48

© Apenas Livros Lda., - continuitas.org · abordado terá de ficar para posteriores desenvolvimentos e o que era para ser uma adenda transformou-se ... do cromossoma Y, a que chama

  • Upload
    lyphuc

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

copy Apenas Livros Lda Gabriela Morais

Al Linhas de Torres 97 3ordm dto

1750-140 Lisboa Telfax 21 758 22 85

apenaslivrosoninetspeedpt

Depoacutesito legal nordm 27592008 ISBN 978-989-618-180-2

1ordf ediccedilatildeo 250 exemplares

Maio de 2008 Publicaccedilatildeo nordm 284

Revisatildeo de Luiacutes Filipe Coelho

Colecccedilatildeo OFIUSA 11

Dirigida por Gabriela Morais gabrielafmoraisgmailcom

3

A Histoacuteria eacute a forma espiritual ndash expressatildeo que abarca a ciecircncia a arte etc ndash de uma cultura prestar contas do seu passado

Huizinga

PROacuteLOGO Haacute jaacute algum tempo que a partir das nossas investigaccedilotildees era inten-

ccedilatildeo da Fernanda Frazatildeo (editora e investigadora de Histoacuteria) e minha acrescentarmos agrave Lenda da Fundaccedilatildeo de Portugal Irlanda e Escoacutecia (Apenas Livros 2005) editada nesta mesma colecccedilatildeo mais 4 ou 5 paacuteginas com algumas das informaccedilotildees que se seguem Afinal muito do que aqui eacute abordado teraacute de ficar para posteriores desenvolvimentos e o que era para ser uma adenda transformou-se noutro livro devido agrave sua dimen-satildeo incompatiacutevel com o formato destas pequenas obras Este eacute assim o vol II da Lenda da Fundaccedilatildeo A bibliografia consultada eacute mais vasta do que a mencionada mas tambeacutem por causa da dimensatildeo optou-se por citar no interior do texto apenas a mais importante Tambeacutem se optou por transcrever as citaccedilotildees dos autores em inglecircs e espanhol traduzin-do-se para melhor compreensatildeo as italianas

Quero deixar aqui expressos os meus maiores e mais sinceros agradecimentos ao professor Xaverio Ballester que demonstrando uma enorme simpatia se disponibilizou prontamente a ler a emendar-me a matildeo e a trazer-me achegas preciosas Tambeacutem foi preciosa uma informa-ccedilatildeo do professor Manuel Calado a quem igualmente aproveito para agradecer outras ajudas retroactivas Um muito obrigada tambeacutem ao meu marido pela paciecircncia para ler e reler estas linhas e pelo grande empenhamento que pocircs na correcccedilatildeo e nas pesquisas que fez para me ajudar neste trabalho

4

I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA

E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA Quando o trabalho de a Lenda da Fundaccedilatildeo foi realizado em 2005 tive

a tentaccedilatildeo de referir a Geneacutetica como disciplina que poderia ajudar a comprovar o que haveria de verdade histoacuterica por detraacutes desse corpo lendaacuterio A tal natildeo me atrevi entatildeo pois era quase completo o meu des-conhecimento e ainda natildeo tinha feito um estudo muito seguro do que jaacute se investigava e divulgava nessa mateacuteria Poreacutem passado precisamente um ano sobre a publicaccedilatildeo da primeira ediccedilatildeo desse pequeno livro em Setembro de 2006 saiu a obra de Bryan Sykes Blood of the Isles Exploring the Genetic Roots of Our Tribal History (Bantam Press) E com ela essa aacuterea abriu-se inevitavelmente agrave minha curiosidade

Este professor e especialista de Geneacutetica da Universidade de Oxford apoacutes um estudo efectuado durante dez anos veio trazer a lume as con-clusotildees a que ele e o seu grupo de investigadores chegaram a partir de as anaacutelises do ADN do povo britacircnico baseada num grande nuacutemero de amostras das populaccedilotildees de todas as ilhas E tive a surpresa agradaacutevel de ver nesta obra uma ajuda riquiacutessima para a possiacutevel confirmaccedilatildeo de muitas das hipoacuteteses entatildeo levantadas preenchendo a minha lacuna

Por outro lado verifiquei que tambeacutem o autor confrontava as suas proacuteprias investigaccedilotildees com o mesmo corpus mitoloacutegico em que se insere a Lenda da Fundaccedilatildeo e a arqueologia estudada em torno dele Assim em Blood of the Isles Sykes para aleacutem de afirmar que os mitos satildeo instrumen-tos poderosos pois laquooften contain more than a grain of truthraquo (p 135) estabelece um paralelismo entre as comunidades dos concheiros mesoliacute-ticos da costa portuguesa ndash do Tejo e do Sado ndash e os da Irlanda e o seu processo evolutivo para os tempos dos primeiros agricultores (p 142) Igualmente recorre ao arqueoacutelogo Barry Cunliffe estudioso dos monu-mentos megaliacuteticos ao longo da costa atlacircntica das ilhas Britacircnicas agrave Ibeacute-ria dizendo que ele laquo[hellip]traces their origin to the shell middens of Meso-lithic Portugal[hellip]raquo (p 143) Na verdade Cunliffe frequentemente citado na Lenda da Fundaccedilatildeo considera agrave semelhanccedila de M Calado (Menires do Alentejo Central wwwcrookscapeorg) haver uma correspondecircncia oacutebvia entre a arquitectura mesoliacutetica e a arquitectura megaliacutetica do Neo-liacutetico Antigo que enxameia o Alentejo central regiatildeo contiacutegua agrave dos maiores concheiros encontrados ateacute agrave data em Portugal ndash os do Tejo e do Sado A evidecircncia dessa continuidade eacute visiacutevel nos mais antigos esti-

5

los de arquitectura funeraacuteria neoliacutetica isto eacute as antas e as antas de corre-dor onde as mamoas tecircm terra no lugar das conchas a cobertura prefe-rencial das sepulturas mesoliacuteticas

Por tudo isto B Sykes considera que laquo[hellip]as well as these rich origin myths there is an abundance of solid archeological evidence of Irlandrsquos pastraquo (p 135) e que tais elementos satildeo laquo[hellip]definitely something to bear in mind when we contemplate the living archaeology of the genesraquo (pp 144-145) Abordando a sua aacuterea especiacutefica Sykes eacute de opiniatildeo que os resultados das anaacutelises do ADN irlandecircs se harmonizam inteiramente com os do ADN das restantes populaccedilotildees das ilhas Britacircnicas (p 64) Deste modo para este investigador as raiacutezes geneacuteticas de linha materna natildeo soacute da Irlanda como da regiatildeo ocidental da Gratilde-Bretanha encon-tram-se nas populaccedilotildees que habitaram a faixa atlacircntica do Extremo Oci-dente da Europa desde eacutepocas recuadas laquoThe matrilineal history of the Isles is both ancient and continuous I see no reason at all from the results why many of our maternal lineages should not go right back through the milennia to the very first Paleolithic and Mesolithic settlers who reached the islands around 10 000 years ago[hellip]raquo (pp 279 e seg) E acrescenta laquo[hellip]There was a very large-scale movement along the Atlantic seabord north from Iberia begining as far back as the early Neolithic and perhaps even before that[hellip] The number of exact and close matches between the maternal clans of western and northern Iberia and the western half of the Isles is very impressive much more so than the much poorer matches with continental Europeraquo (p 280)

Mas Sykes tambeacutem compara estes resultados da heranccedila materna com os resultados obtidos quanto agrave linhagem masculina A existecircncia predomi-nante natildeo soacute de outros elementos mas igualmente do cromossoma Y a que chama atlacircntico e as notoacuterias afinidades com a Ibeacuteria reforccedilam a sua hipoacutetese afirmando estar convencido ser nessa direcccedilatildeo que se devem procurar as origens da grande maioria dos cromossomas Y das ilhas

No que se refere em particular agrave Escoacutecia para aleacutem de salientar a sua directa descendecircncia das populaccedilotildees irlandesas tambeacutem confirma que no respeitante aos Pictos ndash outro povo historicamente integrante desse paiacutes ndash laquotheir ancestors just like the rest of the people of the Isles have been there a very long time but they are from the same stock They are from the same mixture of Iberian and European Mesolithic ancestry that forms the PictishCeltic substructure of the Islesraquo (p 282)

laquoThe sea has never been a barrier to the people of the Atlanticraquo (p 170) laquoThe sea routes of the Atlantic fringe conveyed both men and women to

6

the Islesraquo (pp 283 e seg) laquoIn Wales Ireland and Scotland the only branch is the oceanic branch[hellip] and the oceanic branch[hellip] peppers the map of the west side of Britain from bottom to top[hellip]raquo (p 274)

Em conclusatildeo para Sykes tambeacutem aqueles que alcanccedilaram as ilhas nos primeiros tempos da agricultura teratildeo vindo juntar-se aos que ali jaacute se encontravam desde os tempos mesoliacuteticos tendo laacute chegado precisa-mente atraveacutes das mesmas rotas mariacutetimas ou terrestres antes da subi-da do niacutevel do mar (pp 281 e seg)

Eacute perante estes resultados que de volta agraves lendas Sykes diz que os mitos irlandeses dos Milesianos (vide Lenda da Fundaccedilatildeo de Portugal Irlan-da e Escoacutecia) tinham razatildeo pois a geneacutetica corrobora a grande quantidade de irlandeses de ambos os sexos que chegaram agraves ilhas vindos da Ibeacuteria

Ao encontro destas conclusotildees de Sykes e com directa relaccedilatildeo com o tema da Lenda da Fundaccedilatildeo veio uma outra achega de um estudo geneacuteti-co feito por um grupo de cientistas (J Zschocke e outros Phenylketonuria and the peoples of Nothern Ireland wwwspringerlinkcomcontent60mfveencn3unn8f) cuja preocupaccedilatildeo foi a de encontrar o ras-to da origem de certas doenccedilas Atraveacutes da anaacutelise de mutaccedilotildees geneacuteticas adiantam laquoThe analysis of phenylketonuria mutations in Nothern Ireland shows that most major episodes of immigration have left a record in the modern genepool The mutation I65T can be traced to the Palaeolithic people of western Europe who in the Mesolithic period first colonised Irelandraquo

Muitas destas afirmaccedilotildees de especialistas de geneacutetica parecem fazer- -nos recuar ainda mais no tempo do que o proacuteprio texto da lenda do GateloMil e dos seus descendentes os Milesianos personagens miacuteticas a quem se atribui a fundaccedilatildeo de Portugal Irlanda e Escoacutecia (v Lenda da Fundaccedilatildeohellip) Mas a verdade eacute que essa divergecircncia cronoloacutegica eacute soacute apa-rente Como se fez entatildeo referecircncia nessa obra esta lenda natildeo eacute uma uni-dade separada pertence a um corpus lendaacuterio muito mais complexo e que engloba uma sucessatildeo de eacutepocas A miacutetica invasatildeo milesiana eacute aliaacutes ali referida como sendo a uacuteltima Assim os resultados de algumas inves-tigaccedilotildees da Geneacutetica bem como os da arqueologia aqui levemente aflo-rados satildeo achegas essenciais natildeo soacute para tentar deslindar a possiacutevel Histoacuteria escondida nesta memoacuteria longiacutenqua como para nos levar a reconhecer que ela se insere num acircmbito histoacuterico-cultural que tambeacutem nos diz respeito As interligaccedilotildees entre a Peniacutensula Ibeacuterica e as ilhas Bri-tacircnicas nomeadamente a faixa atlacircntica a que pertencemos saem por isso mais reforccediladas e mais alargadas cronologicamente

7

Porque eacute tambeacutem a geneacutetica que nos faz recuar para aleacutem dos 10 000 anos jaacute referidos por Sykes e que nos conduz a outro facto importante o chamado Refuacutegio Ibeacuterico Paleoliacutetico Relacionadas e de acordo com os resul-tados de Sykes estatildeo as conclusotildees de outros investigadores Por exemplo em The Longue Dureacutee of Genetic Ancestry Multiple Genetic Marker Systems and Celtic Origins on the Atlantic Facade of Europe (Brian McEvoy e outros in The American Journal of Human Genetics 2004) os seus autores para aleacutem de afirmarem encontrar o mesmo legado geneacutetico ateacute agrave Escandinaacutevia dizem agrave semelhanccedila de Sykes laquoGenetic evidence has recently lent some support to the suggestion of a shared ancestral heritage among the human populations of Atlantic Europe[hellip] Some classical marker systems also hint at Atlantic affinities for example alleles of the ABO and Rhesus blood groups display frequency peaks in Atlantic Europe[hellip] The ldquoAtlantic modal haplotyperdquo[hellip] is present at an unusually high frequency in each population[hellip]raquo E adiantam que laquo[hellip] this has been interpreted as a common Paleolithic genetic legacy that was relatively undisturbed at the edge of the European peninsula by subsequent dispersals from the east such as those suggested to have taken place during the spread of the Neolithicraquo Especificando estes autores sugerem que laquoDuring the last glaciation human habitation is thought to have been largely restricted to refugial areas in southern Europe[hellip] The recolonization of western Europe from an Iberian refugium after the retreat of the ice sheets 15000 years ago could explain the common genetic legacy in the area[hellip]raquo Assim concluem que laquo[hellip] the preservation of this signal within the Atlantic arc suggests that this region was relatively undisturbed by subsequent migrations across the continentraquo

Num outro estudo intitulado Climate Changes and Evolving Human Diversity in Europe during the last Glacial (Clive Gamble e outros pub online 2004 The Royal Society) de novo se coloca a hipoacutetese de ter havido um repovoamento significativo haacute cerca de 16 mil anos a partir do Sudoeste da Europa acrescentando-se tambeacutem que a laquoIbeacuteria emerges as the principal southern refuge for human populations in this region as shown by the more consistent numbers of radiocarbon determinations through the time Within Iberia the majority of the determinations come from Cantabria and Portugalraquo

Esta ideia de refuacutegio ibeacuterico e do repovoamento da Europa paleoliacutetica de sul para norte eacute aliaacutes um dado amplamente aceite confirmado tanto a partir do estudo do ADN matrilinear como do cromossoma Y Segun-do as estimativas avanccediladas calcula-se que a populaccedilatildeo ibeacuterica contaria

8

nessa data com cerca de 5000 indiviacuteduos E de igual modo se sugere que laquoall the molecular data are congruent with the idea that the cultural and demic impact from the Near East in the Neolithic was very attenuated on the Atlantic edge of Europe in particular the Iberian Peninsula For this reason it should be at this Atlantic fringe where the Paleolithic contribution to modern European populations is expected to be most conspicuousraquo (Ana Gonzalez e outros laquoMitochondrial DNA Affinities at the Atlantic Fringe of Europeraquo in American Journal of Physical Anthropology 2003)

A este propoacutesito gostaria de evocar uma observaccedilatildeo feita em tom colo-quial pelo professor Sobrinho Simotildees presidente do IPATIMUD (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) durante o painel Ciecircncias da Vida e Biotecnologia realizado no Encontro Novas Fron-teiras da Ciecircncia e do Conhecimento (Vilamoura 1 de Abril de 2006) e que me atraiu especialmente laquoQuando houve o uacuteltimo glaciar e a Europa gelou aiacute haacute uns 15 17 mil anos os Europeus morreram todos e foi a partir da Peniacutensula Ibeacuterica que se repovoou a Europa[hellip]raquo

No que respeita ao estado da arte em Portugal e tal como Sobrinho Simotildees tambeacutem referiu entatildeo nesta aacuterea da geneacutetica muitos satildeo os espe-cialistas portugueses a trabalhar na linha da frente e com vasta documen-taccedilatildeo jaacute publicada E investigadores como A Amorim Luiacutesa Pereira Pau-lo Santos A Martinho H Breda-Coimbra A Brehm do Porto Coimbra ou Funchal chegam a conclusotildees convergentes agraves aqui apresentadas

Em laquoHigh-resolution mtDNA evidence for the late-glacial resettlement of Europe from an Iberian refugiumraquo (L Pereira e outros in Genome Research 1519-24 by Cold Spring Harbor Laboratory Press 2005) atraveacutes do estudo correlativo do mtADN (mitocondrial) e do cromossoma Y con-sidera-se de facto ter havido a expansatildeo populacional a partir do refuacutegio ibeacuterico quando os gelos comeccedilaram a recuar Os dados obtidos a partir desse trabalho indicam tambeacutem laquo[hellip] that the major demographic signal in the modern European mtADN pool is the result of the expansion of the hunter-gatherer populations at the end of the Paleolithic althoug this has not entirely erased the traces of earlier processesraquo

Em concordacircncia com os testemunhos geneacuteticos os estudos arqueoloacute-gicos vecircm igualmente sugerir uma possiacutevel permanecircncia das populaccedilotildees no nosso territoacuterio ao longo do Paleoliacutetico E tambeacutem eles contribuem para negar a descontinuidade da evoluccedilatildeo dessas populaccedilotildees para as cul-turas subsequentes Actualmente assistimos a um aumento das investiga-ccedilotildees a apontar nesse sentido e como exemplos cite-se a orla costeira do

9

Alentejo e do Algarve onde tem vindo a encontrar-se um cada vez maior nuacutemero siacutetios preacute-histoacutericos (J L Cardoso laquoComunidades Humanas da Estremadura agrave Costa Vicentinaraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoral Portu-guecircs e Fenoacutemenos Correlativos Geografia Histoacuteria Arqueologia e Climatologia Actas do Coloacutequio pp 305-357 Universidade Aberta Lisboa 2004 e Nuno Bicho laquoAs Comunidades Humanas de Caccediladores-recolectores do Algarve Ocidentalraquo in Evoluccedilatildeo Geohistoacuterica do Litoralhellip pp 359-396)

E talvez mais se pudesse achar submerso natildeo soacute no Algarve como ao longo de toda a beira atlacircntica e nos surpreendessehellip Porque ndash e faccedilo aqui um breve aparte que me parece a propoacutesito ndash atraveacutes da paleoclimatolo-gia sabe-se agora que o niacutevel do mar antes do degelo haacute cerca de 18 000 anos estava numa quota mais baixa chegando a atingir 120 a 140 metros abaixo do niacutevel actual (J M Alveirinho Dias laquoA Histoacuteria da Evoluccedilatildeo do Litoral Portuguecircsraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoralhellip pp 157-170) Por outro lado tambeacutem os investigadores desta ciecircncia referem que o ameniza-dor climateacuterico constituiacutedo pelo Atlacircntico natildeo teraacute permitido a invasatildeo dos gelos glaciaacuterios na faixa ocidental da Peniacutensula Ibeacuterica A confirmaacute-lo estatildeo tambeacutem os estudos paleozooloacutegicos que referem a ausecircncia de ves-tiacutegios de espeacutecies proacuteprias de regiotildees glaciares como o urso polar a rena ou o mamute Poreacutem lebres cavalos coelhos veados ou auroques abun-dariam constituindo assim tal como o coberto vegetal um conjunto de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a sobrevivecircncia da vida humana Embora como adianta Alveirinho Dias os icebergues flutuassem ao lar-go da nossa costa ateacute ao Norte de Aacutefrica a verdade eacute que em vaacuterios locais havia laquovastas planiacutecies litorais actualmente submersas[hellip] com vegetaccedilatildeo dominante de tipo herbaacuteceo[hellip]raquo (op cit p 162) Foi portanto essa linha da costa a ter sofrido ao longo de mileacutenios muitas oscilaccedilotildees pois haacute cerca de 10 000 anos no iniacutecio do Holoceacutenico laquoteraacute havido uma elevaccedilatildeo muito raacutepida das aacuteguas[hellip] com intenso preenchimento dos vales estuarinosraquo (id ibidem) ateacute atingir mais ou menos os niacuteveis actuais

Assim partindo de dados como estes da paleoclimatologia da paleo-zoologia ou da paleobotacircnica a arqueologia potildee a hipoacutetese de que com o subsequente decliacutenio dos territoacuterios de caccedila se criaram as laquocondiccedilotildees favoraacuteveis agrave adopccedilatildeo de estrateacutegias de subsistecircncia de largo espectro (nas quais os recursos marino-estuarinos detiveram um lugar proemi-nente) pelas sociedades de caccediladores-recolectores holoceacutenicas A cres-cente importacircncia dos recursos aquaacuteticos disponibilizados por ricos ambientes estuarinos que atingem ao longo do Holoceacutenico Antigo e

10

iniacutecios do Holoceacutenico Meacutedio grande desenvolvimento proporcionou verdadeiras economias de pesca-recolecccedilatildeo que iratildeo no Mesoliacutetico suportar elevados iacutendices de territorialidade sedentarizaccedilatildeo sazonal e sociabilidade[hellip]raquo (Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva Alteraccedilotildees Ambientais e Povoamento na transiccedilatildeo Mesoliacutetico-Neoliacutetico da Costa Sudoeste in op cit pp 397-423)

Satildeo hipoacuteteses como estas que nos levam a admitir a mesma linha de continuidade do Paleoliacutetico ao Mesoliacutetico e deste ao Neoliacutetico sugerida tambeacutem pela geneacutetica E articulando o que ficou dito com a Lenda da Fun-daccedilatildeo episoacutedios como os de Gatelo bem como as miacuteticas invasotildees relata-das no Lebor Gabala Erren (Livro das Invasotildees Irlandesas) podem ser o tal gratildeo da verdade histoacuterica de que fala Sykes Podem reflectir assim

ndash a constacircncia das idas e vindas ao longo do Atlacircntico de grupos humanos desde a mais remota Antiguidade

ndash a faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica como sendo o habitat nuclear desses grupos que por circunstacircncias devidas agraves alteraccedilotildees geoclimateacuteri-cas entre outras acabariam por se separar diversas vezes ao longo do tempo

Seraacute talvez por isso que ao lermos o Lebor Gabala Erren ficamos com a sensaccedilatildeo de que muitas daquelas sucessivas levas de gentes que o mito remete para tempos da Histoacuteria antes da Histoacuteria tecircm como ponto de partida ndash ou pelo menos como ponto de confluecircncia importante ndash a Peniacutensula Ibeacuterica nomeadamente a faixa ocidental Jaacute no texto da Lenda da Fundaccedilatildeo se citaram os Tuatha teacute Danan (laquofilhos da deusa Anaraquo) mas haacute outras invasotildees com conotaccedilotildees curiosas que nos sugerem um passa-do distante comum como a de Partolion a dos Nemed ou a dos Firbold Pela minha parte fiquei com esse sentimento e isso deu-me uma visatildeo diferente da que tinha sobre a nossa histoacuteria Os estudos geneacuteticos em particular e que eu desconhecia quando redigi a Lenda da Fundaccedilatildeo vie-ram afinal tornaacute-la mais consistente se bem que em Histoacuteria como nas outras ciecircncias nada se possa considerar definitivo novas descobertas podem vir a alterar os nossos conceitos mesmo os mais enraizados Vamos ver a seguir precisamente como em conjugaccedilatildeo com os estudos actuais de algumas das disciplinas acima citadas outros cientistas em especial linguistas formularam novas hipoacuteteses acerca da evoluccedilatildeo da Histoacuteria cujas implicaccedilotildees satildeo grandes e profundas

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

3

A Histoacuteria eacute a forma espiritual ndash expressatildeo que abarca a ciecircncia a arte etc ndash de uma cultura prestar contas do seu passado

Huizinga

PROacuteLOGO Haacute jaacute algum tempo que a partir das nossas investigaccedilotildees era inten-

ccedilatildeo da Fernanda Frazatildeo (editora e investigadora de Histoacuteria) e minha acrescentarmos agrave Lenda da Fundaccedilatildeo de Portugal Irlanda e Escoacutecia (Apenas Livros 2005) editada nesta mesma colecccedilatildeo mais 4 ou 5 paacuteginas com algumas das informaccedilotildees que se seguem Afinal muito do que aqui eacute abordado teraacute de ficar para posteriores desenvolvimentos e o que era para ser uma adenda transformou-se noutro livro devido agrave sua dimen-satildeo incompatiacutevel com o formato destas pequenas obras Este eacute assim o vol II da Lenda da Fundaccedilatildeo A bibliografia consultada eacute mais vasta do que a mencionada mas tambeacutem por causa da dimensatildeo optou-se por citar no interior do texto apenas a mais importante Tambeacutem se optou por transcrever as citaccedilotildees dos autores em inglecircs e espanhol traduzin-do-se para melhor compreensatildeo as italianas

Quero deixar aqui expressos os meus maiores e mais sinceros agradecimentos ao professor Xaverio Ballester que demonstrando uma enorme simpatia se disponibilizou prontamente a ler a emendar-me a matildeo e a trazer-me achegas preciosas Tambeacutem foi preciosa uma informa-ccedilatildeo do professor Manuel Calado a quem igualmente aproveito para agradecer outras ajudas retroactivas Um muito obrigada tambeacutem ao meu marido pela paciecircncia para ler e reler estas linhas e pelo grande empenhamento que pocircs na correcccedilatildeo e nas pesquisas que fez para me ajudar neste trabalho

4

I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA

E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA Quando o trabalho de a Lenda da Fundaccedilatildeo foi realizado em 2005 tive

a tentaccedilatildeo de referir a Geneacutetica como disciplina que poderia ajudar a comprovar o que haveria de verdade histoacuterica por detraacutes desse corpo lendaacuterio A tal natildeo me atrevi entatildeo pois era quase completo o meu des-conhecimento e ainda natildeo tinha feito um estudo muito seguro do que jaacute se investigava e divulgava nessa mateacuteria Poreacutem passado precisamente um ano sobre a publicaccedilatildeo da primeira ediccedilatildeo desse pequeno livro em Setembro de 2006 saiu a obra de Bryan Sykes Blood of the Isles Exploring the Genetic Roots of Our Tribal History (Bantam Press) E com ela essa aacuterea abriu-se inevitavelmente agrave minha curiosidade

Este professor e especialista de Geneacutetica da Universidade de Oxford apoacutes um estudo efectuado durante dez anos veio trazer a lume as con-clusotildees a que ele e o seu grupo de investigadores chegaram a partir de as anaacutelises do ADN do povo britacircnico baseada num grande nuacutemero de amostras das populaccedilotildees de todas as ilhas E tive a surpresa agradaacutevel de ver nesta obra uma ajuda riquiacutessima para a possiacutevel confirmaccedilatildeo de muitas das hipoacuteteses entatildeo levantadas preenchendo a minha lacuna

Por outro lado verifiquei que tambeacutem o autor confrontava as suas proacuteprias investigaccedilotildees com o mesmo corpus mitoloacutegico em que se insere a Lenda da Fundaccedilatildeo e a arqueologia estudada em torno dele Assim em Blood of the Isles Sykes para aleacutem de afirmar que os mitos satildeo instrumen-tos poderosos pois laquooften contain more than a grain of truthraquo (p 135) estabelece um paralelismo entre as comunidades dos concheiros mesoliacute-ticos da costa portuguesa ndash do Tejo e do Sado ndash e os da Irlanda e o seu processo evolutivo para os tempos dos primeiros agricultores (p 142) Igualmente recorre ao arqueoacutelogo Barry Cunliffe estudioso dos monu-mentos megaliacuteticos ao longo da costa atlacircntica das ilhas Britacircnicas agrave Ibeacute-ria dizendo que ele laquo[hellip]traces their origin to the shell middens of Meso-lithic Portugal[hellip]raquo (p 143) Na verdade Cunliffe frequentemente citado na Lenda da Fundaccedilatildeo considera agrave semelhanccedila de M Calado (Menires do Alentejo Central wwwcrookscapeorg) haver uma correspondecircncia oacutebvia entre a arquitectura mesoliacutetica e a arquitectura megaliacutetica do Neo-liacutetico Antigo que enxameia o Alentejo central regiatildeo contiacutegua agrave dos maiores concheiros encontrados ateacute agrave data em Portugal ndash os do Tejo e do Sado A evidecircncia dessa continuidade eacute visiacutevel nos mais antigos esti-

5

los de arquitectura funeraacuteria neoliacutetica isto eacute as antas e as antas de corre-dor onde as mamoas tecircm terra no lugar das conchas a cobertura prefe-rencial das sepulturas mesoliacuteticas

Por tudo isto B Sykes considera que laquo[hellip]as well as these rich origin myths there is an abundance of solid archeological evidence of Irlandrsquos pastraquo (p 135) e que tais elementos satildeo laquo[hellip]definitely something to bear in mind when we contemplate the living archaeology of the genesraquo (pp 144-145) Abordando a sua aacuterea especiacutefica Sykes eacute de opiniatildeo que os resultados das anaacutelises do ADN irlandecircs se harmonizam inteiramente com os do ADN das restantes populaccedilotildees das ilhas Britacircnicas (p 64) Deste modo para este investigador as raiacutezes geneacuteticas de linha materna natildeo soacute da Irlanda como da regiatildeo ocidental da Gratilde-Bretanha encon-tram-se nas populaccedilotildees que habitaram a faixa atlacircntica do Extremo Oci-dente da Europa desde eacutepocas recuadas laquoThe matrilineal history of the Isles is both ancient and continuous I see no reason at all from the results why many of our maternal lineages should not go right back through the milennia to the very first Paleolithic and Mesolithic settlers who reached the islands around 10 000 years ago[hellip]raquo (pp 279 e seg) E acrescenta laquo[hellip]There was a very large-scale movement along the Atlantic seabord north from Iberia begining as far back as the early Neolithic and perhaps even before that[hellip] The number of exact and close matches between the maternal clans of western and northern Iberia and the western half of the Isles is very impressive much more so than the much poorer matches with continental Europeraquo (p 280)

