESUMO

A proposta da dissertação é mostrar que os estudos literários podem

contribuir para a compreensão do objeto sonoro como elemento de sintaxe em

estruturas textuais artísticas em que conste a simbiose com a linguagem sonora,

como musica eletroacústica, acusmática e submodalidades, arte sonora, textura

sonora ou gêneros híbridos. As teorias literárias são aptas para contribuir na leitura,

na análise, bem como na composição musical fundada em objetos sonoros, na

condição de signos, compreendendo seus esforços narrativos, descritivos e

poéticos. Pontos de intersecção entre a Literatura e a Música são territórios férteis

de estudo e requerem uma intervenção interdisciplinar, um diálogo entre as

disciplinas. Pretendemos com este estudo sugerir o surgimento de novos gêneros e

subgêneros, considerando que as artes intersemióticas são modalidades em

construção.

Palavras chave: Objeto sonoro, objeto musical, literatura, música.

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ABSTRACT

The purpose of the dissertation is to show that literary studies may contribute

to the understanding of the sound object as an element of syntax inside artistic

textual structures considering the symbiosis with sound language, such as

electroacoustic music, acousmatic and submodalities, sound art, sound texture or

hybrid genres. Literary theories are able to contribute in reading and analysis, as so

in musical composition based on sound objects, working as signs, including their

narrative, descriptive and poetic efforts. Points of intersection among literature and

music are fertile areas of study and require interdisciplinary intervention, a dialogue

among disciplines. We intend at the study to suggest the arising of new genres or

subgenres, whereas intersemiotic arts are modalities under construction.

Keywords: Sound object, musical object, literature, music

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Laerte, sobre a música

Figura 2: Xilogravura Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd

Figura 3: Harmonic partials on strings

Figura 4: Detalhe da Xilogravura Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd

Figura 5: Quadro de Hokusai - A grande onda, que inspirou Debussy em sua obra La Mer

Figura 6: Ilustração de Édouard Manet para a edição do poema L’Après-midi d’dun Faune

Figura 7: Cartaz do filme Tempos Modernos

Figura 8: Tipologia espectral

Figura 9: Da nota ao ruído

Figura 10: Luigi Russolo e Ugo Piatti com o Intonarumori

Figura 11: Sequência das quadro escutas

Figura 12: Objeto sonoro e a representação

Figura 13: Dinâmica da semiose

Figura 14: Tipos de signos, em relação ao objeto

Figura 15: Gráfico do som de flauta

Figura 16: Gráfico do som de flauta com cortes

Figura 17: Ceci n’est pas une pipe, de René Magritte

Figura 18: Esquema de comunicação

Figura 19: Tessitura sonora

Figura 20: Mobilidade espacial de um córrego

Figura 21: Labirinto sonoro

Figura 22: A persistência da memória, de Salvador Dali

Figura 23: Chromatic scale full octave ascending and descending on C.

Figura 24: Melodia no texto literário

Figura 25: Melodia no texto musical

Figura 26: Melodia no texto sonoro

Figura 27:Trecho de partitura dedicado a David Tudor, XIV piano piece for David Tudor 4,

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Quadro das funções da escuta

Tabela 2: Baseado relação signo/objeto de Saussure ajustado para o objeto sonoro

Tabela 3: Semiose (processo de significação)

Tabela 4: Adaptação baseada na Classificação das Ciências, de Charles Peirce

Tabela 5: Recorte do quadro Adaptação da Classificação das Ciências, de Peirce

Tabela 6: Diagrama da filosofia peirceana

Tabela 7: Classificação dos signos semióticos, por Peirce

Tabela 8: Comparativo entre as formas de composição

Tabela 9: Graus de poeticidade

Tabela 10: Correspondência entre escala cromática e gama de cores de Castel

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LISTA DE ANEXOS

Anexo 1: Quadro das funções da escuta

Anexo 2: Quadro evolutivo e comparativo das funções e das intenções da escuta

Anexo 3: “Risveglio di uma città” per intonarumori – Luigi Russolo.

Anexo 4: Synthèse Du dualisme de l’écoute – Luigi Russolo.

Anexo 5: As dez classes de signos decorrentes das três tricotomias sígnicas

Anexo 6: 10 classes de signos (PEIRCE, 2005, p. 58)

Anexo 7: Cruzamento dos signos

Anexo 8: Tabela da classificação das ciências – Charles Peirce

Anexo 9: Poema de Stefan George

Anexo 10: Quadros de René Magritte

Anexo 11: Conceito de Duração

Anexo 12: Manuscrito da Ars Nova

Anexo 13: Diagrama das três matrizes e suas modalidades

Anexo 14: Trecho do poema Salut au Monde!, de Walt Withman (FERRAZ, 2005, p. 82-83)

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SUMÁRIO

Lista de figuras

Lista de tabelas

Lista de anexos

Sumário

1. Introdução...........................................................................................13

1.1 Há mais mistérios entre os sons e a nossa compreensão...............................13

1.2 ... do que julga a nossa vã distração................................................................13

1.3 Justificativa.......................................................................................................14

1.4 Problematização..............................................................................................16

1.5 Objetivos..........................................................................................................16

1.5.1. Objetivo Geral..........................................................................................16

1.5.2. Objetivos Específicos...............................................................................17

1.6 Procedimentos metodológicos.........................................................................17

2. Relações interdisciplinares..................................................................19

2.1 Espaços de intersecção...................................................................................19

2.2 A teoria.............................................................................................................20

2.2.1 Objetos da Teoria da Literatura................................................................21

2.3 O objeto............................................................................................................26

2.3.1 O que é música?.......................................................................................26

2.3.2 Uma história da música............................................................................28

2.3.3 Corredor histórico.....................................................................................28

2.3.4 O diapasão do mundo...............................................................................29

2.3.5 Communis.................................................................................................32

2.3.6 Mostrar e contar........................................................................................33

2.3.7 Mímesis e diegesis...................................................................................34

2.3.8 A semântica na tradição musical..............................................................37

2.3.9 Tempos modernos....................................................................................45

2.3.10 O mundo em revolução...........................................................................46

2.3.11 L’Arte dei Rumori....................................................................................48

2.3.12 A grande crise da música.......................................................................53

2.3.13 A música concreta..................................................................................56

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2.3.14 A música eletrônica.................................................................................56

2.3.15 Objeto sonoro e objeto musical..............................................................58

3 Fenomenologia musical de Schaeffer..................................................60 3.1 A redução fenomenológica de Husserl............................................................60

3.2 Do fenômeno....................................................................................................61

3.3 As quatro escutas de Schaeffer.......................................................................62

3.3.1 Écouter......................................................................................................63

3.3.2 Ouïr...........................................................................................................63

3.3.3 Entendre...................................................................................................63

3.3.4 Comprendre..............................................................................................64

3.4 Os três modos de audição de Chion................................................................66

3.4.1 Escuta reduzida........................................................................................66

3.4.2 Escuta causal............................................................................................67

3.4.3 Escuta semântica......................................................................................67

3.5 As três categorias fenomenológicas de Pierce................................................68

3.5.1 Primeiridade..............................................................................................68

3.5.2 Segundidade.............................................................................................69

3.5.3 Terceiridade..............................................................................................69

4 O processo de significação..................................................................73 4.1 A significação...................................................................................................73

4.2 Semiose...........................................................................................................75

4.3 Semiótica.........................................................................................................80

4.4 Categorias de signos.......................................................................................84

4.5 Fenômeno ou signo?.......................................................................................87

4.6 Sintaxe.............................................................................................................90 4.6.1 O objeto sonoro como elemento de sintaxe...........................................105

4.7 Linguagem.....................................................................................................107

4.8 Comunicação.................................................................................................111

4.9 Texto..............................................................................................................112

4.9.1 O texto e sua família...............................................................................113

4.9.2 Textualidade...........................................................................................114

4.9.3 Contextualidade......................................................................................115

4.9.4 Intertextualidade.....................................................................................116

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4.9.5 Textura....................................................................................................117

4.9.6 Tessitura.................................................................................................118

4.9.7 Contextura..............................................................................................119

4.9.8 Tradução intersemiótica..........................................................................120

4.9.9 Composição textual................................................................................122

4.10 Discurso.......................................................................................................128

4.10.1 Polifonia................................................................................................133

5 Estudos Literários..............................................................................134 5.1 Prática e Teoria..............................................................................................134

5.2 A estrutura de textos artísticos.......................................................................138

5.3 Narrativa.........................................................................................................145

5.3.1 Tempo.....................................................................................................146

5.3.2 Espaço....................................................................................................152

5.3.3 Personagens...........................................................................................159

5.3.4 Narrador..................................................................................................160

5.4 Descrição.......................................................................................................170

5.5 Poesia............................................................................................................173

5.6 Para além da potencialidade textual do objeto sonoro..................................177

5.7 Subgêneros ou novos gêneros?....................................................................180

5.7.1 Musicontos..............................................................................................181

5.7.2 Poemúsicas............................................................................................182

6 Considerações finais..........................................................................185

Bibliografia

Anexos

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1. Introdução

1.1 Há mais mistérios entre os sons e a nossa compreensão...

O desígnio desta dissertação é apontar para evidências de como os estudos

literários podem contribuir para a compreensão de composições sonoras

estruturadas a partir de gêneros literários. Baseado nas teorias linguísticas

modernas, que têm uma noção de texto mais ampla, que não é exclusiva da

linguagem verbal, se estendendo para outras linguagens, as composições sonoras

são admitidas como textos artísticos, em que a sua unidade sintática é o objeto

sonoro que, sendo elemento material composicional, é manejado em processos

composicionais em música fundada em técnicas eletroacústicas e acusmáticas1,

oriundas da música concreta2.

O século XX testemunhou o surgimento de novas modalidades ou

submodalidades musicais. A tecnologia, com seus avanços constantes, ampliaram

para o artista contemporâneo as possibilidades de materialidades e modalidades.

Desde então, gêneros híbridos, sinestésicos, intersemióticos são mais comuns que

em qualquer época. A simbiose artística sempre existiu, mas a tecnologia, que há

muito tempo deixou de ser apenas um meio de reprodutibilidade, passou a ser um

meio eficiente de apoio à produtividade, criatividade e inventividade, bem como um

meio conciliador e fusionador de linguagens, propiciando o surgimento de

modalidades artísticas em que as linguagens se misturam sem se confundirem. A

arte sonora, textura sonora, poesia sonora, são exemplos, são experiências, que

abrem expectativas e perspectivas de surgimento de modalidades híbridas em que

conste a simbiose da linguagem sonora com outras linguagens, inaugurando novos

gêneros ou subgêneros, considerando que são modalidades em construção.

1.2 ... do que julga a nossa vã distração 1 Música acusmática é um gênero de música composta em estúdio e, posteriormente, se difunde em concerto utilizando-se, exclusivamente, de equipamento de reprodução de som e altofalantes, excluindo-se, assim, completamente, totalmente o intérprete como elemento presente. 2 Música concreta é um gênero de música experimental de vanguarda, ou método de compor, idealizado pelo francês Pierre Schaeffer, e através do qual o compositor procura reunir toda espécie de objetos sonoros (sons musicais e ruídos concretos), já gravados em disco ou em fita magnética (mídias disponíveis em 1948), para transformá-los em seguida por meio de manipulações complexas, e utilizá-los em montagens e colagens, conforme seu pensamento musical.

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Ao tomarmos contato com um som, este desencadeia um processo de

significação, que compreende desde a percepção do fenômeno sonoro até o modo

como este som está representado na consciência. Esta semiose é condição para a

geração de interpretações, das quais são possibilitadas as relações sígnicas e

consequentemente, as elaborações de estruturas textuais/texturais, bem como as

leituras do receptor e interpretador. Eis um campo em que há muito a ser explorado.

Dentro deste processo sígnico, os sons podem ser compreendidos como

objetos sonoros, que são os fenômenos sonoros em si mesmos, ou como signos

sonoros, ou seja, objetos sonoros carregados de significações, sejam elas concretas

ou abstratas, objetivas ou subjetivas, referenciais ou metafóricas.

1.3 Justificativa

A relação dos elementos sonoros funda uma sintaxe. O uso dos sons com

manobras sintáticas pode resultar em enunciados, frases, sentenças, constituindo

textos. Uma vez revelado o potencial dos objetos sonoros em compor textos, ou

texturas, tanto de natureza narrativa (em que prevalece a habilidade em contar)

quanto descritiva e poética (em que se destaca a capacidade de mostrar), justifica-

se o uso das teorias literárias para o estudo de produções feitas a partir da utilização

de registros sonoros, uma vez que estas obras podem se converter em gêneros

textuais distintos e será necessário o empréstimo do aporte dos estudos literários e

seus conceitos para a compreensão dessas produções.

As composições musicais que se derivaram da música concreta, que, entre

suas técnicas, estão as de coleta e manuseio de sons ambientais, cotidianos, ruídos,

como qualquer composição musical fundada em signos sonoros, poderão ser

abordadas através das teorias literárias.

O uso destes signos sonoros no processo composicional com escopo

poético, descritivo ou narrativo pode ser considerado objeto fecundo e legitimamente

propício aos estudos literários, uma vez, que a semântica e a retórica, através da

sintaxe musical, já reconhecidas como recursos utilizados na linguagem musical,

podem ser aplicadas também à linguagem simplesmente sonora, pois é questão de

uma essencialidade, correspondente à literariedade, alcançar a coerência e a

coesão de um texto/textura sonora.

Este estudo é complemento e embasamento conceitual de um trabalho

artístico que realizo em espaços de interseção entre a literatura e a música.

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Trata-se de uma pesquisa iniciada a alguns anos em torno da linguagem

musical e linguagem sonora, que tem como produto composições lítero-musicais.

Essa produção consiste na criação de contos e poemas a partir do objeto sonoro,

em que a composição segue estruturas e características de contos e poemas, sem a

obrigatoriedade de utilização da linguagem verbal, que, neste caso, é substituída por

objetos (signos) sonoros, como unidades sintáticas. Essas composições são feitas

com matéria sonora, sintética ou coletada, isto é, gravada, convertida em áudio, que

podem ser modificadas de acordo com a estética pretendida. A composição é feita

em programas de edição de áudio, através de colagens e montagens, intercalando

justaposições e sobreposições sonoras. Não se trata de poemas ou contos com

fundo musical ou com citação incidental, tampouco são músicas em que se abrem

parênteses para a recitação de poemas. São subgêneros que tenho chamado de

musicontos (contos sonoros) e de poemúsicas (poemas sonoros).

Este trabalho deu seus primeiros frutos ao ser selecionado pelo 9º Festival

Internacional de la Imagen, realizado em Manizales, Colômbia, em abril de 2010 e

pelo Festival Internacional de Linguagem Eletrônica – FILE 11, realizado em São

Paulo em julho de 2011. Também está incluso no “Amazônia, A Arte”, catálogo e

exposição, idealizado pelo Museu Vale - Fundação Vale, edição de junho-setembro

de 2010.

Já este projeto de pesquisa possibilitará a oportunidade de unir criação e

teoria, o que me proporcionará uma forma de contribuir no âmbito acadêmico, na

elaboração de proposições e possíveis reforços teóricos, bem como no meio da

produção artística, oferecendo obras de estéticas e conceitos vanguardistas das

linguagens musical, sonora e literária através do uso das novas tecnologias, visando

um produto que oportunize alternativas e possibilidades de novas escutas de música

eletroacústica, de contos e poemas.

Enfim, é pretendido nesta dissertação justificar o apoio dos estudos literários

para prover fundamentos que contribuam na criação e análise de subgêneros,

produtos lítero-musicais intersemióticos, partindo da utilização de métodos e

técnicas da composição de música eletroacústica ou música acusmática, associada

às estruturas de gêneros pertencentes à literatura.

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1.4 Problematização

Na arte musical, até o início do século XX, o ruído era recusado no discurso

musical do ocidente. O material sonoro da música era composto somente por

timbres instrumentais e vocais. A partir de L’Arte dei Rumori3, de Luigi Russolo4 e a

Musique Concrète5 de Pierre Schaeffer6, os sons naturais, bem como os sons

surgidos da nova configuração ambiental sonora, resultantes da Revolução

Industrial, apesar de terem sido incluídos no acervo como nova gramática musical e

tratados com isonomia nas experiências das vanguardas musicais, que fizeram com

que a criação musical incluísse o ruído como material para criação, ainda não têm o

mesmo privilégio dos sons oriundos dos instrumentos musicais.

Esta realidade reivindica um aprofundamento no processo de significação

dos objetos sonoros, seja por sua força de referencialidade, por sua

representatividade mimética/diegética, ou por seu potencial em acrescer ou

suspender sentidos na construção de textos/texturas, sejam eles objetivos ou

subjetivos. Neste trabalho, consideradas as questões fenomenológicas e semióticas,

o caminho promissor será o de estudar a literariedade destes signos sonoros e isso

é objeto dos estudos literários.

1.5 Objetivos

1.5.1. Objetivo Geral:

Contribuir para os estudos interdisciplinares entre os saberes da literatura e

música, problematizando a significação do objeto sonoro através dos estudos

literários.

3 L’Arte dei rumori (A Arte dos Ruídos, 1913), do pintor e músico Luigi Russolo, introduz conceitos sonoros importantes como o de som, ruído e ruído musical. 4 Luigi Russolo, nascido em Veneza em 1885, foi pintor e foi por causa das artes plásticas, justamente, que se tornou membro do movimento futurista, em 1910. No entanto, instigado pela leitura de Música Futurista, manifesto do compositor Balilla Pratella, de quem era amigo, decidiu redigir, como uma resposta, o manifesto A Arte dos Ruídos, em 1913, considerado hoje um dos mais importantes do século XX, segundo os estudiosos. 5 Musique concrète (do francês, "música concreta") é o nome dado a um tipo de técnica experimental de composição produzida a partir de edição de áudio, que utiliza sons produzidos por objetos variados, de baldes a serras elétricas, por exemplo. Seu inventor foi o francês Pierre Schaeffer. Tudo começou em 1949, em Paris. 6 Pierre Henri Marie Schaeffer foi um compositor da França, conhecido por ter inventado a música concreta.

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1.5.2. Objetivos Específicos:

1.5.2.1. Apresentar ideias gerais de interesse científico e especulativo a

partir de teorias literárias em torno do objeto sonoro que apontem para uma

necessidade de novas conceituações de estética musical;

1.5.2.2. Detectar indícios históricos de semanticidade da linguagem

musical;

1.5.2.3. Coligar os aspectos passíveis de problematização literária em

composições textuais sonoras, revelados a partir de reflexões, análises e paralelos

estabelecidos;

1.5.2.4 Sugerir diálogos interdisciplinares através da inserção de temas,

disciplinas ou cursos multidisciplinares.

1.6 Procedimentos metodológicos

O objeto sonoro não será abordado através da Análise Literária, tampouco da

Crítica Literária, mas das teorias da Literatura, uma vez que o estudaremos como

uma unidade sígnica formal, estrutural. Os métodos de trabalho serão os da

pesquisa bibliográfica. Os estudos serão feitos através da consulta de bibliografia de

estudos musicais e literários, que possam subsidiar a especulação acerca do objeto

sonoro, na condição de signo linguístico, como unidade portadora de sentido e sua

potencialidade textual e discursiva.

Este trabalho foi organizado em seis capítulos. A ordem dos tópicos foi feita

com o intuito de otimizar metodologicamente as abordagens do projeto. O capitulo 1.

Introdução - foi dedicado à descrição do projeto e do plano de dissertação,

delimitando o contexto dos estudos, expondo a finalidade, traçando os objetivos e

apresentando sua estrutura; O segundo capítulo procura ilustrar que a relação objeto

(sonoro) / teoria (literária), mesmo sendo de áreas e disciplinas distintas, é viável e

que nos espaços de intersecção estejam os focos de abordagem, enfatizando a

importância de estudos interdisciplinares. Por esta razão está subdividido em um

tópico para a teoria e outro para o objeto. O tópico voltado para a teoria inicia

alegando que a constituição do objeto em estudos literários é elemento de

problematização, apontando como possível objeto da Teoria Literária a literariedade,

como essencialidade que pode encontrar correspondência em outros sistemas

sígnicos como o sonoro. Quanto ao tópico que trata do objeto, começa com um

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questionamento que acompanha a música contemporânea: o que é música? As

suas subdivisões tratam de contar “uma história da música” com o objetivo de

identificar períodos em que a música demonstra a intenção de descrever ou narrar,

ressaltando os arroubos semânticos históricos, bem como marcar o momento do

surgimento da aceitação de elementos considerados “não musicais” em processos

composicionais, refletindo a tensão do mundo moderno, culminando com a criação

do conceito de objeto sonoro por Pierre Schaeffer. Para mostrar a potencialidade

semântica e textual do objeto sonoro é necessário começar pela fenomenologia.

Para isso o Capítulo 3 trata da fenomenologia de Schaeffer, que teve por

fundamento o método de Edmund Husserl. Foram estudadas as quatro escutas

propostas por Schaeffer, associadas aos modos de audição de Michel Chion e às

categorias fenomenologias de Charles Pierce. Estudadas as questões

fenomenológicas, seguimos para os processos de significação por que passa o

objeto sonoro, assuntos do Capítulo 4, que explica o caminho da significação

(semiose) desde o objeto como fenômeno até o objeto assimilado como signo. Esta

questão exigiu estudos de semiótica, linguagem, comunicação e texto. O capítulo 5

se ocupa na análise, a partir das teorias literárias, das estruturas textuais narrativas,

descritivas e poéticas, defendendo a possibilidade do uso do objeto sonoro como

elemento sintático de estruturas textuais sonoras baseadas nas estruturas literárias,

apontando para o surgimento de novos gêneros. Por fim, o capítulo 6 reúne

apontamentos e reflexões conclusivas.

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2. Relações interdisciplinares

2.1 Espaços de intersecção

Este trabalho se empenha em examinar uma relação objeto/teoria incomum,

ou seja, estudar o objeto sonoro por meio da teoria literária. Na medida em que o

trabalho começou a ganhar consistência, os receios de que isso seria forçar uma

situação foram perdendo a razão de se mostrarem. No início das pesquisas, as

descobertas apontavam para uma relação da música com a literatura. Aos poucos

tudo foi se definindo e nesses espaços de comunhão entre as linguagens ficou claro

que o trabalho não era exatamente sobre literatura e nem sobre música e sim sobre

literariedade, musicalidade e sonoridade. Foi uma descoberta feliz, que evitou

possíveis equívocos sutis, pois estas questões não são centrais em suas áreas,

estão nas fronteiras, são temas esparsos, pulverizados, mas é exatamente nestas

regiões que as áreas se tocam, se misturam.

A intenção maior neste trabalho é a de levantar o máximo de questões que

possam justificar o uso da Teoria Literária para a compreensão do objeto sonoro e

isso é possível a partir da admissão do objeto sonoro como objeto cultural, ou

melhor, como signo. Sabe-se que, antes disso, a constituição do objeto em Teoria

da Literatura é problemática, e antes ainda, a própria Literatura é objeto de uma

problematização.

É claro que sobre esta questão será feita uma abordagem em que o

aprofundamento se dará somente até chegar ao ponto que seja suficiente para

justificar o uso dos conhecimentos teóricos literários para uma compreensão das

relações possíveis do signo sonoro em uma composição textual sonora,

considerando as noções e conceitos de texto defendidos pela linguística moderna,

que aceita outras formas de texto além do verbal.

Vou colocar a questão desta maneira: temos um objeto de uma área: da

música. Para abordá-lo, temos as teorias de outra área: da literatura. Para minimizar

o aparente distanciamento entre objeto e teoria, será preciso promover uma

aproximação que dará um conforto para as conjecturas e hipóteses. Para tanto,

duas coisas serão necessárias: em primeiro lugar mover a teoria para um território

que comporte a existência de um objeto compatível com o seu escopo, com os seus

fins e, em segundo lugar, mover o objeto para um lugar de possibilidades de análise

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e uso criativo a partir da visão teórica literária. Em termos mais práticos, será feito

um exame sobre o objeto das Teorias Literárias, se há mesmo esse espaço em que

o objeto sonoro possa ser comportado como elemento de estudo, como objeto

analisável e, por outro lado, será estudado o processo de significação do objeto

sonoro, que, de fenômeno, passa pela semiose e converte-se em signo sonoro,

tornando-se, portanto, em uma unidade linguística e elemento de sintaxe textual,

que, sob a ação de propriedades específicas, formam estruturas textuais/texturais

sonoras equivalentes a gêneros literários, como poesia, descrição e narrativa.

2.2 A teoria

No propósito deste trabalho inclui-se o uso das “teorias literárias”. O uso do

termo no plural se dá por uma razão: o termo “Teoria Literária” é muito amplo,

mesmo sem levar em conta as diferenças conceituais entre “Teoria da Literatura” e

“Teoria Literária” (COMPAGNON, 1999, p. 24), pois as noções que serão apontadas

tanto servem para uma quanto para a outra. Por não existir um único método teórico

de investigar literatura e pela variedade de concepções desde o escritor romano

Tácito (55 a 120 d.C.), que é considerado como um dos primeiros teóricos da

literatura, até os dias de hoje, seria ajustado pensar em “teorias da literatura” e não

somente em “teoria da literatura”. Roberto Acízelo de Souza, apesar de admitir que

“há só uma teoria da literatura, subdividida em inúmeras orientações” (SOUZA,

2007, p. 58) argumenta também sobre o fato de ser apropriado falar-se em teorias

da literatura:

Assim, embora o termo teoria da literatura, usualmente empregado no singular, possa dar a entender que existe um acordo conceitual e metodológico quanto ao estudo da literatura, essa pressuposição é incorreta, tendo em vista a circunstância apontada. Aliás, são tantas as correntes contemporâneas de investigação da literatura empenhadas em controvérsias relativas a métodos e conceitos que seria mais apropriado falar-se em teorias da literatura, no plural. (SOUZA, 2007, p. 58)

Se por um lado não se tem uma teoria que possa ser considerada

hierarquicamente superior às demais teorias, dando conta dos estudos literários,

nem mesmo uma teoria consolidada para ser chamada de “a Teoria da Literatura”,

por outro lado, as diversas correntes comporiam a disciplina “Teoria da Literatura”.

Segundo SOUZA:

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Essas correntes, mais ou menos desvinculadas entre si, despontando em artigos e livros fundadores, seriam objeto de sistematização, combinação e divulgação pelo conhecido tratado de René Wellek e Austin Warren, publicado em 1949, e cujo título — Teoria da literatura — acabaria se tornando o nome adotado por verdadeira nova disciplina. (SOUZA, 2007, p. 39)

Souza torna mais clara esta questão, quando explicita que o termo “Teoria

da Literatura” comporta dois significados: um amplo e outro estrito:

[...] o termo teoria da literatura comporta um significado muito amplo — qualquer problematização ou estudo sistemático da literatura — e um significado estrito — a disciplina constituída no século XX, caso específico e historicamente situado desse estudo sistemático. (SOUZA, 2007, p. 35)

Além do motivo citado anteriormente, o uso do termo “teorias da literatura”,

ou mesmo, “teorias literárias” neste trabalho é mais apropriado, pois os estudos

desta dissertação não se apoiarão em todo o conjunto ou sistematização teórica de

literatura, devido à diversidade das correntes teóricas, da variedade de teorias e

métodos que, ora se centram no autor, ora se apoiam no texto ou no contexto, no

signo, no código, no leitor etc.

Os estudos relacionados às teorias da literatura que nos darão

embasamento serão aqueles com maior proximidade com o objeto de estudo

proposto neste trabalho, ou seja, as teorias que possam comportar o objeto sonoro,

não o objeto em si, por suas qualidades, mas o funcionamento do objeto sonoro

como elemento de estruturas tidas como textuais. Por esta razão, será necessário

compreendermos qual é o objeto estudado pelas teorias literárias, ou, por estar

falando em teorias, devemos falar também em objetos?

2.2.1 Objetos da Teoria da Literatura

Antes mesmo de apostar em uma definição de qual é o objeto da Teoria da

Literatura, é importante ressaltar o que se entende por “Literatura”, no entanto, não

será na direção de procurar a definição sobre o termo “Literatura”, mas na de

delimitar o seu sentido. Vejamos o que é apontado por Souza:

Com relação à palavra literatura, podemos considerar dois significados históricos básicos: 1. até o século XVIII, a palavra mantém o sentido primitivo de sua origem latina — litteratura —, significando conhecimento relativo às técnicas de escrever e ler, cultura do homem letrado, instrução; 2. da segunda metade do

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século XVIII em diante, o vocábulo passa a significar produto da atividade do homem de letras, conjunto de obras escritas, estabelecendo-se, assim, a base de suas diversas acepções modernas. (SOUZA, 2007, p. 45)

São muitas as acepções da expressão "Literatura", como, por exemplo,

produto da produção escrita de uma determinada época ou localidade; conjunto de

obras diferenciadas pela temática, pela origem ou público alvo; bibliografia sobre um

campo especializado do conhecimento; conjunto de conhecimentos relativos ao

estudo sistemático da produção literária e autores literários, como disciplina, curso,

matéria.

É comum a definição de Literatura em dicionários como sendo a arte de

compor ou escrever trabalhos artísticos em prosa ou verso7. Definições semelhantes

são tratadas como Arte Literária. Além de a Literatura ser tomada como arte, o termo

também é utilizado como ficção, irrealidade, etc. No entanto, para atender aos

objetivos desta dissertação é mais produtivo compreender o que torna um texto

literário do que procurar a definição para o termo “Literatura”. Compreender no que

se distingue uma obra literária de uma não literária, entender o que faz com que nós

leiamos um texto como literatura são questões que nos levarão ao objeto da Teoria

Literária ou objetos das teorias literárias. Souza alega que o objeto da teoria da

literatura corresponde às “propriedades específicas” de que as obras são dotadas:

Observemos o modo pelo qual definimos a literatura, entendida como objeto da teoria da literatura: parte do conjunto da produção escrita e, eventualmente, certas modalidades de composições verbais de natureza oral (não escrita), dotadas de propriedades específicas, que basicamente se resumem numa elaboração especial da linguagem e na constituição de universos ficcionais ou imaginários. (SOUZA, 2007, p. 48)

Entre as propriedades específicas está o que Roman Jakobson chamou de

“literariedade”, como elemento que permite a distinção de um texto literário de outras

composições que não integram a literatura em sentido estrito, mesmo sendo um

texto verbal: “[...] o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade,

isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária”. (JAKOBSON apud

SOUZA, 2007, p. 50). Para Jonathan Culler há outras categorias que funcionam,

referindo-se não a propriedades específicas, mas a uma espécie de essencialidade.

7 Arte de compor ou escrever trabalhos em prosa ou verso com o objetivo de atingir a sensibilidade ou a emoção do leitor ou do ouvinte. (BORBA, 2011, p. 849)

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Tomemos a questão "O que é uma erva daninha?" Há uma essência de "daninheza das ervas" - um algo especial, um je ne sais quoi, que as ervas daninhas partilham e que as distingue das ervas não-daninhas? Qualquer pessoa que já tenha se oferecido para ajudar a limpar as ervas daninhas de um jardim sabe quão árduo é diferenciar uma erva daninha de uma erva não-daninha e pode se perguntar se há um segredo. Qual seria? Como se reconhece uma erva daninha? Bem, o segredo é que não há um segredo. [...] Talvez a literatura seja como a erva daninha. (CULLER, 1999, p. 29-30)

A maioria das tendências e dos autores da teoria da literatura vê a operação

de certo "desvio" organizado na linguagem como marca distintiva da literatura, um

desvio em relação a outras ocorrências da linguagem consideradas mais usuais e

tidas como normais, ou seja, determinadas composições verbais em que a

linguagem se apresenta elaborada de maneira especial, e nas quais se dá a

constituição de universos ficcionais ou imaginários.

Até aqui foi visto o suficiente para se deduzir que o objeto da teoria da

literatura não está fixo na materialidade, ou seja, na littera, mas também em outros

aspectos como literariedade, musicalidade, ficcionalidade, narratividade, poeticidade

etc.

O desvio organizado, a marca distintiva, a maneira especial, na qual se dá a

constituição de mundos imaginários, bem como a narratividade, a poeticidade não

são exclusividades da linguagem escrita. Aqui a teoria da literatura chega ao ponto

imaginado como o lugar que comportará o objeto sonoro: a teoria da literatura como

grupo de textos sobre tais aspectos.

Teoria, nesse sentido, não é um conjunto de métodos para o estudo literário mas um grupo ilimitado de textos sobre tudo o que existe sob o sol, dos problemas mais técnicos de filosofia acadêmica até os modos mutáveis nos quais se fala e se pensa sobre o corpo. O gênero da "teoria" inclui obras de antropologia, história da arte, cinema, estudos de gênero, lingüística, filosofia, teoria política, psicanálise, estudos de ciência, história social e intelectual e sociologia. As obras em questão são ligadas a argumentos nessas áreas, mas tornam-se "teoria" porque suas visões ou argumentos foram sugestivos ou produtivos para pessoas que não estão estudando aquelas disciplinas. (CULLER, 1999, p. 13)

Neste caso, as teorias que serão utilizadas neste trabalho serão as que

estão voltadas para a literariedade, narratividade, poeticidade, polissemia, entre

outras, desde que alimentem reflexões para além da literatura, para a linguagem

musical/sonora, como permitem os Estudos Literários.

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Teoria, nos estudos literários, não é uma explicação sobre a natureza da literatura ou sobre os métodos para seu estudo [...]. É um conjunto de reflexão e escrita cujos limites são excessivamente difíceis de definir. (CULLER, 1999, p. 12-13)

Na relação do objeto sonoro, como elemento constitutivo de um texto/textura

sonoro, como possível objeto de estudos da Teoria da Literatura, podem ser

examinadas questões voltadas para a ficcionalidade e, dentro deste aspecto, da

poeticidade e narratividade e os seus elementos de composição. Neste contexto,

serão objetos da Teoria da Literatura:

• a estrutura de obras narrativas sonoras, cuja função é contar a

história (ficção);

• a estrutura de obras poéticas sonoras;

• a estrutura de obras descritivas sonoras, cuja função é mostrar o

lugar em que se desenvolve a história. A descrição compõe o

espaço, como elemento da narrativa ou as imagens sonoras de

poemas;

Para a composição destas estruturas, os objetos serão estudados como

elementos de composição da narrativa, da descrição e do poema. As reflexões

levarão em conta questões como:

- o espaço onde a ação está decorrendo, mas em uma diversidade de

espaços, como físicos, psicológicos, sociais, culturais, etc.;

- o tempo de ocorrência da narração sonora é o cronológico, porém,

como na literatura, pode alcançar o efeito de ficção. O tempo na

narrativa sonora depende da natureza do acontecimento e do ponto de

vista do narrador. O tempo pode ser cronológico, psicológico,

linguístico, histórico, etc.;

- o enredo desenvolvido e o seu contexto;

- o narrador;

- a verossimilhança, ou a suspensão da mesma, e todas as coisas

impossíveis que ela possa dizer;

- os personagens e sua complexidade na composição da narrativa;

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- a literariedade, ou seja, a forma discursiva em sua riqueza de

expressão, a escolha de objetos sonoros que, intencionalmente,

estabelecem um sentido de recriação da realidade – quando há

literariedade, o plano de conteúdo é expresso de forma sonora, isto é,

numa linguagem sonora;

- a linguagem;

- o conjunto de elementos que constituem o plurissignificado do texto

sonoro;

- o nível de expressão (discurso) e o plano de conteúdo (contexto) de

uma produção.

Visando clarear o entendimento quanto à narrativa ou poesia sonora, vamos

considerar o objeto sonoro, captado e gravado, sendo esta gravação, hoje muito

comum, convertida em arquivo digital, como matéria prima para a feitura da

narração, por meio de um computador. Usando um programa editor de áudio, como

um modo de manipulação de áudio e, sobretudo, como um modo de se pensar a

música, em que fica registrada toda e qualquer ideia que venha compor a textura

sonora, bem como ocorre com os escritores, que se utilizam de um editor de textos

e, desta forma, registram suas ideias até finalizar o texto.

Partindo do estudo desses objetos, vê-se que uma composição sonora é um

conjunto de ideias da realidade ou da imaginação, ou como dizem alguns teóricos da

literatura, é uma suprarrealidade ou um simulacro. O objeto sonoro, enquanto

representação de uma realidade, pode ser usado na sua forma natural, como uma

fotografia ou imagem cinematográfica, com realismo8, compondo uma obra em que

o seu conteúdo reflita com a máxima fidelidade a realidade natural, como pode

sofrer alongamentos, encolhimentos, deformações, que caracterizam o hiper-

realismo, irrealismo, surrealismo, bem como ter um caráter impressionista ou

expressionista, como também, devido ao contexto, imprimir uma carga e uma

densidade maior. O modo de organização pode lhe dar um grau maior de

ficciona

lidade, de literariedade.

8 “O que é realismo para o teórico da arte? É uma corrente artística que propôs como seu objetivo reproduzir a realidade o mais fielmente possível e que aspira ao máximo de verossimilhança. Declaramos realistas as obras que nos parecem verossímeis, fiéis à realidade”. (JAKOBSON apud TOLEDO, 1976, p. 120)

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A mesma dificuldade em se definir o que é o objeto da Teoria da Literatura,

ou que torna um texto literário, ou mais, o que torna um texto literário uma obra de

arte, encontramos na análise de uma obra sonora, pois requer um empenho

intelectual equivalente, e que, também, não pode propor a última verdade sobre uma

obra. Assim como foi produtivo para este trabalho pensar nas condições que tornam

um texto literário, não seria prudente deixar de reconhecer a relevância das teorias

que não tratam do texto literário como um todo, mas se ocupam em distinguir traços

literários em um texto, pois não é incomum encontrar literariedades em texto não

literário

as razões que fazem com que a Teoria Literária lide com novos

objetos

idade linguística, um elemento de constituição frasal,

textual, sujeito a sofrer a ação das propriedades específicas estudadas e tidas como

ia Literária.

2.3 O obje

2.3.1 O que é música?

s, como também, em textos tidos como literários encontrar trechos em que

carecem de literariedade e que nem por isso deixam de ser textos literários.

Vista como uma das artes, a literatura usa a linguagem como matéria-prima,

assim como a escultura usa a pedra, a pintura usa as cores e a música usa os sons.

Da sua linguagem, a literatura compartilhada com as outras linguagens, a

polissemia, a ficcionalidade e o estranhamento que é capaz de causar no leitor.

Estas são algumas d

como a canção, os quadrinhos, o cinema e, no caso específico, a

composição sonora.

Estas reflexões minimizam o distanciamento objeto/teoria, ou melhor,

reposiciona a teoria para uma melhor apreensão do objeto. O empenho seguinte é o

de reposicionar o objeto, conforme dito anteriormente. O que será estudado a seguir

não é o objeto em si, mas o processo de significação por que passa o objeto desde

a sua condição fenomenológica até o concluso da semiose, quando se faz signo e,

nesta condição, como un

objeto da Teor

to

Figura 1: Laerte, sobre a música

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A questão “o que é música?” principia os estudos sobre o objeto desta

dissertação. Mesmo sabendo que ainda que fosse possível reunir todas as tentativas

com o intuito de responder esta questão, por mais reflexões que se faça e

conclusões que se tenha, não seria respondida, nem ela, nem a questão “o que é

isso que chamamos de música?”. É curioso como são resistentes estas questões.

Não vou voltar a repeti-las na dissertação, mas estarão em todas as entrelinhas,

pois todo este estudo está movido intrinsecamente por essa não certeza.

Desde o início do Século XX a música tradicional europeia enfrenta uma

crise, provocada pelo esgotamento do modelo convencional somado às novas

expectativas estéticas condizentes aos novos moldes sociais e culturais, resultantes

do progresso tecnológico e das experiências da primeira guerra mundial. Como

reação, surgem diversas tentativas de se afirmar uma nova música, a partir de novas

harmonias, formas e ritmos. Essa “música nova” principia o que hoje conhecemos

por música contemporânea. Desde então, a música entra em uma temporada de

retomadas e experimentalismos que duram até os dias atuais. Esses

experimentalismos que vão desde o neoclassicismo ao serialismo, dodecafonismo,

atonalismo, bem como projetos experimentais que usavam as novidades

tecnológicas, que permitiam as gravações, montagens, filtragens, como na música

concreta, música eletrônica, aleatória, minimalismo etc.

De lá para cá, foram muitas as tentativas de revigoramento da música, mas

essa multiplicidade musical tem sido incompreendida, não tem conseguido uma

condição de comunicabilidade. Esta é uma questão que requer estudos que

relacionem as fontes de sonoridades e os novos modos de escuta que essas

provocam.

Dos caminhos inaugurados irei me ater em um: o do uso de sons cotidianos,

da natureza, da cidade, com suas construções modernas, prática surgida desde a

música futurista, continuada pela musica concreta. Atualmente é muito comum o uso

concreto dessas técnicas na música eletrônica popular.

As pesquisas relacionadas à música concreta, feitas por Pierre Schaeffer,

exploravam os mais diversos sons, que depois de captados, isto é, gravados, eram

tratados e manipulados através de técnicas de composição, na época, inovadoras,

como retrogradação, sobreposição, alteração de andamento, entre outras.

Os sons não musicais na arte nunca tiveram o mesmo privilégio que os sons

musicais, dos instrumentos musicais. Será fundamental estudarmos a

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fenomenologia musical de Schaeffer e fazer a diferenciação entre o objeto sonoro e

o musical, mas, antes, será preciso contar uma história.

2.3.2 Uma história da música

Apesar de ser o objeto sonoro reconhecido e seu conceito formado apenas

no Século XX, para a sua apreensão se torna necessário apelar para questões que

perpassam a história da filosofia da música, desde a antiguidade até a atualidade.

É necessário que se faça uma contextualização, por isso vou contar uma

história da música. Uma história, porque deixarei de incluir períodos, personagens,

lugares e até movimentos historicamente considerados importantes para dar uma

maior importância a outros que não tiveram tal relevância, mas que subsidiam

melhor este trabalho.

2.3.3 Corredor histórico

Traçar um corredor histórico corresponde a traçar um verdadeiro corredor

polonês, pois será preciso focar no que está proposto e resistir ao bombardeio de

fatos relevantes concernentes aos períodos que serão estudados. A história a ser

contada terá em sua tessitura duas intenções: a de enfatizar os momentos em que a

música quis contar (narrar) e mostrar (descrever), isto é, as ocasiões em que ela

tendenciou para a narratividade, ou descrição; e a outra intenção é afunilar a

contextualização para os indícios e germes que ocasionaram o surgimento do

conceito de objeto sonoro.

Contarei a história cronologicamente sem ter como foco principal datas e

nomes, mas com o cuidado de não perder a visão do processo acontecendo. Alerto

também que as minhas anotações serão, inicialmente, superficiais, mas na medida

em que cronologicamente a história se aproxime da contemporaneidade, irei me

detendo um pouco mais até chegar ao ponto fundamental do contexto, o que exigirá

uma detenção mais cuidadosa e substancial.

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2.3.4 O diapasão do mundo

Figura 2: Xilogravura Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd (1617)

A gravura/ensaio acima não tem o status de reforço científico, mas é

reconhecível nela uma força metafórica suficiente para justificar o seu uso, ilustrando

a configuração sonora ambiental do planeta. O monocórdio divino simboliza o

mundo como um grande instrumento. A sua única corda retrata a tensão sonora do

planeta. R. Murray Schafer9, em seu livro Afinação do mundo (2001)10 trata o

planeta como uma composição musical macrocósmica.

Nesse livro, Murray fala das primeiras paisagens sonoras, relacionadas às

transformações da água, das vozes do vento, sons de árvores caindo, canto dos

pássaros, sons dos insetos. Esse cenário mostra um ambiente sonoro sem tensão,

por analogia, a afinação do diapasão do mundo era afável e cordial.

9 Raymond Murray Schafer (1933) é compositor, pedagogo musical, artista plástico, escritor, cenógrafo e investigador do universo da música e também do universo sonoro em geral. Desenvolveu uma importante pesquisa a respeito do ambiente sonoro alertando sobre o ruído ambiental indiscriminado e poluição sonora. Trata o mundo como uma vasta composição macro cósmica, composta pelos “músicos”, definidos pelo autor, como “qualquer um ou qualquer coisa que soe”. 10 A Afinação do Mundo (The Tuning of the World), publicado originalmente em 1977 e traduzido para o português pela Editora da Unesp (2001).

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Fazendo as devidas parecenças, recorro a Pitágoras11, por ter sido o

primeiro, que ao relacionar a matemática à música, conseguiu através de cálculos

cientificar as tensões de seu instrumento musical. Pitágoras teria esticado uma

corda musical que produzia um determinado tom. Fez marcas na corda que a

dividiam em doze secções iguais. Este instrumento, mais tarde, foi chamado de

monocórdio.

Ao tocarmos em uma corda, provocaremos a sua vibração. A tensão da

corda determina a velocidade da vibração e a velocidade da onda sonora determina

a altura do som. As vibrações rápidas produzem sons agudos e os lentos sons

graves, por isso cada nota tem sua frequência (número de vibrações por segundo).

Uma corda frouxa propagará ondas mais lentas, portanto mais graves e até mais

próximas do silêncio. Já o inverso, isto é, se tocarmos uma corda mais tensa, as

ondas se propagam mais rapidamente, produzindo um tom mais agudo ou mais

ruidoso.

Figura 3: Harmonic partials on strings 12

Considerando que no princípio do mundo, a sua natureza estava em

desenvolvimento, com seus altos e baixos, invocamos a imagem da mão que

tenciona a tarraxa do monocórdio de Fludd (Figura 2) em movimentos, entre

11 Pitágoras de Samos, foi um filósofo e matemático grego que nasceu em Samos entre cerca de 571 a.C. e 570 a.C. Pitágoras, através da descoberta do monocórdio, fundiu na época a matemática e a música. 12 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Overtone.jpg (consultado em 15.07.2013.

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silêncios e sons apocalípticos, procurando a afinação adequada. Ao encontrar a

frequência ideal, vem a estabilidade.

Figura 4: Detalhe da Xilogravura Utriusque Cosmi Historia, de Robert Fludd (1617)

Assim como é na natureza, tem sido na arte. Para uma compreensão maior

vamos associar o pensamento de Georg Lukács, que concatena o que ele define

como desarmonia fundamental da existência a uma resolução na forma artística,

com o pensamento de Murray Schafer ao fazer a descrição da provável paisagem

sonora natural nos primórdios:

Toda a forma artística é definida pela dissonância metafísica da vida que ela afirma e configura como fundamento de uma totalidade perfeita em si mesma; o caráter de estado de ânimo do mundo assim resultante, a atmosfera envolvendo homens e acontecimentos é determinada pelo perigo que, ameaçando a forma, brota da dissonância não absolutamente resolvida. (LUKÁCS, 2000, p. 71)

Schafer, ao falar dos primeiros sons que se fizeram ouvir, dá como exemplo

“a carícia das águas”. Esta imagem de Schafer dá o “tom” de toda a paisagem: hálito

ou sussurro do vento que move as folhas ou galhos das árvores, uma paisagem

sonora natural, de onde se supõe um nível baixo de tensão sonora.

Quando o homem surgiu na terra já havia uma configuração sonora: o som

do mundo, o som da vida, ou uma “paisagem sonora”13, de acordo com a definição

de Schafer (2001):

Paisagem sonora - O ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudos. O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas, como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando consideradas como um ambiente. (SCHAFER, 2001, p. 366)

13 Schafer criou o termo “soundscape” (paisagem sonora), neologismo que pretendia fazer uma analogia com a palavra “landscape” (paisagem).

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O mundo e suas sonoridades, com todas as suas significações, tem

importância fundamental no processo da evolução do comportamento

comunicacional humano. Diz Schafer:

Os sons fundamentais de uma paisagem são os sons criados por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais. Muitos desses sons podem encerrar um significado arquetípico [...]. (SCHAFER, 2001, p. 366)

Afirmar que os sons surgiram com a origem do mundo, apesar de ser

especulação, é óbvio e lógico. Também não se sabe sobre o surgimento da música

nos primórdios. Neste aspecto temos o prejuízo de não ter testemunho histórico nem

provas que sustentem qualquer teoria. Essa tem sido uma questão, pode-se dizer,

que tem reunido em torno de si, conhecimentos multidisciplinares. Só admitindo os

estudos da biologia, antropologia, linguística, arqueologia, psicologia e outros

conhecimentos de diversas áreas, pode-se chegar a reflexões convincentes a

respeito do surgimento da música e do aparecimento de instrumentos musicais. Mas

todos os estudos se confluem quando admitem que a mola propulsora para a

criação das linguagens foi a necessidade de comunicação.

