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2002 · Atrás dele, em perseguição, ia um segundo homem — jovem, estatu - ra média, ... Acendeu a luz mais próxima, e de repente todas as guitarras fixas

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Oxford Street não tinha acordado. Ainda se encontrava na cama de ressaca e com a maquilhagem da noite anterior. Todas as lojas estavam fechadas. Havia uma pomba a debicar um

saco de papel, um homem com um balde amarelo cheio de água com espuma e alguns empregados de escritório com auriculares. Eram 8:30 da manhã numa sexta-feira e fazia muito frio. O sol ficara preso no Soho.

Nesse momento, o corpo embateu nela. Atingiu-a com tanta força que ela se perguntou, por um momento, se chocara com uma pare-de. Ao mesmo tempo, soube que aquele corpo que se precipitou rapi-damente contra ela pertencia à mulher de batom vermelho e brincos que, segundos antes, estivera a andar em direção a ela com os saltos a fazerem barulho no passeio. Cambaleou para trás, suportando o peso, e alguém gritou «Eh!» e o cabelo crespo da mulher estava na sua boca e houve uma dor forte nas suas costelas. Em seguida, a mu-lher gritou «A minha mala!» e Tess, sendo londrina, sentiu um aper-to no coração e concentrou-se — embora os seus braços estivessem cheios de poliéster preto e do cheiro de laca — no homem pequeno e magro que se afastava a correr pela rua e se metia por uma viela. Atrás dele, em perseguição, ia um segundo homem — jovem, estatu-ra média, com um blusão de cabedal castanho — mesmo a desapare-cer de vista, engolido pela mesma esquina. Depois não houve nada, apenas uma rua meio vazia com transeuntes a lançarem-lhes rápidos olhares furtivos e a desviarem-nos de forma igualmente acelerada.

Ela agarrou melhor a mulher numa espécie de abraço desespera-do. A mulher soltou um pequeno miado de tristeza e disse:

— Ele levou-me a mala.

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Tess soltou-a. — Acho que ia alguém a persegui-lo — respondeu ela, mas am-

bas sabiam, ali de pé naquela rua sombria no início da manhã no sujo West End, que a mala tinha desaparecido para sempre.

— A senhora está bem? — perguntou Tess.A mulher assentiu. Porém, o seu batom vermelho estava esbor-

ratado e os olhos, carregados de rímel preto, encontravam-se cheios de lágrimas. Tinha rugas finas à volta da boca, como se fumasse ou tivesse fumado.

— Quer que chame a polícia?A mulher abanou a cabeça. — Só a tive dois minutos. Foi prenda de aniversário.— Teve um grande choque. Deixe-me oferecer-lhe um chá. — Não é preciso, obrigada. Tenho de ir para o trabalho, já estou

atrasada.Tess sentiu-se quase tão desesperada como a outra, como se ela

própria tivesse sido empurrada, humilhada e roubada. — Sinto muito.— É o tempo que leva. Cancelar todos os cartões, receber chaves

novas, comprar maquilhagem. Quem dera que ele me tivesse pedido dinheiro. Tinha-lho dado. É só dinheiro que eles querem.

— Mesmo assim acho que deveria ir à polícia — disse Tess. — No caso de o homem o apanhar e recuperar a mala.

A mulher olhou para a rua com um ar vago, quase como se es-perasse vê-los ainda — o assaltante pequeno e magro e o homem do blusão de cabedal castanho.

— Ele não vai apanhá-lo — disse ela com amargura. — A menos que seja o Linford Christie.

O sol, passando a perna ao betão, brilhou à volta dos edifícios e refletiu-se nas montras sujas das lojas. Oxford Street estava a acordar.

Algures, perto de Wardour Street, George admitiu a derrota. Ficou ali parado, surdo da pressão, enchendo os pulmões com grandes gol-

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fadas de ar. Sentia uma mistura peculiar de vergonha, fúria e alegria. Também se sentia cheio de calor. Não corria tão depressa, ou tanto, havia muito tempo. Fora um impulso perseguir o ladrão — uma re-ação à fúria que o invadira quando vira a mulher cair, empurrada.

George perguntou-se, enquanto esperava que o seu batimento car-díaco voltasse ao normal, se deveria regressar a Oxford Street e dizer à mulher o que tinha acontecido.

— Desculpe. Corri atrás dele bastante tempo, mas ele fugiu. Esquivou-se por trás de uma carrinha de distribuição e perdi-o.

Mas estaria ela ainda por lá? Não fazia ideia de quanto tempo tinha passado. Com certeza já se teria ido embora.

Talvez devesse ter ficado no local. Podia ter sido testemunha. — Cerca de um metro e sessenta, muito magro, cabelo escuro,

catorze ou talvez quinze anos, branco, sem caraterísticas distintivas. — Isso teria ajudado? — Seria capaz de o reconhecer? — Por um momento brilhante, George teve cem por cento de certeza que sim. Em seguida, com a mesma rapidez, teve a certeza que não.

Ali parado, a sentir o cheiro de açúcar baunilhado, café e leite quente proveniente do café italiano atrás dele, George sentiu uma sensação familiar de tristeza. Era algo que se abatia sobre ele, como um sobretudo pesado, sempre que era surpreendido nos seus pensa-mentos (uma banda sonora permanente) e tinha de enfrentar a rea-lidade. Acontecia-lhe muitas vezes naquela altura do dia. Não eram apenas os ladrões, ou a violência aleatória de uma cidade cheia de estranhos. Não era sequer o caos desconcertante que o seguia onde quer que fosse — chaves perdidas, meias trocadas, leite azedo, contas atrasadas, cartões bancários que não funcionavam e senhas de acesso de que não se lembrava, uma massa fervilhante e apressada como baratas numa cave escura que só se vê, por um momento de horror, quando se acende a luz.

Não, aquilo era algo muito pior. Era a convicção crescente de que dera cabo da sua vida, de que era um fracassado, de que algures pelo caminho tomara o atalho errado, ou fizera a escolha errada, e agora estava diante de uma parede de tijolo, um beco sem saída. Essa era a tristeza que enchia a sua cabeça sempre que se encontrava no meio do Soho e percebia que estava em 2002, que saíra da universidade há quase cinco anos e ainda tinha os mesmos trabalhos temporários a

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que se dedicava desde que deixara Manchester — trabalhos que ele só aceitara para pagar as contas até que a banda tivesse êxito.

Mas a banda não tivera o menor êxito. E o trabalho temporário tornara-se de súbito muito permanente.

George ficou ali, perplexo. Mas qual era a resposta? O pai dizia sempre: «Eu tive de escolher entre a música e a medicina.» Bem, pensou George, eu tive de escolher entre a música e a música. Como o seu herói Thelonious Monk dissera uma vez, foi sempre tudo o que eu quis fazer. Recentemente piorara ainda mais. Agora, pensou George, tenho a escolha entre continuar e desistir. Desistir parece agradável. Basta ouvires todos os pensamentos que tens tentado afastar — nunca vou conseguir, é demasiado competitivo, não vale a pena. Mas se eu não toco, não vale a pena de qualquer maneira. Então onde é que eu fico?