Mas Sykes tambeacutem compara estes resultados da heranccedila materna com os resultados obtidos quanto agrave linhagem masculina A existecircncia predomi-nante natildeo soacute de outros elementos mas igualmente do cromossoma Y a que chama atlacircntico e as notoacuterias afinidades com a Ibeacuteria reforccedilam a sua hipoacutetese afirmando estar convencido ser nessa direcccedilatildeo que se devem procurar as origens da grande maioria dos cromossomas Y das ilhas

No que se refere em particular agrave Escoacutecia para aleacutem de salientar a sua directa descendecircncia das populaccedilotildees irlandesas tambeacutem confirma que no respeitante aos Pictos ndash outro povo historicamente integrante desse paiacutes ndash laquotheir ancestors just like the rest of the people of the Isles have been there a very long time but they are from the same stock They are from the same mixture of Iberian and European Mesolithic ancestry that forms the PictishCeltic substructure of the Islesraquo (p 282)

laquoThe sea has never been a barrier to the people of the Atlanticraquo (p 170) laquoThe sea routes of the Atlantic fringe conveyed both men and women to

6

the Islesraquo (pp 283 e seg) laquoIn Wales Ireland and Scotland the only branch is the oceanic branch[hellip] and the oceanic branch[hellip] peppers the map of the west side of Britain from bottom to top[hellip]raquo (p 274)

Em conclusatildeo para Sykes tambeacutem aqueles que alcanccedilaram as ilhas nos primeiros tempos da agricultura teratildeo vindo juntar-se aos que ali jaacute se encontravam desde os tempos mesoliacuteticos tendo laacute chegado precisa-mente atraveacutes das mesmas rotas mariacutetimas ou terrestres antes da subi-da do niacutevel do mar (pp 281 e seg)

Eacute perante estes resultados que de volta agraves lendas Sykes diz que os mitos irlandeses dos Milesianos (vide Lenda da Fundaccedilatildeo de Portugal Irlan-da e Escoacutecia) tinham razatildeo pois a geneacutetica corrobora a grande quantidade de irlandeses de ambos os sexos que chegaram agraves ilhas vindos da Ibeacuteria

Ao encontro destas conclusotildees de Sykes e com directa relaccedilatildeo com o tema da Lenda da Fundaccedilatildeo veio uma outra achega de um estudo geneacuteti-co feito por um grupo de cientistas (J Zschocke e outros Phenylketonuria and the peoples of Nothern Ireland wwwspringerlinkcomcontent60mfveencn3unn8f) cuja preocupaccedilatildeo foi a de encontrar o ras-to da origem de certas doenccedilas Atraveacutes da anaacutelise de mutaccedilotildees geneacuteticas adiantam laquoThe analysis of phenylketonuria mutations in Nothern Ireland shows that most major episodes of immigration have left a record in the modern genepool The mutation I65T can be traced to the Palaeolithic people of western Europe who in the Mesolithic period first colonised Irelandraquo

Muitas destas afirmaccedilotildees de especialistas de geneacutetica parecem fazer- -nos recuar ainda mais no tempo do que o proacuteprio texto da lenda do GateloMil e dos seus descendentes os Milesianos personagens miacuteticas a quem se atribui a fundaccedilatildeo de Portugal Irlanda e Escoacutecia (v Lenda da Fundaccedilatildeohellip) Mas a verdade eacute que essa divergecircncia cronoloacutegica eacute soacute apa-rente Como se fez entatildeo referecircncia nessa obra esta lenda natildeo eacute uma uni-dade separada pertence a um corpus lendaacuterio muito mais complexo e que engloba uma sucessatildeo de eacutepocas A miacutetica invasatildeo milesiana eacute aliaacutes ali referida como sendo a uacuteltima Assim os resultados de algumas inves-tigaccedilotildees da Geneacutetica bem como os da arqueologia aqui levemente aflo-rados satildeo achegas essenciais natildeo soacute para tentar deslindar a possiacutevel Histoacuteria escondida nesta memoacuteria longiacutenqua como para nos levar a reconhecer que ela se insere num acircmbito histoacuterico-cultural que tambeacutem nos diz respeito As interligaccedilotildees entre a Peniacutensula Ibeacuterica e as ilhas Bri-tacircnicas nomeadamente a faixa atlacircntica a que pertencemos saem por isso mais reforccediladas e mais alargadas cronologicamente

7

Porque eacute tambeacutem a geneacutetica que nos faz recuar para aleacutem dos 10 000 anos jaacute referidos por Sykes e que nos conduz a outro facto importante o chamado Refuacutegio Ibeacuterico Paleoliacutetico Relacionadas e de acordo com os resul-tados de Sykes estatildeo as conclusotildees de outros investigadores Por exemplo em The Longue Dureacutee of Genetic Ancestry Multiple Genetic Marker Systems and Celtic Origins on the Atlantic Facade of Europe (Brian McEvoy e outros in The American Journal of Human Genetics 2004) os seus autores para aleacutem de afirmarem encontrar o mesmo legado geneacutetico ateacute agrave Escandinaacutevia dizem agrave semelhanccedila de Sykes laquoGenetic evidence has recently lent some support to the suggestion of a shared ancestral heritage among the human populations of Atlantic Europe[hellip] Some classical marker systems also hint at Atlantic affinities for example alleles of the ABO and Rhesus blood groups display frequency peaks in Atlantic Europe[hellip] The ldquoAtlantic modal haplotyperdquo[hellip] is present at an unusually high frequency in each population[hellip]raquo E adiantam que laquo[hellip] this has been interpreted as a common Paleolithic genetic legacy that was relatively undisturbed at the edge of the European peninsula by subsequent dispersals from the east such as those suggested to have taken place during the spread of the Neolithicraquo Especificando estes autores sugerem que laquoDuring the last glaciation human habitation is thought to have been largely restricted to refugial areas in southern Europe[hellip] The recolonization of western Europe from an Iberian refugium after the retreat of the ice sheets 15000 years ago could explain the common genetic legacy in the area[hellip]raquo Assim concluem que laquo[hellip] the preservation of this signal within the Atlantic arc suggests that this region was relatively undisturbed by subsequent migrations across the continentraquo

Num outro estudo intitulado Climate Changes and Evolving Human Diversity in Europe during the last Glacial (Clive Gamble e outros pub online 2004 The Royal Society) de novo se coloca a hipoacutetese de ter havido um repovoamento significativo haacute cerca de 16 mil anos a partir do Sudoeste da Europa acrescentando-se tambeacutem que a laquoIbeacuteria emerges as the principal southern refuge for human populations in this region as shown by the more consistent numbers of radiocarbon determinations through the time Within Iberia the majority of the determinations come from Cantabria and Portugalraquo

Esta ideia de refuacutegio ibeacuterico e do repovoamento da Europa paleoliacutetica de sul para norte eacute aliaacutes um dado amplamente aceite confirmado tanto a partir do estudo do ADN matrilinear como do cromossoma Y Segun-do as estimativas avanccediladas calcula-se que a populaccedilatildeo ibeacuterica contaria

8

nessa data com cerca de 5000 indiviacuteduos E de igual modo se sugere que laquoall the molecular data are congruent with the idea that the cultural and demic impact from the Near East in the Neolithic was very attenuated on the Atlantic edge of Europe in particular the Iberian Peninsula For this reason it should be at this Atlantic fringe where the Paleolithic contribution to modern European populations is expected to be most conspicuousraquo (Ana Gonzalez e outros laquoMitochondrial DNA Affinities at the Atlantic Fringe of Europeraquo in American Journal of Physical Anthropology 2003)

A este propoacutesito gostaria de evocar uma observaccedilatildeo feita em tom colo-quial pelo professor Sobrinho Simotildees presidente do IPATIMUD (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) durante o painel Ciecircncias da Vida e Biotecnologia realizado no Encontro Novas Fron-teiras da Ciecircncia e do Conhecimento (Vilamoura 1 de Abril de 2006) e que me atraiu especialmente laquoQuando houve o uacuteltimo glaciar e a Europa gelou aiacute haacute uns 15 17 mil anos os Europeus morreram todos e foi a partir da Peniacutensula Ibeacuterica que se repovoou a Europa[hellip]raquo

No que respeita ao estado da arte em Portugal e tal como Sobrinho Simotildees tambeacutem referiu entatildeo nesta aacuterea da geneacutetica muitos satildeo os espe-cialistas portugueses a trabalhar na linha da frente e com vasta documen-taccedilatildeo jaacute publicada E investigadores como A Amorim Luiacutesa Pereira Pau-lo Santos A Martinho H Breda-Coimbra A Brehm do Porto Coimbra ou Funchal chegam a conclusotildees convergentes agraves aqui apresentadas

Em laquoHigh-resolution mtDNA evidence for the late-glacial resettlement of Europe from an Iberian refugiumraquo (L Pereira e outros in Genome Research 1519-24 by Cold Spring Harbor Laboratory Press 2005) atraveacutes do estudo correlativo do mtADN (mitocondrial) e do cromossoma Y con-sidera-se de facto ter havido a expansatildeo populacional a partir do refuacutegio ibeacuterico quando os gelos comeccedilaram a recuar Os dados obtidos a partir desse trabalho indicam tambeacutem laquo[hellip] that the major demographic signal in the modern European mtADN pool is the result of the expansion of the hunter-gatherer populations at the end of the Paleolithic althoug this has not entirely erased the traces of earlier processesraquo

Em concordacircncia com os testemunhos geneacuteticos os estudos arqueoloacute-gicos vecircm igualmente sugerir uma possiacutevel permanecircncia das populaccedilotildees no nosso territoacuterio ao longo do Paleoliacutetico E tambeacutem eles contribuem para negar a descontinuidade da evoluccedilatildeo dessas populaccedilotildees para as cul-turas subsequentes Actualmente assistimos a um aumento das investiga-ccedilotildees a apontar nesse sentido e como exemplos cite-se a orla costeira do

9

Alentejo e do Algarve onde tem vindo a encontrar-se um cada vez maior nuacutemero siacutetios preacute-histoacutericos (J L Cardoso laquoComunidades Humanas da Estremadura agrave Costa Vicentinaraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoral Portu-guecircs e Fenoacutemenos Correlativos Geografia Histoacuteria Arqueologia e Climatologia Actas do Coloacutequio pp 305-357 Universidade Aberta Lisboa 2004 e Nuno Bicho laquoAs Comunidades Humanas de Caccediladores-recolectores do Algarve Ocidentalraquo in Evoluccedilatildeo Geohistoacuterica do Litoralhellip pp 359-396)

E talvez mais se pudesse achar submerso natildeo soacute no Algarve como ao longo de toda a beira atlacircntica e nos surpreendessehellip Porque ndash e faccedilo aqui um breve aparte que me parece a propoacutesito ndash atraveacutes da paleoclimatolo-gia sabe-se agora que o niacutevel do mar antes do degelo haacute cerca de 18 000 anos estava numa quota mais baixa chegando a atingir 120 a 140 metros abaixo do niacutevel actual (J M Alveirinho Dias laquoA Histoacuteria da Evoluccedilatildeo do Litoral Portuguecircsraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoralhellip pp 157-170) Por outro lado tambeacutem os investigadores desta ciecircncia referem que o ameniza-dor climateacuterico constituiacutedo pelo Atlacircntico natildeo teraacute permitido a invasatildeo dos gelos glaciaacuterios na faixa ocidental da Peniacutensula Ibeacuterica A confirmaacute-lo estatildeo tambeacutem os estudos paleozooloacutegicos que referem a ausecircncia de ves-tiacutegios de espeacutecies proacuteprias de regiotildees glaciares como o urso polar a rena ou o mamute Poreacutem lebres cavalos coelhos veados ou auroques abun-dariam constituindo assim tal como o coberto vegetal um conjunto de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a sobrevivecircncia da vida humana Embora como adianta Alveirinho Dias os icebergues flutuassem ao lar-go da nossa costa ateacute ao Norte de Aacutefrica a verdade eacute que em vaacuterios locais havia laquovastas planiacutecies litorais actualmente submersas[hellip] com vegetaccedilatildeo dominante de tipo herbaacuteceo[hellip]raquo (op cit p 162) Foi portanto essa linha da costa a ter sofrido ao longo de mileacutenios muitas oscilaccedilotildees pois haacute cerca de 10 000 anos no iniacutecio do Holoceacutenico laquoteraacute havido uma elevaccedilatildeo muito raacutepida das aacuteguas[hellip] com intenso preenchimento dos vales estuarinosraquo (id ibidem) ateacute atingir mais ou menos os niacuteveis actuais

Assim partindo de dados como estes da paleoclimatologia da paleo-zoologia ou da paleobotacircnica a arqueologia potildee a hipoacutetese de que com o subsequente decliacutenio dos territoacuterios de caccedila se criaram as laquocondiccedilotildees favoraacuteveis agrave adopccedilatildeo de estrateacutegias de subsistecircncia de largo espectro (nas quais os recursos marino-estuarinos detiveram um lugar proemi-nente) pelas sociedades de caccediladores-recolectores holoceacutenicas A cres-cente importacircncia dos recursos aquaacuteticos disponibilizados por ricos ambientes estuarinos que atingem ao longo do Holoceacutenico Antigo e

10

iniacutecios do Holoceacutenico Meacutedio grande desenvolvimento proporcionou verdadeiras economias de pesca-recolecccedilatildeo que iratildeo no Mesoliacutetico suportar elevados iacutendices de territorialidade sedentarizaccedilatildeo sazonal e sociabilidade[hellip]raquo (Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva Alteraccedilotildees Ambientais e Povoamento na transiccedilatildeo Mesoliacutetico-Neoliacutetico da Costa Sudoeste in op cit pp 397-423)

Satildeo hipoacuteteses como estas que nos levam a admitir a mesma linha de continuidade do Paleoliacutetico ao Mesoliacutetico e deste ao Neoliacutetico sugerida tambeacutem pela geneacutetica E articulando o que ficou dito com a Lenda da Fun-daccedilatildeo episoacutedios como os de Gatelo bem como as miacuteticas invasotildees relata-das no Lebor Gabala Erren (Livro das Invasotildees Irlandesas) podem ser o tal gratildeo da verdade histoacuterica de que fala Sykes Podem reflectir assim

ndash a constacircncia das idas e vindas ao longo do Atlacircntico de grupos humanos desde a mais remota Antiguidade

ndash a faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica como sendo o habitat nuclear desses grupos que por circunstacircncias devidas agraves alteraccedilotildees geoclimateacuteri-cas entre outras acabariam por se separar diversas vezes ao longo do tempo

Seraacute talvez por isso que ao lermos o Lebor Gabala Erren ficamos com a sensaccedilatildeo de que muitas daquelas sucessivas levas de gentes que o mito remete para tempos da Histoacuteria antes da Histoacuteria tecircm como ponto de partida ndash ou pelo menos como ponto de confluecircncia importante ndash a Peniacutensula Ibeacuterica nomeadamente a faixa ocidental Jaacute no texto da Lenda da Fundaccedilatildeo se citaram os Tuatha teacute Danan (laquofilhos da deusa Anaraquo) mas haacute outras invasotildees com conotaccedilotildees curiosas que nos sugerem um passa-do distante comum como a de Partolion a dos Nemed ou a dos Firbold Pela minha parte fiquei com esse sentimento e isso deu-me uma visatildeo diferente da que tinha sobre a nossa histoacuteria Os estudos geneacuteticos em particular e que eu desconhecia quando redigi a Lenda da Fundaccedilatildeo vie-ram afinal tornaacute-la mais consistente se bem que em Histoacuteria como nas outras ciecircncias nada se possa considerar definitivo novas descobertas podem vir a alterar os nossos conceitos mesmo os mais enraizados Vamos ver a seguir precisamente como em conjugaccedilatildeo com os estudos actuais de algumas das disciplinas acima citadas outros cientistas em especial linguistas formularam novas hipoacuteteses acerca da evoluccedilatildeo da Histoacuteria cujas implicaccedilotildees satildeo grandes e profundas

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

4

I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA

E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA Quando o trabalho de a Lenda da Fundaccedilatildeo foi realizado em 2005 tive

a tentaccedilatildeo de referir a Geneacutetica como disciplina que poderia ajudar a comprovar o que haveria de verdade histoacuterica por detraacutes desse corpo lendaacuterio A tal natildeo me atrevi entatildeo pois era quase completo o meu des-conhecimento e ainda natildeo tinha feito um estudo muito seguro do que jaacute se investigava e divulgava nessa mateacuteria Poreacutem passado precisamente um ano sobre a publicaccedilatildeo da primeira ediccedilatildeo desse pequeno livro em Setembro de 2006 saiu a obra de Bryan Sykes Blood of the Isles Exploring the Genetic Roots of Our Tribal History (Bantam Press) E com ela essa aacuterea abriu-se inevitavelmente agrave minha curiosidade

Este professor e especialista de Geneacutetica da Universidade de Oxford apoacutes um estudo efectuado durante dez anos veio trazer a lume as con-clusotildees a que ele e o seu grupo de investigadores chegaram a partir de as anaacutelises do ADN do povo britacircnico baseada num grande nuacutemero de amostras das populaccedilotildees de todas as ilhas E tive a surpresa agradaacutevel de ver nesta obra uma ajuda riquiacutessima para a possiacutevel confirmaccedilatildeo de muitas das hipoacuteteses entatildeo levantadas preenchendo a minha lacuna

Por outro lado verifiquei que tambeacutem o autor confrontava as suas proacuteprias investigaccedilotildees com o mesmo corpus mitoloacutegico em que se insere a Lenda da Fundaccedilatildeo e a arqueologia estudada em torno dele Assim em Blood of the Isles Sykes para aleacutem de afirmar que os mitos satildeo instrumen-tos poderosos pois laquooften contain more than a grain of truthraquo (p 135) estabelece um paralelismo entre as comunidades dos concheiros mesoliacute-ticos da costa portuguesa ndash do Tejo e do Sado ndash e os da Irlanda e o seu processo evolutivo para os tempos dos primeiros agricultores (p 142) Igualmente recorre ao arqueoacutelogo Barry Cunliffe estudioso dos monu-mentos megaliacuteticos ao longo da costa atlacircntica das ilhas Britacircnicas agrave Ibeacute-ria dizendo que ele laquo[hellip]traces their origin to the shell middens of Meso-lithic Portugal[hellip]raquo (p 143) Na verdade Cunliffe frequentemente citado na Lenda da Fundaccedilatildeo considera agrave semelhanccedila de M Calado (Menires do Alentejo Central wwwcrookscapeorg) haver uma correspondecircncia oacutebvia entre a arquitectura mesoliacutetica e a arquitectura megaliacutetica do Neo-liacutetico Antigo que enxameia o Alentejo central regiatildeo contiacutegua agrave dos maiores concheiros encontrados ateacute agrave data em Portugal ndash os do Tejo e do Sado A evidecircncia dessa continuidade eacute visiacutevel nos mais antigos esti-

5

los de arquitectura funeraacuteria neoliacutetica isto eacute as antas e as antas de corre-dor onde as mamoas tecircm terra no lugar das conchas a cobertura prefe-rencial das sepulturas mesoliacuteticas

Por tudo isto B Sykes considera que laquo[hellip]as well as these rich origin myths there is an abundance of solid archeological evidence of Irlandrsquos pastraquo (p 135) e que tais elementos satildeo laquo[hellip]definitely something to bear in mind when we contemplate the living archaeology of the genesraquo (pp 144-145) Abordando a sua aacuterea especiacutefica Sykes eacute de opiniatildeo que os resultados das anaacutelises do ADN irlandecircs se harmonizam inteiramente com os do ADN das restantes populaccedilotildees das ilhas Britacircnicas (p 64) Deste modo para este investigador as raiacutezes geneacuteticas de linha materna natildeo soacute da Irlanda como da regiatildeo ocidental da Gratilde-Bretanha encon-tram-se nas populaccedilotildees que habitaram a faixa atlacircntica do Extremo Oci-dente da Europa desde eacutepocas recuadas laquoThe matrilineal history of the Isles is both ancient and continuous I see no reason at all from the results why many of our maternal lineages should not go right back through the milennia to the very first Paleolithic and Mesolithic settlers who reached the islands around 10 000 years ago[hellip]raquo (pp 279 e seg) E acrescenta laquo[hellip]There was a very large-scale movement along the Atlantic seabord north from Iberia begining as far back as the early Neolithic and perhaps even before that[hellip] The number of exact and close matches between the maternal clans of western and northern Iberia and the western half of the Isles is very impressive much more so than the much poorer matches with continental Europeraquo (p 280)

Mas Sykes tambeacutem compara estes resultados da heranccedila materna com os resultados obtidos quanto agrave linhagem masculina A existecircncia predomi-nante natildeo soacute de outros elementos mas igualmente do cromossoma Y a que chama atlacircntico e as notoacuterias afinidades com a Ibeacuteria reforccedilam a sua hipoacutetese afirmando estar convencido ser nessa direcccedilatildeo que se devem procurar as origens da grande maioria dos cromossomas Y das ilhas

No que se refere em particular agrave Escoacutecia para aleacutem de salientar a sua directa descendecircncia das populaccedilotildees irlandesas tambeacutem confirma que no respeitante aos Pictos ndash outro povo historicamente integrante desse paiacutes ndash laquotheir ancestors just like the rest of the people of the Isles have been there a very long time but they are from the same stock They are from the same mixture of Iberian and European Mesolithic ancestry that forms the PictishCeltic substructure of the Islesraquo (p 282)

laquoThe sea has never been a barrier to the people of the Atlanticraquo (p 170) laquoThe sea routes of the Atlantic fringe conveyed both men and women to

6

the Islesraquo (pp 283 e seg) laquoIn Wales Ireland and Scotland the only branch is the oceanic branch[hellip] and the oceanic branch[hellip] peppers the map of the west side of Britain from bottom to top[hellip]raquo (p 274)

Em conclusatildeo para Sykes tambeacutem aqueles que alcanccedilaram as ilhas nos primeiros tempos da agricultura teratildeo vindo juntar-se aos que ali jaacute se encontravam desde os tempos mesoliacuteticos tendo laacute chegado precisa-mente atraveacutes das mesmas rotas mariacutetimas ou terrestres antes da subi-da do niacutevel do mar (pp 281 e seg)

Eacute perante estes resultados que de volta agraves lendas Sykes diz que os mitos irlandeses dos Milesianos (vide Lenda da Fundaccedilatildeo de Portugal Irlan-da e Escoacutecia) tinham razatildeo pois a geneacutetica corrobora a grande quantidade de irlandeses de ambos os sexos que chegaram agraves ilhas vindos da Ibeacuteria

Ao encontro destas conclusotildees de Sykes e com directa relaccedilatildeo com o tema da Lenda da Fundaccedilatildeo veio uma outra achega de um estudo geneacuteti-co feito por um grupo de cientistas (J Zschocke e outros Phenylketonuria and the peoples of Nothern Ireland wwwspringerlinkcomcontent60mfveencn3unn8f) cuja preocupaccedilatildeo foi a de encontrar o ras-to da origem de certas doenccedilas Atraveacutes da anaacutelise de mutaccedilotildees geneacuteticas adiantam laquoThe analysis of phenylketonuria mutations in Nothern Ireland shows that most major episodes of immigration have left a record in the modern genepool The mutation I65T can be traced to the Palaeolithic people of western Europe who in the Mesolithic period first colonised Irelandraquo

Muitas destas afirmaccedilotildees de especialistas de geneacutetica parecem fazer- -nos recuar ainda mais no tempo do que o proacuteprio texto da lenda do GateloMil e dos seus descendentes os Milesianos personagens miacuteticas a quem se atribui a fundaccedilatildeo de Portugal Irlanda e Escoacutecia (v Lenda da Fundaccedilatildeohellip) Mas a verdade eacute que essa divergecircncia cronoloacutegica eacute soacute apa-rente Como se fez entatildeo referecircncia nessa obra esta lenda natildeo eacute uma uni-dade separada pertence a um corpus lendaacuterio muito mais complexo e que engloba uma sucessatildeo de eacutepocas A miacutetica invasatildeo milesiana eacute aliaacutes ali referida como sendo a uacuteltima Assim os resultados de algumas inves-tigaccedilotildees da Geneacutetica bem como os da arqueologia aqui levemente aflo-rados satildeo achegas essenciais natildeo soacute para tentar deslindar a possiacutevel Histoacuteria escondida nesta memoacuteria longiacutenqua como para nos levar a reconhecer que ela se insere num acircmbito histoacuterico-cultural que tambeacutem nos diz respeito As interligaccedilotildees entre a Peniacutensula Ibeacuterica e as ilhas Bri-tacircnicas nomeadamente a faixa atlacircntica a que pertencemos saem por isso mais reforccediladas e mais alargadas cronologicamente

7

Porque eacute tambeacutem a geneacutetica que nos faz recuar para aleacutem dos 10 000 anos jaacute referidos por Sykes e que nos conduz a outro facto importante o chamado Refuacutegio Ibeacuterico Paleoliacutetico Relacionadas e de acordo com os resul-tados de Sykes estatildeo as conclusotildees de outros investigadores Por exemplo em The Longue Dureacutee of Genetic Ancestry Multiple Genetic Marker Systems and Celtic Origins on the Atlantic Facade of Europe (Brian McEvoy e outros in The American Journal of Human Genetics 2004) os seus autores para aleacutem de afirmarem encontrar o mesmo legado geneacutetico ateacute agrave Escandinaacutevia dizem agrave semelhanccedila de Sykes laquoGenetic evidence has recently lent some support to the suggestion of a shared ancestral heritage among the human populations of Atlantic Europe[hellip] Some classical marker systems also hint at Atlantic affinities for example alleles of the ABO and Rhesus blood groups display frequency peaks in Atlantic Europe[hellip] The ldquoAtlantic modal haplotyperdquo[hellip] is present at an unusually high frequency in each population[hellip]raquo E adiantam que laquo[hellip] this has been interpreted as a common Paleolithic genetic legacy that was relatively undisturbed at the edge of the European peninsula by subsequent dispersals from the east such as those suggested to have taken place during the spread of the Neolithicraquo Especificando estes autores sugerem que laquoDuring the last glaciation human habitation is thought to have been largely restricted to refugial areas in southern Europe[hellip] The recolonization of western Europe from an Iberian refugium after the retreat of the ice sheets 15000 years ago could explain the common genetic legacy in the area[hellip]raquo Assim concluem que laquo[hellip] the preservation of this signal within the Atlantic arc suggests that this region was relatively undisturbed by subsequent migrations across the continentraquo

Num outro estudo intitulado Climate Changes and Evolving Human Diversity in Europe during the last Glacial (Clive Gamble e outros pub online 2004 The Royal Society) de novo se coloca a hipoacutetese de ter havido um repovoamento significativo haacute cerca de 16 mil anos a partir do Sudoeste da Europa acrescentando-se tambeacutem que a laquoIbeacuteria emerges as the principal southern refuge for human populations in this region as shown by the more consistent numbers of radiocarbon determinations through the time Within Iberia the majority of the determinations come from Cantabria and Portugalraquo

Esta ideia de refuacutegio ibeacuterico e do repovoamento da Europa paleoliacutetica de sul para norte eacute aliaacutes um dado amplamente aceite confirmado tanto a partir do estudo do ADN matrilinear como do cromossoma Y Segun-do as estimativas avanccediladas calcula-se que a populaccedilatildeo ibeacuterica contaria

8

nessa data com cerca de 5000 indiviacuteduos E de igual modo se sugere que laquoall the molecular data are congruent with the idea that the cultural and demic impact from the Near East in the Neolithic was very attenuated on the Atlantic edge of Europe in particular the Iberian Peninsula For this reason it should be at this Atlantic fringe where the Paleolithic contribution to modern European populations is expected to be most conspicuousraquo (Ana Gonzalez e outros laquoMitochondrial DNA Affinities at the Atlantic Fringe of Europeraquo in American Journal of Physical Anthropology 2003)

A este propoacutesito gostaria de evocar uma observaccedilatildeo feita em tom colo-quial pelo professor Sobrinho Simotildees presidente do IPATIMUD (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) durante o painel Ciecircncias da Vida e Biotecnologia realizado no Encontro Novas Fron-teiras da Ciecircncia e do Conhecimento (Vilamoura 1 de Abril de 2006) e que me atraiu especialmente laquoQuando houve o uacuteltimo glaciar e a Europa gelou aiacute haacute uns 15 17 mil anos os Europeus morreram todos e foi a partir da Peniacutensula Ibeacuterica que se repovoou a Europa[hellip]raquo

No que respeita ao estado da arte em Portugal e tal como Sobrinho Simotildees tambeacutem referiu entatildeo nesta aacuterea da geneacutetica muitos satildeo os espe-cialistas portugueses a trabalhar na linha da frente e com vasta documen-taccedilatildeo jaacute publicada E investigadores como A Amorim Luiacutesa Pereira Pau-lo Santos A Martinho H Breda-Coimbra A Brehm do Porto Coimbra ou Funchal chegam a conclusotildees convergentes agraves aqui apresentadas

