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Jos Manuel de Oliveira Mendes (Coordenador)
Alexandra Arago
Pedro Arajo
Mrcio Nobre
Risco, Cidadania e Estado num
Mundo Globalizado
N 03 Dezembro 2013
Propriedade e Edio/Property and Edition
Centro de Estudos Sociais/Centre for Social Studies
Laboratrio Associado/Associate Laboratory
Universidade de Coimbra/University of Coimbra
www.ces.uc.pt
Colgio de S. Jernimo, Apartado 3087
3000-995 Coimbra - Portugal
E-mail: [email protected]
Tel: +351 239 855573 Fax: +351 239 855589
Comisso Editorial/Editorial Board
Coordenao Geral/General Coordination: Slvia Portugal
Coordenao Debates/Estudos Coordination: Rosa Monteiro
ISSN 2182-9071
Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, 2013
Nota Introdutria:
A reviso cientfica do texto foi feita por Alain Montalvo Lantoine.
ndice
Introduo. 5
Nota metodolgica.... 10
I Parte Estudo de caso 1
Jos Manuel Mendes
As ondas de calor de 2003 em Frana e Portugal. 18
II Parte Estudo de caso 2
Pedro Arajo e Jos Manuel Mendes
As minas de urnio em Frana e Portugal. 55
III Parte
Mrcio Nobre e Alexandra Arago
Risco, Estado e Direito. 110
IV Parte Risco, Cidadania e o Papel do Estado
Alexandra Arago
A preveno de riscos em Estados de direito ambiental.. 170
Frank Furedi
Para uma Sociologia do Medo.. 191
Steve Kroll-Smith
Cidadania, Estado e Vulnerabilidade: Um estudo comparado sobre a recuperao
de catstrofes
211
Olivier Borraz
Risco e regulao.. 234
Consideraes Finais.... 249
Anexos 253
5
Introduo
O projeto de investigao cujo relatrio final se apresenta teve como principal objectivo
analisar o trabalho poltico realizado, dos nveis local ao transnacional, para normalizar os
acontecimentos extremos ou as situaes perigosas permanentes. Esta uma questo poltica
que se relaciona com o problema da relao entre os Estados, os interesses privados e
pblicos e a construo da democracia. Em nome do interesse pblico, os Estados abstm-se
de intervir e protegem as leis do mercado, sendo as cincias um tipo ideal de arena onde a
interferncia indesejada do Estado fica salvaguardada. A nossa perspectiva de que no caso
de acontecimentos extremos ou de situaes perigosas permanentes h, pelo contrrio, uma
maior legitimao para a interveno do Estado e para a suspenso das normas e regulaes
sociais e econmicas, para a criao de um estado de excepo que revela a inelutvel
presena do Estado. Estes acontecimentos extremos tambm exigem uma produo de
conhecimentos por parte das cincias naturais e das cincias sociais que contorna a suposta
autonomia destas cincias.
Empiricamente, o projeto comparou uma localidade portuguesa, a Urgeiria (Canas de
Senhorim, Viseu) com a regio francesa do Limousin, Limoges, em Frana, que partilham a
existncia de minas de urnio desactivadas objecto de requalificao ambiental. Foram
concretamente, objectos de comparao as dinmicas locais e as actuaes dos respetivos
Estados nacionais na normalizao das situaes.
Complementarmente, o projeto analisou igualmente o impacte social, poltico e simblico
das ondas de calor de 2003 em Portugal (2.000 mortos) e em Frana (14.000 mortos), dois
casos distintos na base dos quais foi realizada uma reflexo mais geral sobre o papel e a
omnipresena dos Estados nacionais e das instituies internacionais na regulao dos
acontecimentos extremos e das situaes perigosas permanentes, e como estes colocam um
desafio especial s noes de democracia, cidadania e esfera pblica.
O que a anlise comparativa da nuclearidade e das ondas de calor de 2003 permitiu
salientar so os modos distintos como os Estados portugus e francs foram postos prova e
os modos distintos como responderam a essas provas, tornando empiricamente acessveis as
diferentes formas de fazer poltica, de definir as questes da cidadania e de conter eventuais
extravasamentos e a contestao da legitimidade do prprio Estado.
Breve descrio das partes e captulos do relatrio
Os estudos de caso empricos so reportados nas partes I e II deste relatrio, iniciando-se a
discusso pelas ondas de calor de 2003 em Portugal e em Frana.
Em Frana, a sobremortalidade devida onda de calor foi percepcionada e retratada
como sendo uma catstrofe e conduziu a uma srie de inquritos oficiais levados a cabo por
organismos da administrao central e pelos organismos polticos representativos, de que
resultou um rearranjo profundo dos dispositivos sociotcnicos e sociopolticos. A produo da
nova distribuio social, do novo alinhamento sociotcnico, foi tornada possvel sem que a
sociedade civil estivesse directamente implicada, isto , sem a interveno de movimentos
sociais nem a ocorrncia de queixas formais por parte dos familiares das vtimas.
Em Portugal, por outro lado, a onda de calor teve um impacto reduzido sobre os
dispositivos sociotcnicos, e no plano poltico no passou de um epifenmeno sem
consequncias de maior. Em Portugal, a onda de calor de 2003 no foivista como uma
calamidade, nem levou a que se procedesse a grandes alteraes na matriz jurdico-
institucional. A maior parte das alteraes verificadas deveu-se s recomendaes e
6
protocolos de agncias internacionais como a Organizao Mundial de Sade.
Com efeito, as mortes relacionadas com a onda de calor no Vero de 2003 na Europa
tiveram resposta imediata por parte das organizaes internacionais que regulam as questes
de sade a nvel europeu e mundial. A parte I conclui com uma descrio da forma como a
Organizao Mundial de Sade construiu os parmetros de uma nova epidemia que, de forma
paradoxal, se assume como uma epidemia sem agente patognico directo. A nova epidemia
funciona como uma experincia que permite o acesso privilegiado a uma certa forma de
existncia dos Estados e da cooperao internacional na rea da sade.
O segundo estudo de caso, relativo s minas de urnio na Urgeiria em Portugal e na
regio Limousin em Frana e os processos associados nuclearidade nos dois pases,
explanado na parte II do relatrio. A se apresentam as diferentes temporalidades da
explorao uranfera nos dois territrios em estudo. Do tempo ureo do urnio incerteza da
radioactividade, salienta-se como os processos de interveno dos Estados so distintos, em
consequncia da diferente centralidade da nuclearidade nas polticas e nas culturas polticas
em Frana e em Portugal, e as diferenas na emergncia e legitimao das questes laboral,
ambiental e de sade pblica associadas explorao de urnio em ambos os territrios.
No tempo incerto da radioactividade o Estado na regio do Limousin (anos 90), por
presso directa das associaes ambientalistas e pelo recurso destas ao contencioso judicial,
obrigado a dar importncia a esse territrio e a desenvolver estratgias de conteno e de
normalizao que permitam reenquadrar os extravasamentos que podero ser prejudiciais para
a sua legitimidade simblica e poltica.
No caso da Urgeiria, verifica-se um movimento oposto: o Estado, assumindo a
requalificao ambiental como uma responsabilidade e um dever seus, regressa
espontaneamente ao territrio atravs de um programa nacional e de uma empresa pblica, de
um enquadramento jurdico e de um enquadramento tcnico, que iro contribuir para confinar
a controvrsia. Aqui o inesperado ser que o Estado se confronta, a partir de um estudo
epidemiolgico realizado populao local, com uma reivindicao de cidadania que exige a
reparao dos danos pessoais e laborais causados pela explorao e encerramento das minas
de urnio.
A luta em torno da nuclearidade e das minas de urnio assume contornos distintos nos
dois pases. No Limousin, desenvolve-se numa lgica ascendente do territrio, por via das
associaes ambientais, para o Estado e mobiliza associaes ambientais, a cincia e os
tribunais, no sentido de provocar uma reestruturao sociotcnica e de romper o contrato de
vinculao e subordinao do territrio empresa exploradora do urnio. Na Urgeiria, esta
desenvolve-se no contexto apertado de um programa de requalificao ambiental j
definido, e procura expandir o mbito da responsabilidade e de responsabilizao do e pelo
Estado atravs da mobilizao da condio de vtima.
Tal como no caso das ondas de calor, o affaire em Frana conduziu a uma reestruturao
sociotcnica reactiva, a consagrao de regras rigorosas e uma mudana no regime de
regulao e de vigilncia das actividades da fileira nuclear. O excepcionalismo nuclear da
Frana, oesplendor (radiance) daFrana e o papel do mercado de urnio foram circunscritos e
limitados pelos direitos de cidadania ambiental, um processo sem vtimas e orientado para a
mudana das polticas pblicas.
A posio de Portugal na semiperiferia nuclear, como um mero produtor de matria-
prima no mercado global do urnio, permitiu o confinamento da controvrsia, a proeminncia
das narrativas oficiais e a hegemonia dos peritos oficiais. Os acontecimentos e os protestos
locais no resultaram numa reestruturao sociotcnica, desenrolando-se a lgica e o mercado
da reabilitao ambiental sem grandes contratempos. Em Portugal, as vtimas ao tornarem-se
7
visveis procuraram desviar o Estado de um posicionamento meramente tcnico para uma
tomada de posio moral e tica.
As provas a que foram sujeitos os Estados francs e portugus nas ondas de calor de 2003
e no processo de requalificao das minas de urnio permitem detectar a emergncia de
padres de regulao dos riscos especficos e que assumem alguma constncia, associados a
culturas polticas com contornos prprios e a configuraes sociopolticas e
socioinstitucionais que convergem numa mesma resoluo: a normalizao dos processos
sociais relacionados com a explorao do urnio e a nuclearidade e a conteno dos
extravasamentos de exigncias de cidadania.
A parte III do relatrio procede a uma anlise reflexiva sobre o papel do Direito na
preveno do risco, argumentando-se que a sociedade de risco exige uma nova configurao
do prprio Estado. Aps a elaborao de critrios de actuao do Estado procura-se, de
seguida, estabelecer uma disciplina que regule esta mesma interveno. So tambm
apresentados vrios casos em que o Estado se v confrontado com riscos. Dois dos casos
prendem-se com riscos naturais: a onda de calor de 2003 em Portugal e em Frana. Dois
outros reportam-se a riscos tecnolgicos: depsitos de resduos radioativos na Urgeiria e em
Limousin (Frana). So tambm analisados de forma comparativa os modelos de actuao dos
Estados portugus e francs em face dos riscos.
