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 · CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Carman, Patrick C283c A casa do poder / Patrick Carman; tradução de Roberto

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A CASA DO PODER

Patrick Carman

A casa do Poder

Tradução de ROBERTO MUGGIATI

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Carman, Patrick C283c A casa do poder / Patrick Carman; tradução de Roberto Muggiati. — Rio de Janeiro: Galera Record, 2009. (Atherton; 1) Título original em inglês: ATHERTON — THE HOUSE OF POWER Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Impresso no Brasil Tradução de: The House of Power ISBN 978-85-01-07935-0 1. Romance americano. I. Suassuna, Edmo. II. Título. III. Série. 09-1798 CDD: 813 CDU: 821. 111(73)-3

Para o povo de Aduana Dos www.agros.org

SUMÁRIO

PARTE 1 1. Um garoto com um segredo 2. Procure por Atherton 3. Regras feitas para serem quebradas 4. Começa a mudança 5. Samuel 6. Um livro de coisas secretas 7. Uma espiã com uma funda 8. A Aldeia dos Coelhos 9. Perigo no pomar 10. O experimento do Sr. Ratikan 11. A revelação do dr. Kincaid PARTE 2 12. Um mundo trêmulo 13. Figos negros e bolhas 14. Folhas secas e pó laranja 15. O interrogatório de sir Emerik 16. Horácio deixa seu posto 17. Vibrações e tremores 18. O som de ossos quebrando 19. A ideia do pastor 20. Limpadores 21. A surpresa de sir Emerik 22. Um velho de orelhas caídas 23. Um prato de Preto e Verde 24. Dois mundos colidem 25. O Planeta Sombrio PARTE 3 26. Um estranho no pomar 27. A Casa do Poder 28. A força da gravidade 29. Destrancando o cérebro do dr. Harding 30. Samuel se explica 31. O espírito de um menino persiste 32. A Cova de Mead 33. Inversão FLUXO DE DADOS SUPLEMENTARES DO CÉREBRO DO DR. HARDING

Depois de dias e noites de intenso labor e fadiga, consegui descobrir a causa da geração e da vida. Mais ainda. Tornei-me capaz de dar animação à matéria inerte.

DR. FRANKENSTEIN FRANKENSTEIN, 1818 MARY SHELLEY

PARTE

1

— Não vai demorar muito, agora. As coisas já estão co-meçando a mudar.

Houve uma longa pausa, preenchida apenas por estática,

seguida de uma resposta distante.

— Eu sei, eu sei. Espero que não tenhamos seguido rápido demais. Não estou seguro de que já estejam prontos.

— Por que você sempre torna a falar sobre essa bobagem?

Já esperamos demais.

— Concordo. É só que... Não temos idéia do que vai acontecer.

— Este sempre foi o seu problema, Luther. Você é indeciso, sempre vacilante. Às vezes me faz ponderar por que o mantive aqui por es-

tes longos anos.

— Uma coisa é certa — algumas pessoas não vão gostar nem um pouco.

Houve um som estranho vindo do outro lado da linha, como se um momento secreto de uma risada silenciosa

tivesse ocorrido.

— Certamente — haverá algumas pessoas infelizes. Acredito que você vai ser uma delas.

— O que quer dizer com isso?

— Luther, não pode realmente ter imaginado a sério que eu o dei-

xaria usar minha criação para seu próprio proveito.

A voz se apagou, substituída pelo estalido e pipocar de e-letricidade no ar. E então voltou.

— Você sabe tão bem quanto qualquer um que este lugar é meu.

Eu o formei. E não vou me separar dele. Não vou permitir que você se intrometa em meu negócio.

— Dr. Harding, do que está falando, afinal?

— Isto me pertence. É minha criação e farei dela o que bem quiser. Acredito que já aturei o bastante todos me dizendo o que posso e o

que não posso fazer. Nosso tempo já se esgotou, Luther.

— Que pretende fazer, Maximus? Não pode se dissociar do resto do mundo.

De repente houve uma quietude, seguida de uma respira-

ção ofegante e do som de objetos pesados sendo deslo-cados.

— Adeus, Luther.

— Maximus? Maximus!

A estática jorrava do fone.