Em laquoHigh-resolution mtDNA evidence for the late-glacial resettlement of Europe from an Iberian refugiumraquo (L Pereira e outros in Genome Research 1519-24 by Cold Spring Harbor Laboratory Press 2005) atraveacutes do estudo correlativo do mtADN (mitocondrial) e do cromossoma Y con-sidera-se de facto ter havido a expansatildeo populacional a partir do refuacutegio ibeacuterico quando os gelos comeccedilaram a recuar Os dados obtidos a partir desse trabalho indicam tambeacutem laquo[hellip] that the major demographic signal in the modern European mtADN pool is the result of the expansion of the hunter-gatherer populations at the end of the Paleolithic althoug this has not entirely erased the traces of earlier processesraquo

Em concordacircncia com os testemunhos geneacuteticos os estudos arqueoloacute-gicos vecircm igualmente sugerir uma possiacutevel permanecircncia das populaccedilotildees no nosso territoacuterio ao longo do Paleoliacutetico E tambeacutem eles contribuem para negar a descontinuidade da evoluccedilatildeo dessas populaccedilotildees para as cul-turas subsequentes Actualmente assistimos a um aumento das investiga-ccedilotildees a apontar nesse sentido e como exemplos cite-se a orla costeira do

9

Alentejo e do Algarve onde tem vindo a encontrar-se um cada vez maior nuacutemero siacutetios preacute-histoacutericos (J L Cardoso laquoComunidades Humanas da Estremadura agrave Costa Vicentinaraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoral Portu-guecircs e Fenoacutemenos Correlativos Geografia Histoacuteria Arqueologia e Climatologia Actas do Coloacutequio pp 305-357 Universidade Aberta Lisboa 2004 e Nuno Bicho laquoAs Comunidades Humanas de Caccediladores-recolectores do Algarve Ocidentalraquo in Evoluccedilatildeo Geohistoacuterica do Litoralhellip pp 359-396)

E talvez mais se pudesse achar submerso natildeo soacute no Algarve como ao longo de toda a beira atlacircntica e nos surpreendessehellip Porque ndash e faccedilo aqui um breve aparte que me parece a propoacutesito ndash atraveacutes da paleoclimatolo-gia sabe-se agora que o niacutevel do mar antes do degelo haacute cerca de 18 000 anos estava numa quota mais baixa chegando a atingir 120 a 140 metros abaixo do niacutevel actual (J M Alveirinho Dias laquoA Histoacuteria da Evoluccedilatildeo do Litoral Portuguecircsraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoralhellip pp 157-170) Por outro lado tambeacutem os investigadores desta ciecircncia referem que o ameniza-dor climateacuterico constituiacutedo pelo Atlacircntico natildeo teraacute permitido a invasatildeo dos gelos glaciaacuterios na faixa ocidental da Peniacutensula Ibeacuterica A confirmaacute-lo estatildeo tambeacutem os estudos paleozooloacutegicos que referem a ausecircncia de ves-tiacutegios de espeacutecies proacuteprias de regiotildees glaciares como o urso polar a rena ou o mamute Poreacutem lebres cavalos coelhos veados ou auroques abun-dariam constituindo assim tal como o coberto vegetal um conjunto de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a sobrevivecircncia da vida humana Embora como adianta Alveirinho Dias os icebergues flutuassem ao lar-go da nossa costa ateacute ao Norte de Aacutefrica a verdade eacute que em vaacuterios locais havia laquovastas planiacutecies litorais actualmente submersas[hellip] com vegetaccedilatildeo dominante de tipo herbaacuteceo[hellip]raquo (op cit p 162) Foi portanto essa linha da costa a ter sofrido ao longo de mileacutenios muitas oscilaccedilotildees pois haacute cerca de 10 000 anos no iniacutecio do Holoceacutenico laquoteraacute havido uma elevaccedilatildeo muito raacutepida das aacuteguas[hellip] com intenso preenchimento dos vales estuarinosraquo (id ibidem) ateacute atingir mais ou menos os niacuteveis actuais

Assim partindo de dados como estes da paleoclimatologia da paleo-zoologia ou da paleobotacircnica a arqueologia potildee a hipoacutetese de que com o subsequente decliacutenio dos territoacuterios de caccedila se criaram as laquocondiccedilotildees favoraacuteveis agrave adopccedilatildeo de estrateacutegias de subsistecircncia de largo espectro (nas quais os recursos marino-estuarinos detiveram um lugar proemi-nente) pelas sociedades de caccediladores-recolectores holoceacutenicas A cres-cente importacircncia dos recursos aquaacuteticos disponibilizados por ricos ambientes estuarinos que atingem ao longo do Holoceacutenico Antigo e

10

iniacutecios do Holoceacutenico Meacutedio grande desenvolvimento proporcionou verdadeiras economias de pesca-recolecccedilatildeo que iratildeo no Mesoliacutetico suportar elevados iacutendices de territorialidade sedentarizaccedilatildeo sazonal e sociabilidade[hellip]raquo (Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva Alteraccedilotildees Ambientais e Povoamento na transiccedilatildeo Mesoliacutetico-Neoliacutetico da Costa Sudoeste in op cit pp 397-423)

Satildeo hipoacuteteses como estas que nos levam a admitir a mesma linha de continuidade do Paleoliacutetico ao Mesoliacutetico e deste ao Neoliacutetico sugerida tambeacutem pela geneacutetica E articulando o que ficou dito com a Lenda da Fun-daccedilatildeo episoacutedios como os de Gatelo bem como as miacuteticas invasotildees relata-das no Lebor Gabala Erren (Livro das Invasotildees Irlandesas) podem ser o tal gratildeo da verdade histoacuterica de que fala Sykes Podem reflectir assim

ndash a constacircncia das idas e vindas ao longo do Atlacircntico de grupos humanos desde a mais remota Antiguidade

ndash a faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica como sendo o habitat nuclear desses grupos que por circunstacircncias devidas agraves alteraccedilotildees geoclimateacuteri-cas entre outras acabariam por se separar diversas vezes ao longo do tempo

Seraacute talvez por isso que ao lermos o Lebor Gabala Erren ficamos com a sensaccedilatildeo de que muitas daquelas sucessivas levas de gentes que o mito remete para tempos da Histoacuteria antes da Histoacuteria tecircm como ponto de partida ndash ou pelo menos como ponto de confluecircncia importante ndash a Peniacutensula Ibeacuterica nomeadamente a faixa ocidental Jaacute no texto da Lenda da Fundaccedilatildeo se citaram os Tuatha teacute Danan (laquofilhos da deusa Anaraquo) mas haacute outras invasotildees com conotaccedilotildees curiosas que nos sugerem um passa-do distante comum como a de Partolion a dos Nemed ou a dos Firbold Pela minha parte fiquei com esse sentimento e isso deu-me uma visatildeo diferente da que tinha sobre a nossa histoacuteria Os estudos geneacuteticos em particular e que eu desconhecia quando redigi a Lenda da Fundaccedilatildeo vie-ram afinal tornaacute-la mais consistente se bem que em Histoacuteria como nas outras ciecircncias nada se possa considerar definitivo novas descobertas podem vir a alterar os nossos conceitos mesmo os mais enraizados Vamos ver a seguir precisamente como em conjugaccedilatildeo com os estudos actuais de algumas das disciplinas acima citadas outros cientistas em especial linguistas formularam novas hipoacuteteses acerca da evoluccedilatildeo da Histoacuteria cujas implicaccedilotildees satildeo grandes e profundas

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

5

los de arquitectura funeraacuteria neoliacutetica isto eacute as antas e as antas de corre-dor onde as mamoas tecircm terra no lugar das conchas a cobertura prefe-rencial das sepulturas mesoliacuteticas

Por tudo isto B Sykes considera que laquo[hellip]as well as these rich origin myths there is an abundance of solid archeological evidence of Irlandrsquos pastraquo (p 135) e que tais elementos satildeo laquo[hellip]definitely something to bear in mind when we contemplate the living archaeology of the genesraquo (pp 144-145) Abordando a sua aacuterea especiacutefica Sykes eacute de opiniatildeo que os resultados das anaacutelises do ADN irlandecircs se harmonizam inteiramente com os do ADN das restantes populaccedilotildees das ilhas Britacircnicas (p 64) Deste modo para este investigador as raiacutezes geneacuteticas de linha materna natildeo soacute da Irlanda como da regiatildeo ocidental da Gratilde-Bretanha encon-tram-se nas populaccedilotildees que habitaram a faixa atlacircntica do Extremo Oci-dente da Europa desde eacutepocas recuadas laquoThe matrilineal history of the Isles is both ancient and continuous I see no reason at all from the results why many of our maternal lineages should not go right back through the milennia to the very first Paleolithic and Mesolithic settlers who reached the islands around 10 000 years ago[hellip]raquo (pp 279 e seg) E acrescenta laquo[hellip]There was a very large-scale movement along the Atlantic seabord north from Iberia begining as far back as the early Neolithic and perhaps even before that[hellip] The number of exact and close matches between the maternal clans of western and northern Iberia and the western half of the Isles is very impressive much more so than the much poorer matches with continental Europeraquo (p 280)

Mas Sykes tambeacutem compara estes resultados da heranccedila materna com os resultados obtidos quanto agrave linhagem masculina A existecircncia predomi-nante natildeo soacute de outros elementos mas igualmente do cromossoma Y a que chama atlacircntico e as notoacuterias afinidades com a Ibeacuteria reforccedilam a sua hipoacutetese afirmando estar convencido ser nessa direcccedilatildeo que se devem procurar as origens da grande maioria dos cromossomas Y das ilhas

No que se refere em particular agrave Escoacutecia para aleacutem de salientar a sua directa descendecircncia das populaccedilotildees irlandesas tambeacutem confirma que no respeitante aos Pictos ndash outro povo historicamente integrante desse paiacutes ndash laquotheir ancestors just like the rest of the people of the Isles have been there a very long time but they are from the same stock They are from the same mixture of Iberian and European Mesolithic ancestry that forms the PictishCeltic substructure of the Islesraquo (p 282)

laquoThe sea has never been a barrier to the people of the Atlanticraquo (p 170) laquoThe sea routes of the Atlantic fringe conveyed both men and women to

6

the Islesraquo (pp 283 e seg) laquoIn Wales Ireland and Scotland the only branch is the oceanic branch[hellip] and the oceanic branch[hellip] peppers the map of the west side of Britain from bottom to top[hellip]raquo (p 274)

Em conclusatildeo para Sykes tambeacutem aqueles que alcanccedilaram as ilhas nos primeiros tempos da agricultura teratildeo vindo juntar-se aos que ali jaacute se encontravam desde os tempos mesoliacuteticos tendo laacute chegado precisa-mente atraveacutes das mesmas rotas mariacutetimas ou terrestres antes da subi-da do niacutevel do mar (pp 281 e seg)

Eacute perante estes resultados que de volta agraves lendas Sykes diz que os mitos irlandeses dos Milesianos (vide Lenda da Fundaccedilatildeo de Portugal Irlan-da e Escoacutecia) tinham razatildeo pois a geneacutetica corrobora a grande quantidade de irlandeses de ambos os sexos que chegaram agraves ilhas vindos da Ibeacuteria

Ao encontro destas conclusotildees de Sykes e com directa relaccedilatildeo com o tema da Lenda da Fundaccedilatildeo veio uma outra achega de um estudo geneacuteti-co feito por um grupo de cientistas (J Zschocke e outros Phenylketonuria and the peoples of Nothern Ireland wwwspringerlinkcomcontent60mfveencn3unn8f) cuja preocupaccedilatildeo foi a de encontrar o ras-to da origem de certas doenccedilas Atraveacutes da anaacutelise de mutaccedilotildees geneacuteticas adiantam laquoThe analysis of phenylketonuria mutations in Nothern Ireland shows that most major episodes of immigration have left a record in the modern genepool The mutation I65T can be traced to the Palaeolithic people of western Europe who in the Mesolithic period first colonised Irelandraquo

Muitas destas afirmaccedilotildees de especialistas de geneacutetica parecem fazer- -nos recuar ainda mais no tempo do que o proacuteprio texto da lenda do GateloMil e dos seus descendentes os Milesianos personagens miacuteticas a quem se atribui a fundaccedilatildeo de Portugal Irlanda e Escoacutecia (v Lenda da Fundaccedilatildeohellip) Mas a verdade eacute que essa divergecircncia cronoloacutegica eacute soacute apa-rente Como se fez entatildeo referecircncia nessa obra esta lenda natildeo eacute uma uni-dade separada pertence a um corpus lendaacuterio muito mais complexo e que engloba uma sucessatildeo de eacutepocas A miacutetica invasatildeo milesiana eacute aliaacutes ali referida como sendo a uacuteltima Assim os resultados de algumas inves-tigaccedilotildees da Geneacutetica bem como os da arqueologia aqui levemente aflo-rados satildeo achegas essenciais natildeo soacute para tentar deslindar a possiacutevel Histoacuteria escondida nesta memoacuteria longiacutenqua como para nos levar a reconhecer que ela se insere num acircmbito histoacuterico-cultural que tambeacutem nos diz respeito As interligaccedilotildees entre a Peniacutensula Ibeacuterica e as ilhas Bri-tacircnicas nomeadamente a faixa atlacircntica a que pertencemos saem por isso mais reforccediladas e mais alargadas cronologicamente

7

Porque eacute tambeacutem a geneacutetica que nos faz recuar para aleacutem dos 10 000 anos jaacute referidos por Sykes e que nos conduz a outro facto importante o chamado Refuacutegio Ibeacuterico Paleoliacutetico Relacionadas e de acordo com os resul-tados de Sykes estatildeo as conclusotildees de outros investigadores Por exemplo em The Longue Dureacutee of Genetic Ancestry Multiple Genetic Marker Systems and Celtic Origins on the Atlantic Facade of Europe (Brian McEvoy e outros in The American Journal of Human Genetics 2004) os seus autores para aleacutem de afirmarem encontrar o mesmo legado geneacutetico ateacute agrave Escandinaacutevia dizem agrave semelhanccedila de Sykes laquoGenetic evidence has recently lent some support to the suggestion of a shared ancestral heritage among the human populations of Atlantic Europe[hellip] Some classical marker systems also hint at Atlantic affinities for example alleles of the ABO and Rhesus blood groups display frequency peaks in Atlantic Europe[hellip] The ldquoAtlantic modal haplotyperdquo[hellip] is present at an unusually high frequency in each population[hellip]raquo E adiantam que laquo[hellip] this has been interpreted as a common Paleolithic genetic legacy that was relatively undisturbed at the edge of the European peninsula by subsequent dispersals from the east such as those suggested to have taken place during the spread of the Neolithicraquo Especificando estes autores sugerem que laquoDuring the last glaciation human habitation is thought to have been largely restricted to refugial areas in southern Europe[hellip] The recolonization of western Europe from an Iberian refugium after the retreat of the ice sheets 15000 years ago could explain the common genetic legacy in the area[hellip]raquo Assim concluem que laquo[hellip] the preservation of this signal within the Atlantic arc suggests that this region was relatively undisturbed by subsequent migrations across the continentraquo

Num outro estudo intitulado Climate Changes and Evolving Human Diversity in Europe during the last Glacial (Clive Gamble e outros pub online 2004 The Royal Society) de novo se coloca a hipoacutetese de ter havido um repovoamento significativo haacute cerca de 16 mil anos a partir do Sudoeste da Europa acrescentando-se tambeacutem que a laquoIbeacuteria emerges as the principal southern refuge for human populations in this region as shown by the more consistent numbers of radiocarbon determinations through the time Within Iberia the majority of the determinations come from Cantabria and Portugalraquo

Esta ideia de refuacutegio ibeacuterico e do repovoamento da Europa paleoliacutetica de sul para norte eacute aliaacutes um dado amplamente aceite confirmado tanto a partir do estudo do ADN matrilinear como do cromossoma Y Segun-do as estimativas avanccediladas calcula-se que a populaccedilatildeo ibeacuterica contaria

8

nessa data com cerca de 5000 indiviacuteduos E de igual modo se sugere que laquoall the molecular data are congruent with the idea that the cultural and demic impact from the Near East in the Neolithic was very attenuated on the Atlantic edge of Europe in particular the Iberian Peninsula For this reason it should be at this Atlantic fringe where the Paleolithic contribution to modern European populations is expected to be most conspicuousraquo (Ana Gonzalez e outros laquoMitochondrial DNA Affinities at the Atlantic Fringe of Europeraquo in American Journal of Physical Anthropology 2003)

A este propoacutesito gostaria de evocar uma observaccedilatildeo feita em tom colo-quial pelo professor Sobrinho Simotildees presidente do IPATIMUD (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) durante o painel Ciecircncias da Vida e Biotecnologia realizado no Encontro Novas Fron-teiras da Ciecircncia e do Conhecimento (Vilamoura 1 de Abril de 2006) e que me atraiu especialmente laquoQuando houve o uacuteltimo glaciar e a Europa gelou aiacute haacute uns 15 17 mil anos os Europeus morreram todos e foi a partir da Peniacutensula Ibeacuterica que se repovoou a Europa[hellip]raquo

No que respeita ao estado da arte em Portugal e tal como Sobrinho Simotildees tambeacutem referiu entatildeo nesta aacuterea da geneacutetica muitos satildeo os espe-cialistas portugueses a trabalhar na linha da frente e com vasta documen-taccedilatildeo jaacute publicada E investigadores como A Amorim Luiacutesa Pereira Pau-lo Santos A Martinho H Breda-Coimbra A Brehm do Porto Coimbra ou Funchal chegam a conclusotildees convergentes agraves aqui apresentadas

Em laquoHigh-resolution mtDNA evidence for the late-glacial resettlement of Europe from an Iberian refugiumraquo (L Pereira e outros in Genome Research 1519-24 by Cold Spring Harbor Laboratory Press 2005) atraveacutes do estudo correlativo do mtADN (mitocondrial) e do cromossoma Y con-sidera-se de facto ter havido a expansatildeo populacional a partir do refuacutegio ibeacuterico quando os gelos comeccedilaram a recuar Os dados obtidos a partir desse trabalho indicam tambeacutem laquo[hellip] that the major demographic signal in the modern European mtADN pool is the result of the expansion of the hunter-gatherer populations at the end of the Paleolithic althoug this has not entirely erased the traces of earlier processesraquo

Em concordacircncia com os testemunhos geneacuteticos os estudos arqueoloacute-gicos vecircm igualmente sugerir uma possiacutevel permanecircncia das populaccedilotildees no nosso territoacuterio ao longo do Paleoliacutetico E tambeacutem eles contribuem para negar a descontinuidade da evoluccedilatildeo dessas populaccedilotildees para as cul-turas subsequentes Actualmente assistimos a um aumento das investiga-ccedilotildees a apontar nesse sentido e como exemplos cite-se a orla costeira do

9

Alentejo e do Algarve onde tem vindo a encontrar-se um cada vez maior nuacutemero siacutetios preacute-histoacutericos (J L Cardoso laquoComunidades Humanas da Estremadura agrave Costa Vicentinaraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoral Portu-guecircs e Fenoacutemenos Correlativos Geografia Histoacuteria Arqueologia e Climatologia Actas do Coloacutequio pp 305-357 Universidade Aberta Lisboa 2004 e Nuno Bicho laquoAs Comunidades Humanas de Caccediladores-recolectores do Algarve Ocidentalraquo in Evoluccedilatildeo Geohistoacuterica do Litoralhellip pp 359-396)

E talvez mais se pudesse achar submerso natildeo soacute no Algarve como ao longo de toda a beira atlacircntica e nos surpreendessehellip Porque ndash e faccedilo aqui um breve aparte que me parece a propoacutesito ndash atraveacutes da paleoclimatolo-gia sabe-se agora que o niacutevel do mar antes do degelo haacute cerca de 18 000 anos estava numa quota mais baixa chegando a atingir 120 a 140 metros abaixo do niacutevel actual (J M Alveirinho Dias laquoA Histoacuteria da Evoluccedilatildeo do Litoral Portuguecircsraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoralhellip pp 157-170) Por outro lado tambeacutem os investigadores desta ciecircncia referem que o ameniza-dor climateacuterico constituiacutedo pelo Atlacircntico natildeo teraacute permitido a invasatildeo dos gelos glaciaacuterios na faixa ocidental da Peniacutensula Ibeacuterica A confirmaacute-lo estatildeo tambeacutem os estudos paleozooloacutegicos que referem a ausecircncia de ves-tiacutegios de espeacutecies proacuteprias de regiotildees glaciares como o urso polar a rena ou o mamute Poreacutem lebres cavalos coelhos veados ou auroques abun-dariam constituindo assim tal como o coberto vegetal um conjunto de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a sobrevivecircncia da vida humana Embora como adianta Alveirinho Dias os icebergues flutuassem ao lar-go da nossa costa ateacute ao Norte de Aacutefrica a verdade eacute que em vaacuterios locais havia laquovastas planiacutecies litorais actualmente submersas[hellip] com vegetaccedilatildeo dominante de tipo herbaacuteceo[hellip]raquo (op cit p 162) Foi portanto essa linha da costa a ter sofrido ao longo de mileacutenios muitas oscilaccedilotildees pois haacute cerca de 10 000 anos no iniacutecio do Holoceacutenico laquoteraacute havido uma elevaccedilatildeo muito raacutepida das aacuteguas[hellip] com intenso preenchimento dos vales estuarinosraquo (id ibidem) ateacute atingir mais ou menos os niacuteveis actuais

Assim partindo de dados como estes da paleoclimatologia da paleo-zoologia ou da paleobotacircnica a arqueologia potildee a hipoacutetese de que com o subsequente decliacutenio dos territoacuterios de caccedila se criaram as laquocondiccedilotildees favoraacuteveis agrave adopccedilatildeo de estrateacutegias de subsistecircncia de largo espectro (nas quais os recursos marino-estuarinos detiveram um lugar proemi-nente) pelas sociedades de caccediladores-recolectores holoceacutenicas A cres-cente importacircncia dos recursos aquaacuteticos disponibilizados por ricos ambientes estuarinos que atingem ao longo do Holoceacutenico Antigo e

10

iniacutecios do Holoceacutenico Meacutedio grande desenvolvimento proporcionou verdadeiras economias de pesca-recolecccedilatildeo que iratildeo no Mesoliacutetico suportar elevados iacutendices de territorialidade sedentarizaccedilatildeo sazonal e sociabilidade[hellip]raquo (Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva Alteraccedilotildees Ambientais e Povoamento na transiccedilatildeo Mesoliacutetico-Neoliacutetico da Costa Sudoeste in op cit pp 397-423)

Satildeo hipoacuteteses como estas que nos levam a admitir a mesma linha de continuidade do Paleoliacutetico ao Mesoliacutetico e deste ao Neoliacutetico sugerida tambeacutem pela geneacutetica E articulando o que ficou dito com a Lenda da Fun-daccedilatildeo episoacutedios como os de Gatelo bem como as miacuteticas invasotildees relata-das no Lebor Gabala Erren (Livro das Invasotildees Irlandesas) podem ser o tal gratildeo da verdade histoacuterica de que fala Sykes Podem reflectir assim

ndash a constacircncia das idas e vindas ao longo do Atlacircntico de grupos humanos desde a mais remota Antiguidade

ndash a faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica como sendo o habitat nuclear desses grupos que por circunstacircncias devidas agraves alteraccedilotildees geoclimateacuteri-cas entre outras acabariam por se separar diversas vezes ao longo do tempo

Seraacute talvez por isso que ao lermos o Lebor Gabala Erren ficamos com a sensaccedilatildeo de que muitas daquelas sucessivas levas de gentes que o mito remete para tempos da Histoacuteria antes da Histoacuteria tecircm como ponto de partida ndash ou pelo menos como ponto de confluecircncia importante ndash a Peniacutensula Ibeacuterica nomeadamente a faixa ocidental Jaacute no texto da Lenda da Fundaccedilatildeo se citaram os Tuatha teacute Danan (laquofilhos da deusa Anaraquo) mas haacute outras invasotildees com conotaccedilotildees curiosas que nos sugerem um passa-do distante comum como a de Partolion a dos Nemed ou a dos Firbold Pela minha parte fiquei com esse sentimento e isso deu-me uma visatildeo diferente da que tinha sobre a nossa histoacuteria Os estudos geneacuteticos em particular e que eu desconhecia quando redigi a Lenda da Fundaccedilatildeo vie-ram afinal tornaacute-la mais consistente se bem que em Histoacuteria como nas outras ciecircncias nada se possa considerar definitivo novas descobertas podem vir a alterar os nossos conceitos mesmo os mais enraizados Vamos ver a seguir precisamente como em conjugaccedilatildeo com os estudos actuais de algumas das disciplinas acima citadas outros cientistas em especial linguistas formularam novas hipoacuteteses acerca da evoluccedilatildeo da Histoacuteria cujas implicaccedilotildees satildeo grandes e profundas

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

6

the Islesraquo (pp 283 e seg) laquoIn Wales Ireland and Scotland the only branch is the oceanic branch[hellip] and the oceanic branch[hellip] peppers the map of the west side of Britain from bottom to top[hellip]raquo (p 274)

Em conclusatildeo para Sykes tambeacutem aqueles que alcanccedilaram as ilhas nos primeiros tempos da agricultura teratildeo vindo juntar-se aos que ali jaacute se encontravam desde os tempos mesoliacuteticos tendo laacute chegado precisa-mente atraveacutes das mesmas rotas mariacutetimas ou terrestres antes da subi-da do niacutevel do mar (pp 281 e seg)

Eacute perante estes resultados que de volta agraves lendas Sykes diz que os mitos irlandeses dos Milesianos (vide Lenda da Fundaccedilatildeo de Portugal Irlan-da e Escoacutecia) tinham razatildeo pois a geneacutetica corrobora a grande quantidade de irlandeses de ambos os sexos que chegaram agraves ilhas vindos da Ibeacuteria

Ao encontro destas conclusotildees de Sykes e com directa relaccedilatildeo com o tema da Lenda da Fundaccedilatildeo veio uma outra achega de um estudo geneacuteti-co feito por um grupo de cientistas (J Zschocke e outros Phenylketonuria and the peoples of Nothern Ireland wwwspringerlinkcomcontent60mfveencn3unn8f) cuja preocupaccedilatildeo foi a de encontrar o ras-to da origem de certas doenccedilas Atraveacutes da anaacutelise de mutaccedilotildees geneacuteticas adiantam laquoThe analysis of phenylketonuria mutations in Nothern Ireland shows that most major episodes of immigration have left a record in the modern genepool The mutation I65T can be traced to the Palaeolithic people of western Europe who in the Mesolithic period first colonised Irelandraquo

Muitas destas afirmaccedilotildees de especialistas de geneacutetica parecem fazer- -nos recuar ainda mais no tempo do que o proacuteprio texto da lenda do GateloMil e dos seus descendentes os Milesianos personagens miacuteticas a quem se atribui a fundaccedilatildeo de Portugal Irlanda e Escoacutecia (v Lenda da Fundaccedilatildeohellip) Mas a verdade eacute que essa divergecircncia cronoloacutegica eacute soacute apa-rente Como se fez entatildeo referecircncia nessa obra esta lenda natildeo eacute uma uni-dade separada pertence a um corpus lendaacuterio muito mais complexo e que engloba uma sucessatildeo de eacutepocas A miacutetica invasatildeo milesiana eacute aliaacutes ali referida como sendo a uacuteltima Assim os resultados de algumas inves-tigaccedilotildees da Geneacutetica bem como os da arqueologia aqui levemente aflo-rados satildeo achegas essenciais natildeo soacute para tentar deslindar a possiacutevel Histoacuteria escondida nesta memoacuteria longiacutenqua como para nos levar a reconhecer que ela se insere num acircmbito histoacuterico-cultural que tambeacutem nos diz respeito As interligaccedilotildees entre a Peniacutensula Ibeacuterica e as ilhas Bri-tacircnicas nomeadamente a faixa atlacircntica a que pertencemos saem por isso mais reforccediladas e mais alargadas cronologicamente

7

Porque eacute tambeacutem a geneacutetica que nos faz recuar para aleacutem dos 10 000 anos jaacute referidos por Sykes e que nos conduz a outro facto importante o chamado Refuacutegio Ibeacuterico Paleoliacutetico Relacionadas e de acordo com os resul-tados de Sykes estatildeo as conclusotildees de outros investigadores Por exemplo em The Longue Dureacutee of Genetic Ancestry Multiple Genetic Marker Systems and Celtic Origins on the Atlantic Facade of Europe (Brian McEvoy e outros in The American Journal of Human Genetics 2004) os seus autores para aleacutem de afirmarem encontrar o mesmo legado geneacutetico ateacute agrave Escandinaacutevia dizem agrave semelhanccedila de Sykes laquoGenetic evidence has recently lent some support to the suggestion of a shared ancestral heritage among the human populations of Atlantic Europe[hellip] Some classical marker systems also hint at Atlantic affinities for example alleles of the ABO and Rhesus blood groups display frequency peaks in Atlantic Europe[hellip] The ldquoAtlantic modal haplotyperdquo[hellip] is present at an unusually high frequency in each population[hellip]raquo E adiantam que laquo[hellip] this has been interpreted as a common Paleolithic genetic legacy that was relatively undisturbed at the edge of the European peninsula by subsequent dispersals from the east such as those suggested to have taken place during the spread of the Neolithicraquo Especificando estes autores sugerem que laquoDuring the last glaciation human habitation is thought to have been largely restricted to refugial areas in southern Europe[hellip] The recolonization of western Europe from an Iberian refugium after the retreat of the ice sheets 15000 years ago could explain the common genetic legacy in the area[hellip]raquo Assim concluem que laquo[hellip] the preservation of this signal within the Atlantic arc suggests that this region was relatively undisturbed by subsequent migrations across the continentraquo