Assume especial relevncia na definio jurdica de perigo e risco e na definio de
polticas integradas de preveno, gesto e mitigao dos riscos, e a sua aplicao a nvel dos
diferentes Estados da Unio Europeia, as directivas emanadas da Comisso Europeia, das
quais se salienta a importncia da Directiva das Inundaes de 2007.
Especial ateno dada nesta parte do relatrio apresentao crtica do conceito de
risco na legislao de vrios pases europeus e no-europeus. E assume grande relevncia para
o presente projeto a anlise e discusso da relao entre democracia e risco, com a
apresentao de casos concretos de vrias formas de participao pblica e aceitao do risco.
Em estreita associao com esta abordagem procede-se a uma apresentao exaustiva do
conceito de responsabilizao, administrativa e poltica, e a sua articulao com o
ordenamento do territrio em Portugal e em Frana. No caso portugus, cabe salientar a
importncia da lei que estabelece o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado
e demais entidades pblicas e o seu impacte no dever de considerao do risco nos
instrumentos de gesto territorial.
Uma tendncia que emerge da anlise realizada nesta parte do relatrio o acentuar de
um processo de empresarializao da Administrao Pblica, com a entrega da gesto de
tarefas pblicas a entidades criadas por iniciativa pblica num formato de direito privado.
Esta reconfigurao do papel do Estado tem duas consequncias: a reduo da esfera de
actuao do Estado e a diversificao dos graus das responsabilidades pblicas. Trata-se de
duas consequncias intimamente ligadas, pois a retraco da interveno do Estado que
origina o novo tipo de responsabilidade pblica. Na verdade, o Estado pode perfeitamente
permitir que certas tarefas sejam desempenhadas pelos privados, limitando-se a garantir que
estes respeitem determinadas obrigaes. Nestes casos, o Estado cinge-se ao cumprimento do
dever estadual de garantia.
O captulo 1 da Parte IV do relatrio apresenta uma reflexo e uma proposta de deveres
mnimos de um Estado de Direito Ambiental ou Estado Constitucional Ecolgico em estreita
articulao com a noo de democracia sustentada. Comea-se por apresentar, numa lgica de
gradao, as obrigaes do Estado de Direito Ambiental tanto nas suas dimenses reactivas
como proactivas. A partir de uma breve incurso pela preveno supranacional associada
emergncia de riscos de escala global procede-se a uma anlise fina da preveno dos riscos
8
no contextoeuropeu, tanto os tecnolgicos como os naturais. As principais tendncias
verificadas, que comprovam os resultados obtidos nas partes I, II e III do presente relatrio,
que alteram de forma substantiva e significativa os regimes vigentes de regulao do risco,
vo todas no sentido de um maior dirigismo, de uma intensificao da vertente precaucional, e
de um reforo da dimenso participativa que no atenua o peso da preveno impositiva.
Emerge a noo, sobretudo em contexto europeu, que o Estado de Direito Ambiental
deve assumir o dever de prevenir todos os riscos prevenveis. Contudo, conclui-se tambm
que nas polticas pblicas viradas para a preveno de riscos a eficcia das aces preventivas
no deve ofuscar a justia social das medidas preventivas.
Os captulos 2 e 3 da ParteIV so contributos de dois dos consultores do projeto, Frank
Furedi e Steve Kroll-Smith. A pedido dos investigadores do projeto, e aps contacto directo
com os resultados dos estudos empricos e da anlise dos regimes jurdicos de regulao do
risco, ambos acederam a produzir uma reflexo abrangente sobre a problemtica do risco e do
Estado num mundo globalizado.
No captulo 2 da Parte IV, Frank Furedi prope-nos uma sociologia do medo que
desconstri de forma magistral a relao implcita, mas ideologicamente plena de eficcia,
entre medo e risco. O argumento central que apresenta que uma sociologia do medo obriga a
uma desnaturalizao e desbiologizao da emoo do medo e a sua inscrio em narrativas
culturais e polticas que configuram, no final do sc.XX e no dealbar do sculo XXI, um
mercado do medo. Assim, o medo , segundo Furedi, moldado por guies culturais que
reconfortando ou abalando a confiana dos indivduos pauta a resposta a acontecimentos
extremos.
Furedi apela a uma sociologia do medo que indague para cada comunidade especfica que
s ignificar falar de eventos emocionais e quais aqueles que marcaro a matriz simblico-
cultural de interpretao dos mesmos. O medo, na sua configurao actual, deriva para Furedi
da dificuldade que a sociedade tem em dar sentido incerteza. A incerteza no se refere
meramente a um estado de esprito ou a um clima emocional. Refere-se, tambm, tendncia
para discordar quanto ao que constitui uma ameaa e ao que se deve fazer para a enfrentar.
Cada vez mais, a questo de saber o que devemos temer e quem devemos culpar tornou-se
tema de debate aceso. A falta de consenso quanto ao significado do infortnio confere ao
sentimento do medo um carcter privado, individualizado e at arbitrrio.
Assiste-se, assim, a uma privatizao do medo, transformando os medos privados em
medos pblicos. Uma tendncia pesada detectada por Furedi prende-se com a
institucionalizao do discurso do medo, assumindo esta institucionalizao do medo um
papel central na comunicao do risco e na regulao do risco e na legitimao das aces dos
Estados. As narrativas do medo coisificam-se e o risco torna-se uma varivel independente,
explicativa, que permite a imputao de vulnerabilidade e a dependncia em relao s
polticas e s vises pblicas.
Steve Kroll-Smith, no captulo 3 da parte IV do presente relatrio, opta por fazer uma
anlise comparativa de dois processos, separados por 99 anos, de recuperao de catstrofes
nos Estados Unidos para elucidar a relao complexa, ambgua e mutante entre cidadania,
Estado e vulnerabilidade. Kroll-Smith, a partir dos dois casos estudados, argumenta que a
destruio material causada pelas calamidades naturais geradora daquilo a que David
Harvey chama acumulao por desapossamento. Isto , os potenciais benefcios de mercado
gerados pela devastao material fazem sempre parte da equao da recuperao ps-
catstrofe.
Os casos apresentados por Kroll-Smith, e os seus desfechos antagnicos, pem em
evidncia a importncia de que, na sua inter-relao, a cidadania, o Estado e a vulnerabilidade
9
se revestem para explicar os desfechos variveis da moderna luta humana em prol da justia
social e daquilo a que poderamos chamar justia territorial. Se em So Francisco em 1906
cidados chineses estrangeiros, que constituam uma forte e coesa comunidade local,
conseguiram, com o apoio diplomtico da China, resistir ao seu afastamento compulsivo do
centro da cidade (Chinatown), j em 2005 cidados norte-americanos afro-americanos, com
uma fraca lgica de comunidade, no conseguiram resistir sua sada forada do centro de
Nova Orlees.
Estes desfechos distintos levam Kroll-Smith a concluir que o risco acontece, sempre, num
tempo, num espao, e a algum. Por outro lado, Kroll-Smith interroga-se sobre se as
universalidades que habitualmente servem de pano de fundo aos debates sobre a cidadania
global, os cidados transnacionais, o definhamento do Estado e uma esfera civil global,
escondem ou camuflam os pormenores quotidianos e locais da prtica poltico-econmica. A
cidadania, a globalizao e o Estado encontram-se, sempre, alicerados em algo, sendo
vergados e moldados por foras histricas concretas, por sua vez radicadas na vida poltico-
econmica local e regional.
Referncias bibliogrficas
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Callon, Michel; Rabeharisoa, Vololona (2004), "Gino's lesson on humanity: genetics, mutual
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Hood, Cristopher; Rothstein, Henry; Baldwin, Robert (2001), The Government of Risk:
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Luhmann, Niklas (1993), Risk: A sociological theory. NewYork: Aldine de Gruyter.
Santos, Boaventura de Sousa (1995), Towards a New Common Sense. Law, science and
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Scott, James (1990), Dominance and the Arts of Resistance. Hidden Transcripts. New Haven:
Yale University Press.
Strauss, Anselm (1993), Continual Permutations of Action. NewYork: Aldine de Gruyter.
10
Nota metodolgica
A abordagem dos regimes de regulao de acontecimentos extremos como as ondas de calor e
de situaes perigosas permanentes numa perspectiva comparada obriga ao recurso a
diferentes metodologias. Mais ainda, quando h a inteno explcita de conjugar uma
abordagem sociolgica com uma abordagem jurdica que devolva a configurao e o
enquadramento normativo dos fenmenos em estudo.
O presente projeto assenta explicitamente no mtodo comparativo e na explorao das
possibilidades que o mesmo abre, bem como tambm nas suas limitaes hermenuticas e
epistemolgicas.
Uma das referncias j clssicas referentes ao mtodo comparativo qualitativo a obra de
Charles Ragin (1987). Para este autor, a anlise comparativa qualitativa baseada nos
mtodos de estudos de caso. Tem como primeira caracterstica o ser uma anlise holstica, que
trata os casos como entidades globais. As relaes entre as partes e o todo so estudadas no
contexto global onde se inserem. Outra caracterstica que a causalidade sempre
conjuntural. Vrias condies causais podem conduzir ao mesmo efeito, como produto
situado de interseces especficas de condies. A anlise comparativa permite, assim,
examinar constelaes e configuraes de factos. A sua vantagem principal v-se no estudo
de problemticas que envolvam causas mltiplas e conjunturais. O pressuposto de partida a
complexidade causal, que depois permitir uma viso sinttica dos processos em presena
(1987:ix-xi).
O recurso anlise comparativa est em sintonia com Sheila Jasanoff (2005:15) quando
esta afirma que, pelo facto de o conhecimento e as polticas serem sempre alicerados na
cultura, h que manter algum cepticismo quanto possibilidade de no ser problemtica a
aprendizagem com as experincias alheias. Para esta autora, a anlise comparativa faz-se em
torno do conceito de cultura poltica, de maneira a investigar as ligaes existentes entre as
tecnologias, o conhecimento e o poder no contexto de culturas de deciso e de aco
concretas. Dito de outro modo: Esta abordagem lana luz sobre o modo como a cultura
poltica se reflecte nas discusses e nas decises de incidncia tecnolgica, mormente o modo
como ela afecta a produo de conhecimento pblico, constituindo aquilo a que chamo as
epistemologias cvicas dos modernos Estados-nao (2005: 15).