E então a linha ficou completamente muda. O que aquilo significava? Teria ele enlouquecido?

O dr. Luther Kincaid olhou para cima e sussurrou ao céu da noite.

— Que Deus nos perdoe por nossa tresloucada criação de um novo

mundo.

CAPÍTULO

1 UM GAROTO COM UM SEGREDO

No pomar do Sr. Ratikan vivia um garoto. Não era muito abastado, mas suas necessidades eram supridas e ele se sentia feliz na maior parte do tempo. Seu nome era Edgar.

Alguns diriam que Edgar era magricela como todos os outros garotos que trabalhavam no pomar, mas essas pessoas estariam certas apenas em parte, pois todos sabem que existem dois tipos de crianças magricelas: algumas são frágeis como papel, enquanto outras são ágeis e resistentes como um fio de arame. Edgar era do tipo resistente, forte e veloz como um coelho.

Bem no coração do pomar, uma densa abóbada de folhas pendia em baixa altura, e no calor do dia era um lugar fresco e tranquilo para se deitar na grama e tirar um cochilo. Mas Edgar não era do tipo que gostava de esca-par para cochilar sob as árvores como alguns outros. Era muito mais provável encontrá-lo fazendo alguma traves-sura, que é exatamente a ocasião na qual o encontramos no momento em que nossa história começa.

Em algum lugar silencioso do pomar, Edgar vinha se balançando impetuosamente para a frente e para trás em um dos galhos de uma árvore, tentando ganhar velo-cidade suficiente para se arremessar por sobre o caminho de grama até alcançar um galho a 1,5m ou mais de distân-

cia, no outro lado. Por duas vezes, Edgar se soltou muito tarde e voou pelo ar com os pés projetados para a frente, aterrissando de costas no meio do caminho com um ter-rível baque seco e duro.

Sem se intimidar, Edgar fez uma terceira tentativa em que se inclinou pelo ar tão rapidamente que acabou se chocando com o tronco da árvore e sendo recompensado com um sangramento no nariz.

A balbúrdia chamou a atenção do proprietário do pomar, o Sr. Ratikan, um homem alto e corcunda que es-tava sempre determinado a acabar com a diversão de Ed-gar.

Edgar ainda estava no meio do maior impulso que tinha atingido até então, roçando levemente nas folhas da árvore com os braços enquanto ia para a frente. Ao ba-lançar para trás, o Sr. Ratikan golpeou os pés descalços de Edgar com sua bengala.

— Venha já aqui neste instante! — gritou o ho-mem, furioso. O Sr. Ratikan tinha a pele branca como giz e sua boca formava uma carranca permanente, fazendo seus lábios finos e seu bigode comprido parecerem nada mais que fitas vermelhas e marrons ao redor de uma boca infeliz.

A bengala falhara na tentativa de interromper Ed-gar. Balançando os pés bem alto no ar, Edgar se soltou, abanando braços e pernas. Desta vez ele conseguiu segu-rar o galho no outro lado. Mas, neste exato momento, o galho rompeu e ele caiu no chão.

Isto foi um grande azar para Edgar, já que nada deixava o Sr. Ratikan mais irritado do que quando alguém danificava uma das preciosas árvores de seu pomar.

— Agora você conseguiu! — gritou o Sr. Ratikan, cutucando as costelas de Edgar com a bengala.

— Só estava me divertindo um pouco antes de vir encontrá-lo — disse Edgar com a voz rouca e seca, en-quanto tentava se esquivar da bengala. Ele se colocou de pé e correu para trás do tronco em busca de proteção, limpando um pouco o nariz sujo de sangue.

A bengala do Sr. Ratikan se chocou contra o tronco da árvore, errando por pouco a cabeça de Edgar.

— Vá trabalhar com as mudas de árvores, e não pare até completar vinte!

Ele golpeou a árvore com a bengala mais uma vez e Edgar pulou para trás.

— Se eu pegá-lo brincando nas árvores mais uma vez, nada de jantar por uma semana!

Edgar calculou o espaço sobre o qual tinha saltado. Ainda que tivesse que trabalhar mais uma hora por seu mau comportamento, a façanha tinha valido a pena.