As bicicletas, as carrinhas de distribuição e os táxis do Soho derra-pavam, aceleravam e travavam à sua volta.

Ao fim de algum tempo, como aquela linha de raciocínio nunca o levava a lado nenhum, George respirou fundo, mexeu a cabeça de um lado para o outro para aliviar a tensão no pescoço, e dirigiu-se para o trabalho.

Chegou à loja cedo. Afinal, não costumava correr metade do cami-nho desde Oxford Circus. Rajesh desceu para o deixar entrar.

Lá dentro estava escuro, porque ninguém tinha aberto as persia-nas de segurança.

— Tudo bem? — perguntou Rajesh e George assentiu, embora as suas pernas ainda tremessem um pouco.

— Quem está cá hoje? — quis ele saber.— A Freya, o Vince e a Carmel — respondeu Rajesh. George, ao

pendurar o casaco, sentiu-se animar. Afinal o dia ia ser bom. Freya só percebia de violinos. Mas Vince tocava teclas como Art Tatum.

Acendeu a luz mais próxima, e de repente todas as guitarras fixas na parede de trás brilharam como címbalos de ouro.

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— Ias gostar dele — disse Kirsty. Estava sentada numa posição de ioga, com as pernas compridas

dobradas em direções opostas em volta do corpo. — De quem? — perguntou Tess. — Do George — respondeu Kirsty. Era sábado de manhã. Estavam a beber café na sala de estar desar-

rumada, Kirsty no chão, Tess enroscada no sofá mole. Uma luz fraca e contrariada espreitava através da grande janela de sacada, como se a desculpar-se por mostrar tanto pó. Havia objetos espalhados por todo o lado — camisolas de capuz, malas, livros, auriculares, almofadas insufláveis, meias cor-de-rosa enormes. Havia sempre gente a ficar no apartamento — velhos amigos de Manchester, conhecidos do pub que tinham perdido o último metro para casa. Nos dias maus, quan-do Tess voltava para casa e encontrava o frigorífico vazio e a banheira com sarro, perguntava-se se a sua hospitalidade teria ido demasiado longe.

Naquela manhã, tinham o apartamento só para elas. Kirsty aca-bara de chegar. Não parecia alguém que tinha passado a noite em discotecas. O seu cabelo preto comprido estava liso e brilhante. Os seus olhos ainda tinham a maquilhagem impecável, estilo Cleó-patra.

— Estás outra vez a fazer isso — observou Tess.— O quê?— Não gostas do Dominic — disse Tess — por isso estás sempre

a tentar apresentar-me a outras pessoas.Kirsty pareceu magoada. — Quando é que eu disse que não gostava do Dominic?— Desde que eu o conheci?Universidade de Manchester. Primeiro período do primeiro ano.

Três raparigas num apartamento e uma casa de banho partilhada da qual Dominic tinha emergido vestindo apenas uma pequena toalha branca. Kirsty, olhando para Tess atrás dele, tinha arqueado uma so-brancelha. Mas Tess não podia explicar. Por que motivo um homem que se parecia com um modelo de roupa interior passara a noite na sua cama?

— O Dominic é extraordinário — disse Kirsty.Tess, desconfiada, não disse nada.

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— Mas o George é a tua alma gémea — declarou Kirsty.— A minha alma gémea.— Ias adorá-lo. Ele é músico. Gosta de coisas artísticas.— Tal como muita gente — disse Tess. — E é antiquado.— Eu não sou antiquada.— Diz a miúda obcecada por moda vintage.Tess, que tinha passado a manhã a ler um exemplar da revista

Woman de 1944 (5 Tónicos Primaveris para as Suas Roupas!), teve de se calar.

— Prometo-te que ele é o teu tipo — afiançou Kirsty.— Qual é o meu tipo?Kirsty olhou para ela com as pálpebras baixas, como uma menina

prestes a dizer um palavrão. — Qualquer um que não seja o Dominic.Tess abriu a boca para protestar e voltou a fechá-la depressa. Aquilo

era uma piada recorrente. Sempre que Kirsty via Dominic — uma ou duas vezes durante a semana, e quase todos os fins de semana — olhava para Tess com uma expressão de ligeira surpresa, como se Tess tivesse começado a usar sombra azul nos olhos ou andasse a co-mer rins crus. Tess decidira há algum tempo que não havia nenhuma lei a dizer que a sua melhor amiga tinha de gostar do seu namorado. Ambos arrogavam direitos sobre ela e, provavelmente, ressentiam-se com o tempo que ela gastava com o outro. Assim, só tinha de conti-nuar a comportar-se como se a rivalidade não existisse.

Dominic achava Kirsty incompreensível. Dizia que não fazia ideia de como é que alguém que nunca se deitava antes das quatro da ma-nhã conseguia manter um emprego. A Dominic, Tess dizia «sim, não é incrível, ela tem tanta energia». A Kirsty, dizia «não achas que seria boa ideia levares o trabalho um pouco mais a sério para não passares o tempo a ser despedida?» Ao que Kirsty respondia, «posso sempre arranjar outro emprego».

Isso era verdade. Uma beleza de modelo e um grau académico em matemática — que importância tinham alguns buracos no CV? Não se podia desperdiçar tempo a viver preocupada com o trabalho, dizia Kirsty. O trabalho é o que tem de se fazer para pagar a renda. A vida é o que acontece quando o turno acaba.

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— Então, onde estiveste a noite passada? — perguntou Tess.— A ver a banda do Rhys.Tess franziu a testa, tentando lembrar-se. — Quem é o Rhys?— O irmão mais velho do Gareth.— Então o Gareth estava lá?Kirsty olhou para ela como se fosse louca. — Dificilmente. — Ele ainda não te perdoou?— O Rhys diz que ele chora até adormecer.Tess ficou chocada. — Mas isso é terrível!— É só o Rhys a falar — disse Kirsty —, a transformar um drama

numa crise. É o Dylan Thomas que há nele.Tess pensou em Gareth, deitado sozinho no escuro, com o cora-

ção destroçado. Isso deixou-a triste. De todos os homens com quem Kirsty saíra — e a maioria, como os seus postos de trabalho, durava apenas quinze dias — Gareth fora aquele de quem Tess mais gostara. Tinha cabelo ruivo e sardas no nariz, parecia alguém que passava a vida ao ar livre a construir muros de pedra e a cortar troncos com um machado. Nada disso era verdade, claro. Gareth trabalhava num call center a vender seguros. Tess detestava pensar nele encafuado atrás de uma secretária de madeira falsa, com auscultadores e um microfone.

— Então onde foste?— A um clube — respondeu Kirsty. — Perto de Smithfield. — Parou,

lembrando-se. — É um pouco estranho atravessar Smithfield de ma-drugada. Esbarramos constantemente em carcaças de porcos. — Tess teve uma imagem repentina de Kirsty cercada por costeletas. — E o George esteve nas teclas e foi muito, muito bom. Toda a gente aplau-diu de pé, gritou e bateu palmas. E depois fomos para casa do Rhys em Hackney, bebemos chá e ficámos a conversar e eu pensei, a Tess ia mesmo gostar. A Tess ia realmente gostar do George.