Num outro estudo intitulado Climate Changes and Evolving Human Diversity in Europe during the last Glacial (Clive Gamble e outros pub online 2004 The Royal Society) de novo se coloca a hipoacutetese de ter havido um repovoamento significativo haacute cerca de 16 mil anos a partir do Sudoeste da Europa acrescentando-se tambeacutem que a laquoIbeacuteria emerges as the principal southern refuge for human populations in this region as shown by the more consistent numbers of radiocarbon determinations through the time Within Iberia the majority of the determinations come from Cantabria and Portugalraquo

Esta ideia de refuacutegio ibeacuterico e do repovoamento da Europa paleoliacutetica de sul para norte eacute aliaacutes um dado amplamente aceite confirmado tanto a partir do estudo do ADN matrilinear como do cromossoma Y Segun-do as estimativas avanccediladas calcula-se que a populaccedilatildeo ibeacuterica contaria

8

nessa data com cerca de 5000 indiviacuteduos E de igual modo se sugere que laquoall the molecular data are congruent with the idea that the cultural and demic impact from the Near East in the Neolithic was very attenuated on the Atlantic edge of Europe in particular the Iberian Peninsula For this reason it should be at this Atlantic fringe where the Paleolithic contribution to modern European populations is expected to be most conspicuousraquo (Ana Gonzalez e outros laquoMitochondrial DNA Affinities at the Atlantic Fringe of Europeraquo in American Journal of Physical Anthropology 2003)

A este propoacutesito gostaria de evocar uma observaccedilatildeo feita em tom colo-quial pelo professor Sobrinho Simotildees presidente do IPATIMUD (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) durante o painel Ciecircncias da Vida e Biotecnologia realizado no Encontro Novas Fron-teiras da Ciecircncia e do Conhecimento (Vilamoura 1 de Abril de 2006) e que me atraiu especialmente laquoQuando houve o uacuteltimo glaciar e a Europa gelou aiacute haacute uns 15 17 mil anos os Europeus morreram todos e foi a partir da Peniacutensula Ibeacuterica que se repovoou a Europa[hellip]raquo

No que respeita ao estado da arte em Portugal e tal como Sobrinho Simotildees tambeacutem referiu entatildeo nesta aacuterea da geneacutetica muitos satildeo os espe-cialistas portugueses a trabalhar na linha da frente e com vasta documen-taccedilatildeo jaacute publicada E investigadores como A Amorim Luiacutesa Pereira Pau-lo Santos A Martinho H Breda-Coimbra A Brehm do Porto Coimbra ou Funchal chegam a conclusotildees convergentes agraves aqui apresentadas

Em laquoHigh-resolution mtDNA evidence for the late-glacial resettlement of Europe from an Iberian refugiumraquo (L Pereira e outros in Genome Research 1519-24 by Cold Spring Harbor Laboratory Press 2005) atraveacutes do estudo correlativo do mtADN (mitocondrial) e do cromossoma Y con-sidera-se de facto ter havido a expansatildeo populacional a partir do refuacutegio ibeacuterico quando os gelos comeccedilaram a recuar Os dados obtidos a partir desse trabalho indicam tambeacutem laquo[hellip] that the major demographic signal in the modern European mtADN pool is the result of the expansion of the hunter-gatherer populations at the end of the Paleolithic althoug this has not entirely erased the traces of earlier processesraquo

Em concordacircncia com os testemunhos geneacuteticos os estudos arqueoloacute-gicos vecircm igualmente sugerir uma possiacutevel permanecircncia das populaccedilotildees no nosso territoacuterio ao longo do Paleoliacutetico E tambeacutem eles contribuem para negar a descontinuidade da evoluccedilatildeo dessas populaccedilotildees para as cul-turas subsequentes Actualmente assistimos a um aumento das investiga-ccedilotildees a apontar nesse sentido e como exemplos cite-se a orla costeira do

9

Alentejo e do Algarve onde tem vindo a encontrar-se um cada vez maior nuacutemero siacutetios preacute-histoacutericos (J L Cardoso laquoComunidades Humanas da Estremadura agrave Costa Vicentinaraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoral Portu-guecircs e Fenoacutemenos Correlativos Geografia Histoacuteria Arqueologia e Climatologia Actas do Coloacutequio pp 305-357 Universidade Aberta Lisboa 2004 e Nuno Bicho laquoAs Comunidades Humanas de Caccediladores-recolectores do Algarve Ocidentalraquo in Evoluccedilatildeo Geohistoacuterica do Litoralhellip pp 359-396)

E talvez mais se pudesse achar submerso natildeo soacute no Algarve como ao longo de toda a beira atlacircntica e nos surpreendessehellip Porque ndash e faccedilo aqui um breve aparte que me parece a propoacutesito ndash atraveacutes da paleoclimatolo-gia sabe-se agora que o niacutevel do mar antes do degelo haacute cerca de 18 000 anos estava numa quota mais baixa chegando a atingir 120 a 140 metros abaixo do niacutevel actual (J M Alveirinho Dias laquoA Histoacuteria da Evoluccedilatildeo do Litoral Portuguecircsraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoralhellip pp 157-170) Por outro lado tambeacutem os investigadores desta ciecircncia referem que o ameniza-dor climateacuterico constituiacutedo pelo Atlacircntico natildeo teraacute permitido a invasatildeo dos gelos glaciaacuterios na faixa ocidental da Peniacutensula Ibeacuterica A confirmaacute-lo estatildeo tambeacutem os estudos paleozooloacutegicos que referem a ausecircncia de ves-tiacutegios de espeacutecies proacuteprias de regiotildees glaciares como o urso polar a rena ou o mamute Poreacutem lebres cavalos coelhos veados ou auroques abun-dariam constituindo assim tal como o coberto vegetal um conjunto de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a sobrevivecircncia da vida humana Embora como adianta Alveirinho Dias os icebergues flutuassem ao lar-go da nossa costa ateacute ao Norte de Aacutefrica a verdade eacute que em vaacuterios locais havia laquovastas planiacutecies litorais actualmente submersas[hellip] com vegetaccedilatildeo dominante de tipo herbaacuteceo[hellip]raquo (op cit p 162) Foi portanto essa linha da costa a ter sofrido ao longo de mileacutenios muitas oscilaccedilotildees pois haacute cerca de 10 000 anos no iniacutecio do Holoceacutenico laquoteraacute havido uma elevaccedilatildeo muito raacutepida das aacuteguas[hellip] com intenso preenchimento dos vales estuarinosraquo (id ibidem) ateacute atingir mais ou menos os niacuteveis actuais

Assim partindo de dados como estes da paleoclimatologia da paleo-zoologia ou da paleobotacircnica a arqueologia potildee a hipoacutetese de que com o subsequente decliacutenio dos territoacuterios de caccedila se criaram as laquocondiccedilotildees favoraacuteveis agrave adopccedilatildeo de estrateacutegias de subsistecircncia de largo espectro (nas quais os recursos marino-estuarinos detiveram um lugar proemi-nente) pelas sociedades de caccediladores-recolectores holoceacutenicas A cres-cente importacircncia dos recursos aquaacuteticos disponibilizados por ricos ambientes estuarinos que atingem ao longo do Holoceacutenico Antigo e

10

iniacutecios do Holoceacutenico Meacutedio grande desenvolvimento proporcionou verdadeiras economias de pesca-recolecccedilatildeo que iratildeo no Mesoliacutetico suportar elevados iacutendices de territorialidade sedentarizaccedilatildeo sazonal e sociabilidade[hellip]raquo (Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva Alteraccedilotildees Ambientais e Povoamento na transiccedilatildeo Mesoliacutetico-Neoliacutetico da Costa Sudoeste in op cit pp 397-423)

Satildeo hipoacuteteses como estas que nos levam a admitir a mesma linha de continuidade do Paleoliacutetico ao Mesoliacutetico e deste ao Neoliacutetico sugerida tambeacutem pela geneacutetica E articulando o que ficou dito com a Lenda da Fun-daccedilatildeo episoacutedios como os de Gatelo bem como as miacuteticas invasotildees relata-das no Lebor Gabala Erren (Livro das Invasotildees Irlandesas) podem ser o tal gratildeo da verdade histoacuterica de que fala Sykes Podem reflectir assim

ndash a constacircncia das idas e vindas ao longo do Atlacircntico de grupos humanos desde a mais remota Antiguidade

ndash a faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica como sendo o habitat nuclear desses grupos que por circunstacircncias devidas agraves alteraccedilotildees geoclimateacuteri-cas entre outras acabariam por se separar diversas vezes ao longo do tempo

Seraacute talvez por isso que ao lermos o Lebor Gabala Erren ficamos com a sensaccedilatildeo de que muitas daquelas sucessivas levas de gentes que o mito remete para tempos da Histoacuteria antes da Histoacuteria tecircm como ponto de partida ndash ou pelo menos como ponto de confluecircncia importante ndash a Peniacutensula Ibeacuterica nomeadamente a faixa ocidental Jaacute no texto da Lenda da Fundaccedilatildeo se citaram os Tuatha teacute Danan (laquofilhos da deusa Anaraquo) mas haacute outras invasotildees com conotaccedilotildees curiosas que nos sugerem um passa-do distante comum como a de Partolion a dos Nemed ou a dos Firbold Pela minha parte fiquei com esse sentimento e isso deu-me uma visatildeo diferente da que tinha sobre a nossa histoacuteria Os estudos geneacuteticos em particular e que eu desconhecia quando redigi a Lenda da Fundaccedilatildeo vie-ram afinal tornaacute-la mais consistente se bem que em Histoacuteria como nas outras ciecircncias nada se possa considerar definitivo novas descobertas podem vir a alterar os nossos conceitos mesmo os mais enraizados Vamos ver a seguir precisamente como em conjugaccedilatildeo com os estudos actuais de algumas das disciplinas acima citadas outros cientistas em especial linguistas formularam novas hipoacuteteses acerca da evoluccedilatildeo da Histoacuteria cujas implicaccedilotildees satildeo grandes e profundas

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

7

Porque eacute tambeacutem a geneacutetica que nos faz recuar para aleacutem dos 10 000 anos jaacute referidos por Sykes e que nos conduz a outro facto importante o chamado Refuacutegio Ibeacuterico Paleoliacutetico Relacionadas e de acordo com os resul-tados de Sykes estatildeo as conclusotildees de outros investigadores Por exemplo em The Longue Dureacutee of Genetic Ancestry Multiple Genetic Marker Systems and Celtic Origins on the Atlantic Facade of Europe (Brian McEvoy e outros in The American Journal of Human Genetics 2004) os seus autores para aleacutem de afirmarem encontrar o mesmo legado geneacutetico ateacute agrave Escandinaacutevia dizem agrave semelhanccedila de Sykes laquoGenetic evidence has recently lent some support to the suggestion of a shared ancestral heritage among the human populations of Atlantic Europe[hellip] Some classical marker systems also hint at Atlantic affinities for example alleles of the ABO and Rhesus blood groups display frequency peaks in Atlantic Europe[hellip] The ldquoAtlantic modal haplotyperdquo[hellip] is present at an unusually high frequency in each population[hellip]raquo E adiantam que laquo[hellip] this has been interpreted as a common Paleolithic genetic legacy that was relatively undisturbed at the edge of the European peninsula by subsequent dispersals from the east such as those suggested to have taken place during the spread of the Neolithicraquo Especificando estes autores sugerem que laquoDuring the last glaciation human habitation is thought to have been largely restricted to refugial areas in southern Europe[hellip] The recolonization of western Europe from an Iberian refugium after the retreat of the ice sheets 15000 years ago could explain the common genetic legacy in the area[hellip]raquo Assim concluem que laquo[hellip] the preservation of this signal within the Atlantic arc suggests that this region was relatively undisturbed by subsequent migrations across the continentraquo

Num outro estudo intitulado Climate Changes and Evolving Human Diversity in Europe during the last Glacial (Clive Gamble e outros pub online 2004 The Royal Society) de novo se coloca a hipoacutetese de ter havido um repovoamento significativo haacute cerca de 16 mil anos a partir do Sudoeste da Europa acrescentando-se tambeacutem que a laquoIbeacuteria emerges as the principal southern refuge for human populations in this region as shown by the more consistent numbers of radiocarbon determinations through the time Within Iberia the majority of the determinations come from Cantabria and Portugalraquo

Esta ideia de refuacutegio ibeacuterico e do repovoamento da Europa paleoliacutetica de sul para norte eacute aliaacutes um dado amplamente aceite confirmado tanto a partir do estudo do ADN matrilinear como do cromossoma Y Segun-do as estimativas avanccediladas calcula-se que a populaccedilatildeo ibeacuterica contaria

8

nessa data com cerca de 5000 indiviacuteduos E de igual modo se sugere que laquoall the molecular data are congruent with the idea that the cultural and demic impact from the Near East in the Neolithic was very attenuated on the Atlantic edge of Europe in particular the Iberian Peninsula For this reason it should be at this Atlantic fringe where the Paleolithic contribution to modern European populations is expected to be most conspicuousraquo (Ana Gonzalez e outros laquoMitochondrial DNA Affinities at the Atlantic Fringe of Europeraquo in American Journal of Physical Anthropology 2003)

A este propoacutesito gostaria de evocar uma observaccedilatildeo feita em tom colo-quial pelo professor Sobrinho Simotildees presidente do IPATIMUD (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) durante o painel Ciecircncias da Vida e Biotecnologia realizado no Encontro Novas Fron-teiras da Ciecircncia e do Conhecimento (Vilamoura 1 de Abril de 2006) e que me atraiu especialmente laquoQuando houve o uacuteltimo glaciar e a Europa gelou aiacute haacute uns 15 17 mil anos os Europeus morreram todos e foi a partir da Peniacutensula Ibeacuterica que se repovoou a Europa[hellip]raquo

No que respeita ao estado da arte em Portugal e tal como Sobrinho Simotildees tambeacutem referiu entatildeo nesta aacuterea da geneacutetica muitos satildeo os espe-cialistas portugueses a trabalhar na linha da frente e com vasta documen-taccedilatildeo jaacute publicada E investigadores como A Amorim Luiacutesa Pereira Pau-lo Santos A Martinho H Breda-Coimbra A Brehm do Porto Coimbra ou Funchal chegam a conclusotildees convergentes agraves aqui apresentadas

Em laquoHigh-resolution mtDNA evidence for the late-glacial resettlement of Europe from an Iberian refugiumraquo (L Pereira e outros in Genome Research 1519-24 by Cold Spring Harbor Laboratory Press 2005) atraveacutes do estudo correlativo do mtADN (mitocondrial) e do cromossoma Y con-sidera-se de facto ter havido a expansatildeo populacional a partir do refuacutegio ibeacuterico quando os gelos comeccedilaram a recuar Os dados obtidos a partir desse trabalho indicam tambeacutem laquo[hellip] that the major demographic signal in the modern European mtADN pool is the result of the expansion of the hunter-gatherer populations at the end of the Paleolithic althoug this has not entirely erased the traces of earlier processesraquo

Em concordacircncia com os testemunhos geneacuteticos os estudos arqueoloacute-gicos vecircm igualmente sugerir uma possiacutevel permanecircncia das populaccedilotildees no nosso territoacuterio ao longo do Paleoliacutetico E tambeacutem eles contribuem para negar a descontinuidade da evoluccedilatildeo dessas populaccedilotildees para as cul-turas subsequentes Actualmente assistimos a um aumento das investiga-ccedilotildees a apontar nesse sentido e como exemplos cite-se a orla costeira do

9

Alentejo e do Algarve onde tem vindo a encontrar-se um cada vez maior nuacutemero siacutetios preacute-histoacutericos (J L Cardoso laquoComunidades Humanas da Estremadura agrave Costa Vicentinaraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoral Portu-guecircs e Fenoacutemenos Correlativos Geografia Histoacuteria Arqueologia e Climatologia Actas do Coloacutequio pp 305-357 Universidade Aberta Lisboa 2004 e Nuno Bicho laquoAs Comunidades Humanas de Caccediladores-recolectores do Algarve Ocidentalraquo in Evoluccedilatildeo Geohistoacuterica do Litoralhellip pp 359-396)

E talvez mais se pudesse achar submerso natildeo soacute no Algarve como ao longo de toda a beira atlacircntica e nos surpreendessehellip Porque ndash e faccedilo aqui um breve aparte que me parece a propoacutesito ndash atraveacutes da paleoclimatolo-gia sabe-se agora que o niacutevel do mar antes do degelo haacute cerca de 18 000 anos estava numa quota mais baixa chegando a atingir 120 a 140 metros abaixo do niacutevel actual (J M Alveirinho Dias laquoA Histoacuteria da Evoluccedilatildeo do Litoral Portuguecircsraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoralhellip pp 157-170) Por outro lado tambeacutem os investigadores desta ciecircncia referem que o ameniza-dor climateacuterico constituiacutedo pelo Atlacircntico natildeo teraacute permitido a invasatildeo dos gelos glaciaacuterios na faixa ocidental da Peniacutensula Ibeacuterica A confirmaacute-lo estatildeo tambeacutem os estudos paleozooloacutegicos que referem a ausecircncia de ves-tiacutegios de espeacutecies proacuteprias de regiotildees glaciares como o urso polar a rena ou o mamute Poreacutem lebres cavalos coelhos veados ou auroques abun-dariam constituindo assim tal como o coberto vegetal um conjunto de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a sobrevivecircncia da vida humana Embora como adianta Alveirinho Dias os icebergues flutuassem ao lar-go da nossa costa ateacute ao Norte de Aacutefrica a verdade eacute que em vaacuterios locais havia laquovastas planiacutecies litorais actualmente submersas[hellip] com vegetaccedilatildeo dominante de tipo herbaacuteceo[hellip]raquo (op cit p 162) Foi portanto essa linha da costa a ter sofrido ao longo de mileacutenios muitas oscilaccedilotildees pois haacute cerca de 10 000 anos no iniacutecio do Holoceacutenico laquoteraacute havido uma elevaccedilatildeo muito raacutepida das aacuteguas[hellip] com intenso preenchimento dos vales estuarinosraquo (id ibidem) ateacute atingir mais ou menos os niacuteveis actuais

Assim partindo de dados como estes da paleoclimatologia da paleo-zoologia ou da paleobotacircnica a arqueologia potildee a hipoacutetese de que com o subsequente decliacutenio dos territoacuterios de caccedila se criaram as laquocondiccedilotildees favoraacuteveis agrave adopccedilatildeo de estrateacutegias de subsistecircncia de largo espectro (nas quais os recursos marino-estuarinos detiveram um lugar proemi-nente) pelas sociedades de caccediladores-recolectores holoceacutenicas A cres-cente importacircncia dos recursos aquaacuteticos disponibilizados por ricos ambientes estuarinos que atingem ao longo do Holoceacutenico Antigo e

10

iniacutecios do Holoceacutenico Meacutedio grande desenvolvimento proporcionou verdadeiras economias de pesca-recolecccedilatildeo que iratildeo no Mesoliacutetico suportar elevados iacutendices de territorialidade sedentarizaccedilatildeo sazonal e sociabilidade[hellip]raquo (Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva Alteraccedilotildees Ambientais e Povoamento na transiccedilatildeo Mesoliacutetico-Neoliacutetico da Costa Sudoeste in op cit pp 397-423)

Satildeo hipoacuteteses como estas que nos levam a admitir a mesma linha de continuidade do Paleoliacutetico ao Mesoliacutetico e deste ao Neoliacutetico sugerida tambeacutem pela geneacutetica E articulando o que ficou dito com a Lenda da Fun-daccedilatildeo episoacutedios como os de Gatelo bem como as miacuteticas invasotildees relata-das no Lebor Gabala Erren (Livro das Invasotildees Irlandesas) podem ser o tal gratildeo da verdade histoacuterica de que fala Sykes Podem reflectir assim

ndash a constacircncia das idas e vindas ao longo do Atlacircntico de grupos humanos desde a mais remota Antiguidade

ndash a faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica como sendo o habitat nuclear desses grupos que por circunstacircncias devidas agraves alteraccedilotildees geoclimateacuteri-cas entre outras acabariam por se separar diversas vezes ao longo do tempo

Seraacute talvez por isso que ao lermos o Lebor Gabala Erren ficamos com a sensaccedilatildeo de que muitas daquelas sucessivas levas de gentes que o mito remete para tempos da Histoacuteria antes da Histoacuteria tecircm como ponto de partida ndash ou pelo menos como ponto de confluecircncia importante ndash a Peniacutensula Ibeacuterica nomeadamente a faixa ocidental Jaacute no texto da Lenda da Fundaccedilatildeo se citaram os Tuatha teacute Danan (laquofilhos da deusa Anaraquo) mas haacute outras invasotildees com conotaccedilotildees curiosas que nos sugerem um passa-do distante comum como a de Partolion a dos Nemed ou a dos Firbold Pela minha parte fiquei com esse sentimento e isso deu-me uma visatildeo diferente da que tinha sobre a nossa histoacuteria Os estudos geneacuteticos em particular e que eu desconhecia quando redigi a Lenda da Fundaccedilatildeo vie-ram afinal tornaacute-la mais consistente se bem que em Histoacuteria como nas outras ciecircncias nada se possa considerar definitivo novas descobertas podem vir a alterar os nossos conceitos mesmo os mais enraizados Vamos ver a seguir precisamente como em conjugaccedilatildeo com os estudos actuais de algumas das disciplinas acima citadas outros cientistas em especial linguistas formularam novas hipoacuteteses acerca da evoluccedilatildeo da Histoacuteria cujas implicaccedilotildees satildeo grandes e profundas

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

8

nessa data com cerca de 5000 indiviacuteduos E de igual modo se sugere que laquoall the molecular data are congruent with the idea that the cultural and demic impact from the Near East in the Neolithic was very attenuated on the Atlantic edge of Europe in particular the Iberian Peninsula For this reason it should be at this Atlantic fringe where the Paleolithic contribution to modern European populations is expected to be most conspicuousraquo (Ana Gonzalez e outros laquoMitochondrial DNA Affinities at the Atlantic Fringe of Europeraquo in American Journal of Physical Anthropology 2003)

A este propoacutesito gostaria de evocar uma observaccedilatildeo feita em tom colo-quial pelo professor Sobrinho Simotildees presidente do IPATIMUD (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) durante o painel Ciecircncias da Vida e Biotecnologia realizado no Encontro Novas Fron-teiras da Ciecircncia e do Conhecimento (Vilamoura 1 de Abril de 2006) e que me atraiu especialmente laquoQuando houve o uacuteltimo glaciar e a Europa gelou aiacute haacute uns 15 17 mil anos os Europeus morreram todos e foi a partir da Peniacutensula Ibeacuterica que se repovoou a Europa[hellip]raquo

No que respeita ao estado da arte em Portugal e tal como Sobrinho Simotildees tambeacutem referiu entatildeo nesta aacuterea da geneacutetica muitos satildeo os espe-cialistas portugueses a trabalhar na linha da frente e com vasta documen-taccedilatildeo jaacute publicada E investigadores como A Amorim Luiacutesa Pereira Pau-lo Santos A Martinho H Breda-Coimbra A Brehm do Porto Coimbra ou Funchal chegam a conclusotildees convergentes agraves aqui apresentadas

Em laquoHigh-resolution mtDNA evidence for the late-glacial resettlement of Europe from an Iberian refugiumraquo (L Pereira e outros in Genome Research 1519-24 by Cold Spring Harbor Laboratory Press 2005) atraveacutes do estudo correlativo do mtADN (mitocondrial) e do cromossoma Y con-sidera-se de facto ter havido a expansatildeo populacional a partir do refuacutegio ibeacuterico quando os gelos comeccedilaram a recuar Os dados obtidos a partir desse trabalho indicam tambeacutem laquo[hellip] that the major demographic signal in the modern European mtADN pool is the result of the expansion of the hunter-gatherer populations at the end of the Paleolithic althoug this has not entirely erased the traces of earlier processesraquo

Em concordacircncia com os testemunhos geneacuteticos os estudos arqueoloacute-gicos vecircm igualmente sugerir uma possiacutevel permanecircncia das populaccedilotildees no nosso territoacuterio ao longo do Paleoliacutetico E tambeacutem eles contribuem para negar a descontinuidade da evoluccedilatildeo dessas populaccedilotildees para as cul-turas subsequentes Actualmente assistimos a um aumento das investiga-ccedilotildees a apontar nesse sentido e como exemplos cite-se a orla costeira do

9

Alentejo e do Algarve onde tem vindo a encontrar-se um cada vez maior nuacutemero siacutetios preacute-histoacutericos (J L Cardoso laquoComunidades Humanas da Estremadura agrave Costa Vicentinaraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoral Portu-guecircs e Fenoacutemenos Correlativos Geografia Histoacuteria Arqueologia e Climatologia Actas do Coloacutequio pp 305-357 Universidade Aberta Lisboa 2004 e Nuno Bicho laquoAs Comunidades Humanas de Caccediladores-recolectores do Algarve Ocidentalraquo in Evoluccedilatildeo Geohistoacuterica do Litoralhellip pp 359-396)

E talvez mais se pudesse achar submerso natildeo soacute no Algarve como ao longo de toda a beira atlacircntica e nos surpreendessehellip Porque ndash e faccedilo aqui um breve aparte que me parece a propoacutesito ndash atraveacutes da paleoclimatolo-gia sabe-se agora que o niacutevel do mar antes do degelo haacute cerca de 18 000 anos estava numa quota mais baixa chegando a atingir 120 a 140 metros abaixo do niacutevel actual (J M Alveirinho Dias laquoA Histoacuteria da Evoluccedilatildeo do Litoral Portuguecircsraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoralhellip pp 157-170) Por outro lado tambeacutem os investigadores desta ciecircncia referem que o ameniza-dor climateacuterico constituiacutedo pelo Atlacircntico natildeo teraacute permitido a invasatildeo dos gelos glaciaacuterios na faixa ocidental da Peniacutensula Ibeacuterica A confirmaacute-lo estatildeo tambeacutem os estudos paleozooloacutegicos que referem a ausecircncia de ves-tiacutegios de espeacutecies proacuteprias de regiotildees glaciares como o urso polar a rena ou o mamute Poreacutem lebres cavalos coelhos veados ou auroques abun-dariam constituindo assim tal como o coberto vegetal um conjunto de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a sobrevivecircncia da vida humana Embora como adianta Alveirinho Dias os icebergues flutuassem ao lar-go da nossa costa ateacute ao Norte de Aacutefrica a verdade eacute que em vaacuterios locais havia laquovastas planiacutecies litorais actualmente submersas[hellip] com vegetaccedilatildeo dominante de tipo herbaacuteceo[hellip]raquo (op cit p 162) Foi portanto essa linha da costa a ter sofrido ao longo de mileacutenios muitas oscilaccedilotildees pois haacute cerca de 10 000 anos no iniacutecio do Holoceacutenico laquoteraacute havido uma elevaccedilatildeo muito raacutepida das aacuteguas[hellip] com intenso preenchimento dos vales estuarinosraquo (id ibidem) ateacute atingir mais ou menos os niacuteveis actuais

Assim partindo de dados como estes da paleoclimatologia da paleo-zoologia ou da paleobotacircnica a arqueologia potildee a hipoacutetese de que com o subsequente decliacutenio dos territoacuterios de caccedila se criaram as laquocondiccedilotildees favoraacuteveis agrave adopccedilatildeo de estrateacutegias de subsistecircncia de largo espectro (nas quais os recursos marino-estuarinos detiveram um lugar proemi-nente) pelas sociedades de caccediladores-recolectores holoceacutenicas A cres-cente importacircncia dos recursos aquaacuteticos disponibilizados por ricos ambientes estuarinos que atingem ao longo do Holoceacutenico Antigo e

10

iniacutecios do Holoceacutenico Meacutedio grande desenvolvimento proporcionou verdadeiras economias de pesca-recolecccedilatildeo que iratildeo no Mesoliacutetico suportar elevados iacutendices de territorialidade sedentarizaccedilatildeo sazonal e sociabilidade[hellip]raquo (Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva Alteraccedilotildees Ambientais e Povoamento na transiccedilatildeo Mesoliacutetico-Neoliacutetico da Costa Sudoeste in op cit pp 397-423)

Satildeo hipoacuteteses como estas que nos levam a admitir a mesma linha de continuidade do Paleoliacutetico ao Mesoliacutetico e deste ao Neoliacutetico sugerida tambeacutem pela geneacutetica E articulando o que ficou dito com a Lenda da Fun-daccedilatildeo episoacutedios como os de Gatelo bem como as miacuteticas invasotildees relata-das no Lebor Gabala Erren (Livro das Invasotildees Irlandesas) podem ser o tal gratildeo da verdade histoacuterica de que fala Sykes Podem reflectir assim

ndash a constacircncia das idas e vindas ao longo do Atlacircntico de grupos humanos desde a mais remota Antiguidade

ndash a faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica como sendo o habitat nuclear desses grupos que por circunstacircncias devidas agraves alteraccedilotildees geoclimateacuteri-cas entre outras acabariam por se separar diversas vezes ao longo do tempo