Embora se subscreva parcialmente a perspectiva de Jasanoff, julgamos que, na anlise
comparativa, ser til recorrer noo de performao proposta por Michel Callon (2006).
Segundo Callon, [] transpor uma afirmao terica de um ponto para outro e aplic-la na
prtica exige a interveno de novos actores que contribuam para(ou contrariem) a
actualizao dos dispositivos sociotcnicos implcitos na afirmao. S possvel, criar,
testar, pr prova e explorar estes dispositivos sociotcnicos se, para isso, se mobilizarem os
engenheiros e os prticos (2006: 29). por esse motivo que quem inova so os colectivos.
Numa perspectiva sociolgica convencional, as partes I e II do presente relatrio
baseiam-se na anlise crtica e qualitativa de documentos oficiais e de notcias relacionadas
com os temas das ondas de calor de 2003 e da requalificao das minas da Urgeiria e em
Limousin, recolhidas na imprensa nacional e francesa. Aos documentos oficiais e s notcias
foi aplicada uma anlise crtica do discurso na linha das propostas de Norman Fairclough
(1995).
Para Fairclough a anlise crtica do discurso , antes de mais, uma forma de estudar como
o poder, as desigualdades e a dominao social so activados, reproduzidos e resistidos
atravs dos textos e das conversas e em contextos polticos e sociais concretos. A anlise
crtica do discurso exige uma perspectiva funcional que v alm da frase e do texto, e que
11
tenha em conta os constrangimentos, estruturas e processos sociais, polticos e histricos mais
vastos.
H que analisar como esto construdos os documentos e as notcias, o que produzem,
que identidades, representaes e relaes so salientadas e as que so silenciadas ou
reprimidas. a isso que se prope a anlise crtica do discurso (Fairclough,1995).
Na anlise documental procura-se, assim, explicitar como foram construdas as narrativas
pblicas sobre as ondas de calor e a nuclearidade em Frana e Portugal e o trabalho identitrio
realizado pelos diferentes actores em presena nos diferentes espaos nacionais, regionais e
locais. Procura-se, tambm, precisar que argumentos foram avanados para justificarem os
diferentes nveis identitrios em presena e verificar que aliados foram mobilizados e que
adversrios foram identificados, quais os aspetos e dimenses consensuais, e aqueles sobre as
quais se extremaram as posies. A organizao cronolgica dos principais acontecimentos
permitiu aferir das condies necessrias para que determinados grupos marquem ou no
presena na esfera pblica.
E nesta linha de pensamento que se inscreve a anlise que Michael Pollak (1993) fez da
problemtica da memria. Pollak partiu de uma abordagem construtivista, procurando
explicitar os processos e os actores que participam no trabalho de constituio e formalizao
das memrias. Segundo Pollak, h que perguntar como os factos sociais se tornam coisas e
no trat-los como coisas. preciso indagar como e por quem os factos sociais se solidificam
e se dotam de durabilidade e estabilidade. A memria torna-se, assim, campo e objecto de
luta, havendo que identificar como funcionam as redes sociais e cognitivas que procuram
impor a sua verso do passado e da identidade oficial. Por outro lado, deve-se ter sempre
presente que todas as sociedades, grupos e classes sociais produzem memrias subterrneas.
A investigao sociolgica e histrica dever privilegiar os espaos onde exista conflito e
competio entre memrias concorrentes. As memrias subterrneas constituem-se e
reproduzem-se em redes sociais informais, cabendo verificar como se relacionam com as
memrias oficiais e quais as condies materiais, sociais e simblicas para se reproduzirem.
A memria resulta sempre de um trabalho de construo e reconstruo permanente, de
um trabalho de enquadramento. Este trabalho de enquadramento da memria tem os seus
actores profissionais, aquilo a que Michael Pollak chama de empresrios da memria. O
resultado deste trabalho fica visvel em objectos materiais (monumentos, museus, etc.) e um
dos ingredientes essenciais na manuteno dos grupos e das estruturas institucionais de uma
sociedade. Por uma lgica de simetria, a anlise das memrias individuais permitir salientar
os limites do trabalho de enquadramento e especificar o trabalho pessoal, pela narrativa e pelo
discurso, de gesto das contradies, conflitos, rupturas ou continuidades entre a imagem
oficial do passado e da identidade e as memrias e experincias pessoais.
A anlise empreendida a partir dos preceitos de Michael Pollak permitiu, sobretudo no
caso do estudo da nuclearidade em Frana e Portugal, apreender a emergncia de linhas de
memria e de narrativas estruturadas em torno do sofrimento, do corpo, da tica do trabalho,
da comunidade local e da pertena e da obrigao perante comunidades imaginadas como a
nao que, no constituindo contra-memrias, produzem um caderno de encargos que molda
as identidades pessoais e colectivas e exigem uma resposta real e simblica do Estado e dos
concidados.
Na anlise de discurso empreendida tambm se recorreu s propostas de Michael Lynch e
David Bogen (1996). Estes autores, partindo de uma perspectiva etnometodolgica que
chamam de ps-analtica, procuram explicitar como a histria, o espectculo e a memria so
construdos activa e localmente pelos actores envolvidos. O grande contraste era, no caso em
apreo, entre os documentos escritos e as histrias contadas que eram localmente organizadas
12
e relevantes a nvel biogrfico. A recomendao central de que, em vez de aplicar ou testar
uma da da teoria, as histrias e os documentos devem ser vistos como recursos que os
intervenientes usam para clamar, repudiar, resistir ou imputar, de forma justificvel e
responsvel, certas relaes entre biografia e histria. A memria e o esquecimento so
mobilizados ou no para fazer algo, para justificar atitudes e aces.
O aprofundamento dos estudos de caso constantes das Partes I e II e a apreenso dos
discursos e das narrativas oficiais e das narrativas dos diferentes actores envolvidos nos
processos de nuclearidade e nos acontecimentos relacionados com as ondas de calor de 2003
foram concretizados a partir da realizao de um total de sessenta entrevistas em Frana e
Portugal (ver Anexo 1 para uma breve caracterizao dos entrevistados).
A elaborao dos guies de entrevista e do quadro analtico foi informada pelas propostas
associadas teoria ancorada (grounded theory). Embora a teoria ancorada tivesse
originalmente um pendor nitidamente positivista (Glaser e Strauss, 1967), as reformulaes
posteriores de Anselm Strauss aligeiraram a tendncia positivista e reforaram a importncia
dos factores e processos meso e macro, operacionalizados atravs da criao de matrizes
condicionais, alm de atender a uma complexa teoria da aco (Strauss, 1993 e 1987; Strauss
e Corbin,1990).
Contudo, na anlise das entrevistas pautmo-nos por uma perspectiva compreensiva que
permitisse ultrapassar os limites epistemolgicos da teoria ancorada e, abandonando a posio
estritamente indutiva, procurar dedues a testar pelo terreno e sugeridas pelas surpresas e
revelaes advindas das entrevistas (Kaufmann, 2008).
Isto porque, como afirmam Kleinman et al. (1994), e partindo do pressuposto de que
subjacente aos mtodos e s tcnicas esto sempre opes epistemolgicas e ideolgicas, a
entrevista permite captar no o indivduo mas a sua localizao social. A entrevista uma
excelente tcnica para apreender como os membros de uma dada categoria social mantm,
transformam e desafiam uma ou vrias identidades. A entrevista favorece o estudo de
realidades sociais, cognitivas e simblicas que ultrapassam, atravessam ou cortam as
ancoragens locais. Por outro lado, todo o trabalho preparatrio da entrevista, assim como a
prpria dinmica da situao de entrevista, do informaes etnogrficas preciosas sobre os
entrevistados e os meios sociais onde se inserem.
Como salientam Kleinman et al. (1994), as entrevistas procuram verificar como as
pessoas atribuem sentido s suas vidas, e constituem uma boa tcnica para ver como emergem
as economias do desejo, e como a identificao pessoal numa dada esfera afecta outras
pertenas. A flexibilidade e a plasticidade identitrias podero tornar-se mais visveis numa
situao de entrevista, assim como a presena imaginria de outros com os quais se dialoga no
trabalho identitrio. Alm disso, e de forma paradoxal, a entrevista pode ter a grande
vantagem de se basear num contacto de curta durao com o entrevistado. Este, sabendo que o
entrevistador ter uma probabilidade mnima de vir a fazer parte do seu crculo de amizades e
de relaespessoais, poder contar ou revelar aspetos inesperados. A posio do entrevistador
como um estranho benigno poder induzir confisses e desabafos impossveis de conseguir
num contexto quotidiano de trabalho ou de vida.
A entrevista, como situao interactiva, estrutura-se sempre de vrias formas. Da que a
distino entre entrevista estruturada ou no estruturada perca parte da sua pertinncia. Deve-
se estar atento s definies e relaes de poder, s inflexes discursivas e irrupo do
imprevisto. Numa situao de entrevista, o entrevistado, mais do que comunicar ou partilhar
significados, pode estar negociando as suas identidades, arrastando nesse processo o
entrevistador e obrigando este a negociar, alterar ou sublimar tambm as suas identidades. E
13
nessa riqueza dialgica, nessa polifonia de vozes presentes e ausentes, que jaz toda a riqueza
das entrevistas, mais do que numa busca distante e objectiva de factos ocorridos.
Para a anlise das entrevistas realizadas foram tambm relevantes as propostas de anlise
discursiva de Margaret Wetherell e Jonathan Potter (1992). Deve-se atender ao que as pessoas
fazem com as suas prticas discursivas, e o tipo de recursos que mobilizam para tal. A
preocupao central ver como os discursos so construdos de forma a serem performativos
a nvel social, sendo dada especial ateno ao contedo dos discursos. No se procura o que
est por debaixo ou atrs dos discursos, isto , recusa-se uma hermenutica da suspeio que
podia atender aos enviesamentos cognitivos, s personalidades autoritrias ou a outras
entidades essencialistas e reificadas. Recusando o cognitivismo, tenta-se apreender a
organizao retrica ou argumentativa das conversas e dos textos, e os dilemas ideolgicos
que os indivduos enfrentam, e como procuram responder aos mesmos. Os relatos produzidos
pelos indivduos tm sempre presente o que est em jogo, isto , a forma como os interesses
de diferentes colectividades e agentes interferem com as suas aces. Da que os discursos,
devido ao seu carcter performativo, tm que ser justificveis. E mesmo que se proceda ao
relato de factos ocorridos, assiste-se a uma produo avaliativa, embebida em dilogos reais e
imaginrios saturados de posicionamentos ideolgicos.