Tess estava a tentar não se mostrar interessada. Kirsty tinha um bom instinto para pessoas. Se começava a falar com alguém na para-gem do autocarro às três da manhã, essa pessoa acabava por ser um

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ator do Old Vic ou alguém que trabalhava com Vivienne Westwood. Então comentou:

— Toda a gente diz isso.Kirsty pousou o café e desenrolou-se, sentando-se de pernas cru-

zadas. — Toda a gente diz o quê?— Que eu ia gostar do George.— Quem, exatamente?— A Ellie e a Lauren. Conhecem-no de Manchester.— Como? — perguntou Kirsty. — Ele partiu antes de começar-

mos.— Não sei — respondeu Tess. — Através de amigos da Lauren.

Sabes como ela é... a rainha dos contactos.— Então aí tens — disse Kirsty. — Todos os pré-requisitos para

um relacionamento perfeito. Frequentaram a mesma universidade, têm amigos comuns e estão livres e disponíveis.

Tess endireitou as costas. — Estás a esquecer-te do Dominic. Kirsty levantou-se com um movimento fácil. Ficou ali, graciosa,

pronta. — Isso é muito fácil — comentou.

Naquela noite, sábado, Tess não pensou em George. Pensou em Dominic, porque ele estava ali no seu quarto, deitado na sua cama, soerguido num cotovelo como uma escultura numa casa senhorial. Sempre que via Dominic nu Tess sentia-se ofegante. Não podia acre-ditar que um homem tão perfeito acabara no seu edredão. Dominic tinha membros compridos, ombros largos e músculos tensos bem definidos na cintura e nádegas. A sua pele era cor de mel, uniforme, como se ele apanhasse banhos de sol nu. Tinha cabelo louro liso, que usava bastante comprido, olhos muito azuis e uma barba sempre incipiente. De cada vez que ela o encontrava depois do trabalho a meio da semana, quando ele usava o seu fato cinzento-escuro, camisa

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azul e gravata azul-escura, Tess ficava admirada com a sua beleza. Sentavam-se lado a lado em silêncio, a comer pãezinhos e pizza, e ela perguntava-se quantas mulheres no restaurante estariam a olhar para ela, a roerem-se por dentro de inveja.

Era completamente nova para ela aquela sensação de estar com o homem mais bonito da sala. Nas festas da sua adolescência, escondia o seu corpo repentinamente curvilíneo sob t-shirts largas, encolhia-se contra as paredes. Ninguém dava por ela, e ela mantinha os olhos fixos no chão. Na escola, nas manhãs de segunda-feira, não tinha nada para contar — nem histórias de beijos, de traições ou de namo-ros. E então, de repente, na sua primeira semana em Manchester, lá estava Dominic, surgindo em toda a sua magnificência, como um anjo enviado do céu. Ele escolhera-a. Fizera-a sentir-se desejável.

Ainda assim, mesmo agora ela não conseguia acreditar. A acres-centar à sua perfeição física de tirar o fôlego, Dominic tinha um tem-peramento constante. Ela sabia que ele não se iria pôr com jogui-nhos, enganá-la, abandoná-la. Era leal. Era de confiança. Controlava tão bem as suas emoções que tudo o que dizia era planeado e pon-derado. Dizia que toda a gente devia falar menos — que só se devia participar numa conversa para corrigir mal-entendidos ou fazer uma observação em que mais ninguém pensara.

Devido a isso, as conversas telefónicas com Dominic nunca eram muito divertidas.

Mas Tess, que se preocupava às vezes com frases inteiras a saírem da sua boca antes de ela ter sequer tempo de as considerar, achava aquela reserva admirável.

— Ele fala contigo quando vocês estão sozinhos? — perguntou Kirsty, enquanto arrumavam o apartamento com pouco entusiasmo.

— Claro que sim — respondeu Tess. — Porquê?— Estive a contar quantas palavras ele disse no pub a noite passa-

da — comentou Kirsty. — Cheguei às quarenta e três.— Bem, talvez se toda a gente tivesse falado um pouco menos ele

pudesse ter tido mais oportunidade — defendeu Tess.— A sério?— Sim — disse Tess, com firmeza. Na verdade, Dominic não falava muito com ela. Mas, como ela

pensava muitas vezes numa névoa de espanto enquanto estavam na

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cama entrelaçados, a pele escorregadia de suor, os batimentos cardía-cos a voltarem ao normal, há outras maneiras de comunicar.

Assim, Tess não pensou em George até segunda-feira de manhã, quando ia sentada na Victoria Line a caminho do trabalho. A viagem diária era relativamente fácil — seis paragens de Brixton ao West End — e geralmente passava-a a sonhar acordada. Estava a olhar, per-dida em pensamentos, para a cintura do vestido verde-escuro usado pela mulher em pé à frente dela, quando o metro entrou em Oxford Circus. Sobressaltada, pôs-se em pé e foi empurrada pela multidão até à plataforma, onde se viu, por um segundo estranhamente imó-vel, diante de um cartaz do Piano Man. Tratava-se, de acordo com o Daily Mail, de «um musical que era um êxito estrondoso.»

E então pensou em George. Sabia que ele tocava teclas. Mas que tipo de música?, perguntou-se, enquanto os corpos da multidão a deslocavam em direção à escada rolante. Como ainda era cedo e o seu cérebro não acordara, começou a imaginar George — um ho-mem que nunca conhecera — sentado a um piano de cauda a tocar Rachmaninoff, até se lembrar que ele fazia parte de uma banda e, portanto, provavelmente, não tocava sinfonias. Quando chegou aos torniquetes, e fora atingida na cabeça duas vezes pela mochila de alguém, também se lembrou do que Kirsty dissera algo sobre o fac-to de ele ser antiquado. O que significava isso?, perguntou-se ela, enquanto se dirigia para a saída de Argyll Street. Covers de velhas canções dos Beatles?

Em Great Marlborough Street, no cruzamento com a Poland Street, um homem atravessou à frente dela com um saco de lona preta — daqueles que contêm um teclado digital — pendurado num om-bro. Há tantos músicos, pensou ela, nesta parte de Londres. Vêm para aqui, como os pombos para Trafalgar Square.

No café italiano, Tess comprou dois cappuccinos como de costume e chegou à Daisy Greenleaf Designs dez minutos mais cedo. Na en-trada do prédio de escritórios ao lado, curvado no seu casaco preto, a gola levantada contra o frio, Colin parecia estar a dormitar. Tess agachou-se, tentando não respirar muito profundamente. Ele cheirava a podridão velha e húmida, como adubo.

— Colin — disse ela.

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Ele abriu os olhos, estremeceu, e tossiu. Ouvia-se o trânsito de Londres nos seus pulmões.

— Trouxe o seu café — disse Tess.— Que dia é hoje? — Segunda — respondeu Tess.Colin suspirou. A sua barba era cinzenta. A sua pele era cinzenta.

Às vezes, Tess achava que ele devia ter setenta, no mínimo. Mas não tinha a certeza. Dormir na rua fazia até os jovens parecerem velhos.