Seraacute talvez por isso que ao lermos o Lebor Gabala Erren ficamos com a sensaccedilatildeo de que muitas daquelas sucessivas levas de gentes que o mito remete para tempos da Histoacuteria antes da Histoacuteria tecircm como ponto de partida ndash ou pelo menos como ponto de confluecircncia importante ndash a Peniacutensula Ibeacuterica nomeadamente a faixa ocidental Jaacute no texto da Lenda da Fundaccedilatildeo se citaram os Tuatha teacute Danan (laquofilhos da deusa Anaraquo) mas haacute outras invasotildees com conotaccedilotildees curiosas que nos sugerem um passa-do distante comum como a de Partolion a dos Nemed ou a dos Firbold Pela minha parte fiquei com esse sentimento e isso deu-me uma visatildeo diferente da que tinha sobre a nossa histoacuteria Os estudos geneacuteticos em particular e que eu desconhecia quando redigi a Lenda da Fundaccedilatildeo vie-ram afinal tornaacute-la mais consistente se bem que em Histoacuteria como nas outras ciecircncias nada se possa considerar definitivo novas descobertas podem vir a alterar os nossos conceitos mesmo os mais enraizados Vamos ver a seguir precisamente como em conjugaccedilatildeo com os estudos actuais de algumas das disciplinas acima citadas outros cientistas em especial linguistas formularam novas hipoacuteteses acerca da evoluccedilatildeo da Histoacuteria cujas implicaccedilotildees satildeo grandes e profundas

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

9

Alentejo e do Algarve onde tem vindo a encontrar-se um cada vez maior nuacutemero siacutetios preacute-histoacutericos (J L Cardoso laquoComunidades Humanas da Estremadura agrave Costa Vicentinaraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoral Portu-guecircs e Fenoacutemenos Correlativos Geografia Histoacuteria Arqueologia e Climatologia Actas do Coloacutequio pp 305-357 Universidade Aberta Lisboa 2004 e Nuno Bicho laquoAs Comunidades Humanas de Caccediladores-recolectores do Algarve Ocidentalraquo in Evoluccedilatildeo Geohistoacuterica do Litoralhellip pp 359-396)

E talvez mais se pudesse achar submerso natildeo soacute no Algarve como ao longo de toda a beira atlacircntica e nos surpreendessehellip Porque ndash e faccedilo aqui um breve aparte que me parece a propoacutesito ndash atraveacutes da paleoclimatolo-gia sabe-se agora que o niacutevel do mar antes do degelo haacute cerca de 18 000 anos estava numa quota mais baixa chegando a atingir 120 a 140 metros abaixo do niacutevel actual (J M Alveirinho Dias laquoA Histoacuteria da Evoluccedilatildeo do Litoral Portuguecircsraquo in Evoluccedilatildeo Geo-Histoacuterica do Litoralhellip pp 157-170) Por outro lado tambeacutem os investigadores desta ciecircncia referem que o ameniza-dor climateacuterico constituiacutedo pelo Atlacircntico natildeo teraacute permitido a invasatildeo dos gelos glaciaacuterios na faixa ocidental da Peniacutensula Ibeacuterica A confirmaacute-lo estatildeo tambeacutem os estudos paleozooloacutegicos que referem a ausecircncia de ves-tiacutegios de espeacutecies proacuteprias de regiotildees glaciares como o urso polar a rena ou o mamute Poreacutem lebres cavalos coelhos veados ou auroques abun-dariam constituindo assim tal como o coberto vegetal um conjunto de condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para a sobrevivecircncia da vida humana Embora como adianta Alveirinho Dias os icebergues flutuassem ao lar-go da nossa costa ateacute ao Norte de Aacutefrica a verdade eacute que em vaacuterios locais havia laquovastas planiacutecies litorais actualmente submersas[hellip] com vegetaccedilatildeo dominante de tipo herbaacuteceo[hellip]raquo (op cit p 162) Foi portanto essa linha da costa a ter sofrido ao longo de mileacutenios muitas oscilaccedilotildees pois haacute cerca de 10 000 anos no iniacutecio do Holoceacutenico laquoteraacute havido uma elevaccedilatildeo muito raacutepida das aacuteguas[hellip] com intenso preenchimento dos vales estuarinosraquo (id ibidem) ateacute atingir mais ou menos os niacuteveis actuais

Assim partindo de dados como estes da paleoclimatologia da paleo-zoologia ou da paleobotacircnica a arqueologia potildee a hipoacutetese de que com o subsequente decliacutenio dos territoacuterios de caccedila se criaram as laquocondiccedilotildees favoraacuteveis agrave adopccedilatildeo de estrateacutegias de subsistecircncia de largo espectro (nas quais os recursos marino-estuarinos detiveram um lugar proemi-nente) pelas sociedades de caccediladores-recolectores holoceacutenicas A cres-cente importacircncia dos recursos aquaacuteticos disponibilizados por ricos ambientes estuarinos que atingem ao longo do Holoceacutenico Antigo e

10

iniacutecios do Holoceacutenico Meacutedio grande desenvolvimento proporcionou verdadeiras economias de pesca-recolecccedilatildeo que iratildeo no Mesoliacutetico suportar elevados iacutendices de territorialidade sedentarizaccedilatildeo sazonal e sociabilidade[hellip]raquo (Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva Alteraccedilotildees Ambientais e Povoamento na transiccedilatildeo Mesoliacutetico-Neoliacutetico da Costa Sudoeste in op cit pp 397-423)

Satildeo hipoacuteteses como estas que nos levam a admitir a mesma linha de continuidade do Paleoliacutetico ao Mesoliacutetico e deste ao Neoliacutetico sugerida tambeacutem pela geneacutetica E articulando o que ficou dito com a Lenda da Fun-daccedilatildeo episoacutedios como os de Gatelo bem como as miacuteticas invasotildees relata-das no Lebor Gabala Erren (Livro das Invasotildees Irlandesas) podem ser o tal gratildeo da verdade histoacuterica de que fala Sykes Podem reflectir assim

ndash a constacircncia das idas e vindas ao longo do Atlacircntico de grupos humanos desde a mais remota Antiguidade

ndash a faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica como sendo o habitat nuclear desses grupos que por circunstacircncias devidas agraves alteraccedilotildees geoclimateacuteri-cas entre outras acabariam por se separar diversas vezes ao longo do tempo

Seraacute talvez por isso que ao lermos o Lebor Gabala Erren ficamos com a sensaccedilatildeo de que muitas daquelas sucessivas levas de gentes que o mito remete para tempos da Histoacuteria antes da Histoacuteria tecircm como ponto de partida ndash ou pelo menos como ponto de confluecircncia importante ndash a Peniacutensula Ibeacuterica nomeadamente a faixa ocidental Jaacute no texto da Lenda da Fundaccedilatildeo se citaram os Tuatha teacute Danan (laquofilhos da deusa Anaraquo) mas haacute outras invasotildees com conotaccedilotildees curiosas que nos sugerem um passa-do distante comum como a de Partolion a dos Nemed ou a dos Firbold Pela minha parte fiquei com esse sentimento e isso deu-me uma visatildeo diferente da que tinha sobre a nossa histoacuteria Os estudos geneacuteticos em particular e que eu desconhecia quando redigi a Lenda da Fundaccedilatildeo vie-ram afinal tornaacute-la mais consistente se bem que em Histoacuteria como nas outras ciecircncias nada se possa considerar definitivo novas descobertas podem vir a alterar os nossos conceitos mesmo os mais enraizados Vamos ver a seguir precisamente como em conjugaccedilatildeo com os estudos actuais de algumas das disciplinas acima citadas outros cientistas em especial linguistas formularam novas hipoacuteteses acerca da evoluccedilatildeo da Histoacuteria cujas implicaccedilotildees satildeo grandes e profundas

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

10

iniacutecios do Holoceacutenico Meacutedio grande desenvolvimento proporcionou verdadeiras economias de pesca-recolecccedilatildeo que iratildeo no Mesoliacutetico suportar elevados iacutendices de territorialidade sedentarizaccedilatildeo sazonal e sociabilidade[hellip]raquo (Joaquina Soares e Carlos Tavares da Silva Alteraccedilotildees Ambientais e Povoamento na transiccedilatildeo Mesoliacutetico-Neoliacutetico da Costa Sudoeste in op cit pp 397-423)

Satildeo hipoacuteteses como estas que nos levam a admitir a mesma linha de continuidade do Paleoliacutetico ao Mesoliacutetico e deste ao Neoliacutetico sugerida tambeacutem pela geneacutetica E articulando o que ficou dito com a Lenda da Fun-daccedilatildeo episoacutedios como os de Gatelo bem como as miacuteticas invasotildees relata-das no Lebor Gabala Erren (Livro das Invasotildees Irlandesas) podem ser o tal gratildeo da verdade histoacuterica de que fala Sykes Podem reflectir assim

ndash a constacircncia das idas e vindas ao longo do Atlacircntico de grupos humanos desde a mais remota Antiguidade

ndash a faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica como sendo o habitat nuclear desses grupos que por circunstacircncias devidas agraves alteraccedilotildees geoclimateacuteri-cas entre outras acabariam por se separar diversas vezes ao longo do tempo

Seraacute talvez por isso que ao lermos o Lebor Gabala Erren ficamos com a sensaccedilatildeo de que muitas daquelas sucessivas levas de gentes que o mito remete para tempos da Histoacuteria antes da Histoacuteria tecircm como ponto de partida ndash ou pelo menos como ponto de confluecircncia importante ndash a Peniacutensula Ibeacuterica nomeadamente a faixa ocidental Jaacute no texto da Lenda da Fundaccedilatildeo se citaram os Tuatha teacute Danan (laquofilhos da deusa Anaraquo) mas haacute outras invasotildees com conotaccedilotildees curiosas que nos sugerem um passa-do distante comum como a de Partolion a dos Nemed ou a dos Firbold Pela minha parte fiquei com esse sentimento e isso deu-me uma visatildeo diferente da que tinha sobre a nossa histoacuteria Os estudos geneacuteticos em particular e que eu desconhecia quando redigi a Lenda da Fundaccedilatildeo vie-ram afinal tornaacute-la mais consistente se bem que em Histoacuteria como nas outras ciecircncias nada se possa considerar definitivo novas descobertas podem vir a alterar os nossos conceitos mesmo os mais enraizados Vamos ver a seguir precisamente como em conjugaccedilatildeo com os estudos actuais de algumas das disciplinas acima citadas outros cientistas em especial linguistas formularam novas hipoacuteteses acerca da evoluccedilatildeo da Histoacuteria cujas implicaccedilotildees satildeo grandes e profundas

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

11

II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA

Sans theacuteorie preacutealable sans theorie preacuteconccedilue pas de travail scientifique possible

Lucien Febvre 1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas Tambeacutem ao longo do trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo ao tentar ressal-

tar neste lendaacuterio de Gatelo a interpenetraccedilatildeo de tradiccedilotildees portuguesas ateacute agora esquecidas ou desconhecidas com tradiccedilotildees britacircnicas irlan-desas e escocesas em particular interroguei-me inevitavelmente sobre a profundidade da nossa ligaccedilatildeo ancestral a esses povos E tentei tambeacutem especular sobre em que eacute que tal contribuiria para podermos avaliar a nossa identidade genuinamente antiga muito para aleacutem dos oitocentos anos de Histoacuteria como eacute costume propalar Uma identidade antiga e sobretudo talvez por isso mesmo um pouco diferente da que nos eacute dada nos bancos de escola E da que nos eacute oferecida de forma geral no ambiente cultural em que vivemos Assim a partir dos vaacuterios estudos efectuados os quais tentei explicitar sucintamente ateacute aqui cheguei a outros conhecimentos que passarei a expor de seguida

Estas tradiccedilotildees todo este corpus mitoloacutegico pertencem agrave tradiccedilatildeo con-siderada celta E Celtas tambeacutem os Irlandeses e os Escoceses se conside-ram e como tal satildeo vistos pelos estudiosos desse fenoacutemeno

Mas quem foram exactamente os Celtas Ningueacutem parece saber ao certo Apenas se sabe que no primeiro mileacutenio antes de Cristo os Gre-gos denominaram assim ndash Keltoi ou Kalatoi ndash um grupo de gente que atingiu entatildeo as costas da Greacutecia O seu nome tem data Mas essa data natildeo nos diz de onde vinha nem quem era

No seacutec V a C o grego Heroacutedoto considerado como o primeiro his-toriador refere-se a eles dizendo-os estabelecidos no centro da Europa aonde teriam chegado em tempos muito anteriores vindos do mais lon-giacutenquo Ocidente da mais longiacutenqua regiatildeo europeia Outros autores da Antiguidade datildeo igualmente testemunho da existecircncia de celtas nas ter-ras limiacutetrofes da Europa como Estrabatildeo Pliacutenio Artemidoro ou Siacutelio Itaacute-lico para soacute citar alguns

Mas talvez tenham sido referecircncias como a de Heroacutedoto quanto ao seu estabelecimento no centro da Europa mais as ideologias vindas do

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

12

seacutec XIX que induziram agrave confusatildeo agraves incoerecircncias e contradiccedilotildees que tecircm dominado este tema sobre os chamados laquoCeltasraquo Talvez por isso se tenha criado a ideia da sua origem ser centro-europeia ou euro-asiaacutetica e se fale deles como invasores e colonizadores da Europa tal como se mencionam tradicionalmente umas invasotildees de laquoindo-europeusraquo porta-dores de uma liacutengua e de uma tecnologia avanccedilada ndash os grandes e verda-deiros civilizadores ndash datadas tambeacutem tradicionalmente do iniacutecio do trabalho dos metais (cerca do 4ordm mileacutenio a C) Uma invasatildeo composta por povos claramente mais evoluiacutedos ndash de que os Celtas fariam parte ndash fundamentada na classe de cavaleiros-guerreiros os laquocivilizadoresraquo por excelecircncia da entatildeo laquobarbaacuterieraquo europeia

Povos de que se fica com a ideia no fim de contas de nunca terem sido paleoliacuteticos ndash sinoacutenimo de selvagens para o seacutec XIX e grande parte do seacutec XX Aparentemente e como tudo leva a concluir eles ateacute seriam de uma raccedila superior com largas probabilidades de serem brancos louros de olhos azuis nascidos prontos e acabados de geraccedilatildeo espontacircneahellip

Foi esta ideia a vingar e ela eacute ainda hoje defendida por muitos Ou estaacute demasiado interiorizada Partindo de uma visatildeo eurocecircntrica e colonialis-ta ela foi desembocar afinal em doutrinas como a nazi-fascista do seacutec XX E outras que continuam vigentes bem visiacuteveis e bem actuantes

Arqueologicamente e regressando em particular aos Celtas estes tecircm sido identificados regra geral pelo apogeu da sua cultura ou melhor por uma seacuterie de apogeus de culturas como diz Nicholas Ostler (Empires of the Word a Language History of the World p 281 Harper Perennial N York 2006) Tipificadas a partir da cultura de Hallstatt na Aacuteustria (datada entre os seacutecs XIII e VI a C) esta foi seguida pela de La Tegravene no lago Neufchatel na Suiacuteccedila (do VI ao I seacuteculo a C) Igualmente se diz na maioria dos livros de Histoacuteria que os Celtas seriam um conjunto de povos sem organizaccedilatildeo poliacutetica comum mas que partilhavam crenccedilas e possuiacuteam uma cultura e costumes semelhantes entre si Tidos tambeacutem na historiografia como introdutores do ferro na Europa satildeo no entanto essas mesmas caracteriacutes-ticas culturais a tornaacute-los distintos aos nossos olhos Muitas incoacutegnitas se tecircm assim mantido em relaccedilatildeo a esses povos porque com a Romanizaccedilatildeo quase foram banidos da Historia Uma aparente contradiccedilatildeo pois se faziam parte do mesmo conjunto de laquopovos invasores indo-europeusraquo natildeo tinham por que ser assim tatildeo diferentes a ponto de interessar a tenta-tiva da extinccedilatildeo da sua cultura Uma tentativa afinal natildeo conseguida pois ainda hoje resta viva a sua tradiccedilatildeo em paiacuteses como a Irlanda o Paiacutes de Gales e a Escoacutecia paiacuteses que Roma natildeo logrou laquoromanizarraquo totalmente

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

13

Por isso tambeacutem seraacute a partir desses paiacuteses e do estudo comparativo com o que haacute de vestigial no continente que se poderaacute ainda tentar reconstituir algo do seu passado

A liacutengua ou os seus dialectos originais os deuses bem como os seus mitos e lendas as tradiccedilotildees orais os motivos iconograacuteficos como espi-rais ciacuterculos ou cruzes os seus carros de rodas certo tipo de joacuteias ndash como os torques e as viria ndash ou os vasos de ceracircmica ou de metal ndash como os caldeirotildees ndash satildeo afinal a grande parte dos seus vestiacutegios e os elemen-tos tidos por ceacutelticos pelos historiadores E eacute no acircmbito dessa descriccedilatildeo cultural que ressaltam mais contradiccedilotildees e que as explicaccedilotildees dos auto-res laquotradicionaisraquo natildeo satisfazem E com o estudo efectuado para a Lenda da Fundaccedilatildeo essas contradiccedilotildees quanto a mim acentuaram-se

Tanto em Portugal na Galiza como na Irlanda a maioria desses ele-mentos satildeo bem anteriores agraves dataccedilotildees apresentadas Deram-se exem-plos disso no texto da Lenda Assim como a propoacutesito da Pedra Fadada se falou no megalitismo (do VI mileacutenio a C no Alentejo mas que no Algar-ve e de acordo com o arqueoacutelogo Manuel Calado parece jaacute recuar ao VII mileacutenio M Calado ressalvando que as teacutecnicas de dataccedilatildeo utilizadas tecircm ainda pouca afinaccedilatildeo crecirc no entanto jaacute se poder conjecturar sobre a antiguidade relativa do megalitismo algarvio) onde se inscrevem tantos dos sinais especiacuteficos considerados ceacutelticos

Como explicaacute-los entatildeo agrave luz da teoria claacutessica Se segundo esta os Celtas soacute chegaram agrave Irlanda no seacutec VI a C (e a Portugal e agrave Galiza no seacutec VII a C) vindos da Europa central como explicar igualmente o que diz a geneacutetica E volto a citar Sykes

laquoI can find no evidence at all of a large scale arrival from the hear-tland of the Celts of central Europe among the paternal genetic ancestry of the Isles just as there is none on the maternal sideraquo (op cit pp 283 e seg) Ou o que dizem os autores no artigo jaacute citado The Longue Dureacutee of Genetic Ancestryhellip

laquoIt has been common to couple archaeological evidence for the expansion of Iron Age elites in central Europe with the dispersal of these languages and of Celtic ethnicity and to posit a central European ldquohomelandrdquo for the Celtic peoples More recently however archaeolo-gists have questioned this ldquomigrationistrdquo view of Celtic ethnogenesis[hellip] Cunliffe [Facing the ocean the Atlantic and its people Oxford University Press Oxford United Kingdom 2001] appears to go further describing the coalescence of the Celtic languages along the coastline of the Atlantic facade of Europe from southern Iberia to the Shetland Islands via

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

14

maritime networks that reach back into the late Mesolithic period The similarities in prehistoric monumental architecture and the spread of the earlyndashBronze Age ldquoBeaker packagerdquo to take two examples attest to the likely sharing of beliefs and attitudes through social networks that extended from one end of the Atlantic zone to the otherraquo

Os mesmos cientistas a partir dos resultados das suas investigaccedilotildees confirmam esta nova atitude de alguns arqueoacutelogos laquoWhat seems clear is that neither the mtDNA pattern nor that of the Y-chromosome markers supports a substantially central European Iron Age origin for most Celtic speakers ndash or former Celtic speakers ndash of the Atlantic facade[hellip] Although some level of Iron Age immigration into Britain and Ireland could probably never be ruled out by the use of modern genetic data these results point toward a distinctive Atlantic genetic heritage with roots in the processes at the end of the last Ice Ageraquo

Pode acrescentar-se o testemunho dos autores tambeacutem citados mais atraacutes (Zschocke e outros op cit) a propoacutesito das mutaccedilotildees geneacuteticas laquoNo mutation was identified that could represent European Celtic populations supporting the view that the adoption of Celtic culture and language in Ireland did not involve major immigration from the continentraquo

Consideraccedilotildees como estas para aleacutem de virem ao encontro do que ficou dito no capiacutetulo anterior vieram igualmente contribuir para tentar encontrar outras respostas que natildeo as laquotradicionaisraquo Tambeacutem jaacute depois de publicada a Lenda da Fundaccedilatildeo tomei conhecimento da Teoria da Con-tinuidade Paleoliacutetica (TCP) de Maacuterio Alinei (todos os textos da TCP estatildeo em wwwcontinuitascom) e da investigaccedilatildeo que estaacute a ser levada a cabo por um grupo de trabalho alargado a linguistas arqueoacutelogos antropoacutelogos preacute-historiadores e se apoia na interdisciplinaridade e no concurso essencial das mais actuais investigaccedilotildees da geneacutetica E todo este complicado puzzle passou a fazer mais sentido

Para aleacutem da geneacutetica e da arqueologia negarem essa teoria da geacutene-se dos Celtas (assim como as da origem dos Indo-Europeus) tambeacutem a contraria todo um vasto leque de estudiosos de variadas aacutereas cientiacutefi-cas nas quais se incluem investigadores das tradiccedilotildees literaacuterias ou orais miacuteticas ou lendaacuterias Talvez mais consentacircnea com a realidade histoacuterica a sua teoria ajuda a desfazer contradiccedilotildees a preencher lacunas deixadas em aberto pelos historiadores tradicionais e contribui para explicar mui-tas incoacutegnitas e misteacuterios

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

15

2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica Segundo o professor M Alinei (The Paleolithic Continuity Theory on

Indo-European Origins an Introduction este texto seraacute o primeiro a publi-car em breve pela Apenas numa nova colecccedilatildeo) as linhas fundamen-tais desta teoria satildeo essencialmente duas

1) A chegada dos povos indo-europeus agrave Europa e agrave Aacutesia deve ser vista como uma dos maiores episoacutedios da chegada do Homo sapiens agrave Europa e agrave Aacutesia vindo de Aacutefrica no Paleoliacutetico Superior haacute cerca de 50 000 anos e natildeo como um episoacutedio da Preacute-Histoacuteria recente

2) O processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas a partir da linguagem comum proto-indo-europeia (nome dado aos primoacuterdios do indo-europeu) foi realizado durante um muito longo periacuteodo Ele tem de ser associado em primeiro lugar aos variados episoacutedios da vinda de migrantes de Aacutefrica (via Aacutesia segundo a maioria dos dados geneacuteticos e linguiacutesticos) e depois agraves diferenciaccedilotildees que se foram produzindo cultu-ral social e politicamente nos diversos agrupamentos estabelecidos nas muacuteltiplas regiotildees Estas diferenciaccedilotildees teratildeo sido mais aceleradas agrave medida da estratificaccedilatildeo das sociedades do comeccedilo das guerras colo-niais do grande aumento demograacutefico e da maior sedentarizaccedilatildeo em determinados territoacuterios

Quanto ao ponto 1 diz Alinei Natildeo haacute quaisquer provas arqueoloacutegicas geneacuteticas ou outras das tatildeo

famosas invasotildees indo-europeias guerreiras do periacuteodo Calcoliacutetico (IV mileacutenio a C) nem da invasatildeo paciacutefica vinda do Proacuteximo Oriente de grandes massas de pastores-agricultores do periacuteodo neoliacutetico cerca de 7000 a C ndash teoria lanccedilada entretanto pelo arqueoacutelogo C Renfrew

Os estudos dos uacuteltimos trinta anos parecem indicar estarem ultra-passadas essas teorias e pelo contraacuterio convergem para a hipoacutetese mais provaacutevel de uma continuidade ininterrupta das culturas das Ida-des do Cobre e do Bronze a partir do Neoliacutetico Antigo sendo este por sua vez tambeacutem uma continuaccedilatildeo do Mesoliacutetico e do Paleoliacutetico Supe-rior Cavali-Sforza por exemplo fundador e liacuteder da escola que fez descobertas fundamentais acerca das relaccedilotildees entre a geneacutetica a lin-guiacutestica e a evoluccedilatildeo humana tentou ajustar os seus estudos ao pre-conceito histoacuterico das invasotildees guerreiras indo-europeias e mais tar-de agrave teoria de Renfrew laquoNevertheless he has recently had to surren-der to the latest outcome of genetic research i e that 80 of the geneacute-tic stock of Europeans goes back to Paleoliacuteticraquo (Alinei op cit) A evo-

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

16

luccedilatildeo teria sido assim natural no seio das populaccedilotildees autoacutectones tan-to social e cultural como poliacutetica e economicamente sem a intrusatildeo ou a intrusatildeo tardia e natildeo significativa sob o ponto de vista da linguiacutes-tica e da geneacutetica de outros grupos sem em suma a substituiccedilatildeo de umas populaccedilotildees por outras

Assim segundo Alinei e os investigadores que aderiram a esta nova teoria os Celtas inscrevem-se dentro dessa primeira chegada ao Ociden-te do Homo sapiens ndash no Paleoliacutetico Superior (talvez entre 35 000 e 30 000 a C) Deste modo estatildeo incluiacutedos linguiacutestica e culturalmente dentro de grandes bandos de noacutemadas caccediladores-recolectores cujos dialectos caracteriacutesticos e ainda natildeo muito diferenciados ndash porque habituados a inter-relacionarem-se nas suas deslocaccedilotildees como diz Xaverio Ballester (do grupo da TCP) ndash se expandiram entatildeo do Indo agrave Europa de Sul para Norte os chamados indo-europeus seratildeo portanto os europeus mais antigos de entre os quais se contam os Celtas primitivos habitan-tes desta regiatildeo de que fazemos parte

Para Alinei laquothe ldquomisterious arrivalrdquo of the Celts in Western Europe obligatory [efectuada no decurso do 1ordm mileacutenio a C] in the tradicional theory is replaced by the scenario of an early diferentiation of Celts as the westernmost Indo-Europeu group in Europeraquo Afinal nesse I mileacutenio laquothere is absolutely no trace of the ldquoarrivalrdquo of the Celts in Western Europe which simply means that they were always therehellipraquo (op cit) E Alinei diz ainda laquoo centro de gravidade da cultura ceacuteltica eacute reconhecido nas ilhas Britacircnicas e no Ocidente atlacircntico onde os Celtas jaacute se encontravam no Mesoliacutetico e no Paleoliacutetico Superiorraquo (laquoOrigini della lingue drsquoEuropa vol II Cont del Mesol allrsquoetagrave del Ferro nelle principali aree etnolinguistraquo) laquoWestern Europe must of course have always been Celtic and the recent prehistory of Western Europe ndash from Megalithic culture through the Beaker Bell [a cultura do vaso campaniforme de que eacute representativa a regiatildeo de Palmela por exemplo] to the colonialistic La Tegravene ndash must have all been Celtic Consequently the duration of the colonial expansion of the Celts was much longer than thought and its direction was from West to East and not vice-versaraquo (The Paleolithic Continuity Theoryhellip)

Seraacute caso para num breve parecircntesis nos interrogarmos acerca da coincidecircncia de nomes de povos ou de tribos citados por antigos auto-res Recordo o nome de por exemplo Belgais (da zona interior da Beira Castelo Branco) e Belgae (da Beacutelgica) Helveacutecios (da zona alentejana de Elvas) e Helveacuteticos (Suiacuteccedila) E sobretudo porque tecircm directamente a ver com a nossa Lenda da Fundaccedilatildeo os Brigantinos ou Bragantinos na Galiza e

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

17

Traacutes-os-Montes na zona sul das Ilhas Britacircnicas na Aacuteustria (regiatildeo da actual Bregenz e antiga Brigantia) nome decerto relacionado com a deu-sa ceacuteltica Brigacircncia mais conhecida na Gaacutelia ou com a deusa Briacutegida ou Brigit Fizeram-se referecircncias na Lenda a estes elementos mas talvez ago-ra faccedilam mais sentido pois todos eles se encontram dentro dos limites considerados de cultura ceacuteltica No entanto esta nota eacute apenas uma curio-sidade pois como X Ballester me observou embora a dispersatildeo destes nomes possa apontar para a antiguidade ocidental de alguns destes gru-pos sob o ponto de vista linguiacutestico esta homonimia nada prova pois poderaacute ser atribuiacuteda a uma mais recente expansatildeo dos galos no I mileacutenio Talvez soacute a arqueologia possa esclarecer esta ideia

De qualquer modo o florescimento das civilizaccedilotildees do centro euro-peu faz mais sentido quando visto agrave luz da evoluccedilatildeo que a TCP propotildee e segundo Alinei e Francesco Benozzo natildeo faz sentido tambeacutem pensar que o trabalho do cobre do estanho do bronze da prata ou do ouro soacute chegou agrave Peniacutensula com os chamados laquoinvasoresraquo ndash dos quais a geneacutetica natildeo encontra vestiacutegios (M Alinei e F Benozzo Alcuni aspetti della TCP applicata allrsquoarea gallega Conf em Pontevedra no Congresso Intern de Onomaacutestica Galega 19-21 de Outubro 2006) Esta afirmaccedilatildeo estaacute em sintonia com X Ballester que diz ser laquoa Peniacutensula Ibeacuterica o uacutenico territoacute-rio celtoacuteide onde encontramos o ouro a prata o estanho o cobre e o bronzeraquo (Alinei II la sintesi emergente)