— AGORA! — gritou o Sr. Ratikan, dando panca-das e mais pancadas na árvore com sua bengala, esperan-do atingir um dos dedos do garoto.

Edgar correu o mais rápido que pôde por um ca-minho sinuoso, que se estendia por sob a sombra do po-mar, até fugir da vista do Sr. Ratikan. O que fiz lá atrás foi algo displicente, admitiu para si mesmo, apesar de ter se di-vertido. Não hasta manter os olhos atentos. Alguém pode ver o que estou fazendo.

Edgar diminui o passo ao chegar ao trecho de ár-vores mais antigas, onde os galhos eram grandes e longos. Pequenas porções de luz eram projetadas através das fo-lhas e ele tentava agarrá-las enquanto avançava. Edgar se divertia facilmente e daria um bom amigo, mas permane-

cia sozinho por boa parte do tempo. Ele era um garoto com um segredo, e o guardava bem.

Edgar seguiu pelo caminho cheio de curvas até a abóbada de árvores se tornar menos densa. Ele saíra sob a plena luz do dia diante de um rochedo íngreme que avan-çava tão alto rumo ao céu que era impossível ver até onde ia. Abaixo da parede lateral, uma cachoeira colidia com o solo, num estrondo, cheio de energia, proporcionando a Edgar uma visão familiar logo adiante. Diversos homens ficavam ao redor da queda d’água, protegendo-a de qual-quer um que quisesse se aproximar fora da vez. Enquanto três dos homens permaneciam em alerta, outros raciona-vam a água em pequenos baldes de madeira para uma fila de aldeões. Havia três cachoeiras semelhantes caindo do topo do rochedo, mas esta era a única próxima ao pomar. As outras ficavam bem longe, em lugares que Edgar nun-ca vira.

A distribuição meticulosa da água era um dos pro-blemas de se viver na Terra Média, mas Edgar achava que era melhor do que viver na Planície logo abaixo, onde o suprimento de água se limitava ao pouco que espirrava da beira da Terra Média. Era difícil imaginar que alguém lá embaixo pudesse sobreviver por muito tempo. No mundo de Atherton, os que habitavam nas Terras Altas controla-vam o fluxo da água e podiam fazer o que quisessem com ele.

De repente ouviu-se o barulho de um galho que-brando em algum lugar próximo no pomar. Edgar conge-lou, pensando no que faria caso o Sr. Ratikan surgisse das sombras novamente, balançando sua bengala. Eu deveria saber que ele viria atrás de mim, Edgar pensou arrependido.

— Você tem galhos e folhas presos no cabelo — disse uma vozinha, vinda de trás de uma árvore.

De início, Edgar sentiu-se aliviado por não ser o Sr. Ratikan, mas não ficou de todo satisfeito ao se dar conta de quem falava com ele.

— Saia daí, Isabel. Uma cabeça com cabelos desgrenhados e sujos

emergiu de trás do tronco da árvore, seguida por uma tes-ta morena e finalmente por um olho escuro com uma so-brancelha grossa pendendo sobre ele.

— O Sr. Ratikan te derrubou de novo? Ele te acer-tou com a bengala horrível?

Como sempre, Edgar ignorou as perguntas dela. — Por que você sempre fica me seguindo, Isabel?

— Edgar balançou a cabeça para a frente e para trás de modo a livrar-se dos detritos em seu cabelo, mas os galhos e folhas apenas oscilaram para lá e para cá como animai-zinhos agarrados ao ninho.

— Posso tirá-los da sua cabeça — disse Isabel, sal-tando de trás da árvore. Ela era pequenina se comparada a Edgar, além de mais jovem e magra, de modo que Edgar pensava que poderia parti-la ao meio se quisesse.

Edgar removeu as folhas e galhos de seu punhado de cabelos castanhos e se virou para ir embora.

— Ah, você não pode simplesmente ir embora — disse Isabel. — Precisa me contar o que aconteceu. O Sr. Ratikan o atirou no chão? É por isso que havia folhas no seu cabelo?