— Foi uma noite má?— Não me posso queixar.Quando Tess chegou ao cimo da escada, Glenda já estava no es-

critório, a digitar no teclado com as unhas cor-de-rosa. Glenda nunca estava quieta. Mesmo quando sentada e aparentemente imóvel, es-tremecia — carne, caracóis, argolas de prata — como uma bolha de sabão prestes a explodir. Tinha uma capacidade incrível para escrever no teclado e falar ao mesmo tempo, muitas vezes fazendo as duas coisas enquanto verificava o batom rosa — que brilhava como glacé — no espelho fixo ao candeeiro da secretária. A meio da tarde ela ti-nha criado uma atmosfera com um tal frenesi de multitarefas que às vezes Tess tinha de sair para o ar cinzento de Londres e dar uma volta ao quarteirão até o seu coração voltar a bater normalmente.

— Estou só a lidar com alguns dos mentirosos — disse Glenda, sem olhar para cima. — Deixei os lamurientos.

Sentavam-se em frente uma à outra todos os dias, separadas por dois monitores, a grande bolsa de maquilhagem de Glenda e trinta anos de experiência. Glenda passara a sua vida a acalmar o público. No primeiro dia de Tess, explicou que as pessoas que se queixavam podiam ser divididas em quatro grupos — lamurientos, gritadores, mentirosos e genuínos.

— Não há muitos genuínos — afirmou ela.— A sério? — perguntou Tess educadamente, mas confusa.— Bem, é como a vida, realmente, não é? A Daisy Greenleaf Designs tinha dez anos. Era uma empresa on-

line que vendia artigos de papelaria especializada, incluindo papel artesanal, pequenos cadernos decorados com missangas e espelhos, envelopes lacrados com cola boa para o ambiente. Glenda e Tess compunham o departamento vagamente chamado «atendimento ao

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cliente», mas mais exatamente descrito como «reclamações». O pro-blema com os produtos de papelaria cuidadosamente selecionados na aldeia global era que muitas vezes se desfaziam. Além disso, os preços eram ridiculamente altos. Era precisa toda a genialidade tática de Glenda e a gentileza persuasiva de Tess para conseguir que os clientes voltassem a repetir a encomenda.

A própria Daisy Greenleaf não existia. Fora uma ideia de Oliver Bankes, que já se dedicara a material de retrosaria vendido online, a cestas de piquenique vendidas online e a jogos vendidos online. Andava agora a depositar as suas esperanças e o que restava da sua herança, em papel cor-de-rosa no qual ainda se podiam detetar lascas de madeira.

— Tiveste um bom fim de semana? — perguntou Tess, tirando o casaco e enfiando-se atrás da secretária. O espaço, dados os preços do West End, era um luxo. Às vezes, ela tinha de fingir muito que não conseguia ouvir Oliver a gritar ao telemóvel ou vê-lo através da porta aberta do seu gabinete a jogar bilhar de bolso.

— Fui de carro até Swanage — respondeu Glenda. Suspirou. — Estou seriamente a pensar em ir para lá quando me reformar, sabes? Podemos comprar uma casa térrea, mesmo junto ao mar.

— A minha avó mora lá perto — disse Tess —, em Poole. — Tem quase tantos dias de sol como a Cornualha — continuou

Glenda. Olhou para a distância. — Quem foi que disse que quando nos cansamos de Londres nos cansamos da vida?

— O doutor Johnson?— Bem, ele estava errado — disse Glenda. — A questão é que,

quando se chega à minha idade, se quer um pouco mais. Quer dizer, eu ainda adoro o teatro. Os musicais. Nada como um espetáculo do West End. Sentarmo-nos em cadeiras de veludo vermelho. Mas estou cansada de toda a confusão, sabes, do betão e das multidões. E da sujidade. E do cheiro a plástico queimado. Onde quer que vamos. Deve ser das estradas. Pela quantidade de vezes que as esburacam, admira-me que ainda lhes sobre alcatrão. Daisy Greenleaf Designs? — anunciou ela, pegando no telefone sem parar para respirar.

À uma da tarde, Tess levou a sua sanduíche para o bocado de relva no meio de Hanover Square. Ali esperou por Ellie, que, como era uma estagiária de moda não remunerada numa revista, não se podia dar ao luxo de ir almoçar a lado nenhum que não fosse um

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banco de madeira. Ellie parecia um rapaz. Tess não sabia se aquilo era uma declaração pública, uma escolha de moda ou uma maneira sensata de capitalizar um corpo sem caraterísticas femininas reco-nhecíveis. Fosse qual fosse a razão, o seu aspeto fazia virar cabeças, o que não era fácil no meio de Londres. Naquele dia, vestia uma camisa branca de algodão, calças de homem, suspensórios e sapatos rasos castanhos com atacadores. O seu cabelo castanho-escuro estava curto e ela não usava maquilhagem. Parecia que lhe faltava um taco de críquete ou um Spitfire em miniatura, uma fisga enfiada no cós das calças.

Tess acenou e Ellie, de mãos nos bolsos, atravessou a praça. A luz filtrava-se obliquamente através das folhas das árvores. A pele pálida de Ellie era tão clara que parecia quase translúcida.

— Então, como vai o mundo de artigos de papelaria de origem ética? — perguntou ela, sentando-se no banco.

— Muito roxo esta manhã — respondeu Tess. — Os nossos forne-cedores franceses enganaram-se a tingir um lote inteiro de cadernos e tivemos muitas reclamações.

— Stressante? — inquiriu Ellie, franzindo a testa. — Só quando lá estou sentada. Aqui fora parece tudo um pouco

histérico. — Tens de manter os teus clientes satisfeitos.— Eu sei — respondeu Tess. — E é um trabalho. O Dominic está

sempre a dizer-me a sorte que tenho.Lado a lado, viram a luz do sol brincar na relva. — Sempre pensei que irias fazer alguma coisa na moda — comen-

tou Ellie.— Ai sim?— Sim — disse Ellie com uma expressão que indicava que isso

era óbvio. — És a única pessoa que conheço que ia para as aulas ves-tida como se tivesse uma caderneta de racionamento.

Tess corou. — Fazia figura de idiota?— Não. Ficava-te muito bem. — Era aquela loja vintage. Tinha tanta coisa da década de quaren-

ta. E eu adoro isso. Os cortes. Os chumaços nos ombros, as cinturas apertadas e as bainhas pelo joelho.

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— Combina contigo — disse Ellie. Tess alisou a saia do vestido verde-pálido (linho irlandês, Fred

Howard, cerca de 1943). — Porque sou pequena, o que é eufemisticamente conhecido

como curvilínea.— Não digas isso. Eu nem saberia onde pôr o cinto se não fosse

pelas presilhas das calças.— Tenho fotos antigas da minha avó a usar o mesmo tipo de roupa

— disse Tess. — A minha mãe diz que me pareço com ela. Ela tam-bém era pequena e redonda.

— Não és redonda — disse Ellie.— Quem me dera ter ficado com algumas das roupas dela. Mas

ela diz que se usaram até estarem puídas. Cortou-as para fazer panos do pó.

Viram um pombo saltitar entre pacotes de batatas fritas vazios. Tess pensou nas dificuldades por que as pessoas tinham passado na Segunda Guerra Mundial e no engenho necessário para as mulheres se porem bonitas para um baile. Sumo de beterraba para tingir os lábios de vermelho. Riscos feitos na parte de trás das pernas para parecem as costuras das meias. Teriam ouvido Glenn Miller. A String of Pearls.