Natildeo seraacute tambeacutem absurdo pensar que a utilizaccedilatildeo e a domesticaccedilatildeo do cavalo factos tatildeo importantes na evoluccedilatildeo histoacuterica devam ser considera-das como introduzidas na Peniacutensula Ibeacuterica por esses mesmos laquoinvasoresraquo laquoFossil records archaeological proofs and historical docu-ments report that horses persisted continuously in the Iberian Peninsula since the Pleistocene (18 million years ago) even during the Mesolithic when the horse became extinct north of the Pyreneesraquo (Cristina Luiacutes e outros Iberian Origins of New World Horse Breeds in Journal of Heredity Advance Access originally 2006) Sendo assim um animal tatildeo abundante na Hispacircnia e tatildeo caracteriacutestico ndash o cavalo-ibeacuterico o cavalo-do-sorraia ou o cavalo-lusitano ndash natildeo estaria a sua utilizaccedilatildeo dentro da evoluccedilatildeo natural do processo de desenvolvimento das economias das populaccedilotildees autoacutecto-nes Tanto mais que os cavalos peninsulares eram de maior envergadura que os euro-asiaacuteticos e portanto mais apropriados para serem atrelados a carros elemento marcante entre as invenccedilotildees atribuiacutedas aos Celtas Prova-velmente os cavaleiros-guerreiros europeus tiveram aqui uma das suas origens dado coerente com o que sabemos hoje acerca da estratificaccedilatildeo e

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

18

da hierarquizaccedilatildeo social poliacutetica e econoacutemica desenvolvida durante a Idade dos Metais com acento a partir da eacutepoca do Bronze como eacute exem-plo o nosso territoacuterio e cujos ambientes a Lenda da Fundaccedilatildeo transmite

Quanto ao ponto 2 da TCP o processo de diferenciaccedilatildeo das liacutenguas vamos tentar analisar outros dados importantes em termos linguiacutesticos ndash superficialmente aflorados na Lenda da Fundaccedilatildeo ndash seguindo a pista da cultura ceacuteltica Eles podem igualmente ajudar a estabelecer esse fio que liga Portugal bem como a Galiza aos Celtas e concomitantemente agrave Irlanda e agrave Escoacutecia referido na Lenda

A TCP laquoafirma no essencial que eacute possiacutevel reconstruir o desenvolvi-mento linguiacutestico europeu do Paleoliacutetico Superior agrave Idade dos Metais[hellip] e reconhecer uma continuidade autoacutectone na liacutengua europeia individua-lizada a partir do uacuteltimo periacuteodo do desenvolvimento do Homo sapiens sapiens na Europaraquo (M Alinei Origini della lingue drsquoEuropa vol II Conti-nuitagrave del Mesoliacutetico allrsquoetagrave del Ferrohellip)

Ora de acordo com os actuais estudos das ciecircncias cognitivas que vecircm ao encontro da teoria da linguagem de N Chomsky parece confir-mar-se que a capacidade fonoloacutegica eacute inata Assim laquoo que a partir de agora eacute dado como certo eacute o Homo ter nascido loquens a linguagem ser tatildeo antiga como a Humanidade e as nossas liacutenguas e dialectos serem muito mais antigos do que alguma vez acreditaacutemosraquo (M Alinei laquoLe Conseguenze per la Linguistica Corsa delle nuove Teorie sulle Origini Indoeuropeeraquo in Actes du Congregraves Environnement et identiteacute en Meacutediter-raneacutee) Deste modo estas premissas tecircm como principal consequecircncia a lei da conservaccedilatildeo da liacutengua e natildeo o contraacuterio

Parece chegarmos entatildeo a uma outra contradiccedilatildeo que as afirmaccedilotildees tradicionais natildeo resolvem Nicholas Ostler linguista jaacute citado acima e que natildeo integra o grupo dos especialistas da TCP expressa a sua dupla estranheza quanto agrave forma e rapidez como nos eacute apresentada a laquolatinizaccedilatildeoraquo de liacutenguas como por exemplo o francecircs o occitano o cas-telhano o catalatildeo e o portuguecircs porque satildeo laquoprecisely the areas of wes-tern Europe that spoke Celtic in the ancient world[hellip]raquo e porque verifica haver uma grande diferenccedila de culturas laquo[hellip]when we contrast the natu-re of Roman society with what the Gauls and the Celtiberian had pre-viously knownraquo (op cit p 300) E adianta estar bem demonstrada a cel-ticidade toponiacutemica do Norte da Gratilde-Bretanha ateacute ao Extremo Sul da Ibeacuteria (idem ibidem p 282) referindo as evidecircncias da grande varieda-de de povos falantes do ceacuteltico abarcando todo o Ocidente da Europa ateacute agraves ilhas Falantes do ceacuteltico isto eacute uma liacutengua com origens milenares

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

19

da eacutepoca glaciar como defende Alinei e designada por protoceacuteltica ndash termo utilizado para distinguir o primitivo ceacuteltico daquele que hoje conhecemos em paiacuteses como os das ilhas Britacircnicas

Aliaacutes o proacuteprio Ostler acrescenta que a profusatildeo de trocas e as inten-sas relaccedilotildees entre os diferentes sectores atlacircnticos incluindo a Irlanda Gales Cornualha Inglaterra Galiza e Portugal fizeram com que o arqueoacutelogo B Cunliffe sugerisse a existecircncia de um laquoceacuteltico atlacircnticoraquo como liacutengua franca durante a Idade do Bronze (id ib p 290) eacutepoca da nossa lenda

(E eacute tentador fazer aqui um pequeno aparte como simples curiosida-de acerca da existecircncia mileacutenios depois de uma outra liacutengua franca que nos toca directamente Como o afirma tambeacutem Ostler (id ib p 389) citando exemplos da eacutepoca da Expansatildeo o portuguecircs teraacute sido essa liacuten-gua utilizada como veiacuteculo de entendimento entre gentes e terras muito diversas E cita a visita do primeiro inglecircs ao Japatildeo em que a comunica-ccedilatildeo soacute foi possiacutevel por meio de um inteacuterprete portuguecircs chamado expressamente para tal)

Mas a verdade eacute que com base na sugestatildeo de ceacuteltico atlacircntico e na evidecircncia desses contactos Ostler (op cit) encontra aiacute a explicaccedilatildeo do enraizamento e da expansatildeo da cultura ceacuteltica neste arco atlacircntico visiacute-vel na persistecircncia em tempos medievais de temas como as viagens maacutegicas expressas nos contos irlandeses os Immrama e nas versotildees por-tuguesa e espanhola das Viagens de Satildeo Brandatildeo E pode acrescentar-se da Demanda do Santo Graal e temas afins como referi no trabalho da Lenda da Fundaccedilatildeo

A este propoacutesito tambeacutem Francesco Benozzo (Origine delle Letterature drsquoEuropa Sciamani Europei e Trovatori Occirani) e Gabriele Costa (Linguistica e Prehistoria I Evoluzione della Lingue e delle Culture in laquoQuaderni di Semanticaraquo 25 2004 Ling e Prehist II Linguaggio e Creazio-ne del Sacro in laquoQuad Di Semacircnticaraquo 25 2004 Sciamanismo Indoeuropeo) do grupo da TCP analisam a literatura e a cultura medieval agrave luz dessas raiacutezes e referem entre outros os exemplos da poesia trovadoresca e do romance Natildeo lhes eacute compreensiacutevel um tal fenoacutemeno cultural com o seu sistema de siacutembolos e referecircncias rituais sem os profundos antecedentes das tradiccedilotildees orais e populares das regiotildees onde ele surge tanto mais que verificam que esse fenoacutemeno se manifesta exactamente dentro dos limites das regiotildees consideradas de cultura ceacuteltica paleoliacutetica

Ao tentarmos transpor ainda que ao de leve as suas anaacutelises para a literatura medieval galaico-portuguesa natildeo seraacute caso para nos interro-

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

20

garmos se nas cantigas de amor e de amigo nas baladas de trovadores segreacuteis e jograis natildeo ressoaratildeo os ecos dos tatildeo famosos bardos celtas

De qualquer modo eacute pelo menos inverosiacutemil que no prazo de um par de seacuteculos com as guerras coloniais de Roma se tenham feito as mudanccedilas das liacutenguas autoacutectones para uma liacutengua que nos eacute dada como estrangeira Natildeo seria pelo menos um fenoacutemeno contranatural Natildeo foram os Romanos os invasores contra quem Lusitanos e Galaicos resisti-ram cerca de um seacuteculo

Parece ignorar-se por outro lado a diferenccedila entre o povo comum para quem a oralidade eacute a regra e a elite a classe dominante utilizadora da escrita e da expressatildeo literaacuteria Teraacute sido esta classe a reforccedilar-se com a permanecircncia de uns quantos romanos ao niacutevel de chefias militares e pouco mais A liacutengua de um povo natildeo se muda instantaneamente por decreto Como X Ballester diz laquoEl princiacutepio evolutivo maacutes natural para las lenguas no es divergencia sino la convergencia la comunicacioacuten el hibridismoraquo (A viva voz entrev com X Bal laquoSobre la lengua y el hombreraquo Rev Saguntina ndash nordm 4 2008) E precisa-me laquoademaacutes no hubo en realidad substitucioacuten linguumliacutestica en la mayor parte de la Romania sino mezcla hibridismo con las lenguas autoacutectonas estas no desaparecieron sino que fueron absorbidas en mayor o menor medida por el latiacutenraquo

Jaacute em Nicholas Ostler tiacutenhamos tentado encontrar resposta para esta aparente e intrigante laquolatinizaccedilatildeoraquo visto este autor referir que natildeo soacute o latim pediu emprestadas (ou melhor laquocopiouraquo termo linguiacutestico que X Ballester considera mais adequado) muitas das suas palavras ao ceacutel-tico como as liacutenguas ceacutelticas eram notoriamente semelhantes ao latim (ib p 284) Mas eacute sobretudo com os investigadores linguistas da TCP que a contradiccedilatildeo referida deixa de existir laquoA principal consequecircncia da nova teoria reside em maior ou menor grau na perspectiva de atribuir uma identidade linguiacutestica ldquohistoacutericardquo (ceacuteltica germacircnica itaacutelica eslava grega etc) agrave cultura preacute-histoacuterica antes de mais e necessariamente ldquoanoacutenimardquo e em dar iniacutecio agrave diferenciaccedilatildeo linguiacutestica dialectal e sociolinguiacutestica mileacutenios antes do que se estabelecia anteriormenteraquo (Alinei La theacuteorie de la continuiteacute appliqueacutee agrave laire des Alpes Occidentales dialectes cultures et archeacuteologie)

Assim a origem do latim pode recuar mileacutenios natildeo se cingindo agrave civilizaccedilatildeo romana O latim viraacute afinal da Preacute-Histoacuteria quando ainda natildeo havia Roma e a sua diferenciaccedilatildeo ter-se-aacute iniciado talvez no VII mileacutenio a C (Alinei Vers un nouvel Horizon Chronologique pour lrsquoOrigine et la Formation des Langues et des Dialectes Europeacuteens)

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

21

A questatildeo das suas origens passa assim a ser posta em termos dialec-tais derivando o latim de um conjunto de dialectos laquoirmatildeosraquo (poderemos encontrar aqui alguma correspondecircncia com Ostler quando refere a seme-lhanccedila entre o ceacuteltico e o latim) que constituiriam uma mesma liacutengua

Traccedila-se entatildeo um novo quadro para o conjunto linguiacutestico europeu conjunto que coincide com as diferenciaccedilotildees culturais jaacute muito evidentes desde o final do Paleoliacutetico mas acentuadas ainda mais durante o Meso-liacutetico Desse conjunto Alinei destaca a liacutengua que chama laquoital(o)ide ou melhor ibero-occitano-itaacutelico-dalmatico e que compreende o latim e as outras liacutenguas itaacutelicasraquo (La tc appliqueacutee agrave laire des Alpes Oc) e faacute-la coinci-dir com a cultura da ceracircmica impressacardeal do Neoliacutetico (VI mileacutenio a C) ndash onde nos inserimos Deste modo integra o celta pertencente aos caccediladores e pescadores do Mesoliacutetico (cerca de 10 000 a C) os ocupan-tes da costa atlacircntica e das ilhas Britacircnicas desde o Paleoliacutetico Considera serem estes os primeiros grandes colonizadores europeus com o megali-tismo e depois durante a cultura metaluacutergica com o vaso campanifor-me (cerca do III mil a C) anteriores como vimos aos colonizadores de Hallstatt ou de La Tegravene

Fazendo uma estreita relaccedilatildeo entre nomeadamente a cultura liacutetica do Paleoliacutetico Superior e a liacutengua Alinei (Geolinguistic and other lines of evidence for the correlation between lithic and linguistic development) enume-ra alguns exemplos do dialecto celta ndash ainda hoje visiacutevel nas liacutenguas remanescentes irlandesa ou gaeacutelica ndash para o comparar com o latim agrave semelhanccedila do que faz Ostler Por outro lado recolhe uma lista exempli-ficativa de termos referentes a actos praacuteticos da vida e das culturas que conhecemos hoje como proacuteprias do Paleoliacutetico Mesoliacutetico ou Neoliacutetico para os integrar no contexto histoacuterico e social tiacutepico de cada um desses ambientes e concluir da sua proveniecircncia e persistecircncia A partir do Neoliacutetico por exemplo relaciona o processo de criaccedilatildeo e desenvolvi-mento semacircntico com os termos teacutecnicos ligados agraves quatro principais inovaccedilotildees tecnoloacutegicas como sejam a agricultura a criaccedilatildeo de gado a ceracircmica e a tecelagem E ao citar exemplos entre eles putare (laquocortar aacutervoresraquo) demonstra como tambeacutem jaacute tinham feito outros autores a sua passagem para conceitos abstractos (laquopensarraquo laquoestimarraquo ou laquosuporraquo) que iratildeo dar em uacuteltima anaacutelise agrave nossa palavra actual laquocomputadorraquo

Deste modo nessa correspondecircncia entre o celta e o latim a que se veio juntar o latim difundido pelos Romanos modificado graccedilas sobre-tudo aos estilos literaacuterios e aos gramaacuteticos provenientes da elite intelec-tual ndash como eacute o caso portuguecircs e dos seus gramaacuteticos no seacutec XVI ndash resi-

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

22

de ao que parece a explicaccedilatildeo para o surgimento natildeo tatildeo inesperado assim das liacutenguas ditas laquoromacircnicasraquo Utilizando um termo linguiacutestico refira-se que Alinei considera o romano como um superstrato faacutecil de assimilar ao tempo da romanizaccedilatildeo enquanto Ballester prefere falar de continuidade Para este linguista para aleacutem de natildeo se dever falar do laquolatin con su correspondiente aacuterbol genealoacutegico de lenguas hijasraquo pois laquolas lenguas no son genealogiaraquo (entrev laquoSobre la lengua y el hombreraquo rev Saguntina) no que toca agrave Peniacutensula Ibeacuterica natildeo haacute evidecircncias de ita-loacuteide como classifica Alinei mas sim de celtoacuteide E considera que laquonem o latim nasceu e morreu com Roma nem o celtoacuteide nasceu e morreu com a cultura ceacuteltica megaliacutetica[hellip]raquo (X Ballester Alinei II La Sintesi Emergen-te) As liacutenguas natildeo nascem nem morrem como precisa Ballester

Poderemos entatildeo afirmar que na Peniacutensula o latim romanizado teraacute afinal vindo ao reencontro das suas proacuteprias origens Jaacute no seacutec XIX o cardeal Saraiva dizia que laquonem a liacutengua portuguesa eacute filha da latina nem esta foi em tempo algum a liacutengua vulgar dos Lusitanosraquo (Obras Completas do Cardeal Saraiva (D Francisco de Satildeo Luiz) Patriarcha de Lisboa tomo IX pp 163 a 208 Imprensa Nacional 1880)

3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica No caso especiacutefico das liacutenguas da Peniacutensula Ibeacuterica Xaverio Ballester

(Sobre el Origen de las Lenguas Indoeuropeas Prerromanas de la Peniacutensula Ibeacuterica) considera haver dados suficientes laquoque apuntan a una mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo

Quanto ao lusitano que nos toca mais directamente e que compreen-deria tambeacutem as regiotildees peninsulares que se estendiam para norte (o chamado galaico-lusitano) e para oriente refere-o como uma liacutengua cel-toacuteide na eacutepoca histoacuterica o lusitano manteve a continuidade dos dialec-tos de mileacutenios anteriores formados uacutenica e essencialmente na Peniacutensu-la Ibeacuterica ao contraacuterio do que acontece com as liacutenguas ceacutelticas extrape-ninsulares Estas seriam tambeacutem a continuidade dos dialectos desses mileacutenios anteriores mas formadas por um lado na proacutepria Peniacutensula ou em Franccedila e por outro nos respectivos territoacuterios de onde historica-mente emergiram Segundo este autor partindo-se dos dados linguiacutesti-cos disponiacuteveis antroponiacutemicos e toponiacutemicos o lusitano apresenta laquoclaras similitudes com las lenguas ceacutelticas y frequentemente com el cel-tibeacuterico [situado na zona do Ebro e talvez em regiotildees mais a sul na Estremadura e na Andaluzia]raquo (op cit) Tem no entanto caracteriacutesticas

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

23

mais arcaicas como o caso do p inicial ou intervocaacutelico que se man-teacutem enquanto as outras liacutenguas mesmo a celtibeacuterica deixam de o ter

Quanto ao denominado tarteacutessico (proacuteprio da cultura cujo apogeu decorreu durante o I mileacutenio a C entre o Guadalquivir e o Guadiana) ou tambeacutem chamado lusitano do Sul (em Portugal encontraram-se os principais vestiacutegios dessa escrita) Ballester diz haver igualmente a pre-senccedila de Celtici e de elementos ceacutelticos bem documentados na eacutepoca romana embora adiante natildeo ser ainda demonstraacutevel que esta liacutengua seja celtoacuteide ou indo-europeia No entanto considera ser essa a hipoacutetese mais provaacutevel dadas as afinidades tanto com o lusitano como com o celtibeacuterico (idem ibidem)

Assim laquoen el momento en que comienza la romanizacioacuten ese conjunto indo-europeu [lusitano e galaico-lusitano celtibeacuterico e talvez o tarteacutessico ou lusitano do sul] ocupa aproximadamente un poco maacutes de la mitad de la zona occidental de la Peniacutensula podriacutea decirse case toda la zona no mediterracircnearaquo (Idem ibidem)

Mas para afirmar laquouna mayor y maacutes antigua indoeuropeizacioacutenraquo das liacutenguas peninsulares Ballester recorre sobretudo agrave hidronimia ndash os nomes dos rios ndash considerando-a como particularmente relevante para essa comprovaccedilatildeo laquocumple sentildealar la especial o cuando menos singular importancia que para los pueblos que viven de la caza y la recoleccioacuten han tenido siempre rios y aquiacuteferos[hellip] Todas las rutas y destinos habiacutean de seguirse por lugares con aacutegua[hellip]raquo (Hidronimia Paleoeuropea una Aproximacioacuten Paleoliacutetica in continuitas) Avaliando os nomes dos rios da Europa da Escoacutecia agrave Escandinaacutevia relaciona-os com o povoamento no poacutes-glaciar empreendido pelos homens e mulheres da Europa temperada e conclui que laquoeacutes asi perfectamente loacutegico suponer que fueron estos quienes pusieron nombres a los riacuteos elemento de la naturaleza baacutesico para ellos y para a su subsistencia y para sus desplazamientosraquo (op cit)

Paralelamente Ballester realccedila a caracteriacutestica indo-europeia sobretu-do a mais frequente como os nomes que apresentam as raiacutezes como aundash e anandash (relembremos por exemplo o rio Ave ou o rio Ana) Inclusiva-mente relaciona-as com termos de parentesco pois satildeo as mesmas raiacutezes que formam as palavras avocirc avoacute ou antepassado interligando-as a dados vitais da natureza alvos de culto como o das aacuteguas das pedras das aacutervores ou das encruzilhadas com um caraacutecter laquoque podriacuteamos adjetivar sacroraquo (id ibidem)

Seraacute interessante realccedilar ser esta igualmente a raiz da palavra auis com o significado de paacutessaro Conhecer a linguagem dos paacutessaros eacute tam-

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

24

beacutem adjectivado como sagrado e eacute siacutembolo de sabedoria Na sua origem natildeo estaraacute afinal a importacircncia de conhecer a liacutengua dos antepassados a liacutengua que nos identifica e faz a ponte entre cada um de noacutes e o outro

De qualquer modo todos estes elementos fazem efectivamente parte de cultos tidos tambeacutem como ceacutelticos isto eacute de povos que veneravam os mortos e os antepassados Existiram aqui e deles nos chegaram ecos ateacute bem tarde ndash como lembra Ballester ndash pois assim o provam as pregaccedilotildees de Satildeo Martinho de Braga no seacutec VI da nossa era e as sucessivas directi-vas conciliares medievais

As caracteriacutesticas arcaicas do lusitano como a existecircncia da consoan-te intervocaacutelica p fazem assim Ballester a afirmaacute-lo como celtoacuteide e a concluir serem provas do seu conservadorismo em relaccedilatildeo tambeacutem ao celtibeacuterico

Por outro lado as especificidades ceacutelticas do lusitano ou do galaico- -lusitano satildeo tambeacutem sublinhadas por Francesco Bennozo e M Alinei (Alcuni aspetti della teoria della Continuitagrave Paleoliacutetica applicata allrsquoarea galle-ga) Segundo afirmam essas especificidades estatildeo laquoreflectidas significati-vamente num plano de continuidade nas falas galego-portuguesasraquo na sonorizaccedilatildeo das consoantes surdas intervocaacutelicas (laquonotoriamente celtaraquo idem ibidem) E acrescentam que em termos de morfossintaxe laquohaacute ele-mentos exclusivos na liacutengua actual tanto galega como portuguesa que se podem interpretar como sendo um arcaiacutesmo ceacuteltico mantido pela aacuterea galego-lusitana que deveria representar um fenoacutemeno originaacute-rioraquo (id ib)

Eacute interessante salientar no entanto que enquanto Alinei considera o celtismo da faixa galego-portuguesa como proveniente da costa atlacircntica francesa Ballester (Alinei II La siacutent Emerg) prefere colocar outra hipoacutete-se E defende a possibilidade de outras rotas para a entrada dos povos celtas na Europa Aliaacutes devolve a Alinei o seu proacuteprio argumento dizendo natildeo haver provas arqueoloacutegicas ou outras incluindo geneacuteticas a demonstrar a intrusatildeo de populaccedilotildees vindas da Gaacutelia para aleacutem de quantidades miacutenimas pouco significativas (voltaremos a este tema ao focar o megalitismo em Portugal)

De facto e no que respeita aos estudos do mtADN parece confirmar--se a hipoacutetese de uma vinda de populaccedilotildees do Norte de Aacutefrica para a Peniacutensula Ibeacuterica haacute cerca de 40 000 anos (Ana Gonzalez e outros Mito-chondrial DNA affinities at the Atlantic Fringe of Europe in American Jour-nal of Physical Anthropology 120 pp 391-404 2003) Neste trabalho para aleacutem de se mencionar de novo a coincidecircncia em tempos paleoliacuteti-

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

25

cos do mtADN peninsular com o mtADN britacircnico sublinham-se as notoacuterias correspondecircncias entre a Aacutefrica e a Peniacutensula Ibeacuterica natildeo expli-caacuteveis apenas com a vinda dos muccedilulmanos no seacutec VIII Por outro lado salienta-se que dos resultados obtidos transparece grande incremento populacional em periacuteodos posteriores como o Mesoliacutetico inclusivamen-te de povos subsarianos jaacute neolitizados desde 8000 a C O que nos reme-teria para colocar outras hipoacuteteses interessantes acerca da neolitizaccedilatildeo do nosso paiacutes tanto mais que haacute estudos geneacuteticos de animais domesti-cados como bois burros ou cavalos a apontar para uma ancestral coinci-decircncia entre ADN africano e peninsular nomeadamente Portugal (Albano Beja-Pereira e Giorgio Bertorelle European cattle more than meets the eye in wwwcienciahojept Cecilia Anderung e outros Prehistoric contacts over the Straits of Gibraltar indicated by genetic analysis of Iberian Bronze Age cattle in wwwpnasorg Jun 2005)

Em consonacircncia com estas conclusotildees da geneacutetica estaacute assim a afir-maccedilatildeo de Ballester laquo[hellip]las lenguas ceacutelticas ndash la uacutenica familia indoeuro-pea reconocida unanimemente para la Peniacutensula Ibeacuterica ndash presentan ade-maacutes[hellip] a afinidad tipoloacutegica que gardan y con las lenguas afroasiaacuteticas (especialmente las camiacuteticas y semiacuteticas las maacutes proacuteximas geografica-mente) [hellip]raquo (Sobre el Origen de las Leng Indoeur Prerrom de la P Ibeacuterica)

Entatildeo podemos concluir com Ballester laquopequentildeos grupos de cazadores y recolectrices ([hellip]el grupo incluye especialmente a pescadores y marisqueros) y hablantes de lo que despueacutes serian lenguas ceacutelticas debieron penetrar en la Peniacutensula Ibeacuterica en el Paleoliacutetico Superior y antes pueacutes del 8000 a C Probablemente arribaron desde Aacutefrica[hellip] seguiendo sus objetos de alimentatioacuten avanzariacutean por las cuestas o per el interior serviendose aqui preferentemente de las cuencas fluviales para iren extendieacutendose progresivamente hasta el Norte poniendo nombres a rios y outros lugaresraquo (id op cit) O p ter-se-ia perdido entretanto ao longo da Peniacutensula Ibeacuterica e daiacute a dife-renccedila do primitivo lusitano para o celtibeacuterico ou para outras liacutenguas ceacutelticas como se disse mais acima

Portanto ao que tudo indica laquoen el que respecta a las lenguas ceacutelticas extrapeninsulares la conclusioacuten seriacutea la misma esas lenguas procederiacutean de la Κελτική (lsquoCeltikēacute) es decir de la Peniacutensula Ibeacutericaraquo (id Ibidem)

Conveacutem acrescentar que se o lusitano manteve o arcaiacutesmo da manu-tenccedilatildeo do fonema indo-europeu p isto se ficou a dever talvez tambeacutem ao seu isolamento em relaccedilatildeo a outras regiotildees o que nos leva a recordar aquilo que ficou dito atraacutes acerca do refuacutegio ibeacuterico na eacutepoca glaciar

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

26

Facto relacionado igualmente com os estudos geneacuteticos que afirmam a singularidade do povo portuguecircs pois laquo[hellip]manteve um certo grau de especificidade cultural e eacutetnica caracteriacutestica proveniente de tempos antigosraquo (Paulo Santos e outros Relatedness among Basques Portugueses Spaniards and Algerianos studied by HLA allelic frequencies and Haplotypes in Journal Immunogenetics Springer BerlinHeidelberg vol 47 nordm 1 1997 col Biomedical and Life Sciences Spingerlink 19 de Fev 2004) Singularidade essa que de acordo com os investigadores portugueses que participaram neste estudo reside na existecircncia de dois haploacutetipos uacutenicos A25-B18-DR15 e A26-B38-DT13 O primeiro encontra-se em Portugal e tem reflexos em populaccedilotildees brancas da Ameacuterica do Norte e do Brasil laquoProvavelmente eacute um marcador para o antigo povo portuguecircs da Euro-pa e para as populaccedilotildees descendentes de portugueses na Ameacutericaraquo O outro laquoeacute um marcador especiacutefico dos Portugueses natildeo encontrado em mais nenhuma parte do mundo e existiu talvez nos primeiros Ibero- Ocidentais Portanto os Portugueses satildeo uma populaccedilatildeo relativamente distinta pois os dados do nosso HLA[hellip] podem reflectir um efeito fun-dador ainda detectaacutevel vindo dos antigos portugueses i e Estriacutemnios e Coacuteniosraquo (id ibidem)

Como nota diga-se que Coacutenios eacute o nome citado por inuacutemeros autores antigos para designar os primitivos habitantes sobretudo do Algarve Estriacutemnios eacute o nome citado por Avieno (Ora Mariacutetima do seacutec IV d C baseada num peacuteriplo comercial massaliota do seacutec VI a C) que a eles se refere dizendo terem sido os primeiros habitantes daqui expulsos por uma invasatildeo de serpentes e que se acoitaram na Bretanha (nome da Ingla-terra de entatildeo)

Ecos lendaacuterios de um tempo passado Ecos de movimentaccedilotildees preacute- -histoacutericas como as que surgem mencionadas na Lenda da Fundaccedilatildeo

4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal Mas eacute exactamente com base em muitos destes dados aqui abordados

parcialmente que a teoria ou paradigma (como prefere X Ballester e que creio tambeacutem ser mais apropriado) vem revolucionar quanto a mim a cronologia e o enquadramento dos acontecimentos com profun-das consequecircncias no modo de ver a Histoacuteria nesta faixa atlacircntica da Peniacutensula Ibeacuterica e natildeo soacute