Central para esta forma de abordagem o conceito de reportrios interpretativos
(Wetherelle Potter, 1992: 90-93). Estes so entendidos como um conjunto abrangente de
termos, descries e tropos ordenados em torno de metforas ou imagens marcantes. So
recursos para avaliar, construir verses factuais e desempenhar aces especficas. Os
reportrios interpretativos permitem compreender os contedos dos discursos e a forma como
esto organizados. Contudo, os reportrios interpretativos no devem ser vistos como
sistemas rgidos, mas sim como jogadas ou movimentos coreografados, em que os sujeitos
(tanto o entrevistador como o entrevistado) se constroem ou reformulam pelo discurso. Os
reportrios so, assim, fragmentados e caleidoscpicos. O objectivo do analista ver que
reportrios so usados em que contextos, e como conceitos como identidade, cultura, regio,
nao, e outros, so mobilizados, traduzidos e colocados nas sequncias discursivas.
Mas, a noo de reportrios interpretativos no pode conduzir a anlises reducionistas.
Os relatos e as narrativas podem funcionar como desafios e formas de resistncia s narrativas
dominantes, implicando opes morais e polticas delicadas ou no convencionais. O que
interessa sobretudo estar atento s histrias contadas e s suas implicaes pessoais,
familiares, comunitrias e sociais mais vastas.
Nesta linha, de especial relevncia so os trabalhos de James Scott (1990) sobre as
formas de resistncia dominao e inculcao ideolgica. Distinguindo entre registos
pblicos (public transcripts) e registos ocultos (das elites e dos dominados) Scott procurou
demonstrar que a resistncia dominao est sempre presente e pode-se manifestar de
inmeras maneiras. O registo oculto, sobre tudo o de indignao, define-se como o discurso
(entendido num sentido lato como gestos, fala e prticas) que excludo do registo pblico
dos subordinados pelo prprio exerccio do poder. o poder que cria o registo oculto. Este
ensaiado quotidianamente em diferentes contextos, sendo os seus contedos reiterados e
aperfeioados de forma contnua. Podem cristalizar-se em pardias, sonhos de vingana
violenta, vises milenares, provrbios ou outras formas de expresso. A fronteira entre os
registos pblicos e os registos ocultos , por outro lado, uma zona de constante luta. Scott
(1990: 82-85) s admite que a hegemonia ideolgica acontea em casos de subordinao
involuntria se houver uma grande probabilidade de uma proporo elevada de subordinados
ocupar cargos de poder, ou se, por outro lado, os subordinados estiverem totalmente
atomizados e sob vigilncia constante. Da que os discursos de resistncia e de alternativa
14
sejam mais apreensveis no nas prticas e nas lutas polticas, mas sim a nvel da fala, dos
gestos e dos comportamentos quotidianos. O discurso dominante pode ser considerado como
um idioma ou um dialecto com suficiente plasticidade para implicar uma enorme variedade de
significados, inclusive aqueles que podem ser subversivos do seu uso oficial. Para Scott, os
conceitos de hegemonia e de falsa conscincia tm que ser relativizados ou at abandonados.
A partir dos seus dados empricos conclui, provocatoriamente, que o radicalismo e a oposio
mais activa ao discurso dominante podero vir no dos grupos desapossados que no levam a
srio este discurso, mas sim dos grupos que poderiam ser classificados como sendo
falsamente conscientes, ou seja, daqueles junto dos quais as instituies de hegemonia
tiveram mais sucesso.
Esta viso, bastante importante para situar os efeitos da produo e consolidao
ideolgicas, tem que ser tambm ela complexificada. Como sugere Sherry Ortner (1995), os
grupos e as pessoas que resistem dominao tambm tm as suas divises polticas internas,
estruturadas volta de questes tnicas, raciais, econmicas e, sobretudo, de diferena sexual.
Os subordinados no tm s uma poltica reactiva mas tambm produzem e so activos a nvel
poltico. No domnio da cultura, os subordinados tambm so produtores e produzem culturas
e sub-culturas alternativas, num jogo complexo e fascinante de lealdades, alianas e
categorias flexveis. Um ltimo aspeto ter que ver com o conciliar de uma desconstruo do
discurso ideolgico do indivduo racional e com capacidade de livre escolha, com a
manuteno da sua capacidade de interpretar e de avaliar moralmente as situaes, de
formular e realizar projetos. Os indivduos que resistem no s se opem s ideias e valores
dominantes como so verdadeiramente criativos e transformadores, com mltiplos projetos e
capacidades distintas de os realizarem.
Em resumo, parece-nos que uma boa proposta para a anlise discursiva das entrevistas
poder ser encontrada em John Law (1994: 95), inserida numa sociologia pragmtica e
relacionalmente materialista. Para este autor, a noo de discurso deve ser decomposta em
diferentes dimenses e aspetos: 1 o discurso deve ser visto como um conjunto de padres
que podem ser imputados s redes do social; 2 devemos procurar os discursos no plural; 3
os discursos devem ser tratados como tentativas de ordenar e no como ordens em si; 4
devemos explorar como os discursos so desempenhados, incorporados e contados em
diferentes materiais; 5 e, por ltimo, devemos ver como os discursos interagem, mudam e se
extinguem.
De grande importncia foram tambm as recomendaes metodolgicas sugeridas por
Natasha Mauthener e Andrea Dooreta (1998). Estas autoras propem um mtodo relacional
para a anlise das entrevistas, centrado nas vozes que dialogam nesses encontros.
Recomendam trs ou mais leituras das entrevistas completas, cada uma com um objectivo
especfico (1998: 126-132). A primeira leitura procura deslindar o enredo (acontecimentos
principais; protagonistas e sub-enredos) e as respostas do entrevistador ao que est a ser dito
(explicitar o posicionamento pessoal do entrevistador em relao entrevista). A segunda
leitura deve procurar a voz do entrevistado, isto , como este sente e fala de si, e que
pronomes pessoais so usados (eu, ns, tu). Segundo as autoras, esta procura da voz de cada
pessoa que distingue o mtodo relacional do mtodo da teoria ancorada, pois este centra-se
mais na aco e na interaco entre as pessoas. Uma terceira leitura deve centrar-se nas
relaes interpessoais e nas redes sociais mais vastas. Uma quarta leitura procura situar os
entrevistados em contextos culturais e estruturais mais amplos. Este mtodo enfatiza os
mltiplos nveis presentes em toda a narrativa. Mais do que se preocupar com a codificao, o
analista deve assumir-se como um detector e modulador de vozes, mantendo as diferenas dos
entrevistados. O mtodo relacional na anlise das entrevistas procura simultaneamente as
15
semelhanas e as diferenas. Numa segunda fase, cada entrevista resumida e procede-se a
uma anlise temtica comparativa com as outras entrevistas. O certo que o investigador
nunca se liberta das contradies que derivam das relaes de poder e da auto e hetero-
reflexividade na situao de entrevista. Se conseguir restituir algumas vozes que faam
alguma diferena, j conseguiu algo.
A parte III e o captulo 1 da parte IV partem de um conjunto de bases de dados de cariz
jurdico criadas especificamente para o projeto, a saber: 1) uma base de dados de legislaes
nacional e comunitria sobre o tema do projeto; 2) uma base de dados de jurisprudncias
nacional e comunitria em matria ambiental; 3) uma base de dados bibliogrfica relativa
participao dos cidados e ao papel do Estado na regulamentao do risco; e, 4-uma base de
dados de legislao e jurisprudncia de mbito nacional e internacional com incidncia
nosconceitos de risco, participao, desenvolvimento sustentvel e o papel do Estado em
contextos nacionais e internacionais.
Especial ateno foi dada, na elaborao das diferentes bases de dados s decises de
tribunais nacionais e internacionais sobre casos marcantes e, especificamente, sobre casos
directamente relacionados com os processos de requalificao das minas de urnio em
Portugal e em Frana e sobre as ondas de calor nos dois pases.
Na parte III procede-se a uma reflexo sobre os critrios de actuao do Estado,
estabelecendo de seguida uma disciplina que regule essa mesma interveno. Ao longo da
parte III so abordados vrios casos em que o Estado se v confrontado com riscos. No
captulo1 da Parte IV procede-se a uma anlise hermenutica que permita a concretizao dos
deveres mnimos de um Estado de Direito Ambiental num contexto europeu.
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17
I Parte Estudo de caso 1
18
As ondas de calor de 2003 em Frana e Portugal
Jos Manuel Mendes1
Nota prvia
No Vero de 2003 houve, na populao europeia, uma sobremortalidade de mais de 70.000
bitos devido s ondas de calor a chamada onda de calor (Robine et al., 2008).2 No
obstante quase todos os pases da Europa terem sido afectados pelo fenmeno, o grande
impacto demogrfico das ondas de calor centrou-se na bacia do Mediterrneo e no
Luxemburgo. Com efeito, em agosto de 2003 a sobremortalidade foi de cerca de 37% no caso
da Frana, 28% em Portugal, 25% no Luxemburgo, 23% em Espanha e 22% em Itlia
(Robine et al., 2007). Em nmeros absolutos e no que se refere ao mesmo ms, registaram-se
15.630 bitos a mais em Frana, 2.310 em Portugal, 5.290 em Espanha e 5.680 em Itlia
(Sardon, 2006).
Aps este pargrafo introdutrio, gostaramos de invocar as declaraes que Edmund
Donoghue, autoridade de sade de Cook County, Illinois, e responsvel pela polmica
respeitante onda de calor de Chicago de 19953, fez ao New York Times a propsito da
provvel mortalidade e do acrscimo de bitos ocorridos em resultado do calor na cidade de
Nova Iorque no Vero de 2006 (Prez-Pea, 2006). Para Donoghue, no s pessoas
gravemente doentes e na iminncia de morrer que se deve esse excesso de bitos. Na sua
maioria, no se trata de pessoas que, no futuro imediato, estivessem verdadeiramente em risco
de morrer.4
possvel, em conformidade com a posio defendida por Edmund Donoghue,
estabelecer um critrio que nos sirva de referncia tcnica, moral e poltica. Segundo este
critrio, todos os bitos a mais atribuveis ao calor so evitveis, devendo fixar-se este limite
como indicador da qualidade dos vnculos sociais, da responsabilidade poltica e de uma
cidadania inclusiva.