Edgar estava prestes a ralhar com a garota como um irmão mais velho faria quando sentiu um leve estron-do debaixo dos pés. Isabel também o sentiu e os dois permaneceram quietos, tentando compreender o que se

passara. Isto já tinha acontecido antes — este ligeiro tre-mor do solo no pomar — e por isso os dois não ficaram tão surpresos. Mas, desta vez fora um pouco mais forte, como se alguém estivesse batendo num tambor no chão abaixo deles, tentando chamar sua atenção.

— Meu pai diz que não é nada — disse Isabel —, mas é meio estranho, não é?

A sensação parou e Edgar começou a andar sem responder. Estava ficando tarde e ele ainda tinha vinte árvores para podar.

— Conversaremos hoje à noite durante o jantar — disse Isabel. — Seja lá o que o Sr. Ratikan tenha feito a você, este será nosso segredinho.

Ela correu de volta para o pomar, satisfeita apenas por deixar sua imaginação inventar loucuras sobre como o Sr. Ratikan tinha batido em Edgar com a bengala.

Edgar passava a língua pelos lábios secos enquanto andava pela última pequena trilha rumo ao campo das mudas. Ele teria de esperar até o jantar para poder beber um copo de água, mas Edgar havia se acostumado a esta rotina — todos haviam — e em pouco tempo seus pen-samentos se fixavam em outras coisas.

Edgar olhou para além dos limites do pomar. Não raro sonhava acordado com a forma que seu mundo teria quando visto de longe, e havia elaborado uma imagem bastante precisa em sua cabeça. Atherton se dividia em três níveis circulares, cada um mais vasto do que o que estava acima. A extensa planície ficava bem lá embaixo. Edgar pensava que se uma pessoa despencasse da beira da Planície, cairia para sempre. A Terra Média, onde vivia Edgar, era um grande platô no topo de uma rocha bem íngreme que brotava do meio da Planície. E havia ainda as

Terras Altas, o lugar mais misterioso de todos. Elas esta-vam no alto dos imponentes despenhadeiros localizados no centro da Terra Média. As pessoas que moravam na Terra Média muitas vezes imaginavam o que poderiam encontrar nas Terras Altas. Havia rumores sobre animais gigantes e água em abundância, sobre pessoas poderosas e lugares lindos.

Edgar também se mostrou curioso sobre as Terras Altas desde o princípio, embora nunca tivesse ido lá. Via-jar entre os três níveis era estritamente proibido. Ninguém da Terra Média sabia o que se passava no topo dos des-penhadeiros, já que ninguém jamais fora convidado a ir lá.

CAPÍTULO

2 PROCURE POR ATHERTON

Quando Edgar terminou de podar sua vigésima muda, o final da tarde já tinha caído sobre o pomar. A poda era uma das tarefas que mais consumia tempo, ainda que, fe-lizmente, não fosse muito difícil, já que Edgar precisaria de energia quando a noite chegasse. Assim que terminou com as mudas, partiu em direção à casa do Sr. Ratikan para sua ração noturna de água e comida.

Ao chegar para o jantar, todos os outros trabalha-dores do pomar já estavam em fila. Nem todos da aldeia trabalhavam no pomar, pois havia uma grande quantidade de outras tarefas a serem feitas. Havia coelhos e ovelhas que precisavam ser tratados e figos das árvores a serem processados. Ossos de animais e restos que não eram co-midos ou usados na criação de coisas úteis tinham de ser levados à beira do penhasco e jogados na Planície junto a outros entulhos da Terra Média. Mas todo o trabalho ces-sava quando chegava a hora da janta no pomar, e todos iam à casa do Sr. Ratikan.

Isabel viu Edgar quase que de imediato. Acenou para que se juntasse a ela na fila, mas Edgar tentou igno-rá-la. Logo ela saiu do lado de seu pai e foi para o fim da fila, onde começou a incomodar Edgar imensamente com uma série de perguntas às quais ele não queria responder.

— Aquele Sr. Ratikan é terrível, não acha? Você bebeu água hoje? Eu consegui um pouco, mas quase nada. Em que será que iremos trabalhar amanhã? Você acha que iremos para o pomar do terceiro ano? O pomar do tercei-ro ano é o meu favorito.