2.3.5 Communis

COMUNICAÇÃO. Do latim “communicatio”, de “communis” = comum. O

homem necessitou se comunicar, criou linguagens e se expressou. Apesar da

explicação ligeira, esse processo perdurou por milhares de anos. No processo de

interação humana, a linguagem é a mediadora, possibilitando que essa interação se

realize através de signos que, quando organizados, resultam em mensagens. Por

falta de cientificidade, também não é possível dar explicações admitidas pelo padrão

de qualidade acadêmica sobre a origem das linguagens. Apesar disso, teorias

apontavam para o caminho natural que mostra que antes de desenvolver a

linguagem verbal, a necessidade de tornar algo comum a muitos levou o homem a

desenvolver linguagens não verbais como o desenho, o gesto e entre elas a

linguagem sonora, como a imitação dos sons produzidos pelos animais e da

natureza circundante, como o correr das águas, o sopro do vento e o barulho da

chuva, conforme prega a teoria onomatopaica, respaldada pelo fato de existir

onomatopeias em todas as línguas. Outra proposta identifica a semente da

linguagem nas interjeições, nas exclamações de dor, alegria, susto, surpresa, medo

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e expressões de emoções. Não é intenção, neste momento dos estudos, focar nas

questões da origem do uso da linguagem sonora, muito menos indicar o momento

em que surgiu a linguagem musical. Sobre a comunicação e linguagem, tratarei em

capítulos mais adiante. Como estou apenas tratando de aspectos históricos, não vou

me deter em definições por ora.

O importante, e ponto a ser enfocado, nesta altura deste estudo é já detectar

as tentativas de “mostrar” algo e de “contar” as ocorrências, descrever lugares e

narrar acontecimentos, com intenção de se comunicar, de passar informação

adiante, de se expressar.

2.3.6 Mostrar e contar

As artes sempre se ocuparam em mostrar e contar. Lembremos-nos de

Victor Chklovski, quando destaca a afirmação “a arte é pensar por imagens” de

Potebnia (apud CHKLOVSKI, 1976, p. 39). Esta concepção permeará todo este

trabalho Mostrar é descrever e contar é narrar. No decorrer desta dissertação, estes

conceitos serão tratados como polos, considerando que o efeito destes pontos de

vista será mais contundente e até esclarecedor em abordagens que surgirão e que,

apesar de conhecer que entre mostrar e contar existam graduações de prevalência

em uma narrativa ou em formas criativas de mesclagem, no que se refere à

linguagem musical ou sonora, é necessário fazer a separação em planos. Por

exemplo, na linguagem musical, na melodia é onde se desenvolve a narração, onde

está o plano discursivo, o contar, enquanto no arranjo harmônico está o plano

descritivo, que criará o ambiente, a atmosfera. Com a linguagem sonora ocorre o

mesmo, se divide em planos, onde o primeiro plano que, por analogia, corresponde

à melodia, será o espaço das ocorrências de relações entre os signos sonoros

(objetos sonoros) organizados sequencialmente, formando frases, enunciados,

fragmentos discursivos; enquanto em segundo plano, correspondente ao arranjo, ao

campo harmônico, se descreve, se mostra, é onde se formata o lugar, o cenário, o

ambiente, o clima, a paisagem sonora.

No conceito de arte musical, os sons, os ruídos não tinham o status dos

sons oriundos dos instrumentos musicais. Como arte, somente a linguagem musical

teve os privilégios. A música sempre teve como unidade sintática os sons

produzidos pelos instrumentos musicais. No entanto, em sua história podemos

identificar os momentos em que a música pretendeu evocar ideias ou imagens

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34

extramusicais na mente do ouvinte, em formas narrativas (diegéticas) ou descritivas

(miméticas).

2.3.7 Mímesis e diegesis

É importante falar da música da Grécia, pois a música ocidental se formatou

a partir de uma herança grega. Quanto aos aspectos estéticos não é possível fazer

tal afirmativa com tamanha certeza, pois não existem muitos exemplos da música

praticada na Grécia antiga, mas quanto ao pensamento filosófico musical, sem

dúvidas, temos um grande legado que parte das ideias de Pitágoras, Platão e

Aristóteles. Sabe-se que fazer uma reconstituição histórica das concepções musicais

da antiguidade resulta em um grande problema, pois testemunhos referentes aos

séculos anteriores a Platão e Aristóteles são extremamente escassos, fragmentários

e indiretos. Apesar disto, revelam sempre a existência de culturas musicais

consistentes e que possivelmente influenciaram a cultura grega, como a música

egípcia, árabe, indiana, chinesa, hebraica etc.

Apesar de não termos exemplos musicais da Grécia ou informações sobre a

música em si, pois no terreno da música não encontramos conhecimentos tão

relevantes como na filosofia, religião e ciência, mas nas obras gregas encontra-se

subsídios importantes, principalmente na República, de Platão e Poética, de

Aristóteles, no que se refere à mímesis e a diegesis.

Mas, antes ainda, no período pré-socrático, de Pitágoras, Heráclito e

Parmênides, a música (ou musiké) não era vista como uma criação humana, mas

como parte de um sistema cosmológico, a manifestação de um princípio universal,

um arché14. Dentro desse contexto, não se especula sobre o que a música significa,

mas se sente a música.

Quando dizemos que o som era sentido, sua força era de tocar o homem para qualquer lugar e não de fazer o homem refletir sobre este fenômeno, dividi-lo, analisá-lo. Assim, a gestualidade espontânea do corpo é já por si mesma uma certa objetivação, uma certa manifestação do sentido. Ela não é, obviamente, a objetivação de uma ideia, mas a de uma situação no mundo sobre a qual se decalcam as próprias ideias, Tal sentido, que os fenomenólogos consideram a raiz do homem, encerrava imediatamente para o

14 Para os filósofos pré-socráticos, a arché (origem), significa a fonte, a substância inicial, a origem e a raiz de todas as coisas da physis (natureza), de onde as coisas vêm e para onde vão, um princípio presente em todos os momentos da existência de todas as coisas; no início, no desenvolvimento e no fim de tudo.

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homem a pergunta sobre o mundo e o convidava a sondá-la, sem sair desse sentido. Portanto, a fonte da música, da forma como a compreendemos hoje, só pode estar na experiência auditiva e compulsória do universo. Daí, também, a frase de Heráclito: ouvir o lógos, não para entendê-lo, mas apenas para ouvi-lo e escolher um dos caminhos que aprofundassem a própria audição. (TOMÁS, 2002, p. 50)

Apesar de que Platão tinha suas bases conceituais relacionadas à música

na filosofia pré-socrática, sua filosofia estava voltada para a educação, ou paidéia, e

em seu papel paidético, pedagógico, a música deixava de ser a manifestação do

arché e passava a ser sua imitação, uma representação mimética do mundo ideal.

Na época de Platão, a "representação" artística em geral era chamada de

mímesis15. Para Platão, até mesmo a criação do mundo era uma imitação da

natureza verdadeira (o mundo das idéias). Sendo assim, a representação artística

do mundo físico seria uma imitação de uma imitação. Já Aristóteles via a arte como

representação do mundo, da natureza, não fala de natureza verdadeira. Apesar de

serem visões distintas, são dois pontos de vista, que, para uns, se contradizem e,

para outros, se complementam.

Os gregos clássicos pensavam a arte como uma figuração enraizada na

mímesis, na representação, ou, melhor, na "apresentação" da beleza do mundo, na

produção de imagens e a música era um exemplo privilegiado de mímesis, sem que

seja imitativa no nosso sentido restrito. A música era usada pedagogicamente,

cuidava da alma, tratava-se de uma "modelagem" do aluno, da sua alma.

Para Aristóteles música é um ato mimético, é expressão da vida afetiva, é

interioridade que se exterioriza, subjetividade que se sente, mímesis do anímico, “ao

ouvir tais mimeses, a alma muda de estado” – acompanha e reproduz animicamente

o mélos que ouve, que sente. Para ele, a música representa os estados da alma,

como coragem, brandura, temperança, ira, medo etc.

Platão e Aristóteles também distinguiram mímesis de diegesis, sendo a

diegesis não a representação do real através da arte, mas o que era encenado. Os

atores descreviam e atuavam. Na diegesis, o autor conduzia o espectador a

expressar com liberdade a sua criatividade e as suas fantasias. A diegesis pode ser

compreendida como “contar”. O narrador descreve o pensamento e as emoções dos

15 O conceito ou a tradução por "imitação" faz perder muito do sentido. Inclusive há dificuldade em encontrar um termo equivalente ao grego na Língua Portuguesa.

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personagens, enquanto a mímesis é vista como “mostrar” o que está acontecendo

com as personagens através de seus pensamentos e suas ações.

Então, desde a Grécia se reconhece a capacidade mimética da música e

durante sua história, a música foi vista como mímesis dos sentimentos, estados de

espírito, das emoções e das paixões.

2.3.8 A semântica na tradição musical

Eu escuto a cor dos passarinhos.16

Manoel de Barros

Sempre recorremos aos filósofos gregos e aos conhecimentos romanos,

pois nenhuma história pode ser contada desconsiderando as contribuições desses

pensadores. Mas não temos modelos, exemplos da música praticada antes da Idade

Média. A história da música ocidental sempre é contada a partir da música da igreja

cristã primitiva e o foco sempre está nas orações, nos cantos devocionais, como os

cantos dos salmos (salmodias), em que as melodias e as formas musicais eram

estabelecidas por sua relação com o texto. Entre essas formas estão o cantochão, o

canto litúrgico e o coral gregoriano, que é reconhecido por sua riqueza melódica,

cantada em ritmo prosódico, devido à sua subordinação ao texto.

Da música religiosa para a música profana: algumas formas musicais

surgiram, ligadas à dança e à poesia lírica popular, cantadas nas aldeias,

consideradas “subversivas”, conhecidas historicamente como música profana.

Dessas combinações entre texto e música, no século XI, surge o movimento

trovadoresco e novas formas de canções profanas (música combinada com a poesia

lírica dos trovadores e ladainhas, formas das antigas epopeias em verso) e, também,

sacras (música combinada com sequências e versículos sacros, hinos ambrosianos,

etc.).

No século XIII, uma espécie de constatação de que a música poderia se

desenvolver de outra forma que não ao modo do texto, moveram a música para uma

tendência polifônica. Diz Carpeux:

Houve, dentro do coral gregoriano, o germe de uma evolução: a contradição entre a obrigação de acompanhar fielmente o texto litúrgico à maneira de recitativo, e, por outro lado, a presença de tão

16 O livro das ignorãças - VII

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rica matéria melódica, os “melismos” que se estendem longamente quase como coloraturas, sem consideração do valor da palavra. Essa contradição levaria à divisão das vozes: uma recitando o texto; outra, ornando-o melodicamente. São essas as origens das primeiras tentativas de música polifônica, do Organum e do Discantus [...] (CARPEUX, 2009, p. 20)

As composições polifônicas crescem durante o século XIII, mas é no século

XIV que consegue introduzir recursos de organização musical suficientes para lhe

garantir um maior grau de autonomia em relação ao texto. A ars nova17 faz

progressos na notação, com recursos que equilibrariam a melodia, o ritmo e a

harmonia, aperfeiçoando o sistema da pauta, em que se modificaram desenhos e

valores de várias notas e também foram introduzidos diversos símbolos inteiramente

novos18, popularizando várias estruturas novas de composição, privilegiando, desta

forma, os gêneros de música profana.

Apesar da aparente autonomia da parte musical em relação ao texto, essa

relação será estabelecida sobre outros parâmetros mais adiante: a retórica e

oratória. Embora tenham ocorrido mudanças no pensamento ocidental, a partir do

século XV e XVI, que alteraram significativamente a relação entre o homem e

mundo, as músicas da Idade Média e da Renascença, quando miméticas,

continuavam sendo entendidas como representações das paixões, bem ao modo da

antiga tradição grega, sendo conservada. Inclusive, os tratados musicais medievais

e renascentistas, sustentavam as traduções dos antigos textos atribuídos a

Pitágoras, Platão, Aristóteles, Ptolomeu, Plutarco etc. No entanto, neste mesmo

período surgiram indícios de mudanças. A capacidade mimética da música não

ficaria restrita aos sentimentos e paixões do homem, outras qualidades especiais da

música foram descobertas, entre elas a sua capacidade de sugerir cenários

(mostrar) e situações (contar). Desta habilidade surgiu a música conhecida como

descritiva, ou música programática (apesar destas denominações não existirem à

época).

A música de programa, ou música descritiva é a música que tem por objetivo

evocar ideias ou imagens extramusicais, representando musicalmente uma cena,

uma imagem ou estado de ânimo. A música programática pode narrar e descrever.

17 Ars nova (arte nova, em português) foi o nome dado em sua origem, a um novo método de notação musical. Aas grandes facilidades de escrita que o método introduziu propiciaram o desenvolvimento de todo um novo estilo musical, que acabou por receber o mesmo nome. 18 Manuscrito disponível nos anexos.

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Se nas canções, que são formadas de texto e melodia, podemos entender que cabe

ao texto sugerir, fazendo-nos imaginar lugares, personagens e ações, pois o texto

nos induz a isso, quanto à música instrumental, poderíamos perguntar: terá a música

também esse poder sugestivo? Há séculos essa qualidade da música que envolve

som e pensamento tem sido explorada, chegando ao ponto de se criar um termo

específico para esse tipo de música instrumental: “música programática” ou “música

descritiva” que se contrapunha à música instrumental que não ambicionava sentidos

representativos, que passou a ser denominada “música absoluta”, termo criado para

se fazer a distinção. Ambos os termos foram criados no século XIX, assim, puderam

ser colocadas em polos opostos de intenção. De um lado, a música pura, que almeja

ser apenas música; de outro, a música programática, que tenta representar algo

além dela mesma, que tem a intenção de gerar imagens ou sensações específicas

em nossa mente, nos fazendo imaginar lugares, experiências e narrativas, apenas

por meio de sons musicais.

Os compositores da Idade Média e do Renascimento escreveram uma

abundância de música programática. No século XIV, na Itália, a caccia19, era um tipo

de composição para descrever uma caçada. Os compositores da época, que criaram

essa forma, entendiam que o modo adequado de se fazer essa imitação era através

de cânones20, isto é, uma voz em perseguição da outra. No século XVI, tinham os

madrigais, que não se limitavam em ser apenas fundos para as palavras. Tinha-se,

então, uma noção de que a música poderia ser feita para acompanhar o sentido da

palavra, estar subjacente a ela, isto é, para sentimentos superiores, melodias

ascendentes, para estados inferiores, notas descendentes. Na obra The Battle, o

compositor William Byrd21 produziu descrições de situações dos soldados, como

marcha da infantaria, marcha da cavalaria, trombetas, gaitas de foles, marcha

irlandesa e tabal, flauta e tabal, marcha para a batalha, tropas se confrontando, a

retirada, gala da vitória etc.

19 Caccia, (italiano: "caça" ou "perseguição"), foi uma das principais formas musicais da Itália do século 14. Consistia de duas vozes, em cânone (imitação melódica) no uníssono (mesmo tom), e muitas vezes de uma terceira parte não-canônico, composto por notas longas que alicerça as vozes canônicas, seguido por um ritornello. Os textos Caccia eram tipicamente realistas cenas de caça. 20 Cânone é uma forma polifônica, em que as vozes imitam a linha melódica cantada por uma primeira voz, entrando cada voz, uma após a outra, como uma espécie de corrida onde a segunda jamais alcança a primeira. 21 William Byrd (1543-1623), foi um compositor inglês. Foi considerado o maior compositor de contraponto de sua época na Inglaterra.

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Johann Kuhnau22 escreveu sonatas bíblicas, Couperin23 fez a peça para

cravo La Forqueray, que era a descrição, ou o “retrato” de Forqueray, esposa de

Antonio Forqueray, músico da corte de Luis XIV.

Bach24 cria a fuga25, forma mais elaborada do cânone. Explora a fuga com a

forma de variações sobre o tema, variando o tom, o ritmo e especialmente a voz,

com uso de imitação. O próprio nome já indica, como se o compositor estivesse

fugindo e perseguindo o tema (uma espécie de perseguição entre as vozes).

No período barroco, as noções de expressividade da música vão mais além.

Os cuidados em encontrar um sistema mais simples e racional com o fim de adaptar

a música às palavras, de encontrar uma correspondência e uma congruência entre

música e o sentido da palavra, pois, tendo cada palavra uma carga semântica, ter-

se-ia que encontrar a harmonia equivalente na música para corresponder por

analogia. A música deveria “mover os afetos” a partir da perspectiva do texto. Para

os cuidados com a palavra no barroco foram criados cuidados correspondentes para

a música instrumental barroca, como a articulação e fraseado. Esse é um momento

em que a musica instrumental se desenvolve rapidamente, pois se estudava a

retórica clássica para um aprimoramento nas composições musicais.

Provavelmente a obra barroca mais famosa seja As quatro estações26, de

Antonio Vivaldi27, um conjunto de quatro concertos para violino e orquestra de

cordas que ilustra as estações do ano com chuva, zumbido das moscas, ventos

gelados, esquiadores sobre o gelo, camponeses em baile e muitas outras coisas.

Estes quatro concertos tinham um programa claro, pois vinham acompanhados por

um soneto ilustrativo impresso na parte do primeiro violino, cada um sobre o tema da

22 Johann Kuhnau (1660-1722), foi um compositor alemão, organista e teorista musical. Precedeu Johann Sebastian Bach como kantor da Igreja de São Tomás, em Leipzig. 23 François Couperin (1668-1733) foi um compositor e cravista francês. 24 Johann Sebastian Bach (1686-1750) foi um compositor, cantor, maestro, professor, organista, cravista, violista e violinista da Alemanha. Praticou quase todos os gêneros musicais conhecidos em seu tempo, com exceção da ópera. Sua habilidade ao órgão e ao cravo foi amplamente reconhecida, sendo considerado o maior virtuose de sua geração e um especialista na construção de órgãos. 25 Fuga é um estilo de composição contrapontista, polifônica e imitativa, de um tema principal, com sua origem na música barroca. Na composição musical o tema é repetido por outras vozes que entram sucessivamente e continuam de maneira entrelaçada. Sua origem se dá na forma musical chamada de cânone. 26 Le quattro stagioni ( As Quatro Estações), são quatro concertos para violino e orquestra do compositor Antoni Vivaldi. As Quatro Estações está entre as peças mais populares da música barroca. 27 Antonio Lucio Vivaldi (1678 - 1741) foi um compositor e músico italiano do estilo barroco tardio. Era conhecido também como il prete rosso (o padre ruivo) por ser um sacerdote católico de cabelos ruivos. É conhecido popularmente como autor dos concertos para violino e orquestra Le quattro stagioni (As Quatro Estações).

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respectiva estação. Não se sabe a origem ou autoria desses poemas, mas especula-

se que o próprio Vivaldi os tenham escrito.

No período clássico a música programática pouco se desenvolveu, por ser

uma época em que a música nutria-se dos seus recursos internos.

Beethoven28 compôs a Sinfonia nº 6, A Pastoral, que contém descrições dos

cantos dos pássaros, água correndo, camponeses dançando, uma trovoada,

expressões entre a descrição de sentimentos e a descrição de situações da vida no

campo, etc. Beethoven voltou depois à música de programa com a sua Sonata para

piano Op. 81a, Les Adieux, que descreve a despedida e o regresso do seu amigo, o

Arquiduque Rudolfo de Áustria29, Em compensação ao período clássico, a música

programática floresceu na música romântica.

Berlioz30 criou um gênero descritivo, chamado por ele de “sinfonia

descritiva”. O primeiro exemplo é a Sinfonia Fantástica (1830), uma narração

musical de uma historia de amor, vivida pelo autor. Berlioz mescla estruturas como a

forma-sonata e sinfonia tradicional, com elementos narrativos, dramáticos, para

contar a história da Sinfonia Fantástica.

Muitos compositores românticos posteriores a Beethoven, encontravam, em

outras fontes artísticas, como na poesia e pintura, inspiração para compor,

ampliando as possibilidades de expressão, dentro do romantismo. Berlioz tinha um

grande talento literário e vários compositores românticos tinham formação artística e

frequentemente dialogavam com outras artes. Schumann. Mendelssohn e Wagner31,

por exemplo, também pintavam, e foi por seu pioneirismo em avanços da linguagem

musical que Richard Wagner se tornou o compositor mais representativo deste

período. A sua influência vai além da música, é também conhecida na filosofia32,

literatura, artes visuais e teatro. Wagner tinha conceitos artísticos multifacetados e 28 Ludwig van Beethoven (1770 - 1827) foi um compositor alemão, do período de transição entre o Classicismo (século XVIII) e o Romantismo (século XIX). É considerado um dos pilares da música ocidental, pelo incontestável desenvolvimento, tanto da linguagem como do conteúdo musical demonstrado nas suas obras. 29 Rudolf Johannes Joseph Rainier von Habsburg-Lothringen (1788 -1831), italiano, foi um arquiduque e príncipe imperial da Áustria, príncipe da Hungria, arcebispo e cardeal de Olomouc, membro da Casa de Habsburgo-Lorena. 30 Louis Hector Berlioz (1803 - 1869) foi um compositor do Romantismo francês. 31 Wilhelm Richard Wagner (1813 – 1883), foi um maestro, compositor, Suas composições são admiradas por suas texturas complexas, harmonias ricas e orquestração, e o elaborado uso de Leitmotiv. 32 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844 - 1900), foi admirador da filosofia de Wagner na música e na arte. Ele admira o poder de Wagner de emocionar e se expressar. Em seu último ano de lucidez (1888-1889), Nietzsche escreve o ensaio crítico Nietzsche contra Wagner. Nele, descreve porque se separou de vez de seu ídolo e amigo, expressando desapontamento e frustração nas escolhas pessoais de Wagner, como a sua conversão ao cristianismo, vistos como um sinal de fraqueza.

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apesar de por vezes se basear só na música para ilustrar, como uma pintura ou um

poema, também desejava a fusão das artes (cenografia, dramaturgia, coreografia,

poesia, etc.), uma arte total e sinestésica. Dois conceitos wagnerianos são

importantes e por esta razão vou destacá-los:

Leitmotiv (em português, “motivo condutor”), são temas musicais associados

com caráter individual, lugares, ideias ou outros elementos. É uma técnica de

composição introduzida por Richard Wagner em suas óperas, que consiste no uso

de um ou mais temas que se repetem sempre que se encena uma passagem da

ópera relacionada a uma personagem ou a um assunto.

Gesamtkunstwerk (em português, "obra de arte total") é um conceito

estético, refere-se à conjugação de música, teatro, canto, dança e artes plásticas em

uma única obra de arte. Wagner acreditava que, na antiga tragédia grega, esses

elementos estavam unidos, mas, em algum momento, separaram-se. Wagner

resgata o antigo conceito estético, o ideal grego da fusão das artes poéticas, e seus

dramas musicais eram compostos como uma grande sinfonia dramática, para serem

encenadas e cantadas.

Surgem novas possibilidades formais para conter conceitos narrativos, como

o gênero Abertura Sinfônica para expressar argumentos extramusicais, como em

Manfredo, de Schumann, ou como em As Hébridas, de Mendelssohn, a ponto desse

alargamento da forma programática se desenvolver em poema sinfônico, gênero

descritivo especificamente destinado a sugerir imagens extramusicais. Franz Liszt33

foi o inventor do poema sinfônico.

Em 1874, Modest Mussorgski34 compôs uma série de peças descrevendo a

contemplação de dez pinturas e desenhos dos seus amigos numa galeria (Quadros

de uma exposição). O compositor francês Camille Saint-Saëns compôs muitas peças

breves que também qualificou de poemas sinfônicos. O compositor francês Paul

Dukas é recordado pelo seu poema sinfônico O aprendiz de feiticeiro, baseado num

conto de Goethe. Tchaikovsky35, em Abertura 1812, descreve o confronto entre as

tropas imperiais da Rússia e as de Napoleão Bonaparte, incluindo fragmentos onde

33 Franz Liszt (1811 -1886) foi um compositor e pianista húngaro do Romantismo. 34 Modest Petrovich Mussorgsky (1839 - 1881), compositor e militar russo conhecido por suas composições sobre a história da Rússia medieval. 35 Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840 - 1893) foi um compositor romântico russo tendo composto trabalhos como sinfonias, concertos, óperas, balés, música de câmara e obras para coro para as liturgias da Igreja Ortodoxa Russa.

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se reproduz La Marsellesa, símbolo do exército invasor e o compositor alemão

Richard Strauss36, que compôs poemas sinfônicos como, por exemplo, Don Quixote

(retratando episódios da obra de Miguel de Cervantes), ou a Sinfonia Doméstica

(que narra episódios da vida familiar do compositor). Afirma-se que Strauss afirmou

que com música se pode descrever qualquer coisa, mesmo uma colher de café37.

Debussy38, compositor impressionista é um exemplo contundente da

capacidade em descrever. Em sua obra La mer, usa harmonias e sonoridades

convincentes, para imitar os movimentos e a voz do mar.

Figura 5: Quadro de Hokusai39 A grande onda, que inspirou Debussy em sua obra La Mer

Debussy chegou a ser considerado autor de uma música “literária” e

“pictórica”, devido às suas ligações com a poesia simbolista e com o Impressionismo

nas artes plásticas. O uso de acordes como pontos de parada sonoros têm a mesma

função dos símbolos verbais da poesia simbolista da qual Debussy também é

contemporâneo. Por essas razões foi considerado compositor da poesia simbolista,

chegando a pôr em músicas poemas de Verlaine e Mallarmé. O poema sinfônico de

Debussy, Prélude à L'après-midi d'un faune (Prelúdio à tarde de um fauno) foi

36 Richard Georg Strauss (1864 - 1949), foi um compositor e maestro alemão. Ele é considerado um dos mais destacados representantes da música entre o final da Era Romântica e o início da Idade Moderna. 37 Richard Strauss Biography. Site Humanities Web. Disponível em <http://www.humanitiesweb.org/human.php?s=c&p=c&a=b&ID=60>. Acesso em 11 jun 2013. 38 Claude-Achille Debussy (1862 -1918) foi um músico e compositor francês. 39 Katsushika Hokusai (1760-1849), artista japonês, pintor e gravurista. 

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baseado no poema L'après-midi d'un faune40 de Mallarmé41, publicado em 1876,

com ilustrações do pintor impressionista francês, Édouard Manet.

Figura 6: Ilustração de Édouard Manet para a edição original do poema L’Après-midi d’dun Faune

(1876).

Muitas peças de Debussy tinham títulos poéticos e esses títulos já sugeriam

o seu tom descritivo poético. Por exemplo, a peça para piano La fille aux cheveux de

lin (A menina dos cabelos de linho), Jardins sous la pluie (Jardins na chuva) e

Reflets dans l'eau (Reflexos na água), são títulos que já antecipam que se trata de

uma música impressionista descritiva, que já sinalizam a intenção da descrição

poética.

A aspiração de Debussy em marcar as “impressões” se estende em Ravel42,

seu seguidor, que dá títulos também dotados de poeticidade às suas peças, como

na Pavane pour une enfante défunte (Pavana43 para uma Princesa Defunta). Ravel

também, a exemplo das técnicas da pintura, faz um trabalho minucioso com a

textura e a intensidade em sua obra Em O bolero, uma simples melodia, de

intensidade fraca, desfila vagarosa e, gradativamente, vão ingressando outros

40 O poema conta a história de um fauno que toca sua flauta nos bosques e fica excitado com a passagem de ninfas e náiades, tentando alcançá-las em vão. Então, muito cansado e fraco, cai em um sono profundo e passa a sonhar com visões que o levam a atingir os objetivos que dentro da realidade não tinha alcançado. 41 Stéphane Mallarmé, cujo verdadeiro nome era Étienne Mallarmé, (1842-1898) foi um poeta e crítico literário francês. 42 Joseph-Maurice Ravel (1875-1937) foi um compositor e pianista francês. 43 A pavana era uma dança espanhola tradicional, em movimentos lentos, muito popular entre os séculos XVI e XVII.

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instrumentos, seduzidos pela melodia, reforçando o discurso melódico, criando uma

dinâmica timbrística, até formar uma textura com toda a orquestra envolvida,

imprimindo uma forte intensidade. A partir do Romantismo, os compositores

passaram a valorizar mais o timbre e a intensidade, tratando-os como propriedades

de suma importância da música, pois as compostas até o período romântico

procuravam privilegiar altura (melodia) e duração (ritmo). Ravel considerava o Bolero

uma peça trivial e a descreveu como "uma peça para orquestra sem música", no

entanto, é a sua obra mais famosa e uma das músicas mais executadas até os dias

de hoje. Ravel é considerado por muitos como o último grande mestre clássico da

música europeia, ou que tenha sido plenamente reconhecido pelo grande público.

Certo ou não, a questão é que depois de Ravel as relações entre o público e os

compositores mudaram.

Quanto à relação sonoridade/pictoridade, encontradas nas obras

impressionistas, com destaques para Ravel e, principalmente Debussy, observa-se

que não se limita a uma afinidade simplesmente analógica, mas que está antes

fundada em um grau de correspondências que se aplica à linguagem em si,

qualquer que seja, independente da arte. Essas influências são recíprocas,

Kandinsky, por exemplo, em seu livro Ponto e Linha sobre Plano (2012), usa a

analogia com a música para descrever características de traço, linha e ponto e suas

relações com a música:

Sabemos o que é uma linha melódica. A maioria dos instrumentos musicais corresponde ao caráter linear. O volume do som dos diferentes instrumentos corresponde à espessura da linha: o violino, a flauta, o flautim produzem uma linha bem delgada; de uma linha mais espessa – produzida pela viola e pela clarineta -, chegamos pelos sons mais graves do contrabaixo e da tuba, às linhas mais espessas. Além de sua largura, a coloração da linha depende também da cor própria dos diversos instrumentos. O órgão é um instrumento tipicamente linear, tanto quanto o piano é um instrumento decorrente da ideia de ponto. Podemos constatar que na música a linha representa o meio de expressão predominante. Ela se afirma aqui, como na pintura, pelo volume e pela duração. Nessas duas artes, o problema Tempo e Espaço é um tema à parte, e sua separação conduz a uma atitude timorata devido à qual as noções Tempo-Espaço e Espaço-Tempo foram demasiado divididas. Os graus de intensidade, do pianíssimo ao fortíssimo, podem encontrar seu equivalente no crescimento ou no decrescimento da linha, ou então em seu grau de clareza. A pressão do gesto sobre o arco corresponde exatamente à pressão do gesto sobre a ponta. (KANDINSKY, 2012, p. 86-87)

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45

Debussy foi muitas vezes descrito como um compositor intuitivo,

improvisador e sonhador, quase sempre foi comparado aos pintores impressionistas,

especialmente a Claude Monet; e sua maneira de compor foi rotulada de

impressionista. As suas sequências de acordes, conforme as regras da teoria, eram

substituídas pela sucessão de acordes isolados. Essa técnica deu margem aos seus

contemporâneos associarem à maneira dos pintores impressionistas de cobrir a tela

de manchas coloridas (pointillisme). No entanto, Debussy era um fazedor de

estruturas, de quadros sonoros, que quantificava, que pensava as proporções como

respostas formais às estruturas poéticas dos poemas modelos, como o de Mallarmé.

Com o tempo, suas técnicas foram reconhecidas como inovações musicais e a sua

obra passou a ser compreendida, tornando-se um marco na história da música

europeia, causando uma verdadeira revolução e inaugurando a música moderna.

Mas a convivência entre a música programática e a música absoluta não era

pacífica. Havia uma divisão entre as maneiras de se compor. Durante todo o

romantismo, foram muitas discussões e até disputas quanto à questão estética ou o

valor artístico da música programática, entre teóricos, críticos, maestros e

compositores. Muitos eram contra a intenção de expressar sentimentos com música

e exaltavam o valor musical apenas por suas qualidades intrínsecas,

desconsiderando qualquer atribuição extramusical.

2.3.9 Tempos modernos

Abra a janela e ouça: música44

John Cage

Peço licença para tirar o foco do corredor histórico traçado e fazer uma

parada necessária e abrir uma janela para olharmos os acontecimentos e

acompanharmos as transformações sociais, econômicas, provocadas pelas novas

tecnologias. Esta parada estratégica é determinante para compreendermos as

razões que motivaram tantas tentativas de manuseio, tantos experimentos e

proposições que resultaram em modificações, rupturas, encantos, exageros,

variações, precipitações, erros, ajustes e acertos com a linguagem musical que

ocorreram a partir desse período de transformações em todos os segmentos e

44 FERRAZ, 2005, p. 97

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46

aspectos por quais passou a humanidade. De modo algum poderíamos

desconsiderar esses fatos. Não nos situaríamos sem esta parada capciosa.

Figura 7: Cartaz do filme Tempos Modernos (1936)

2.3.10 O mundo em revolução

Há sempre uma sonoridade no fio de Ariadne.45

Deleuse e Gattari

O início do século XX corresponde a um período de grandes mudanças

provocadas pela revolução industrial, que teve o seu início no final do século XVIII

na Inglaterra. Com o surgimento das máquinas e locomotivas, que iniciaram o ciclo

das grandes invenções, uma série de transformações ocorreu no campo da ciência e

da técnica, compondo e decompondo os centros urbanos. O processo de

industrialização criou meios de transportes, máquinas e objetos industriais que

ocuparam a vida do homem, em todos os aspectos, inclusive no mais relevante, no

motivo pelo qual fizemos a nossa parada astuta: a questão do som ambiente. O

homem da cidade começou a ter contato com uma nova configuração sonora do

mundo. Os sons de motores e engrenagens, de produtos feitos de matérias como

ferro, vidro, plástico e outros.

45 Em Acerca do Ritornelo (DELEUSE, 2012, v. 4, p. 122).

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47

A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica46, influente ensaio

de Walter Benjamin, fala das novas formas de recepção e de uma estética da guerra

e das perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas consequências,

engendrou nas massas.

O monocórdio imagético que tenciona o mundo reflete bem a condição do

planeta no período industrial em seu aspecto sonoro. Enquanto as primeiras

paisagens sonoras (SCHAFER, 2001), relacionadas aos sons da natureza

mostravam um ambiente sonoro sem tensão, a afinação do monocórdio se mostra

acolhedora e cordial. Com suas graduações e chegado o momento de tensão, no

ápice da revolução industrial, a afinação monocórdica chega a um tom desconhecido

até então, a uma elasticidade transitória que chega no momento crítico de tensão

sonora e dissonância do mundo, que requer da arte uma postura diferente, pois nem

o ambiente sonoro, nem a sociedade, nem a arte e nem a música eram mais os

mesmos.

Foi nesse clima de tensão, em meio ao inconformismo, que surgiu o

futurismo italiano, iniciado a partir do Manifesto Futurista47, publicado pelo poeta

italiano Filippo Tommaso Marinetti48. O futurismo queria uma arte que refletisse o

impacto tecnológico, queria a ruptura com a arte do passado e a celebração das

novas tecnologias.

Em meio aos artistas futuristas estava o pintor Luigi Russolo, que conseguiu

encontrar na música a expressão que melhor traduzia o espírito futurista, e como

consequência fez um dos manifestos mais significativos para a história atual da

música: A arte dos ruídos.

46 A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (no original em alemão, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit) é um ensaio do filósofo Walter Benjamin sobre a arte no século XX, na era industrial, que analisa a sua existência na era da cópia, da fotografia. 47O Manifesto Futurista foi publicado no jornal francês Le Figaro em 20 de fevereiro de 1909. Este manifesto marcou a fundação do Futurismo, um dos primeiros movimentos da arte moderna. Consistia em 11 itens que proclamavam a destruição do passado e a identificação do homem com a máquina, a velocidade e o dinamismo do novo século. 48 Filippo Tommaso Godoy Marinetti foi um escritor, poeta, editor, ideólogo, jornalista e ativista político italiano. Foi o iniciador do movimento futurista.

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48

2.3.11 L’Arte dei Rumori

bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!49

James Joyce

Luigi Russolo, no seu manifesto L’Arte dei Rumori, traduz a intenção

futurística na música, ao recomendar aos músicos futuristas que ampliem e

enriqueçam cada vez mais o campo dos sons, apartando-se progressivamente do

som puro ao ruído, substituindo a limitada variedade dos timbres dos instrumentos

pela infinita variedade dos timbres dos ruídos mecânicos.

É importante, neste momento, explicar que o termo “ruído” utilizado por

Russolo, difere do conceito de ruído para a teoria da informação, como também da

teoria da comunicação, que são os signos indesejáveis que se interpõem ao

processo comunicacional.

Em teoria da informação, designa-se por ruído qualquer perturbação que ocorra na transmissão do sinal, tal como uma voz muito baixa, falta de atenção do receptor, muita informação, linguagem inadaptada ao público ou código mal adaptado. O mecanismo compensatório do ruído designa-se por redundância. A teoria da comunicação adaptou o conceito de ruído para designar tudo aquilo que perturbe a comunicação linguística. Os ruídos podem afetar o plano da produção da mensagem (perturbações na articulação da fala, dificuldades de pronúncia, casos de homonímia lexical ou gramatical, etc.), o plano da recepção da mensagem (falta de atenção, dificuldade de audição, incompreensão do código, etc.) ou ocorrer ao nível do canal (cruzamentos de vozes, por exemplo). A mensagem consiste numa mistura de sinal e de ruído. Se a quantidade de sinal for maior, a comunicação fica assegurada; se pelo contrário a quantidade de ruído for maior, deverão ser ativados mecanismos de redundância para manter a troca de mensagens entre emissor e receptor.50

Para José Miguel Wisnik, em O Som e o Sentido – Uma outra história das

músicas, o ruído é uma perturbação, “é uma mancha em que não distinguimos

frequência constante, uma oscilação que nos soa desordenada” (WISNIK, 1989, P.

27). Ao relacionar e combinar os conceitos, Wisnik define:

49 Como você produz trovão com a voz? James Joyce tentou. Em Finnegans Wake [...] (Schafer, 1991, p. 214) 50 Ruído (linguística). In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-07-15]. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$ruido-(linguistica)>.

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O ruído é aquele som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o canal, ou desmancha a mensagem, ou desloca o código. A microfonia é ruído não só porque fere o ouvido, por ser um som penetrante, hiperagudo, agressivo e “estourado” na intensidade, mas porque está interferindo no canal e bloqueando a mensagem. Essa definição de ruído como desordenação interferente ganha um caráter mais complexo em se tratando de arte, em que se torna um elemento virtualmente criativo, desorganizador de mensagens/códigos cristalizados e provocador de novas linguagens. (WISNIK, 1989, p.33)

A fala de Wisnik nos dá uma orientação dentre as definições de sons

musicais e ruídos, que são complexas e confusas. Muitos autores fazem a

diferenciação fundamentada no conceito de altura51, enquanto outros acreditam que

o critério de altura não é suficiente para fazer definições.

Não existe uma distinção acústica absoluta entre o que chamamos ruído e o

que chamamos música. Os sons que são dotados com uma altura precisa, que pode

ser identificada pelos ouvidos, Pierre Schaeffer, em seu Traité des objectos

musicaux, chama de sons "tônicos", que comumente chamamos de nota musical, e

os sons que não possuem uma altura precisa, Schaeffer chama de sons

“complexos”. Os sistemas musicais tradicionais escluiam de suas gramáticas os

sons complexos, isto é, os ruídos, os barulhos eram considerados sons não

musicais.

O compositor de música eletroacústica Denis Smalley (1986, p. 65),

desenvolveu uma tipologia espectral (figura 8) que postula a distinção entre notas e

ruídos. Esta tipologia é uma proposta mais simplificada que a proposta de Schaeffer

(1966, p. 518) em sua tabela Classes des textures de masse et de timbre

harmonique52, que reconhecia sete classes.

Figura 8: Tipologia espectral

51 Em música, altura é a propriedade do som que define a frequência fundamental dos sons (o tom). As baixas frequências são percebidas como sons graves (grossos) e as mais altas como sons agudos (finos), ou os tons graves e os tons agudos. Tom é a altura de um som na escala geral dos sons. 52 A tabela Classes des textures de masse et de timbre harmonique encontra-se nos anexos.

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50

A definição do conceito de ruído (noise) se dá pela negação ao conceito de

nota (note). Em uma nota se reconhece a frequência predominante, que define a sua

altura, enquanto o ruído só pode ser compreendido pela inexistência de uma altura

definida. Mas cada nota é um conjunto de frequências, harmônicas em sua maioria,

mas eventualmente também inarmônicas em seu espectro.

Conforme aumenta a inarmonicidade, a distinção entre notas e ruídos

torna‐se confusa e imprecisa. Entre a nota e o ruído, pode-se deduzir que existe

uma infinidade de divisões, mas, didaticamente, tanto Schaeffer quanto Smalley

criaram subdivisões para um melhor entendimento. Smalley (1986, p. 67), estipula

uma categoria intermediária no meio do caminho contínuo entre esses dois pontos,

que ele chamou de “nó” (node). O nó não chega a ser um ruído, mas é uma

combinação de frequências em que torna imprecisa e indefinida a altura, não

podendo ser qualificado como nota.

Em seu artigo Spectromorphology: explaining sound-shapes (1997, p. 120),

Smalley refaz a sua própria proposta e a simplifica (figura 9), desconsiderando o tipo

intermediário “nó”.

Figura 9: Da nota ao ruído

Mas a definição de ruído pelos futuristas está mais próxima à do senso

comum. O verbete “ruído”, no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo

(BORBA, 2011, p.1237), entre os significados, tem o seguinte:

RUÍDO – 1 barulho; rumor.

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51

Em uma tradução mais aproximada de L’Arte dei Rumori teríamos A arte dos

rumores. Ruído é uma tradução/interpretação mais ajustada para o nosso costume e

entendimento.

Quanto aos futuristas, a nova visão de Russolo sobre a questão musical e a

sua correspondência com o cotidiano, com a tensão da vida, dos homens e do

mundo estava expressa com clareza em seu manifesto, que alertava que a arte

musical deveria readequar seus conceitos de consonâncias e dissonâncias, ajustá-

los à nova realidade, mais próximos aos novos costumes dos ouvidos.

A arte musical buscou e obteve primeiramente a pureza, a limpidez e a doçura do som, em seguida combinou sons diversos, preocupando-se no entanto com acariciar os ouvidos com suaves harmonias. Hoje a arte musical, complicando-se cada vez mais, busca as combinações de som mais dissonantes, mais estranhos e mais ásperos para os ouvidos. Aproximamo-nos assim sempre mais do som-ruído. (RUSSOLO Apud MEZENES, 2009, p. 52)

Russolo caracteriza o universo do ruído como enarmonia e propõe que esta

enarmonia seja trabalhada em uma orquestra de ruídos. Ele, juntamente com Ugo

Piatti53, inventou e construiu um conjunto de instrumentos ruidosos, ao qual ele deu

o nome intonarumori (máquinas de entoar ruídos), uma família de “geradores de

sons” projetados para criar uma ampla gama de sons, modulados semelhantes aos

feitos por máquinas, mas sem imitar ou reproduzir eles. Esses sons devem ser

entendidos mais como “materiais abstratos” libertos de suas origens mecânicas e

agora sob o controle humano, escreveu Russolo em seu manifesto estético A arte

dos ruídos. Ao compor peças para o intonarumori, Russolo também desenvolve uma

nova forma gráfica da partitura54 musical. Em 1914, o primeiro concerto para

intonarumori, uma obra dividida em oito categorias diferentes de sons, causou um

enorme escândalo em Milão, enquanto que em Londres as reações foram mais

favoráveis. Após a Primeira Guerra Mundial, os concertos para intonarumori foram

realizados juntamente com orquestras sinfônicas clássicas. Infelizmente, nenhum

desses instrumentos originais sobreviveu a Segunda Guerra Mundial.

53 Ugo Piatti (1888-1953) foi um pintor italiano. colaborando com Luigi Russolo na construção do intonarumori. 54 O exemplo da partitura “Risveglio di uma città” per intonarumori – Luigi Russolo, encontra-se disponível nos anexos.

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52

Figura 10: Luigi Russolo e Ugo Piatti com o Intonarumori

A partir de Russolo, a questão “o que é música?” passa a ter realmente

sentido. Em uma carta, dirigida à Ballila Pratella55, também músico futurista, Russolo

valoriza o ruído e o coloca como mais apropriado para tocar a nova sensibilidade

dos homens:

A vida antiga foi toda silêncio. No século dezenove, com a invenção das máquinas, nasce o ruído. Hoje, o Ruído triunfa e domina soberano sobre a sensibilidade dos homens. Por muitos séculos a vida se desenvolveu em silêncio, ou, no melhor dos casos, em sordina. Os ruídos mais fortes que interrompiam este silêncio não eram nem intensos, nem prolongados, nem variados. Pois que, se negligenciarmos os excepcionais movimentos telúricos, os furacões, as tempestades, as avalanches e as cascatas, a natureza é silenciosa. (RUSSOLO Apud MEZENES, 2009, p. 51-52)

Ainda em sua carta, Russolo propõe que o ruído seja encarado seriamente

como elemento construtor da narrativa musical, dizendo:

Caro Pratella, exponho a teu gênio futurista estas minhas constatações, convidando-te à discussão. Não sou músico; não

55 Franceso Balilla Pratella foi um compositor italiano. Faz parte do grupo de artistas futuristas, ao lado de Luigi Russolo.

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possuo portanto predileções acústicas nem obras para defender. Sou um pintor futurista que projeta fora de si em uma arte muito amada a sua vontade de renovar tudo. Por isso, menos temerário de quanto poderia sê-lo um musicista profissional, não me preocupando com minha aparente incompetência, e convicto de que a audácia tenha todos os direitos e todas as possibilidades, pude intuir a grande renovação da música mediante a Arte dos Ruídos. 1913. (MEZENES Apud RUSSOLO, 2009, p. 55)

Era mesmo um momento de transformações e acontecimentos que

marcaram a história da humanidade. Walter Benjamin, fala de um deslocamento no

status da arte tradicional, à medida que o aparecimento de meios técnicos de

reprodução, tais como a fotografia e o cinema, começam a dominar a imaginação do

público em geral.

Todas essas mudanças provocam na sociedade as mais diversas volições

ocasionando uma nova vida, uma nova visão de mundo e é claro que exigiram do

artista uma reação distinta, uma resposta condizente. Paul Griffiths, ao falar da

música moderna e suas mudanças, cita uma fala de Schoenberg:

[...] se vivêssemos numa época normal, normal como antes de 1914, a música de nosso tempo estaria numa situação diferente. (SCHOENBERG apud GRIFFITHS, 1998, p. 97)

Otto Maria Carpeaux, sobre a questão, considera não só as mudanças na

música, mas da arte em geral, relacionando às transformações ocorridas em tantos

aspectos da vida moderna:

Depois das catástrofes políticas, econômicas e sociais pelas quais a humanidade passou durante a primeira metade deste século, já não é possível fazer arte como se estivéssemos vivendo em outro século, passado. A bancarrota de tantos credos e ideologias leva à mesma conclusão. (CARPEAUX, 2009, p. 433)

2.3.12 A grande crise da música

... nossa raça em geral não é amante da música. Para nós a música mais amada é a paz do silêncio; nossa vida é dura e, mesmo quando procuramos nos livrar de todas as preocupações diárias, já não sabemos nos elevar a coisas tão distantes do nosso cotidiano como a música.56

Franz Kafka

56 KAFKA, 1998, ,p. 37.

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54

Fechemos a janela e voltemos ao corredor histórico. A esta altura, no meio

musical, brota um mal estar entre aqueles que estão encantados com as novas

possibilidades tecnológicas e os que os acusam de ter rompido com toda a tradição

dos séculos. Tal acusação não resiste à análise de Capeaux.

A tradição não é tão tradicional como parece: não se trata de milênios, mas penas de séculos; e de poucos. Nossa música nasceu na Europa Ocidental no século XIII. As primeiras obras que já podemos esteticamente apreciar, são do fim do século XV. Se excetuarmos a sobrevivência de Palestrina na música sacra católica e a recente renascença de Monteverdi, não consta no nosso repertório nenhuma obra anterior a 1700. A tradição musical, que é tida como tão antiga, tem apenas 250 anos de idade. Nossa música é a mais nova das artes, a menos tradicional. (CARPEAUX, 2009, p. 434-5)

Enfim, se estabelece uma crise. Vamos dimensionar melhor: a grande crise

da música tradicional. Em decorrência da crise, surgiram as mais diversas vertentes

experimentando novos paradigmas com o intuito de se achar novos caminhos e

direcionamentos que solucionassem o indigesto impasse do tonalismo. É importante

constatar que esta crise não é só resultado do esgotamento da linguagem musical

ou das experimentações dos novos compositores, mas o puro reflexo da realidade,

pois o público, aos poucos, começou também demonstrar uma certa rejeição.

Um crítico que sempre foi um dos protagonistas da música moderna, Theodor W. Adorno, explica a procura de novos mundos sonoros pelo enjoo dos mundos sonoros antigos. Há concertos sinfônicos e de câmara em todas as grandes e em muitas pequenas cidades do mundo: mas sempre se nos oferece o mesmo repertório histórico, de Bach e Handel até Brahms e Debussy, a safra de menos de 200 anos. É ainda mais conservador o repertório das casas de ópera: de Gluck até Richard Strauss, e nada mais. (CARPEAUX, 2009, p. 499)

Ao mesmo tempo, com o surgimento da fonografia, a escuta musical das

salas de concerto migrou para dentro dos rádios e gramofones. Ou seja, a música

que só era ouvida na presença de instrumentos musicais, passava a ser ouvida pela

reprodução de alto-falantes. Essa mudança que surgiu devido à mediação

tecnológica em relação à maneira de como se apreciava musica provocou

alterações significativas na relação que os ouvintes tinham com a música, tendo que

aprender novos códigos de comportamento ante os aparelhos de difusão sonora.