Propomo-nos, neste captulo, apresentar uma anlise comparativa dos acontecimentos
ocorridos em 2003 em Frana e em Portugal, bem como do respectivo impacto no rearranjo
dos dispositivos sociotcnicos. A principal concluso que, em Frana, a sobremortalidade
foi percepcionada e retratada como sendo uma catstrofe e conduziu a uma srie de inquritos
oficiais levados a cabo por organismos da administrao central e pelos organismos polticos
representativos, de que resultou um rearranjo profundo dos dispositivos sociotcnicos e
sociopolticos. Naquele pas, a onda de calor levou reconfigurao, redistribuio e
reformatao do colectivo (Callon e Rabeharisoa, 2003). Em Portugal, por outro lado, a onda
1 Jos Manuel Mendes doutorado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde exerce as funes de Professor Auxiliar. Investigador do Centro de Estudos Sociais, tem trabalhado nas reas das desigualdades,
mobilidade social, movimentos sociais e ao colectiva e, mais recentemente, nas questes relacionadas com o risco e a
vulnerabilidade social. 2 A etimologia do termo cancula vem da palavra latina canicula, diminutivo feminino de canis. No registo popular e rural das
lnguas europeias, a cancula era o perodo mais quente do ano, entre 22 de julho e 23 de agosto, altura em que a estrela
Srius, da constelao do Co maior, nasce e se pe ao mesmo tempo que o Sol. 3 Donoghue co-autor de um artigo pioneiro que estabeleceu as bases da anlise epidemiolgica da mortalidade devida ao
calor e props protocolos para determinar a morte por insolao (Whitman et al., 1997). 4 Semenza et al. (2006) tambm sustentam que possvel, atravs de medidas preventivas, reduzir grandemente a morbidade
e a mortalidade relacionadas com o calor.
19
de calor teve um impacto reduzido sobre os dispositivos sociotcnicos, e no plano poltico no
passou de um epifenmeno sem consequncias de maior.
Em Frana, os acontecimentos foram perspectivados em termos de catstrofe e o regresso
ordem foi encarado como sendo uma tarefa poltica, epistmica e sociotecnolgica. A
dimenso poltica foi expressa pelos relatrios oficiais (Senado, Assembleia Nacional, etc.); a
dimenso epistmica foi postulada pelos cientistas (epidemiologistas, meteorologistas); e a
dimenso sociotecnolgica esteve presente nos novos dispositivos e protocolos de sade
pblica e na criao de leis e regulamentos relacionados com a prestao de cuidados a
idosos.
A produo da nova distribuio social, do novo alinhamento sociotcnico, foi tornada
possvel sem que a sociedade civil estivesse directamente implicada (quer dizer, sem a
interveno de movimentos sociais nem a ocorrncia de queixas formais por parte dos
familiares das vtimas). Tratou-se de uma produo endgena dos campos polticos,
cientficos e tcnicos, que se alteraram por forma a ajustar-se aos desafios colocados pelo
clima e pelas ondas de calor, de maneira a responder s crticas dos media e s sondagens de
opinio pblica desfavorveis ao governo.
Em Portugal, a onda de calor de 2003 no foi vista como uma calamidade, nem levou a
que se procedesse a grandes alteraes na matriz jurdico-institucional. A maior parte das
alteraes verificadas como por exemplo a introduo, no ano de 2004, de planos de
contingncia para ondas de calor deveu-se s recomendaes e protocolos de agncias
internacionais como a Organizao Mundial de Sade.
O objectivo deste captulo o de propor, por via comparativa, uma compreenso das
tecnologias materiais e sociais tecnologias que so articuladas em rede, distribudas,
incorporadas em protocolos e em prticas e materialidades sociais respeitantes s ondas de
calor enquanto questo de sade pblica. A existncia de protocolos no basta para impedir os
bitos causados pelas ondas de calor. E neste ponto assume-se que aquilo que se oferece no
uma anlise puramente simtrica como a proposta por John Law (2003), j que se impe
explicar o porqu de Portugal, que desde 1999 dispe de um dispositivo de vigilncia e de
alerta para ondas de calor (o ndice caro) e de planos de preveno, ter registado 2.000 bitos
em 2003 e ainda 1.200 em 2006.
O recurso anlise comparativa est em sintonia com Sheila Jasanoff (2005: 15) quando
esta afirma que, pelo facto de o conhecimento e as polticas serem sempre alicerados na
cultura, h que manter algum cepticismo quanto possibilidade de no ser problemtica a
aprendizagem com as experincias alheias. Para esta autora, a anlise comparativa faz-se em
torno do conceito de cultura poltica, de maneira a investigar as ligaes existentes entre as
tecnologias, o conhecimento e o poder no contexto de culturas de deciso e de aco
concretas. Dito de outro modo: Esta abordagem lana luz sobre o modo como a cultura
poltica se reflecte nas discusses e nas decises de incidncia tecnolgica, mormente o modo
como ela afecta a produo de conhecimento pblico, constituindo aquilo a que chamo as
epistemologias cvicas dos modernos Estados-nao (2005: 15).5
5 Na sua anlise do papel dos intelectuais na Europa, Wolf Lepenies prope a noo de semntica das catstrofes (2007: 24-
25). Para este autor, todas as catstrofes se inscrevem em esquemas lingusticos e esquemas de memria tradicionais e
concretos. Assim, e por exemplo, a onda de calor sentida em Frana no ano de 2003 foi comummente apelidada, nas
referncias escritas, de la canicule, expresso com conotaes especficas nas dimenses simblicas do uso da lngua. A
palavra portuguesa cancula regista uma utilizao rara ou nula em todos os documentos relacionados com a onda de calor
de 2003.
20
Embora se subscreva parcialmente a perspectiva de Jasanoff, julgamos que, na anlise
comparativa, ser til recorrer noo de performao proposta por Michel Callon (2006a).
Segundo Callon, [] transpor uma afirmao terica de um ponto para outro e aplic-la na
prtica exige a interveno de novos actores que contribuam para (ou contrariem) a
actualizao dos dispositivos sociotcnicos implcitos na afirmao. S possvel, criar,
testar, pr prova e explorar estes dispositivos sociotcnicos se, para isso, se mobilizarem os
engenheiros e os prticos (2006: 29). por esse motivo que quem inova so os colectivos
(Idem, 31).
Isto obriga a recorrer a uma nova noo e a uma nova viso do social enquanto
associaes ou filiaes que implicam organismos, instituies, dispositivos e compromissos
morais e polticos (Latour, 2005a). De facto, segundo Latour (2007: 6), a durabilidade das
associaes deve-se maneira como as leis e as tcnicas se interligam. No por serem
sociais que elas duram, mas porque o colectivo depende, em parte, dos meios legais e tcnicos
para formar uma esfera duradoura. De certo modo no admira que assim seja (pelo menos de
acordo com a Teoria do Actor-Rede (TAR), visto que a sociedade, ou melhor, o colectivo,
consequncia e no a causa da totalidade dos diferentes tipos de associao.6
1. A onda de calor de 2003 em Frana
Em agosto de 2003, as pessoas envolvidas e as entidades por elas representadas confrontaram-
se com um fenmeno a onda de calor e o seu impacto na sade pblica que no se
encontrava padronizado nem normalizado de acordo com dispositivos e protocolos
sociotcnicos. Ao contrrio de outros pases, a sociedade francesa, e principalmente os
respetivo organismos centrais, como sejam o Institut de Veille Sanitaire (Instituto Francs
para a Vigilncia da Sade Pblica) e a Direction Gnrale de la Sant (Direco-Geral de
Sade) no tinham considerado as ondas de calor e a consequente sobremortalidade como
uma sua preocupao (Latour, 2005b), nem como dispositivo, nem como facto social.
Tratava-se, em suma, de uma patologia para a qual a sociedade francesa no seu todo no
dispunha de protocolos sociais, mdicos ou tcnicos.7
Em Frana, na cancula do Vero de 2003, a taxa de mortalidade comeou a subir no dia
4 de agosto para atingir o seu ponto mais alto no dia 12 do mesmo ms, com uma taxa de
sobremortalidade de 163%. Aps o dia 12 de agosto a taxa comeou a descer, passando a
flutuar dentro das margens normais a partir do dia 19 (INSERM, 2004: 21).
Devido ao impacto que teve na sade, a onda de calor de 2003 envolveu um elevado
nmero de entidades e de dispositivos a diversos nveis, em Frana mas, muito
particularmente, em Paris. possvel distinguir quatro nveis de interveno: a monitorizao,
alerta e preveno; um segundo nvel que tem a ver com o quadro epidemiolgico, mdico e
de sade pblica; a organizao dos cuidados prestados a idosos; e um quarto nvel
respeitante s agncias e instituies que tm a seu cargo lidar com os cadveres e os funerais.
6 O melhor estudo sobre o que a lei faz na prtica e sobre a sua positividade e lgica interna continua a ser o trabalho de
Marcela Iacub (2002). Para o caso concreto do Conseil dtat (Conselho de Estado), a referncia o estudo de Bruno Latour
(2002). 7 Os relatrios poltico-administrativos produzidos acerca da cancula fazem, de facto, referncia a fenmenos anteriormente
ocorridos em Frana, nomeadamente em 1976 e 1983. Existiam j, igualmente, artigos cientficos sobre as dinmicas
epidemiolgicas e mdicas das ondas de calor (Besancenot, 2002; Thirion et al., 1992). A 12 de julho de 2002 e a 27 de maio
de 2003 o Secretrio de Estado para a Populao Idosa, Hubert Falco, enviara para a Direction Dpartementale des Affaires
Sanitaires et Sociales (Direo Departemental dos Assuntos Sanitrios e Sociais) notas oficiosas a alertar para a necessidade
de medidas de preveno especficas para os idosos, na eventualidade de uma onda de calor.