— Esse era o melhor momento — costumava dizer a avó —, antes de o baile começar, quando a sala estava vazia e a banda tocava e as pessoas começavam a chegar. Sentíamos a excitação percorrer-nos.

O pombo inclinou a cabeça e olhou para ela. Tess regressou ao presente e a década de 40 desapareceu. Perguntou rapidamente, no caso de Ellie ter percebido que se alheara por momentos:

— Então e o que andas a fazer esta semana?— Mais do mesmo — respondeu Ellie, com tristeza. — Fotocó-

pias, arquivo, recados. — Mas é o que tens de fazer, não é? — perguntou Tess. — Tens de

pôr tudo isso no teu currículo.— Preferia estar a trabalhar. Como tu. — Não sei — disse Tess. — Gosto do dinheiro. Mas às vezes pen-

so: o que estou a fazer? Tem alguma importância?— Bom, então para — retorquiu Ellie. — Despede-te e vai fazer

outra coisa. Agarra-a antes que seja demasiado tarde.

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Tess, receosa pelo facto de a conversa se ter tornado demasiado séria, esfregou as mãos para se livrar das migalhas.

— Oh, talvez — disse ela. — Falemos de algo agradável. Só tenho meia hora.

— Estamos a pensar em dar uma festa — disse Ellie. — Oh — fez Tess, animando-se. — Quando?— Nos anos da Lauren. Vinte e cinco de maio.— Quem é que vai?— Toda a gente, espero.— Posso levar o Dominic?Ellie olhou para ela. — Precisas de perguntar?— Estou apenas a ser educada.— Vocês estão inseparáveis desde que o levaste para o aparta-

mento. Quando foi? No segundo dia?— Não foi assim tão cedo — resmungou Tess.— Foi, sim — disse Ellie. — Fiquei chocada.— Não ficaste nada. E de qualquer maneira, não foi assim. — Podes ter um ar muito recatado e convencional — disse Ellie

—, mas por dentro és uma massa efervescente de paixão animal.— Mas não foi nada assim — insistiu Tess, olhando para cima,

corada. — Eu soube, desde o início, que ia ficar com ele para sempre.— Para sempre?— Sim.— Se tu o dizes — comentou Ellie.

Na terça-feira depois do trabalho, quando Dominic estava a estu-dar — estagiava como contabilista numa grande empresa da City que o aceitara para a pós-graduação — Tess foi à escola de arte Central St. Martin’s ver o espetáculo de fim de curso de Toby. Toby era um ve-lho amigo da primária no Kent rural, que agora ocupara ilegalmente um apartamento em Camden. Não parecia um artista. Tinha óculos pretos bonitos e costumava usar um colete de malha estampado que

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tinha encolhido na lavagem. Andava de mochila e esquecia-se sem-pre das molas nas calças quando saía da bicicleta. Mas tinha grandes ideias. Projetava instalações. A primeira que Tess vira — um sou-tien gigante, feito inteiramente de ossos de galinha, suspenso do teto — fizera-a rir. Ela não sabia se fora a reação correta. Mas ficara a querer ver mais.

Tess tinha pedido a Kirsty para ir com ela à St. Martin’s, mas Kirsty estava a trabalhar — um novo emprego num bar em Covent Garden. Assim, Tess esteve na fila sozinha, rodeada de pessoas que não conhecia, encantada com os chapéus, as cabeças rapadas, as joias faciais, e a espessa maquilhagem teatral.

O interior estava bastante cheio. Era difícil ver alguma coisa. Às vezes, Tess via-se cara a cara com uma máscara semelhante a uma gárgula, ou um abelha de papier-machê do tamanho de um cão com asas de gaze mas, na maioria das vezes, tendo apenas um metro e cinquenta e cinco, via-se a olhar para o meio das costas de alguém.

O barulho era incrível. Algumas das instalações usavam som — guinchos estridentes como fios de alta tensão a serem raspados com um arco de violino, ou drum and bass a vibrar de colunas negras. Havia pessoas aos gritos para serem ouvidas acima das gravações de coros. Havia o nível de conversa que se tem numa festa, quando toda a gente bebeu demasiadas margaritas. Somado a isso, estava calor. Ela tentou respirar fundo, mas o ar parecia espesso, como se estivesse cheio de partículas de tinta, e cheirava um pouco a químicos, como o desinfetante que se usa nas casas de banho. Quando subiu dois lanços de escadas, impelida pelos joelhos de outras pessoas, Tess sentiu-se mal. Os seus sapatos, que eram de pele de jacaré castanha, vintage — lindos — apertavam-lhe os pés. Estava desejosa de um copo de água.

E então, de repente, viu-se diante de um pequeno cartaz branco que dizia: «TOBY WALTERS Outro Lado Que Não Aqui Hoje», e, sem tomar qualquer decisão consciente, estava na fila de espera para pas-sar por uma pequena porta. Quando a multidão se mexeu, foi em-purrada para o braço de alguém com um blusão de cabedal castanho e, por um momento, quis olhar para cima para se tranquilizar, para perguntar «Sabe o que é isto?». Mas não havia tempo, porque agora ela estava num aposento, ouviu a porta fechar-se atrás dela e, sem aviso, as luzes apagaram-se.

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Estavam na maior escuridão. Por um momento pareceu que sob os seus pés o chão se tivesse alterado e tornado macio e musgoso. Ela estava em cima de relva? Inspirou, e podia jurar que sentira o aroma do trevo amarelo e das folhas húmidas — folhas verdes cobertas de orvalho. O ar era fresco e puro, como se alguém tivesse aberto a jane-la para uma manhã de verão no campo. Ainda podia ouvir cada som das instalações do andar de baixo — os coros e os gritos, os rangidos e o drum and bass, mas agora, abafados e distantes, muito distantes, como se isso realmente não importasse. E a escuridão, a escuridão preta, agradável, tornou-se quase tátil, como aquele momento em que sabemos que a noite está a terminar e o dia vai começar, e sob o nada vazio as formas dos objetos reais começam lentamente a apa-recer. O ar estava expetante. Ninguém se mexia. Ninguém falava. E Tess, pela primeira vez naquele dia, sentiu-se feliz.

Então, gradualmente, enquanto os minutos passavam, ela aperce-beu-se da multidão a deslocar-se porque havia uma nesga de luz no lado oposto da sala e uma porta a abrir-se lentamente. Agora podia ouvir os sons da exposição bastante altos e estava de volta ao calor e ao barulho anterior, à medida que a escuridão desaparecia e as luzes se acendiam, projetando uma luz branca e intensa. Ela olhou para a biqueira brilhante dos seus sapatos e ali por baixo estava linóleo cinzento, não relva. Não cheirou nada a não ser ar viciado e talvez suor azedo. Sorriu. Esperto, Toby, pensou ela. Como fizeste aquilo? E enquanto seguia o homem do blusão de cabedal castanho para fora da sala, encheu-se de orgulho. Conheço o artista, pensou. Conheço-o desde que ele tinha sete anos e fazíamos bolas de borracha dos elás-ticos que o carteiro deixava cair no passeio.