Surgiram, então, outras maneiras de lidar com o musical, não mais pautado apenas

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na execução de um instrumento ao vivo, mas na criação de instrumentos de escuta

baseados nos alto-falantes (gramofones, rádios, vitrolas, aparelhos de som etc.).

Esse passo tecnológico criava a possibilidade de se ouvir música a qualquer

instante, aumentava o acesso ao acervo existente através dos LP’s (Long Plays),

mas de modo algum atenuava a crise, pois ela estava localizada na criação. Essas

tecnologias teriam que servir para a esfera da composição.

O disco Long-Play ampliou grandemente o repertório acessível aos amigos da música. Mas é, outra vez, um repertório histórico, incluindo Monteverdi e Vivaldi, Couperin e Domenico Scarlatti. Toda música executada e ouvida pertence, sempre, ao mesmo sistema de organização dos elementos sonoros. O público continua satisfeito. Mas quem sente vocação criadora, não pode fugir ao fenômeno de “enjoo”. (CARPEAUX, 2009, p. 499)

Com o desenvolvimento das tecnologias surgiram as ferramentas eletrônicas,

que se propagaram e revelaram grande quantidade de formas alternativas de se

compor. Dentre os vários inventos, a fita magnética, como suporte de gravação,

permitiu versatilidade na manipulação e produção dos sons. Tal versatilidade se

relaciona à facilidade que o uso desta mídia proporcionava para a execução de

atividades como cortar, colar, combinar e reproduzir em diferentes velocidades.

É sobre o fenômeno dos equipamentos de escuta desenvolvidos a partir da

revolução elétrica que Pierre Schaeffer irá trabalhar e pensar a música. Em 1948, no

estúdio da Rádio Francesa (ORTF – Office de Radiodiffusion-Télevision Française),

Schaeffer experimentou as primeiras gravações sonoras utilizando técnicas musicais

de composição como retrogradação, sobreposição, alongamento, contração,

alteração de andamento entre outras. Estes procedimentos eram inusitados na

época e resultou na sua primeira composição chamada Étude aux Chemins de Fer57

(1948) usando uma variedade de fenômenos sonoros para reproduzir a paisagem

sonora de um trem e iniciando um novo conceito de composição sonora com

instrumentos tecnológicos. Desta forma Schaeffer propõe que se coloque a

percepção como fundamento da composição e pesquisa musical. Dentro desse

aspecto, Schaeffer desenvolve o conceito de “música concreta”.

57 Étude aux chemins de fer (Estudo com trens), foi sua primeira peça completa, resultado de seus experimentos. Consiste em uma montagem de looping que trazia sons de trens em movimento, ferragens e apitos, gravados em estações de trem de Paris.

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2.3.13 A música concreta

[...] a poesia é mais próxima ao homem comum, ao homem das ruas [...] As palavras são usadas para os corriqueiros propósitos diários e são o material do poeta, tal como os sons são o material do músico. 58

Robert Louis Stevenson

A música concreta explorava empiricamente os fenômenos sonoros de

qualquer origem, que eram captados na fonte pela gravação e manipulados por

meios eletroacústicos, criando novos padrões composicionais e auditivos. Esses

sons cotidianos coletados se tornavam os materiais sonoros dos quais os

compositores dispunham, e suas manipulações se davam através de montagens por

meios técnicos e que exigiam tateio, audição prática e habilidade em selecionar sons

adequados para o manejo.

O termo “música concreta” foi utilizado por Schaeffer para descrever esse

tipo de música, considerando que o compositor iria lidar com sons concretos pré-

gravados e também serviu para distinguir bem o sentido de suas experiências e para

realçar a oposição de suas propostas aos trabalhos musicais vigentes. Sendo a

música uma linguagem abstrata, o seu propósito era recorrer ao sonoro concreto e

abstrair deles os valores musicais que continham em potencial, isto é, transformar

qualquer som em um som musical.

2.3.14 A música eletrônica

Paralelamente, no estúdio da Rádio de Colônia, na Alemanha, surgiu a

música eletrônica, que se difere da música concreta, pois ela fabrica os seus

próprios sons. Os equipamentos sintetizavam esses sons, mais musicais, mais

propícios às abstrações, enquanto que a música concreta, como o nome já sugere,

estava mais voltada para a tradução do concreto.

Como gênero musical, tanto a música concreta quanto a música eletrônica,

experimentaram um declínio, mas suas técnicas passaram a ser fundamentais e

indispensáveis em qualquer processo composicional e de editoração, além de

abrirem perspectivas diversas quanto aos recursos tecnológicos possíveis, mantidas

58 STEVENSON, apud BORGES, 2000, p. 83.

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até os nossos dias e que continuarão a inspirar e estimular a criação ou adaptação

de novos componentes tecnológicos a serviço da música, do rádio e cinema.

Uma curiosidade é que “música eletrônica” quer dizer musica criada ou

modificada por meios de equipamentos e instrumentos eletrônicos, ao longo dos

anos deixou de ser um gênero musical e passou a ser apenas uma técnica de

composição musical pela qual derivaram outros gêneros, mas nos anos 70/80 a

alguns estilos de música pop dançante aderiram aos instrumentos e equipamentos

eletrônicos e passaram a ser conhecidas pela denominação de música eletrônica,

apesar de serem subgêneros diferentes.

As músicas concretas e eletrônicas tinham muito em comum. Seus produtos

finais eram composições registradas em fitas magnéticas ou em outra mídia. Da

mistura dessas técnicas surgiu a música que é conhecida como eletroacústica. Os

sons cotidianos em suas complexidades e os procedimentos de manipulação e

sintetização de sons são traços inequívocos da contemporaneidade na música, pois

marcam o impacto nos paradigmas da música tradicional, pois o compositor, que

tradicionalmente teria que escrever a sua obra em partituras e submeter a terceiros

para a execução, sujeitas às mais diversas interpretações e uso de instrumentos

com suas variações ou até mesmo divergências timbrísticas, tinha, a partir das

novidades tecnológicas, a responsabilidade de finalizar a obra em suas mãos,

podendo lidar diretamente com o timbre e expressão da obra e fazer

experimentações, modificações a partir das escutas e seu trabalho de compor se

vinculou ao trabalho no estúdio.

Dessas técnicas surgiu a música eletroacústica, também conhecida por

música acusmática. Este termo foi criado por François Bayle para indicar uma forma

de música eletroacústica criada em estúdio, para futura difusão através de alto-

falantes.

Como alertei anteriormente, deixei de incluir nomes e períodos

historicamente importantes, delimitando e traçando intencionalmente um corredor

histórico, pela manutenção de um foco naquilo que aponta para as alternativas da

linguagem musical que se apresentaram na música moderna como reflexo e

correspondência aos fenômenos da modernidade. Aqui encerro a história da música

que me propus a contar. O que não me impedirá de mais adiante fazer alusões

mencionando novas referências, mas agora é preciso focar no objeto alvo deste

estudo: o objeto sonoro.

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2.3.15 Objeto sonoro e objeto musical

Pierre Schaeffer estabelece em seus escritos dois tipos de objetos auditivos,

dando as seguintes denominações: objeto sonoro e objeto musical.

O objeto musical é o objeto da linguagem musical envolve a

comunicabilidade entre o artista e o ouvinte através da linguagem musical com suas

características melódicas, harmônicas e rítmicas. A linguagem musical é sempre

conduzida por meio de uma melodia e suas relações harmônicas.

O objeto sonoro não está limitado aos sons de tons definidos. A sua

abrangência é maior, pois além dos objetos da linguagem musical, constitui-se

também de elementos sonoros como os ruídos, o silêncio e sons de qualquer

natureza. O objeto sonoro é entendido como um recorte sonoro, percebido como um

todo, de forma isolada do seu contexto original.

Para uma distinção entre objeto sonoro e musical, podemos pensar na

situação de estarmos ouvindo o som de um instrumento musical. O que ouvimos é o

objeto sonoro, uma fração de percepção, que antecede a percepção musical,

diferentemente de musical, que seria um juízo de valor atribuído ao som. O objeto

sonoro é aquilo que se capta, o pré-significante, o que existe antes de quaisquer

regimes de significação, nem mesmo musical.

A aplicação destes fatores gera uma composição que não utiliza os

instrumentos musicais tradicionais e os signos da escrita musical vigente, portanto,

rompe com a linguagem musical estabelecida há vários séculos. A possibilidade da

gravação permitiu novas relações com o fenômeno musical tradicional e surgiu a

possibilidade de manipulação do som na sua essência.

Se admitirmos que existam uma linguagem musical e uma linguagem

sonora, não musical, temos que admitir também que cada linguagem tem a sua

sintaxe e, portanto, a sua própria unidade sintática significativa. Não podemos dizer

que as significações dos objetos sonoros sejam de natureza semântica, mas de um

caráter intrínseco, independente de qualquer representatividade, uma unidade

portadora de uma essencialidade, portanto comunicativa.

A música concreta procurou a musicalidade dos sons enquanto os músicos

impressionistas achavam sonoridades na música. Estas questões tanto

fundamentam dúvidas e incertezas como levam a convicções de que “tudo é

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59

música”. Isto pode ser dito como força de expressão, até poeticamente, ou com

fundamentos. John Cage reuniu tudo isso, com sua imaginação fértil e profundo

conhecimento musical. Toda a sua obra musical foi voltada para uma nova maneira

de pensar a música, pautada na experimentação, na poesia e seus questionamentos

refletem sobre a noção tradicional de obra musical, sobre os fundamentos da

música, usando eventos sonoros até então considerados inutilizáveis por músicos,

ao modo de Duchamp59, como por exemplo, o silêncio.

Enfim, o objeto musical é a unidade de sintaxe da linguagem musical, ou

seja, a nota musical, enquanto que o objeto sonoro é a unidade sintática da

linguagem sonora, um fenômeno sonoro, qualquer som, inclusive o musical. A sua

percepção se dá através de uma escuta intencional que se volta às qualidades

puramente sonoras, sem referência à fonte que causou o som ou a qualquer sentido

ou conotação exterior às suas características intrínsecas. Esta é uma questão

totalmente fenomenológica que envolve a escuta.

Esta escuta diz respeito apenas aos efeitos do som: forma e matéria do objecto percebido. Ao nível do sonoro, no entanto, não prejulguemos tão rapidamente estas três intenções de escuta tão díspares, que levam a nossa atenção seja [1] para as fontes do ruído, seja [2] para as significações do discurso, seja [3] para o valor intrínseco dos sons. Queremos descobrir uma regra que se aplique provisoriamente a toda a cadeia sonora, e permita daí extrair o elemento bruto, isolado das suas estruturas, a que chamaremos precisamente o objecto sonoro. (SCHAEFFER, 2007, p. 66)

59 Marcel Duchamp (1887 – 1968) foi um pintor, escultor e poeta francês e inventor do conceito de ready made, que é o transporte de um elemento da vida cotidiana, a princípio não reconhecido como artístico, para o campo das artes. Sua obra de maior repercussão é A Fonte, trata-se de um urinol comum, branco e esmaltado, comprado numa loja de construção. A fonte é uma obra precursora da arte conceitual e é considerada um gesto iconoclasta sem precedentes na história da arte moderna.

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60

3 Fenomenologia musical de Schaeffer

3.1 A redução fenomenológica de Husserl

O que me apontaram nunca estava ali

estava ali só o que ali estava.

Alberto Caiero60

Fenomenologia (do grego phainesthai - aquilo que se apresenta ou que se

mostra - e logos - explicação, estudo). Fenômeno é o objeto mostrado, em si

mesmo, na sua essência, independentemente de suas causas e significações.

A fenomenologia é um método de investigação filosófica fundada por

Edmund Husserl61, que dá importância aos fenômenos da consciência, os quais

devem ser estudados em si mesmos e que tudo o que podemos saber do mundo

resume-se aos fenômenos e a esses objetos ideais que existem na mente, cada um

representa a sua essência, sua "significação".

Merleau-Ponty, em sua obra Fenomenologia da percepção (1999), tece

comentários sobre os primeiros trabalhos de Housserl, e assim define a

fenomenologia:

A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”. É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico. É a ambição de uma filosofia que seja uma “ciência exata”, mas é também um relato do espaço, do tempo, do mundo “vividos”. É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo dela possam fornecer [...] (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 1-2)

60 Alberto Caeiro da Silva foi um personagem ficcional (heterônimo) criada por Fernando Pessoa. 61 Edmund Husserl (1859-1938), foi filósofo, matemático e lógico. É o fundador da Fenomenologia como método de investigação filosófica e estabeleceu os principais conceitos e métodos que seriam amplamente usados pelos filósofos desta tradição.

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Muitas são as formas de entender a importância histórica da fenomenologia

de Husserl: mito, nova filosofia, moda, movimento, entre outras. O certo é que seus

estudos inspiraram muitos nomes, como Hegel, Kierkegaard, Marx, Nietzsche, Freud

e tantos outros, entre eles, Pierre Schaeffer.

Schaeffer acreditava que a crise na produção musical erudita do século XX

não poderia ser resolvida enquanto são se repensassem os pressupostos sobre os

quais se produzia a música e, sobre os quais o próprio “som musical” era concebido.

Por esta razão, Schaeffer iniciou uma reconceituação daquelas noções mais

elementares da teoria musical como instrumento, objeto sonoro, objeto musical,

escuta, etc.

Para isso, o método fenomenológico musical por ele utilizado levava em

consideração os conceitos desenvolvidos por Husserl, principalmente a noção de

redução fenomenológica, ou epoché62, a partir da qual Schaeffer se baseia para

chegar ao conceito de escuta reduzida.

3.2 Do fenômeno

Ver as coisas é que eram as coisas.

Clarice Lispector

Husserl tinha uma posição gnosiológica, oposta a uma “fenomenologia

psicológica descritiva”, da esfera das vivências, Ele pretendia distinguir a forma de

fenomenologia empírica da fenomenologia transcendental. O interesse da

fenomenologia transcendental dirige-se para a consciência, única capaz de realizar

a crítica da razão, não lhe interessando nenhum axioma objetivo, mas sim de

desfazer os “tormentos da obscuridade”. Husserl, decidido a fazer luz sobre si

próprio, escreve em sua agenda o seguinte:

Em primeiro lugar, menciono a tarefa geral que tenho de resolver para mim mesmo, se é que pretendo chamar-me filósofo. Refiro-me a uma crítica da razão. Uma crítica da razão lógica, da razão prática e da razão valorativa em geral. Sem clarificar, em traços gerais, o sentido, a essência, os métodos, os pontos de vista capitais de uma ciência da razão; sem dela ter pensado, esboçado, estabelecido e demonstrado um projeto geral, não posso verdadeiramente e sinceramente viver. Os tormentos da obscuridade, da dúvida, que

62 O termo epoché na fenomenologia husserliana implica a "contemplação desinteressada", a suspensão de juízo fenomenológica se abstem de emitir juízos sobre o fenômeno.

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vacila de um para o outro lado, já bastante os provei. Tenho de chegar a uma íntima firmeza. Sei que se trata de algo grande e imenso; sei que grandes gênios aí fracassaram; e, se quisesse com eles comparar-me, deveria de antemão desesperar... (HUSSERL, sd, p. 12)

Husserl entendeu que o único método para a crítica da razão é a

fenomenologia levado às suas extremas consequências (ou redução

fenomenológica), um retorno à consciência. Na prática, o caminho para esse retorno

é o retorno às coisas, ao objeto em si, ao fenômeno, e para isso é necessário o

descarte de qualquer inferência, pois a mais simples cogitação esconderia

transcendências de toda índole.

Esse silêncio conceitual, causal, permite que a consciência descubra o

fenômeno em seu movimento, sem contextualizações, sem conhecimentos, aberta à

experiência.

Para a fenomenologia reduzida só importa o fenômeno. Assim, Schaeffer

criou o conceito de escuta reduzida, que tinha a intenção de não escutar mais do

que o objeto sonoro, a busca do fenômeno sonoro em si, o que colocava a

percepção em tipos diferenciados de condicionamento da escuta.

3.3 As quatro escutas de Schaeffer

Nunca ouviste passar o vento. O vento só fala do vento.

O que lhe ouviste foi mentira, E a mentira está em ti.

Alberto Caiero

As experimentações da música concreta exigiam uma escuta diferente, sem

vícios, descondicionada, e por isso mesmo uma escuta concreta, mais voltada para

as qualidades sonoras.

A música, até então fundamentada em um sistema de abstração das notas

musicais, passa a ser construída a partir dos fenômenos sonoros, gravados,

transformados e prontos para serem cortados, colados, mixados a ponto de serem

disparados por algum equipamento.

A essa experiência do ouvinte, Schaeffer chamou de escuta acusmática, que

é escutar um som sem ver a fonte que o produz, como o som vindo de um rádio

(exemplo da época) ou de um sampler (exemplo atual). Essa reeducação vai desde

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a escuta ao solfejo63. Schaeffer se ocupou em encontrar um novo solfejo para essa

nova música

Em seu livro Traitée des objets musicaux, Pierre Schaeffer, distingue quatro

níveis de relação com a matéria sonora, alegando que a experiência auditiva

depende de quão intensamente o ouvinte se expõe ao material auditivo, desta

forma, os níveis de reconhecimento dos sons ouvidos e das relações sonoras do

objeto e suas possíveis significações são consequências dos determinados modos

de escuta. São eles:

3.3.1 Écouter

O modo escutar é ser atingido por um som e aplicar o ouvido para recebê-lo,

é dar crédito aos sons por ter algum interesse por eles, por exemplo, quando

dirigimos a atenção voluntariamente para alguém ou alguma coisa que é

apresentada por seu som. Esse modo de escuta acontece na revelação de um

fenômeno que se apresenta para a percepção, associando o som a um modo de ser

produzido.

3.3.2 Ouïr

Ouvir é perceber pelo ouvido. É oposto a escutar, pois escutar satisfaz a

uma atitude ativa, voluntária. Já o ouvir pressupõe uma passividade na atenção, pois

o ouvinte não seleciona o que lhe chega aos ouvidos. O que se ouve é aquilo que se

é dado na percepção. É a captação do mundo e suas sonoridades pela audição,

independente da atenção. Ouvir é ser tocado pelos sons. Identificar o som pela fonte

sonora.

3.3.3 Entendre

Entender, pensando etimologicamente, é tender para algo. Representa a

característica intencional da escuta. É fazer uma seleção nas coisas ouvidas, situar

os ruídos, separar por próximo ou distante, privilegiar uns sons em relação aos

outros. No aspecto musical também é um modo de escuta que se dirige às

63 Com Schaeffer nasce um novo tipo de solfejo. Um solfejo que não vem das partituras, das escalas musicais, mas de uma graduação de sons.

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características pré-musicais do som, descontextualizado do sistema tonal. Percebe

o som como um objeto em si mesmo.

3.3.4 Comprendre

Compreender significa captar o sentido, pelo êxito da atividade consciente.

Abstrair os sons na forma de linguagem. Expressa a busca pela compreensão para

além do sentido imediato, tratando o som como um sinal, um signo, o ouvinte

apreende valores que o levam a produzir sentidos variados.

Neste tipo de escuta, os sons têm seus valores atribuídos por suas funções

dentro de um sistema que os articula, se apoia em algum idioma musical ou sonoro

socialmente convencionado que delimita o sentido, o léxico, a sintaxe e enfim a

história e o território em que se insere este idioma. Por exemplo, quando certa nota

musical, ostenta um valor expressivo dentro de um determinado discurso musical

(melodia) articulado sobre um sistema hierarquizado e gramaticalizado (sistema

tonal), ela tem outros valores por si própria. Por si mesma ela é um código, inserida

em um discurso melódico ela é outro código, determinado mais pelo relacionamento

com as outras notas e sua importância dentro do discurso, pois ela pode ser uma

nota tônica ou fundamental. Quanto aos sons não musicais, sejam eles ambientais,

ruídos, etc. cada um tem sua carga de significado, com graus de referencialidade

distintos, isolados são representação de objetos, mas inseridos em um contexto são

passagens de fluxos narrativos, sendo os contextos variáveis, culturais, o mesmo

fenômeno sonoro pode produzir sentidos diferentes64. Fazendo uma analogia com a

linguagem verbal em que as palavras só têm sentido no contexto dos idiomas em

que elas são pronunciadas.

Pierre Schaeffer (1966, p.116) apresenta um quadro demonstrativo dos

quatro modos de escutas e suas funções, de uma maneira bastante elucidativa.

Abaixo está o quadro explicando as funções da escuta, traduzido por Carlos

Palombini65.

64 Em um momento de orientação, o Prof. José Osvaldo de Paiva trouxe um exemplo que lhe ocorrera. Ao ouvir o som de uma latinha de cerveja sendo aberta surge a indagação: qual seria a percepção de algum indígena de alguma comunidade sem contato com esses produtos da indústria? 65

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Tabela 1: Quadro das funções da escuta66

4. COMPRENDRE

— para mim: signos

— diante de mim: valores (sentido-linguagem)

Emergência de um conteúdo do som e referência a, comparação com, noções extra-sonoras

1. ÉCOUTER

— para mim: índices

— diante de mim: eventos exteriores (agente-instrumento)

Emissão do som

3. ENTENDRE

— para mim: percepções qualificadas

— diante de mim: objeto sonoro qualificado

Seleção de certos aspectos particulares do som

2. OUÏR

— para mim: percepções brutas, esboços do objeto

— diante de mim: objeto sonoro bruto

Recepção do som

3 e 4: abstratos 1 e 2: concretos

1 e 4:

objetivos

2 e 3:

subjetivos

Pensando resumidamente sobre nossas ações normais do cotidiano: eu

ouço tudo o que me cerca, mas seleciono o que escutar, entendo o que me

interessou e que quero compreender e a compreensão é o que resulta, é a leitura

auditiva.

Enfim, ouvir é acolher, escutar é escolher, entender é decodificar e

compreender é assimilar, produzir sentidos.

66 PALOMBINI, Carlos. A música concreta revisada. Disponível em: Http://www.rem.ufpr.br/ REMv4/ vol4/art-palombini.htm. O . quadro original (Tableau des fonctions de l’écoute), encontra-se nos anexos.

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Figura 11: Sequência das quatro escutas

Schaeffer enfatiza em seus estudos as questões da escuta reduzida, que é

uma escuta despojada de uma intenção de compreender "significados" como

também busca escapar de uma identificação de causas instrumentais. Ela é dirigida

aos atributos do som em si, ou seja, ao objeto sonoro. A escuta reduzida é a busca

pela essência, seria como a escuta do bebê que traz um ouvido ainda

descondicionado e é ela que dará sustentação para o conceito de objeto sonoro.

Schaeffer escreve a respeito desta intenção de escuta:

[…] poderíamos, eventualmente, livrando-nos do banal, 'expulsando o natural', tanto quanto o cultural, encontrar um outro nível, um autêntico objeto sonoro […] que seria acessível a todo homem ouvinte? (SCHAEFFER, 1993, p. 247)

3.4 Os três modos de audição de Chion

Michel Chion (1994, p. 25-34), baseado nos estudos de Schaeffer faz

distinção da escuta e relaciona, portanto, três modos: a escuta reduzida, a escuta

causal, e a escuta semântica.

3.4.1 Escuta reduzida

A escuta reduzida explicada por Chion guarda correspondência com a

escuta definida por Schaeffer, por essa razão Chion mantém o nome. Na escuta

reduzida, a atenção está voltada para as características fisiológicas do som, visando

somente às qualidades do objeto sonoro. O enfoque está no som em si mesmo,

alheio a qualquer indício de causas ou significados. O som é tratado como “objeto

sonoro”, trazendo como significado suas próprias características, ao invés dos da

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fonte ou simbologias que ele possa carregar. Cada som, com suas características

físicas, pode provocar determinadas sensações sem que necessariamente nos

remetamos a elementos extrassonoros.

3.4.2 Escuta causal

A escuta causal é aquela cujo interesse está na identificação da origem de

determinado som. Chion (1994) afirma que quando a causa ou fonte sonora é

visível, o som pode nos trazer informações complementares, como quando se bate

em um recipiente fechado, o som nos indica se ele está cheio ou vazio. Quando não

vemos a fonte sonora, o som pode ser nosso principal recurso de informação e

quando a causa do som não é visível, a identificação se dá a partir de algum

conhecimento prévio ou prognóstico lógico. A escuta causal, portanto, raramente

parte do “zero”. Quando ouvimos o latido de um cão, por exemplo, podemos até

deduzir se o animal em questão é de médio ou grande porte, porém se ouvirmos

latidos de cães da mesma raça, provavelmente não distinguiremos entre um

indivíduo e outro.

3.4.3 Escuta semântica

A escuta semântica está vinculada ao aspecto simbólico, ao conteúdo

extrassonoro proveniente de qualquer outro código que está vinculado ao som. O

significado implícito do som pode ser convencionado, como na linguagem falada, em

que cada palavra possui seus significados dentro de um determinado idioma: no

código Morse, em que a duração e repetição dos sons estão ligadas aos fonemas,

nos sinais de alerta do computador, ou, referindo-se a aspectos musicais, os

aprendidos culturalmente, como o hino de um país, que carrega um caráter

patriótico, ou um canto gregoriano, que possui caráter religioso.

O significado do som não está puramente em suas características físicas,

apesar de ser identificado graças a elas, nem em sua fonte ou causa, apesar de

necessitar das mesmas para existir, mas sim na carga simbólica que lhe é atribuída.

Na linguagem visual-sonora, a escuta semântica está ligada aos sons de

conceituação e, pela manipulação desse modo de escuta, é possível, entre outras

coisas, transmitir ideias, conceitos, além de atribuir sentido poético à cena. É,

contudo, importante destacarmos que o que ocorre quando nos deparamos com um

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fenômeno visual e sonoro é que as mesclas desses modos de escuta, na maioria

das vezes, são impossíveis de serem separadas.

3.5 As três categorias fenomenológicas de Pierce

O que nós vemos das cousas são as cousas. Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?

Alberto Caieiro

Vimos sobre duas formas de apreensão de um objeto mais específico, que é

o som. No caso de Peirce67, a fenomenologia não é restrita ao objeto sonoro, é

voltada para o fenômeno, de qualquer natureza, sendo este qualquer coisa que seja

percebida pelos sentidos externos, como o som de uma chamada telefônica que

ouvimos ou a luz que vemos das lanternas de um carro, qualquer cheiro, sensação

tátil como o frio e calor ou percebida internamente, como dor, recordação, emoção,

apreendido pela mente, poderá ser de três maneiras, segundo Peirce: primeiridade

(qualidade), secundidade (relação/reação) e terceiridade (representação/mediação),

sendo que cada um dos elementos desse sistema permite uma relação monádica,

diádica e triádica de decifração do fenômeno.

3.5.1 Primeiridade

Na primeiridade a relação é monádica, ou seja, da mônada, do Ser consigo

mesmo. A consciência em primeiridade é a primeira apreensão do fenômeno,

corresponde ao que é visto concretamente, sem ir mais além da mera qualidade em

si mesma, sem nenhuma relação, representação ou interpretação intelectual. A

primeiridade, então, está relacionada a uma percepção imediata de uma qualidade

que ainda não foi correlacionada ao objeto (secundidade) e que, também, não

produziu ainda nenhum significado (terceiridade). Nas palavras de Peirce:

Primeiridade, Oriência ou Originalidade. Seria algo que é aquilo que é sem referência a qualquer outra coisa dentro dele, ou fora dele, independentemente de toda força e de toda razão. (PEIRCE, 2005, p. 24)

67 Charles Sanders Peirce (1839-1914), foi um filósofo, cientista e matemático americano. Seus trabalhos apresentam importantes contribuições à lógica, matemática, filosofia e, principalmente à semiótica.

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Originalidade é ser o que se é, “independentemente de qualquer coisa”

(2005, p. 27). Associam-se à primeiridade o acaso, qualidade pura de sentimento,

espontaneidade, nascimento, imediaticidade. É sempre novidade, indefinida, livre e

pré-reflexiva.

Primeiridade é sensação primária, o primeiro a ser sentido, pois o sentir,

“mero tom de consciência” é o modo mais imediato da apreensão. É o que está

prontamente presente à consciência no instante presente, é a impressão, e esta

antecede o pensamento e independe de algo mais, é tenra, tênue e frágil. É tão

tênue que nos escapa e é tão frágil que se a tocamos, se degenera.

3.5.2 Secundidade

Apreender a qualidade do fenômeno não é tudo, pois ela é apenas parte do

fenômeno, ela é o fenômeno em potencial. O fenômeno é a qualidade materializada,

é a potência convertida em matéria, por isso a secundidade é diádica, depende da

relação entre qualidade e existência.

Está ligada ao que vem depois da primeiridade, depois da sensação

percebida. A secundidade é o factual, é a ação frente ao fato concreto, é o impacto

da própria existência do fenômeno, é a resposta da consciência sobre a impressão,

mas ainda irracional, é uma reação específica ao estímulo, quando já se relaciona a

qualidade ao objeto, ou o fenômeno a algo, sem interpretação, sem a interferência

da camada mediadora da razão. A identificação, o reconhecimento do fenômeno já

se constitui em uma relação de dupla faceta, pois a percepção sensível conduz a

informação pertencente ao fenômeno e imprime na mente, onde é codificada.

À secundidade refere-se às ideias de ação e reação, dualidade,

conhecimento, referencial, força bruta, relação, resistência e dependência.

3.5.3 Terceiridade

A terceiridade é triádica, é, conforme sugere, o terceiro instante ante o

fenômeno e que dialeticamente produz, a partir do primeiro e do segundo, uma

síntese intelectual, uma elaboração cognitiva. É precisamente nesta categoria

fenomenológica que se consuma a ação de semiose e o signo se firma. A

terceiridade satisfaz à relação de síntese intelectual entre a primeiridade e

secundidade que corresponde aos processos de representação e interpretação do

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mundo por meio dos signos. Segundo Peirce, o signo é a ideia mais simples da

terceiridade.

Esta categoria abrange as ideias de representação, inteligência,

interpretação intelectiva, abstração, aprendizagem, compreensão, mediação.

Lucia Santaella68 fala das três categorias apresentadas pela fenomenologia

peirceana.

A primeiridade aparece em tudo que estiver relacionado com acaso, possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade, liberdade, mônada. A secundidade está ligada às idéias de dependência, determinação, dualidade, ação e reação, aqui e agora, conflito, surpresa, dúvida. A terceiridade diz respeito à generalidade, continuidade, crescimento, inteligência. A forma mais simples da terceiridade, segundo Peirce, manifesta-se no signo, visto que o signo é um primeiro (algo que se apresenta à mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, se refere ou representa) a um terceiro (o efeito que o signo irá provocar em um possível intérprete). (SANTAELLA, 2005, p. 7)

A partir dessas categorias fenomenológicas, entende-se que tudo o que se

apresenta à mente pela audição pode se constituir em meras qualidades acústicas

(Primeiridade), como códigos (Secundidade), ou como signos (Terceiridade). Essas

são possibilidades de apreensão e modos de compreender o objeto, alvo da escuta.

Entendamos que a terceiridade só é possível a partir da secundidade e que a

mesma depende da primeiridade, isto é, a terceiridade pressupõe a secundidade e

primeiridade; a secundidade pressupõe a primeiridade; já a primeiridade é livre.

Desta forma, a compreensão de um evento natural ou uma obra de arte está

condicionada às gradações do modo como reagimos diante dos constituintes da

experiência. Sobre este aspecto, Santaella (1994) nos diz:

[...] a contemplação estética se dá na mistura das três categorias, envolvendo elementos próprios ao sentir (primeiridade), o esforço interpretativo implícito na observação do objeto (secundidade), e na promessa de compreensão e assentimento intelectivo com que esse objeto nos acena (terceiridade). (SANTAELLA, 1994, p.183)

68 Maria Lucia Santaella Braga (1944) é uma pesquisadora brasileira. É fundadora do "CS games", Grupo de Pesquisa em Games e Semiótica da PUC-SP, além de professora nas áreas de Novas Tecnologias e Novas Gramáticas da Sonoridade, Relações entre o Verbal, Visual e Sonoro na Multimídia e Fundamentos Biocognitivos da Comunicação.

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A escuta reduzida corresponde à primeiridade. Os sons de imersão, aqueles

inseridos na cena para criar “atmosferas” e “climas” são os que irão se encaixar

nesta categoria, pois, tendem a nos afetar pelas suas próprias características.

Assim como a escuta reduzida está ligada à primeiridade, a escuta causal

está atrelada à secundidade. São os sons de interação, que estão presentes na

cena para reforçar alguma ação colocando o foco na sua causa, têm a intenção de

que o espectador realmente se dê conta ou até sinta o impacto de determinado

acontecimento. Podem, também, funcionar como índice de materialidade de

personagens e elementos que não estão presentes visualmente na cena.

A escuta semântica é aquela que corresponde à terceiridade. Os sons de

conceituação pertencem a esta categoria, por serem simbólicos. É através de uma

interpretação intelectiva que o signo, de natureza sonora alcança algum significado

comunicacional. Os sons inseridos na cena, ao serem apresentados ao ouvinte, vão

depender do próprio repertório do ouvinte ou de situações já estabelecidas na

narrativa, para que sejam percebidas as cargas simbólicas que o som carrega para

agregar significados à imagem. Os signos sonoros estão sujeitos a inúmeras

interpretações, dependendo do modo como foi assimilado pelo receptor.

Essas escutas se diferem pelo grau de imersão, pelo foco. Quanto mais

reduzida, mais proximidade ao objeto, e o oposto também é dedutível: uma escuta

mais semântica, correspondente ao modo comprendre, mais próxima está do sujeito,

das subjetividades. Se estivéssemos falando da visão, poderíamos dizer que são

pontos de vistas diferentes. São escutas que nos levam do concreto ao abstrato, do

objetivo ao subjetivo, do real ao irreal, hiperreal, surreal, do ponto à linha, da

plataforma ao grão dimensional. É um caminho que pode nos conduzir ao “focar no

fenômeno” até entrar com a consciência nele, desprezando quaisquer inferências e

simplesmente experimentar a transcendentalidade pretendida por Husserl, como

pode também nos levar aos dialogismos, polifonias, hipertextos, e aos rizomas

pretendidos por Deleuze.

Musicalidade ou sonoridade, música semântica ou não-semântica, são

caminhos, sem destino à verdade, são simplesmente caminhos, que nos levam às

experiências. Melodias, silêncios, sinos, ruídos, sons da natureza ou de

sintetizadores, cada um com seu grau de concretude, são fenômenos e são signos.

O mesmo som é fenômeno e signo, dependendo da escuta. Da mesma maneira,

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posso escutar um som e modificar ou oscilar o modo de conduta, por falta de

controle ou intencionalmente.

A questão é que não podemos deixar de admitir que todo som é um

fenômeno e nem podemos desconhecer que cada pessoa faz a sua própria leitura, e

que as possibilidades de construção de sentido são infindáveis e impossíveis de

enumerar, portanto existem inumeráveis modos de escuta, cada um de nós tem o

seu próprio modo, a sua própria condição a cada momento.

Smalley (1997, p. 110) tem uma posição mais prudente, e até mesmo mais

abrangente e considera tanto as qualidades puramente sonoras (intrínsecas) quanto

os predicados extramusicais (extrínsecas), pois entende que uma peça musical não

é um artefato autônomo e fechado e que ela não se refere apenas a si mesma, mas

depende de uma gama de experiências externas. Os aspectos intrínsecos são

analisados através da espectromorfologia, que descreve as características

espectrais dos sons, enquanto os aspectos extrínsecos estão relacionados às

questões culturais. Smalley também explica que a música é uma construção cultural

e que o contexto cultural é uma base extrínseca necessária para que a intrínseca

tenha sentido.

Para Smalley, os recursos extrínsecos e intrínsecos são interativos e essa

transcontextualidade musical envolve uma dependência relacional. Ao falar da

música eletroacústica, observa que as qualidades intrínsecas criadas por um

compositor possam impactar as mensagens extrínsecas e que o mundo sonoro da

música eletroacústica incentiva as conexões extrínsecas imaginativas devido a

variedade e ambigüidade de seus materiais.

Não há o que se especular do além do fenômeno, do intrafenômeno, ou

daquilo que a escuta reduzida em seu grau máximo pode revelar, pela sua própria

natureza, pois qualquer elucidação, qualquer explicação, por mais êxito que se

tenha em formulá-la, será, descritiva, de ordem objetiva, oposta à natureza da

transcendentalidade pretendida pela fenomenologia. Já, ao que vem depois do

fenômeno, do seu processo de conversão ao signo (signi-ficação), do

encapsulamento de significados e sentidos, são múltiplas as facetas do signo

sonoro69, por isso vale a pena conhecermos conceitos e lógicas do signo.

69 Entenda-se que, neste trabalho, todas as menções ao signo sonoro ou musical referem-se à sua natureza acústica. Este esclarecimento é necessário para não cairmos em outras interpretações e pensarmos em sinais

Page 74: A Potencialidade... · A proposta da dissertação é mostrar que os estudos literários podem contribuir para a compreensão do objeto sonoro como elemento de sintaxe em estruturas

73

4 O processo de significação

4.1 A significação

O único sentido íntimo das coisas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Alberto Caeiro

O objeto por si só, é tão somente um fenômeno. Significados, sentidos,

acepções, estão atreladas àquele que o percebe, que acolhe o que lhe é mostrado,

são preenchimentos, prolongamentos, frutos das inferências da mente.

A signi(fic(a)ção) é a ação que leva o objeto a ficar signo, que move a

representação “pura” ao significado construído. Esses movimentos são

determinados pela intencionalidade. No caso de processos relacionados aos objetos

sonoros, pelo “foco” da escuta, da força que se tem para insurgir, do desejo de

imersão. Todo o processo sígnico compreende desde a percepção do fenômeno até

o modo como foi apreendido na consciência e das relações desses signos nas

dinâmicas que ocorrem na mente interpretativa.

Figura 12: O objeto sonoro e a representação

O objeto sonoro, tal como demonstrado por Schaeffer não é mais que o

fenômeno sonoro, no entanto qualquer sentido, significado ou significações, vindos

de uma percepção, é associação, é parecença, afinidade, identidade e construção,

decorrente do modo de escuta, determinado pela astúcia e agudeza da percepção musicais notados em partituras, que também são signos musicais, mas que pertencem a outro tipo de semiose musical: o da notação musical.

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combinado à finura e atilamento do ser. Da mesma forma, o objeto sonoro, como

fenômeno só será apreendido pelo modo de escuta específico para tal: a escuta

reduzida.

Como vimos anteriormente, durante toda a história da musica ocidental,

inúmeros pensadores, filósofos e compositores se ocuparam nas questões

relacionadas à significação musical, à ideia de que a música seria uma

representação. O conceito de música absoluta está atrelado à compreensão do

fenômeno musical, à ideia de que a música é pura forma musical e a forma de

descrição desses fenômenos é pela análise objetiva de suas propriedades

estruturais e formais, daí a importância da notação das obras em partituras. Por

outro lado, temos a música cuja significação não está contida em si mesma, que faz

parte de algo além da linguagem musical, que quer representar outras esferas da

realidade.

Leonard Meyer, em seu livro Emotion and meaning in music, ao falar das

teorias do significado musical aponta para dois paradigmas: absolutistas e

referencialistas (MEYER, 1956, p.33). As teorias absolutistas veem a música por

suas próprias estruturas, cuja significação está contida em si mesma, sem nenhuma

relação com os aspectos extramusicais; enquanto que as teorias referencialistas

entendem a música como representação das emoções humanas ou de eventos

quaisquer de natureza extramusical.

As teorias referencialistas ajudam a compreender os objetos sonoros não

musicais, como os sons ambientais naturais (incluem-se os sons emitidos pelo corpo

humano) ou dos cenários urbanos, por serem reconhecíveis, como representações

de objetos da cidade e de coisas da natureza.

A discussão acerca do significado musical que atravessa toda a história da

música ocidental, que procura compreender na música o desejo de comunicar

emoções e/ou imagens, conduziu ao surgimento de novos estudos e pesquisas

musicais considerando a aplicação dos processos semióticos e linguísticos. Ao

processo de significação dá-se o nome de semiose.

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75

4.2 Semiose

Nenhuma coisa que seja

onde a palavra faltar.70

Stefan George

Semiose é o processo interpretativo, a atividade do signo. As formas de

entendimento dessa relação de signos e objetos são muitas. Saussure fala na

relação entre um significante e um significado, isto é, fala de um signo linguístico.

Jakobson (2003, p. 30) também vê duas faces do signo e faz a identificação e a

diferenciação em dois níveis, servindo-se de termos usados por Santo Agostinho71:

signans (o significante) e signatum (o significado do signo). Para Peirce, esta relação

não se apresenta de um jeito duplo, mas em um tríplice aspecto (2005, p. 28). Ele

explica que um signo é tudo aquilo que está relacionado com uma segunda coisa,

com seu objeto. Vamos aos casos.

O modelo semiótico de Saussure (2006, p. 79-80) estabelece que a unidade

linguística é uma coisa dupla. O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra,

mas um conceito e uma imagem acústica.

A “imagem acústica” é uma metáfora criada por Ferdinand Saussure para

ilustrar o representante, que não é o som material, físico; é mental, reside no

cérebro, é a impressão psíquica dos sons, como quando falamos conosco ou

recordamos de alguém falando, e isso ocorre “sem movermos os lábios nem a

língua” (SAUSSURE, 2006, p. 80). Ao trazer esse conceito para o que se apresenta

neste trabalho, vemos que o seu caráter metafórico se dilui e o torna praticamente

referencial, pois neste caso a imagem acústica passa a ser a imagem criada pela

nossa imaginação, quando ouvimos um som que nos indica algo, é a impressão

(reprodução sobre pressão numa superfície) psíquica resultante do contato com o

fenômeno, é uma paisagem carimbada em nossa mente, e como toda paisagem,

contém a “imagem” e a “acústica” (sonoridades). Enquanto escrevia as linhas

anteriores, passou por aqui um avião, no entanto, eu estava concentrado e não

70 “Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar” (Kein ding sei wo das wort gebrieht), do poema publicado em 1919, A palavra, de Stefan George, citado por Heidegger em seu livro A caminho da linguagem, na pág. 124. O poema, na íntegra, está disponível nos anexos. 71 Jakobson utiliza os mesmos termos usados por Santo Agostinho, que fez adaptações a partir da distinção estoicista.

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acompanhei conscientemente a sua passagem, mas, quando me dei conta, pude

recapitular e assistir em meus domínios mentais a passagem do avião, desde a

extrema direita à extrema esquerda e sem a necessidade ou intenção de fazê-la, de

forma natural, automática, pude configurar a espacialidade, sendo preservadas as

propriedades sonoras, como duração, volume, intensidade, pois podemos recriar

uma paisagem e o seu movimento é possível pelos seguidos enquadramentos, o

que possibilita que a imagem tenha ação, a partir do que Saussure chama de

“testemunho de nossos sentidos”:

Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação dele que nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la “material”, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato. (SAUSSURE, 2006, p. 80)

Baseado nesta proposição de Saussure, podemos aplicar esta relação do

signo ao objeto sonoro em um processo criativo composicional. Uma coisa (objeto

físico) é representada por um signo (sonoro), que será percebido pelo sentido da

audição e impresso no cérebro a imagem acústica (correspondência psíquica do

signo sonoro) que será associada ao conceito (representação abstrata do objeto).

Por exemplo, podemos representar um lobo (objeto físico, natural) pelo uivo (signo

sonoro). As ondas sonoras se propagarão, serão percebidas por nossos ouvidos,

transformando-se em impressões sensoriais e serão decodificadas em nosso

cérebro. Em nossos domínios psíquicos, não estarão as ondas sonoras, mas a

reprodução, a memória do que acabamos de ouvir, do uivo que ecoa, podemos até

ouvi-lo mentalmente. Esta imagem acústica se unirá ao conceito de lobo, que

construímos ao longo do tempo, por um vínculo de associação, como ilustrado no

esquema gráfico abaixo:

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Tabela 2: Baseado na relação signo/objeto de Saussure e ajustado para o objeto sonoro

Desta forma, podemos entender que o significado é uma construção mental

e por esta razão, limitado. Os limites, que vão desde os físicos, sensoriais, aos

psíquicos e culturais, determinam o conceito, ou o signo. No esquema acima, o que

denominei por signo é a representação, mas como estou tratando do processo de

significação, entendo que o signo é o resultado semiótico e por esta razão uso esse

termo. Saussure (2006), para evitar ambiguidades, busca uma precisão nas

terminologias e explica que signo é a combinação do conceito e da imagem

acústica.

A ambigüidade desapareceria se designássemos as três noções aqui presentes por nomes que se relacionem entre si, ao mesmo tempo que se opõem. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante; estes dois termos têm a vantagem de assinalar a oposição que os separa, quer entre si, quer do total que fazem parte. Quanto a signo, se nos contentamos com ele, é porque não sabemos por que substituí-lo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro. (SAUSSURE, 1999, p. 81).

Nos estudos de Peirce, a relação do signo com o objeto e do signo com o

sujeito tem outros fundamentos:

Um signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen. (PEIRCE, 2005, p. 46)

Farei uma adaptação simples, considerando o objeto sonoro, usando os três

elementos sígnicos de Peirce. Como vimos em sua definição acima, interpretante

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está relacionado ao signo criado na mente do intérprete e não diretamente ao

intérprete, no caso, o ouvinte.

Tabela 3: Semiose (processo de significação)

Semiose (processo de significação) Peirce

1 - Signo Qualquer som (fenômeno sonoro) perceptível

Representação acústica de um objeto Refere-se ao objeto

2 - Objeto A quem se refere o signo

Pode ser perceptível ou imaginável Existe à margem do signo.

3 - Interpretante Pensamento interpretativo do signo

Representação mental do objeto

Sendo um processo, a semiose começa na apreensão do fenômeno, segue

na transformação do fenômeno apreendido em um signo equivalente, um objeto

mental, um terreno psicológico, uma realidade refletida.

O representamen banca o objeto, representa algum ou muitos aspectos do

objeto, limitado por sua natureza, estará sempre em falta com o objeto. Esta falta

exigirá da mente interpretadora a geração de um interpretante que proporcionará o

complemento, uma signo mais completo, correlato à sua realidade cultural,

contextual, isto é, sua condição social, psicológica, cultural influencia a geração dos

significados. Por exemplo, se ouvirmos o som de um carro em movimento será o

suficiente para fazermos a leitura da situação. O carro está representado apenas por

alguns aspectos entre tantos: o som inconfundível do motor, a sensação de

movimento do som, de um sentido para o outro, enfim, o som (representamen) nos

chega e é impresso em nossa mente. No entanto, não imaginamos o som em

movimento; em nossa imaginação está a imagem de um carro (interpretante), que

representa melhor o carro (objeto). O terceiro elemento dessa dinâmica completa

esse processo de interpretação, mas não o finaliza, pois o interpretante, em seu

processo de transformação, gera um novo signo. O signo, ao desenvolver-se em

interpretante, irá desenvolver-se em outro, posteriormente, e assim por diante, pois a

transferência da representação por parte do interpretante indica que o signo é

incompleto em relação ao objeto que ele representa.

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Na relação entre signos e sentidos na composição de uma peça sonora,

vista a partir da perspectiva da Teoria Semiótica de Charles Sanders Peirce,

conciliada aos conceitos de escuta de Pierre Schaeffer, percebemos a dinâmica de

significação entre os três pontos de ação: o signo (som), o objeto (coisa

representada) e o interpretante (formulação do ouvinte), A interpretação do discurso

sonoro é alcançada pelos diferentes modos de escuta, com seus graus de alcance,

como pelas etapas (categorias) de percepção, que conduzem à formação do

interpretante, desde o primeiro contato do ouvinte com os signos sonoros

provocando sensações (primeiridade), passando para a etapa que antecede o

significado (secundidade), na qual se reconhece e identifica o signo como algo

existente, concreto, inserido no contexto, até chegar ao passo em que se configura a

representação simbólica (terceiridade) e seus significados.

O interpretante se desenvolve desde a fase da primeiridade, alargando-se

na secundidade e fechando o seu círculo na terceiridade, pois a mediação

interpretativa entre alguém e o fenômeno tem sua origem na primeira apreensão do

objeto (primeiridade), mesmo que sutil como uma película. Esta é a semiose,

processo de geração sígnica.

Figura13: Dinâmica da semiose

A ciência que estuda a semiose é a semiótica. Esta analisa as relações entre

uma coisa e seu significado, isto é, do objeto e toda a dinâmica do seu processo de

significado.

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4.3 Semiótica

A cor e o som são como dois rios que possuem suas nascentes numa mesma montanha [...] 72

Goethe

A Semiótica73 estuda todos os fenômenos em seus sistemas de significação.