21
No que se refere ao primeiro nvel, as principais entidades envolvidas foram a Mto-
France (Instituto de Meteorologia francs), o Instituto Francs para a Vigilncia da Sade
Pblica e a Agence Franaise de Scurit Sanitaire de l'Environnement et du Travail
(Agncia Francesa de Segurana Sanitria Ambiental e do Trabalho).8
No segundo nvel, a principal entidade envolvida foi a Direco-Geral de Sade, que faz
a articulao com os hospitais, e, no caso de Paris, com a Assistance Publique-Hpitaux de
Paris (Assistncia Pblica-Hospitais de Paris), a Direction de lHospitalisation et de
lOrganisation des Soins (Direco da Hospitalizao e da Organizao dos Cuidados), as
urgncias hospitalares (Services dAccueil des Urgences des Hpitaux), e ainda a Direction
Gnrale des Affaires Sociales (Direco-Geral dos Assuntos Sociais) e as respectivas
divises regionais e departamentais. Outras entidades envolvidas foram os mdicos SOS, o
Service dAide Mdicale Urgente (Servios de Auxlio Mdico Urgente), o Service Mobile
d'Urgence et de Ranimation (Servio Mvel de Urgncia e de Reanimao), as chefias da
polcia, a polcia e os bombeiros no caso de Paris, a Brigade des Sapeurs-Pompiers de
Paris (Brigada de Sapadores-Bombeiros de Paris) e, no respeitante proteo civil, o
Centre Oprationnel de Gestion Interministrielle des Crises (Centro Operacional de Gesto
Interministerial de Crises).
Um terceiro nvel, intimamente relacionado com o segundo, diz respeito s entidades de
prestao de cuidados a idosos, que inclui os proprietrios, gerentes e pessoal dos lares, o
pessoal que presta cuidados ao domiclio, os prprios idosos a residir em casa prpria e os
seus familiares, e ainda a Inspection Gnrale des Affaires Sociales (Inspeco Geral dos
Assuntos Sociais).
Um quarto nvel, que se tornou visvel e se revelou simbolicamente relevante para os
acontecimentos em anlise, foi o das entidades e agentes responsveis por lidar com os
cadveres e os funerais: as Pompes Funbres Gnrales (agncia funerria de importncia e
implementao nacional), a polcia, os bombeiros, as funerrias locais e as cmaras
municipais.
Esta enumerao reconstitui a complexidade dos dispositivos sociotcnicos (Callon,
2003; 2006a) relacionados com a onda de calor de 2003, bem como os colectivos de pessoas,
as instituies, os dispositivos tcnicos, os protocolos e as prticas de que se rodeou. Essa
multiplicidade de agentes e actantes articulou-se numa rede distribuda em torno dos seguintes
dispositivos principais: dispositivos meteorolgicos, epidemiolgicos, mdicos, polticos,
dispositivos relacionados com os meios de comunicao de massa, sistemas de prestao de
cuidados, de assistncia social, de emergncia e socorro, meios hospitalares, centros de sade,
recursos funerrios e dispositivos legislativos. Na ausncia de um plano geral para fazer face
ao calor, tal como o j existente para as condies de frio extremo9, e dada a falta de um
vocabulrio e de uma gramtica prprios para enfrentar o fenmeno, aqueles elementos
forjaram uma rede de conexes lassas, cujos constituintes funcionaram em paralelo e de um
modo desconjuntado.
No obstante a Mto-France ter, em 19 de junho e em 1 e 7 de agosto de 2003, emitido
alertas de calor e tambm recomendaes de natureza preventiva e sanitria, estes no tiveram
grande eco junto dos meios de comunicao social, do pblico, ou das instituies oficiais
8 Aquando da cancula de 2003, a AFSSET, criada em 2002, apresentava carncias de pessoal, no tendo desempenhado qualquer papel nos acontecimentos (Abenhaim, 2003: 74). 9 O Plan Grand Froid (Plano para o Frio Extremo) teve incio em 2001. Contando com a participao da Mto France, o
plano, em vigor desde 2002, consiste na elaborao de quadros meteorolgicos que cruzam a temperatura com factores como
a velocidade do vento e o wind chill, permitindo a emisso de alertas ao nvel dos departamentos. Existem trs nveis de
alerta (mobilizao de Inverno, muito frio e frio extremo), correspondendo a cada nvel o accionamento de um protocolo
envolvendo um grande nmero de entidades. Os planos so elaborados e aplicados pelas prefeituras.
22
responsveis. Esses alertas foram lanados sob a forma de boletins informativos, no tendo
portanto nada a ver com o sistema de avisos j utilizado no caso das ondas de frio.10 No que
toca s ondas de calor, a Mto-France no dispunha de ndices de alerta padronizados nem
de qualquer esquema de coordenao com as instituies de vigilncia e sade pblica.11 A
inexistncia de um Plano de Contingncia para o Calor semelhante ao Plano para o Frio
Extremo, devidamente codificado e acompanhado dos respetivo protocolos, tornou difcil
enquadrar a onda de calor de 2003 como uma questo de sade pblica.
O Instituto Francs para a Vigilncia da Sade Pblica (InVS) tambm no tinha grande
experincia de recolha de dados nem de estudos epidemiolgicos sobre o impacto das ondas
de calor. Nas declaraes prestadas no mbito do relatrio informativo apresentado
Assembleia Nacional, o director Gilles Brcker reconheceria que "[] os riscos climticos
no tinham sido inscritos no contrato de objectivos e meios em vigor; foi uma questo com a
qual os poderes institudos no se preocuparam minimamente" (2003: 14). Em muitos dos
relatrios e das anlises subsequentes, a instituio internacional de referncia mais vezes
mencionada seria o Center for Disease Control and Prevention (Centro para o Controlo e a
Preveno de Doenas), dos EUA, com os seus estudos epidemiolgicos e o seu
conhecimento tcnico das ondas de calor.12 O relatrio Lalande (2003) d do Instituto Francs
para a Vigilncia da Sade Pblica uma imagem desoladora e muito crtico do seu
desempenho durante a onda de calor, acusando a instituio de ser mais um organismo de
observao e de anlise ps-evento do que, propriamente, um organismo operacional.
A inexistncia de protocolos de vigilncia e preveno tambm se fez sentir no terreno e
no plano operacional. A invisibilidade dos mortos da onda de calor contrastou com a
visibilidade que costuma caracterizar as vtimas das ondas de frio, j que estas afectam
sobretudo os sem-abrigo.13 Como afirmou o prefeito da polcia de Paris, no mbito do
inqurito levado a cabo pela comisso da Assembleia Nacional, aps os acontecimentos de
agosto de 2003 sentiu-se obrigado a pr em prtica um plano para as ondas de calor anlogo
ao usado no caso das ondas de frio extremo.14
10 Segundo os critrios do ndice de durao das ondas de calor seguidos pela Organizao Meteorolgica Mundial, verifica-
se uma onda de calor quando, num intervalo de pelo menos seis dias, a temperatura mxima diria 5C superior ao valor
mdio dirio do perodo de referncia (WCDMP-No.47, WMO-TD No. 1071). A presente definio vale apenas para a
variabilidade climtica, no se aplicando s avaliaes do impacto na sade pblica. 11 A referncia internacional, neste caso, o ndice de Calor do Servio Meteorolgico Nacional (National Weather Service),
dos EUA, o qual associa o calor humidade. O referido Servio desenvolveu, para a maioria das cidades norte-americanas,
Sistemas de Vigilncia e Aviso Relativos ao Calor e Sade. O relatrio Lalande (2003) invoca o caso americano como um
exemplo da aplicao da meteorologia a medidas sanitrias. O relatrio-inqurito da Assembleia Nacional (2004: 56)
menciona o trabalho anteriormente feito pelo Conseil Suprieur de Mtorologie (Conselho Superior de Meteorologia) na
rea da biometeorologia. Finalmente, o relatrio do Senado (2004) exige explicitamente que se adapte a comunicao
meteorolgica aos diferentes pblicos. No seu livro sobre a cancula de 2003, Lucien Abenhaim, antigo responsvel mximo
da Direo-Geral de Sade que se demitiu em agosto desse ano , afirmava que os nveis de alerta meteorolgico da
Mto France no se encontravam adaptados realidade francesa, uma vez que eram baseados nas tabelas e nos valores
americanos (2003: 75). 12 Com efeito, um especialista do Centro para o Controlo e a Preveno de Doenas, Michael A. McGeehin, deslocar-se-ia
posteriormente a Paris com a finalidade de aconselhar o Instituto Francs para a Vigilncia da Sade Pblica e as autoridades
francesas sobre a onda de calor. As suas propostas foram: a necessidade de ter um plano de preveno; visitas dirias aos
idosos durante a onda de calor; e o respectivo transporte para zonas frescas, como bibliotecas pblicas e supermercados (Le
Figaro, 30 de agosto de 2003). 13 Este facto contrasta com as declaraes de Patrick Pelloux, dirigente mximo da Association des Mdecins Urgentistes
Hospitaliers de France (Associao de Mdicos de Urgncias Hospitalares de Frana) perante a comisso de inqurito: As
vtimas no eram s idosos? No, os primeiros a morrer foram pessoas sem-abrigo; foi-lhe muito difcil abrigar-se do calor,
alm de que o alcoolismo crnico no facilitou a reidratao. Da que tenham morrido jovens sem-abrigo e que o recorde de
hipertermia, cifrado em mais de 43,75 graus, tenha sido registado num desses jovens (Assemble Nationale, 2004, Tomo II:
221). 14 aos servios municipais que, por norma, compete elaborar a lista das pessoas a acompanhar durante as ondas de frio
(Assemble Nationale, 2004, II: 58). O general Jacques Debarnot, comandante da Brigada de Sapadores-Bombeiros de Paris
23
Perante as mortes causadas pelo calor, os bombeiros receberam do prefeito ordens no
sentido de transmitir ao pblico e aos meios de comunicao uma mensagem tranquilizadora,
de resto uma conduta habitualmente recomendada pela grande parte da bibliografia
especializada sobre calamidades15, e que visa no apenas controlar o receado pnico
generalizado mas tambm limitar os possveis danos polticos.16
Onde primeiro se fez sentir a efectividade da crise e houve uma clara percepo da
extraordinria sequncia de eventos ocorridos entre 4 e 12 de agosto, foi nos hospitais, na
assistncia mdica prestada ao domiclio e em lares de idosos, e ainda nos servios de
remoo de cadveres (a cargo dos bombeiros profissionais, da polcia e das agncias
funerrias). Nas importantes declaraes que prestou perante a comisso de inqurito, um
destacado mdico dos Servios de Auxlio Mdico Urgente, Pierre Carli, afirmou que numa
reunio de trabalho realizada a 5 de agosto se verificou existir um dfice de camas
(Assemble Nationale, 2004, Tomo II: 261). Aps o dia 7 de agosto, na sequncia de uma
interveno de uma equipa dos Servios de Auxlio Mdico Urgente motivada por um jovem
com hipertermia, deu-se conta do tipo de patologia em presena. Segundo as suas palavras:
Foi, pois, nessa tarde de Sexta-feira dia 8 de agosto que nos comemos a interessar pelo
assunto. Eu tento compreender o que se passa mas, honestamente, o golpe de calor em
pessoas idosas e em contexto urbano era um cenrio com o qual nunca me tinha deparado.