— Estou preocupada com ela. Já são muitos anos: vai fazer oitenta em julho.

— Mas está em forma e saudável — disse Tess.— Eu sei — disse a mãe. — Mas basta uma queda feia naquela

idade e tudo fica muito complicado.

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Tess fechou os olhos. Pelo barulho do outro lado do telefone, sabia exatamente o que a mãe estava a fazer. Andava pela sua cozinha em Kent, a começar muitas coisas e a abandoná-las a meio. Era isso que fazia sempre, mesmo quando não estava ao telefone. A sua mãe nun-ca terminava nada. Tirava metade da louça da máquina, metade da roupa da máquina, fazia meia chávena de chá. Havia sacos de cenou-ras meio descascadas. Cartas meio lidas. Gavetas e armários estavam permanentemente abertos como se alguém tivesse gritado «Fogo!» a meio do almoço de domingo e todos tivessem saído a correr em pânico. Quando era muito mais nova, Tess seguira a mãe, tentando restaurar a ordem. Atualmente, reconhecendo que essa era uma tare-fa impossível, não fazia nada e tentava achar o caos encantador.

— Ela foi sempre assim? — perguntou Dominic depois de Tess o ter levado lá a casa pela primeira vez.

Ela pensou um pouco. — Acho que sim.— Crescer naquele ambiente deve ter sido difícil — disse ele.— A arrumação não é tudo — disse Tess. Mas parte dela pensava que provavelmente era. Os pais tinham

sido sempre meigos e sociáveis, contentes por largar tudo para uma festa surpresa com aperitivos de queijo e uma garrafa de vinho branco Liebfraumilch. Mas quando fez dez anos, Tess percebeu que qualquer planeamento a médio prazo estava para lá deles. Não conseguiam orga-nizar nada. Os canos rebentavam e as caldeiras avariavam-se. As roupas pendiam espalhadas em diversos estados de degradação. Perdiam--se comboios e passaportes. O peru estava sempre congelado no dia de Natal. Dinheiro, especialmente, estava para lá deles. Nunca abriam os extratos bancários. Quando o pai de Tess morreu de um ataque cardíaco pouco antes do seu décimo sexto aniversário, a mãe tinha encontrado muitos avisos de pagamento em sacos de plástico debaixo da cama.

Tess, marcada pela memória da mãe a chorar desesperada, pen-sava agora no dinheiro como arriscado e pouco confiável — algo que desaparecia, sem aviso, no ar. O medo do dinheiro permeara toda a sua vida como uma veia de bolor azul num queijo Stilton.

— Gasta enquanto podes — dizia sempre a mãe. Achava que Tess era demasiado cautelosa. Ela própria era sempre otimista. A sua frase favorita era de Scarlett O’Hara: «Amanhã é outro dia.»

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Dominic, graças a Deus, percebia de dinheiro. Gostava de dinhei-ro. Achava a contabilidade interessante.

— É lógica — disse ele. Era generoso com o seu conhecimento. Ajudou Tess a encontrar

a melhor conta bancária, o seguro mais barato, os depósitos a prazo mais atraentes. Via se os seus movimentos bancários estavam atuali-zados, tomava nota dos cheques passados.

— Ele respiraria por ti se deixasses — dizia Kirsty.— Toda a gente tem os seus pontos fracos — respondia Tess.

— Detesto dinheiro. Assusta-me. Prefiro que ele lide com isso tudo.Dominic mantinha-a em segurança.— Tentei convencê-la a mudar-se para mais perto — disse a mãe. Tess, cuja mente se havia afastado, esforçou-se por se concentrar. — Mas ela diz que se sente feliz onde está — disse a mãe, que

agora, pelo barulho, estava a mexer numa gaveta cheia de saca-rolhas e espias de tendas de campismo. — Ela viveu em Dorset a vida toda. Diz que não se imagina a viver longe do mar.

— Percebo porque não se gosta de mudar de casa aos oitenta anos — disse Tess. Ouviu-se o barulho de água a jorrar quando a torneira da cozinha foi aberta no máximo. — Mãe?

— Sim?— O que estás a fazer?— Não me lembro — respondeu a mãe. — Eu queria uma chá-

vena de chá? — A torneira foi fechada. — Do que estamos a falar?— Da avó.— Oh, sim — disse a mãe. — Sabes, o problema é que aquilo fica

muito longe daqui. Levo umas boas quatro horas de carro até lá. Tess estremeceu. Detestava pensar na mãe a conduzir. O carro

estava cheio de mossas de pequenas colisões em semáforos e mu-danças de faixa repentinas em autoestradas.

— Qual é o problema das pessoas hoje em dia? — dizia ela, ao guinar para a frente de carrinhas de distribuição, fazendo-as travar violentamente. — Toda a gente conduz tão mal.

— Eu podia ir vê-la — disse Tess. — Ela ia adorar. Terias tempo para isso?— É bastante rápido de comboio — disse Tess. — Duas horas de

Waterloo.

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— Do que mais tenho medo — disse a mãe —, é que ela fique confusa e perca alguma coisa. É o que acontece quando se envelhece, acho. Deixamos de ser capazes de manter as coisas organizadas.

O apartamento em Brixton era a metade superior de uma casa vitoriana. No ano anterior, quando Tess vira pela primeira vez a casa — quando ela e Kirsty tinham acabado de sair da universidade e andavam à procura de um sítio para morar em Londres — ficara encantada.

Havia uma rosa pálida a florir na treliça e a porta tinha uma aldra-ba que era uma argola de bronze pesada. Mas todo o encanto aca-bava aí. Fora um mau trabalho de remodelação, feito com materiais baratos. As janelas de guilhotina tinham de ser travadas com um calço para evitar que caíssem. Havia humidade na casa de banho e nenhum dos radiadores do quarto funcionava.

Mas, o pior de tudo, Tess e Kirsty tinham de atravessar a vida familiar de outras pessoas antes de subirem as escadas até à sua por-ta. Sempre que chegava a casa, Tess sentia-se uma intrusa. Um dos meninos do andar de baixo tinha um triciclo de plástico vermelho com rodas amarelas frágeis com que percorria o corredor estreito, raspando os mosaicos. Sempre que via Tess, parava e olhava para ela com olhos grandes e aterrorizados.

O quarto de Tess era um sótão transformado no cimo da casa. Da janela ela via o quintal e o estendal permanentemente enfeitado com pequenas t-shirts. Por causa do teto inclinado, Dominic só con-seguia ficar de pé junto à porta. Durante o resto do tempo, tinha de se dobrar como um soldado a atravessar as linhas inimigas.

Na sala minúscula ao lado, Tess tinha montado um suporte para cabides em metal preto. Ela ali que guardava a sua coleção de vesti-dos, blusas, casacos e fatos vintage, com sapatos e botas perfeitamen-te alinhados em baixo. As malas estavam numa sapateira de madeira sob a janela. Tess nunca comprava qualquer coisa que não fosse su-ficientemente resistente para vestir. Tornara-se um hábito procurar

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costuras que não podiam ser arranjadas, axilas onde o tecido estava manchado e fundilhos de saias onde o tecido estava fino. Mas sabia o suficiente de costura básica para substituir forros e orlas rasga-das, e sabia pregar botões em falta, prender forros e arranjar fechos. Se, às vezes, comprava um casaco que tinha perdido o cinto, ou um chapéu sem faixa ou laço, vasculhava as suas pilhas de revistas de moda antigas até conseguir adivinhar como devia ter sido o original. Então vasculhava todos os baldes de pechinchas nas lojas de caridade até encontrar o que precisava.