Ela investiga todas as linguagens possíveis, pois os processos sígnicos estão em

várias áreas das mais diversas ciências. A semiótica alastra-se nos diversos

terrenos por conta do seu objeto: o signo, e por isso é considerada, quase que

consensualmente, como ciência geral dos signos. Winfried Nöth (1995, p. 17)

considera a semiótica como “a ciência dos signos e dos processos significativos

(semiose) na natureza e na cultura”, admitindo ser uma definição possível e

pluralista.

A abrangência da semiótica é tamanha que se fizermos uma pesquisa

simples em algum desses sítios de busca na internet, encontraremos diversos tipos

de semióticas, como da linguagem, da arte, da cultura, do espaço, até mesmo do

corpo e da vida. Nos campos das ciências, a semiótica é vista, por uns, apenas

como campo de pesquisa, por outros, como teoria, método e até mesmo como

ciência. Esta “ciência por se fazer” (SANTAELLA, 2004, p. 71) aponta para diversos

caminhos pelos quais o objeto desta dissertação poderia ser estudado: a semiótica

da linguagem, da arte, da música, do som, da literatura, enfim, a semiótica que

possa estudar o fenômeno como elemento de produção de significações e de

sentidos e seus efeitos e consequências que são produzidos no receptor, neste

caso, o ouvinte.

Desta maneira, me sirvo do sistema de classificação das ciências criado por

Peirce para mapear e situar o curso destes estudos, sendo possível ter uma noção

clara da trilha já percorrida e do caminho por vir, como ilustrado no esquema abaixo,

em que dei destaque às divisões que comportam os estudos fenomenológicos e

discursivos que envolvem o objeto sonoro. As outras divisões, sem destaque (em

72 A cor e o som são como dois rios que possuem suas nascentes numa mesma montanha mas que fluem em condições de todo distintas rumo a regiões completamente opostas, e isso de tal forma que em nenhum momento um pode se comparar com o outro. (GOETHE apud SCHUBACK, 1999, p. 31) 73 Semiótica (do grego σημειωτικός (sēmeiōtikos) - literalmente, "a técnica dos sinais").

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escala de cinza), apresentam suas ramificações e gradações, no entanto não as

descreverei.

Tabela 4: Adaptação baseada na Classificação das Ciências74, de Charles Peirce (CP 1.180, 1.238)75

Peirce começa a sua classificação repartindo em dois filos (CP 1.239) que

são as ciências teóricas e ciências práticas. As ciências teóricas são divididas em

dois subfilos (ibidem), chamados de ciências da descoberta e ciências de revisão.

As ciências da descoberta são compostas por três classes: a matemática (CP

1.240), a filosofia (CP 1.241) e as ciências especiais (CP 1.241-242). Estas classes

se diferenciam pelo modo de observação empregado por cada uma delas. A

observação da Filosofia é a observação da experiência comum, que não depende de

meios nem instrumentos especiais (CP 1.241), mas dos modos como a realidade se

apresenta enquanto possibilidade fenomênica. Portanto, a filosofia comporta a

fenomenologia, as ciências normativas e a metafísica (CP 1. 186) como suas três

subclasses. A fenomenologia estuda os modos como sistemas mentais

experienciam os fenômenos e as formas dessas experiências, como esses sistemas

interagem com mundo. Como já vimos anteriormente, depende das categorias

fenomenológicas o modo como o objeto é entendido, se como fenômeno apenas ou

como forma representativa.

Peirce vê na fenomenologia (faneroscopia), ou Doutrina das Categorias (CP

1.280) o princípio, o começo de toda descoberta, a primeira coisa com o que a

filosofia deve se ocupar, pois ela exige um tipo singular de pensamento em que a

maneira de olhar e ver é que determinará o que se vê (CP 2.197). Abaixo, usando

74 Quadro de Classificação das Ciências completo está disponível nos anexos. 75 Para as citações dos Collected Papers de Charles Sanders Peirce, foram adotadas as formas convencionais de referências CP, seguidas do algarismo que corresponde ao volume e o último número faz referência ao parágrafo. No caso, CP 1.180, CP = Collected Papers, 1 = volume e 180 = parágrafo.

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um recorte do quadro usado anteriormente (Tabela 4) farei um enfoque mais

aproximado.

Tabela 5: Recorte do quadro Adaptação baseada na Classificação das Ciências,, de Charles Peirce

A filosofia peirceana está arquitetada hierarquicamente, com suas divisões e

subdivisões assim:

Tabela 6: Diagrama da filosofia peirceana

1— Fenomenologia

2 — Ciências Normativas

2.1 — Estética

2.2 — Ética

2.3 — Semiótica ou Lógica

2.3.1 — Gramática pura ou especulativa

2.3.2 — Lógica Crítica

2.3.3 — Retórica pura ou Metodêutica

3 — Metafísica

Aqui temos uma situação importante, pois estudar os fenômenos tal como

aparecem é função da fenomenologia, enquanto que as ciências normativas estão

voltadas para a compreensão de como podemos agir sobre eles e eles sobre nós.

Nesse mapeamento proposto cabe estudar a fenomenologia e as ciências

normativas. A fenomenologia como contraponto, para fazer oposição e clarificar os

motivos dos estudos das ciências normativas; e estas, por comportarem, como uma

de suas ordens, a lógica, ou semiótica, que, por sua vez, contém a subordem

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gramática pura ou especulativa. A semiótica trata do fenômeno concebido como

signo e a gramática especulativa tem outra função: a de estudar a fisiologia dos

signos, como também suas naturezas e significados, conforme explicitação de

Peirce:

[...] Sendo todos os pensamentos realizados por meio de signos, a lógica pode ser considerada como a ciência das leis gerais dos signos. Ela tem três ramos: 1. Gramática Especulativa, ou a Teoria geral sobre a natureza e os significados dos signos; 2. Crítica, que classifica argumentos e determina a validade e o grau de força de cada espécie; 3. Metodêutica, que estuda os métodos que devem ser perseguidos na investigação, na exposição, e na aplicação da verdade. Cada divisão depende da que precede. (CP 1.191)

Sendo do caráter da Gramática Especulativa teorizar sobre a natureza dos

signos, os textos de Peirce indicam que os signos são apenas mediadores de uma

relação, sendo o signo um primeiro, que intermedia uma relação entre um segundo

(objeto representado) e um terceiro (interpretante). Para compreendermos essa

mediação que guarnece uma comunicação entre sujeito/objeto, é necessário o

estudo dos níveis de representação sígnica e saber até que ponto o signo

representa o objeto, conforme a definição de Peirce, segundo Santaella:

Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determina naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo, e da qual causa mediata é o objeto, pode ser chamada de interpretante. (PEIRCE apud SANTAELLA, 2001, p. 42-3)

O signo pensado por Charles Peirce é um signo em movimento. Por esta

razão a sua semiótica os divide também em categorias ou modos gradativos de

representação do objeto.

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4.4 Categorias de sígnos

Assim é, se lhe parece. 76

Luigi Pirandello

Classificar os signos não está nos planos deste trabalho, porque

perderíamos o foco, devido à diversidade dos signos. São diversas as taxonomias

criadas por tantos semióticos, considerando os mais diferentes aspectos, as mais

distintas relações sígnicas e todas são necessárias para uma análise mais rigorosa,

pois não se podem tratar os signos por igual, ignorar as diferenças, afinal os signos

se diferenciam pela fonte, pelas inferências, pela especificidade, pela intenção e

grau de consciência do seu emissor, pelo aparelho receptor humano, pela relação

ao seu significado, pela replicabilidade do significante, pelo tipo de relação

pressuposta com o referente, pelo comportamento que estipulam no destinatário,

pelas funções do discurso e por tantos outros motivos. Uma passagem de Lucia

Santaella é elucidativa, nesse sentido:

Se levarmos ainda em consideração que o estudo da ação dos signos não se reduz a um mero formalismo descritivo das propriedades internas dos signos, mas inclui suas relações de referência, suas ligações contextuais, seus processos de emissão, os efeitos que estão aptos a produzir nos receptores e, sobretudo, se levarmos em conta que signo é mediação entre algo a que ele se refere ou aplica-se e os efeitos que serão produzidos no receptor, o que inclui as conseqüências que disso podem advir no futuro, as relações entre a comunicação e a semiótica ficam mais intrincadas e muito mais substanciais do que pode parecer à primeira vista. Todavia, há um grande complicador incluso nessas colocações: o fato que ‘signo’ não é um termo univalente e que cada escola semiótica o define ao seu próprio modo, do que decorre que há tantos signos quantas escolas semióticas existem (SANTAELLA, 2004, p. 77)

Desta maneira, o enfoque a ser feito neste trabalho está voltado para o

modo como o signo é usado no processo composicional, como irá representar o

objeto, uma vez que substitui o fenômeno e, assim, passa ser aquele que se

76 Così è (se vi pare) ("Assim é, se lhe parece" em português) é o título de uma peça de teatro escrita em 1917 por Luigi Pirandello, escritor italiano, A peça foi definida por ele mesmo como uma "farsa filosófica". Pirandello coloca os personagens numa situação paradoxal para demonstrar o contraditório da existência. Para o autor, o homem, apesar de seus esforços, não consegue penetrar até o fim do labirinto das aparências, nem conhecer o que está encerrado nas formas das quais é responsável e por sua vez, prisioneiro.

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“mostra”. Por este motivo elegi abordar o assunto sob o ponto de vista peirceano da

relação dos signos com os objetos.

A semiótica de Peirce estabelece uma classificação para os níveis de

relações associados às categorias fenomenológicas (Primeiridade, Secundidade e

Terceiridade). São eles: significação (do signo em si mesmo), objetivação (do signo

com o objeto) e interpretação (do signo com o interpretante).

Tabela 7: Classificação dos signos semióticos77, por Peirce

Significação Objetivação Interpretação Categorias Fenomenológicas Signo em si mesmo Signo com o objeto Signo com o interpretante

Primeiridade Quali-signo Ícone Rema

Secundidade Sin-signo Índice Dicente

Terceiridade Legi-signo Símbolo Argumento

Da interseção das três tricotomias sígnicas descritas pela aplicação de três

regras lógicas resultam dez classes de signos78. Vou me deter somente na

objetivação que trata da relação do signo com seu objeto, pois esta perspectiva está

mais casada com a referencialidade e com os processos composicionais. Este ponto

de vista associado às teorias referencialistas vão se complementando e se

mostrando como ferramentas indispensáveis para a compreensão do uso dos

objetos sonoros não musicais, como signos, elementos que compõem um texto.

Desta forma, as três classes básicas de signos são:

Ícones

Signos Índices

Símbolos

Figura 14: Tipos de signos, em relação ao objeto

O ícone é um tipo de signo que se refere ao objeto por associações de

semelhança, por imitação, ele lembra ou imita o objeto como se tivesse alguma de

suas qualidades. A forma é uma das qualidades do objeto, portanto, quando o signo 77 Um quadro mais complexo, contendo os cruzamentos de signos, que correspondem às relações permitidas entre as tricotomias, encontra-se disponível nos anexos. 78 O quadros contendo as 10 classes de signos, encontra-se disponível nos anexos.

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assemelha-se pela forma, compartilhando da mesma qualidade, o signo representa

o objeto pela sua semelhança formal. Um exemplo de natureza musical/sonora seria

um som musical realista, que ocorre quando um flautista emite o som de seu

instrumento musical imitando sons de pássaros ou quando um percussionista de

orquestra, usando timbales, imita os sons de trovões. Em ambos os casos, os sons

são (per)(formá)ticos79, imagéticos, como é natural em um signo icônico.

O índice é um signo que tem vínculo de causa, direta, real com seu objeto, a

sua relação é de contiguidade, indica o objeto, desperta a atenção para o objeto,

suas características são do objeto. Como o som da chuva, o badalar de um sino de

uma igreja, o canto dos pássaros, o ruído dos liquidificadores, que são sons que

indicam as suas fontes. Não podemos deixar de salientar que o som da flauta e dos

timbales, dados anteriormente como exemplos de signos icônicos, são, ao mesmo

tempo, signos indicadores, pois logo identificamos que se trata do som de um

instrumento específico, isto é, o seu timbre indica que é de uma flauta ou de um

timbale e que, performaticamente, imitam as nuances e dinamismos, buscando um

realismo, por vezes de forma onomatopaica, do objeto representado.

O símbolo é um signo que se refere ao objeto por uma conexão arbitrária,

por um hábito ou uma convenção socialmente estabelecida, de que tal objeto deva

ser representado por tal signo e isso terá que ser aprendido no contexto. A

associação entre significante e significado não depende de qualquer semelhança ou

relação causal com o objeto. Como exemplo musical, temos os hinos dos clubes, os

jingles. Como exemplos sonoros, não musicais, temos o som do apito do juiz de uma

partida de futebol. O apito tem o seu código de linguagem, que segue leis, regras e

convenções para assinalar significados específicos. Com um pequeno sopro, o juiz

ordena o início do jogo e com assobios longos, curtos, fortes, estridentes, discretos

ou cortantes, simboliza ordens e advertências. Com o apito, o juiz inicia, interrompe,

reinicia e determina o fim do jogo e, em casos de partidas em que algum jogador fala

um idioma diferente ao do juiz, esse problema é superado pelas convenções e leis

do jogo.

Nas palavras de Peirce compreendemos a que nível se dá a conexão do

signo com o seu objeto representado:

79 A palavra performance tem sua origem no latim, formada pelo prefixo latino per mais formáre (formar, dar forma).

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87

O Ícone não tem conexão dinâmica alguma com o objeto que representa; simplesmente acontece que suas qualidades se assemelham às do objeto e excitam sensações análogas na mente para a qual é uma semelhança. Mas, na verdade, não mantém conexão com elas. O Índice está fisicamente conectado com seu objeto; formam, ambos, um par orgânico, porém a mente interpretante nada tem a ver com essa conexão, exceto o fato de registrá-la, depois de ser estabelecida. O Símbolo está conectado a seu objeto por força da idéia da mente-que-usa-o-símbolo, sem a qual essa conexão não existiria. (PEIRCE, 2005, p.73)

As três formas de signos não são excludentes uma das outras, pois um

signo pode ser um índice, um ícone ou um símbolo; como pode ser uma combinação

entre eles. Tudo isso vai depender do modo como o signo é percebido ou como vai

ser utilizado. O mesmo signo pode estar carregado dessas características.

Tomemos como exemplo o som de timbales na obra Abertura 181280, de

Tchaikovsky, que são signos indiciais, pois indicam que são sons de um instrumento

musical específico, são icônicos por estarem imitando o som de tiros de canhões e

são simbólicos, pois representam o ponto de maior tensão da invasão francesa à

Rússia, para esta conclusão é necessário considerar o contexto da narrativa musical

de Tchaikovsky. Da mesma maneira, um signo pode ser utilizado iconicamente em

um contexto e simbolicamente em outro, por esta razão os signos não podem ser

classificados sem que se façam referências aos propósitos e contextos em que

foram usados.

4.5 Fenômeno ou signo?

É o ponto de vista

que cria o objeto.81

Ferdinand de Saussure

Como vimos anteriormente, o modo de escuta é o que determina a atitude

de interpretação do som percebido. A disposição da escuta vai dar causa a

interpretação objetiva ou subjetiva. De acordo com a categoria de escuta, podemos

80 A Abertura Solene Para o Ano de 1812 é uma obra orquestral de Pyotr Ilyich Tchaikovsky comemorando o fracasso da invasão francesa à Rússia em 1812 e a subsequente devastação do "Grande Armeé" de Napoleão Bonaparte. É uma obra descritiva e mostra desde a partida dos soldados russos ao ponto culminante da guerra e o retorno dos soldados vitoriosos da Rússia. É uma obra de grande impacto pela sua sequência de tiros de canhão que é, em alguns concertos ao ar livre, executada com canhões verdadeiros. 81 (SAUSSURE, 2006, p. 15).

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simplesmente ouvir e não buscar o sentido do som, ao modo do “mestre ingênuo”

Alberto Caeiro, ou fazer abordagens e produzir significações à medida das

gradações da escuta.

Na fenomenológica schaefferiana, ao se manter na primeiridade, ou seja, ao

chegar a uma redução no modo de audição, eliminando as possibilidades de

referencialidade do objeto sonoro, ouvem-se tão somente as qualidades do

fenômeno sonoro, libertas dos caracteres icônicos, indiciais e simbólicos e das

funções sígnicas.

O objeto sonoro concebido por Pierre Schaeffer é tão somente um

fenômeno, um acontecimento sonoro, escutado somente numa atitude de escuta

reduzida, sem qualquer sentido decorrente de inferências, abordagens, simbologias

e significações, no entanto, ele reconhece que cada escuta é diferente:

É um facto reconhecido que cada escuta é diferente para diferentes pessoas, e mesmo para as diferentes escutas de cada um. Necessitamos então de afirmar a objectividade do objecto, quer dizer, que qualquer coisa no objecto resiste a essas abordagens, resta imutável, permite a diversos ouvintes, como a diversas escutas [por parte do mesmo ouvinte], de confrontar tantos aspectos quantas maneiras de focar o ouvido nas múltiplas atenções ou intenções de escuta. (SCHAEFFER, 2007, p. 58)

Existem saudáveis controvérsias aos conceitos schaefferianos, que

consideram que o fenômeno em si representa apenas um aspecto do signo.

Fazendo contraponto aos conceitos dos que entendem que tudo é signo, Peirce

avalia de um outro modo: “Nada é signo a menos que seja interpretado como signo”

(PEIRCE, 2005, p. 76).

A potencialidade textual do objeto sonoro começa onde termina o

comprendre de Schaeffer. Os estudos que continuarão se voltarão para o

conhecimento da desenvoltura do objeto sonoro quando recebido como signo,

desencadeando um processo de significação. Vamos direcionar os estudos desta

maneira, admitindo que as aparentes oposições sejam somente caminhos

diferentes, sejam pontos de vista distintos.

Do objeto fenomênico à representação sígnica há um percurso, há uma

passagem. Da natureza à cultura, do sensível ao inteligível, do mito à razão, do

fenômeno ao signo ou do cru ao cozido, como Claude Lévi-Strauss descreve as

representações entre a natureza e a cultura. Do objeto sonoro ao signo sonoro há

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um campo semiótico em que o receptor se situa de acordo com a sua postura

fenomenológica, com a sua atitude de escuta.

Umberto Eco estabelece determinados limites de extensão entre a natureza

e a cultura, entre o campo não semiótico e o campo semiótico, fazendo

diferenciações entre signos e não signos, tendo como critério mais forte a

convencionalidade, ou melhor, a convenção cultural e social. Esses limiares

semióticos direcionam sua teoria semiótica para uma semiótica cultural. Winfried

Nöth aponta para algumas dificuldades relacionadas às delimitações das fronteiras

estipuladas por Eco:

Entretanto, onde começa a convenção e onde termina a natureza? Eco não fornece respostas claras. A ciência cognitiva, por exemplo, tem enfatizado a dependência da cognição nas estruturas da mente humana e a impossibilidade de qualquer acesso direto à natureza "real" dos fenômenos. Muitas de nossas cognições são universais e não culturalmente variáveis, uma vez que elas se desenvolveram de acordo com leis universais da evolução biológica. (NÖTH, 1998, sn)

Essas questões que envolvem o fenômeno e o signo, da natureza e a

arbitrariedade, demonstram o quanto é ambíguo o signo, pois podem ser frutos de

construções e conceitos lógicos, no entanto, nada garante que serão reconhecidos

como signos pelo ouvinte.

Sendo o homem um ser, ao mesmo tempo, lógico e sensível, tem a

capacidade de perceber o fenômeno, seja um acontecimento ou uma obra de arte, e

criar concepções, construídas desde as sensações da experiência. Ao perceber o

objeto, somos estimulados a criar significados e dar sentidos às coisas, atribuindo

nexos e fazendo associações signicas, produzindo a nossa própria leitura.

Compor, ouvir, a partir de matérias sonoras, fenômenos, signos ou símbolos,

tudo é extremamente relativo quanto aos resultados. Ao compositor não cabe fazer

determinações, não está em suas mãos a condução de uma relação sujeito/objeto

que garanta que sua obra será percebida sob uma condição fenomenolócia ou

cultural, nenhuma linguagem artística pode assegurar isto. Qual a categoria

fenomenológica adotada pela percepção ou o critério psicologico de semiose que se

adequa a uma fruição ou a uma análise? O signo poderá ser percebido de uma

maneira que não está condicionada à vontade do compositor.

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O estudo da potencialidade textual do objeto sonoro parte da ideia de signo,

do inteligível, da razão, do cultural, no entanto admite as extensões fenomenológicas

articuladas em composições textuais.

É importante também constatar que os objetos sonoros, sendo unidades

portadoras de significação como outros signos (palavras, gestos, imagens, etc.)

formam sistemas de signos que se combinam e se transformam em linguagem.

4.6 Sintaxe

O que enunciamos em palavras nunca é, em língua alguma, aquilo que dizemos. 82

Heidegger

Os signos enquanto unidades portadoras de significados, por si só, pouco

podem representar sem a significação que o contexto lhes atribui. Para Hjelmslev

(1975, p. 49), o signo que representa algo, “é de definição realista e imprecisa”. Os

signos, quando decompostos fora de um contexto, são apenas signos que, às vezes,

nada ou quase nada significam. O seu maior desempenho, sua gradação máxima de

significação se dará pela relação que mantêm com outros signos, em função do

contexto. Sobre o assunto, Hjelmslev diz que:

Considerado isoladamente, signo algum tem significação. Toda significação de signo nasce de um contexto, quer entendamos por isso um contexto de situação ou um contexto explícito, [...]. (HJELMSLEV, 1975, p. 50)

Estas concepções encontram consonâncias com os pontos de vista de Eni

P. Orlandi83 sobre a relação entre as palavras e o texto na interpretação de um

discurso:

[...] eu diria que as palavras não significam em si. É o texto que significa. Quando uma palavra significa é porque ela tem textualidade, ou seja, porque a sua interpretação deriva de um discurso que a sustenta, que a provê de realidade significativa. (ORLANDI, 1995, p.111)

82Citação de A experiência do pensamento, de Heidegger (TOMÁS, 2002,, p. 27) 83 Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi (São Paulo) é uma pesquisadora e professora universitária brasileira. Foi a precursora, no final dos anos 70, da Análise do Discurso no Brasil.

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O signo é uma unidade de significação, que associado a outros signos forma

uma nova unidade de significação maior. Nesta nova unidade de nível maior, os

signos não estão amontoados, eles se agrupam, se organizam segundo regras. O

estudo destas organizações é feito pela semiótica em seu nível sintático. Para

Charles Sanders Peirce, a semiótica é constituída nos níveis sintático, semântico e

pragmático:

- Sintático - relação que o signo tem com o seu interpretante;

- Semântico - relação existente entre o signo e o seu referente (objeto);

- Pragmático - relação do signo com ele mesmo e com outros signos.

Charles Morris, baseado na semiótica peirceana, faz as seguintes

considerações quanto às dimensões sintática, semântica e pragmática da semiose:

• Sintática – está relacionado ao nível da estrutura dos signos, o modo em

como eles se relacionam e as suas possíveis combinações. As regras da

sintaxe são as de formação e transformação que tratam de combinações de

signos e respectivas relações;

• Semântico – analisa as relações entre os signos e os respectivos significados,

aos objetos que denotam ou possam denotar. A regra semântica designa,

dentro da regra semiótica, uma regra que determina sob que condições um

signo é aplicável a um objeto ou a uma situação; tais regras correlacionam

signos e situações denotadas por signos;

• Pragmática – Morris explica que o termo “pragmática” foi cunhado em

referência ao termo “pragmatismo”, que estuda a relação dos signos e os

seus utilizadores, enquanto que “pragmática” designa-se a “ciência da

relação dos signos aos seus intérpretes” e que, “historicamente, a retórica

pode ser vista como uma forma primitiva e limitada de pragmática (MORRIS,

[s.d.], p. 32). As regras pragmáticas são as regras de formação e

transformação da língua em que os veículos sígnicos em questão são

normalmente utilizados.

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Sobre as regras dessas dimensões da semiose, e das relações por elas

determinadas, Charles Morris arremata:

Regras sintácticas determinam as relações sígnicas entre veículos sígnicos; regras semânticas correlacionam os veículos sígnicos com outros objectos; regras pragmáticas estabelecem as condições nos intérpretes em que o veículo sígnico é um signo. (MORRIS, , p. 37)

Agora, mais do que antes, é preciso considerar a importância da

semelhança entre uma construção musical, ou sonora em relação a uma construção

literária, ao nível de estruturas e combinações de signos, das regras da sintaxe.

Vimos anteriormente o quanto os compositores e os estudiosos da música ocidental

faziam associações entre as linguagens musical e literária, procurando

correspondências entre a música e a palavra e outras equivalências musicais em

relação ao texto, tanto da poesia e da oração, ou como nos casos em que os cortes

musicais semelham a pontuação das frases, ou pela construção musical através do

uso de elementos da retórica. Sempre foi conveniente aos estudos musicais recorrer

a termos, conceitos e teorias de outras artes, mas principalmente das literárias.

Estes conhecimentos são considerados de suma importância para o

desenvolvimento musical, e é por esta razão que se recorre a um termo da

linguística para compreender as organizações musicais: me refiro a sintaxe musical.

Apesar de ter feito toda esta proximidade é importante compreender que

essas associações requerem muito cuidado, pois é importante identificar as

unidades semióticas musicais/sonoras para se falar em sintaxe.

A sintaxe, de acordo com o Dicionário Unesp do Português

Contemporâneo84, é a "parte da Gramática de uma língua que se constitui de um

conjunto de regras de combinatória entre as formas livres ou palavras para compor

os diversos níveis de construção com o intuito de comunicação”, enquanto que no

dicionário Aurélio85 é a “parte da gramática que estuda a disposição das palavras na

frase e a das frases no discurso, bem como a relação lógica das frases entre si;

construção gramatical”.

Émile Benveniste argumenta sobre a necessidade de explicitar a noção de

signo enquanto unidade semiótica, bem como a sua dependência nos planos de

enunciação: 84 BORGES, 2001, p.1291. 85 FERREIRA, 2004.

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Dizer que a língua é feita de signos é dizer antes de tudo que o signo é a unidade semiótica. Essa proposição, sublinhamo-lo, não está em Saussure, talvez porque ele a consideraria como uma evidente decorrência, e nós a formulamos aqui no início do exame que estamos fazendo; ela contém uma dupla relação que é necessário explicitar: a noção de signo enquanto unidade e a noção de signo como dependente da ordem semiótica. (Benveniste,1989, p. 224)

Identificar a unidade mínima de um sígno sonoro, isto é, de um objeto

sonoro, por analogias ou associações se apresenta como uma dificuldade, pois não

é possível estabelecer uma correspondência do objeto sonoro com nenhuma

unidade linguística.

Na linguagem musical, Nattiez trouxe as concepções de Saussure, de

significante e significado e adotou o conceito tradicional de "nota" como unidade

mínima do significante musical. A gramática tradicional já compreendeu a palavra

como unidade mínima, ideia que, há muito, já foi abandonada. Na linguagem verbal,

fonema, monema, morfema, lexema, semantema são unidades linguísticas munidas

de significação, no entanto, qual a mínima porção sonora significante de um objeto

sonoro não musical, como os sons naturais do ambiente ou mesmo os sons

artificiais que compõem a paisagem nossa de cada dia?

A obra Solfejo do objeto sonoro, de Pierre Schaeffer tem uma grande

importância nos aspectos que distingue um fenômeno sonoro de um signo. Nela

Schaeffer faz comparações e distinções do objeto sonoro com o musical, nos

levando a entender a dimensão da dificuldade em distinguir uma unidade de

significação. Dois temas essenciais de suas reflexões são: a duração e a altura86

dos objetos sonoros. Pensando sob o prisma da fenomenologia, conjecturamos

sobre qual a porção que podemos considerar uma unidade significante, isto é, de

que maneira se mostra e quanto tempo dura?

Em sua obra, Schaeffer faz considerações sobre os objetos sonoros e a

necessidade de um novo solfejo, levando em conta suas características

86 Em música, altura é uma das propriedades do som, refere-se ao tom (frequência fundamental dos sons). As frequências baixas correspondem aos sons graves e as mais altas com os sons agudos. O mais comum é que se utilize os nomes das notas. Existem muitas escalas possíveis, mas a mais conhecida pelos ocidentais é a escala diatônica, com suas sete notas: dó, ré, mi, fá, sol, lá e si, no entanto se diz que ela possui oito graus, sendo o oitavo a repetição do primeiro.

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assimétricas, descontínuas, anamorfas87, irregulares, insólitas, ilógicas, granuladas,

rugosas, e seus vestígios rítmicos, entre outras.

Na música, as notas tem altura (tonalidade) e duração (métrica) definida. Por

exemplo, pode se fazer a notação de uma semínima (duração) de dó (altura) na

partitura, mas como fazer o solfejo dos sons de um córrego ou de pedras rolando?

Como fazer divisões se são assimétricos. Segundo Schaeffer, “um som assimétrico

é marcado pelo sostenuto88 e pela ressonância” (2007, p. 23), e que a “informação

significativa pode estar contida em um ou dois décimos de sua duração métrica”

(2007, p. 24), e ainda acresce:

as nossas regras do solfejo, relativas ao valor das notas, não se aplicam senão numa zona privilegiada dos sons sustentados e homogéneos. Os elementos da forma [ou seja, perfil dinâmico] ou de informação perturbam consideravelmente os seus valores métricos. Assim, será um erro confiarmos no cronómetro ou no duplo-decímetro, e a existência de um esquema ou de um plano não assegura que se trate de uma partitura científica. Se existe uma máquina de calcular para calibrar música, nós já possuímos uma, prodigiosa, portátil, económica: senhoras e senhores, é o nosso ouvido. (SCHAEFFER, 2007, p. 24)

Nossos ouvidos são aptos para apreciar qualidades sonoras mesmo que a

sua duração seja muito breve, assim o tempo não se qualifica só pela duração, “ele

pode ser subvertido, “anamorfoseado” pelo ouvido” como acontece com o espaço

quando “são anamorfoseadas por um espelho deformador” (SCHAEFFER, 2007, p.

36), ao mesmo tempo, existem limites do aparelho auditivo em que determinados

sons soam indiferentes à natureza dos estímulos. A duração musical está mais

relacionada a densidade de informação, a quantia de acontecimentos energéticos,

numa dada fase de um determinado objeto, do que com a sua medição.

Acrescentemos que a memória musical não retém apenas as proporções do tempo de escuta, mas também a importância daquilo que se passou. (SCHAEFEER, 2007, p. 23)

São muitos os pontos importantes desse modo de pensar a música, voltado

para o solfejo de Schaeffer. Poderia escrever mais sobre estas questões, aprofundar

os estudos, mas para isso seria necessário um trabalho de maior amplitude que o

87 A “anamorfose” é utilizada aqui em sentido figurado e refere-se à deformação que sofre a imagem de um objeto refletida num espelho curvo em relação ao próprio objeto. 88 Na música , sostenuto é um termo italiano que significa "sustentado".

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proposto na elaboração do plano dissertativo. Abaixo farei algumas citações

complementares, que compreendo serem indispensáveis:

O objecto sonoro não é de forma alguma o fragmento gravado mas no entanto ambos se assemelham muito. Pode-se crer acreditar que o capturámos e, com efeito, esse fragmento ao ser lido à mesma velocidade [de gravação], restitui-nos o fenómeno sonoro original [...] (SCHAEFFER, 2007, p. 57)

Um objecto sonoro é delimitado pela sua coerência causal; ela coincide com a curta história de um acontecimento acústico. Mas no entanto, isso não assegura a unidade do objecto musical. (SCHAEFFER, 2007, p. 58)

Desconfiemos também dos cortes temporais. Um íman quebrado em pedaços dá como resultado vários ímanes. Assim um objecto sonoro fraccionado em três, resulta em três objectos sonoros que possuem, cada um deles, um início, um corpo e uma queda [...] (SCHAEFFER, 2007, p. 58)

Mostrarei abaixo um gráfico de um editor de áudio. Nele vemos ilustradas as

ondas sonoras que formam o som de uma flauta (figura 15), com duração menor que

um segundo (743 milésimos de segundo). Através de ferramentas de corte podem

ser feitos tantos cortes quanto necessários.

Figura 15: Gráfico do som de flauta

Na figura abaixo, o mesmo som, porém dividido em três partes. Os cortes

feitos resultam em três objetos.

Figura 16: Gráfico do som de flauta com cortes

A complexidade da identificação de uma unidade de significação pode ser

verificada na citação anterior e na posterior seguinte. Na anterior temos o exemplo

de um corte vertical, isto é, na duração, em que o objeto foi dividido em porções de

tempo e na citação a seguir o corte é horizontal, as porções são separadas por suas

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frequências, mantendo a duração. No exemplo, Schaeffer descreve a experiência de

uma chapa metálica percutida sobre o seu bordo, produzindo um objeto cuja

unidade é inegável, mas que pode ser notado que este objeto sonoro contém pelo

menos dois objetos musicais detectados por filtragens:

Uma filtragem aguda [HPF]89 reterá os principais critérios de ataque: [...] Uma filtragem grave [LPF]90 não conservará senão a ressonância grave [...] (SCHAEFFER, 2007, p. 58)

Ainda sobre a questão de descompor, ou fracionar o som, Haroldo de

campos (1969, p. 46) cita Henri Pousseur91, que, em sua “busca do material sonoro

elementar, ao pré-som, que fica à raiz dessa ruptura da garra de ferro da matéria

utilizavel na musica tradicional”, acrescenta:

Quanto ao universo sonoro duma ductilidade ideal – ambição da música atual – o único meio de se chegar a êle consiste sem dúvida em reduzir a ‘matéria’ a seu estado mais simples, mais comum, amorfo e maleável: o som sinusoidal de laboratório, tal como o pode produzir um gerador de frequências. Uma vez que todo ruído, todo som, todo acontecimento sonoro, pode ser analisado como soma de um certo número de elementos parciais – nós os distinguiremos tendo em vista sua altura, sua intensidade, bem como a evolução de sua freqüência e de sua dinâmica em relação ao tempo, em relação, finalmente à sua direção em si própria – tudo o que é audível, portanto, é passível de ser construído a partir de um ‘som puro’. (POUSSEUR apud CAMPOS, 1969, p. 46-47)

Qual a duração de um fenômeno? Como se distingue o que é uma porção

daquilo que se mostra para os nossos sentidos de percepção? Se estivéssemos

tratando do sentido da visão, poderíamos falar que é o que vemos de imediato,

como um quadro, uma impressão que, feito um carimbo, se fixa como “imagem

acústica” em nossa mente, em termos saussureanos. Mas os campos dimensionais

das impressões visuais e auditivas são distintos. O suporte dimensional das imagens

é o espaço e o dos sons é o tempo, assim, que fração de tempo de um som pode

ser compreendido como um fenômeno? Sobre este aspecto, tomemos, então,

conhecimento de algumas reflexões de Edmund Husserl: 89 High pass Filter (filtro passa-alto) é um tipo de equalizador que elimina as frequências abaixo de um ponto de corte especificado. O usuário escolhe, por exemplo 40 Hz, desta forma, abaixo de 40 Hz será eliminado e o equalizador irá deixar passar apenas as frequências altas, acima de 40 Hz. 90 Low pass Filter (Filtro passa-baixa), como o nome já sugere, é o oposto do HPF, é um tipo de equalizador, filtro divisor de frequências, que permite que as frequências abaixo do nível especificado sejam preservadas. 91 Henri Pousseur (1929 - 2009) foi um compositor belga devotado à pesquisa da música de vanguarda, participou ativamente do dodecafonismo e foi um dos protagonistas da música eletrônica e serial.

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Se olharmos de mais perto e advertirmos como, na vivência, por ex., de um som, mesmo depois da redução fenomenológica, se opõem o fenómeno (Erscheinung) (*) e o que aparece e como se opõem no seio do dado puro, ergo, da imanência autêntica, ficamos perplexos. Por exemplo, o som dura; temos aí a unidade evidentemente dada do som e da sua distensão temporal com as suas fases temporais, a fase do agora e as fases do passado; por outro lado, se reflectirmos, o fenómeno da duração do som, que é em si algo de temporal, tem a sua respectiva fase do agora e as suas fases do passado. E numa fase seleccionada do agora do fenómeno não só é objecto o agora do próprio som, mas o agora do som é apenas um ponto numa duração sonora. Esta indicação – análises maispormenorizadas pertencem às nossas tarefas especiais no que se vai seguir – é suficiente para nos fazer ver o que aqui há de novo: o fenómeno da percepção de um som e, claro, da percepção evidente e reduzida, exige uma distinção entre o fenómeno e o que aparece no interior da imanência. Por conseguinte, temos dois dados absolutos, o dado do fenómeno e o dado do objecto; e o objecto, dentro desta imanência, não é imanente (1) no sentido incluso, não é um fragmento do fenômeno: a saber, as fases passadas da duração do som são agora ainda objecto e, no entanto, não estão inclusivamente contidas no ponto do agora do fenómeno. (HUSSERL, sd, 31-32)92

Com todas essas considerações, podemos perceber a complexidade em

fazer determinações de duração do fenômeno sonoro. Enfim, não intento chegar a

conclusões quanto à medição de um objeto, extrair porções ou mesmo fragmentar o

fenômeno, pois isto não está na mira desta dissertação, pois é uma questão da

fenomenologia da música. Também não objetivo fazer definições sobre os níveis de

unidades significativas, no entanto toca fazer algumas observações quanto às

possibilidades de equivalência do objeto sonoro em relação às unidades sígnicas da

linguagem verbal, como também da linguagem musical.

Alguns aspectos importantes para se cogitar são os questionamentos e

reflexões sobre estrutura frasal, suas regras, descrições, tanto da língua como

musical, quanto às suas partes constituintes.

Diz Saussure (2006, p. 122): “pois que é uma frase senão uma combinação

de palavras, e que existe mais fácil de perceber?”. Apesar de a palavra não ser

considerada como a mínima unidade, ela é uma unidade central, uma referência,

seja para ser fracionada em unidades menores ou para compor unidades maiores,

em termos de estabilidade sintática e semântica. Nos seus fracionamentos temos

como subunidades os sufixos, prefixos e radicais, cada uma com seu sentido, cada

92 Notas extraídas do livro: (*) No sentido ‹‹manifestação››, ‹‹aparição›› (i.é, vivência) e (1) No manuscrito está: ‹‹transcendente››. (HUSSERL, sd, 31)

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uma com papel próprio. Entre os grupos maiores, temos as unidades fraseológicas,

como os compostos, as locuções, expressões idiomáticas, frases lexicais, etc.

Saussure decompõe a palavra em prefixos, raízes, radicais, sufixos, desinências, e

também apresenta o processo de aglutinação ao tratar da formação dos itens

lexicais complexos:

[...] quando um conceito composto é expresso por uma seqüência de unidades significativas muito usual, o espírito tomando por assim dizer um atalho, renuncia à análise e aplica o conceito em bloco ao grupo de signos, que se torna então uma unidade simples. (SAUSSURE, 2006, p. 206)

Entre a sintaxe musical e a sintaxe verbal há uma grande semelhança. Isto

está demonstrado quando estudamos sobre as formas musicais. Cabe conhecer

alguns pontos de vista sobre unidade semiótica e organização musical.

Uma composição musical é a organização de ideias musicais. De acordo

com a sua organização vão se constituindo as formas, as estruturas, os gêneros,

etc. Schoemberg diz que a coerência e a lógica são requisitos para a compreensão

da obra:

Sem organização, a música seria uma massa amorfa, tão ininteligível quanto um ensaio sem pontuação, ou tão desconexa quanto um diálogo que saltasse despropositadamente de um argumento a outro. Os requisitos essenciais para a criação de uma forma compreensivel são a lógica e a coerência: a apresentação o desenvolvimento e a interconexão das idéias devem estar baseados nas relações internas, e as idéias devem ser consideradas de acordo com sua importância e função. (SCHOEMBERG, 1991, p. 27)

A organização das ideias musicais é feita por divisões, subdivisões, de forma

hierárquica. Existem várias definições e denominações dos elementos formais,

emprestados do universo das artes plásticas, como desenho e forma, outros da

linguagem verbal, das teorias dos textos, enunciados, fraseologias, etc., como

“frase”, “período” e “sentença”. Existe também um sistema de pontuação, que atuam

como “vírgulas”, pontos de “exclamação”, “interrogação”, “final”, com suas

correspondências nas “cadências” musicais. A música tradicional é organizada de

forma muito semelhante ao da linguagem verbal. Abaixo, alguns teóricos e as

divisões propostas por eles.

- Schoemberg (período ou sentença, frase, motivo);

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- Giulio Bas (período, frase, semifrase, motivo ou inciso);

- Riemann (período, semiperíodo, grupo, motivo);

- Zamacois (frase, período, subperíodo, membros do subperíodo, motivo;

Clemens Kühn (2003, p. 77) mostra exemplos históricos de mesclas e

combinações de formas como frase con antecedente de tipo período; período con

semifrases de tipo frase; superposiciones; potenciación. Em seu livro Tratado de la

forma musical, Kühn argumenta sobre essas possibilidades, a partir de exemplos de

Haidn, Beethoven e Mozart:

Frase y período no solo se traducen em ideas formales contrapuestas. lo característico son, precisamente, los casos em que ambos se solapan o se dan juntos. Equilibrio del período atravessado por energia motívica, empuje apremiante de la frase sosegado por las fuerzas armónicas: esta es la regla clássica, y no la excepción. Esta penetración mutua es la que nos revelará las señas de identidad, formales. (KÜHN, 2003, p. 77)

Depois dessas reflexões, não podemos deixar de considerar que as sintaxes

verbal e musical não comportam o objeto sonoro, mais especificamente, os sons do

cotidiano, como os ambientais ou os sons gerados pelos artefatos modernos,

usados como signos em uma composição/textura sonora. Esses objetos não tem

correspondência fixa com a palavra, frase, sentença, oração, enunciado, exatamente

porque pode corresponder à qualquer uma dessas unidades. Por exemplo, o som de

chuva, pode corresponder com a palavra “chuva” representar a chuva, como

também pode corresponder à construção “está chovendo”.

A soma dos objetos sonoros forma uma língua, um sistema, com linguagem

própria, portanto requer uma sintaxe combinada, pois entendo que todo o aporte das

duas sintaxes, das unidades verbais ou musicais, são necessariamente

fundamentais para se compreender uma possível sintaxe sonora, sem se descuidar

das relações com outras sintaxes, afinal essas semelhanças são encontradas

também na comparação com outras artes.

A música tradicional tinha como unidade mínima a nota musical (tom) e uma

sintaxe baseada no sistema tonal. As possibilidades da sintaxe tonal já haviam sido

exploradas em, praticamente, todo o seu potencial, então, em função dessa crise da

linguagem musical da tradição, as músicas que surgiam, conhecidas também como

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“música moderna”, “nova música”, “contemporânea” ou “música de vanguarda”,

buscavam romper com as convenções, com aquilo que se julgava falido: o tom.

As possibilidades da sintaxe tonal já haviam sido exploradas em todo o seu

potencial, e dessa busca, que era também investigação, surgiram experimentos de

música que pretendiam se emancipar do mundo tonal, desde as que exploravam os

instrumentos tradicionais, extraindo sons não convencionais às que se utilizavam de

sons sintetizados, sons concretos e ruídos. Como exemplo de experimentos que

atacavam diretamente o tonalismo podemos citar alguns métodos de composição

musical e o modo como se dava o embate com o tonalismo; são eles: atonalismo,

serialismo, microtonalismo e a música futurista e também a concreta. A musica

atonal, que negava o tonalismo, mas não o tom, isto é, transgredia a sintaxe, no que

se referia a algumas regras, por exemplo, ao poder de atração de certos graus e

intervalos, mas não negava o sistema, no entanto, os compositores que usavam

este método começaram a perceber a dificuldade de se conseguir dar coerência no

discurso musical atonal, surgindo a música serial, por exemplo, o dodecafonismo,

que estabelecia preliminarmente à composição da peça um série de doze notas da

escala cromática93, com o intuito de garantir uma direção e ordem, dando uma

coerência à obra. A musical microtonal, que apesar de modificar o sistema de notas,

ampliando, como o caso de Julián Carrillo94, que descobriu a décima sexta parte de

um tom, ainda tinha a mesma entidade formal; ou a música futurista, que no ponto

de vista de Mondrian95, não avançaram com as intenções de renovação baseadas

na introdução de ruídos (explosões, gemidos, sussurros, vozes de animais, sons de

madeira e metal, etc.) em suas composições, inclusão dos ruídos na música.

Mondrian elogia Russolo, que criou o intonarumori para a emissão desses sons, que

eram acionados por uma alavanca, mas o critica por ter projetado para que

realizasse padrões melódicos diatônicos e cromáticos, demonstrando com isso não

93 A escala cromática é formada de 12 sons. A escala é formada pelas 7 notas padrão da escala diatónica, acrescidas dos 5 tons intermediários: - Dó - Dó# - Ré - Ré# - Mi - Fá - Fá# - Sol - Sol# - Lá - Lá# - Si 94 Julián Carrillo Trujillo (1875 - 1965) foi um compositor mexicano, também maestro, violinista e teórico da música, conhecido por desenvolver uma teoria da música microtonal, que ele apelidou de "Sonido 13". Quando experimentava com seu violino em 1895, descobriu dezesseis sons nitidamente diferentes entre os tons Sol e Lá, emitidos pela quarta corda do violino. Julián Carrillo reformulou as teorias e a física da música. Ele inventou uma notação musical numérica simples, que pode representar qualquer subdivisão imaginável). Ele inventou instrumentos musicais novos, e adaptou outros para produzir microintervalos. Compôs uma extensa quantidade de música microtonal e gravou cerca de 30 de suas composições. 95 Pieter Cornelis Mondrian, mais conhecido por Piet Mondrian (1872 - 1944) foi um pintor Holandês modernista. Participou do movimento artístico Neoplasticismo e colaborou com a revista De Stijl.

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ter compreendido sua própria descoberta e o alcance de seus propósitos. Para

Mondrian, Russolo e os futuristas não souberam chegar às últimas consequências

de seus aportes iniciais, pois poderiam definir o valor do ruído como nova entidade

formal, no entanto se conformaram em inserir os ruídos aos instrumentos, não

renunciando a estrutura da música tradicional, pretendendo com o seu intonarumori

gerar algo semelhante às melodias (PIANA, 1995, p. 72). As queixas de Mondrian se

dão porque entendia que a musica futurista de Luigi Russolo e Balilla Pratella não

deveria buscar a acumulação, mas uma nova ordenação, um novo sistema de

relação dos sons.

Os futuristas acreditavam que a música deveria expressar a “alma da

sociedade”. É legítima a reivindicação dos futuristas, pois a “alma da sociedade”

estava contagiada por novos signos, produtos dos avanços tecnológicos, que

imprimiam novo ritmo e tensão à vida, que a caracterizavam de moderna: o avião, os

trens, carros, máquinas, equipamentos, etc.

A música concreta incorporou esses elementos concretos, mas de maneira

diferente, através de amostras sonoras, de gravação de sons e a música eletrônica

se empenhou na criação tímbrica, de espectros sonoros novos, enquanto a música

eletroacústica é considerada uma continuação das duas vertentes, na busca de

novas poéticas a partir de modelos de criação musical amplamente mediado por

tecnologias eletrônicas.

Os estúdios eletroacústicos modificaram os modos de concepção sonora no

âmbito da composição (IAZETTA, 2009, p. 149), pois os computadores se infiltraram

nos estágios de produção musical e um programa musical não é uma ferramenta

neutra.

Às vezes, especialmente quando novas tecnologias são aplicadas, há risco de que dado programa ou tecnologia seja mais decisivo na elaboração da composição que a inspiração musical. (Brech, 2002, p. 211)

Simultâneo a todo esse período, os compositores também romperam com a

métrica e padrões tímbricos. Entre tantas tentativas, experiências, erros, acertos,

exageros, ninguém foi mais radical que John Cage96, pois rejeitou as sintaxes, os

96 John Milton Cage Jr. (1912 - 1992) foi um compositor, teórico musical, escritor e artista dos Estados Unidos. Cage foi um pioneiro da música aleatória, da música eletroacústica, sendo considerado um dos mais representativos compositores da música de vanguarda.

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discursos e formas. A sua postura não só subverteu o tom, sua música não foi só

atonal, mas aformal também, além de suspender o próprio conceito de obra. Seu

exemplo mais contundente é a peça denominada 4’33” (quatro minutos e 33

segundos). Esta peça não contém nenhuma matéria sonora, é feita de silêncio, isto

é, não possui nenhuma nota, sendo composta inteiramente por pausas. No entanto,

o silêncio de Cage não equivale ao vazio, nem à ausência, mas a um campo de

possíveis composições musicais-sonoras, pois, enquanto dura a peça (intervalo de

tempo que corresponde ao nome da obra), cada ouvinte escuta uma música, uma

composição de ruídos ocasionais, uma música formada pelos sons ambientes, que,

conforme o modo de escuta, são elegidos uns sons enquanto outros são rejeitados e

cada ouvinte processa texturas sonoras complexas, aleatórias e distintas. Ao

enfatizar o silêncio, Cage nega as formas e estruturas, renunciando a noção de

ordem, além do que o grau de “abertura” que sua obra alcança, no que se refere ao

material sonoro, é extraordinário, pois ela está composta por todo e qualquer som

ouvido durante a sua duração, portanto, tudo o que for ouvido, cabe. Nesta

concepção, todos os signos sonoros podem se relacionar, uma vez que tudo o que

for ouvido, seja lá o que for, não foi forjado, é uma obra sem as tramas da

dissimulação, é uma obra do acaso e da aleatoriedade.