Isabel continuou falando até que os dois chegaram ao início da fila e ela passou a fazer algumas das mesmas perguntas para o Sr. Ratikan, enquanto este olhava para os lados, enchia a tigela e a xícara dela e tentava fazê-la seguir adiante. O Sr. Ratikan não deixava que ninguém subisse nos degraus que levavam a uma pequena varanda diante de sua porta, pois entrar em sua casa era proibido. Isto tornava difícil livrar-se de Isabel sem sua bengala e agitá-la na direção dela.

— Por que tem sempre que tentar acertar as pesso-as com esta sua bengala medonha? — disse Isabel, fran-zindo as sobrancelhas escuras.

O Sr. Ratikan respondeu contraindo o rosto numa expressão tão assustadora que Isabel agarrou sua xícara e tigela e correu para longe da casa.

Quando Edgar chegou ao início da fila, a atenção do Sr. Ratikan foi desviada. Um ruído estranho vinha da direção para a qual o Sr. Ratikan estava olhando e Edgar se virou para ver o que era. Um homem que se sentia mal apoiava-se numa árvore. Estava inclinado como se tentas-se vomitar, ainda que nada saísse de sua boca.

— Preste atenção, garoto! — Edgar virou-se para a varanda e encontrou seu zelador olhando diretamente pa-ra ele. Aparentemente, o Sr. Ratikan já tinha visto o bas-tante do homem nauseado no pomar. Ele olhou de soslai-o, tentando determinar o mínimo que poderia oferecer ao garoto sem comprometer um bom dia de trabalho.

— Você terminou com as mudas? — perguntou, esfregando a ponta do bigode oleoso com uma das mãos e apontando a bengala para o garoto com a outra.

— Fiz vinte delas — disse Edgar. Ele era realmente muito rápido, provavelmente o melhor trabalhador que o Sr. Ratikan tinha.

— Bom — disse o Sr. Ratikan, abaixando a bengala para longe do rosto de Edgar. — Amanhã você pode vol-tar e fazer mais trinta.

Edgar entregou a ele uma pequena xícara de ma-deira. O Sr. Ratikan a mergulhou cuidadosamente num balde d’água que estava na varanda devolveu a xícara a Edgar, com um pouco do que parecia massa de farinha e uma fatia de carne de carneiro seca e bem passada, a única maneira como o Sr. Ratikan a preparava. Nove entre cada dez refeições que Edgar comia no jantar continham carne de carneiro sem gosto. A décima geralmente nem chegava a ter carne.

Edgar sentou-se sob uma árvore, distante dos ou-tros, como era de hábito. A massa de farinha era a melhor parte da refeição e Edgar a saboreava, dividindo-a em pe-quenos pedaços, e comendo um de cada vez com as mãos sujas. A massa — assim como acontecia com muitos ou-tros artigos importantes na Terra Média — vinha das fi-gueiras do pomar. Se as árvores fossem derrubadas após a terceira colheita e rachadas, um caroço esponjoso e ala-ranjado podia ser facilmente extraído do interior. Misturar a substância com um pouco da água a transformava em uma massa que tinha gosto de cacau.

Quando o último pedaço da massa se foi, Edgar deu um golinho no que restou em sua xícara de madeira e afastou-se silenciosamente da casa do Sr. Ratikan.

Assim que ficou fora do alcance de visão dos ou-tros, Edgar enfiou a mão num bolso grande na parte da frente de sua camisa e de lá tirou um figo. Não era um fi-go comum, entretanto — era um figo morto que caíra de uma árvore. Tais figos eram escorregadios, enegrecidos e pesados, mais ou menos do tamanho da palma da mão. A maioria era recolhida e utilizada em fogueiras, pois produ-ziam um fogo de temperatura alta e que durava por mais tempo nas noites frias, não fazendo tanta fumaça. Algu-mas das crianças gostavam de inventar jogos com eles, mas Edgar tinha seus próprios planos sobre o que fazer com os figos mortos.

Edgar tirou do bolso da camisa uma funda feita de filamentos finos e compridos de cascas trançadas das ár-vores do segundo ano, amarrados a cada lado de um qua-drado de pele de coelho, que ficava no meio. Ele duvidava que o Sr. Ratikan permitiria uma funda, já que não era trabalho de Edgar retirar as cascas das árvores. Ele nunca tinha mostrado a ninguém por medo de que a tomassem e depois o punissem por usá-la.