A verdadeira emoção, como ela explicou a Kirsty, era encontrar na costura uma etiqueta da Utility Clothing, com aqueles dois círculos caraterísticos, cada um sem um bocado.

— CC41. Significa Controlled Commodity 1941. Foi o que o go-verno incluiu como parte do racionamento para limitar os materiais que podiam ser usados. Assim, os vestidos só podiam ter dois bol-sos e cinco botões. Apenas seis costuras numa saia. Os homens não podiam usar dobras nas bainhas das calças. Mas alguns dos jovens deram a volta, fingindo que as suas pernas eram mais lon- gas do que eram, e depois iam para casa e dobravam as bainhas para fora.

Kirsty lançou-lhe um olhar duro e demorado. — Pareces um daqueles homens com uma pista de comboio no

quarto de hóspedes.— São roupas — disse Tess. — Eu uso-as.— A maioria das pessoas vai à Topshop — comentou Kirsty.Não percebes, pensou Tess. Eles faziam o melhor com o que

tinham. Bom design dentro de limitações severas. — Nós detestávamos essas etiquetas — disse a avó, que tinha

dezassete anos quando a guerra começou. — Cortávamo-las sempre.De vez em quando, Tess tentava persuadir Dominic a experimen-

tar um fato vintage. Nunca conseguia. Ele não gostava da ideia de ves-tir roupa de homens mortos. Felizmente para ele, como tinha mais de um metro e oitenta, era demasiado alto para a maioria deles, de qualquer maneira. Os homens costumavam ser muito mais baixos quando a comida era escassa.

Às vezes, tentada para além do bom senso, Tess comprava um chapéu de homem de feltro preto, ou uma gravata de seda, ou uma

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camisa com peitilho do tempo da guerra, e pendurava-a no quarto apenas pelo prazer de olhar para aquilo.

— Mas para que serve? — perguntava Dominic.— Gosto da mão de obra, acho. Ou talvez de imaginar a pessoa

que costumava usá-la. Dominic fitava-a com os seus olhos azuis-claros e ela via que ele

não percebia.É a atração dos opostos, dizia a si mesma com firmeza. Estás sem-

pre a ver isso. Procuras a pessoa que te dá o que te falta. É o yin e o yang, a lógica e o sentimento, a cabeça e o coração. Juntos são um todo completo.

— Alguém me disse uma vez — comentou ela com Kirsty enquan- to desciam Brixton Road para apanhar o metro sábado à tarde, sem-pre separadas por pessoas a gritarem ao telemóvel e a empurrarem carrinhos de bebé e a puxarem carrinhos de compras axadreza- dos com rodas —, que cada alma é dividida à nascença e tens de procurar e procurar até encontrar a outra metade. É uma velha lenda indiana.

— Está perdida? — perguntou um homem magro com um chapéu de lã às riscas. Ela estava prestes a dizer não, estou bem, obrigada, vivo aqui perto, quando percebeu que ele segurava um cartaz numa vara de madeira a dizer «Jesus Salva», e a pergunta era totalmente espiritual.

— Mas achas que é verdade? — perguntou Tess, a correr para apanhar Kirsty.

— O quê?— Que só há uma pessoa no mundo que nos pode fazer feliz

e temos de continuar a procurar até a encontrarmos?— Não — respondeu Kirsty. — Há muita gente que nos pode

fazer feliz.Tess olhou para ela, cabisbaixa. — Além do mais — continuou Kirsty —, há sete mil milhões de

pessoas no mundo. Não tens anos suficientes de vida para as anali-sares todas.

— Estás a esquecer o destino — disse Tess.— O destino? — O destino une as pessoas.

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— Como duas pessoas a candidatarem-se à mesma universidade.— Bem, sim — disse Tess. Parecia um pouco banal quando re-

duzia a busca no Saara, nos Himalaias e no Polo Norte a encontrar casualmente alguém num café em Manchester.

— Acho que isso só prova que as pessoas fazem escolhas conser-vadoras — disse Kirsty. — Apaixonas-te pela pessoa que está à tua frente.

— E os teus pais? Quais as hipóteses de se conhecerem?A mãe de Kirsty era irlandesa e crescera em Cork. O pai chegara

a Birmingham vindo da Somália, com três anos. Conheceram-se num bar mitzvah em Finchley.

— A maioria das pessoas não é como os meus pais. A maioria das pessoas acaba com parceiros nascidos num raio de trinta quilóme-tros. Isso não me soa a destino. Soa-me a apatia.

Tess abriu a boca para discordar. Mas então lembrou-se de que Dominic nascera em Croydon e ela tinha nascido perto de Tonbridge, o que parecia a distância correta, grosso modo. Por isso, não disse nada e mudou de assunto.

Dominic esperava-a à porta do enorme multiplex em Leicester Square. Estava encostado à parede, as mãos nos bolsos, cool sem se esforçar. Quando o viu, o coração dela bateu mais depressa, como sempre, como se oferecesse uma salva de palmas.

— Estou atrasada? — perguntou ela, sem fôlego. — Só um minuto — respondeu ele. Quando foram para a fila da bilheteira, Tess perguntou-se, como

sempre fazia, quando iriam morar juntos. Dominic tinha voltado a viver com os pais depois do fim do curso — em parte para poupar dinheiro, mas, em parte, para ajudar num conjunto complexo de cir-cunstâncias que envolvia a irmã e o marido catalão com problemas de saúde mental. A crise familiar parecia ter terminado, mas Dominic continuava no seu quarto de criança, com os livros de contabilidade na secretária em frente à janela.

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Tess não conseguia imaginar Dominic a viver com ela no aparta-mento de Brixton. Os fins de semana estavam muito bem, porque Kirsty se encontrava geralmente fora, mas ela desconfiava que Kirsty enlouqueceria se achasse que iria ter Dominic ali a tempo inteiro. Então, se ela e Dominic quisessem estar juntos, teriam de encontrar um lugar seu. Quando as luzes se apagaram e os anúncios começa-ram, Tess começou a imaginar um apartamento moderno, com chão de madeira e mobiliário branco de linhas retas — o tipo de coisa que se via no IKEA. Eu podia comprar uma solução de armazenamento para todas as minhas roupas vintage, pensou ela.

Depois do filme, que tinha uma série de pessoas a serem baleadas e um enredo complicado sobre traições que Tess não conseguiu per-ceber, foram a Chinatown e vaguearam até a luz começar a diminuir e a fome os levar a um restaurante de aspeto barato. Sentaram-se numa mesa à janela, de costas para um grande grupo de homens a gritar uns com os outros. Tess pensou, enquanto olhavam para a ementa, é tão bom o Dominic e eu não precisarmos de estar sem-pre a falar. Podemos ficar aqui sentados, em silêncio, e é agradável e descontraído. Li algures que sempre que comiam em público Wallis Simpson estava tão determinada a ser vista a conversar animada-mente com o duque que, por vezes, se de facto não tinha nada para dizer, ela recitava as letras do alfabeto. Tess sorriu para si mesma. Tenho tanta sorte por podermos ser nós mesmos.