Quanto aos diversos e possíveis níveis de abertura de uma obra, Umberto

Eco (1991), analisando a linguagem da arte contemporânea detecta que a música

liberta “a audiência dos trilhos obrigatórios da tonalidade e multiplica os parâmetros

com que organizar e degustar o material sonoro” (ECO, 1991, p.92), em mobilidades

que propiciam uma variedade de interpretações:

Das estruturas que se movem àquelas em que nós nos movemos, as poéticas contemporâneas nos propõem uma gama de formas que apelam à mobilidade das perspectivas, a multíplice variedade das interpretações. Mas vimos também que nenhuma obra de arte é realmente "fechada", pois cada uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma infinidade de "leituras possíveis”. (ECO, 1991, p. 67)

Essas experiências radicais subverteram profundamente a sintaxe musical,

desorganizando-a, no entanto, podemos entender que a maioria das transgressões

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é somente uma ruptura ao modelo sintático ditatório e não uma negação à sintaxe,

conforme Phillipot97:

[...] a tomada de posse da totalidade do universo sonoro não justifica nem o ‘deixar correr’, nem o acaso, nem a incoerência; e a organização consciente continua, ainda hoje, o mais seguro critério da música. (PHILLIPOT apud CAMPOS, 1969, p. 46)

Os progressos, oposições, birras, melhoras, aversões, evoluções, pirraças,

desenvolvimentos, enjôos, revoluções, enfim, as múltiplas reações em relação aos

sistemas musicais tradicionais, retratam as mudanças culturais, que, como sistema

de significações, desencadeiam práticas expressivas, como as atividades artísticas e

intelectuais, pois ao passo que ocorrem mudanças nos estilos de vida ou

organização social, muda-se a cultura, e culmina com a mudança nas formas

tradicionais de produção intelectual, artística (nos seus sistemas formais e de

linguagem). Georg Lukács entende este processo como uma dissonância da

existência:

A arte - em relação à vida - é sempre um 'apesar de tudo'; a criação de formas é a mais profunda confirmação que se pode pensar da existência da dissonância" [...] a forma alimenta-se da dissonância, de que ela constitui no entanto a afinação, unindo em acorde sons de outro modo destoantes. (LUKÁCS, 2000, p. 71)

Na arte, como em um processo dialético, a vida apresenta a antítese, a

dissonância, para que o artista encontre a síntese, isto é, uma nova forma de arte

(por consequência, dissonante em relação aos costumes). No caso específico da

música, as diversas mudanças, mencionadas anteriormente, eram gradações de

dissonâncias. A dissonância maior, apontada por Lukács (metafísica, fundamental)

exigiu um grau máximo de resposta artística, resultando em uma mudança que foi

para além do sistema musical e atingiu a materialidade, mudando a própria entidade

formal, que foi ampliada, não se restringindo só à nota musical, mas se estendendo

ao ruído. A história é feita de mudanças culturais. Para Raymond Williams (1969, p.

305), “a história da cultura é a história do modo por que reagimos em pensamento e

em sentimento à mudança de condições por que passou nossa vida”.

97 Michel Paul Philippot (1925 - 1996) foi um compositor, matemático, musicólogo, esteticista e educador francês.

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A busca de um novo material sonoro estava em consonância com a busca

de novos objetos em outras artes. Haroldo de Campos, em sua obra A arte no

horizonte do provável e outros ensaios, dedicou um capítulo sobre A poética do

precário, em que os objetos do cotidiano e o lastro rejeitado pela vida moderna

constituem obras de artistas como Kurt Schwitters, ou o entulho do idioma cotidiano

na poesia de Anna Blume e na prosa de Joyce, ou mesmo o material sonoro na

música futurista de Russolo continuada pela música concreta de Pierre Schaeffer,

que se lança à escafandria dos ruídos, usando recursos eletroacústicos, seguido por

Pierre Boulez98, que estava convicto “de que a uma nova morfologia correspondem

uma sintaxe, uma retórica e uma sensibilidade novas” (CAMPOS, 1969, p. 46).

A vanguarda musical propiciou novos meios, dos quais não se tem mais um

código comum, mas uma liberdade, uma abertura. Assim, cada transgressão deixou

sua marca e cada compositor forjou sua própria sintaxe. Neste contexto, observa

Santaella:

Hoje, cada estúdio de música eletroacústica é um laboratório de sintaxe e cada composição que é nele produzido, um tubo de ensaio sintático. (SANTAELLA, 2001, p. 116)

A autora, em seu livro Matrizes da Linguagem e pensamento, propõe A

sintaxe como eixo da matriz sonora. Para Santaella (2001, p. 112), a sintaxe é “o

modo pelo qual elementos se combinam para formar unidades mais complexas”.

Etimologicamente, a palavra "sintaxe" é formada por syn, que significa "junto", "com", e taxis, significando "arranjo". Desse modo, a sintaxe pressupõe a existência de elementos (objetos) a serem combinados. (SANTAELLA, 2001, p. 112)

A autora também comenta:

Um aspecto bastante presente nos estudos estruturalistas da sintaxe realizados neste século é a determinação do elemento que funciona como unidade mínima a ser combinada em seqüências para se obter os vários agrupamentos e níveis sintáticos. (SANTAELLA, 2001, p. 112-113)

98 Pierre Boulez (1925) é um maestro e compositor francês. Estudou dodecafonismo e escreveu música atonal num estilo serial. Boulez foi um dos líderes filosóficos do movimento pós-guerra nas artes, em favor de maior abstração e experimentação. Boulez é também um escritor sobre música.

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Enquanto a música concreta, através de Pierre Schaeffer, incorporou os

elementos concretos e revelou uma materialidade dotada de formas que não se

fixam, de signos propensos às múltiplas possibilidades de relações sintéticas, a

música eletroacústica assume características pós-modernas, como uma poética

fragmentária, uma relação de imediaticidade, acasos, experimentalismos,

contrapondo-se a quaisquer formas fixas de sintaxe, contribuindo, desta forma, para

a formação da linguagem da música pós-moderna.

4.6.1 O objeto sonoro como elemento de sintaxe

Ceci n’est pas une pipe.

René Magritte99.

O objeto sonoro na condição de signo é aquilo que mostra e que representa.

As referências sonoras, em sequência ou sobrepostas, compõem um quadro,

descrevem uma paisagem sonora, compõem um texto. Representar o espaço,

colocar esses enquadramentos em movimento, fazer acontecer e contar algo são

intencionalidades que poderão levar à criação de narrativas e descrições sonoras a

partir do domínio da linguagem, da codificação dos objetos sonoros.

Esses objetos, em uma criação como representação da realidade, com ou

sem fidelidade, têm a função de retratar, de figurar uma coisa, um objeto, um lugar,

como Peirce coloca: Estar em lugar de, isto é, estar numa tal relação com o outro

que, para certos propósitos, é considerado por alguma mente como se fosse esse

outro. (PEIRCE, 2005, p. 46)

O objeto sonoro pode narrar, assim como a música programática pode

narrar. Como vimos anteriormente, uma das qualidades da música é sua capacidade

de descrever cenários, sugerir situações e despertar sentimentos. Aqui estamos

falando da linguagem musical, do objeto musical, mas, e quanto ao objeto sonoro?

A esta altura, podemos deduzir que para mostrar ou contar, isto é, descrever

ou narrar, o objeto sonoro, excede grandemente o escopo do objeto musical, de

outro lado, sua aptidão para projetar as qualidades sensoriais de pessoas, lugares e

eventos é menor na mesma medida, quanto à arte da literatura.

99 René François Ghislain Magritte (1898 ― 1967) foi um dos principais artistas surrealistas belgas. René Magritte praticava o surrealismo realista, ou “realismo mágico”.

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Separar o “mostrar” do “contar” neste ponto é necessário somente pelo fator

didático. No entanto, o costume prático de construções narrativas demonstra que a

diegese é um entrecruzamento da descrição e da narração. Não se conta se

omitindo o lugar, o clima, a atmosfera.

Figura 17: Ceci n’est pas une pipe100, de René Magritte

Cada signo sonoro é objeto de coesão e fluxo de narração e em uma

estrutura textual pode ter a função equipotente à de um fonema, palavra, enunciado

etc., pois ao conceito de objeto sonoro não é possível fixar uma correspondência

com qualquer unidade lingüística.

Os conceitos de linguagem e semióticos aplicados à música, contribuem

muito, mas nem sempre podemos considerá-los suficientes, pois a música é uma

linguagem onde os signos têm natureza simbólica no contexto de uma narrativa

musical, mas o mesmo não pode ser dito quanto aplicados ao objeto sonoro, que, no

mesmo contexto, pode ser também icônico e indicial.

Um texto, sendo uma montagem de signos, é construído conforme as

convenções associadas com um gênero, utilizando uma sintaxe específica de

comunicação.

100 Ceci n’est pas une pipe (“Isto não é um cachimbo”), de 1929, é uma das obras mais famosas do pintor René Magritte. A fama da obra decorre dos questionamentos gerados: “Ceci n’est pas une pipe.”. Uma frase que contradiz o que o olho enxerga. O que vemos não é um cachimbo real, mas uma representação de um cachimbo. A imagem é só um signo, um símbolo, e não “a coisa em si”. Foucault faz reflexões importantes sobre esta obra de Magritte em um livro que leva o mesmo nome da obra: Isto não é um cachimbo (em português). Em 1952, Magritte fez um desenho, com a frase Ceci continue de ne pas être une pipe – “Isto continua a não ser um cachimbo”. Um ano antes de morrer, Magritte voltaria mais uma vez ao tema, com Les deux mysteres (“Os dois mistérios”): Nesta tela, ele o primeiro quadro “Ceci n’est pas une pipe” em um cavalete e, fora do quadro, um outro cachimbo flutuando na tela. Cópias destas obras estão disponíveis nos anexos.

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4.7 Linguagem

A linguagem fala

Heidegger101

 “Qual é o objeto, ao mesmo tempo integral e concreto da Linguística? A

questão é particularmente difícil”. Assim Saussure (2006, p. 15) inicia o terceiro

capítulo, sob o título Objeto da Lingüística, do seu livro Curso de linguística geral.

Procurando atenuar a dificuldade da questão, Saussure faz uma diferenciação entre

“língua” e “linguagem”:

[...] o exercício da linguagem repousa numa faculdade que nos é dada pela Natureza, ao passo que a língua constitui algo adquirido e convencional, que deveria subordinar-se ao instinto natural em vez de adiantar-se a ele. (SAUSSURE, 2006, p. 17)

Para Ferdinand de Saussure (2006, p. 17), a língua “não se confunde com a

linguagem; é somente parte determinada, essencial dela”. No que tange ao objeto

sonoro, pertencente a outro sistema semiológico, distinto ao verbal, em termos

comparativos, podemos entender que os sons que escutamos e registramos,

passivamente, serão armazenados e constituirão um acervo, um repertório, uma

gramática, uma “língua”. Sobre a constituição da língua, Saussure pondera:

Se pudéssemos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos, atingiríamos o liame que constitui a língua. Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo. (SAUSSURE, 2006, p. 21)

A lógica desta citação pode ser aplicada ao objeto sonoro. Se a lermos,

considerando que o processo de formação de uma gramática própria, constituída de

objetos sonoros é possível a partir da prática da escuta, constataremos a concretude

desses signos, associada e ratificada pela percepção e conhecimento. O signo

101 HEIDEGGER, 2003, p. 9.

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(sonoro102) é tangível e “pode traduzir-se numa imagem visual”. Os signos “são

realidades que têm sua sede no cérebro” (SAUSSURE, 2006, p. 23). Para reforçar

esta perspectiva, citarei abaixo mais um pensamento saussureano, fazendo a devida

associação e comparação com o objeto sonoro:

É esta possibilidade de fixar as coisas relativas à língua que faz com que um dicionário e uma gramática possam representá-la fielmente, sendo ela o depósito das imagens acústicas, e a escrita (objeto sonoro103) a forma tangível dessas imagens. (SAUSSURE, 2006, p. 23)

Os objetos sonoros, enquanto unidades portadoras de significação, assim

como outros signos (palavras, gestos, imagens, etc.) formam sistemas de signos

(línguas), no entanto, a linguística afirma que há linguagem quando existe um

conjunto sistemático de signos que permita uma comunicação. Esse processo

pressupõe a existência de um código comum ao autor e ao receptor, conforme dita

Iuri Lotman:

Para que o receptor compreenda o emissor da informação, a existência de um intermediário comum – o código – é-lhes necessária. Assim, a linguagem põe-se como um código, com a ajuda do qual o receptor decifra a significação da comunicação que o interessa [...] (LOTMAN, 1978, p.42)

No caso da linguagem sonora, os signos são os objetos sonoros. A juntura

significativa dos elementos que constituem o código resulta no que a linguística

entende por "mensagem". Na perspectiva da Teoria da Comunicação, Balsebre diz

que:

A mensagem é um agrupamento acabado, ordenado de elementos concentrados em um repertório que constitui uma seqüência de signos reunidos segundo certas leis. E a comunicação só é possível quando o repertório de elementos é conhecido pelo emissor e receptor. (BALSEBRE, 2005, p. 327)

Roman Jakobson, em seu livro Linguística e comunicação (2003), expõe os

fatores constitutivos de todo processo linguístico, de qualquer ato de comunicação

verbal:

102 Acréscimo meu. 103 Idem.

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O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao DESTINATÁRIO. Para ser eficaz, a mensagem requer um CONTEXTO a que se refere (Ou "referente", em outra nomenclatura algo ambígua), apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou suscetível de verbalização; um CÓDIGO total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatário (ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da mensagem); e, finalmente, um CONTACTO, um canal físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os capacite a ambos a entrarem e permanecerem em comunicação. (JAKOBSON, 2003, p. 123)

Segundo Roman Jakobson, “a linguagem deve ser estudada em toda a

variedade de suas funções”. Ele também demonstra um esquema como ilustração

dos seus apontamentos sobre as funções da linguagem em um processo

comunicativo.

CONTEXTO

REMETENTE MENSAGEM DESTINATÁRIO

--------------------------------------------------------- CONTACTO

CÓDIGO

Figura 18: Esquema de comunicação

A linguagem não está presente somente na emissão, mas também na

audição, existindo, então, regras para o remetente e regras para o destinatário.

Lotman comenta a proposta de Jakobson:

[...] torna-se perfeitamente evidente a legitimidade da proposta de Jakobson e de outros sábios, segundo o qual, no processo de transmissão da informação, se utiliza de facto, não um só, mas dois códigos, um código que nota a informação e um outro que a decifra. (LOTMAN, 1978, p. 43)

Só é possível a interpretação por aquele que tenha em sua consciência um

domínio da linguagem, pois “compreender um texto significa sempre aplicá-los a nós

próprios” (GADAMER, 1997, p. 579), é apropriar-se daquilo que ouviu e interpretá-lo

e interpretar é dialogar com o texto. Esta apropriação do intérprete é “fusão de

horizontes” (GADAMER, 1997, p. 566), é a realização da compreensão; ambas são

conversação hermenêutica. Toda execução de uma peça musical/sonora é fruto de

interpretação, resulta de expressões baseadas nas experiências, visões,

percepções, leituras dos fenômenos.

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[...] a linguagem é o médium universal em que se realiza a própria compreensão. A forma de realização da compreensão é a interpretação. (GADAMER, 1997, p. 566)

Toda linguagem tem sua gramática ou sintaxe; seu significado intrínseco,

mas a gramática não é estática no tempo, não é perfeita. Ela pode evoluir, ser

renovada, apresentar modificações nas regras que a governam. O mundo moderno

acarretou o surgimento de uma gama de sons que ampliaram nosso thesaurus. No

século XX, o ruído foi incorporado ao elenco musical e se abriram novas

possibilidades de compreensão da linguagem sonora. Os equipamentos que

chegaram e as inovações tecnológicas também alargaram as possibilidades de

exploração, de análise e de criação musical.

A linguagem sonora, considerada a sua gama de sons, não estaria presa a

uma gramática, nem mesmo a uma única sintaxe. Temos que considerar os

aspectos polifônicos, harmônicos e texturais, que são formados a partir de sintaxes

sonoras simultâneas.

A simultaneidade não se dá apenas entre os elementos sonoros. Isto pode

ocorrer em combinações entre os tipos de linguagem. Santaella (2001, p. 20),

defende que “a grande variedade e a multiplicidade crescente de todas as formas de

linguagens estão alicerçadas sustentadas em não mais do que três matrizes” de

linguagem e pensamento: a sonora, a visual e a verbal.

Sem negar a multiplicidade e a diversidade das linguagens, multiplicidade, aliás, que só tende histórica e antropologicamente a crescer cada vez mais, postulo que, por baixo dessa multiplicidade manifesta, há três matrizes lógicas a partir das quais, por processos de combinação e mistura, originam-se todas as formas diferenciadas de linguagem. (SANTAELLA, 2001, p. 20-21)

Literatura, música, teatro, pintura, gravura, escultura, arquitetura, etc.,

partem de combinações e misturas dessas matrizes, que, somadas ao suporte

específico em que cada linguagem é veiculada (foto, cinema, televisão, rádio, jornal,

etc.) tornam-se distintas e específicas. Segundo Santaella:

Vale acrescentar, ainda, que essas misturas se constituem numa chave para a compreensão das linguagens híbridas, tais como, por exemplo, a dança (entre o visual e o sonoro), a linguagem verbal oral (mistura do verbal, sonoro e mesmo visual, na gestualidade de que se faz acompanhar) etc. [...] (SANTAELLA, 2001, p. 21)

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Cabe, a esta altura, ressaltar que os sons, objetos de uma composição

sonora, somente gozam do status de linguagem quando são abstraídos na condição

de signo, isto é, quando o modo de escuta corresponde ao comprendre de Schaeffer

ou, em termos peirceanos, na condição fenomenológica da terceiridade, pois é nesta

categoria fenomenológica que a semiose é consumada como síntese intelectual

entre a primeiridade e secundidade e é nesses processos de representação que os

signos se firmam e são abstraídos em forma de linguagem. Décio Pignatari e Luiz

Angelo Pinto, em Novas linguagens, nova poesia, um manifesto da poesia semiótica,

afirmam:

Entendemos por linguagem qualquer conjunto de signos e o modo de usá-los isto é, modo de relacioná-los entre si (sintaxe) e com referentes (semântica) por algum intérprete (pragmática). (PINTO, PIGNATARI apud ANTONIO, 2008, p. 93)

Entendido o signo como representação do objeto que substitui, seu aspecto

denotativo tem a capacidade de nomear o universo sensível que referem: o ruído do

trânsito, o som de água correndo sobre pedras, etc. Porém, no aspecto conotativo,

como explica a teoria da comunicação, o signo é portador de significados afetivos,

portanto não há um som que possa ser classificado como som de mar: há sons de

mares.

Assim entenderemos como os elementos sonoros se articulam nas

mensagens sonoras e se estruturam no discurso sonoro, pois linguagem

sonora/musical é a comunicação através de organizações de sons e objetos

sonoros; são os signos, que são usados para representar coisas, conceitos, ideias,

sentimentos.

4.8 Comunicação

Comunicação é uma palavra derivada do termo latino "communicare", que

significa "partilhar, participar algo, tornar comum". Através da comunicação, os

seres humanos e os animais partilham diferentes informações entre si, tornando o

ato de comunicar uma atividade essencial para a vida em sociedade.

O termo “comunicação” comporta inúmeras definições, em conformidade

com os diversos contextos das áreas em que é estudada. Visando escapar da

polissemia e, considerando ainda que a comunicação é um campo em construção, é

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importante perceber que a noção que mais se enquadra no plano de organização

deste trabalho é a da comunicação semiótica.

Para a Semiótica, o ato da comunicação consiste na materialização do

pensamento, bem como do sentimento em signos que são reconhecidos pelas

partes envolvidas. A comunicação humana é um processo que envolve a troca de

informações, e utiliza os sistemas simbólicos. Não há comunicação sem o signo, já

que comunicação refere-se a transmissão de mensagem e toda mensagem é feita

de signos. No entanto, não se trata simplesmente de uma soma de signos. Estes se

relacionam e condicionam-se reciprocamente formando o texto, ao qual se

subordinam.

Uma arrumação coesa de signos que forma uma unidade de sentido, que

tenha uma coerência, já não é mais uma demanda para a semiótica. Uma vez no

texto, os signos se relacionam e estão sujeitos a uma nova estrutura e a novas operações. O texto passa a ser o objeto de estudo da Linguística do Texto. Segundo

Ingedore Villaça Koch:

A Linguística Textual toma, pois, como objeto particular de investigação não mais a palavra ou a frase isolada, mas o texto, considerado a unidade básica de manifestação da linguagem, visto que o homem se comunica por meio de textos e que existem diversos fenômenos linguísticos que só podem ser explicados no interior do texto. (KOCH, 2013, p.11)

Koch afirma também que o texto é reputado pelos linguistas como “uma

unidade linguística com propriedades estruturais específicas” (KOCH, 2013, p.7), já

que “um texto não é simplesmente uma sequência de sentenças isoladas”.

As abordagens que faremos, a partir daqui, darão ênfase à noção de texto

como unidade linguística, como objeto de significação e aos mecanismos que lhe

conferem ordem e unidade composicional. Seguindo, o estudo terá o enfoque no

texto artístico, entendendo que “a arte é um dos meios de comunicação” (LOTMAN,

1978, p. 33).

4.9 Texto

O conceito de “texto” não é um conceito preso e exclusivo da linguagem

verbal, assim como não depende dos meios que ele emprega para manifestar-se. As

teorias linguísticas têm uma noção de texto mais ampla e se estende do verbal para

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outras linguagens. Bakhtin se refere ao “texto” no sentido em que extrapola o

linguístico.

Se tomarmos o texto no sentido amplo de conjunto coerente de signos, então também as ciências da arte (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas) se relacionam com textos (produtos da arte). Pensamentos sobre pensamentos, uma emoção sobre a emoção, palavras sobre as palavras, textos sobre os textos. (BAKHTIN, 1997, p. 329)

Desta forma, pode-se falar em textos verbais, textos pictóricos, textos

musicais, textos sonoros, textos cinematográficos, entre diversas formas textuais

produzidas a partir de outras linguagens.

4.9.1 O texto e sua família

A palavra texto provém do latim textu e significa "tecido". Um tecido, como

sabemos, não é um amontoado de fios soltos, trata-se de uma trama. Os

entrecruzamentos dos fios, transversais ou longitudinais vão garantir uma unidade à

peça, de uma maneira figurada podemos dizer que “os fios precisam se entender”.

Da mesma maneira, um texto não é uma montoeira de frases. Para que essas frases

constituam uma unidade, uma estrutura, suas partes dependem umas das outras e

também dependem do texto como um todo. Quando se pensa em composição

sonora como texto, o conceito de Eni Puccinelli Orlandi104 é bastante elucidativo e

apropriado: “texto é uma peça de linguagem, uma peça que representa uma unidade

significativa” (ORLANDI, 1995, p.111).

Não é o bastante amontoar os signos. Palavras soltas não formam um texto,

assim como notas musicais soltas não formam uma melodia. O mesmo acontece

com os objetos sonoros, se estiverem desconexos não formam texto sonoro algum.

Por exemplo: nós sabemos que existe uma diferença determinante entre uma série

de notas desconexas tocadas por um leigo de algum instrumento e uma sequência

de notas melódicas que são executadas por um instrumentista virtuose.

Desconsiderando a técnica de ambos, se fizermos a notação das duas

performances e a submetermos a um instrumentista experiente, ouviremos, de um

lado, a execução de um texto musical coeso melodicamente e, do outro, a execução

104 Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi (São Paulo ) é uma pesquisadora e professora universitária brasileira. Foi presursora da Análise do Discurso no Brasil.

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de fragmentos de ideias musicais que não se relacionam, sem uma continuidade

que transmita algum sentido, porque falta o ligâmem: a coesão, que faz a

conexidade entre as unidades, chegando à uma coerência, ou seja, “fazendo

sentido”.

A relação dos objetos sonoros em uma composição musical/sonora pode se

dar por mecanismos de estruturação textual, isto é, pode preencher requisitos e

apresentar as condições exigidas para o estabelecimento de uma textualidade, pois

é um elemento de referencialidade, em muitos aspectos, compatível com os signos

da linguagem verbal.

Se o que se quer é que haja interpretação, se há uma intenção

comunicativa, esses signos devem ser encadeados de forma coerente, portanto,

amontoar signos é diferente de fazer uma montagem, uma composição de signos

em que o critério é estabelecer uma textualidade.

Para entender como os signos se organizam em um texto é importante

dimensionar e diferenciar, bem como aproximar, conceitos e noções de texto,

contexto, textualidade, intertextualidade, textura, tessitura, contextura e tantos outros

conceitos que fazem parte da mesma família semântica. Por exemplo: o que faz com

que um texto seja um texto e não só a soma de signos é a textualidade.

4.9.2 Textualidade

Orlandi (1995), ao citar Michael Halliday, enfatiza que o texto é a unidade

primeira e que para ser texto é preciso ter textualidade, sendo a textualidade função

da relação do texto consigo mesmo e com a exterioridade (ORLANDI, 1995, p.111).

Beaugrande e Dressler, segundo Koch (2013, p.8), apresentam um elenco

de fatores responsáveis pela preservação da textualidade no texto: coesão,

coerência, informatividade, situacionalidade, intertextualidade, intencionalidade e

aceitabilidade. Aqui cabe aplicar um empenho no estudo de coesão textual, por ser

entre os fatores aquele que está mais ligado à estrutura textual, ou seja, junto com a

coerência, é um fator centrado no texto, enquanto os outros fatores são centrados

nos usuários. Como a coesão sempre está de mãos dadas com a coerência e os

conceitos de ambas são muitas vezes contaminados um pelo outro, farei apenas um

contraponto, pois o compreendo como suficiente para dispensar definições que

pouco contribuiriam para o desenvolvimento deste tópico.

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• A coesão diz respeito ao modo como ligamos os elementos textuais

numa sequência;

• A coerência textual, diz respeito aos conceitos e às relações semânticas

que permitem a união dos elementos textuais.

Para se assinalar determinadas relações de sentido que estabelecem a

coesão há um grupo de mecanismos: oposição ou contraste; finalidade; meta;

consequência; localização temporal; explicação; justificativa; adição de argumentos

ou ideias:

É por meio de mecanismos como estes que se vai tecendo o “tecido” (tessitura) do texto. A este fenômeno é que se denomina coesão textual. (KOCH, 2013, p. 15)

Quando os signos se relacionam com outros signos, deixam de ser unidades

significativas e juntos passam a ser uma unidade maior. Os signos se unem por

esse cimento, formando um bloco maior. Este bloco passa a ser outra unidade, que

dependerá de uma outra para a formação de uma nova unidade ou um novo núcleo.

4.9.3 Contextualidade

O maior desempenho de cada unidade, sua gradação máxima de

significação se dará em função do contexto. “Toda significação de signo nasce de

um contexto” (HJELMSLEV, 1975, p. 50). Desta forma, uma unidade significativa só

é devidamente compreendida dentro de uma unidade maior, dentro do contexto da

nova formação nuclear. Isto é, a compreensão de uma palavra depende do contexto

da frase e a compreensão desta frase vai depender do contexto do parágrafo,

enquanto a compreensão do parágrafo dependerá do contexto do texto. Vamos

entender esta questão em uma composição sonora: podemos utilizar um áudio

contendo um som de fogo, de chamas ardendo, com pequena duração. Apesar de

ser um signo polissêmico, a interpretação mais lógica seria: “algo está queimando”,

não deveríamos ir além desta interpretação. No entanto, se a mixarmos com sons de

copos brindando, sorrisos e conversas, a gradação de significação será ampliada

devido aos sons que sugerem um contexto maior, talvez de um ambiente festivo,

etc. Mas se fizermos uma sobreposição do som de chamas com a sirene do carro de

bombeiros, a interpretação já se direciona para outra situação contextual. A junção

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dos signos, as conexidades contextuais, as formações nucleares, formam a

disposição textual sonora.

Sempre que se chega a uma unidade precisaremos da coesão para formar

grupos maiores e formar o texto como um todo. Entender um texto como um todo

não significa prendê-lo em si mesmo. Todo texto tem relações de dependência com

outros textos, sejam eles antecedentes ou contemporâneos, ou seja, está ligado,

conectado. O que permite a comunicação entre os textos é um laço de coesão e a

essa relação é dado o nome de intertextualidade.

4.9.4 Intertextualidade

O trabalho da semiótica Júlia Kristeva é referência indispensável para se

pensar em intertextualidade, porque foi a primeira a empregar a expressão. O termo

"intertexto" se refere ao entrelaçamento dos fios no ato de tecer. Para Kristeva

(1974, p. 64) “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é a

absorção e transformação de um outro texto”:

[...] é uma permutação de textos, uma intertextualidade: no espaço de um texto, vários enunciados, vindos de outros textos, cruzam-se e neutralizam-se. (KRISTEVA, 1968, P.143)

A definição de intertextualidade proposta por Kristeva faz concordância

explícita com as reflexões de Bakhtin quando postula que todo discurso é

essencialmente dialógico, por representar sempre uma resposta ou uma

antecipação ao discurso do outro. Da mesma maneira, Roland Barthes faz suas

consonâncias à Kristeva:

Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido nessa textura o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia. Se gostássemos dos neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (hyphos é o tecido e a teia da aranha). (BARTHES, 1987, p. 82-83)

Em termos de composição sonora, não existe dificuldade em se pensar em

intertextualidades, que podem se dar na sua materialidade ou nas suas tramas

dialógicas. Atualmente é muito comum o uso de samplers em composições a partir

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de técnicas herdadas da música concreta e música eletroacústica. A inclusão do

material coletado possibilita ao compositor fazer desde citações incidentais através

da inserção consciente de trechos extraídos de composições de fácil

reconhecimento até mesmo diluir fragmentos pela extensão do texto sonoro,

conscientemente ou de forma inconsciente. Segundo Barthes, o texto é lugar em

que a língua se alastra e se realiza concretamente.

O texto redistribui a língua (é o campo dessa redistribuição). Um dos caminhos dessa descontrução-reconstrução é permutar textos, retalhos de textos que existiram ou existem em torno do texto considerado e finalmente nele: todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, com formas mais ou menos reconhecíveis. [...] A intertextualidade, condição de todo texto, seja ele qual for, não se reduz, evidentemente, a um problema de fontes ou influências; o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é detectável, de citações inconscientes ou automáticas, dadas sem aspas. (BARTHES apud CAVALCANTE, 2004, p. 11)

A intertextualidade que se apresenta na materialidade não passa pelos

critérios do dialogismo, pois este irá determinar a intertextualidade interna ou a

interdiscursividade.

4.9.5 Textura

O termo “textura” é frequentemente usado nas artes plásticas. A textura está

ligada à substância, que é o que estabelece a sensação percebida do signo. Isso se

dá por conta do material utilizado. A textura pode ser lisa, enrugada, consistente,

macia, granulada, áspera, dúctil, porosa, sutil, concreta, aerada, porque a sua

materialidade é definidora quanto às sensações que provoca através do tato e da

visão, mas texturizar não é privilégio apenas das linguagens visual ou tátil. Diversas

formas de entrelaçamentos sonoros são possíveis na composição sonora, a partir de

diversos recursos de mixagem, sequenciamento, alteração de frequências, bem

como a alternância da materialidade sonora/musical. A entidade formal, o material

sonoro empregado em uma composição sonora, desde o futurismo, passando pelo

concretismo e culminando com Cage, é ampliado, passa a considerar o ruído e o

silêncio de modo a modificar a amplitude de texturas sonoras/musicais. Até então,

nos estudos de música, “textura” significava a forma como estão organizadas as

linhas melódicas que estruturavam uma peça musical. A composição organizada por

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uma linha melódica que se destaca entre outras linhas, que servirão apenas de

acompanhamento, chama-se de textura monofônica. Ao uso de vozes variadas em

contraponto, denomina-se textura polifônica.

John Cage definia que “música são sons, sons a nossa volta, estejamos ou

não em salas de concerto” (WISHART apud SANTAELLA, 2001, p. 121). Por suas

desconstruções, Cage é frequentemente citado como uma espécie de Derrida da

música. Para Cage, os sons e ruídos podem se combinar, não tem obstáculos,

podem conviver uns com os outros, regidos pelas possibilidades do acaso. Assim

como Duchamp, Cage não só reagiu à tradição, em ambos vemos atos de

desconstrução de conceitos, não no sentido de oposição, mas de desvio. Neste

caso, os conceitos de monofonia e polifonia ainda são essenciais para a

compreensão da textura musical/sonora, no entanto devem ser considerados a partir

de uma infinidade de possibilidades de junções de signos sonoros, combinadas no

tempo/espaço e que, apesar de sobrepostos, são distinguíveis. Portanto, é preciso

fazer uma pergunta equivalente à que se faz diante de um texto “o que faz com que

um texto seja um texto e não só a soma de signos?”. Silvio Ferraz, em seu Livro das

sonoridades (FERRAZ, 2005, p.33) fez esta equivalência: “o que torna uma sopa

sonora, um amontoado de sons, uma música?”. Por lógica, as respostas também

são equivalentes: para a primeira, a textualidade; para a segunda, a texturalidade.

As relações texturais não estão atreladas a sintaxes fixas, elas são

inesperadas, livres, combinadas, porém sem determinações. Configuram um espaço

sonoro complexo, formatado por diferentes sobreposições. Por exemplo, pode-se

seguir uma sintaxe idealizada a partir do tonalismo, no entanto, usando corpos

sonoros que representam coisas do cotidiano, separadas por uma das propriedades

do som: a altura. O critério de distinguir os objetos de altura baixa (graves) das altas

(agudas) permite sequenciar sintaticamente tais objetos fazendo um desenho quase

melódico, onde pode ser definida uma tessitura de frequências irregulares.

4.9.6 Tessitura

Na música, o termo tessitura corresponde ao conjunto de notas da mais

grave até a mais aguda que um determinado instrumento musical consegue

produzir, com a qualidade necessária à sua execução, onde se encontra a melhor

sonoridade, a emissão mais natural. No caso da voz humana, refere-se ao conjunto

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de notas que um cantor consegue articular sem esforço de modo a que o timbre saia

com a qualidade necessária.

Figura 19: Tessitura sonora

A tessitura delimita a nota mais alta e a mais baixa. Em uma composição

sonora, pode se usar critérios de circunscrição de frequências. A disposição dos

sons será de acordo com a contextura pretendida pelo compositor. A fonte utilizada

pelo compositor também está submetida a questão da qualidade de emissão, assim

como é com o instrumento musical ou a voz. Por mais que se estenda a frequência,

tanto para cima como para baixo, haverá um limite tessitural. Em temos de altura ou

frequência, a tessitura mostra até onde pode ir a composição.

4.9.7 Contextura

Um texto sonoro está sujeito a um contexto sonoro. Uma textura sonora está

sujeita a uma contextura. Esta situação é mais perceptível quando o texto/textura se

desenvolve em simbiose com outras linguagens, como por exemplo, a linguagem

cinematográfica. Como tal, o texto/textura sonora é um texto em outro texto, é um

produto e um processo. É um produto, pois é um texto construído, dado como

pronto. É um processo, pois sua estrutura está comportada em uma estrutura maior,

mais complexa, sendo tão somente parte na rede de significados contida no texto

como um todo, na obra.

Em uma arte híbrida, um texto, de qualquer linguagem, contribui sendo

apenas parte da composição, sendo um fio de um texto maior que é a obra em sua

totalidade. Cada texto, de cada linguagem, neste caso, preenche hiatos dos outros

sistemas semióticos e todos os textos são compreendidos no contexto da

composição, em que os diferentes sentidos do receptor são estimulados, incitando-o

a uma percepção sinestésica e a uma leitura intersígnica e intersemiótica.

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As relações, correlações e correspondências entre signos e sistemas

sígnicos, as diferentes formas de linguagens coexistindo no mesmo espaço artístico,

se complementando, demonstram um grau de equivalência no que se refere à

potencialidade textual das linguagens, possibilitando a realização de um produto

intersemiótico, bem como fazer transcriações de formas, conhecidas também como

tradução intersemiótica.

4.9.8 Tradução intersemiótica

O artista é tradutor universal105

Octavio paz

A noção de que “texto” não é um conceito preso e exclusivo da linguagem

verbal, ganha uma importância maior neste ponto desta dissertação. O conceito de

tradução intersemiótica, atribuído a Roman Jakobson, demonstra que as linguagens,

através de seus signos, têm a potência de criar estruturas textuais. A passagem de

um texto verbal para um não verbal é compreendida como um processo tradutório.

Segundo Julio Plaza:

A primeira referência (explícita) à Tradução Intersemiótica que tive oportunidade de conhecer foi nos escritos de Roman Jakobson. De que tenho notícia, Jakobson foi o primeiro a discriminar e definir os tipos possíveis de tradução: a interlingual, a intralingual e a intersemiótica. A tradução Intersemiótica ou 'transmutação' foi por ele definida como sendo aquele tipo de tradução que 'consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais', ou 'de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura', ou vice-versa, poderíamos acrescentar. (PLAZA, 2003, p. XI)

Após a citação feita por Plaza, cabe conhecer então as descrições das três

espécies de tradução de um signo verbal, por Roman Jakobson:

1). A tradução intralingual ou reformulação (rewor-ding) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua.

2) A tradução iriterlingual ou tradução propriamente dita ‘consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua.

105 (PLAZA, 2003, p. 1)

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3) A tradução inter-semiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais. (JAKOBSON, 2003, p. 64-65)

Na tradução intersemiótica, segundo Jakobson (2003, p. 65), “o tradutor

recodifica e transmite uma mensagem recebida de outra fonte”, assim, “a tradução

envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes”. Esta

transcodificação se opera de uma forma criativa entre os códigos, de uma linguagem

para outra.

Na tradução Intersemiótica como transcriação de formas o que se visa é penetrar pelas entranhas dos diferentes signos, buscando iluminar suas relações estruturais, pois são essas relações que mais interessam quando se trata de focalizar os procedimentos que regem a tradução. Traduzir criativamente é, sobretudo, inteligir estruturas que visam à transformação de formas. (PLAZA, 2003, p. 71)

Esta percepção de que a eficácia linguística se estenda do verbal para

outras linguagens corrobora com a ideia de o objeto sonoro ter uma potencialidade

textual. O objeto sonoro, como signo sonoro, passa a ser um elemento de sintaxe,

com legítimas condições de se organizar, de modo coeso e coerente, permitindo as

mais diversas texturas e contexturas, senha aberta para intertextualizações e

relações rizomáticas. Porém, não é prudente se conformar, é fundamental, neste

ponto compreender melhor determinadas singularidades dos signos e suas

prováveis gradações de articulação textual, uma vez que um texto realizado pela

organização de signos sonoros é um ato de criação, é uma composição que

depende de qualidades criativas do compositor/tradutor no que se refere ao diálogo

entre os signos, na leitura e recriação. Plaza descreve a Tradução Intersemiótica

como prática criativa, enquanto cita Octávio Paz:

Traduzir é muito difícil, não menos difícil do que escrever textos mais ou menos originais – mas não é impossível (...) Tradução e criação são operações gêmeas. De um lado, ... a tradução é indistinguível muitas vezes da criação; de outro, há um incessante refluxo entre as duas, uma contínua e mútua fecundação (PAZ apud PLAZA, 2003, p. 26).

Como enxerga Octávio Paz, a tradução não é impossível. Estimulado por

esta visão otimista e me valendo dos ensinamentos de Lévi-Strauss, busco

compreender melhor os níveis de articulação textual com o intuito de robustecer o

mote que pondera sobre a qualidade textual do objeto sonoro.

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4.9.9 Composição textual

O impacto das tecnologias contemporâneas propicia a multiplicidade das

diversas linguagens e novas sintaxes, hibridez, novas lógicas de expressividade e

produção. Corroborando com esta visão, Mangueneau expõe:

[...] a diversificação das técnicas de gravação e de reprodução da imagem e do som vem modificando consideravelmente a representação tradicional de texto: este não se apresenta mais unicamente como um conjunto de signos sobre uma página, mas pode ser um filme, uma gravação em fita cassete, um programa em disquete, uma mistura de signos verbais, musicais e de imagens em um CD-ROM... (MANGUENEAU, 2005, p. 57)

Os estudos sobre texto e textualidade não devem ser conformados e presos

aos seus próprios conceitos e concepções, mas devem ser repensados

considerando as contribuições de outras experiências, como da Análise do Discurso

e da Conversação, das teorias da enunciação, da Pragmática, dos estudos sobre a

língua falada, que estão em constante progresso e suprem lacunas em nossas

reflexões sobre os fenômenos linguísticos.

Dentro das perspectivas de que texto é composição, é possível fazer

estudos do objeto sonoro e o seu potencial textual a partir das teorias textuais e

teorias de linguagem e semiótica, fazer distinções entre tipologia textual e gênero

textual, se existem tipos puros, se nos gêneros os tipos se realizam, se há

miscelânea de tipos e gêneros. Teorias que fazem diferenciações entre gêneros de

heterogeneidade tipológica, conjunção tipológica, texto injuntivo, intertextualidade

intergêneros, intercâmbio de tipos e toda classe de hibridismo textual também

podem fornecer amparos e fundamentações para a compreensão desta unidade

sintática sonora, desta célula do corpo textual.

As analogias com a composição musical (sintaxe tonal) e composição textual

são indispensáveis para a compreensão da composição sonora. Deste modo, pode-

se dizer que a música se organiza por microestruturas, que são as notas ou

harmônicos de um som (que corresponderiam aos fonemas); por frases, períodos;

cadências (que corresponderiam à pontuação); por articulações, tensões e outros

fragmentos do discurso (que corresponderiam ao enunciado); compondo uma

macroestrutura, uma forma maior, que seria o texto.

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O antropólogo Claude Lévi-Strauss (1978, p. 75) diz que é possível

estabelecer um paralelo entre a música, linguagem e mito. Ele traça paralelos a

partir da linguística e das pesquisas que foram desenvolvidas por Jakobson na área

de fonologia. Os paralelos traçados são entre os fonemas e as notas musicais.

Segundo ele, na linguagem verbal os elementos básicos são os fonemas, que em si

mesmo não têm significado, que só produzem significação quando combinados

formando as palavras que por sua vez formam as frases, enquanto que na música

ocorre o mesmo com as notas, isto é, só produzem sentido quando combinadas,

fornecendo à música “um primeiro nível de articulação” (LÉVI-STRAUSS, 2004, p.

36), neste caso não há um equivalente às palavras, dos elementos básicos passa-se

logo para as frases melódicas. Strauss criou o conceito de “sonema” (ou “tonema”

na tradução em inglês), referindo-se às notas musicais para estabelecer uma

relação de similaridade entre o fonema e sonema.

Abaixo fiz um esquema comparativo e nele me sirvo do conceito de sonema,

inclusive tirando proveito também da tradução tonema, pois me parecem oportunas

as duas formas para estabelecer uma distinção entre o som e o tom. Desta forma,

usarei tonema para referir-me ao tom (nota musical) e sonema para referir-me ao

som (corpo sonoro).

Tabela 8: Comparativo entre as formas de composição

Lévi-Strauss (1978, p. 76) observa que a linguagem possui três níveis, que

são o do fonema, o da palavra e o da frase, enquanto que a música só possui o

equivalente a dois deles, faltando, portanto, à música o nível que corresponde à

palavra na estrutura frasal e textual (no quadro comparativo, Figura 8, o nível

faltante está destacado de cinza).

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Em uma composição sonora, ou seja, um texto/textura sonoro, podemos

dizer que o objeto sonoro em si mesmo, isto é, como fenômeno, representaria em

um texto verbal ao fonema. Uma vez que o objeto tenha alguma referencialidade, ou

que figure algo, ou mesmo que se passe por um símbolo, uma metáfora, ele passa a

ter a correspondência de um semantema, uma sentença, frase, enunciado etc.

Por estas razões, os estudos sobre o objeto sonoro devem tirar proveito de

todo conhecimento acumulado, de todo o saber teórico já produzido sobre texto, de

onde formará conceitos mais ajustados, adaptados, fazendo-se as adequações

pertinentes.

As adequações e ajustes de que falamos, são necessárias para que se

forme uma contundência teórica capaz de instrumentalizar os feitores de

textos/texturas sonoras. Um aporte teórico mais específico, capaz de dar mais

consistência e reforço às noções da potencialidade da linguagem sonora em

expressar conceitos, reflexões, ideias e como uma forma de produção de

conhecimento.

Como uma forma de produção de conhecimento, sim. O livro Texturas

sonoras do pesquisador Sérgio Bairon (2005), que, segundo Olgária Matos (apud

BAIRON, 2005, p. 9), tem por método de pesquisa as “correspondências” (entre

cores, conceitos, sons, imagens), traz uma crítica do conhecimento e propostas de

revisões da metodologia científica e indissociabilidade entre arte, ciência, filosofia,

sugerindo as texturas sonoras.

Sérgio Bairon (2005, p. 19) comenta que, a partir do século XVIII, no

Ocidente, se desenvolveu “uma metodologia científica como matéria obrigatória em

todas as ciências”, e acrescenta:

Essa tradição elegeu a expressividade verbal (escrita e impressa) como única grande “representação” confiável de um pensamento reflexivo e de uma análise consequente. [...] esse movimento, apesar de ter sofrido todo tipo de interferência filosófica e teórica, produziu e divulgou o conhecimento científico sempre a partir da escrita, delegando à imagem e às manifestações sonoras um patamar secundário à construção do conhecimento. As divisões institucionais entre arte e ciência nos dias de hoje ainda guardam esta tradição. (BAIRON, 1995, p. 19)

Bairon sugere uma metodologia hipermidiática de pesquisa científica,

incumbida “de produzir nosso pensamento a partir de uma ‘leitura’ multimidiática”, o

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que demandaria uma busca de equilíbrio da “relação entre os textos científicos e o

universo expresso pela arte” (BAIRON, 2005, p. 21).

O que Bairon propõe não significa uma postura contrária à escrita, só se

opõe à concepção que evita associar o pensar com produções sonoras e visuais.

Sua investida está direcionada para a cumplicidade entre arte e ciência, propondo

uma rearticulação do diálogo entre as linguagens científica e artística, no caminho

da necessidade de “reaprendermos a formalizar nossas reflexões não mais somente

com a escrita” (BAIRON, 2005, p. 24), ou seria, aprender o que já soubemos um dia

e que foi esquecido, como diz Olgária Matos:

Foi a compartimentação do saber em áreas circunscritas que separou a diversidade dos âmbitos do conhecimento, opondo filosofia e ciência, metafísica e movimento, metáfora e conceito, ver e pensar – em nome da coerência, constância e unicidade do ato de escrever, aquele que esquece suas origens no desenhar, no “desenhar com as sombras”, como faziam os pintores gregos. (MATOS apud BAIRON, 2005, p. 10-11)

De acordo com Bairon, esse reaprendizado pode ocorrer através das

possibilidades hipermidiáticas oferecidas nos sistemas de programação e criação

visual e sonora. Sérgio Bairon apresenta um trabalho de composição, com

montagens e sampleagens, qual deu o nome de Textura sonora, conceituando da

seguinte maneira:

A defesa do conceito de textura sonora direciona-se à expressividade verbal como predomínio do pensar. Questiona a possibilidade que reflexões, características de uma linguagem teórico-analítica, por meio de texturas sonoras consigam oferecer compreensões com a mesma competência que o texto científico já o faz. Para tanto, as texturas sonoras devem oferecer correlações, não somente entre si, como com todo o caminho de demonstração que se situa para além da teoria, explorando, cada vez mais, o que não pode ser simplesmente descrito pela linguagem científica formal. A ideia, portanto, é que as texturas sonoras fazem parte de um todo correlacionado no interior de hipermídias. (BAIRON, 2005, p. 40)

As composições das texturas sonoras de Bairon reúnem textos, imagens,

sons, em um jogo de linguagens, apresentando conceitos, reflexões e

questionamentos sobre linguagem hipermidiática. Os textos que aparecem nas

texturas são reflexões, em diversas línguas, de vários autores, como Heidegger,

Bakhtin, Wittgenstein, Bairon, Santaella, Lacan, Aristóteles e Arnaldo Antunes e

outros.