Apesar de ser professor de anestesia e reanimao, exero medicina de emergncia e medicina
de catstrofe, mas o golpe de calor no , para mim, um assunto clssico. Tinha dele uma
vaga noo, sabia que j tinha acontecido nos Estados Unidos e noutras cidades, mas no
um tema habitualmente ensinado em Paris (Assemble Nationale, 2004, Tomo II: 262).
Pierre Carli daria ento incio a uma busca frentica, na internet, de artigos relacionados
com o golpe de calor, chegando a contactar pessoalmente a Mto France para obter previses
meteorolgicas, contactando colegas e outros servios. Numa importante conversa que teve
com colegas dos Servios de Auxlio Mdico Urgente de Marselha e Montpellier, descobre
quais os protocolos simples que h que seguir:
Telefonei no Sbado aos meus colegas da provncia, e nomeadamente aos Servios de
Auxlio Mdico Urgente de Marselha e de Montpellier, onde o calor intenso, para lhes
perguntar como costumavam reagir a este tipo de calor. Responderam-me muito claramente
que, para gerar frio, preciso ventoinhas, cubos de gelo, e gua, para assim criar uma unidade
de ar condicionado usando roupa hmida. Trata-se de um processo bem conhecido nos pases
quentes; bastava, agora, reproduzi-lo para os doentes vtimas de hipertermia. Transmitimos de
imediato essa informao e pusemo-la em prtica sempre que possvel. Tnhamos aparelhos
na altura dos acontecimentos, afirmou comisso de inqurito que no havia, no software operacional dos bombeiros
profissionais, nenhum cdigo prprio para as ondas de calor, pelo que a avaliao das situaes que iam surgindo foi
puramente emprica. 15 Para uma excelente apresentao e crtica da abordagem por limitao do pnico, veja-se o artigo de Lee Clarke (2004).
Numa obra posterior, o autor, avana as suas propostas tericas para a anlise de casos extremos de catstrofes e grandes
acidentes (Clarke, 2005). 16 Nas declaraes que prestou comisso de inqurito, o comandante Jacques Kerdoncuff, antigo porta-voz da Brigada de
Sapadores-Bombeiros de Paris, relata uma conversa entre um coronel da brigada e o prefeito: Sr. Prefeito, saiba que,
quando um sem-abrigo morre no Inverno, se diz que por causa do frio. Hoje, j vamos em 7 mortos por causa do calor.
Quando morre um sem-abrigo, o assunto nacional; pode ter sido esse o caso tambm, hoje. Ao que o prefeito respondeu:
Sim, mas o senhor no pode ter a certeza de que foi do calor que estas pessoas morreram. O coronel aquiesceu
(Assemble Nationale, 2004, Tomo II: 45). Muitos dos membros dos partidos da oposio (socialistas e comunistas) que
faziam parte das comisses de informao e de inqurito da Assembleia Nacional lamentaram a ausncia, nas audies, do
ento Ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, por assim no o poderem confrontar com as alegadas presses no sentido da no
difuso de dados que pudessem alertar o pblico quanto aos bitos provocados pela onda de calor. Do mesmo modo, a
comisso do Senado inicia o respectivo relatrio com palavras duras para o discurso formatado dos chefes da polcia e da
hierarquia dos bombeiros profissionais parisienses a respeito dessas alegadas instrues.
24
de ar condicionado? No! Mas tnhamos ventoinhas e, nalguns hospitais, nesse domingo, foi
uma autntica caa s ventoinhas: o pessoal da Hospital da Piti Salptrire [Paris] tinha ido
buscar as ventoinhas da administrao! Faltava-nos equipamento mdico? No. Dispnhamos
de lotes de perfuso de que at hoje nunca nos servimos. Mas bem verdade que
improvismos a produo de frio (Assemble Nationale, 2004, Tomo II: 272).
Este extracto ilustra bem o papel da experincia e do saber informal e tcito na prtica
mdica, bem como a importncia que os protocolos em vigor tm para os mdicos nas
situaes em que ocorre um grande nmero de vtimas ou uma crise de sade pblica.17
Apesar de, no seu depoimento, afirmar claramente que teve como principal preocupao
melhorar os protocolos de cuidados aos idosos afectados pelos golpes de calor e transmiti-los
s unidades de sade e de emergncia, e que a sua misso no era emitir alertas, a verdade
que Pierre Carli, levado por um sentimento pessoal de dever cvico, contactou o pessoal da
proteo civil de Paris,18 convidando-o para uma reunio oficial, uma vez que sentia que os
acontecimentos estavam a extravasar o mero quadro mdico e a assumir propores
epidmicas, que se estava perante, como veremos, uma nova epidemia.
A noo de que se estava perante uma crise de sade pblica foi, posteriormente,
reforada pela presena de voluntrios da Cruz Vermelha nos hospitais e pela
disponibilizao de camas para civis em hospitais militares.
Os procedimentos tcnico-burocrticos em vigor para lidar com os cadveres tambm
foram profundamente afectados pela onda de calor. O elevado nmero de bitos, as
circunstncias dessas mortes, com os corpos a ser encontrados s alguns dias aps o
falecimento, a dificuldade em identificar os cadveres, os esforos para encontrar os
familiares, tudo isto se traduziu na necessidade de improvisar protocolos (como lidar com
cadveres em estado de decomposio acelerada?) e numa manifesta escassez de locais para
armazenamento dos cadveres e de sepulturas nos cemitrios. Estes factores conduziram a
uma situao de desamparo perante a acumulao de cadveres, da qual j no havia memria
em Frana, que se tornou, pela sua extenso, no smbolo de um cenrio de catstrofe19: uma
morgue improvisada nos armazns frigorficos do mercado central de distribuio de Paris
(Rungis); a requisio de camies-frigorficos para armazenamento e transporte de cadveres;
a acumulao, no Instituto de Medicina Legal, de centenas de corpos no reclamados; o
enterramento, na seco de indigentes do cemitrio municipal de Thiais (Val-de-Marne), de
cadveres identificados mas no reclamados.20
17 O general Jacques Debarnot descreve assim os protocolos dos bombeiros de Paris: Havia um protocolo de interveno
para os socorristas, que consistia em ver a temperatura, andar com blocos de gelo nas viaturas e tratar o doente desta e
daquela maneira. Um segundo protocolo, mais pesado, destinava-se aos mdicos das ambulncias de reanimao e consistia
em injectar produtos de que no tenho o nome, porque no sou mdico, e em dar ordens muito mais tcnicas aos mdicos
sobre a interveno necessria para tratar as vtimas do calor (Assemble Nationale, 2004, Tomo II, 48). 18 Nos acontecimentos de agosto de 2003 foi modesto o papel desempenhado pelas estruturas da proteo civil e,
nomeadamente, pelo Centro Operacional de Gesto Interministerial de Crises. Segundo o general Jacques Debarnot, Ao
princpio no tnhamos qualquer relao directa com o COGIC. O recurso Brigada de Sapadores-Bombeiros de Paris
compete ao prefeito da polcia. Ns no temos qualquer relao hierrquica com o COGIC. No obstante esse facto,
envimos para l, todos os dias de manh, a sntese das nossas actividades, tal como cada zona da defesa o faz em relao ao
conjunto da Frana. Mas no temos contactos institucionais com o COGIC. Jean-Paul Proust, chefe da polcia de Paris,
declarou que, apesar de manter o contacto com pessoal do Ministrio do Interior, os acontecimentos no estavam abrangidos
pelos dispositivos da defesa civil: No entanto, no caso da cancula estamos perante um problema de segurana sanitria que
no se encontra abrangido pelo dispositivo [dos planos da proteo civil] (Assemble Nationale, 2004, Tomo II, 27). 19 De acordo com Franois Michaud Nrard (2007: 68-78), esta situao de excepo prolongou-se de agosto a setembro de
2003. Nrard descreve em pormenor a ao desenvolvida pelos servios funerrios durante o perodo de excepo dos meses
de agosto a setembro de 2003 e que constou de contactos com os familiares, apoio psicolgico, apoio logstico e
procedimentos tcnicos especializados. 20 Os enterramentos comearam a 22 de agosto. O livro de Victor Collet (2004) constitui um trabalho notvel sobre os
esforos para identificar os que foram enterrados como cadveres no reclamados e para lhes reconstituir as biografias.
25
Morgue improvisada em Renjuis aps onda de calor mortal21
No que diz respeito aos domnios epidemiolgico e da sade pblica, os dispositivos
existentes no previam a incluso de dados das agncias funerrias nem das certides de bito
que permitissem calcular os ndices de morte relacionados com o calor, tal como no previam
mecanismos de monitorizao em caso de crises de sade pblica (Abenhaim, 2003).
Os meios de comunicao e a crise
Tanto a imprensa escrita como as cadeias de televiso foram cruciais para a amplificao dos
acontecimentos e para o espoletar da crise poltica. Durante o ms de julho e nos primeiros
dias de agosto registaram-se algumas notcias sobre o impacto do calor na agricultura em
cidades e pases estrangeiros, bem como sobre o impacto na produo de energia elctrica,
nos incndios florestais e na sade da populao, mas o primeiro relato de bitos relacionados
com o calor foi publicado no jornal Le Parisien na manh de Domingo, dia 10 de agosto.22
Quem primeiro alertou para o facto foi Patrick Pelloux, mdico de urgncias de um
hospital e presidente da Associao de Mdicos de Urgncias Hospitalares de Frana.