Edgar olhou ao redor para ter certeza de que não havia ninguém por perto. Depois, escolheu um tronco a distância como alvo, carregou a funda com o figo negro e se ajoelhou no pomar. Ele passou a pesada bola por sobre a cabeça. À medida que ia cada vez mais rápido, fazia um zumbido impressionante até que — plec! — ele soltou um dos fios. O figo negro voou pelo pomar, acertou a árvore a qual tinha mirado e ricocheteou para fora de vista.

Edgar correu para a árvore e examinou a marca que o figo tinha deixado nela, escondendo a funda de volta em seu bolso ao sair. Ele encontrou o figo negro e o colocou no bolso lateral da calça, pois, embora tivesse mais uma

dúzia escondida no pomar, a maioria dos figos caídos era levada pelo pessoal da aldeia.

Às vezes Edgar pensava em demonstrar sua mira aos outros garotos que trabalhavam no pomar, mas não passava muito tempo com eles. Os outros tinham famílias na aldeia e quando terminavam o trabalho iam embora ra-pidamente, deixando Edgar sozinho quando a noite caía. Depois de um certo tempo, era como se Edgar tivesse se tornado invisível para aqueles que o cercavam. Ele gosta-ria de fazer mais amigos, mas tinha receio de que desco-brissem o que fazia à noite.

Uma hora depois Edgar já tinha atravessado o po-mar até o outro lado, abrindo caminho solitariamente até uma área muito remota do despenhadeiro que separava a Terra Média das Terras Altas. Era um local calmo, distan-te do pomar, da aldeia e da cachoeira. Já ficava tarde, e Edgar caminhava tocando a parede do despenhadeiro en-quanto avançava, suas mãos calejadas deslizavam pela su-perfície irregular em idas e vindas. Edgar vinha há anos até este lugar para praticar enquanto ninguém observava. Noite após noite, toda noite. Ele viera até aqui por outro motivo também. Ele procurava um objeto — um objeto escondido — e para encontrá-lo era necessário escalar a parede do despenhadeiro, algo que era proibido fazer.

A esta hora em Atherton, o despenhadeiro ficava escondido sob um manto de luz cinzenta. Isso duraria por muitas horas, quase até a noite, e ajudaria Edgar a se manter oculto enquanto prosseguia com seu plano. Senti-nelas caminhavam à noite próximo ao sopé do despenha-deiro e procuravam por transgressores, mas Edgar era um especialista em se mover sem ser notado. O povo das Terras Altas tinha proibido estritamente as escaladas —

especialmente perto da cachoeira — e Edgar estaria numa grande encrenca se fosse descoberto. Corriam rumores de que, se alguém fosse apanhado escalando, teria as duas pernas quebradas ou então seria jogado da beira do mun-do para a Planície.

Não demorou muito até que Edgar subisse 15 me-tros parede acima, rápido como uma aranha escalando lu-gares inimagináveis bem acima do chão. O despenhadeiro era perfeitamente vertical, mas era cheio de escarpas às quais Edgar poderia se agarrar sem muita dificuldade. Ti-nha a seu favor a luz fraca da noite, que lhe permitia en-xergar a superfície de pedra diante dele. A luz rastejava pelas beiras do mundo de Atherton à medida que este se virava contra o sol, e a escuridão absoluta vinha apenas por um breve momento na parte mais escura da noite.

Edgar escalou ainda mais para o alto, com o corpo empoleirado 30 metros acima do chão e nenhuma corda para segurá-lo caso caísse. Chegou a uma área em que nunca havia estado e tentou lembrar-se dela.