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126

Não por acaso, imagens, sons e textos em línguas estrangeiras comparecem, no sentido de desestabilizar as práticas universitárias usuais, devolvendo aquela experiência, a da admiração e do maravilhamento filosóficos: em vez de recair, ingenuamente, na idéia de um “desencantamento do mundo” weberiano mal-compreendido – o “sagrado laico”, nesta obra, é “imanente”, migrou para “as próprias coisas”, ou para o “senso comum” em sentido wittgensteiniano: não se trata do místico, do “inapreensível pela linguagem gramatical”, mas das coisas mais simples poderem reaver seu estatuto próprio, depois do longo processo de despoetização do mundo. (MATOS apud BAIRON, 2005, p. 10)

Este aspecto da manifestação sonora que envolve uma cumplicidade entre

arte e ciência nos provocam boas reflexões: o produto pode ser arte, pode ser

ciência, bem como pode ser “ciência e arte em uma única compreensão”. (BAIRON,

2005, p. 21). No entanto, inúmeros fatores teriam determinado a valorização da

escrita metodológica. Segundo Bairon, ao longo dos últimos três séculos, em nome

da evidência racional, ocorreu o detrimento das expressividades imagéticas e

sonoras na produção do pensamento. Outra questão relevante foi a separação dos

complementares ethos-pathos, dando surgimento ao antagonismo entre razão e

paixão. Essas reflexões nos incitam a fazer uma consulta às abordagens de Claude

Lévi-Strauss em Mito e significado (1978).

Lévi-Strauss sustenta que o pensamento mitológico “passou para segundo

plano no pensamento ocidental da Renascença e do século XVIII”, período em que

apareceram os romances, “em vez de histórias ainda elaboradas segundo o modelo

da mitologia” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 67). Segundo ele, neste período a música

tradicional ocidental atingiu a sua máxima expressividade, o que lhe pareceu ter uma

relação:

[...] o aparecimento dos grandes estilos musicais, característicos do século XVII e, principalmente, dos séculos XVIII e XIX. Foi como se a música mudasse completamente a sua forma tradicional para se apossar da função –função intelectual e também emotiva que o pensamento mitológico abandonou mais ou menos nessa época. Quando falo de música, devia, com certeza, qualificar o termo. A música que assumiu a função tradicional da mitologia não é um determinado tipo de música, mas a música tal como surgiu na civilização ocidental, nos primeiros quartéis do século XVII, com Frescobaldi, e nos primeiros anos do século XVIII, com Bach, música que atingiu o seu máximo desenvolvimento com Mozart, Beethoven e Wagner, nos séculos XVII e XIX. (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 67)

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127

Expondo o objeto sonoro ao contexto apresentado, observamos a sua

potencialidade textual bifurcada: como elemento constitutivo de um texto mais

objetivo ou como elemento de expressividades subjetivas, signo icônico para uma

possível arte sonora. A mesma bifurcação deixa o objeto sonoro entre o mito e o

significado, sendo matéria para uma dureza ou fluidez textual. A sua potência o

permite, como signo, se relacionar com outros signos, de uma forma mais cartesiana

de organização, observando aspectos como linearidade, coesão, coerência, bem

como aceita a existência de nexos entre as qualidades sensíveis, que revelam a sua

própria natureza não adequada à organização sequencial cartesiana das divisões,

admitindo divergências dessas sequências.

O objeto sonoro, como referente ou portador de significações se porta como

elemento constitutivo de um texto ou de uma textura sonora, dado o seu potencial

sintático, semântico e discursivo. Destacar a potencialidade textual do objeto sonoro

não significa distanciar-se do mito (mítico). Existe um percurso, uma caminho, sem

sobressaltos que infelizmente nossos modelos textuais e analíticos não comportam.

Esta é a razão por que devemos estar conscientes de que se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo de jornal, ou seja linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito, porque temos de o apreender como uma totalidade e descobrir que o significado básico do mito não está ligado à sequência de acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos diferentes da História. Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase musical da página só adquire significado se se considerar que faz parte e é uma parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e assim por diante. Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita, mas simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber que cada página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender como uma totalidade, e extrair o seu significado. (Lévi-Strauss, 1978, p. 67)

Assim, da mesma maneira como a semiótica musical vê a composição

musical, pode ver a composição sonora: como um texto. Uma vez compreendida a

potencialidade textual do objeto sonoro enquanto signo, como unidade sintética e

corpo sonoro de uma composição textual, decorre entender que o seu potencial de

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128

significação, de produção de sentido é dependente de uma rede de implicações que

formam o processo de mobilização do texto: o discurso.

4.10 Discurso

Um texto, seja sua materialidade o som, a imagem, etc., compreendido

como unidade linguístico-composicional, comporta discursos, senão seria somente

uma materialidade textural, ou um material tecido. O que diz Roman Jakobson a

respeito:

[...] nada contém que seja específico da literatura: a questão das relações entre a palavra e o mundo diz respeito não apenas à arte verbal, mas realmente a todas as espécies de discurso. É de se esperar que a Lingüística explore todos os problemas possíveis de relação entre o discurso e o "universo do discurso": o que, deste universo, é verbalizado por um determinado discurso e de que maneira. (JAKOBSON, 2003, p. 119)

Várias correntes teóricas trabalham com diferentes noções de discurso, mas

nos interessam os pontos de vista do termo “discurso” relacionados à estrutura, à

organização, naquilo em que discurso se difere do texto, bem como as relações

entre os signos e o discurso.

Algumas definições de discurso estão presentes na obra A Arqueologia do

saber (2008), de Michel Foucault, que entendia que a palavra discurso tinha

significação flutuante e acreditava ter multiplicado os seus sentidos ao emitir várias

definições, como discurso é “domínio geral de todos os enunciados” ou “grupo

individualizável de enunciados” (p. 90), como também “prática regulamentada dando

conta de um certo número de enunciados” e ainda “um conjunto de enunciados, na

medida em que se apoiem na mesma formação discursiva” (p. 132) e que o discurso

é constituído de um “número limitado de enunciados para os quais podemos definir

um conjunto de condições de existência” (p. 132-133).

Para Foucault, o discurso não forma uma unidade sintática ou formal. Ele é

“fragmento de história, unidade e descontinuidade da própria história” (FOUCAULT,

2008, p.133), um nível no qual a obra se revela:

[...] em todos os seus fragmentos, mesmo os mais minúsculos e os menos essenciais, como a expressão do pensamento, ou da experiência, ou da imaginação, ou do inconsciente do autor, ou ainda das determinações históricas a que estava preso. [...] todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que este já-

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dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um "jamais-dito", um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro. Supõe-se, assim, que tudo que o discurso formula já se encontra articulado nesse meio-silêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto não passaria, afinal de contas, da presença repressiva do que ele diz; e esse não-dito seria um vazio minando, do interior, tudo que se diz. (FOUCAULT, 2008, p.28)

Para Orlandi (1995) um discurso não tem origem e não tem unidade

definitiva, assim como não é igual a um texto e “na perspectiva do discurso, o texto é

o lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de funcionamento da

discursividade”:

O texto, dissemos inúmeras vezes, é a unidade de análise afetada pelas condições de produção. O texto é, para o analista de discurso, o lugar da relação com a representação física da linguagem: onde ela é som, letra, espaço, dimensão direcionada, tamanho. É o material bruto. Mas é também espaço significante. (ORLANDI, 1995, p. 117)

Dominique Maingueneau (2004) tem uma noção de que o discurso

ultrapassa uma abordagem linguística. Pare ele “o discurso é uma organização

situada para além da frase”:

Isto não quer dizer que todo discurso se manifeste por seqüência de palavras de dimensões obrigatoriamente superiores à frase, mas sim que ele mobiliza estruturas de uma outra ordem que as da frase. (MAINGUENEAU, 2004, p. 52)

Segundo Orlandi, “um texto é uma peça de linguagem de um processo

discursivo muito mais abrangente” que é “o que faz o texto significar” (ORLANDI,

1995, p. 117). Foucault adverte que os discursos não são laços tão fortes entre as

palavras e as coisas:

Gostaria de mostrar que os "discursos", tais como podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são, como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras [...]. (FOUCAULT, 2008, p.54-55)

Foucault não trata os discursos como conjuntos de signos (elementos

significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como “práticas

que formam sistematicamente os objetos de que falam”. No entanto, admite que “os

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discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos

para designar coisas” (FOUCAULT, 2008, p.55).

As relações discursivas, como se vê, não são internas ao discurso: não ligam entre si os conceitos ou as palavras; não estabelecem entre as frases ou as proposições uma arquitetura dedutiva ou retórica. Mas não são, entretanto, relações exteriores ao discurso, que o limitariam ou lhe imporiam certas formas, ou o forçariam, em certas circunstâncias, a enunciar certas coisas. (FOUCAULT, 2008, p.51)

Para que entendamos um discurso sonoro, necessitamos entender a

utilização dos sons como uma linguagem. O discurso se dará, pela disposição

desses sons em sucessão, sendo os signos sonoros os condutores de um

encadeamento. O signo se relaciona sintaticamente com outros signos, se

organizando, com o fim de compor significações semânticas que atendam as

aspirações discursivas de um plano ideológico.

As variadas definições de “discurso” de Foucault dão a multiplicidade de

sentidos pretendida por ele e não perdem de vista o “enunciado”. Os sentidos são

múltiplos, são variados, mas o enunciado permanece nas definições porque para

Foucault:

[...] o enunciado aparece como um elemento último, indecomponível, suscetível de ser isolado em si mesmo e capaz de entrar em um jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele; como um ponto sem superfície mas que pode ser demarcado em planos de repartição e em formas específicas de grupamentos; como um grão que aparece na superfície de um tecido de que é o elemento constituinte; como um átomo do discurso. (FOUCAULT, 2008, p. 90)

Foucault logo problematiza esta questão: “se o enunciado é a unidade

elementar do discurso, em que consiste?... Que lugar ocupa entre todas as unidades

já descobertas pela investigação da linguagem...?” (FOUCAULT, 2008, p. 91). “E a

frase? Não seria preciso admitir uma equivalência entre frase e enunciado?”

(FOUCAULT, 2008, p. 92):

Os próprios gramáticos reconhecem, em semelhantes formulações, frases independentes, mesmo que tenham sido obtidas por uma série de transformações a partir do esquema sujeito-predicado. Além disso, atribuem o status de frases "aceitáveis" a conjuntos de elementos linguísticos que não foram corretamente construídos, contanto que sejam interpretáveis; atribuem, em compensação, o status de frases gramaticais a conjuntos interpretáveis, contanto que

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tenham sido corretamente formados. Com uma definição tão vasta - e, em um sentido, tão laxista - da frase, não se vê como reconhecer frases que não sejam enunciados, ou enunciados que não sejam frases. Entretanto, a equivalência está longe de ser total [...] (FOUCAULT, 2008, p. 92)

Foucault dá exemplos de enunciados em que não se reconhecem as frases,

como uma árvore genealógica, um livro contábil, as estimativas de um balanço

comercial, uma fórmula algébrica, um gráfico, uma curva de crescimento, uma

pirâmide de idades, um esboço de repartição. Afirma que, em muitos casos, apenas

um número infinito de frases poderia equivaler a todos os elementos que estão

explicitamente formulados nessa espécie de enunciados (FOUCAULT, 2008, p. 92).

Quanto ao enunciado enquanto estrutura sígnica, Foucault diz não ser

possível admitir que qualquer série de signos seja suficiente para constituir um

enunciado, porque se assim fosse, “o limiar do enunciado seria o limiar da existência

dos signos” (FOUCAULT, 2008, p. 95).

É importante situar o signo no discurso e no enunciado, compreendendo o

seu papel, o seu conduto, dentro da estrutura, do composto, do texto, sendo ele um

elemento de ligação, um veio do fluxo textual e discursivo.

O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando assim um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles "fazem sentido" ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. (FOUCAULT, 2008, p. 98)

O enunciado não é estrutura, mas é sempre apresentado por uma espessura

material, “tem necessidade dessa materialidade” (FOUCAULT, 2008, p. 113),

“precisa ter uma substância, um suporte, um lugar e uma data”, contudo o enunciado

não é imediatamente visível. Ele “é, ao mesmo tempo não visível e não oculto”

(FOUCAULT, 2008, p. 124).

Ora, por mais que o enunciado não seja oculto, nem por isso é visível; ele não se oferece à percepção como portador manifesto de seus limites e caracteres. É necessária uma certa conversão do olhar

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e da atitude para poder reconhecê-lo e considerá-lo em si mesmo. (FOUCAULT, 2008, p. 98)

O enunciado não sendo uma unidade, como as frases ou outras unidades,

encontra-se dentro delas, porém na seguinte relação: “Um enunciado pertence a

uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto” (FOUCAULT, 2008,

p. 132)

Foucault define a função do enunciado como “função de existência”

(FOUCAULT, 2008, p. 98) e afirma ainda que o enunciado em si não constitui uma

unidade, mas se encontra na transversalidade de frases, proposições e atos de

linguagem (FOUCAULT, 2008, p. 97), argumentando que “ele é sempre um

acontecimento, que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”

(FOUCAULT, 2008, p. 31), bem como:

O enunciado, longe de ser o princípio de individualização dos conjuntos significantes (o "átomo" significativo, o mínimo a partir do qual existe sentido), é o que situa essas unidades significativas em um espaço em que elas se multiplicam e se acumulam. (FOUCAULT, 2008, p. 112)

Para uma compreensão maior sobre enunciado, Maingueneau faz oposição

entre enunciado e enunciação explicando que “o enunciado é a marca verbal do

acontecimento que é a enunciação” (MAINGUENEAU, 2004, p. 56). Assim sendo,

enunciado é produto, enunciação é produção.

Foucault, depois de dar vários sentidos ao discurso e ao enunciado, em que

o discurso é constituído por um conjunto de sequências de signos, enquanto

enunciados (FOUCAULT, 2008, p.122), fixa também o termo discurso: “conjunto de

enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação” busca uma definição

plena:

Pode-se então, agora, dar um sentido pleno à definição do "discurso" que havia sido sugerida anteriormente. Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber como e por que ele

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pôde emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico - fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOUCAULT, 2008, p.132-133)

4.10.1 Polifonia

Polifonia é um conceito bem utilizado na linguística contemporânea. Foi

inicialmente desenvolvido por Bakhtin, na análise da obra Problemas da poética de

Dostoiévski. Bakhtin observou determinados elementos que justificaram a formação

do conceito: não acabamento, dialogismo, consciências autônomas e o choque de

diferentes discursos de personagens distintas. São as múltiplas vozes, os diálogos e

as contraposições dos discursos em um texto que caracterizam a polifonia.

O termo “polifonia” foi emprestado da arte musical. Na música é entendida

como “o efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas independentes,

mas harmonicamente relacionadas. Bakhtin adaptou o conceito e o empregou na

análise da obra de Dostoiévski, considerando-a como um romance polifônico.

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5 Estudos Literários

Em tempos em que no mundo inteiro

lê-se cada vez menos, Literatura para quê?

Antoine Compagnon

5.1 Prática e Teoria

O meu desejo inicial, aquele que moveu o meu ânimo para a realização

deste estudo foi o de unir prática e teoria. Não para medir forças ou eficiência entre

as duas, mas para abrir portas e janelas e deixar o sol entrar.

Teorizar sobre a arte ou sobre o processo criativo é um trabalho duro e, ao

mesmo tempo, delicado, pois não se fala em arte desconsiderando-se a intuição e,

como sabemos, teoria e intuição são incompatíveis, como afirma Compagnon (1999,

Conclusão): “esse é até mesmo o primeiro interesse da teoria; sua pertinência está

nisso: ir contra a intuição”. No entanto, apesar da incompatibilidade entre teoria e

intuição, ambas podem conviver e servirem de apoio basal ao processo criativo e à

análise científica. A obra de arte não resulta somente de impulsos intuitivos; também

fecundam a arte: a crítica, a razão, as conjecturas intelectuais. Desconsiderar estes

aspectos delimitaria em demasia a relação sujeito/objeto artístico, resultaria na

privação da percepção de determinadas facetas da arte. Da mesma maneira, a arte

também não pode se fundamentar somente no conhecimento teórico. Jakobson

aponta que ao contrário de uma busca deliberada e racional dos mecanismos

teóricos, a intuição tem lugar essencial no fazer poético.

A obra de arte vai nos mostrar, apresentar o que está para se ver. O artista

se vale da pré-visão, daquilo que antecede o intelecto, tocando a realidade do objeto

numa “intuição imediata”, pregada por Henry Bergson (1999, p. 80). O artista “crê

sem ver”, isso é um modo de visão, no entanto, receber e manipular a imagem vista

é atributo da imaginação. O artista transforma o que antessente em imagens e nos

mostra, porque precisamos “ver para crer”. Cabe recordar aqui a frase de Potebnia,

“a arte é pensar por imagens”, citada por Chklovski (1976, p. 39). É importante para

a compreensão dos anelos desta dissertação perceber a essência da frase de

Potebnia, pois está nela o enfoque para compreender uma das lógicas em que se

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apóia este trabalho: o pensamento por imagens elabora textos por imagens e,

melhor, compõe textos artísticos por imagens, no caso, imagens sonoras, que irão

configurar espaços, cenários, ambientes, paisagens sonoras, que não se restringe

às artes plásticas, mas refere-se à arte em geral, como a poesia, a arte sonora etc.

Quanto às teorias, como se moveriam sem a intuição e a imaginação?

Deleuze, ao dedicar sua atenção aos conceitos de Bergson, eleva a intuição ao

patamar de método filosófico:

A intuição é o método do bergsonismo. A intuição não é um sentimento nem uma inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado, e mesmo um dos mais elaborados métodos da filosofia. Ele tem suas regras estritas, que constituem o que Bergson chama de "precisão" em filosofia. É verdade que Bergson insiste nisto: a intuição, tal como ele a entende metodicamente, já supõe a duração. "Essas considerações sobre a duração parecem-nos decisivas. De grau em grau, elas nos fizeram erigir a intuição em método filosófico. (DELEUZE, 1999, p. 7)

Deleuze (1999, p. 115) vê semelhanças entre Bergson e David Hume

(1995), ao tratar da imaginação ante as impressões percebidas. Podemos

estabelecer relações com o que diz Püschel:

[...] a imaginação tem algo que não é dedutivo (pelo duto, pelo caminho lógico; do geral para o particular) nem indutivo (dentro do duto, do caminho; do particular para o geral). Há algo que Peirce chama de abdutivo (afastado do duto previsível; a eureka de Arquimedes, o insight (grosseiramente falando), o modelo do átomo vislumbrado pela cobra que morde a própria cauda em Kekulé; a lendária ou não maçã newtoniana). Aliás, é a abdução o caminho criativo, é o que aproxima cientistas e artistas a quererem buscar o novo. (PÜSCHEL, 2000, p. 63)

Nos estudos de Compagnon é possível identificar um provável equilíbrio que

nos levam a evitar o erro de fazer da teoria ou da intuição um “demônio”. Visando

este equilíbrio entre a teoria e a prática, bem como o equilíbrio da organização desta

parte da dissertação, dividirei minhas especulações em duas partes: na primeira,

prevalecerão as teorias; na segunda, as práticas. O uso das teorias nesta

dissertação será específico, voltado para as estruturas poéticas, narrativas e

descritivas, na perspectiva do uso do objeto sonoro em texturas sonoras/musicais

tecidas em conformidade com as estruturas dos gêneros especificados. A utilização

das teorias não terá o caráter de teoria escolástica, mas conterá, ao modo de

Compagnon (1999, Conclusão) ao citar Barthes, uma atitude: a da aventura teórica.

Ao falar de aventura, só estou evitando cair em “círculos fechados” ou

“maniqueísmos”. Estou simplesmente escolhendo caminhos, pois como afirma

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Compagnon (1999, p. 26): “não é possível tudo ao mesmo tempo. Na pesquisa

literária, ‘mais é menos’, motivo pelo qual devemos escolher”.

Antes de iniciar o que está proposto, ou seja, estudar o objeto sonoro,

explorando a sua textualidade, como também o seu potencial de poeticidade e

narratividade, é importante ressaltar que os estudos literários tem acolhido teorias

sobre questões não literárias, relativas às outras artes e outros saberes, como, por

exemplo, textos filosóficos, psicanalíticos, como também a teoria da literatura se

relaciona de perto com as “disciplinas diretamente derivadas da expansão da

linguística”, como a semiótica e a teoria da comunicação (SOUZA, 2007, p. 67),

motivo de queixas por muitos (CULLER, 1999, p. 11).

Este relacionamento interdisciplinar foi saudável para esta dissertação, pois

para compreender o objeto sonoro desde a sua natureza ao objeto cultural, do

sensível ao inteligível, do mitológico ao racional, enfim, do fenômeno ao signo,

recorri às contribuições teóricas da filosofia (fenomenologia) e da linguística

(semiótica, linguagem, comunicação). Da mesma maneira, os estudos literários

podem ser aplicados às reflexões sobre outras artes, outras linguagens, conforme

Foucault acreditava:

É verdade que a literatura é feita com linguagem, como, afinal de contas, a arquitetura é feita com pedra. Mas deve-se concluir daí ser possível aplicar-lhe indiferentemente as estruturas os conceitos e as leis que valem para a linguagem em geral [...] a análise da literatura, como significante e se significando a si mesma, não se limita unicamente à dimensão da linguagem. Ela penetra em um domínio de signos que ainda não são signos verbais e, por outro lado, ela se estica, se eleva, se volta para outros signos muito mais complexos do que os signos verbais. (FOUCAULT, 2005, p. 166)

A partir de agora, os estudos procurarão embasamentos nas teorias

literárias, o que não descartará novas investidas em outras noções, conceitos

relacionados às artes e às linguagens em geral.

Ao buscar a compreensão das paridades e das barreiras entre a arte literária

e as artes visuais ou sonoras recorro a Gotthold Ephraim Lessing106, que via a

poesia como uma arte de signos arbitrários alinhados no tempo e a pintura como

106 Gotthold Ephraim Lessing (1729 — 1781) foi um poeta, dramaturgo, filósofo e crítico de arte alemão. É considerado um dos maiores representantes do Iluminismo e gozava de grande reputação como crítico. Suas peças e seus escritos teóricos exerceram uma influência decisiva no desenvolvimento da Literatura Alemã moderna, da qual é considerado fundador.

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uma arte de signos “naturais” dispostos no espaço e achava que “a poesia deve

simplesmente buscar elevar os seus signos de arbitrários para naturais; e apenas

deste modo ela se diferencia da Prosa e torna-se Poesia” (LESSING apud

SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 195).

A arte sonora, sob este prisma, pode ser entendida como uma arte de signos

tanto “naturais” quanto arbitrários arranjados no tempo. Nesta comparação entre as

artes convém recordar que, em relação aos signos naturais ou arbitrários, a arte

pictórica fez um caminho oposto ao da música e da literatura. A pintura, por muito

tempo foi referencial, somente no início do século XX passou a trabalhar com o

abstrato, através de Kandinsky, com o seu estilo abstracionista. Neste cenário,

destaca-se também Mondrian, que buscava a não referencialidade da pintura. A

música fez o reverso, sempre usou o signo arbitrário (nota musical) e abstrato e só

passou a trabalhar com o concreto, com o signo natural, na musica concreta. Na

literatura, a “concretude” como tentativa de restituição da “linguagem natural”

(SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 195) e maior proximidade com as coisas, buscada

pela poesia concreta, também caminhou em contramão com a pintura.

Poderíamos contestar que a literatura e a música ocupam o espaço, mas

Lessing não se refere ao espaço como elemento da narrativa, mas ao suporte

dimensional. É importante também notar que a pintura igualmente trabalha com o

conceito de narrativa, portanto tem o tempo (elemento da narrativa) como

componente de sua composição.

É por se deter em conceitos de narrativa e descrições, estruturas poéticas

que os estudos literários auxiliam o entendimento do uso dos signos, naturais,

artificiais, arbitrários, simbólicos etc. e suas relações estruturais e formais de

gêneros.

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138

5.2 A estrutura de textos artísticos

A arte é o oriente dos signos 107

Décio Pignatari

Como adiantamos quando apresentamos a teoria, vamos estudar a

narratividade e a poeticidade. Recordemos, então, a preocupação presente no

capítulo mencionado, recorrendo à indagação de Jakobson: “Que é que faz de uma

mensagem verbal uma obra de arte?” (JAKOBSON, 2003, p. 118-119)

Para fazermos as devidas diferenciações temos que compreender que esses

textos estão relacionados a uma postura de pensamento e por isso a uma lógica.

Isto pode ser percebido ao se examinar a lógica dos textos informativos, narrativos e

poéticos.

No texto em que importa a informação, entre eles o dissertativo e

argumentativo, a preocupação é mais referencial. São textos que se desenvolvem

em uma linearidade em que cada oração exige uma complementação que obedece

a injunções que visam significações objetivas, cada palavra segue a outra, se

emendando linearmente, conforme Raul de Souza Püschel:

A dissertação trabalha com uma espécie de linearidade, já que desdobra todas as consequências possíveis de sua argumentação [...] Assim, por mais complexo que seja um pensamento teórico, em última instância ele terá um encadeamento, suas explicações mostrarão cada uma de suas pregas. Aliás, é sempre bom lembrar que etimologicamente a palavra explicar (do latim explicare) possui o prefixo ex (= fora de) e o radical plicare (= pregar). (PÜSCHEL, 2000, p. 59)

Já a narrativa, sendo uma prosa de ficção, como o romance, o conto e a

novela entre outros, também se obriga a um certo encadeamento, a um

desenvolvimento, também obedece a determinadas injunções, no entanto, “muito

menos severas que as impostas aos textos dissertativos e argumentativos”. A

narrativa tem o poder de “inventar cenários, personagens e sequências que

transcendem as limitações do mundo real” (PÜSCHEL, 2000, p. 59), mas ainda

assim tem uma limitação maior que a do texto poético.

A poesia se diferencia da prosa, trabalha com frases mais livres e soltas,

apesar de ter versos que servem de ponto de partida, o encadeamento não se dá de 107 (PIGNATARI, 2004, p. 20)

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139

forma linear. A natureza da poesia se reveste de uma lógica diversa da existente na

prosa. Um poema não trabalha com frases que seguem uma lógica, não uma lógica

formal. Os versos seguem uma outra lógica, uma lógica criada pelo próprio poema.

O importante nestas estruturas não é informar, mas fazer uso de palavras

selecionadas para se provocar efeitos pretendidos. É uma pratica que requer mais

criatividade linguística e menos vínculo a uma sintaxe.

Ainda neste contexto, Salvadore D’Onofrio afirma que o que distingue uma

forma literária de outra é o grau maior ou menor de poeticidade com que atuam. Na

tabela a seguir serão demostradas as graduações de poeticidade (D’ONOFRIO,

1983, s/n):

Tabela 9: Graus de poeticidade Grau de

poeticidade 0 1 2 3 4 Máximo

Linguagem do cientista homem

comum crítico romancista poema sem rima e sem

metro

poema integral

Com isso, compreendemos que há poesia ou poeticidade em textos

diferentes aos conhecidos como poéticos, ou seja, aos poemas. D’Onofrio opina que

“um romance é um poema expandido e um poema um romance condensado”

(D’ONOFRIO, 1983, s/n), e expõe a opinião de Jean Cohen:

A prosa literária não é senão uma poesia moderada em que a poesia, por assim dizer, constitui uma forma veemente da literatura, o grau paroxístico do estilo. O estilo é uno. Apresenta um número finito de figuras, sempre as mesmas. Da prosa para a poesia, e de um estado de poesia para outro, a diferença está na audácia com que a linguagem utiliza os processos virtualmente inscritos na sua estrutura. (COHEN apud D’ONOFRIO, 1983, s/n)

Lotman também não faz relações do discurso poético com as formas

prosa/poesia, mas reconhece que há distinções entre o discurso usual e o discurso

artístico, pois “o pensamento de um escritor realiza-se numa determinada estrutura

artística”:

O discurso poético representa uma estrutura de uma grande complexidade. Em relação à língua natural, ele é consideravelmente mais complexo. E se o conjunto da informação contida no discurso poético (verso e prosa, neste caso, isso não tem importância) e no

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discurso usual fosse semelhante, o discurso artístico perderia todo o direito à existência e desapareceria sem dúvida alguma. (LOTMAN, 1978, p. 39)

Jakobson, em seu estudo linguístico da função poética fala de “dois modos

básicos de arranjo utilizados no comportamento verbal” (JAKOBSON, 2003, p. 129):

o da “seleção” e da “combinação”. Na combinação, as palavras são juntadas, uma a

uma, em um encadeamento linear, de maneira favorável à informação. Na seleção,

as palavras são selecionadas de forma criativa para causar efeitos, em jogos de

sons e sentidos.

Antônio Cândido (1996) também nos dá uma contribuição quanto às

diferenças entre prosa e poesia ou literatura e texto não literário, observando que o

estudo da poesia apresenta certas dificuldades, o que ocorre com menos frequência

com o meio de expressão da prosa, por estar mais próximo da linguagem cotidiana,

o que torna mais fácil a nossa familiarização com o texto prosaico. No entanto,

Cândido diz que “as acepções variam conforme as línguas” e que elas estão

relacionadas ao conceito geral de literatura, conforme consta em seu livro O estudo

analítico do poema (CÂNDIDO, 1996, p. 11):

Em português, não ha duvida: a literatura é o conjunto das produções feitas com base na criação de um estilo que é finalidade de si mesmo e não instrumento para demonstração ou exposição. Mais restritamente, é o conjunto de obras em estilo literário que manifestam o intuito de criar um objeto expressivo, fictício na maior parte. Noutras línguas, porém, as coisas são menos simples, e demonstram com mais força do que na nossa o alto conceito que se faz geralmente da poesia como categoria privilegiada de criação espiritual.

Foi feito até aqui um esforço em transparecer as distinções entre “texto feito

com arte” e “texto usual”, para uma melhor compreensão das relações signicas

contidas nas estruturas textuais. Destacamos anteriormente a classificação mais

conhecida dos signos peirceanos, que é a relativa à ligação signo/objeto. Nela, os

signos são os seguintes: ícone (primeiridade), índice (secundidade) e símbolo

(terceiridade).

Décio Pignatari relaciona os signos aos níveis de criação dizendo que “o

ícone é o signo da arte; o símbolo, o signo da ciência e da lógica” enquanto os

índices funcionam “como pontes” (PIGNATARI, 2004, p. 19-20).

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141

Creio já ter convocado as noções necessárias para auxiliar na compreensão

de como funcionará um texto sonoro artístico. Façamos novamente a indagação de

Jakobson: “Que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte?”

(JAKOBSON, 2003, p. 118-119). Para o que pretendo será necessário fazer uma

adaptação desta frase, ficando assim: Que é que faz de uma mensagem sonora

uma obra de arte? Por esta razão foram feitas as diferenciações anteriores entre

texto e texto artístico.

Um texto, artístico ou não, vai se fixando por meio dos signos. Se os dois

tipos de textos são formados por signos, onde descansará a diferença? Comecemos

por estudar o processo de organização dos signos, das formas como são

arranjados. O arranjo dos signos é feito a partir de duas operações que Roman

Jakobson assim define:

1) A combinação. Todo signo é composto de signos constituintes e/ou aparece em combinação com outros signos, Isso significa que qualquer unidade lingüística serve, ao mesmo tempo, de contexto para unidades mais simples e/ou encontra seu próprio contexto em uma unidade lingüística mais complexa. Segue-se daí que todo agrupamento efetivo de unidades lingüísticas liga-as numa unidade superior: combinação e contextura são as duas faces de uma mesma operação. 2) A seleção. Uma seleção entre termos alternativos implica a possibilidade de substituir um pelo outro, equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro. De fato, seleção e substituição são as duas faces de uma mesma operação. (JAKOBSON, 2003, p. 39-40)

As ideias de Roman Jakobson sobre o duplo caráter da linguagem e as

definições de combinação e seleção são desdobramentos do pensamento de

Ferdinand de Saussure sobre as definições de sintagma e paradigma. Esses

conceitos se equivalem aos de similaridade e a contiguidade, de David Hume. Vou

tomar por base as explicações de Décio Pignatari porque nelas estão inclusas todas

essas acepções, além de estar mais em conformidade ao estudo do comportamento

dos signos em arranjos textuais. Comecemos pela sua conceituação:

Partindo das duas formas fundamentais e fundantes de associação (segundo o filósofo inglês David Hume, do século XVIII), a similaridade e a contigüidade, temos que as associações por similaridade constituem os paradigmas, eixos paradigmáticos ou de seleção de qualquer sistema de signos; já as associações por contigüidade formam os sintagmas, eixos sintagmáticos ou combinatórios. (PIGNATARI, 2004, p. 22)

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142

Em síntese, os signos são organizados em um texto por similaridade ou

contiguidade. A similaridade é a analogia. O ícone é o signo da analogia, da

similaridade com o objeto representado, contendo, com este, algum traço em

comum. Neste eixo, também conhecido como paradigmático, se desenvolve o texto

com tendência poética. A narrativa se faz pela contiguidade, se dá pela sequência

lógica, pelo encadeamento, pela linearidade, pela horizontalidade. Os textos

contíguos artísticos diferem dos dissertativos por ter uma preocupação mais estética,

mais subjetiva, podem inventar cenários e personagens que extrapolam o senso de

realidade.

Os objetos sonoros dispostos em uma organização submetida ao eixo

sintagmático se associam entre si, signo a signo, por dependência contextual, isto é,

um objeto sonoro depende do contexto do objeto anterior e, da mesma forma, impõe

novo contexto para a escolha do objeto seguinte, fixando assim um enredamento de

contiguidade. Quando os objetos sonoros estão dispostos sob o eixo paradigmático,

mudam as regras de segmentação. A poesia se dá pelo desvio da lógica contígua. A

forma poética de pensar não é lógica, é analógica, baseia-se nas simetrias e

assimetrias.

Este modo semiótico de estudar as estruturas é complementar e

fundamentalmente básico para compreendermos as estruturas de composições

sonoras a partir dos estudos literários. Devido ao tecido conceitual existente, às

técnicas e termos variados, recaímos sempre aos conceitos de estruturas literárias.

Esta tem sido a linha, ou o fio, da malha teórica, que temos puxado. A semiótica

auxiliará na compreensão dos signos, uma vez que estamos estudando um tipo de

signo que difere do verbal e as teorias literárias auxiliarão na compreensão do

funcionamento dos signos em estruturas textuais sonoras que são construídas sob

as regras pertencentes às estruturas literárias. É preciso enxergar a estrutura, a

forma, de outro modo, como poderíamos afinar e vibrar o diapasão sem sequer ver o

instrumento? No entanto, o formalismo e o estruturalismo, apesar de atenderem ao

propósito de constatação da capacidade sígnica do objeto sonoro, como elemento

material de uma composição sonora não dariam conta das perspectivas discursivas

e culturais de textos sonoros, o que não resultará em prejuízo, pois não serão

estudadas neste trabalho por força delimitativa, ou seja, será estudada somente a

potencialidade textual e não discursiva.

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143

A Teoria da Literatura passa a ser um questionamento sistemático acerca da

obra sonora, estando apta para decompor esse tipo de obra (peça, composição,

texto/textura etc.). Através da Teoria da Literatura em geral, o texto sonoro deixa de

ser apenas um mero (no entanto, emocionante) simulacro, para figurar como

produção textual discursiva, expressão da realidade, da vida, do desejo e do

pensamento.

Para fazermos uma figuração inicial de como funciona uma composição

sonora no editor de áudio será usado um conceito básico de narrativa, por ser

propício ao entendimento de uma narrativa como "organização de materiais numa

ordem sequencial cronológica e a concentração do conteúdo numa única história

coerente" (STONE, 1979, p.3). Esta noção corresponde a um eixo de narração, que

pode ser organizado junto a outros, de forma justaposta ou sobreposta.

Considerando a possibilidade de entrecruzamento ou enlaçamento de narrações na

mesma obra narrativa, possíveis pela capacidade de simultaneidade, característica

das linguagens sonora e musical em poder ocupar dois ou mais espaços ao mesmo

tempo, no procedimento de composição, a narrativa pode ser composta em partes,

em pistas de áudio, permitindo uma maior mobilidade criativa quanto à ordem

sequencial e cronológica, bem como no cruzamento de enredos e histórias. Sendo

os materiais sonoros registros de áudio, ou seja, arquivos analógicos ou digitais, que

podem ser ordenados em múltiplas pistas de áudio e editados com o propósito de

fusionar narrações ou narrativas, de modo simultâneo, podem resultar em uma

polifonia narrativa baseada em paralelismos discursivos. Assim, em uma pista, uma

narração sonora consiste em arranjar uma sequência de objetos sonoros, na qual os

personagens se movimentam num determinado espaço à medida que o tempo

passa.

Esta definição de narrativa, na forma mais simplificada, nos serve para

formar a ideia de texto sonoro narrativo que iremos abordar a seguir, pois a

importância dos estudos literários está em ampliar esta noção e esboçar

perspectivas da potencialidade do objeto sonoro em diversas modalidades

narrativas. O texto sonoro narrativo está sujeito a todas as complexidades baseadas

na ação que envolve personagens, tempo, espaço e conflito, ou melhor, nos

elementos constituintes da narrativa. Lukács diz que “a arte da narração não só

permite como estimula uma infinita variedade de formas de composição (LUKÁCS,

1965, p. 81)”.

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As descrições são pinturas sonoras com abrangência textual de

referencialidade e de poeticidade. Os métodos de composição voltados para a

espacialidade permitem ao compositor representar com exatidão realista, com

plasticidade, sensibilidade e divagação. Os níveis referenciais são alguns dos

critérios que definem o caráter descritivo ou poético da composição.

Já a invenção sonora poética consiste em sequenciar objetos sonoros que

constituam imagens sonoras, em justaposição ou sobreposição, pois a possibilidade

da simultaneidade possibilita a polifonia, a ambiguidade, o desvio discursivo, o

estranhamento, a recorrência, bem como outros efeitos como a suspensão, a

quebra, o eco etc.

Para o cumprimento desses estudos, serão utilizadas teorias que pensam,

refletem e analisam alguns dos elementos constitutivos dos gêneros narrativo,

descritivo e poético, no entanto, nesse sentido, são objetos da Teoria da Literatura

questões como:

- a estrutura da obra;

- a literariedade;

- a poeticidade;

- a narratividade;

- a descritividade;

- a verossimilhança;

- o espaço;

- o tempo;

- os personagens;

- o enredo;

- o narrador;

- o discurso;

- a linguagem.

As composições sonoras contêm atributos que se assemelham aos outros

textos artísticos, como também tem características próprias enquanto linguagem

particular. Admitindo as composições como textos sonoros, serão extraídas e

levadas em conta as semelhanças e as diferenças, para o estudo através das

teorias gerais dos sistemas de signos e dos estudos literários, nos valendo de que “a

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145

arte pode ser descrita como uma linguagem secundária e a obra de arte, como um

texto nessa linguagem” (LOTMAN, 1978, p. 38).

5.3 Narrativa

É dentro da perspectiva da “arte como linguagem” e da “obra artística como

texto” que começamos a pensar em narrativa elaborada a partir de um sistema

sonoro. Como emaranhar uma estrutura narrativa a partir dos objetos sonoros?

Roland Barthes diz que são “inumeráveis as narrativas do mundo”, e ainda

acrescenta que:

Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto [...] na pintura, no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disso, sob essas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade [...] (BARTHES, 1971, p.19)

Os recursos da linguagem, relacionados aos eixos sintagmáticos e

paradigmáticos, são instrumentos artísticos que irão estruturar os textos sonoros

conferindo-lhes caracteres que os farão distintos, em diversas graduações entre o

narrativo e o poético. Através do eixo em que se organizarão os objetos sonoros se

definirá o grau de poeticidade da obra, pois, em contigüidade, os signos são mais

utilitários e referenciais, enquanto que por similaridade, multiplicam-se os

significados, gerando a ambiguidade poética, desvencilhando o signo sonoro de sua

função objetiva. A escolha do material é basilar e o efeito que se pretende é a mola

que impulsiona a criação; ambos são determinantes nos resultados artísticos.

Os estudos literários são fundamentais, pois oferecem conceituações dos

aspectos estruturais relacionados à organização dos signos dentro das estratégias

narrativas. As articulações narrativas ocorrem através de elementos constituintes

como: espaço, tempo, personagem, ponto de vista narrativo, enredo e narrador.

Os objetos sonoros dispostos em uma organização submetida ao eixo

sintagmático se associam entre si, signo a signo, por dependência contextual, isto é,

um objeto sonoro depende do contexto do objeto anterior e, da mesma forma, impõe

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novo contexto para a escolha do objeto seguinte. Obedecem as injunções e regras

de segmentação da narrativa, formando frases sem “jamais se reduzir a uma soma

de frases”, conforme Barthes: “a narrativa é uma grande frase, como toda frase

constatativa, é de uma certa maneira o esboço de uma pequena narrativa”

(BARTHES, 1971, p. 24).

O objeto sonoro é um ponto na linha narrativa, podendo interromper, desviar

ou permitir o fluxo narrativo. Ele pode manter ou alterar o nível referencial de um

enunciado sonoro. Está contida no objeto sonoro a decisão tomada pelo compositor,

de representar ou de causar efeitos. Se for a de representar, em que medida será e

qual o nível de referencialidade. Barthes, sobre a mímesis diz:

[...] a função da narrativa não é a de “representar”, é de construir um espetáculo que permanece ainda para nós muito enigmático, mas que não saberia ser de ordem mimética; a “realidade” de uma sequência não está na continuação “natural” das ações que a compõem, mas na lógica que aí se expõe, que aí se arrisca e que aí se satisfaz [...] (BARTHES, 1971, p. 59-60).

Como o assunto da narrativa é muito amplo, serão tratadas aqui apenas

algumas questões voltadas para os elementos da narrativa, como maneira de

acionar reflexões que demandem uma tarefa maior sobre a complexidade das

relações sígnicas a que estão sujeitos os objetos sonoros. Comecemos pelo

elemento tempo.

5.3.1 Tempo

O sonho encheu a noite Extravasou pro meu dia

Encheu minha vida E é dele que eu vou viver

Porque sonho não morre. 108

Adélia Prado

A arte envolvendo elementos sonoros se diferencia já de imediato por ser o

tempo a plataforma da composição sonora. O terreno a ser ocupado pelo som é

linear, é temporal. “A estrutura da obra repousa numa armação temporal histórica:

cronologia determinada” (NUNES, 1995, p. 43). Todos sabemos que uma música

não ocupa espaço, mas dura um determinado tempo, suporte inequívoco da

108 Disponível em: < http://www2.uol.com.br/fernandamontenegro/donadoid.htm >. Acesso em: 01 dez. 2013.

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147

narração sonora. Música, composição sonora e narrativa se desdobram no tempo.

Benedito Nunes afirma que é mais fácil perceber as ligações do tempo com a

música que com a literatura:

[...] por ser esta basicamente articulada segundo medidas temporais (ritmo, compasso e andamento ou velocidade), do que com as formas narrativas, nas quais se apresenta quase sempre de modo implícito. (NUNES, 1995, p. 6)

O tempo de ocorrência da narração sonora é o cronológico, porém, como

acontece na literatura, pode ser alcançado o efeito de tempo ficcional. Gérard

Genette (1979, p. 32) comenta que a oposição entre o “tempo da história” e o “tempo

da narrativa” não é uma característica exclusiva da narrativa cinematográfica.

Genette reforça seus argumentos citando Christian Metz:

A narrativa é uma sequência duas vezes temporal...: há o tempo da coisa-contada e o tempo da narrativa (tempo do significado e tempo do significante). Não só é esta dualidade aquilo que torna possíveis todas as distorções temporais de que é banal dar conta nas narrativas [...]; mas fundamentalmente, convida-nos a constatar que uma das funções da narrativa é cambiar um tempo num outro tempo. (METZ apud GENETTE, 1979, p. 31)

Na composição sonora ocorre, como na literatura, que o tempo na narrativa

sonora depende da natureza do acontecimento ou do ponto de vista do narrador, de

como o autor queira que o ouvinte sinta o transcorrer do tempo. O tempo em uma

narrativa sonora, mesmo com efeito ficcional é elaborado a partir da experiência

temporal. Paul Ricouer fala da relação tempo/narrativa:

O mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal [...] o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal. (RICOUER, 1994, p. 15)

Ricouer explica que a complexidade da representação temporal não pode

ser expressada pela ordenação linear dos acontecimentos e que a representação

linear do tempo não corresponde à experiência temporal subjetiva.

A narrativa se desenvolve em um ”tempo que toca à realidade, um outro que

dela se desprende“ (NUNES, 1995, p. 15). O tempo subjetivo que irá condicionar e

dar o andamento do tempo ficcional é reflexo do tempo experimentado, repetindo as

mesmas expectativas temporais na narrativa. Walter Benjamin, ao diferenciar a

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148

narrativa tradicional dos romances modernos, citou Paul Valéry, ponderando o

seguinte: “[...] já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje

não cultiva o que não pode ser abreviado” (VALÉRY apud BENJAMIN, 1987, p.

206). Para Benjamin, “o homem conseguiu abreviar até a narrativa”.

O tempo na narrativa está sempre conjugado ao espaço. Não se pode

constituir, por exemplo, um espaço realista, sem signos espaciais e temporais

referenciais. Em uma composição descritiva sonora realista, levando-se em conta a

natureza dos eventos, ao se criar um espaço, correspondente ao físico, em que

poderão ocorrer fatos narrativos, o aparecimento de sons relacionados à natureza,

deve transcorrer em um curso natural, seguir um tempo físico, que reforça o realismo

da descrição espacial. Para espaços, hiper-reais, surreais, irreais, um tempo

combinado, pois não se pode desconjugar tempo e espaço sob a pena do fracasso

ficcional.

O tempo físico corresponde à duração dos eventos, enquanto o tempo

psicológico corresponde à duração dos estados internos. Para representar estas

questões através dos objetos sonoros podemos fazer associações. Exemplos de

tempo cronológico, físico, natural, cósmico, como segundos, minutos, duração de

fenômenos naturais, podem ser representados desde um som de relógio em

funcionamento, aquele icônico e onomatopaico tic-tac tão reconhecido, quanto ao

simbólico som do canto do galo anunciando o amanhecer. Mas o fundamental é que

os eventos ocorram no tempo considerado normal, em um tempo objetivo, realista.

Quanto às representações de um tempo mais subjetivo, isto envolve o aparecimento

do narrador ou de algum personagem. São os acontecimentos ocorrendo em tempo

modificado, alterado pelo estado psicológico de quem está narrando. O tempo

interior pode ser alongado ou encurtado, tornado lento ou acelerado a partir de

recursos de edição. É um tempo que está sob o efeito do estado psicológico de

quem conta a história. Segundo Nunes:

A experiência do movimento exterior das coisas prepondera na elaboração do conceito de tempo físico, natural ou cósmico: tanto pode ser a medida do movimento como relação entre o anterior e o posterior, conforme Aristóteles escreveu em sua Fisica109, quanto o próprio processo de mudança - processo objetivo, porque independente de consciência do sujeito, além de quantitativo, porque expresso mediante grandezas [...] A experiência da sucessão dos nossos estados internos leva-nos ao conceito de tempo psicológico

109 ARISTOTELES

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ou de tempo vivido, também chamado de duração interior. O primeiro traço do tempo psicológico é a sua permanente descoincidência com as medidas temporais objetivas. Uma hora pode parecer-nos tão curta quanto um minuto se a vivemos intensamente; um minuto pode parecer-nos tão longo quanto uma hora se nos entediamos. (NUNES, 1995, p. 18).

Quando ouvimos uma narrativa sonora, ouvimos a narração, ou seja, as

ações em ocorrência, no presente, se são sons de passos, de aplausos, de toques

nas teclas de um computador, enfim, qualquer exemplo que pensarmos, o tempo da

ocorrência é o presente, no entanto este presente é um ponto, um núcleo que pode

comportar o passado e o futuro.

É deslocável o presente, como deslocáveis são o passado e o futuro. De "uma infinita docilidade", o tempo da ficção liga entre si momentos que o tempo real separa. Também pode inverter a ordem desses momentos ou perturbar a distinção entre eles, de tal maneira que será capaz de dilatá-los indefinidamente ou de contraí-los num momento único, caso em que se transforma no oposto do tempo, figurando o intemporal e o eterno. (NUNES, 1995, p. 25)

Determinados sons, podem nos remeter a determinados fatos históricos, por

seu caráter simbólico, associativo, representado acontecimentos singulares, como

uma guerra (lembremos a Abertura 1812, de Tchaikovsky, que descreve o confronto

da Rússia com a França. Em certo momento incluem-se fragmentos de La

Marsellesa110, símbolo do exército invasor), uma festividade (imaginemos sons

festivos como copos brindando, gargalhadas, entre outros, indicam que o evento é

uma festa; o que definirá o tipo de festividade são sons que condizem com o tipo de

comemoração: de fundo, uma música natalina ou carnavalesca, junina será

determinante quanto ao tipo de festividade), movimento político (imaginemos sons

relacionados a manifestações públicas, como o alarido, sirenes, etc. que comporiam

somente uma manifestação, mas se incluirmos, de fundo, canções como Coração de

estudante, de Milton Nascimento ou o Hino nacional cantado por Fafá de Belém, que

se tornaram símbolos das manifestações “Diretas Já”, mudaria completamente o

contexto na questão histórica). Estes são acontecimentos específicos que nos levam

a uma representação do passado.