Conhecido pelas suas posies crticas relativamente s polticas oficiais para o sector da
sade, no prprio dia em que o Parisien d conta de uma sobremortalidade possivelmente
relacionada com o calor, Pelloux repete, em pleno noticirio das oito da noite do canal TF1, as
suas afirmaes perante uma audincia nacional. Essa presena televisiva fez com que todos
os meios de comunicao se interessassem pelo caso, assinalando o incio de uma cobertura
Existe tambm um documentrio pungente, intitulado Aos esquecidos da cancula. Investigao sobre as vtimas da cancula
de agosto de 2003, realizado por Danile Alet, que assenta numa lgica prxima da de Collet. 21 Na legenda desta fotografia pode ler-se: Morgue improvisada em Rungis na sequncia da mortfera cancula. 22 Para uma excelente e pormenorizada anlise das notcias surgidas nos meios de comunicao a propsito da cancula, das
diferentes lgicas inerentes imprensa e TV, e das diferentes prioridades e critrios editoriais, veja-se Brard (2004).
26
intensa e de uma crise que s estaria terminada nos finais de setembro.23 Na televiso, Pelloux
afirmou que, nos ltimos quatro dias, haviam morrido nos hospitais cinquenta idosos devido a
golpes de calor, que esses bitos estavam a ser considerados mortes naturais pelas entidades
oficiais, que ele discordava dessa classificao e que a Direco-Geral de Sade se estava a
revelar completamente incapaz de lidar com os acontecimentos. Na sua opinio, a situao em
presena era a de uma verdadeira hecatombe.
Embora variasse de jornal para jornal, consoante as respectivas inclinaes polticas, o
tom geral das reportagens iria tender para o dramtico.24 A 11 de agosto, o conservador Le
Figaro ostentava o seguinte ttulo na primeira pgina: "Ao fim de uma semana, o calor
provocou a morte de cinquenta pessoas na Ile-de-France, afirmam as urgncias; A cancula
mata em Frana". O Libration, de esquerda, dava conta, pela voz de Patrick Pelloux, da
insuficincia dos meios disposio dos mdicos de emergncia para lidar com a afluncia de
pessoas nas urgncias (11 de agosto 2003).
Contrariamente ao que afirma a maior parte das anlises dos acadmicos sobre os relatos
dos acontecimentos publicados na imprensa, consideramos que se deve dar especial ateno
aos boletins informativos da agncia France Press, visto terem uma distribuio nacional e
uma perspectiva mais equilibrada e semi-oficial. No dia 11 de agosto a agncia assinalava o
incio de uma polmica em torno das consequncias, para a sade pblica, da cancula.
Franois Hollande, secretrio-geral do Partido Socialista, acusava o governo de passividade e
inrcia perante a crise. Um boletim da agncia assinalava o surgimento de um novo actor na
cena pblica, as Pompes Funbres, que anunciavam um aumento de 20% de sobremortalidade
em Frana. Esta entidade iria ser a fonte de informao mais fidedigna durante todo o ms de
agosto, gerando um permanente foco de tenso com o fluxo de informao governamental,
com nmeros sempre aqum dos revelados pela agncia funerria.
A propsito desta polmica, os conservadores Le Figaro e La Croix iriam pr-se ao lado
do governo, considerando-a "estril" (Jean-Marc Gonin, em editorial do Le Figaro de 12 de
agosto), ou grotesca (Jean-Luc Macia, editorial do La Croix do mesmo dia). Citam, em seu
apoio, as declaraes do socialista Bernard Kouchner contra aqueles que acusam o governo
j que, em sua opinio, no est nas mos do governo mudar as condies atmosfricas ou
mandar no Vero , conferindo desse modo aos acontecimentos um enquadramento da
ordem do natural e no do poltico.
Ao mesmo tempo, mobilizava-se o conhecimento especializado com vista a promover
uma compreenso mais profunda dos acontecimentos. Tanto na edio do Libration como na
do Le Figaro do dia 12 de agosto, o Professor Jean-Louis San Marco, director do laboratrio
de sade pblica de Marselha, recordava a onda de calor vivida na cidade no ano de 1983 e os
590 mortos de ento, propondo algumas medidas simples de sade pblica destinadas a
responder crise presente.25
23 A melhor fonte no que se refere anlise das fases da crise (vigilncia; alerta; discusso; polmica; o processo; crise e
normalizao) e ao papel dos que a denunciaram o trabalho de Chateauraynaud e Torny (1999). 24 Muitos analistas acusam os meios de comunicao dessa tendncia para dramatizar os acontecimentos e de, atravs do seu
discurso exacerbado e sem sentido do equilbrio, emitirem juzos e porem-se caa dos responsveis em plenas situaes de
crise (Law, 2003: 4). A produo do discurso dos meios de comunicao tem a sua dinmica e a sua lgica prprias,
margem de qualquer princpio de equilbrio. Para uma anlise excelente da dinmica dos meios de comunicao em Frana e
da sua lgica de produo interna, veja-se Lemieux (2000). Sobre a importncia dos meios de comunicao na construo do
sofrimento distncia e na mobilizao do pblico, veja-se Boltanski (2001; 1999). A propsito do Katrina, Sims fala de um
eco emocional induzido pelos meios de comunicao, associado destruio das infra-estruturas e ao desaparecimento dos
grandes equipamentos sociotcnicos (2007a; 2007b). 25 Medidas que incluam contactar regularmente com os idosos a viver ss e refresc-los com panos hmidos, de forma a
mant-los hidratados.
27
No dia 13 de agosto a France Press emitiu uma nota de imprensa intitulada "Aumento
espectacular do nmero de mortos numa Frana esmagada pela cancula", em que os servios
oficiais admitiam que os bitos j ascendiam s centenas. Esta incerteza quanto ao nmero de
bitos, aliada ao seu aumento dirio e quantidade de verses diversas e contraditrias,
contribuiu para projectar uma imagem de confuso das entidades oficiais e de uma ausncia
de controlo e acompanhamento por parte do Estado.
Ao cabo de muitas crticas e uma vez regressado das frias de Vero, o Primeiro-Ministro
Jean-Pierre Raffarin accionou o Plano Branco. Destinado a casos de catstrofe ou desastre,
este plano consiste na disponibilizao de camas suplementares nos hospitais e na convocao
de pessoal mdico, de enfermagem, e outros profissionais dos servios hospitalares.26
Na sua edio de 12 de agosto, o Le Figaro trazia um artigo da autoria do famoso
historiador Emmanuel Le Roy Ladurie intitulado Os caprichos do termmetro marcaram
muitos momentos do nosso passado, provocando fome, epidemias e at revolues;
Canculas, motor da Histria?. Para alm do conhecimento mdico e epidemiolgico
especializado, abria-se, assim, espao para a perspectiva histrica de longa durao. O artigo
em causa inseria a presente crise num processo longo de alteraes climticas, relativizando-
lhe o impacto ao mesmo tempo que alertava para os efeitos nocivos das alteraes climticas
de alcance global.
O nmero de mortos continuou a subir, e a 14 de agosto a France Press emitia uma nota
de imprensa que referia mais de trs mil mortos causados pela cancula, acrescentando que o
governo estava agora "na defensiva". Acusado por muitos de insensibilidade e de
impreparao para fazer frente crise27, Jean-Franois Matti, ministro da Sade, comeou a
fazer referncia epidemia de calor nas suas intervenes pblicas. Esta referncia onda de
calor em termos de epidemia, uma classificao inaudita em casos semelhantes noutros
pases, teve duas consequncias: naturalizou os acontecimentos e ampliou a escala da sua
ocorrncia, justificando a sua imprevisibilidade e o transbordar do sistema de sade pblica.28
A 15 de agosto, o Partido Socialista mudou de estratgia poltica relativamente aos
acontecimentos. Nomeou para porta-voz especial o presidente da cmara de Dijon, Franois
Rebsamen, que suavizou as crticas ao governo ao declarar que este no era responsvel pelo
calor mas que deveria responder pela reaco tardia crise por parte dos servios pblicos (Le
Figaro, 15 de agosto). A ideia seria reforada na mesma edio do jornal pelas declaraes de
alguns mdicos das urgncias, segundo os quais centenas de mortes poderiam ter sido
evitadas se se tivesse actuado mais cedo junto dos idosos.
26 O Instituto Francs para a Vigilncia da Sade Pblica emitiu um comunicado imprensa em que estimava em mais de um
milhar o nmero de mortos em resultado da cancula (Le Figaro, 14 de agosto). 27 O ministro foi criticado por, no dia 11 de agosto, dar uma entrevista sobre a crise de sade pblica ao noticirio das oito da
TF1 a partir de sua casa de frias e envergando um plo, exibindo desse modo uma pose relaxada que contrastava com a
seriedade da situao. Delphine Brard (2004: 49-53) descreve em pormenor este "erro de comunicao", bem como a reao
dos jornalistas e as estratgias falhadas dos assessores de imagem do ministro. 28 Aquilo que, no depoimento de Lucien Abenhaim (Assemble Nationale, 2004: 67), parece aos relatores uma discusso
esotrica e uma preocupao pessoal ou seja, saber se os casos de bitos reportados constituam um episdio endmico ou
uma epidemia seria, afinal, algo de crucial no s para poder interpretar as mortes e levar os actores pblicos a agir e a
intervir, mas tambm como meio de justificar a reao tardia destes em face dos acontecimentos. No seu livro (2003: 31-32),
Lucien Abenhaim explica porque pensou tratar-se de uma epidemia. Menciona o timo grego epi+demos, que significa,
literalmente, sobre (epi) as pessoas (demos), e afirma que, para os cientistas modernos, "[] uma epidemia um aumento
brusco e anormal do nmero de doentes, independentemente da causa cancro, sida, obesidade []". Para Abenhaim, a
cancula foi um fenmeno excepcional pela intensidade e pela durao, que matou maciamente num curto perodo de tempo.
O autor conclui dizendo: "A Frana confrontou-se, efectivamente, com uma epidemia de golpes de calor neste Vero de
2003, na aceo antiga e moderna do termo". Esta aplicao abrangente do termo epidemia no consensual na comunidade
cientfica, como veremos adiante.
28
A opinio generalizada de que o governo devia a responsabilidade de enfrentar a crise
seria explicitada por Stphane Rozs, directora da agncia de sondagens CSA Opinion, numa
entrevista dada ao Libration (edio de 15 de agosto). Em sua opinio, era responsabilidade
do governo assumir o princpio da precauo e impedir todo o tipo de riscos.29 Rozs
recordou tambm que fora do Presidente da Repblica, Jacques Chirac, a iniciativa de
transformar em problemas pblicos questes de sade como o cancro, a deficincia e a
mortalidade rodoviria. Stphan