Pode afirmar-se partindo de M Alinei e F Benozzo que este territoacute-rio eacute de todos o que mais desmente as teorias tradicionais Estes dois

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

27

autores ao referirem-se ao caso concreto da Galiza (Alc Asp della teoria della Cont Paleol applicata allrsquoarea gallega) salientam aspectos que dadas as suas caracteriacutesticas podem ser aplicados tambeacutem a Portugal inteiro Assim tomamos como nossas as suas afirmaccedilotildees para dizer que toda a faixa atlacircntica eacute laquoa regiatildeo originariamente ceacutelticaraquo (idem op cit)

Conveacutem no entanto realccedilar que ao ler o texto citado ficou a sensa-ccedilatildeo de que ele poderia ter sido mais abrangente Embora considerando que se tratava de um tema apresentado numa ocasiatildeo especiacutefica relacio-nado com a Galiza dele ressalta uma caracterizaccedilatildeo demasiado exclusi-va do Noroeste da Peniacutensula natildeo englobando mais abertamente a cultu-ra e a preacute-histoacuteria da restante faixa atlacircntica que se estende ateacute ao Sul da Ibeacuteria

Portugal ndash que estes autores contudo natildeo excluem ao apresentar exemplos desse celtismo primitivo e originaacuterio ndash dispotildee comprovada-mente de norte a sul de todos aqueles elementos citados no artigo refe-rido acima No caso concreto da cultura castreja por exemplo ndash conside-rada tipicamente celta ndash estatildeo jaacute claramente identificados cerca de 7000 castros em todo o Norte do nosso paiacutes ateacute Aveiro Mas tambeacutem em San-tareacutem Setuacutebal Eacutevora e Beja bem no centro e no sul do Paiacutes eles fazem parte importante da paisagem

Em relaccedilatildeo especificamente ao argumento ceacuteltico do megalitismo da Galiza esse fenoacutemeno eacute referido como datado apenas do IV mileacutenio a C posterior portanto ao megalitismo bretatildeo do V mileacutenio a C um dos argumentos que pode estar tambeacutem na base da tese de Alinei sobre a proveniecircncia francesa do celtismo como vimos atraacutes No entanto e como se disse igualmente no Algarve a dataccedilatildeo pode recuar ao VII mileacute-nio e no Alentejo ao VI nomeadamente com o complexo dos Almen-dres Estes satildeo dados importantes pois vecircm ao encontro dos argumentos de X Ballester na defesa de que o primeiro nuacutecleo celtoacuteide estava na Peniacutensula e que a expansatildeo se fez de Sul para Norte numa correlaccedilatildeo com o que se disse sobre a expansatildeo dos Indo-Europeus e o repovoa-mento poacutes-glaciar

Tambeacutem eacute de salientar que esses mesmos recintos megaliacuteticos satildeo con-siderados actualmente como laquoobservatoacuterios astronoacutemicosraquo com referecircncias solsticiais (v Marciano da Silva ou Pedro Alvim in wwwcrookscapeorg) E citamo-lo na sequecircncia da afirmaccedilatildeo de Alinei e Benozzo acerca de outro elemento celta os laquosantuaacuterios solsticiaisraquo que se encontram igualmente disseminados por Portugal Mais adiante viraacute a propoacutesito a citaccedilatildeo especiacute-fica a um desses possiacuteveis santuaacuterios solares em Sintra

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

28

Mas outros elementos haacute natildeo referidos ainda a comprovar a nossa necessaacuteria inclusatildeo nessa regiatildeo originariamente ceacuteltica e que tambeacutem se estendem de norte a sul do Paiacutes Para aleacutem evidentemente de o corpus lendaacuterio em que se inclui a Lenda da Fundaccedilatildeo ter sido chamado agrave cola-ccedilatildeo por estes autores eles sublinham a existecircncia de outras lendas e de outro corpus miacutetico-religioso de celtismo inconfundiacutevel de cariz popular Ora natildeo esqueccedilamos eacute essencialmente na tradiccedilatildeo popular e na tradiccedilatildeo oral que se encontram as mais profundas raiacutezes identitaacuterias de um povo e alguns dos exemplos citados por Alinei e Benozzo focam o territoacuterio portuguecircs ndash as tradiccedilotildees em redor do rio Lima e do promontoacuterio Sacro Apesar disso no entanto parece fazer-se um vazio entre norte e sul por parte desses dois investigadores natildeo soacute no que toca ao megalitismo mas tambeacutem no que toca agrave forte componente mesoliacutetica do Tejo do Sado do Mira e do litoral algarvio E natildeo mencionam que essoutras lendas miacutetico-religiosas que vamos ver a seguir satildeo igualmente recorrentes em Portu-gal inteiro

A) As lendas de mouras e mouros encantados Muitos conhecem as ceacutelebres lendas de mouras e mouros encantados

tatildeo disseminadas por este Paiacutes fora do Algarve ao Minho e Traacutes-os-Montes Eacute evidente que haacute tambeacutem lendas de mouros e mouras a referirem-se

especificamente ao povo que aqui habitou desde o seacutec VIII como eacute o caso da lenda de Moura ou da moura Ardinga de Lamego Mas natildeo creio que pertenccedilam ao mesmo paradigma Nem que seja vaacutelido o argu-mento de que as primeiras satildeo laquoencantadasraquo porque o povo que as criou se referia a um povo que lhe era estranho pela atracccedilatildeo e terror simultacirc-neos que inspiraria Historicamente esse povo mouro que aqui esteve foi em boa parte moccedilaacuterabe e mudeacutejar (fruto bem misturado de cristatildeo e muccedilulmano) onde a estranheza natildeo estaria decerto assim tatildeo presente Recordemos que jaacute no tempo de D Afonso Henriques Chaves era governada por um emir muccedilulmano (1160) e que o bispo de Lisboa se aliou agrave populaccedilatildeo contra as tropas do nosso primeiro rei apoiadas pelos Cruzados o que lhe valeu a decapitaccedilatildeo

Mais uma vez conveacutem fazer a destrinccedila entre a realidade da elite governativa e da classe dominante por excelecircncia urbana e cosmopolita e uma outra realidade bem diferente a do povo miuacutedo sobretudo rural ndash pagatildeo no genuiacuteno significado desta palavra o pagus ou campo ndash afinal o autor destas lendas e simultaneamente guardiatildeo essencial da nossa continuidade E de facto estas satildeo lendas de cariz popular e natildeo erudi-

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

29

to pertencem agrave tradiccedilatildeo oral e natildeo escrita como defendem tambeacutem Ali-nei e Benozzo (op cit) Casos como lendas do tipo da de Moura ou de Lamego teratildeo talvez um fundo histoacuterico e erudito enquanto as outras teratildeo um fundo miacutetico-religioso natildeo confundiacutevel com o povo muccedilulma-no Haveraacute numa ou noutra lenda e como eacute natural um contaacutegio inevi-taacutevel mas isso natildeo impede que tenhamos de distinguir e de considerar dois paradigmas distintos Porque tudo o que estaacute subjacente nas lendas de mouras e mouros encantados eacute claramente diferente e tem um outro sentido tambeacutem claramente muito diverso E esse sentido torna-se mais niacutetido e evidente se o virmos agrave luz desta nova teoria (ou PCP) e se o con-frontarmos com o que sabemos da cultura celta primitiva

Analisando este fenoacutemeno das lendas das mouras encantadas eacute curioso anotarmos que um dos instrumentos de que os arqueoacutelogos se servem para localizar vestiacutegios preacute-histoacutericos seja precisamente a exis-tecircncia persistente deste lendaacuterio em certas regiotildees e certos locais do Paiacutes Coincidecircncias Por via de regra onde haacute uma lenda de mouras encanta-das haacute uma anta um megalito um castro uma gruta utilizada nesses mileacutenios recuados ou uma outra qualquer manifestaccedilatildeo como a arte rupestre Por via de regra tambeacutem esses mesmos vestiacutegios tecircm laquopor coincidecircnciaraquo o nome de laquopedra da mouraraquo laquocova da mouraraquo laquopala da mouraraquo laquocasa da mouraraquo laquopoccedilo da mouraraquo ou outro semelhante E a eles se ligam rumores populares referindo promessas de achado de um tesouro de oiro e prata ndash de leitura sugestiva mas facilmente correlacio-nada com ambientes preacute-histoacutericos ndash ou mais objectivamente dizendo que o tesouro eacute (por coincidecircncia) preacute-histoacuterico

Cite-se por exemplo a lenda do monte da Saia perto de Barcelos onde esse tesouro dito preacute-histoacuterico eacute guardado pelas laquocobras-mourasraquo ou laquobichas-mourasraquo Estes termos satildeo por sua vez igualmente muito utilizados para designar os seres sobrenaturais meio mulheres meio serpentes habitantes dessas paragens ou para designar os locais onde estatildeo insculpidas as laquobichasraquo ou cobras tema iconograacutefico tatildeo comum da nossa preacute-histoacuteria Natildeo seraacute certamente por acaso tambeacutem que nas lendas as mouras satildeo na maioria das vezes meio mulheres meio ser-pentes ou vecircm a transformar-se nesses animais ou noutros como por exemplo o touro outro dos iacutecones mais desenhados e pintados na nossa arte rupestre Veja-se o exemplo da lenda alentejana da Quinta do Fidal-go e da dama chamada como natildeo podia deixar de ser Ana nome enquadrado no contexto da Lenda da Fundaccedilatildeo e cuja raiz etimoloacutegica jaacute foi mencionada acima para significar lsquoavoacute ndash antepassadarsquo

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

30

Normalmente nas lendas esses seres sobrenaturais estatildeo do mesmo modo associados agrave ideia de morte ndash como por exemplo o risco que corre qualquer incauto que natildeo cumpra as regras que lhe satildeo impostas para o desencantamento do ser encantado ou do local ndash e agrave ideia de vida de fertilidade e riqueza ndash como a oferta de ouro que se pode transformar em carvatildeo siacutembolo do seco do infeacutertil do imprestaacutevel Vida e morte satildeo temas indissociaacuteveis nas crenccedilas preacute-histoacutericas que teratildeo presidido agraves construccedilotildees deste tipo de monumentos A este propoacutesito pode tambeacutem referir-se a lenda da Casa da Moura de Zedes ou a da Anta da Pala da Moura que conta como a anta teraacute sido construiacuteda uma moura encanta-da trouxera agrave cabeccedila a mesa da anta enquanto amamentava um bebeacute e fiava numa roca o fio da vidahellip

Em alguns locais a moura eacute substituiacuteda por um mouro encantado ou melhor um gigante o gigante construtor dos megalitos o gigante que existe nas crenccedilas populares como pessoalmente tive a oportunidade de constatar numa aldeia proacutexima de Monsaraz ainda que a crenccedila possa ter uma faacutecil motivaccedilatildeo psicoloacutegica natildeo nos devemos esquecer de que esta eacute outra zona particularmente rica em megalitismo a zona proacutexima do rio que deu o nome aos grupos que aiacute viviam os Celtas do Ana como jaacute Estrabatildeo lhes chamava

E eacute tambeacutem crenccedila popular que os gigantes construtores de megali-tos vivem geralmente em covas subterracircneas (como o gigante proacuteximo de Monsaraz) o mundo do reino dos mortos Nos antigos mitos satildeo igualmente considerados como filhos da Matildee Terra tal como as mouras encantadas

Para Alinei e Benozzo estaacute tambeacutem completamente fora de questatildeo confundirem-se estas lendas com o povo mouro E recorrem mais uma vez agraves possiacuteveis raiacutezes etimoloacutegicas que justificam esta sua hipoacutetese pois reconhecem existir a palavra ceacuteltica MRVOS para designar tanto lsquomortorsquo como lsquoser sobrenaturalrsquo Ora como se verifica esses satildeo elemen-tos fundamentais neste tipo de lendas

Por outro lado lembram que o termo mais vulgar para designar os monumentos funeraacuterios megaliacuteticos em galego e em portuguecircs eacute mamoa e natildeo doacutelmen ndash o termo utilizado noutras liacutenguas Na realidade a anta que conhecemos eacute apenas o laquomioloraquo escondido sob um monte de terra agora desaparecido que tinha essa forma sugestiva de mama ou de ven-tre graacutevido de mulher Assim o termo MRVOS tal como o termo mamoa mostram ser aqui que reside o fundo originaacuterio deste lendaacuterio Um fundo preacute-histoacuterico ceacuteltico fruto de uma longa tradiccedilatildeo oral e natildeo

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

31

tardio como o seacutec VIII E satildeo as proacuteprias lendas a transmitir-nos laquoque os megalitos foram postos nos lugares sobre os quais as ldquomourasrdquo epifania mitoloacutegica da proacutepria terra aleitavam os seus filhos Portanto a lenda oral assim como o topoacutenimo dialectal representam uma preciosa e vital prova da funccedilatildeo maacutegico-religiosa dos complexos megaliacuteticos o nome dos megalitos e as lendas a eles associadas devem de facto referir-se a um periacuteodo em que tambeacutem o aspecto dos megalitos era diferente do actualraquo (Alinei e Benozzo Alc Asp della TCP applicata allrsquoarea gallega) Devem referir-se assim ao tempo das crenccedilas na Matildee-Terra regenerado-ra da natureza e dadora da morte e da vida

Morte e vida satildeo tambeacutem os temas sugeridos pela proacutepria forma do laquomioloraquo das mamoas as antas espeacutecie de uacutetero materno de onde o mor-to renasceraacute para a vida do Aleacutem E mais uma vez aqui reencontramos um tema caro agrave cultura ceacuteltica o Aleacutem ou o Sid o paraiacuteso ceacuteltico espeacutecie de ilhas Afortunadas buscadas pelos nossos navegadores ou de ilha de Avalon envolta em nevoeiro o mesmo nevoeiro que traria de volta o rei D Sebastiatildeo Avalon que poderaacute ter a raiz au- citada por Ballester para designar lsquoavocirc ndash avoacutersquo ou lsquoantepassadorsquo alvo de culto dessas eacutepocas preacute-histoacutericas

Mas de regresso ao Aleacutem esse era o reino para onde os mortos iriam levados por uma mulher uma bela mulher de longos cabelos loiros e vestes brancas e diaacutefanas Pela sua natureza feminina e consequentemen-te maternal este eacute mais um elemento intimamente ligado agrave Matildee-Terra E agrave fertilidade

Quantos de noacutes natildeo recordam a bela mulher descrita na Demanda do Graal na versatildeo portuguesa transportando a taccedila nas matildeos e distribuindo por todos o melhor manjar que cada um deseja ao mesmo tempo que a sala se enche de luz intensa Para aleacutem de a incorporar num ambiente onde ressoam os ambientes preacute-histoacutericos jaacute mais proacuteprios da Idade do Bronze ndash a comida a bebida os banquetes os cavaleiros ndash esta mulher ou estas mulheres com longos cabelos loiros tecircm correspondecircncia certamen-te com as mouras encantadas que se penteiam com um pente de oiro doi-rado como os seus cabelos O oiro da cor do Sol ligado agrave fertilidade como a serpente em que as mouras se transformam Fertilidade e serpentes satildeo ao que parece tambeacutem temas de um achado ineacutedito recentemente divul-gado (v archport) de insculturas numa rocha perto de Tondela Aqui segundo as descriccedilotildees publicitadas estatildeo inscritas uma figura feminina com um bebeacute sobre o ventre e uma figura masculina aparentemente simulando um acto ritual ambas enquadradas com serpentes o tema

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

32

recorrente deste lendaacuterio das mouras encantadas Mouras das nossas len-das que surgem agrave beira das fontes ou dos cursos de aacuteguas liacutempidas ndash a aacutegua outro elemento por excelecircncia ligado agrave vida ndash nas noites de luar da veacutespera de S Joatildeo festa intimamente relacionada com o culto do renasci-mento da natureza e com a fertilidade O Sol o oiro e o ciacuterculo lunar a prata siacutembolos proacuteprios dessa forccedila da natureza a que se convencionou apelidar de Deusa-Matildee a deusa dos olhos de Sol como assim lhe chama o arqueoacutelogo Victor Gonccedilalves especialista do megalitismo portuguecircs e do estudo das placas de xisto alentejanas onde esses siacutembolos aparecem insistentemente Por outro lado e como faz notar a especialista de lendas portuguesas Fernanda Frazatildeo louras satildeo as searas louros satildeo os campos feacuterteis prontos para a colheita E na estreita relaccedilatildeo de sementeira e colheita F Frazatildeo chama a atenccedilatildeo para o paralelismo com outro elemen-to muitas vezes presente nas lendas como a grade Esta prepara e desfaz os torrotildees da terra para melhor acolher as sementes tal como o pente que ao alisar os longos cabelos da moura encantada a prepara para melhor atrair De oiro eacute evidentemente a grade na lenda de Crestuma que por causa dela tem o seu nome (F Frazatildeo Lendas Portuguesas da Terra e do Mar pp 43-44 ed Apenas Livros Lisboa 2004) e laacute estatildeo tambeacutem alguns toacutepicos essenciais jaacute citados as aacuteguas do rio onde a grade estaacute mergulha-da uma vaca a parir dois bezerros ao mesmo tempo e o leite a ser obriga-toriamente aproveitado na totalidade pelas duas crias

Que mais se pode pedir quanto agrave presenccedila de elementos proacuteprios dos ambientes dos primeiros pastores e agricultores

Parece portanto oacutebvio que o fundo maacutegico-religioso preacute-histoacuterico deste lendaacuterio e a actual persistecircncia na cultura popular expressam uma clara continuidade Continuidade que estaacute em consonacircncia com o signi-ficado dos megalitos construiacutedos segundo o Paradigma da Continuida-de Paleoliacutetica (e Manuel Calado) pelos pescadores mesoliacuteticos celtas da aacuterea atlacircntica em toda essa faixa que vai de Portugal agrave Galiza e agrave costa francesa e insular

Em termos especificamente miacutetico-religiosos e fazendo parte tam-beacutem deste complexo conjunto de tradiccedilotildees disse-se haacute pouco que em Portugal residem dois dos mais importantes locais que tecircm sido alvo ao longo da Histoacuteria de quase todas as mitologias primitivas ocidentais Satildeo eles o rio Lima e o promontoacuterio Sacro Este uacuteltimo tem em particu-lar e de forma notoacuteria atravessado vaacuterias eacutepocas de sacralizaccedilatildeo ateacute praticamente aos nossos dias

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

33

B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo Jaacute Estrabatildeo daacute a explicaccedilatildeo da origem do seu nome tal como ele nos eacute

entatildeo citado rio Lethes termo que designa esquecimento em grego E eacute assim chamado porque em tempos diz Estrabatildeo quando os Cel-

tas do Guadiana se quiseram expandir para o Noroeste ao chegarem ao Lima se revoltaram O seu chefe pereceu na escaramuccedila Sem ele per-maneceram ainda nas suas margens por algum tempo ateacute se dispersa-rem e perderem sem lembranccedila do caminho de regresso

Tito Liacutevio tambeacutem se referiu ao rio como laquoRio do Esquecimentoraquo identificando-o com o Lethes da mitologia grega que tinha o condatildeo de provocar em todos os que o transpusessem o laquoolvido do passado e da proacutepria paacutetriaraquo (conde de Bertiandos in Lendas 1898)

Para Garcia Quintela (Mitos Hispaacutenicos La Edad Antigua pp 39-40 ed Akal Madrid 2001) eacute oacutebvia a conexatildeo entre esta histoacuteria e o mito ceacuteltico do Aleacutem bem como a sua relaccedilatildeo com outros temas ceacutelticos Neles tam-beacutem se incorporam os temas do esquecimento e da perda de rumo E con-ta a histoacuteria da viagem de Satildeo Patriacutecio ateacute agrave terra dos Bretotildees do Letha na Bretanha francesa de uma lenda galesa que fala de um exeacutercito que povoa o Llydaw ou paiacutes dos mortos ou de uma outra lenda dos galos de Itaacutelia com referecircncia a um bosque encantado chamado Litana Lembra G Quintela que no irlandecircs a palavra letha no galecircs llydaw e no galo litana satildeo designaccedilotildees do Aleacutem celta Por outro lado e recordando o sig-nificado da palavra grega lethes tudo parece indicar ser este nome a deturpaccedilatildeo feita por Gregos e Romanos de um termo que lhes era fami-liar pois o rio Lethes fazia parte da sua proacutepria topografia sagrada Detur-paccedilatildeo linguiacutestica que Gregos e Romanos teriam feito sistematicamente na Peniacutensula perante relatos indiacutegenas referentes a mitos originais Jaacute L Marinho de Azevedo no seacutec XVII punha essa hipoacutetese na obra Funda-ccedilatildeo Antiguidades e Grandezas de Lisboa (ed de 1652) Muitos seratildeo de fac-to os exemplos que tentaremos desenvolver em proacuteximas obras

Eacute comum a quase todas as mitologias a existecircncia de certos locais da Terra integrados numa geografia sagrada lugares considerados laquoumbigoraquo ou laquocentroraquo do mundo onde atraveacutes deles se pode estabele-cer a ligaccedilatildeo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e dos deu-ses Jaacute a Biacuteblia resultado de muitas tradiccedilotildees anteriores tambeacutem men-ciona o local e a pedra sobre a qual Jacob adormeceu e viu em sonhos a escada que ligava a Terra ao Ceacuteu Muacuteltiplos e evocativos dessa ideia satildeo os locais com nomes semelhantes contendo os mesmos significa-dos Lethes por exemplo foi tambeacutem nome de rio no Algarve (Ant Rei

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

34

laquoO Gharb al-Andalus em dois geoacutegrafos aacuterabes do seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicircraquo p 21 in Medievalista on line nordm 1 2005 ndash Instituto de Estudos Medievais FCSH ndash UNL) que passou a rio de Santa Maria e eacute actualmente o rio Seco das muacuteltiplas lendas de mouras encantadas algarvias e Lethe seraacute raiz do nome do rio Guadalete em Espanha Embora neste caso natildeo seja segura essa etimologia a ver-dade eacute que tambeacutem este rio eacute citado como local de outro mito ibeacuterico correlacionado L Marinho de Azevedo (op cit) conta que no topo sul da Peniacutensula pelo rio Guadalete entravam as almas que iam para o Aleacutem enquanto no topo norte pelo rio Lima regressavam as almas que renasciam

Mas nomes como laquoBoca do Infernoraquo ou laquoPoccedilo do Infernoraquo designam igualmente essa abertura perigosa onde o laquoesquecimentoraquo estaacute ligado natildeo soacute aos que acedem ao Aleacutem como aos que reencarnam ou renas-cem sem que lhes seja permitido terem a memoacuteria desse Aleacutem Natildeo se diz que um anjo preside ao nascimento de uma crianccedila tapando-lhe olhos ouvidos nariz e boca para que natildeo recorde nada que a impeccedila de comeccedilar de novo

O laquoesquecimentoraquo eacute assim um tema recorrente miacutetico-religioso exten-sivo agrave tradiccedilatildeo indo-europeia E normalmente na mitologia ceacuteltica os locais onde esse fenoacutemeno se manifesta estatildeo ligados a regiotildees longiacutenquas envoltas em bruma para laacute de um rio ou numa ilha onde os vivos se podem perder na sua busca imerecida ou de onde alguns mortos podem voltar como o rei escolhido caso de Artur e de Avalon ou de D Sebastiatildeo os reis regeneradores dos seus povos perdidos pela sua ausecircncia

Mas essa concepccedilatildeo de renascimento estaacute ainda intimamente relacio-nada com a ideia ceacuteltica do caldeiratildeo maacutegico de alimento inesgotaacutevel e divino promessa de regeneraccedilatildeo dos heroacuteis (agrave semelhanccedila da taccedila do Graal) Caldeiratildeo a que jaacute fizemos referecircncia na Lenda da Fundaccedilatildeo

Nesta linha Quintela (op cit) a respeito de um achado arqueoloacutegico nas Astuacuterias o diadema de Mones considera que este vem reforccedilar o caraacutec-ter originaacuterio peninsular miacutetico e ceacuteltico do rio do Esquecimento Nesse objecto estatildeo representados cavaleiros bem como outros personagens com rostos de aves caldeirotildees e animais marinhos Todos estes elementos se interligam com os temas caros agrave eacutepica irlandesa e ao tema do Sid a aacutegua o mar a terra prometida que se alcanccedila de barco as aves da sabedo-ria e guardiatildes do Aleacutem o alimento a regeneraccedilatildeo e o renascimento

Mas relacionado com o que foi dito ateacute agora haacute um outro episoacutedio passado nas margens do rio Lima relatado por Luacutecio Floro outro escritor

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

35

latino referido por Quintela (op cit) em 137 a C Juacutenio Bruto chefe do exeacutercito romano foi obrigado a deter o seu avanccedilo em direcccedilatildeo ao extre-mo noroeste da Peniacutensula porque os seus soldados ao chegarem ao rio pararam aterrorizados e recusaram-se a passar para aleacutem dele pois viram o Sol descer sobre o mar incendiar as aacuteguas e aumentar de tamanho

Como diz Quintela laquopouco haveria a dizer a respeito deste assunto natildeo fosse ele coincidir parcialmente com informaccedilotildees de etnografia reli-giosa sobre o promontoacuterio Sagrado o actual cabo de Satildeo Vicente na ponta sudoeste da Peniacutensula e territoacuterio dos Celtas do rio Ana e com as observa-ccedilotildees astronoacutemicas feitas nesse localraquo (op cit pp 40-41) E em simultacircneo Quintela cita a ligaccedilatildeo estabelecida por E Melim de Sousa entre este fenoacute-meno de o Sol crescer ao deitar-se sobre as aacuteguas e as gravuras encontra-das numa rocha perto da orla mariacutetima nos arredores de Sintra (precisamente a montanha da Lua como era conhecida pelos Antigos) Nesta rocha os ciacuterculos e os traccedilos ondulados insculpidos seratildeo represen-taccedilotildees do pocircr do Sol no mar enquanto uma figura humana talvez um orante parece celebrar cerimoacutenias rituais Este local teria sido assim tam-beacutem um santuaacuterio solar com conotaccedilotildees semelhantes agraves do rio Lima e agraves do promontoacuterio Sacro o qual vamos ver com mais pormenor

C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres Para este promontoacuterio para nele ficarem para a eternidade teraacute vin-

do Raacute na barca guiada por Seth o Heacutercules oroliacutebico filho de Osiacuteris ou seja Hoacuterus o titatilde Crono derrotado por Zeus ou o Heacutercules grego con-fundiacutevel com o outro Heacutercules ambos vencedores do gigante Geriatildeo rei miacutetico peninsular ou Tuacutebal neto de Noeacute e outro rei miacutetico fundador peninsular ou S Vicente ou ateacute a miacutetica Escola de Sagres da epopeia por-tuguesa e do infante D Henrique (quanto a esta natildeo comprovando a Histoacuteria a sua existecircncia porque se manteacutem ainda assim na memoacuteria colectiva) hellip

Talvez por que na Peniacutensula Ibeacuterica seja a proacutepria geografia que estaacute em concordacircncia com o mito do eterno retorno vida ndash morte fim ndash prin-ciacutepio talvez por que seja esta a terra onde se destaca o mito dos rios Lethes com a entrada para o Aleacutem e a saiacuteda para o renascimento Terra dos Extremos o extremo sudoeste de onde os homens desejavam avistar a terra da sua origem cuja lembranccedila conservavam nos confins da memoacuteria ndash no dizer de Fernanda Frazatildeo ndash e o extremo noroeste de onde avistavam a terra para onde queriam ir O mesmo elemento miacutetico-religioso estaacute presente na tradiccedilatildeo do promontoacuterio Sacro de onde se par-

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

36

tiu em busca das Ilhas Afortunadas e estaacute presente em Brigacircncia (tambeacutem antigo nome da Corunha) ou Breganza (nome referido pelo Lebor Gabala) onde da Torre de Heacutercules Ith Breogan ou o proacuteprio Gate-lo numa noite de luar vislumbrou a Irlanda espeacutecie de ilha prometida e paradisiacuteaca como diz a Lenda da Fundaccedilatildeo

Esta teraacute sido tambeacutem a terra dos Gaacutelatas ou Celtas E na hipoacutetese de X Ballester expressa no artigo laquoSobre el etnoacutenimo de los gaacutelatas (y de los celtas)raquo o significado destes dois termos pode vir ao encontro dessa mesma ideia ambos designaratildeo possivelmente o nome de populaccedilotildees como a de laquolos del extremo ndash los del liacutemiteraquo (op cit) Reunindo dados que apontam para a proveniecircncia desses dois nomes de uma mesma raiacutez este investigador diz que laquothe old name of the Celtae could be well preserved in the ethnonym Galatai which could be explained as gala ndash lsquoend limit borderrsquo and tai ndash lsquothosersquo lsquotheyrsquo with the general meaning of lsquothe border peoplersquo a common kind of ethnonym that suits the geographical situation of old Celts and their historical backgroundraquo (id ibidem) Recordemos que foi atraveacutes dos Gregos cuja mitologia estaacute eivada de temas ligados ao Extremo Ocidente que sabemos o nome deste grupo de gentes E recordemos como Ballester no artigo citado a correspondecircncia da geografia com crenccedilas e mitos das religiotildees antigas e essa mitologia sobre os confins do Ocidente as finis terrae as terras onde o Sol se potildee e a sua conotaccedilatildeo com o reino dos mortos Reino miacutetico para onde partiam para a eternidade os antepassados de muitos povos que os cultuavam e aos quais atribuiacuteam a sua proacutepria existecircncia