110 La Marseillaise (A Marselhesa, em português) é o hino nacional da França.

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Existe o tempo que é impresso pela própria linguagem, pelos expedientes

que lhe são próprios e que podem se equivaler aos recursos criativos e técnicos, em

que podemos contar ou mostrar, invertendo a ordem passado/presente/futuro; ou

voltar os acontecimentos, fazendo uso do recurso chamado reverse, em que os

eventos sonoros ocorrem de trás para frente; como também alterar o andamento dos

fatos, tanto de forma brusca como progressivamente ou digressivamente. A

ordenação dos acontecimentos se dá, neste caso, por meio da própria linguagem.

Tudo isso, ainda pode ser distorcido pelo ponto de vista do narrador, pois se é uma

cena alegre, é adequado a cena que transcorra em um andamento rápido, e quando

o contrário ocorre, isto é, a cena conta o que sente o personagem, e seus

sentimentos apontam para a melancolia, a tristeza, o tempo parece não passar,

exigindo que o evento se dê em um andamento lento, sendo rítmico ou arrítmico,

sempre projetando o tempo psicológico do personagem ou narrador. Estes

resultados provocam uma ilusão de movimento, podendo ser compreendidos, muitas

vezes, como efeitos poéticos. Além disso, podemos considerar também as soluções

musicais na utilização da natureza do compasso apropriado, visando configurar o

caráter da composição, pois apesar da notação musical mostrar-se como um fluxo

que segue em uma direção, numa sequencia linear, essa sucessão de tempo da

música não é uma simples passagem de tempo na música. A música tem um tempo

interior, ela é pulsante, daí a necessidade de orientar o caráter da peça musical pelo

tipo de compasso, seja ele binário, ternário ou quaternário.

Ao compositor cabe não perder o foco narrativo, o ponto de vista do

narrador para ajustar os planos temporais da narrativa, pois na narração o tempo

sempre será relativo, variando de acordo com o que a narração pede, ora o tempo é

realista, isto é corre de acordo com o relógio, ora é retrospectivo, prospectivo, lento,

acelerado ou simultâneo.

Esta questão da simultaneidade, por exemplo, como já foi estudado antes

sobre polifonia, é simples para a técnica composicional lidar com discursos

ocorrentes ao mesmo tempo, cabendo apenas a decisão da colocação dos

discursos em seus respectivos planos. Na literatura, devido ao caráter consecutivo

da linguagem verbal, a narrativa só consegue representar ocorrências simultâneas

na ordem sucessiva. O efeito de simultaneidade consegue-se empregando um

recurso como: “Enquanto isso...”, estancando o fluxo narrativo, abrindo um

“parêntese”, um novo tempo em que ocorrerá um novo curso narrativo, que será

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interrompido ou concluído para que se retorne à narração anterior, isto é, o

simultâneo tem o caráter de efeito, no entanto terá que ocorrer de forma linear,

horizontal e sequencial no texto escrito. Na composição textual sonora o “enquanto

isso” é suprimido e um fragmento narrativo pode estar acontecendo, enquanto isso,

outro ocorre ao mesmo tempo. Esses eventos narrativos alteram a linearidade

discursiva, uma vez que podem ser provocados efeitos de paralelismos ou

cruzamentos narrativos através da sobreposição de objetos sonoros.

Na arte sonora, os objetos sonoros são imagens que formam quadros em

movimento. Sem o movimento seria tão somente uma descrição estática, como são

as fotografias. O movimento significa a ação do tempo, representa o espaço vivo,

como na arte cinematográfica. Sendo uma simulação de espaços vivos, os

elementos de composição se movem em um tempo condizente e compreensível

dentro do espaço criado. Essa medida temporal não coincide com as medidas

objetivas, ela tem uma duração que Bergson denominou de “duração interior” (apud

DELEUZE, 1999, p. 114), captado pela intuição na experiência.

De um ponto de vista filosófico, não obstante, com propósitos que

facilmente se comungam com os procedimentos artísticos, Gilles Deleuze e Félix

Guattari (2012) articulam sobre conceitos de Pierre Boulez, relacionados ao tempo e

ao espaço:

Foi Pierre Boulez quem primeiro desenvolveu um conjunto de oposições simples e de diferenças complexas, mas também de correlações recíprocas não-simétricas, entre espaço liso e espaço estriado. Criou esses conceitos e esses termos no campo musical, e os definiu justamente em diversos níveis, a fim de dar conta ao mesmo tempo da distinção abstrata e das misturas concretas. No nível mais simples, Boulez diz que um espaço-tempo liso ocupa-se sem contar, ao passo que num espaço-tempo criado conta-se a fim de ocupar. Desse modo, ele torna sensível ou perceptível a diferença entre multiplicidades não métricas e multiplicidades métricas, entre espaços direcionais e espaços dimensionais. Torna-os sonoros e musicais. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 195-6)

O tempo estriado é o tempo pulsado, isto é, que tem um pulso como

referência, que facilitam o reconhecimento é destituído de métrica, não confundamos

com métrica irregular, que altera um compasso de binário à ternário, ou altera um

andamento de andante para alegretto. Essas alterações que mudam o ritmo ou a

velocidade ocorrem, no entanto, continuam mantendo um tempo pulsado. O tempo

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estriado é métrico e quando se foge desta fixidez passa-se para um tempo não

pulsado.

O tempo liso é esse tempo não pulsado, amorfo, não medido por relógios,

cronômetros ou metrônomos. O pulso é subjetivo, não se conta para ocupar, mas

ocupa-se o tempo sem a necessidade de contar e sem parâmetros lógicos. O tempo

liso é o “tempo fora dos eixos”, o “tempo enlouquecido”, libertado dos

acontecimentos que compunham seu conteúdo, revertendo sua relação com o

movimento, descobrindo-se, em suma, como forma vazia e pura (DELEUZE, 2000,

p. 92).

Na criação sonora o tempo e o espaço são inseparáveis como na vida. É um

arranjo da narração com a descrição. A narração conta através do tempo enquanto a

descrição mostra o espaço. Conforme Bergson: “a percepção dispõe do espaço na

exata proporção em que a ação dispõe do tempo” (BERGSON, 1999, p. 29).

5.3.2 Espaço

A pintura transforma o espaço em tempo; a música, o tempo em espaço.111

Hugo Von Hofmannsthal112

O compositor, da mesma maneira que um pintor, terá que criar espaços. As

composições sonoras, assim como as pinturas, podem mimetizar o real, ou seja,

evocar imagens referenciais do mundo real, sendo que podem ser compostas de

forma realista, isto é, com um grau de referencialidade elevado, muito comum nas

pinturas de paisagens, como pode ter o mesmo fundo realístico, no entanto,

carregado das impressões do artista ressaltadas nas linhas, formas e proporções,

sombras e luzes, como os jardins impressionistas de Monet. Os sons ambientais

naturais ou da cidade formam um discurso mimético. O enfoque destes sons é

mimético por natureza, ao ouvi-los em uma composição, logo são identificados, são

objetos sonoros de prontidão para as mais diversas combinações, que permitem a

invenção de novos mundos, em que o objeto sonoro mimético pode ser desfigurado,

111 HARGRAVES, 2002, p. 64 112 Hugo Laurenz August Hofmann, Edler von Hofmannsthal (1874 — 1929), foi um escritor e dramaturgo austríaco. Seu prestígio internacional se deve a sua colaboração com escritos para as óperas do compositor e maestr alemão Richard Strauss.

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deformado, como os relógios derretidos de Dali na sua obra A persistência da

memória.

Refletir sobre as definições “a arte é pensar por imagens”, de Potebnia (apud

CHKLOVSKI, 1976, p. 39) em consonância com “toda imagem é, de certo modo,

uma narrativa”, de Barthes (2004, p. 39) nos ajudam a compreender o potencial dos

objetos sonoros como representações. Os objetos sonoros, no contexto desta

dissertação, são signos, e como signos representam algo, no caso, seres e coisas

que ocupam espaços. A representação do espaço em um texto sonoro é feita por

meio da descrição, da mostração. Os espaços se constituem da organização de

elementos sígnicos. Os objetos sonoros são dispostos levando em conta questões

como espacialidade, ambientação e movimento (conjugada com o tempo), bem

como cenário, lugar etc.

O espaço, como elemento da narrativa, tem o seu papel de complemento,

de expansão. A narrativa ocorre dentro do tempo e do espaço, todas as ações

precisam acontecer em algum lugar: o espaço. Para se compreender como é feita

uma configuração do espaço na narrativa sonora é preciso pensar na noção de

espacialização fictícia da narrativa. Cabe aqui uma observação para que não

ocorram desvios interpretativos. Para o compositor, a sua composição funciona no

tempo, ou seja, os sons vão estar dispostos na sequencia temporal, pois o suporte

da composição é o tempo: o tempo em que decorre a contação da história.

Entendamos que o som não ocupa espaço e, sim, decorre em um lapso de tempo,

portanto o espaço pretendido na composição é o espaço fictício. Como reforço desta

informação, vai ser usado um exemplo de uma composição narrativa sonora, vamos

colocar assim: a composição (que contém a narração) funciona no tempo, nela, os

signos ocupam o tempo; por outro lado, na narrativa da composição, os signos

transcorrem no espaço, não se trata de espaço físico, mas de um espaço fictício,

lugar onde se dão os acontecimentos contados na narração. Os signos tendem a se

situar nos espaços fictícios de maneira similar ao modo como se situam no “mundo

dos signos de uma sociedade”, conforme explica Michel Foucault ao afirmar que a

obra literária é feita “com linguagem”, “a partir de um sistema de signos”: “Mas esse

sistema de signos não é isolado. Ele faz parte de uma rede de outros signos que

circulam em dada sociedade” (FOUCAULT, 2005, p. 163).

Em um primeiro momento basta compreender que a espacialização sonora

consiste em dispor os sons, lado a lado, um sobre o outro (em pistas distintas), de

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forma linear, em uma única dimensão. Mas a fidelidade exige mais e será

necessário tridimensionar o espaço, ou seja, fazer um simulacro, uma simulação de

um espaço mais real, onde será necessária a definição das localizações precisas,

das direções e distâncias dos objetos.

As localizações no contexto fictício podem estar atreladas a um espaço

onde a ação está decorrendo, como pode estar relacionada a uma diversidade de

espaços além dos físicos, como psicológicos, sociais, culturais, etc.

A representação do espaço, quando naturalizante, valoriza signos que

representam objetos físicos, concretos. Um espaço físico, caso a intenção seja

mostrar realismo, pode ser representado por objetos sonoros que possam formar a

imagem sonora do lugar pensado (sons de animais, sons pertencentes ao ambiente

de uma indústria, sons relacionados ao trânsito, etc.). Somam-se aos objetos os

cuidados espaciais, questões de direção, sentido, profundidade etc. Um espaço

físico pode ser o espaço geográfico, como pode ser indicado através de referências

físicas, podem ser mais especificados, se interior ou exterior, fechado ou aberto, etc.

Neste aspecto, contribuições fundamentais foram dadas por R. Murray

Schafer, com seus conceitos atuais de “paisagem sonora”, muito bem aclarados nas

obras A afinação do mundo e Ouvido Pensante.

O conceito de paisagem sonora proposto por Schafer, visa à retomada da

consciência em relação ao espaço em que estamos, que ocupamos no mundo.

Envolve diretamente a possibilidade de entender sonoramente o que está diante de

nossos olhos.

Ainda nesta perspectiva, Fonterrada (2004, p.44) enfatiza:

Em relação ao ruído é impossível nos afastarmos dele; cada pessoa é o centro do seu ambiente sonoro, num círculo cujo diâmetro é o limite da escuta. Permanentemente, quer tenhamos consciência disso ou não, os sons produzidos nesse âmbito de escuta nos afetam...

Em uma narrativa sonora, o espaço pode ser configurado de modo a não

resultar em um pano de fundo apenas, a não ser apenas um retrato, uma imagem

imutável. Em espaços realistas, pode-se criar um âmbito sonoro vivo, um mundo

sonoro espacialmente móvel, compensando defasagens dimensionais apontadas

por Barthes:

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O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura. Que o real não seja representável - mas somente demonstrável - pode ser dito de vários modos: quer o definamos, como Lacan, como o impossível, o que não pode ser atingido e escapa ao discurso, quer se verifique, em termos topológicos, que não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem). Ora, é precisamente a essa impossibilidade topológica que a literatura não quer, nunca render-se. (BARTHES, 2004, p. 22)

A arte não quer se render. Baseado na ideia de que a audição não é plana

nem linear e que temos a capacidade auditiva de perceber perspectivas, podem ser

criadas descrições do espaço, através de recursos técnicos de qualquer editor de

audio em que simula uma espacialização tridimensional, pois se consegue fixar ou

mover o som, na dimensão da largura (orientação esquerda/direita), como o recurso

PAN, na perspectiva da altura (orientação cima/baixo), com o recurso EQUALIZER,

que possibilita os filtros de frequência, dando a impressão da fonte do som ser mais

acima ou mais abaixo; e a sensação de profundidade (orientação frente/trás), com o

recurso VOLUME, que proporciona diferenças de intensidade entre os objetos

sonoros. A tridimensionalidade em uma composição sonora, com os novos recursos

tecnológicos que estão ao alcance do compositor pode ser alcançada de forma

surpreendente.

Com técnicas de som surround113 é possível a criação de espaços sonoros

minuciosos com exatidão acústica Uma composição sonora pode transmitir

sensações espaciais com muita fidelidade. Com a utilização de um microfone

binaural se consegue produzir efeitos 3d (tridimensionais) muito reais, pois a

gravação de um áudio binaural simula a captação dos sons pelo ouvido humano. O

microfone binaural é altamente sensível e foi projetado considerando que o campo

auditivo é omni-direcional. Uma gravação feita por este tipo de microfone permite

perceber os sons que vem de todos os lados, com todas as sensações de altura,

distância e direção. Este método de microfonação foi cuidadosamente estudado. É

uma técnica minimalista, no sentido de imitar o nosso aparelho auditivo,

113 Som Surround é o conceito da expansão da imagem do som em três dimensões, recriando um ambiente mais realista de áudio. Esse efeito se consegue ao colocar diversos alto-falantes em torno do ouvinte para reproduzir áudio vindo de direções diferentes.. Este sistemaestá presente nos cinemas, teatros, vídeos, jogos de computador, dentre outros.

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proporcionando uma sensação surpreendente de realismo, pois reproduz a

complexidade natural dos sons.

As contribuições de Gilles Deleuze e Félix Guattari quanto às noções de

espaço, abrem novas perspectivas para os compositores, uma vez que os espaços

sonoros da composição se ampliam, se abrem em espaços lisos, estriados, que

podem ser explorados em jogos de movência e desterritorialização.

Sucedeu-nos com frequência encontrar todo tipo de diferenças entre dois tipos de multiplicidades: métricas e não métricas; extensivas e qualitativas; centradas e acentradas; arborescentes e rizomáticas; numerárias e planas; dimensionais e direcionais; de massa e de malta; de grandeza e de distância; de corte e de frequência; estriadas e lisas. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 205)

O espaço estriado é o lugar da ordem e do controle e os seus trajetos estão

limitados às particularidades do espaço que os determinam. O espaço liso é um

lugar sem trajetos previamente determinados, se abre ao devir, ao nomadismo, ao

performativo, ou seja, é um espaço aberto para novas sensibilidades e realidades.

Deleuze e Guattari dão definições dos fragmentos espaciais em seus

aspectos tridimensionais, ilustrando que “tanto no espaço estriado como no liso

existem pontos, linhas e superfícies”. No espaço liso “a linha é um vetor, uma

direção e não uma dimensão ou uma determinação métrica” (DELEUZE;

GUATTARI, 2008, p. 197). O liso é um espaço direcional, enquanto o estriado é

dimensional. O espaço estriado fecha-se em uma superfície, se reparte em

intervalos determinados e o espaço liso “distribui-se” num espaço aberto.

Os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari criaram o conceito de

ritornelo, que é visto por eles mesmos como uma de suas criações mais importantes.

Para eles o ritornelo era um movimento ligado à questão do território, ora indo em

direção a ele, ora se instalando nele, ora saindo dele. Estes três movimentos são

capitais na concepção do ritornelo e esta para a filosofia de Deleuze e Guattari: a

territorialização, a desterritorialização e a reterritorialização. Em um movimento, o

ritornelo sai do caos em busca de um território, de um agenciamento territorial; em

outro movimento se organiza e traça um território em torno do centro. No último

movimento se sai do agenciamento territorial, em direção a outros agenciamentos. O

ritornelo está sempre relacionado a um agenciamento territorial. O ritornelo “é a

repetição que demarca um território, mas que ao mesmo tempo traça-lhe suas linhas

de fuga” (FERRAZ, 1998, p. 27).

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Conceitos em torno do espaço e do tempo são sempre esclarecedores no

que se refere à movência dos signos em uma composição sonora. A dinâmica dos

significantes demonstra o quanto o texto sonoro é espacial. Espaços objetivos ou

subjetivos, realistas ou imaginários, podem ser pensados e colocados em

movimento no texto ficcional sonoro. Imaginemos um córrego, em uma

representação naturalista. Todas as curvas e declives podem ser simulados fazendo

o uso dos recursos computacionais descritos anteriormente. Podemos desenhar o

caminho feito pela água (Figura 20) e reproduzir a distância e o ritmo que for

pretendido.

Figura 20: Mobilidade espacial de um córrego

Uma outra situação pode ser forjada. Podemos sintetizar algum som não

identificável, isto é, não referencial, podem ser dadas qualidades de acordo com as

abstrações do compositor, como por exemplo, um som “aerado”, com uma textura

que passe a sensação de uma brisa ou ventania e colocá-lo em um lugar qualquer

que imaginemos, como um labirinto (Figura 21), estreito, alto, com características e

reverberações espaciais diversas, todas possíveis de simulação.

Figura 21: Labirinto sonoro

Com os mesmos recursos, podemos criar situações concretas ou abstratas.

Não só os espaços realistas, mas qualquer espaço, como cenário, como mundo, é

criado sempre considerando a verossimilhança, mesmo que alterado e distanciado

de uma situação mais referencial, essas alterações são contrapontos e tem o seu

ponto de partida em uma noção de similaridade.

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Em síntese, nas composições sonoras, as representações do espaço com

tendências naturalizantes são feitas a partir de objetos sonoros que apresentam

características físicas, concretas, para formar cenários, possíveis lugares de trânsito

dos sujeitos ficcionais. São representações mais objetivas, como por exemplo,

temos os espaços urbanos, florestas, etc. Sons do vento, do mar, dos animais, de

aparelhos eletrônicos, motores, vozes, comporão os cenários, as paisagens

sonoras, dando forma mais realista.

Por outro lado, as representações do espaço psicológico envolvem

atmosferas subjetivas, projeções vagas, de sensações, expectativas, vontades,

afetos dos personagens e narradores, desde sutis perturbações a delírios e até

crises existencialistas. Os efeitos mais subjetivos podem ser conseguidos utilizando

os mesmos objetos, no entanto serão necessários manejos através de recursos de

edição que modificarão os objetos, seja na velocidade, nas frequências,

modulações, mudanças de ambientações, demonstrando que a visão de quem narra

está perturbada, distorcida. Por exemplo, é muito comum em cenas

cinematográficas, quando algum personagem está pensando ou sonhando o som é

projetado com efeitos de ecos, reverberações, vozes se sobrepondo, alterações de

intensidade dos sons causando ondulações sonoras que podem provocar vertigens

no ouvinte etc.

Os espaços sociais e culturais podem ser indicados por referências que

indicam o meio social, econômico, ideológico e cultural em que as personagens

transitam. Os sons indicam as classes e grupos sociais das personagens através

das suas ideologias, costumes, valores, tradições e posição na sociedade.

A plástica sonora espacial será sempre resultada da capacidade de

descrição somada a visão imaginativa do compositor. Para a concepção

naturalizante do espaço, uma descrição concreta; para uma concepção psicológica

do espaço, uma descrição mais envolvida aos filtros emocionais, resultando em

audições vagas, confusas, delirantes etc. e para uma concepção idealizante do

espaço, uma descrição abstrata.

O compositor pode fazer uso de seus prismas perceptivos para buscar o

espaço. Nessa busca, as probabilidades de visões e planos são infindas, podendo

abarcar desde as lentes da fenomenologia espacial bachelardiana aos conceitos e

noções de duração bergsonianas (tempo) e as frames goffmanianas (espaço) entre

tantas.

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É por meio da feição do espaço que se atinge uma completude da obra, por

ser ele um recurso de contextualização da ação, pois os elementos de uma narrativa

estão conectados ao espaço e ao tempo. No texto, o recurso responsável por situar

o ouvinte/leitor no ponto de vista do autor/compositor/narrador/personagem é o

espaço. Este espaço apresentado propicia os tipos distintos de visão. A instância

narrativa se dá pela voz e pelo olhar do narrador. Na composição sonora, o narrador

pinta o espaço, mostra contando, conta mostrando. A percepção do espaço é

simultânea à narração. Em qualquer situação vivida, o espaço é uma presença

simultânea, assim, na arte o espaço é signo de simultaneidade, a passagem do

tempo se dá em todos os lugares. Para sentimos o tempo passar, precisamos estar

ocupando algum espaço.

A simultaneidade do espaço somada aos seus aspectos psicológicos e

sociais são índices significativos de ambientes de transito e lugares de

pertencimento dos personagens da narrativa.

5.3.3 Personagens

Os espaços psicológicos e sociais podem trazer indícios do modo de viver,

dos costumes e hábitos ou do modo como cada personagem experiência um espaço

específico físico. O modo de representar com a arte sonora está ligado ao modo de

escuta. São diversas as relações de personagens com o espaço. É o ponto de vista

de cada personagem ante um espaço que vai ser mostrado. Os sons pertencentes a

estes espaços indicam as classes sociais das personagens, as crenças, rotinas,

mentalidade, tradições etc.

A criação do espaço e do tempo narrativo, combinando cena e sumário,

distinguidos por Lubbock (LEITE, 1991, p.15), formando uma pintura dos

acontecimentos, quando a narrativa, geralmente em estilo indireto livre, se confunde

com a narrativa a partir da mente de uma personagem traduzindo a “realidade” com

maior ou menor interferência, que determina o foco narrativo, o ponto de vista,

adequando ao efeito buscado, funcionando como uma espécie de espelho refletor

das idéias do autor.

Georg Lukács desconfia do método descritivo para representar o homem,

entendendo que esse método “se compromete em uma vã competição com as artes

figurativas” alegando: “Aplicado à representação do homem, o método descritivo só

pode transformar o homem em natureza morta” (LUKÁCS, 1965, p. 74).

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Exemplos da presença direta de uma personagem podem ser verificados

quando há sons que indicam ação, que mostram a presença de alguém, seja

andando, falando ou executando alguma atividade.

Cabe, neste momento, resgatar mais um pensamento de Potebnia: “a

imagem é um predicado constante para sujeitos variáveis”, citada por Chklovski

(CHKLOVSKI, 1976, p. 40). Sob este aspecto, as imagens sonoras que representam

personagens nem sempre são identificáveis e isto é mais uma questão de critérios e

escolhas do compositor do que falta de recursos ou capacidade da linguagem.

O personagem narrador pode ser notado quando há alguma alteração de

consciência. Ex: Na peça se ouve sons de cavalos em cavalgada, logo esses sons

se alteram e reproduzidos lentamente, sugerindo uma imagem executada em slow

motion (câmera lenta)114 Este efeito indica uma alteração mental de quem narra.

Outra forma que denota variação no estado de consciência do narrador-personagem

pode ser conseguida aplicando o efeito de delay (eco), causando repetições ou

reverber (reverberação), simulando outros ambientes, indicando que o narrador-

personagem experimenta estados oníricos ou de loucura, embriaguês etc.

5.3.4 Narrador

Este assunto é de suma importância para o estudo de uma composição

sonora, visto que é o que aproxima a compreensão do ato de composição, pois

sendo o compositor o próprio autor, resta posicionar-se e criar sua estratégia de

narração. Para narrar não basta dispor os objetos sonoros em contiguidade e por

suas naturezas sígnicas. Outro elemento importante em narrativas é a perspectiva

pela qual o narrador narra os acontecimentos da trama. Através dela é possível se

medir o distanciamento que o narrador mantém daquilo que está contando, isto é, o

quanto o discurso é direto ou indireto. Então, como narrar? Quem é o narrador? De

que ângulo fala o narrador? Qual a distância que ele mantém entre o ouvinte (leitor)

e a narrativa. De modo algum estaria nas ambições deste trabalho sequer arranhar

estes questionamentos que atravessaram o século XX e ainda representam desafios

114 Câmera lenta é o efeito especial de cinema e vídeo em que os movimentos e ações são vistos numa duração maior do que a normal, dando a sensação de que o tempo está passando mais devagar. Este efeito cinematográfico sempre é aplicado à imagem/som, que faz com que o tempo lento tenha o efeito sonoro com características mais graves. Quando o efeito é oposto, ou seja, a câmera acelerada, faz com que o som se apresenta com características mais agudas.

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enormes aos estudiosos da narrativa. No entanto não posso me privar de comentar

que estudar tais temas focando o objeto sonoro é um modo de ampliar o

entendimento tanto do objeto quanto da teoria. Desde os problemas de transição

entre a velha forma de contar histórias e os modos romancistas de vanguarda

apontados por Benjamin e Adorno, até os questionamentos mais modernos, como

os prefácios de Henry James, relacionados aos pontos de vista do narrador, são

apontamentos teóricos aplicáveis em processos de criação sonora narrativa bem

como na análise de tais gêneros.

A grande importância do narrador está na narração como comunicação, ou

seja, a narrativa é um objeto de comunicação, portanto se há narrativa, se

pressupõe que de um lado está o narrador, do outro o ouvinte ou leitor. Daí, a

importância dos códigos. Segundo Barthes:

Os signos do narrador parecem à primeira vista mais visíveis e mais numerosos que os signos do leitor (uma narrativa diz mais frequentemente eu que tu); na realidade, os segundos são simplesmente mais disfarçados que os primeiros; assim, cada vez que o narrador, cessando de ‘representar’, relaciona fatos que conhece perfeitamente mas que o leitor ignora, produz-se, por carência significante, um signo de leitura, porque não teria sentido que o narrador desse a si mesmo uma informação [...] isto é um signo do leitor, próximo do que Jakobson chama de função conativa da comunicação. (BARTHES, 1972, p. 47)

Roland Barthes fala de três concepções que apontam quem é o doador da

narrativa: na primeira, a narrativa é emitida por uma pessoa, por um autor. Nesta

concepção a narrativa “não é mais que a expressão de um eu que lhe é exterior”. Na

segunda concepção o narrador tem uma consciência total, “aparentemente

impessoal” e conta a história de uma posição privilegiada, de um “ponto de vista

superior, o de Deus”, sabe tudo o que se passa com os personagens e, na terceira

concepção, o narrador limita sua narrativa “ao que podem observar ou saber os

personagens”. Barthes considera essas concepções constrangedoras por serem

“realistas”, “como se a narrativa se determinasse originalmente em seu nível

referencial” (BARTHES, 1972, p. 48).

Ora, ao menos em nosso ponto de vista, narrador e personagens são essencialmente ‘seres de papel’; o autor (material) de uma narrativa não se pode confundir em nada com o narrador desta narrativa; os signos do narrador são imanentes à narrativa, e por conseguinte perfeitamente acessíveis a uma análise semiológica; mas para decidir que o próprio autor (que se mostre, se esconda ou se

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162

apague) disponha de ‘signos’ com os quais salpicaria sua obra, é necessário supor entre a ‘pessoa’ e sua linguagem uma relação signalética que faz do autor um sujeito pleno e da narrativa a expressão instrumental desta plenitude: a isto a análise estrutural não se pode resolver: quem fala (na narrativa) não é quem escreve (na vida) e quem escreve não é quem é. (BARTHES, 1972, p. 48-9)

Como exemplo, usarei duas teorias para a compreensão desta questão. A

primeira é a teoria do foco narrativo, baseada em prefácios de Henry James e

análises de Percy Lubbock; a segunda se baseia no texto O ponto de vista na ficção,

de Norman Friedman. Ligia Chiappini Moraes Leite, em seu livro O foco narrativo

(1991), comenta que James defendia um “ponto vista único” e tinha antipatia pelas

“interferências que comentam e julgam, pelas digressões que desviam o leitor da

história”.

E tudo em nome da VEROSSIMILHANÇA, como é também em seu nome que ele ataca a NARRATIVA em primeira pessoa. O ideal, para James, e que passa a ser o ideal para muitos teóricos a partir dele, é a presença discreta de um narrador que, por meio do contar e do mostrar equilibrados, possa dar a impressão ao leitor de que a história se conta a si própria, de preferência, alojando-se na mente de uma personagem que faça o papel de REFLETOR de suas idéias. Uma espécie de centro organizador da percepção, que tenha uma rica sensibilidade, uma inteligência penetrante, para a expressão da qual têm de ser trabalhados coerentemente os outros elementos da narrativa: da linguagem ao ambiente em que se movimentam as personagens. (LEITE, 1991, p. 13)

Segundo a autora, da mesma maneira que Henry James, Lubbock também

condenava as interferências do narrador e só considerava “arte de ficção” as

narrativas que não cometiam essa indiscrição. Para Lubbock, a “distinção entre

narrar (telling) e mostrar (showing)” tinham a ver com a “intervenção ou não do

narrador”.

Quanto mais este intervém, mais ele conta e menos mostra. Por outro lado, completa essa dupla (narrar e mostrar) a oposição CENA e SUMÁRIO (PANORAMA). Na CENA, os acontecimentos são mostrados ao leitor, diretamente, sem a mediação de um NARRADOR que, ao contrário, no SUMÁRIO, os conta e os resume; condensa-os, passando por cima dos detalhes e, às vezes, sumariando em poucas páginas um longo tempo da HISTÓRIA. (LEITE, 1991, p. 14)

Lubbock não defendia “diretamente uma dessas possibilidades, justificando

a sua escolha pela adequação da forma ao tema e ao efeito que se busque” (LEITE,

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1991, p. 15). Leite explica que, depois de Lubbock surgiram muitos teóricos

dedicados a questão do narrador, como Wayne Booth. Para ele “o autor não

desaparece, mas se mascara constantemente, atrás de uma personagem ou de uma

voz narrativa que o representa”. Leite tece o seguinte comentário:

A ele devemos a categoria do AUTOR IMPLÍCITO, extremamente útil para dar conta do eterno recuo do narrador e do jogo de máscaras que se trava entre os vários níveis da narração. (LEITE, 1991, p. 18)

Leite fala também das “visões” de Jean Pouillon (LEITE, 1991, p. 19), que

em seu livro O tempo no romance, “procura adaptar uma visão fenomenológica do

mundo, inspirada em Sartre, a uma teoria das visões na narrativa, articulada à

questão do tempo”. Para ele, haveria três possibilidades na relação narrador-

personagem: a VISÃO COM, a VISÃO POR TRÁS e a VISÃO DE FORA.

Na VISÃO POR TRÁS, O narrador domina todo um saber sobre a vida da personagem e sobre o seu destino. É onisciente, poderíamos dizer. Sabe de onde parte e para onde se dirige, na narração, o que pensam, fazem e dizem as personagens; uma espécie de Deus, ou demiurgo que lhes tolhe a liberdade. [...] Na VISÃO COM, o NARRADOR limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos. Renunciando à visão de um Deus que tudo sabe e tudo vê (e a quem, fatalisticamente, se submete o destino dos seres ficcionais, como o destino dos seres reais para a visão cristã), assume-se aqui a plena liberdade da criatura jogada no mundo, capaz de, sartrianamente, assumir o nada para ser. [...] a VISÃO DE FORA, em que se renuncia até mesmo ao saber que a personagem tem, e o narrador limita-se a descrever os acontecimentos, falando do exterior, sem que possamos nos adentrar nos pensamentos, emoções, intenções ou interpretações das personagens. (LEITE, 1991, p. 19-21)

Norman Friedman retoma essas ideias dos diversos críticos literários sobre o

foco narrativo e o desaparecimento do autor no século XX. Para ele, o ponto de vista

na ficção é a tensão fundamental da literatura: Mostrar ou contar. Ele compara a

literatura com outras artes, destacando o grau de dificuldade em mostrar e contar de

cada arte:

A arte da literatura, por oposição às outras artes, é, em virtude de seu médium verbal, a um só tempo amaldiçoada e abençoada com uma capacidade fatal de falar. Seus vícios são os defeitos de suas virtudes: de um lado, sua amplitude e profundidade de significação excedem grandemente o escopo da pintura, da música ou da escultura; de outro, sua aptidão para projetar as qualidades sensoriais de pessoas, lugares e eventos é menor

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na mesma medida. Pode-se expressar mais ideias e atitudes, apresenta imagens qualitativamente mais débeis. Basta ao pintor servir-se de sua paleta para obter a nuança certa no local certo; mas o escritor fica continuamente abalado entre a dificuldade de mostrar o que uma coisa é e a facilidade de dizer como se sente a respeito dela. O escultor pode apenas mostrar; o músico, excluindo-se a música programática, não pode nunca narrar. (FRIEDMAN, 2002, p. 168)

Cabe aqui localizar a arte sonora dentro do contexto apresentado por

Friedman. O estudo dos objetos sonoros como elementos de textos sonoros

baseados em estruturas literárias nos faz compreender que se trata de uma

linguagem intermediária. A condição diegética do objeto sonoro o situa entre as duas

artes: literatura e música. A linguagem sonora não musical não tem a mesma

dificuldade encontrada na linguagem literária, muito menos na linguagem musical,

em projetar qualidades sensoriais, isto é, de mostrar o que uma coisa é. A

capacidade da composição sonora em apresentar imagens é comparável com a da

pintura, considerando que ambas omitem aspectos sensoriais e só projetam

imagens concernentes ao modo de percepção a que se equivalem. Ao mesmo

tempo, sua dificuldade em descrever o que se sente é maior que na literatura e na

música. É importante esclarecer que o que está sendo exposto só funciona em

relação às inferências e não às exposições fenomenológicas, só atinge a imagem e

não a ideia.

Para aprofundar mais um pouco o entendimento da capacidade de contar e

mostrar em relação aos objetos sonoros, considerando o que foi ponderado

anteriormente quanto ao fato desta linguagem estar situada entre a música e a

literatura e não ter amparo teórico para esta questão, farei alguns paralelos entre

duas teorias: uma literária, sobre o ponto de vista na ficção, de Friedman; e outra

teoria da música, que trata das funções diegéticas da música usada no cinema, de

Claudia Gorbman.

Começarei pelas definições de Gorbman (1987), que separou em três

categorias a música que se utiliza no cinema, segundo a sua relação com o espaço

e tempo da narrativa: música diegética, música não diegética e música meta

diegética. Para isso, Gorbman se apoiou nas definições de diegesis de Gérard

Genette e Étienne Souriau, definindo então diegesis como “mundo espaço-temporal

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narrativamente implícito das ações e personagens” (GORBMAN, 1987, p. 21).

Falemos, então, sobre as categorias:

• Música diegética - é a que faz parte do contexto ficcional, é tocada por uma fonte real no filme (em um bar, alguém cantando ou o som mecânico de alguma música). É uma música que poderia ser percebida pelas personagens.

• Música não diegética – é a que não faz parte do contexto ficcional, é aquela que toca "fora" do acontecimento, que acompanha a cena do filme (a música que toca quando surge o herói, como o Batman, Zorro etc.). Só quem assiste sabe da música, as personagens desconhecem-na.

• Música meta diegética - é aquela que se refere ao que se passa no pensamento ou nas emoções de um personagem. A música usada pode indicar o estado psíquico de algum personagem, nos permitindo "ler" os seus pensamentos.

Ajustando estas concepções ao objeto sonoro (que inclui o musical),

podemos falar em sons diegéticos, não diegéticos e meta diegéticos. Os sons

diegéticos são todos os sons que pertencem ao ambiente ficcional, ao lugar dos

acontecimentos (vozes, sino de uma igreja, apito de fábrica, sirene de um carro

policial, mugido de um boi, trovão etc.); enquanto os não diegéticos são sons que

não pertencem ao evento ficcional, mas é usado para dar algum reforço ou efeito,

como alguns sons engraçados que geralmente são associados a cenas também

engraçadas em filmes e animações. Por exemplo, sons que dão mais graça a um

tombo de um personagem, sons que são usados para socos e pontapés,

escorregões, como os sons em comédias que acompanham as “bolas foras”, os

“micos”. O drama e o suspense também tem o seu repertório sonoro usado para se

alcançar efeitos. A música também é parte desse repertório, não se pode esquecer,

música é som, quando separamos música e som é simplesmente para efeito

didático. Os sons meta diegéticos são os que estão ligados ao espaço psicológico

dos personagens, como as vozes da consciência (geralmente representadas em

animações por um anjinho e um diabinho) ou quando o personagem escuta a “voz

de Deus”, músicas que indicam algum sentimento do personagem, enfim, sons que

estão relacionados ao que pensa, sente ou imagina o personagem. Essas

concepções já satisfazem e já podemos consultar a teoria do ponto de vista ficcional.

Friedman entende que o grande conflito entre mostrar e contar está

diretamente relacionado ao grau de interferência autoral, ou seja, quanto mais o

autor aparece, mais ele conta e, quanto menos ele interfere, mais ele mostra. O

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estudo do ponto de vista, segundo Friedman, oferece o “modus operandi para

distinguir os possíveis graus de extinção autoral na arte narrativa)” (FRIEDMAN,

2002, p. 169).

Segundo Leite, Norman Friedman tentou sintetizar as diversas teorias dos

críticos mencionados antes, para chegar a uma “tipologia mais sistemática, e, ao

mesmo tempo, mais completa” (LEITE, 1991, p. 25), levantando questões a serem

perguntadas: Se há alguém narrando, quem é? De que posição ou ângulo conta a

história? Que canais de informação usa para comunicar a história e a que distância

ele coloca o leitor da história? Sobre estas questões, diz Friedman:

E, ademais, já que nossa principal distinção é entre “contar” e “mostrar”, a sequência de nossas respostas deveria proceder gradualmente de um extremo a outro: da afirmação à inferência, da exposição à apresentação, da narrativa ao drama, do explícito ao implícito, da ideia a imagem. (FRIEDMAN, 2002, p. 172)

Para se chegar do geral para o particular, Friedman define concretamente a

sua principal distinção: “sumário narrativo (contar) versus cena imediata (mostrar)”.

Friedman forneceu elementos para responder a estas questões especificando

categorias de narrador, no entanto, a forma como serão apresentados a seguir

sofreu ajustes, inclusive alguns baseados nos conceitos de sons diegéticos, mas

sem prejuízos, para se adequar ao entendimento de uma composição sonora, mas o

foco principal é marcar o percurso entre a subjetividade e a objetividade; quanto

mais subjetivo, mais o autor aparece, mais ele conta, quando mais objetivo, menos

interferência do autor/narrador, mais ele mostra:

• Autor Onisciente Intruso – o foco deste tipo é amplo, total. Onisciência

neste contexto significa um ponto de vista totalmente ilimitado. No texto

encontram-se sinais de uma visão que somente o autor poderia ter, ou seja,

isso indicia a sua presença. O autor onisciente pode focar o lugar dos eventos

de qualquer ponto no espaço e no tempo. O sumário narrativo cobre qualquer

extensão ou para além do tempo e espaço. Esse é o tempo-espaço da

subjetividade, que pode graduar, degradar etc. A intromissão do autor esta na

administração de sons não diegéticos e meta diegéticos.

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• Narrador Onisciente Neutro – Este ponto de vista se alcança dando um

passo em direção à objetivação. O autor passa o bastão para o narrador. O

narrador é onisciente, mas evita se expor. As características são as mesmas

do AUTOR ONISCIENTE INTRUSO, se distinguindo pela ausência de

intromissões autorais diretas.

• “Eu” como testemunha – o passo que o narrador dá é o de entrar na

estória. O NARRADOR-TESTEMUNHA é um personagem, dentro da estória,

mais ou menos envolvido na ação, mais ou menos familiarizado com os

personagens principais, como personagem secundária que pode observar,

desde dentro, os acontecimentos. O autor escolhe deixar o personagem

contar ao leitor/ouvinte aquilo que ele, como observador, poderia descobrir,

como explica Friedman:

Assim como declinou comentários pessoais ao mover-se do Autor Onisciente Intruso para o Narrador Onisciente Neutro, ao mover-se para a categoria “Eu” como Testemunha, ele entrega completamente seu trabalho ao outro. (FRIEDMAN, 2002, p. 175)

Mais um passo é dado quando o narrador transfere a responsabilidade da

narrativa para um dos personagens principais, que é o NARRADOR, personagem

central.

• Narrador protagonista – Com a transferência da narrativa, isso implica em

alguns pontos de vantagem perdidos devido ao papel subordinado na estória.

Aí desaparece a onisciência. Ele narra de um centro fixo, limitado quase que

exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos.

• Onisciência seletiva múltipla – Aqui se chega a eliminação do autor. Neste

caso, o leitor “escuta a ninguém” e “a estória vem diretamente das mentes

dos personagens”. Segundo Friedman:

“O próximo passo em direção à objetivação do material da estória é a eliminação não somente do autor, que desaparece com o espectro do ‘Eu’ como Testemunha, como também de qualquer espécie de narrador.” (FRIEDMAN, 2002, p. 177)

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Portanto, sem autor e sem narrador, sem sons não diegéticos ou meta

diegéticos. Até este ponto, o autor e, depois, o narrador administravam os sons extra

diegéticos. Os sons a serem ouvidos são os mesmos sons que estão se

apresentando aos personagens. A partir deste ponto os sons são mais realistas, os

signos mais referenciais. A tendência é ir na direção da cena, diferenciando-se

essencialmente em relação à onisciência normal por transmitir “pensamentos,

percepções e sentimentos” à medida que eles passam através da mente (cena), “ao

passo que o outro os sumariza e explica depois que ocorrem (narrativa)”

(FRIEDMAN, 1987, p. 177).

• Onisciência seletiva – No afunilamento focal, aqui o leitor/ouvinte fica

limitado à mente de apenas um dos personagens, e não sendo mais permitida

uma composição de diversos ângulos. Como estamos tratando de audição,

devemos compreender que diferentemente da visão, que precisamos estar de

frente e direcionar o olhar para ver, a audição é ampla, percebemos os sons

vindos de todos os lados, ângulos e distâncias. Neste caso, os focos são

simulações de distâncias entre os objetos e não um olhar artístico.

• O modo dramático – Já eliminados os pontos de vista do autor, do narrador

e do personagem, são eliminados os estados mentais e as informações

limitam-se ao que os personagens falam e fazem, sem maiores

detalhamentos. Não se sabe o que eles percebem e pensam, só se ouvem os

seus diálogos e o leitor não ouve ninguém senão os próprios personagens.

• A câmera – Para Friedman, este “parece ser o último em matéria de exclusão

autoral”. Neste ponto de vista o objetivo é “transmitir, sem seleção ou

organização aparente um ‘pedaço da vida’ da maneira como ela aparece”

(FRIEDMAN, 1987, p. 179). Assim é uma câmera, apenas faz um recorte da

paisagem sonora, de forma realista, apenas flashes da realidade.

Para Norman Friedman, a escolha do mesmo ao se escrever ficção é, no

mínimo, tão crucial quanto à escolha da forma do verso ao se compor um poema; e

da mesma forma como há coisas que não se consegue que sejam ditas em um

soneto, cada uma das categorias detalhadas por ele possuem amplitude provável de

funções que consegue desenvolver dentro de seus limites e cada tipo de estória

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requer o estabelecimento de um tipo particular de ilusão que a sustente

(FRIEDMAN, 1987, p. 180).

Vimos aqui que o foco vai se estreitando, a cada passo o narrador vai

perdendo a onisciência e o enquadramento que é passado ao leitor/ouvinte vai

ficando mais recortado. A partir daí, dá-se o desaparecimento manhoso do narrador,

na medida em que se deseja. Qualquer efeito utilizado pelo autor muda o foco

narrativo, ou qualquer ponto de vista do narrador exige um conhecimento técnico do

compositor quanto aos recursos a serem utilizados para proporcionar o efeito

auditivo correspondente à intenção narrativa, pois quem conta na mesma medida se

mostra; e quem mostra, em medida oposta, não se leva em conta.

Para ilustrar essas questões, mostro um exemplo de ponto de vista do

narrador: um compositor poderia criar uma paisagem sonora contendo relógios. Para

isto, poderia utilizar sons de relógios, como o clássico tic-tac, em posições

diferentes, controlando as espacialidades. Isto seria uma descrição realista, a partir

de um foco narrativo de um narrador-observador câmera. Nesta cena não se detecta

a presença de nenhuma personagem. Agora, imaginemos o compositor aplicando

alguns recursos (efeitos e filtros) nas pistas dos relógios da mesma peça sonora,

fazendo com que o tic-tac soasse como um tlic-tlac lento, sugerindo a imagem de

relógios derretendo ou amolecidos, como o quadro A persistência da memória115

(figura 22), de Salvador Dali116, com seus relógios moles. Esta imagem seria uma

descrição a partir do ponto de vista de um narrador-observador oniciente, no caso de

uma narrativa realista, pois o panorama criado não pode ser considerado como uma

descrição realista. O olhar de quem descreveu a imagem, seja o narrador ou uma

personagem, é um olhar delirante, irreal, neste caso específico, surreal. Esse olhar

delirante retrata um ponto de vista típico na poesia ou na narrativa fantástica.

115 A Persistência da Memória é uma pintura de 1931 de Salvador Dalí. A pintura está localizada na coleção do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque. 116 Salvador Domingo Felipe Jacinto Dali i Domènech, 1º Marquês de Dalí de Púbol (1904 —1989), conhecido apenas como Salvador Dalí, foi um importante pintor surrealista italiano.

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Figura 22: A persistência da memória, de Salvador Dali117

Estas alterações ou contrapontos podem ser consideradas intromissões do

autor/narrador. Ao narrador cabe mostrar e contar, compondo um quadro

harmonioso. Fazendo uma analogia com a linguagem musical, uma narrativa sonora

desacompanhada da descrição sonora seria como um solo melódico à capela, isto é,

sem acompanhamento harmônico.

Como dissemos anteriormente, os elementos de uma narrativa estão ligados

ao espaço e ao tempo. O espaço apresentado é o espaço pré-visto pelo narrador ou

por algum personagem. Os planos espaciais se destacam porque o narrador joga luz

em determinados pontos que os seus procedimentos artísticos indicam. O narrador é

quem pinta o espaço. O compositor, por meio da narração faz conduções, atrai,

arrasta, desloca, direciona, guia o ouvinte para lugares sob tempos psicológicos

variáveis, podendo oferecer alternativas de fugas e acomodações. Os signos

sonoros são senhas para a experiência, que pode ocorrer sob quaisquer condições

fenomenológicas, permitindo ao ouvinte deslizar entre visões fenomenológicas e

semantizadas.

Para um compositor, a descrição em um texto sonoro pode ser um recurso

lúdico, um sofisma de distração (por que não?), uma sedução para a evasão que

pode levar a algum lugar ou simplesmente levar o ouvinte a um beco sem saída (os

lugares precisam acertar?). O movimento espaço-temporal pode nos levar a uma

charada, a um enigma, a um labirinto, a um koan.

5.4 Descrição

117 Disponível no site do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque. Consulta feita em 11/09/2013. In http://www.moma.org/collection/browse_results.php?object_id=79018

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Segundo Philippe Hamon (1972, s/n) a descrição é um “lugar privilegiado,

onde se organiza (ou se destrói) a legibilidade de toda a narrativa”, é o “lugar em

que a narrativa marca uma pausa ao mesmo tempo que se organiza”.

[...] a descrição será o lugar onde a narrativa se interrompe, onde se suspende, mas, igualmente, o espaço onde se armazena a informação, onde se condensa e se redobra, onde personagens e cenário, por uma espécie de ginástica semântica, entram em redundância; o cenário confirma, precisa ou revela a personagem como feixe de traços significativos simultâneos, ou, então, introduz um anúncio para o desenrolar da ação. (HAMON, 1972, s/n)

Hamon vê a descrição como complemento, como expansão da narrativa. O

que é a descrição? No que se difere da narração? As noções de descrição devem

ser acompanhadas de outras reflexões relacionadas ao papel ou à função da

descrição em obras artísticas. Comecemos a especular a descrição naquilo em que

ela provoca mais polêmica: no equilíbrio entre o seu virtuosismo e a sua

necessidade. Qual é a medida de descrição que faz a distinção entre o supérfluo e o

necessário? Até que ponto uma descrição acresce em significações uma obra? O

bom ou o mau emprego deste ingrediente em uma narrativa pode dar vivacidade a

obra ou torná-la tediosa, enfadonha, ruidosa.