Sentiu-se ser empurrada por trás. Um casaco de cabedal castanho caiu no chão.

— Eu apanho isso — disse uma voz muito galesa, e o blusão foi apanhado e pendurado nas costas da cadeira. — Foi o meu amigo, sabe. Levantou-se e fê-lo cair.

— Oh, não tem importância — respondeu Tess, mal olhando para trás.

— Não a estorva, pois não?— Não.— Também não há muito espaço, pois não?Tess não respondeu, apenas chegou a cadeira para a frente para

dar mais espaço aos homens que gritavam. — O que vais querer? — perguntou ela a Dominic. — O costume — respondeu ele, fechando a ementa.

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— Cerveja?— Só água.Dominic tinha cuidado com os estimulantes. Consumia sempre

menos de vinte e uma unidades por semana e nunca bebia café depois das nove. O seu único vício eram embalagens pequenas de Maltesers.

— Estás a falar é de carisma — disse alto a voz galesa atrás dela.E eu realmente admiro isso, pensou Tess, quando a sopa chegou

e Dominic se inclinou sobre a tigela, admiro realmente a sua dis-ciplina. Dava-me jeito ter alguma. Há alturas em que a Kirsty e eu ficamos a beber vinho tinto até os pássaros começarem a cantar e percebemos que passámos a noite a pé e já é de dia. Quando isso acontece, nunca me atrevo a contar ao Dominic. Ponho mais corretor de olheiras e espero que ele não pergunte.

Atrás dela, os gritos tornaram-se mais altos.E ele não pergunta porque acha a ideia de beber em excesso ilógica.

Faz uma pessoa sentir-se mal. Provoca dores de cabeça. Então, por que é que alguém faria isso?

— E não vou responder a isso até que alguém me traga uma cer-veja — rugiu a voz galesa.

Às vezes, pensou Tess, olhando para Dominic, cujo cabelo louro tinha tombado para a frente, ocultando-lhe o rosto enquanto ele se inclinava sobre os wontons, sinto-me uma criança em relação a ti. Tu sabes o que estás a fazer. Sabes para onde vais. Mas eu não tenho realmente a certeza do que está a acontecer. Quando estou contigo, não me preocupo. Ficamos na cama aos fins de semana, pele com pele, humidamente satisfeitos, e a minha mente vagueia como uma pena. O sexo é doce e pesado, como natas ou caramelo líquido. Cobre as ansiedades. Mas a certa altura temos de nos levantar e ir lá fora e dirigirmo-nos sozinhos ao metro, e então começamos a pensar, à medida que o açúcar desaparece. O que estou a fazer exatamente? Para onde vou? É este o caminho certo ou devo ir para outro lado?

— Estou pronto para Paris — gritou a voz galesa —, mas estará Paris pronta para mim? — E toda a mesa atrás dela aplaudiu.

Tess olhou para fora através da janela. Já escurecera. As pessoas lá fora conversavam e riam, com os rostos iluminados pelos can-deeiros. Não me importava de conversar um pouco mais enquanto comemos, pensou ela. Só um bocadinho mais. Ele podia contar-me

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alguma coisa. Gosta de me informar acerca de coisas que eu não sei. Como acontecimentos mundiais. Eleições. Guerras que eu possa ter perdido. Dispõe de todos os factos e números. Lembra-se deles. Eu não sou boa em factos e números. Talvez seja por isso que me rodeio de pessoas que sabem somar. Eu sei, pensou, que quando a conta chegar o Dominic é capaz de verificá-la e adicionar quinze por cento pelo serviço sem sequer parar para pensar. É simplesmente brilhante a matemática.

É brilhante a muitas coisas.Naquele momento a empregada chegou com pratos de massa e

legumes, enfiando-se no pequeno espaço entre a mesa e a janela, porque era mais fácil, provavelmente, do que passar pela enorme mesa de homens aos gritos atrás deles, e Tess deu por si a lembrar--se da primeira vez que vira Dominic, no café perto da biblioteca, no segundo dia do primeiro período em Manchester. Ele não con-seguia passar da minha mesa. Havia tantos corpos que ficou ali sentado, na beira, preso. Então eu comecei a ficar cada vez mais quente a olhar para o rabo dele nas calças de ganga justas. Usava uma camisa de xadrez, como um cowboy numa pradaria. Quando olhei para ele naquela primeira tarde, vi luz e céus azuis e grandes espaços abertos.

Continuo a ver, pensou ela, hesitante.Mas agora, embora houvesse algas, de que ela gostava, e pleuto-

rus, de que ela também gostava, e estivesse sentada num restaurante chinês vermelho e dourado num sábado à noite com o homem mais bonito de Londres ou até, possivelmente, de todo o Reino Unido, descobriu, para sua surpresa, quando o riso atrás dela se condensou numa espécie de rugido, que os seus olhos estavam cheios de lágrimas.

A desemaranhar cabos de extensão na loja de música perto de Wardour Street, George estava a ouvir na sua cabeça uma gravação de 1946 de Gershwin Oh, Lady Be Good!. Lester Young tocava saxo-fone tenor, Willie Smith e Charlie Parker tocavam saxofone alto

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e Arnold Ross estava ao piano. George tinha memorizado o solo de piano no dia anterior quando a loja estava vazia e se sentara no es-critório, de auriculares, ostensivamente a verificar faturas. Agora, na sua mente, estava a ouvir outro tipo de ritmo subjacente a tudo e a perguntar-se se aquilo era um ponto de vista diferente, uma maneira diferente de tocar, ou algo que era tecnicamente impossível, que nin-guém no seu perfeito juízo tentaria sequer.

Deu um salto. Ali à sua frente, erguendo-se como um candeeiro de rua na névoa, estava uma mulher alta e curvada. Ao seu lado, um menino com cerca de dez anos. Clientes, pensou ele ferozmente. Clientes, clientes. Concentra-te. Empurrou o solo de piano para o fundo da sua mente.

— Posso ajudá-los?— Queremos um teclado — disse ela. — Muito bem — disse George. — Já pensou nas particularidades

de que precisa?— Teclas negras — disse ela. — E brancas.George riu-se. Ela olhou para ele, sem sorrir. Apressadamente, ele

aclarou a garganta. — Mais alguma coisa?Ela olhou para o menino. O menino olhou para ela. — Bem — disse George, perdido, desesperado, tentando concen-

trar-se —, por que não vamos olhar para alguns dos modelos que temos em exposição e ver o que acham.

— São aqueles além? —perguntou a mulher. — Sim — respondeu George.— Já olhamos para eles.Houve um pequeno silêncio. — E não gostou deles?— Não — disse a mulher. Olhou-o com expetativa. George sentia-se cada vez mais quente. — Podemos ver alguns catálogos — sugeriu. Mas então aperce-

beu-se de que não fazia ideia de onde estavam os catálogos. Assim, respirou fundo e disse: — É para alguém que está a começar ou para um músico experiente?

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