Atraveacutes da citaccedilatildeo de alguns autores a que vou recorrer essa sacrali-dade do cabo de Satildeo Vicente e de Sagres eacute visiacutevel e persistente ao longo da Histoacuteria e eacute motivo de vaacuterios mitos de diferentes tradiccedilotildees

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana Uma das primeiras referecircncias eacute a de Avieno que neste local diz ter

existido um templo dedicado a Crono salientando ter sido talvez esta a razatildeo de toda a mitologia criada em redor do laquoponto extremo da rica Europa que entra pelas aacuteguas salgadas do Oceano povoado de monstrosraquo Monstros proacuteprios do mundo para laacute das Colunas de Heacutercules a entrada para o mundo fantaacutestico dos deuses esse mundo do extremo Ocidente onde o Sol se potildee a terra infernal da morte

Para Estrabatildeo (Geografia III 1 4) do s I laquo[hellip]este eacute o ponto mais oci-dental natildeo soacute da Europa mas tambeacutem de toda a ecuacutemenaraquo onde o Sol segundo tradiccedilotildees populares aumenta no Ocaso pondo-se com ruiacutedo

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

37

como que a extinguir-se e a fazer ferver as aacuteguas do Oceano Estas obser-vaccedilotildees remetem-nos imediatamente para as afirmaccedilotildees feitas em relaccedilatildeo ao rio do laquoEsquecimentoraquo E Estrabatildeo levando-nos de novo para o mesmo universo miacutetico acrescenta que neste ponto extremo do Ocidente laquonatildeo eacute permitido oferecer sacrifiacutecios nem aiacute pernoitar pois dizem que os deuses o ocupam agravequelas horas Os que o vatildeo visitar pernoitam numa aldeia proacute-xima e depois de dia entram ali levando aacutegua jaacute que o lugar natildeo o temraquo Seguindo Artemidoro autor anterior a Estrabatildeo meio seacuteculo diz ainda laquoque natildeo se vecirc nenhum santuaacuterio de Heacutercules [hellip]nem altar ou dele ou de algum outro deus mas que em muitos siacutetios haacute grupos de trecircs e quatro pedras que satildeo pelos visitantes voltadas em virtude de um costume tra-dicional e deslocadas depois de eles fazerem libaccedilotildeesraquo

2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e fundadores de Portu-

gal Tuacutebal e Heacutercules Deste local no seacuteculo XVI dizia Bernardo de Brito na sua Monarquia

Lusitana laquoTuacutebal aqui morreu em 2009 a C sendo sepultado na uacuteltima parte da terra no promontoacuterio Sacro com grande dor de todos os mora-dores da Tubaacutelia [Portugal] Tal foi o amor que lhe tiveram que nunca se perdeu a memoacuteria da sua sepultura sendo venerada e visitada como coisa santa[hellip] Introduzindo-se mais tarde a idolatria e as supersticcedilotildees gentiacutelicas ficou no entanto a lembranccedila da sacralidade do local e sem jaacute saberem por que razatildeo por o tempo a ter esquecido tinham tanta veneraccedilatildeo agravequela parte da terra que agrave noite ningueacutem se atrevia a passar junto dela dizendo que andavam os deuses naquele local fazendo gran-des festas Daqui veio a chamar-se esta terra Promontoacuterio Sagradoraquo

E B de Brito continua referindo-se agora a Heacutercules laquo[hellip]fez gran-des sacrifiacutecios e libaccedilotildees aos deuses convidando os mais antigos e prin-cipais da nossa terra para essas festas Com esta atitude foi entrando pela terra dentro ateacute ao grande promontoacuterio que os naturais tinham por sagrado Aiacute fundou um famoso templo em que instituiu ritos e modos de sacrificar semelhantes aos egiacutepcios ritos e cerimoacutenias que permanece-ram muitos anos Uma dessas cerimoacutenias que todos os que vinham de fora praticavam tinha a ver com o tabu de entrar no templo depois do pocircr do Sol Assim quem quer que chegasse nessa altura esperava nos arredores pelo dia seguinte e quem estivesse laacute dentro tinha de sair e juntar-se aos demaishellipraquo

Do promontoacuterio Sacro no seacuteculo XVII dizia tambeacutem Pe Antoacutenio Vieira (laquoSermatildeo da Primeira Oitava da Paacutescoaraquo Pregado na matriz da

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

38

cidade de Beleacutem no Gratildeo-Paraacute no ano de 1656 in Sermotildees do Lisboa Editores J M C Seabra amp T Q Antunes 1855 t V p 240)

laquoAquela ponta de terra montuosa que hoje chamamos cabo de Satildeo Vicente antigamente se chamava Promontoacuterio Sagrado por estar ali o sepulcro de Tubal primeiro pai na nossa naccedilatildeo e tambeacutem o de Heacutercules um dos mais famosos e amados reis da Lusitacircnia Havia minas neste pro-montoacuterio as quais por causa da mesma veneraccedilatildeo tambeacutem era vedado cavarem-se e dizem as histoacuterias daquele tempo que soacute em um caso se permitia aos moradores aproveitarem-se do oiro e prata das ditas minas Mas qual era este caso Coisa verdadeiramente notaacutevel e muito digna de se notar O caso era quando caiacutea do ceacuteu algum raio que penetrasse a terra e descobrisse os preciosos metais que nela estavam escondidosraquo

(Este tema da existecircncia da sepultura de Tuacutebal ou de Heacutercules ou de um templo fundado por este uacuteltimo muito glosado na historiografia portuguesa ateacute ao seacutec XIX seraacute objecto de um proacuteximo projecto de F Frazatildeo e meu)

3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo Leite de Vasconcelos (Religiotildees da Lusitacircnia vol II pp199-216) ndash seacutec

XIX-XX ndash analisa este mesmo fenoacutemeno acerca do promontoacuterio Sacro e daacute-nos informaccedilotildees preciosas onde entra a sua proacutepria experiecircncia A ver-dade eacute que ateacute agrave sua eacutepoca muitos dos rituais lendas e tradiccedilotildees relacio-nados com este local e toda a zona circundante estavam vivos e bem vivos como comprovam as suas recolhas E ele proacuteprio as compara com os textos antigos ndash como o jaacute citado Estrabatildeo ndash para encontrar as seme-lhanccedilas laquoCom o fim de saber se no cabo de Satildeo Vicente ou em Sagres cor-ria hoje alguma lenda ou supersticcedilatildeo popular que pudesse relacionar-se com os factos constantes da narrativa de Artemidoro fui laacute em Marccedilo de 1894 e natildeo perdi as passadas No extremo do cabo perto do farol e das ruiacutenas do convento de S Vicente haacute vaacuterios montiacuteculos de pequenas pedras que o povo chama moledros e meleacutedros i eacute ldquomoledosrdquo dizendo mesmo ldquoum moledro de pedrasrdquo A propoacutesito desses moledros colhi da boca do povo as duas seguintes notiacutecias

bull Quando se leva do moledro uma pedra e se deixa num siacutetio aiacute a pedra anoitece mas natildeo amanhece i eacute vai-se de manhatilde ao siacutetio em que agrave noite se deixou a pedra e esta jaacute laacute natildeo estaacute e reaparece no moledro eacute D Sebastiatildeo quem de noite retira a pedra para o moledro

bull Quando se leva do moledro uma pedra sem ningueacutem saber e se coloca debaixo do travesseiro aparece laacute ao outro dia um soldado que

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

39

logo desaparece para ir outra vez jaacute transformado em pedra colocar-se no moledroraquo

E este autor recorre ao exemplo da Irlanda colocando-nos de novo no ambiente da nossa Lenda da Fundaccedilatildeo laquose quiseres um bom vento[hellip] faz um monte de pedras na margem semelhante a um duende e de volta espera o bom ventoraquo

Comparaccedilatildeo com a Irlanda tambeacutem feita por G Quintela que cita a ver-satildeo irlandesa do mito indo-europeu sobre o laquofogo huacutemidoraquo (op cit pp 42 e seg) Este investigador estabelece a ligaccedilatildeo de todos os elementos citados nomeadamente o sol-pocircr o aumento do seu tamanho e o crescimento das aacuteguas com o uacuteltimo episoacutedio relatado acerca do rio Lima

Avaliando passo a passo o que se narra no mito irlandecircs com os rituais praticados no promontoacuterio Sacro conclui que laquoem ambos os casos haacute uma aacutegua iacutegnea que jorra (caso irlandecircs) ou um Sol huacutemido (Peniacutensula) protegidos por tabus pois natildeo se podem contemplar[hellip]raquo (idem ibidem) Haacute ainda referecircncias semelhantes a libaccedilotildees agraves fun-ccedilotildees das pedras etc Assim laquoo que se conta sobre as razotildees do regresso de Bruto [outro mito britacircnico] e os relatos sobre o Promontoacuterio Sacro evocam tradiccedilotildees religiosas indo-europeias mais especiacuteficas com o mun-do ceacutelticoraquo (id ib)

Mas mais ecos desse celtismo se podem encontrar nas descriccedilotildees de L de Vasconcelos (op cit) laquoOs deuses[hellip] reuniam-se durante a noite no promontoacuterio[hellip] ningueacutem podia laacute ir nessa ocasiatildeo o lugar tornava-se pois inviolaacutevel[hellip] natildeo se permitia que laacute se fizessem outros sacrifiacute-cios que natildeo fossem ao que parece modestas libaccedilotildees[hellip] Busquei saber o que a este propoacutesito se crecirc ainda hoje [hellip]entre Sagres e o cabo de S Vicente na praia[hellip] aparecem medos e pantasmas [sic] [hellip]Um rapaz pescador muito sincero contou-me que viu ele mesmo um mili-tar na praia a passear de grande pecircra espada e listas azuis nas calccedilas este militar estava encantado Viu ele e viram outros barqueiros que iam no mar[hellip] Tambeacutem o mesmo pescador me disse que se conta que mesmo de dia andam na praia mulheres laquodescarapuccediladasraquo ndash pantasmas ndash e moiros Agrave noite vecircem-se em seu lugar luzes a vaguearem da mes-ma maneira Outros pescadores informaram-me de que haacute laacute uma gru-ta onde a companha ia dormir Um dos da companha acordou de noite com um pesadelo sobre as pernas a pesar-lhe muito gritou acordou os restantes da companha mas soacute ele eacute que viu Toda a companha depois fugiu dali[hellip] Em Beliche Velho diziandashse dantes que se via agraves vezes laacute de noite a qualquer hora uma fantasma vestida de branco que antemo-

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

40

rizava todos quem a via fugia-lhe[hellip] Em S Vicente assevera-se que logo que anoitece aparecem por ali uns medos ldquoumas cousas brancas e outras pretasrdquo com grandes meias encarnadas e luzinhas na matildeo e ouve-se agrave distacircncia uma muacutesica surda que se extingue pouco a pouco lentamente agrave proporccedilatildeo que as luzinhas vecircm laacute de longe dos matos para a praia[hellip]raquo

E L Vasconcelos acrescenta que laquo[hellip]Eacute facto sabido que certos povos acreditam que as almas dos mortos moram em subterracircneos em siacutetios remotos em ilhas no alto de montanhas nas regiotildees ocidentais onde o sol se potildee em cada noite para morrer quotidianamente[hellip]raquo laquo[hellip]O Promontoacuterio Sacro hoje S VicenteSagres era nos tempos pro-to-histoacutericos duplamente sagrado aiacute corriam lendas populares e se celebravam certas cerimoacutenias ritualistas[hellip] Aquelas lendas e cerimoacute-nias eacute natural supor que fossem indiacutegenas quem sabe mesmo se jaacute datariam dos tempos preacute-histoacutericos Os cultos feniacutecios satildeo certamente mais recentes que elas[hellip] as lendas e cerimoacutenias pertenciam provavel-mente ao patrimoacutenio religioso dos humildes pescadores da costaraquo

Afirmaccedilotildees afinal bem proacuteximas do Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica

L de Vasconcelos chamou igualmente a atenccedilatildeo para um laquomonteraquo ou casal chamado Vale Santo encontrado por quem segue de Vila do Bispo para o cabo de Satildeo Vicente por considerar que este nome tambeacutem mostra laquoa tenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que sempre o cabo teveraquo

Ora toda esta zona tem sido intensamente explorada nos uacuteltimos anos pela arqueologia e natildeo soacute tecircm sido detectados vestiacutegios paleoliacuteticos como mesoliacuteticos e do Neoliacutetico Antigo Aliaacutes nesta precisa regiatildeo eacute elevado o nuacutemero de menires ndash isolados em grupos ou em cromeleques ndash considera-dos dos mais antigos e importantes em consonacircncia com o que jaacute se dis-se acerca do megalitismo e da continuidade paleoliacutetica

Mas eacute ainda L de Vasconcelos que nos conta a crenccedila popular do laquoleixatildeo [rochedo] ou linxatildeo de S Vicente tambeacutem chamado O Gigantehellip pri-mitivamente pegado ao cabo E entramos assim noutros exemplos que nos revelam de forma ainda mais incisiva o caraacutecter persistente e profundo de crenccedilas que conduziram agrave cristianizaccedilatildeo do promontoacuterio Sacro

4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde Conta a lenda que S Vicente ia sentar-se no lugar em que hoje haacute

uma capela defronte enfastiou-se de o ver ali e foi com o dedo mecircminho i eacute miudinho ou miacutenimo e atiroundasho ao mar mas o dedinho quebrou-se-

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

41

-lhe e constitui hoje uma reliacutequia ou arrelique da igreja de Vila do Bispo Ainda agora se mostra na praia o buraco correspondente ao siacutetio do lei-xatildeo S Vicente tinha dois corvinhos consigoraquo (L de Vasc op cit)

Esta ligaccedilatildeo de S Vicente aos corvos jaacute eacute patente na descriccedilatildeo da Capela dos Corvos laquofamosa junto das gentes dos maresraquo (Antoacutenio Rei O Gharb al-Andalus em Dois Geoacutegrafos Aacuterabes do Seacuteculo VIIXIII Yacircqucirct al-Hamacircwicirc e Ibn Salsquoicircd al-Maghribicirc p 20 Instituto de Estudos MedievaisFCSHndashUNL) erigida em tempos moccedilaacuterabes e reconstruiacuteda ao que se diz no seacutec XIV sobre o local onde a tradiccedilatildeo indica ter sido a sepultura de S Vicente perto do cabo dos Corvos nome dado ao pro-montoacuterio por estes geoacutegrafos

A sua importacircncia na Idade Meacutedia eacute atestada aliaacutes pelas peregrinaccedilotildees que se realizavam mesmo durante o periacuteodo aacuterabe ao tuacutemulo de S Vicen-te Peregrinaccedilotildees que estatildeo na oacutebvia sequecircncia de cultos e rituais preacute-histoacutericos e das peregrinaccedilotildees milenares de que falam os autores antigos

E fazendo o elo Preacute-HistoacuteriaHistoacuteria a partir da verificaccedilatildeo da laquotenacidade da reputaccedilatildeo de sagrado que o Cabo sempre teveraquo (L V op cit) encontramos outra relaccedilatildeo entre o promontoacuterio e a cultura ceacuteltica subjacente S Vicente e os corvos

E de novo somos conduzidos agraves ilhas Britacircnicas Nos relatos dos geoacutegrafos aacuterabes (op cit) a referecircncia aos corvos aliada aos perigos cria-dos pelas invasotildees constantes que tiveram como panorama o promontoacute-rio Sacro remete-nos para o poder misterioso destas aves contra os inva-sores Alinei e Benozzo (Alc asphellip TCPhellip allrsquoarea gal)) tambeacutem realccedilam essa comparaccedilatildeo dizendo que tal poder tambeacutem estaacute patente nas lendas galesas pois laquo[hellip]a cabeccedila do deus Bran (o corvo) protege Gales de eventuais invasotildeesraquo Por outro lado estes autores mencionam a existecircn-cia no panteatildeo galaico de um deus Brennos estabelecendo a relaccedilatildeo entre este e Bran o deus corvo ceacuteltico E referem ser o panteatildeo originaacuterio luso-galaico de divindades ceacutelticas caso uacutenico em toda a Espanha pois mostra uma niacutetida individualizaccedilatildeo e coesatildeo

A propoacutesito recordemos a semelhanccedila dos nomes Bran e S Brandatildeo cujas ceacutelebres viagens foram largamente glosadas na literatura medieval em Portugal e Espanha como se disse mais atraacutes

Mas essa capacidade protectora do deus Corvo estende-se ao lendaacuterio de S Vicente Conta a lenda que quando o seu corpo foi trazido de bar-co do promontoacuterio para Lisboa no tempo de D Afonso Henriques (1173) dois corvos vinham a guardaacute-lo Um agrave proa outro agrave popa tal como se apresentam na caravela siacutembolo da cidade de Lisboa

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

42

No fim de contas o que parece resultar daqui eacute a cristianizaccedilatildeo do deus Corvo milenar ceacuteltico a ponto de o transformar no proacuteprio S Vi-cente Natildeo seraacute tambeacutem o que transparece no facto de popularmente se chamar ao corvo vicente

D) O culto das cabeccedilas Como uacuteltima nota vou fazer apenas uma breve abordagem ao culto

das cabeccedilas nomeado igualmente como celta por Alinei e Benozzo Sabe- -se historicamente que um dos costumes mais correntes entre os Celtas era a decapitaccedilatildeo Haacute exemplos de decoraccedilatildeo arquitectoacutenica celta com a incorporaccedilatildeo de cracircnios nas paredes Porquecirc Talvez por considerarem que era na cabeccedila que se situava a forccedila vital e tambeacutem as qualidades de coragem e honra temas que aliaacutes estatildeo bem presentes nos romances de cavalaria medieval nomeadamente entre os Cavaleiros da Taacutevola Redonda

E eacute inevitaacutevel recordarmos os cracircnios mesoliacuteticos expostos no Museu Geoloacutegico em Lisboa a demonstrar sinais de trepanaccedilatildeo mas a que estaria aliado certamente um ritual em redor do orifiacutecio desenha-se um pequeno Sol

Nos anos 60 em Ribemont-sur-Ancre Franccedila foi descoberto um cemiteacuterio ligado a uma grande batalha de celtas com um outro povo (wwwribemontsurancrecg80fr) Os corpos de jovens entre os 15 e 40 anos estavam enterrados de peacute decapitados as cabeccedilas acumuladas noutra fossa

Este ritual foi de resto um costume muito comum aos povos indo- -europeus jaacute que as cabeccedilas tinham entre outros o poder da profecia Na tradiccedilatildeo celta das ilhas Britacircnicas o deus Bran jaacute referido tem igualmente outra lenda onde se conta que a sua cabeccedila sobrevivente 80 anos agrave decapi-taccedilatildeo para aleacutem de proteger contra o inimigo tinha esse dom

Por outro lado em Portugal existem natildeo soacute esculturas de cracircnios como sinais rituais fuacutenebres em que as cabeccedilas eram propositadamente separadas do resto do corpo Veja-se o caso dos vestiacutegios datados dos tempos preacute-histoacutericos encontrados na Gruta do Escoural perto de Mon-temor-o-Novo

Mas como demonstraccedilatildeo da persistecircncia deste culto igualmente podemos encontrar ao longo dos tempos histoacutericos muitas narrativas sobre cabeccedilas em Pitotildees das Juacutenias Traacutes-os-Montes existiu ateacute agrave Res-tauraccedilatildeo a laquoCabeccedila de S Gonccedilaloraquo agrave qual os populares chamavam laquoCasco do Santoraquo Crecirc-se que seria um relicaacuterio feito a partir de um cracircnio

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

43

No Alentejo satildeo exemplares as histoacuterias da cabeccedila de S Romatildeo depositada na Igreja de Satildeo Pedro de Panoacuteias ndash o corpo deste santo estaacute na Ermida de S Romatildeo mandada edificar propositadamente para esse mesmo efeito ndash e a de S Fabiatildeo em Caseacutevel

Estas cabeccedilas chamadas laquocabeccedilas de saudadoresraquo eram normalmen-te encastoadas em ouro ou em prata e serviam para benzer pessoas ou animais fazer adivinhaccedilotildees e praticar mezinhas A cabeccedila de S Romatildeo por exemplo era levada por leigos a locais profanos para atraveacutes dela se benzer o gado ritual que se manteve ateacute ao seacutec XVII

Quanto agrave cabeccedila de S Fabiatildeo esta eacute uma beliacutessima cabeccedila-relicaacuterio de prata depositada em Meacutertola e datada possivelmente de meados do seacutec XIII Completada com pescoccedilo orifiacutecios nas orelhas nas narinas e na boca dela dizem Claacuteudio Torres e Joaquim Boiccedila os autores da monografia A Cabeccedila Relicaacuterio de Caseacutevel (pp 41 e 42 ed Campo Arqueoloacutegico de Meacutertola 1995) laquose o seu piatildeo de ourives lhe abriu os ouvidos para que pudesse escutar os lamentos as narinas para sentir as maleitas e a boca para fazer sair o bafo generoso deixando intactas as pupilas dos olhos eacute porque os encomendadores iniciais ou vontades mais tardias natildeo pretendiam ape-nas mandar encastoar e adorar uma simples reliacutequia conhecendo perfeita-mente os poderes a realccedilar e os perigos a evitar De qualquer homem morto e muito mais de um saudador era preciso evitar o olhar e nomeadamente a insondaacutevel pupila sempre perigosa ligaccedilatildeo com os mundos do Aleacutemraquo

O culto destas duas cabeccedilas abrangeu todo o Alentejo ateacute ao vale do Sado chamando peregrinos de todas as regiotildees A sua propagaccedilatildeo foi tatildeo grande que D Sebastiatildeo em 1573 foi a Panoacuteias no Alentejo laquooferecer-se agrave cabeccedila de S Romatildeoraquo

CONCLUSAtildeO Por tudo o que aqui ficou exposto um facto parece ressaltar nem que

multiplicaacutessemos 800 ndash o nuacutemero de anos que se diz que temos de Histoacute-ria ndash por 20 conseguiriacuteamos abarcar a histoacuteria cronoloacutegica do territoacuterio chamado Portugal e muito menos de todo o seu conteuacutedo E a histoacuteria de todo o seu povo ao qual agora chamamos portuguecircs Os nomes evo-luiacuteram mas tambeacutem os povos que foram nomeados Eacute essa evoluccedilatildeo do passado para o presente e deste para o futuro que tem de se preservar e de se dar a conhecer laquoEl pasado es lo que vive en la memoria de alguieacuten y en quanto actua en una conciencia por ende incorporado a un

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

44

presente y en constante funcioacuten de porvenirraquo (Antoacutenio Machado Juan de Mairena Obras Completas Madrid 1950) Parafraseando Lucien Febvre e rematando a epiacutegrafe do iniacutecio da 2ordf parte um historiador que recusa pensar o facto humano que se submete aos factos como se eles natildeo fossem produto da sua proacutepria elaboraccedilatildeo esquecendo que foi ele afinal quem os escolheu pode ser um excelente laquoaide-techniqueraquo mas natildeo eacute um historiador O homem eacute o objecto da Histoacuteria e tem de ser compreendido em todas as suas dimensotildees O que nos leva inevitavelmente a questionar sobre o que se ensina ainda hoje acerca da histoacuteria de Portugal e da histoacuteria em geral Porque tambeacutem a laquohistoacuteria eacute o que a Humanidade sabe de si mesma a sua certeza de si mesmaraquo (J G Droysen Histoacuterica Lecciones sobre la Enciclopeacutedia y metodologia de la histoacuteria Barcelona 1983)

Geneacutetica arqueologia linguiacutestica algumas das disciplinas que aqui abordaacutemos satildeo absolutamente indispensaacuteveis para o historiador fazer a sua siacutentese colocar as suas hipoacuteteses ou especulaccedilotildees loacutegicas possiacuteveis sobre quem como e porquecirc aqui se chegou Muitas outras disciplinas seratildeo tambeacutem essenciais (citaacutemos a paleogeografia a paleozoologia e a paleobotacircnica) mas a antropologia e a etnologia o estudo das lendas das tradiccedilotildees populares escritas e orais satildeo igualmente obrigatoacuterias A estas teraacute de recorrer o historiador que sobretudo no caso da Preacute- -Histoacuteria natildeo dispotildee senatildeo do documento natildeo escrito ou do documento escrito muito mais tardio maioritariamente da autoria de foracircneos como acontece no caso dos povos ibeacutericos E satildeo material primordial caso natildeo queiramos contentar-nos com o que penso ser a pequena histoacute-ria com objecto e horizonte limitados isto eacute a histoacuteria poliacutetica econoacutemi-ca administrativa etc Porque creio serem estas redutoras feitas sobre-tudo a partir do estudo das elites dos vencedores das relaccedilotildees de poder porque aleacutem disso satildeo mais susceptiacuteveis de sofrer a influecircncia de ideo-logias a influecircncia do pensamento dominante deturpador e manipula-dor da realidade histoacuterica e dos respectivos contextos porque enfim deixam de fora todo um passado distante mas colectivo

Neste sentido a Lenda da Fundaccedilatildeo foi o ponto de partida que me levou a trilhar caminhos surpreendentes a colocar hipoacuteteses diferentes que o tempo e a ciecircncia poderatildeo ir comprovando ou natildeo E creio que esses caminhos podem levar-nos longe na tentativa de reencontrarmos as nossas raiacutezes culturais e identitaacuterias mais profundas a nossa certeza de noacutes Fez inclusivamente perguntar-me se a saudade caracteriacutestica tatildeo nossa natildeo entroncaria exactamente nessa ancestralidade de cultura ceacuteltica onde eacute tatildeo visiacutevel o culto dos antepassados e nessa marca inscri-

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

45

ta talvez no inconsciente colectivo do refuacutegio ibeacuterico de onde teraacute emer-gido de novo o homem europeu

Faz igualmente perguntar-me se as tradiccedilotildees ou simples rumores que as populaccedilotildees ainda hoje preferem transmitir oralmente ndash num diz-se quehellip ou conta-se quehellipndash natildeo estaratildeo na linha de continuidade que se aventou acerca da nossa ancestralidade ceacuteltica Assim como poderatildeo explicar a tradicional e espontacircnea multiplicidade dos poetas populares deste paiacutes Por um lado e segundo se supotildee a oralidade era a regra de os Celtas transmitirem os seus conhecimentos ndash mesmo depois da vulgariza-ccedilatildeo da escrita entre os povos contemporacircneos seus vizinhos ndash e por outro lado jaacute Estrabatildeo se admirava com a praacutetica comum da transmissatildeo em verso da histoacuteria da literatura e do direito caracteriacutestica vinda segundo este autor do passado remoto de alguns dos povos peninsulares

Embora estas sejam especulaccedilotildees penso que teratildeo alguma pertinecircn-cia e careccedilam de investigaccedilatildeo

De qualquer modo espero ter deixado reflectida neste trabalho uma pequena amostra da importacircncia que julgo ter o aprofundar desses estu-dos bem como espero ter deixado algumas pistas para se ir muito mais aleacutem no desvendar desta enorme riqueza cultural do territoacuterio onde vivemos Creio que reside tambeacutem na concordacircncia entre Mito ndash de que as lendas satildeo resquiacutecios ndash e Histoacuteria a caracterizaccedilatildeo do rosto da peniacuten-sula onde a Terra acaba e o Mar comeccedilahellip

laquoTodos os rios correm para o mar e o mar natildeo se enche Ao lugar de onde vieram ali voltam para correr de novoraquo (Eclesiastes 1 7)

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43

47

IacuteNDICE

PROacuteLOGO 3 I Parte A GENEacuteTICA A SUA RELACcedilAtildeO COM A ARQUEOLOGIA E A LENDA DA FUNDACcedilAtildeO DE PORTUGAL IRLANDA E ESCOacuteCIA 4 II Parte O PARADIGMA DA CONTINUIDADE PALEOLIacuteTICA 11

1ordm ndash A problemaacutetica dos Celtas 11 2ordm ndash A Teoria da Continuidade Paleoliacutetica 15 3ordm ndash Antiguidade das liacutenguas celtoacuteides indo-europeias da Peniacutensula

Ibeacuterica 22 4ordm ndash A TCP (ou Paradigma da Continuidade Paleoliacutetica) aplicada a

Portugal 26 A) As lendas de mouras e mouros encantados 28 B) O rio Lima ou Lethes o rio do laquoEsquecimentoraquo 33 C) O promontoacuterio Sacro cabo de Satildeo VicenteSagres 35

1) O Promontoacuterio e os testemunhos da mitologia grega e romana 36 2) O promontoacuterio Sacro e os primitivos reis miacuteticos e funda-

dores de Portugal Tuacutebal e Heacutercules 37 3) O promontoacuterio Sacro e a continuidade da sacralizaccedilatildeo 38 4) O promontoacuterio Sacro e a lenda cristatilde 40

D) O culto das cabeccedilas 42 CONCLUSAtildeO 43