Georg Lukács (1965) tem um posicionamento mais rigoroso quanto à

narração e descrição. Está bem clara a sua posição na sua afirmação: “a narração

distingue e ordena. A descrição nivela todas as coisas” (LUKÁCS, 1965, p. 62).

Enquanto faz elogios a Tolstoi, em seu romance Karenina ao dizer que “Tolstoi não

descreve uma ‘coisa’: narra acontecimentos humanos” (LUKÁCS, 1965, p. 45), faz

também críticas a Zola, em seu romance Naná, pela descrição minuciosa que,

apesar de todo o seu virtuosismo literário, não passa de “uma digressão dentro do

conjunto do romance”, pois os acontecimentos são “debilmente ligados ao entrecho

e poderiam facilmente se suprimidos” (LUKÁCS, 1965, p. 44).

Lukács implica com a tendência naturalista e argumenta que a descrição ter

passado a ser um método dominante da composição épica se deu em um período

em que se perdeu “a sensibilidade para os momentos essenciais da literatura épica”.

Afirma ainda que a descrição servia para “encobrir a carência de significação épica”,

e que esta era uma relação de causa e conseqüência. Segundo Lukács:

O predomínio da descrição não é apenas efeito, mas também se torna causa: causa de um afastamento ainda maior da literatura em

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relação ao significado épico. A tirania da prosa do capitalismo sobre a íntima poesia da experiência humana, a crueldade da vida social, o rebaixamento do nível de humanidade são fatos objetivos que acompanham o desenvolvimento do capitalismo e desse desenvolvimento decorre necessariamente o método descritivo. (LUKÁCS, 1965, p. 61)

Para Lukács, o que se descreve? Descrevem-se “situações estáticas,

imóveis”, “estados de alma dos homens ou estado de fato das coisas” ou “naturezas

mortas” (LUKÁCS, 1965, p. 65-66). Por esta perspectiva, se a descrição de um

estado de ânimo de uma personagem ou a descrição de um cenário ou de coisas

não estiver conectada essencialmente às ações narradas, será irrelevante, sem

propósito narrativo. Assim, conforme Lukács:

De qualquer modo, o fato de se perder a ligação (própria da narração) entre as coisas e a função que elas assumem em concretos acontecimentos humanos implica na perda de significação artística das coisas. (LUKÁCS, 1965, p. 66)

A descrição é o aspecto da literatura que mais se aproxima das artes

visuais. A descrição em uma composição sonora tem uma proximidade maior ainda.

Como já dissemos, muitos conceitos das artes visuais são assimilados pelas

técnicas e procedimentos composicionais. Uma composição descritiva não se faz

apenas com a matéria sonora referencial, ou seja, não basta para o compositor ter

disponibilidade de samplers, por exemplo, de sons naturais como o latido de um

cachorro, o cricrilar de um grilo, o som do vento etc. É necessário posicionar esses

elementos no espaço, fazer enquadramentos, ter uma visão panorâmica, enfim,

pintar a imagem, constituir a paisagem, criar a atmosfera a partir de noções de

espacialidade, perspectiva, profundidade etc., para estabelecer as camadas, os

planos. Descrever por imagens, não de uma natureza morta, mas em movimento,

pintar quadros de movência, como uma verdadeira écfrase sonora.

Nos tratados antigos de retórica e poética, encontram-se uma figura de

retórica de descrição conhecida como écfrase, cujo termo grego é ékphrasis,

equivalendo à descrição latina, descriptio, que associada ao ut pictura poesis118

expressado por Horácio (2008, 55)119 sempre motivaram discussões sobre as

118 Expressão usada por Horácio na sua Arte Poética, que significa “como a pintura, é a poesia”. 119 HORACIO FLACO, Quinto. El arte poetica de Horacio, Ó Epístola a los Pisones. traducida en verso castellano por D. Tomas de Yriarte. Madrid, en la Imp. Real, 1777. Reproducción digital de 2008 a partir de la edición de Colección de Obras en verso y prosa de D. Tomás de Yriarte. Tomo IV, Madrid, en la Imp. Real,

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qualidades visuais que são próprias da pintura comparadas às qualidades da

oratória e do discurso. A écfrase é um meio de descrever, de retratar, de produzir um

“quadro verbal” de um objeto, de um lugar, de uma personagem.

Se aplicarmos o conceito de écfrase ao objeto sonoro temos a écfrase

sonora, que é uma pretensiosa representação sonora de uma representação visual.

Uma paisagem sonora, uma escultura sonora, são descrições, são mostrações, para

que o receptor (ouvinte) as assistam, as observem. Não se trata de substituir ou

traduzir um suposto lugar ou objeto original, mas de construir um novo lugar, um

novo objeto.

Compor é desenhar um lugar, preestabelecer o que tem por lá, pôr algumas pedras, umas passagens, umas saídas, criar umas ranhuras que possam, quem sabe, atrapalhar uma visão que era clara. E este é o plano de composição pelo qual se passeia. (FERRAZ, 2005, p. 97)

O artista do som, ao descrever um espaço, ao constituir a imagem sonora da

paisagem imaginada não tem o domínio de garantir que o receptor a perceba como

ele deseja, pois isto está na dependência do modo de escuta, da imersão do

ouvinte, no entanto, cabe ao artista imprimir o seu “ponto de vista”, pois a arte se

distingue da natureza. Por seus procedimentos, o artista aponta, focaliza, ilumina,

destaca determinados pontos, de acordo com o plano e a perspectiva idealizados.

Este enfoque do compositor irá definir o caráter da descrição, se é simplesmente

referencial ou se está sob a lente da poeticidade, se é fato ou se é poesia.

5.5 Poesia

Eu ouço você dizer: "Isso tudo não é fato; é poesia." Bobagem!

A má poesia é falsa, eu suponho; mas nada é mais verdadeiro

do que a verdadeira poesia. 120

Charles Peirce

A forma poética de pensar não é lógica, é analógica, baseia-se nas simetrias

e assimetrias. Como regras que condicionam as associações de um objeto sonoro a 1777, pp. LXV, 1-124. Localización: Biblioteca Nacional (España). Disponível em http://www.traduccionliteraria.org/biblib/H/H101.pdf. Acesso: 21.10.13 120 (CP, 2.315.)

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outros temos a analogia das semelhanças, em que se verificam identificações e

afinidades, mas pode se associar por meio da analogia dos contrários, por

antagonismo, por repulsão, com objetos opostos, antitéticos, que provocam o efeito

estético do dualismo, muito comum em textos poéticos, que conduz ao

estranhamento provocado pela sensação antagônica ou paradoxal. A poesia se faz

pelo desvio da lógica contígua, criando lógicas, criando enigmas para serem

decifrados.

Da mesma maneira como ficou compreendido que as noções de texto se

estendem para outras linguagens, podemos entender que esta lógica se aplica à

noção de obra de gênero literário, no caso, a poesia. Processos criativos

relacionados à arte verbal são aplicáveis a outras artes. Temos, nesta parte deste

trabalho, a pretensão de mostrar o potencial do objeto sonoro submetido aos

procedimentos poéticos em composições sonoras.

É evidente que muitos dos procedimentos estudados pela Poética não se confinam à arte verbal. Podemos reportar-nos à possibilidade de converter O Morro dos Ventos Uivantes em filme, as lendas medievais em afrescos e miniaturas, ou L’aprés-midi d’un faune em música, balé, ou arte gráfica. Por mais irrisória que possa parecer a idéia da Ilíada e da Odisséia transformadas em histórias em quadrinhos, certos traços estruturais de seu enredo são preservados, malgrado o desaparecimento de sua configuração verbal. O fato de discutir-se se as ilustrações de Blake para a Divina Comedia são ou não adequadas, é prova de que as diferentes artes são comparáveis. (JAKOBSON, 2003, p. 119)

A citação acima, de Roman Jakobson, trata da potencialidade de conversão,

de tradução intersemiótica. O que estamos tratando é da possibilidade de se gerar

textos sonoros, a partir de uma ideia, de um pensamento original e não de se

transcrever um texto verbal para outro sistema sígnico, baseando-se em

comparações e associações. Neste aspecto, temos também um respaldo em

Jakobson:

Em suma, numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas a toda a teoria dos signos, vale dizer, à Semiótica geral. Esta afirmativa, contudo, é válida tanto para a arte verbal como para todas as variedades de linguagem, de vez que a linguagem compartilha muitas propriedades com alguns outros sistemas de signos ou mesmo com todos eles (traços pansemióticos). (JAKOBSON, 2003, p. 119)

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Jakobson afirma que a poesia é um “fenômeno universal, exatamente como

a linguagem”. Diz ainda que ela “é o domínio mais criador da linguagem” e que a sua

questão fundamental está “nas relações entre som e sentido” (JAKOBSON, 1973, p.

5-6).

Antônio Cândido (1996, p. 9) escala como fundamentos do poema: a

sonoridade; o ritmo; o metro e o verso. Destes, vamos nos deter no verso e na

sonoridade, mais precisamente no seu recurso mais usado para se obter efeitos

especiais de sonoridade no verso; a rima.

O que diz Jakobson, considerado por Haroldo de Campos como “o poeta da

linguística”, sobre rimas e versos? O meu interesse por estudar estes aspectos da

poesia se dão pelo fato de que terei que deixar o mais claro possível a relação deste

gênero com os objetos sonoros e para iniciar um estudo como este o melhor é,

seguindo o conselho do próprio “poeta da linguística”: “começar pelos polos”

(JAKOBSON, 1973, p. 6) e não se ocupar das “formas transitivas”, mistas, híbridas,

isto é, sem rima, sem métrica, sem verso, como o poema em prosa do Romantismo.

Vamos começar por estudar o verso. Aqui também é prudente manter o

conselho de Jakobson, que se harmoniza com a conclusão a que chegou

Tomachevski, citado por Lotman:

Será mais natural e mais fecundo estudar o verso e a prosa não como dois domínios de fronteiras sólidas, mais como dois pólos, dois centros de atracção em volta dos quais se dispõem historicamente fatos reais [...] É legítimo falar de fenômenos mais ou menos prosaicos, mais ou menos versificados. (TOMACHEVSKI apud LOTMAN, 1978, p. 183)

Fazer a distinção entre verso e prosa como polos é necessário para o

estudo da poesia, como uma forma mais típica. É mais propício para se chegar às

questões fundamentais, pois é sempre injusto se estabelecer fronteiras entre

conceitos. Mais importante em um texto é identificar as “marcas distintas do verso e

da prosa” (LOTMAN, 1978, p. 183).

Versus (verso) “quer dizer ‘retorno’, um discurso que comporta regressos”.

No verso encontramos todas as unidades linguísticas. “De onde vem a importância

da repetição”? [...] “a repetição desempenha um papel de que estamos conscientes”.

“Projeta-se na linguagem poética o princípio da equivalência na sequência”

(JAKOBSON, 1973, p. 6).

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176

Segundo Boris Umbegaun (apud LOTMAN, 1978, p. 183), “o verso é um

discurso ordenado, organizado, isto é, um ‘discurso não livre’, ele declara que a

própria noção de verso livre é uma antinomia lógica”. A liberdade do verso livre se

dá apenas por não possuírem restrições métricas.

Quanto à rima, Antonio Cândido afirma que todo poema é basicamente uma

estrutura sonora e que a rima é o seu recurso mais usado para se obter efeitos

especiais de sonoridade no verso. Diz que ela nunca foi abandonada e que uso do

verso livre, que tinha ritmos mais pessoais ela pôde ser deixada de lado, mas no

verso metrificado, ora foi usada, ora não. Quanto à sua função, discorre:

A função principal da rima e criar a recorrência do som de modo marcante, estabelecendo uma sonoridade continua e nitidamente perceptível no poema. Frequentemente a nossa sensibilidade busca no verso o apoio da homofonia final; e do sistema de homofonias de um poema extrai um tipo próprio de percepção poética, por vezes independente dos valores semânticos. E o esqueleto sonoro formado pela combinação das rimas. (CÂNDIDO, 1996, p. 40)

Diz ainda Cândido que, de modo geral, “a poesia moderna se apoia mais no

ritmo do que na rima” e que a poética sempre esteve ocupada com os tipos de rimas

e os modos de combiná-las, distinguindo diversas modalidades e estabelecendo

regras:

Estas chegaram ao máximo de exigência com os parnasianos. Todas visam a evitar a banalidade, de um lado, o preciosismo, de outro; a extrair o máximo da sonoridade da combinação; a determinar a distância e a posição das rimas. Mas todas estas regras são relativas, e o poeta pode fazer boa poesia, da mais convincente eficácia sonora, violando muitas delas. (CÂNDIDO, 1996, p. 40)

A definição de poesia já foi limitada a um o gênero da Literatura

caracterizado pelo uso da linguagem metrificada, do verso e da rima. As concepções

modernas de poesia admitem a poesia não metrificada, os versos livres, a ausência

de rimas, desde que nelas existam propriedades artísticas e/ou ficcionais.

A poesia não se distingue da prosa literária pela presença da rima (há poemas sem rima), nem do metro (há poemas de metro irregular ou sem metro), nem do ritmo (a prosa literária também pode ter um ritmo poético), nem da estrofe (como há romances sem divisão em capítulo, assim há poemas sem divisão estrófica). A diferença reside na presença ou não do verso. Verso, do latim versus, significa “retorno”, “volta para trás”; ao passo que prosa, do latim prorsus,

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177

significa “ir para a frente”, “avançar sem limites”. (D’ONOFRIO, 1983, s/n)

Na visão semiótica de Décio Pignatari, na poesia predominam as formas; na

prosa, os conceitos. A “poesia tenta ser ou imitar o objeto ao qual se refere, por meio

das formas analógicas” (PIGNATARI, 2004, p. 24).

As analogias ocorrem nos signos referenciais, nas transferências semânticas

semoventes (metáforas) e nos efeitos sonoros (rimas, assonâncias, paranomásias,

anagramas etc.).

O modo poético de ver o mundo não é lógico, é analógico. O modo de

conceber o mundo é proveniente do ponto de vista. O método de organizar objetos

sonoros em estruturas textuais é analógico. É assim com a arte, pois na voz de

Potebnia “não existe arte e particularmente poesia sem imagem” (apud

CHKLOVSKI, 1970, p.39). Por ter este e outros aspectos que são comuns entre as

linguagens, a arte sonora pode se valer de conhecimentos relacionados aos

procedimentos de outras artes, principalmente das noções de pintura, literatura e

música (aqui é ressaltada a distinção entre arte sonora e arte musical).

5.6 Para além da potencialidade textual do objeto sonoro

A língua sonora, a linguagem sonora está em um local de interseção. Suas

parecenças com as linguagens verbal, musical e pictória são maiores do que

podemos imaginar. A história das artes mostra que simbioses entre musica/pintura,

pintura/literatura, literatura/musica são antigas. Bem sabemos que no Renascimento,

os compositores estudavam retórica clássica com o intento de compor peças

musicais persuasivas, porém nos tratados de retórica já se encontravam o conceito

de écfrase, que consistia em uma técnica retórica de fazer uma representação

verbal de uma representação visual. O padre francês Louis-Bertrand Castel é citado

por Lévi-Strauss (1997, p. 99) por ter ficado famoso no século XVIII graças à

invenção do cravo ocular (Clavecin pour les yeux), ou cromático. Um teclado

semelhante ao de um cravo comum comandava o jogo dos tubos e a aparição de

cores, ou de pinturas, às vezes de uma lanterna de vidros coloridos. As luzes

produzidas em cores diferentes dependiam das teclas pressionadas durante a

execução da música. É interessante observar que o termo “cromático” usado para a

escala musical de doze notas, formada pelas sete notas musicais da escala

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diatônica, sendo acrescida dos cinco tons intermediários, é um termo relativo ás

cores.

Figura 23:Chromatic scale full octave ascending and descending on C.

Lévi-Strauss nos conta que Rousseau, Diderot e Voltaire121 zombaram da

ideia do padre, “de que o jogo das cores pudesse agradar a visão, como a música

fazia com a audição”. De acordo com Roger Cotte, o padre Castel pretendia

proporcionar aos cegos uma ideia ou sensação das cores por meio dos sons.

Tabela 10: Correspondência entre escala cromática e gama de cores de Castel122

A potencialidade do objeto sonoro em relações textuais, por vezes supera o

alcance da linguagem verbal e isso pode ser constatado exatamente em situações

em que a literatura se vale de recursos que surgiram de associações e

correspondências com a linguagem musical como, por exemplo, melodia, harmonia,

polifonia, entre outros. A melodia é um elemento da música, mas pode ser

encontrada em textos literários, mais frequentemente em textos poéticos.

A melodia em um poema não tem uma correspondência frasal como

acontece na música, ou seja, na música uma sequência de notas, relacionadas de

forma coesa é considerada uma frase (para se fazer equivalência com o texto

121 Voltaire comentou ironicamente que os surdos de Paris poderiam frequentar os concertos. 122 (COTTE apud CAZNOK, 2008, p. 36)

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verbal), mas a melodia no poema não forma frases ou discursos, ela pode ser

percebida nas inflexões que perfazem as frases.

As inflexões são mais comuns no texto falado. No texto escrito estão

contidas nas acentuações, pontuações e nas palavras, sendo que, neste caso, as

inflexões estão na sua carga semântica, como é o caso da poesia com os seus

desvios. No texto falado, também é mais percebida na poesia. O desenho da

melodia em um poema está mais disperso e não se constitui em um discurso, mas

pode acrescer sentidos no texto, pode dramatizar, ironizar, tensionar, suavizar etc.

Este desenho melódico é interrompido por silêncios (Figura 24), em alguns

momentos o traço é reforçado, em outros é suavizado . Em um texto literário, as

marcas do desenho correspondem às inflexões enquanto as falhas do desenho

representam as omissões melódicas, são sílabas ou palavras pronunciadas sem

uma marca de flexão. A inflexão contribui dando curvaturas à linha melódica textual.

Infletir é mudar a direção da palavra, é provocar desvios no texto. Por esta razão é

que ela é mais comum no texto poético.

Figura 24: Melodia no texto literário

Em um texto musical, a melodia é protagonista, está no primeiro plano, é o

texto em si, o fio de destaque em meio à textura de um tecido. É frase, é desenho, é

traço, enfim, é texto. Nas palavras de Murray Schafer:

Parafeaseando Paul Klee, uma melodia é como levar o som a um passeio. Para termos uma melodia, é preciso movimentar o som em diferentes altitudes (frequências). Isto é chamado mudança de altura. Uma melodia pode ser qualquer combinação de sons. Há melodias mais e menos bonitas, dependendo do propósito para o qual foram pensadas. Algumas são livres, outras rigidamente organizadas, mas não é isso que as faz mais ou menos belas. (SCHAFER, 1991, P. 81)

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Figura 25: Melodia no texto musical

Um texto sonoro pode tirar maior proveito da melodia, pois cada objeto

sonoro, mesmo já estando organizado na estrutura textual, está à disposição para

sofrer qualquer intervenção, pode ser manejado de modo a alterar a sua frequência,

isto é, cada objeto pode se modulado, através do recurso pitch de um editor de

áudio, a tal ponto que seus tons sejam modificados e se aproximem das notas

musicais, tornando possível se fazer uma quase melodia.

Figura 26: Melodia no texto sonoro

Ao se falar em harmonia na literatura, refere-se à trama das vozes, ao

aspecto eufônico, ao modo como se dispõem as frases, como se conjugam os

assuntos e como se organizam os discursos. No entanto, sendo o texto escrito

linear, esses enunciados, de qualquer maneira, estarão dispostos em justaposição.

Na música, as notas musicais e as frases melódicas podem se organizar em

sobreposições. A produção simultânea de notas musicais, observados os intervalos,

é chamada de acorde, que em relação a outros acordes formam um campo

harmônico. A diferença determinante da harmonia na literatura e na música é que na

literatura a disposição do texto é linear, é horizontal, enquanto que na música, pela

possibilidade da simultaneidade, pode ser formada uma linha vertical de sons.

Um texto sonoro, por ter a mesma materialidade do texto musical, isto é, o

som, em uma trama de vozes, ou de eventos, pode se desenvolver por uma linha

vertical, já que se desenvolve no tempo.

O estudo ou a aplicação de conceitos de uma linguagem em outra

linguagem tem uma tendência redutora e, em alguns casos, ampliadora, neste caso,

chegando a distorcer. O uso da linguagem sonora em composições com ímpeto

textual está, em muitos aspectos, em um entre lugar, o espaço entre a literatura e

música, um lugar que permite, muitas vezes, recuperar o sentido de determinados

conceitos.

5.7 Subgêneros ou novos gêneros?

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181

Para reforçar o aspecto da prática proposto anteriormente, farei uma

exposição de experiências pelas quais pude me envolver com maior proximidade ao

objeto de estudo. Trata-se de um trabalho artístico que realizo envolvendo a

linguagem musical e linguagem sonora, que tem como produto composições em que

são utilizadas técnicas herdadas da música eletroacústica/acusmática, bem como da

música concreta e da música eletrônica. Apesar da materialidade musical/sonora, as

composições seguem estruturas de textos literários, no caso, de contos e poemas.

“Musicontos e poemúsicas” foi o nome dado a este trabalho de composições feitas a

partir do objeto sonoro, matéria sonora coletada, isto é, gravada, convertida em

áudio. A composição é feita a partir da organização destes objetos em programa de

edição de áudio, através de sampleagens, montagens e colagens.

A partir do entendimento da arte sonora como sistema semiótico foi possível

dar a essas composições estruturas textuais sob a lógica de que a linguagem verbal,

neste caso, é substituída por objetos (signos) sonoros, como unidades sintáticas e

organizadas em justaposições e sobreposições resultando em textos artísticos.

Estes textos, tratados aqui como subgêneros, tanto da música quanto da literatura,

tenho os chamado de musicontos (contos sonoros) e de poemúsicas (poemas

sonoros).

Este trabalho foi selecionado pelo 9º Festival Internacional de la Imagen,

realizado em Manizales, Colômbia, em abril de 2010 e pelo Festival Internacional de

Linguagem Eletrônica – FILE 11, realizado em São Paulo em julho de 2011.

Também está incluso no “Amazônia, A Arte”, catálogo e exposição, idealizado pelo

Museu Vale - Fundação Vale, edição de junho-setembro de 2010.

As composições sonoras são transfigurações de enquadramentos da

realidade. São recriações feitas através do ímpeto artístico, que são transmitidas

através dos signos sonoros para as estruturas dos gêneros literários, no caso,

contos e poemas, podendo ser compreendidas como subgêneros ou novos gêneros,

com os quais ela toma corpo e nova realidade.

5.7.1 Musicontos

O musiconto conta e também mostra. É uma narrativa sonora. Tem os

elementos da narrativa e tem o caráter de conto por sua concisão. Tem sido comum

o surgimento de subgêneros da modalidade conto, como os minicontos e os

microcontos. Estes estilos, entre outros, frutos de uma poética da brevidade são

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respostas ao modo vertiginoso de se viver, à rapidez da cultura. Basta vermos na

literatura os exemplos de poemas sintéticos tão comuns na atualidade, na arte

cinematográfica temos os videoclips, filmes de um minuto.

A confecção dos minicontos se dá pelas praticas de edição de materiais de

áudio, compreendidos como signos sonoros organizados de forma contigua, com

possibilidades de discursos paralelos, polifônicos, de curta duração, baseadas na

estrutura narrativa, mais precisamente dos contos.

Entendo que a poética contemporânea está desiludida dos dogmatismos e

absolutismos e está afinada aos conteúdos carregados de questionamentos do

pensamento pós-moderno.

Ao longo do século XX podemos observar uma crescente dissolução dos limites entre diferentes meios de expressão e também do conceito de arte em geral. É possível imaginar uma pintura sem tela, uma música sem sons, um livro sem escritura, uma poesia sem palavras ou uma peça teatral sem narrativa. (QUARANTA, p. 1)

A arte pós-moderna está cada vez mais ajustada às exigências,

perspectivas, anseios, ou seja, aos contextos culturais. Novos gêneros surgem, pois

surgem novos materiais, novas concepções, novos espaços. Não são reações ao

tradicional, são reflexos em estilos breves.

A linguagem da poesia é mais convencional e impõe uma atenção maior, sobretudo porque ela se manifesta geralmente, nos nossos dias, em peças mais curtas e mais concentradas, que por isso mesmo são menos acessíveis ao primeiro contato. (CÂNDIDO, 1996, p. 11)

Tanto o gênero do conto quanto o poético são sintéticos. Os musicontos são

estórias de curto tempo, são instantes ficcionais, porém com início, meio e fim. A

brevidade é comum também às poemúsicas.

5.7.2 Poemúsicas

A poemúsica é um jeito de se fazer uma arte sonora, às vezes mais próxima

da arte pictória, outras vezes mais associada à arte literária, no entanto sempre, por

sua própria natureza, nas concavidades ou convexidades da arte musical. A

poemúsica coopta com as outras artes porque é uma arte de mostrar, ela é feita de

imagens. Farei a seguir uma explicação sobre poemusica, partindo da associação

com o conceito simplório de poema como estrutura feita de versos e rimas. Isso,

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183

para melhor ilustrar a concepção de poemúsica, no entanto a complexidade que

envolve o gênero aspirado é obvia, pois detém mecanismos e nuances de

construção das estruturas musicais, literárias e pictórias, além de seus próprios

trejeitos, que são competentes à sua linguagem particular. Então, vamos à

associação:

Assim como um poema é feito de versos e rimas, a poemúsica é feita de

versons e rimagens:

- Versons são sons, são versões de versos que nos levam a ver sons.

- Rimagens são sons-imagens que rimam e se atraem como imãs.

Rimagem é um termo usado por François Bayle123, citado por Rodolfo

Caesar124 em seu livro Círculos ceifados, que esboça bem a possibilidade de se

fazer rimas de imagens:

Propusemos ‘i-som’ como objeto retórico, artificial e imaginal, considerado como um ‘mi-som’ [meio-som] movendo-se em um ‘mi-lieu’ [meio-lugar]. Isto quer dizer que será muito interessante sondar a sobreposição de camadas da produção da escuta predisposta pelo modo acusmático... E isto por efeito da parada sobre a imagem e de sua volta ao movimento, propriedade que eu resumo com o termo ‘rimagem’, que se poderá tanto compreender como um retorno sobre a imagem quanto como uma rima, assonância de ecos internos que somente o trabalho sobre o i-som pode experimentar e explorar. (BAYLE apud CAESAR, 2008, p. 87-88)

A citação de Caesar é seguida de seu comentário (CAESAR, 2008, p. 88):

“Uma rimagem de espaço. Seria isto uma recorrência também da intensidade

emocional daquele ‘som’ que ‘rimou’?”.

As “rimas”, os ecos de sons são imagens sonoras que figuram uma

paisagem sonora. Ao falar de paisagem, falamos de lugar, assim se configura o

lugar sonoro, o lugar da poesia, o lugar do texto sonoro. Quando a poemúsica

mostra seus signos, no caso, a disposição dos sons em versos (versons) da

composição, em seus fluxos e refluxos, ao passo que a ouvimos, somos

observadores da imagem, pois forma inicialmente na mente receptora a “imagem 123 François Bayle (1932) é um compositor francês de música concreta e música eletroacústica. Estudou nos anos 1950 com Olivier Messiaen, Pierre Schaeffer e Karlheinz Stockhausen. No mundo da música eletrônica, Bayle é considerado um dos mais ilustres compositores e tem uma produção constante até os dias atuais. 124 Rodolfo Caesar (1950) é um compositor e professor brasileiro. Estudou com Pierre Schaeffer. É pesquisador e professor na Escola de Música da UFRJ, onde coordena o Laboratório de Música e Tecnologia, o LaMuT. Suas obras tem sido apresentadas em concertos e eventos como o Cycle Acousmatique em Paris, a International Conference of Computer Music, o Akustika Festival em Viena, o Fylkingen Festival em Estocolmo e outros.

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acústica” saussureana, desencadeando semioses seguidas de associações e

mediações que resultarão em bases textuais em formas de versos na mente

interpretativa.

A poesia trabalha com imagens. Assim como o poema é uma verbalização

de arte visual, a poemúsica é uma sonorização de arte visual. O uso de figuras é

bastante frequente. A poesia é a “linguagem que faz uso abundante de figuras de

linguagem” (CULLER, 1999, p. 72).

Esta oportunidade de unir criação e teoria, que envolve o projeto

“Musicontos e poemúsicas” a esta dissertação me proporcionou compreender a

importância do uso das novas tecnologias, visando um produto que oportunize

alternativas e possibilidades de novas escutas (leituras) de música eletroacústica,

bem como novas leituras (escutas) de contos e poemas.

Os objetos sonoros são sons que comportam tanto a linguagem musical

quanto a linguagem sonora. O sistema de sons é integrado por ruídos125 e sons

ambientais (sons de animais, pessoas, máquinas, motores etc.) que são signos

icônicos. O sistema musical é formado pelos sons dos instrumentos musicais ou da

voz com definição tonal ou por ruídos (sem a definição tonal, sem a possibilidade de

identificação da altura tonal, ou seja, o tom (nota musical)). Portanto, a similaridade

também se dá pela analogia e os signos são os sons icônicos. A contiguidade se dá

pela associação e os signos compreendidos são também os sons icônicos, mas no

caso de uma comparação com o texto verbal corresponderiam aos signos

simbólicos, ou seja, às palavras simbólicas, de cunho arbitrário.

Os processos semânticos, retóricos, sintáticos da linguagem sonora não têm

as mesmas limitações referenciais que na linguagem musical, mas não têm o

alcance da linguagem verbal. Os pontos de intersecção são territórios férteis de

estudo e requerem uma intervenção interdisciplinar, um diálogo entre as disciplinas

de Literatura e Música.

125 Para José Miguel Wisnik, em O Som e o Sentido – Uma outra história das músicas, o ruído é uma perturbação, “é uma mancha em que não distinguimos frequência constante, uma oscilação que nos soa desordenada” (WISNIK, 1989, P. 27). Ver também página 33.

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6 Considerações finais

[...] Je pense que, devant l’accroissement, toujours plus large et plus

rapide du champ de la Science, la confrontation des disciplines

deviant plus que jamais nécessaire.126

Jacques Monod127

No capítulo 2 falamos da música e a ênfase recaiu sobre as consequências

da modernidade. Nenhuma arte teve impactos tão definitivos quanto a música. As

transformações históricas da música são afinações de uma arte em relação ao

sujeito. Compreender o sujeito da pós-modernidade é uma forma de não resistir ao

andamento natural da linguagem musical ou sonora e isto cabe a todas as formas de

expressão artística. Os discursos de Benjamin não serão interrompidos. A tecnologia

que já foi julgada em tempos passados como a vilã do distanciamento da aura

benjaminiana, das correspondências baudelaireanas, do silêncio cageano, o do mito

de Lévi-Strauss, já é bem mais compreendida e pode ser um caminho promissor.

O século XX foi rico em manifestações interativas entre as linguagens, com

os fenômenos multimidiáticos e de interação semiótica das artes. A arte

contemporânea se caracteriza pela coexistência das artes dos períodos anteriores e

por perspectivas das futuras manifestações artísticas. Na música, a partir da

utilização de métodos e técnicas da composição de música eletroacústica ou música

acusmática, associada às estruturas de gêneros pertencentes à literatura, pode-se

gerar subgêneros, produtos lítero-musicais.

Esta demanda é fruto inevitável de uma questão mais fundamental e

inevitável ainda: a “crise” da arte desde o início do modernismo. Entendo que é mais

proveitoso tê-la como transição. No que se refere à música, essa crise é percebida

no Futurismo, que pressente a necessidade da inclusão de todos os sons, musicais

ou não musicais, reivindicando uma mudança que, ao seu tempo, é aceita pela

música concreta, de onde deriva a música eletroacústica. É neste contexto que se

indaga desde o início da crise da música tradicional: o que é Música?

126 “Penso que, diante do crescimento sempre maior e mais rápido do campo da Ciência, o confronto de disciplinas torna-se mais do que nunca necessário.” (MONOD apud JAKOBSON, 2007, p. 11) 127 Jacques Lucien Monod (1910 — 1976) foi um biólogo francês, vencedor do Nobel de Fisiologia/Medicina de 1965, por descobrir atividades reguladoras no interior das células.

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Esta tensão não reside apenas no esgotamento do sistema tonal. Essa é

uma convulsão da própria linguagem musical ante uma possível dilatação, fazendo-

se necessário refletir sobre as suas delimitações entre o musical e não musical. Com

a inclusão de objetos sonoros não musicais, desde o Futurismo até os dias atuais,

configurou-se um universo de musicalidade e sonoridade, um caminho promissor,

que tem muito a ser explorado e longe de estar esgotado.

Os estudos literários podem ser uma ferramenta eficiente quando se fala do

objeto sonoro na condição de signo. Há muitos modos de apreensão entre o

fenômeno sonoro e o objeto carregado de significado, bem como são muitas as

possibilidades de significações. O signo sonoro é uma unidade sintática capaz de

constituir textos ou texturas sonoras que, por sua vez, constituem-se em material

passível de análises textuais, linguísticas, semióticas e discursivas. As teorias

literárias são aptas para contribuir na leitura, na análise, bem como na feição, na

composição musical fundada em signos sonoros, comportando todos os seus

esforços narrativos, descritivos e poéticos.

A democracia no conhecimento nasce do aprender a ver, a estabelecer semelhanças, reconhecê-las, criá-las, entrecruzá-las. Trata-se de reunir o saber disperso pela “educação dos cinco sentidos”. (MATOS apud BAIRON, 2005, p. 9)

A importância da continuidade da ampliação da concepção acadêmica de

texto leva às definições mais ajustadas ao momento pós-moderno ao qual,

irreversivelmente, experimentamos e que nos leva a considerar possibilidades de

novas definições sobre o objeto da Teoria da Literatura. Pela mesma razão, nos

importa compreender, dentro dessas perspectivas, o que torna uma composição um

texto e o que torna um texto uma obra de arte. Essa importância não se limita aos

conhecimentos de aplicação das teorias, mas está atrelada à compreensão de uma

época e do que isto representa no processo histórico da própria literatura.

Se pensarmos que a literatura é uma arte, que ela é um meio de comunicação

específico que envolve uma linguagem também específica, que se apoia em signos,

como unidades de significação, que formam unidades sintagmáticas, constituindo

textos em que se caracteriza uma determinada modalidade de discurso, e

considerarmos que esta mesma lógica se aplica ao objeto sonoro como signo,

podendo também se configurar em textos, vemos uma composição sonora como um

documento artístico, passível de uma análise por via da teoria literária.

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187

O objeto sonoro, por natureza, objeto de estudo pertencente aos domínios

musicais, culturalmente podem ser examinados à luz de pressupostos da Teoria da

Literatura. Do objeto enquanto natureza ao objeto na sua extensão cultural ocorre a

semiose, processo fenomenológico/semiótico de significação, explicado com o

auxílio da Lingüística e da Semiótica.

Mas, afinal, para que serve a Semiótica? Serve para estabelecer as ligações entre um código e outro código, entre uma linguagem e outra linguagem. Serve para ler o mundo não-verbal: “ler” um quadro, “ler” uma dança, “ler” um filme – e para ensinar a ler o mundo verbal em ligação com o mundo icônico ou não-verbal. A arte é o oriente dos signos; quem não compreende o mundo icônico e indicial não compreende corretamente o mundo verbal, não compreende o Oriente, não compreende poesia e arte. A análise semiótica ajuda a compreender mais claramente por que a arte pode, eventualmente, ser um discurso do poder, mas nunca um discurso para o poder. O ícone é um signo de alguma coisa; o símbolo é um signo para alguma coisa. Mas o ícone, como diz Peirce, é um signo aberto: é o signo da criação, da espontaneidade, da liberdade. A Semiótica acaba de uma vez por todas com a idéia de que as coisas só adquirem significado quando traduzidas sob a forma de palavras. (PIGNATARI, 2004, p. 20).

A organização dos objetos sonoros em estruturas de textos artísticos se

apresenta para o receptor (ouvinte) para ser escutada, decodificada, lida e

interpretada. Uma vez estando a composição sonora estruturada como texto

narrativo ou poético, isto é, preenchendo condições de artisticidade, de uma

essencialidade equivalente à literariedade na linguagem literária, são, por assim

dizer, textos artísticos, dispostos à análise literária. Esta foi a premissa pela qual

iniciamos esse estudo, onde pudemos alegar ser possível criar e, por consequência,

analisar essas obras sonoras através de conjeturas linguísticas, semióticas e

literárias.

Estas questões mostram que uma obra, resultado do empreendimento

artístico, que fez uso do objeto sonoro, pode ser comparada à obra literária, em uma

analogia objetiva, sem especulações ou considerações abstratas, sendo

fundamentada em conhecimento científico. Neste caso, o objeto de estudo

primordial foi o objeto sonoro, que se estende para a obra sonora.

Migrar os conceitos da área de letras para entender a matéria sonora

organizada como texto nos permite constatar como o compositor desse tipo de obra

atém-se aos sons, que se tornam materiais à disposição para qualquer montagem,

isenta das servidões e utilidades que os instrumentos musicais ou o material sonoro

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musical carregam com eles. Ele pode agir traduzindo o concreto, como pode

desfigurá-lo, deformando, transfigurando, afetando, amplificando, criando idéias

abstratas ou imagéticas da realidade, traduzindo o concreto para além do concreto,

de acordo com o seu subjetivismo.

Uma composição de objetos sonoros, de natureza narrativa ou poética, pode

ser esmiuçada, através de uma leitura fina, com o objetivo de desmontar, ao modo

de Derrida, isto é, não é destruir, mas decompor por meio da Teoria da Literatura.

Essa questão de objetos principais, temas que são âmbito de disciplinas

específicas, segundo Perrone-Moisés:

[...] os culturalistas, em sua maioria, manejam de modo insuficiente. Cada uma dessas ciências exige uma formação particular, uma bagagem de leituras especificadas que os diplomados em letras geralmente não têm. (PERRONE-MOISÉS, 2007: 167)

Quanto a isso, não pretendo utilizar a Teoria da Literatura para o estudo do

objeto sonoro como fenômeno, pois é matéria para as áreas da Música e Filosofia.

Pretendo, sim, utilizar das teorias literárias para o estudo do objeto em movimento,

em circulação, da linguagem em pleno uso, do signo agitado.

Sendo a articulação dos saberes expressa por diversas formas, posso dizer

que a relação entre sujeito e objeto pode ser realizada por diferentes pontos e

campos da estética. Os diferentes pontos vão desde a intertextualidade, do fluxo de

consciência, da fragmentação, da inovação artística, entre outras características da

literatura contemporânea.

Assim, vejo a Teoria da Literatura como uma instrumentalização para a

desconstrução, para a leitura fina de composições feitas, tendo como matéria

primeira o objeto sonoro, pois, mesmo com tanto potencial e apesar de ter muitos

compositores e pesquisadores em frente de batalha há mais de um século, ainda

pode ser considerada escassa a produção artística e científica que explore a

potencialidade textual e literariedade do objeto sonoro.

Lamentavelmente há uma escassez de abordagens que se aproximem

exatamente desse aspecto relacional da música com a literatura. A quase totalidade

de artigos, dissertações e teses abordam a linguagem musical através das suas

características melódicas, harmônicas e rítmicas. Uma parte menor se volta para o

estudo das características eletroacústicas do som, e também, o que já é mais

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animador, uma parcela que estuda a questão da fenomenologia musical e a escuta.

É mais animador porque a partir deste aspecto é que são feitas as pontes.

Análises do potencial textual do objeto sonoro em criações de peças sonoras

não são comuns nos estudos musicais, muito menos nos estudos literários. Há um

campo nebuloso entre essas duas áreas, vários pontos cegos, lacunas conceituais.

Ressalto aqui a importância do curso de mestrado de Estudos Literários, na linha de

pesquisa da Literatura e outras artes e outros saberes, oferecido pela Universidade

Federal de Rondônia, que oportuniza o diálogo entre a disciplina da Literatura e a

Música, o que, sem dúvida, foi determinante para a minha investidura neste projeto,

no qual posso unir os conhecimentos das minhas graduações em Letras (UNIR)128 e

Música (UFRGS)129. Essas trilhas multidisciplinares iluminam as interseções entre

esses estudos. Não é a toa que referências desta pesquisa, nomes importantes para

a música migraram de outras áreas, como Luigi Russolo, um pintor que muito

contribuiu para o conceito de música futurística, com o seu manifesto A arte dos

ruídos, bem como Pierre Schaeffer, homem da literatura, com seus conhecimentos

de escrita fundamenta suas ideias musicais, e ao retomar ideias futurísticas criou a

música concreta e o trabalho com o som coletado. Aqui citei Wassily Kandinsky e

Paul Klee, pintores que emprestam conhecimentos imprescindíveis para a

compreensão de determinados aspectos da música. Na filosofia de Deleuse e

Guattari, conceitos como Ritornelo e sobre o espaço O liso e o estriado, são

indispensáveis para uma abrangência nas questões de musicalidade e sonoridade.

Em seu conceito de Rizoma, encontrei um contraponto ao desejo de Schaeffer em

se fazer música a partir da escuta reduzida. Esses extremos de Schaeffer (objeto

sonoro como signo em si mesmo, sem carga de significações) e Deleuze (rizoma

como grau máximo de possibilidades de relações semânticas e estéticas do signo

para além de si mesmo) não resultam contraditórios, são dois caminhos, mostram

possibilidades de apreensão de um objeto sonoro e suas possíveis relações: uma

intrínseca, monádica, que resiste às inferências da razão e das emoções, que visa

uma transcendência, que parte da desconstrução dos mecanismos já estabelecidos,

sejam eles intelectuais, culturais ou sociais, em um mergulho centrípeto com destino

à consciência; a outra extrínseca, diádica, que se vale de todas as afluências

possíveis, dos diálogos, das correlações, das hipertextualizações, que vai alinhavar 128 UNIR – Universidade Federal de Rondônia 129 UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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e estabelecer os mecanismos intelectuais, culturais ou sociais, em voo centrífugo

rumo ao “riacho sem fim” descrito por Deleuze:

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e... e... e..." Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. Gilles Deleuze e Félix Guattari 130(DELEUZE, 1995, capa)

Esse surto centrífugo desenha a função rizomática das sonoridades e

musicalidades, tão bem ilustrado na primeira página da Introdução: Rizoma, do livro

de Gilles Deleuze e Felix Guattari Mil Platôs, v.1:

Figura 27:Trecho de partitura dedicado a David Tudor, XIV piano piece for David Tudor 4,

Encontrei também, muitas referências importantes e de muita valia, inclusive

de estudiosos e compositores brasileiros como poderão ser constatados ao longo da

dissertação, além de ter contado com contribuições importantes nos estudos da

linguagem cinematográfica e radiofônica. Por esta razão, vejo a necessidade de uma

interferência dos estudos literários, como uma área profícua e adequada para suprir

uma carência já mais específica.

Essas reflexões sinalizam para as possibilidades da disponibilização de seus

resultados para diversas aplicações, como geração de novas ideias e conceitos, de

elementos de organização de saberes anteriores, dados técnicos e teóricos para as 130 Capa do livro Mil Platôs (DELEUZE, 1995, v.1)

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relações interdisciplinares, confronto de ideias e contextos controversos, e

divulgação da pesquisa com o objetivo da criação de bases mais sólidas para o

entendimento do fenômeno sonoro ou musical permitindo que pessoas que

trabalham com música ou literatura associadas a outras disciplinas compartilhem

uma maior quantidade de conceitos teóricos lítero–musicais mais consistentes.

Vejo também a importância de releituras das teorias, pressupostos,

premissas, saberes estabelecidos, que antecederam o conceito de objeto sonoro.

Na era da informação e informatização é necessário reestudar tais conceitos

considerando esse novo acervo, uma vez que surge um objeto de estudo, um novo

conceito de unidade significativa.

Os avanços da tecnologia da Era Eletrônica não influem apenas no campo

da produção, da composição, eles não apontam somente para o futuro, mas também

para as questões conceituais do passado, pois nos permitem avaliar com novos

olhos, recuperar ou até regenerar informações, em alguns casos, não

compreendidas, talvez por estarem à frente do seu tempo. As releituras de obras

anteriores ao conceito de objeto sonoro, no mínimo nos levam a reorganizar nossas

bases a partir de uma realidade recente, toda apoiada em novas plataformas, novos

materiais, novos apoios, podendo nos induzir a recriação.

Refletir sobre a Poética de Aristóteles, Horácio, ou A origem da Tragédia de

Friedrich Nietzsche, o Soneto das Correspondências de Charles Baudelaire, A

Doutrina dos Sons de Goethe, O Arqueômetro de Saint-Yves D'Alveydre, a

Gesamtkunstwerk pretendida por Richard Wagner, considerando uma nova mídia,

com este novo elemento sonoro como unidade de sintaxe para a composição, sem

dúvida nos trarão uma maior elucidação destes tratados, desses conhecimentos,

bem como nos sugerirão novos modos de experimentação do objeto sonoro.

É imprescindível refazer essas conceituações. Estudar o objeto sonoro a

partir das diversas teorias e da mesma forma fazer o inverso: é indispensável a

releitura também da análise do discurso, da semiótica, da semântica, sintaxe, figuras

de linguagem, estilo, estética, textualidade a partir desse objeto de estudo.

Algumas questões não terão a consistência pretendida, a devida exatidão

que se exige em postulados científicos, até porque o conhecimento literário e o

musical estão em constante variação e que suas teorias estão em permanente

progresso. Por esta razão, creio ser válido qualquer estudo que procure

compreender a evolução e perspectivas desses saberes em consonância. Parece-

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me que cada geração fica presa em conceitos imprecisos, onde o legado científico

pode ser dividido em uma parte já assimilada e aceita, outra parte em construção,

que somadas às hipóteses constituem uma dinâmica dialética necessária para

qualquer desenvolvimento teórico onde o novo é imprescindível.

Em pleno momento em que a música passa a ser obrigatória nas escolas, se

faz indispensável uma reflexão quanto ao potencial desse saber. A linguagem

sonora revela diversas possibilidades de uso da criatividade dos alunos, sendo um

excelente meio de expressão. Os softwares de edição de áudio transformam

qualquer “leigo” em profissional experiente.

O áudio tem linguagem própria. Não resta dúvida quanto à importância da

linguagem sonora. Por isso, é necessário incluir novas tecnologias no domínio da

escola, para a possibilidade de domínio da linguagem, como meio de expressão, de

identidade, aproveitando a afinidade e gosto pelas novidades tecnológicas que os

alunos sempre demonstram.

O ensino de textos não verbais em escolas deveria ter maior importância e

ser explorado em sala de aula. Um texto diferente requer uma leitura distinta.

Sabemos que os alunos não possuem o hábito da leitura. O contato com os textos

não verbais, sejam eles sonoros, visuais, gestuais, colocam o aluno ante a

possibilidade da leitura. Assistir filmes, ouvir músicas, são formas de leitura. É a

partir das leituras que os alunos desenvolvem opiniões críticas, que se refletem na

experiência da vida, pois aprender a ler as imagens, os sons e sinalizações que o

cercam no mundo. Ler, compreender, interpretar, são habilidades imprescindíveis

para se fazer uma leitura dos significados da realidade.

Esta dissertação me dá a conveniência de poder unir criação e teoria,

envolvendo o projeto “Musicontos e poemúsicas”, proporcionando uma oportunidade

de contribuir no âmbito acadêmico, na elaboração de proposições e possíveis

reforços teóricos, bem como no meio da produção artística, apresentando obras de

estéticas e conceitos vanguardistas das linguagens musical, sonora e literária

através do uso das novas tecnologias, visando um produto que oportunize

alternativas e possibilidades de novas escutas de música eletroacústica e de novas

leituras de contos e poemas.

Em toda a dissertação optei por conhecer teorias distintas, porque entendo

que não é hora de ser partidário de uma ou de outra teoria, de um ou de outro

teórico. Entendo que já passou o tempo das desconfianças, ou mesmo de se tachar

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de reducionista àquela teoria da qual se diverge, de dar predominância ou

exclusividade a uma ou outra teoria. A contemporaneidade exige que saibamos que

as teorias são dististas porque cada uma ressalta aspectos, acentua mecanismos,

são abordagens complementares.

Fala-se em pós-modernidade, em rupturas com o moderno ou

transformações, no entanto o relevante mesmo são as evidências de mudanças, de

novas interpretações e discussões sobre ideias e conceitos do moderno que revelam

a atual complexidade e sensibilidade cultural, com conceitos menos lineares e mais

expansivos. As novas perspectivas, as novas vozes, as novas tensões derivadas da

modernidade são as vozes do sujeito globalizado, do sujeito ecológico, enfim, do

sujeito pós-moderno e suas múltiplas faces. No campo artístico, essas

transformações tem suscitado novas formas estéticas na literatura, na música, na

dança, no teatro, na arquitetura, no cinema, na pintura etc. As fusões, os

hibridismos, os sinestesismos não são sintomas de evolução, tampouco de

revolução, são ajustes e afinações. As novas poéticas não são rupturas, são

consequências.

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