Edgar fora criado como um garoto do pomar, mas nem sempre estivera sozinho no mundo. Possuía uma memória fragmentada de tempos remotos, tempos que precediam o pomar. Tivera um pai, disso ele sabia. Mas Edgar tinha 11 anos agora, e a cada ano as memórias tor-navam-se mais pálidas. Tudo de que se recordava estava concentrado numa conversa com um homem. Ele estava lá — no despenhadeiro — e tinha apenas três ou quatro anos quando as palavras foram ditas. O homem estava de joelhos, olhando nos olhos de Edgar. Não havia rosto al-gum na memória de Edgar — apenas os olhos castanhos e gentis, um cheiro de cinzas no ar e as palavras das quais não se esqueceria:

— Vê esta parede de pedras, pequeno Edgar? — Vejo. — Vai se lembrar deste lugar, não vai? — Vou. — Escondi algo lá em cima, entre as rochas, onde ninguém

pode encontrá-lo. — Bem lá em cima? — Sim, Edgar, bem lá em cima. — E o que escondeu? — Algo que irá chegar a você, caso espere por isso. Procure

por Atherton. — Mas o que foi que escondeu? A cada ano as lembranças de Edgar ficavam mais

escassas, mesmo que reconstituísse a cena inúmeras vezes em sua mente. De uma coisa ele tinha certeza — foi pou-co tempo depois deste episódio que Edgar se encontrou sob os cuidados do Sr. Ratikan.

“Algo que irá chegar a você, caso espere por isso. Procure por Atherton.” Durante anos ele refletiu sobre o significado desta declaração enquanto se movia pela superfície do despenhadeiro. Quanto mais velho ficava, mais confusas se tornavam as palavras e ele começou a se indagar se as recordava direito. Procure por Atherton. Ele estava em A-therton — ou assim pensava — e considerava que isto significava que deveria procurar por todo lugar. Não era uma informação muito útil.

Mas chegamos à história de Edgar neste momento por um bom motivo. Naquela mesma noite Edgar escalou mais alto do que jamais havia escalado e chegou a lugares aos quais nunca tinha ido. Escalou desesperadamente, pois os problemas com o Sr. Ratikan vinham se tornando cada vez mais frequentes e o garoto se perguntava se seria

apanhado em breve. Seus dedos se agarravam em cada fenda e fissura das rochas enquanto avançava, até que, passadas mil noites de procura, o esperado aconteceu.

Sessenta metros acima do chão e com a escuridão o envolvendo, Edgar encontrou alguma coisa.

CAPÍTULO

3 REGRAS FEITAS PARA SEREM

QUEBRADAS A noite alta se aproximava e apenas alguns vestígios de luz persistiam. Descer o paredão seria ainda mais perigoso do que o normal. Edgar estava tremendo — não de medo ou de frio, mas de empolgação. Sempre fora um garoto firme e era perturbador sentir as pernas tremelicando.

Edgar tinha encontrado uma pequena abertura, pa-recida com uma gruta, do tamanho de sua mão esticada. De início ele se afastou dela, temendo que alguma criatura desconhecida se lançasse dali, o agarrasse pelo braço e nunca mais o largasse. Mas, mesmo sob a luz tênue, Edgar podia ver que tinha encontrado o que estava procurando.

Logo abaixo do buraco havia um símbolo gravado na rocha, como se alguém tivesse vindo com um objeto afiado e apressadamente esculpido a marcação no despe-nhadeiro. Edgar imaginou que, se pudesse sair de Ather-ton e olhar a distância, sua forma seria bem parecida com o símbolo à sua frente. Procure por Atherton. Finalmente ha-via encontrado o que o homem em sua memória tinha deixado para ele. Sentiu um calafrio de expectativa.

Edgar enfiou a mão no buraco e percebeu que não era muito fundo. Seu braço tinha entrado só até o coto-

velo e já tocava a rocha bruta. Tateou tudo em volta, se-gurando-se com o outro braço para não cair, e percebeu que o espaço se curvava para baixo.

Um novo arrepio o percorreu, quando ele conside-rou novamente a possibilidade de encontrar algo vivo no buraco. Só porque um segredo tinha sido deixado ali não significava que o local não pudesse ser utilizado como ca-sa para um monstro devorador de garotos. Um monstro com dentes e garras afiados. Tateou com cautela, moven-do a mão vagarosamente de um lado para o outro, mas ainda assim não encontrou nada.

Mudou de direção e, com um impulso a mais do ombro, conseguiu fazer com que o braço todo ficasse dentro do espaço. Desta vez, as pontas dos dedos tocaram em algo diferente. Não era pedra; era mais macio. En-quanto mexia agitadamente os dedos, o objeto se movia para a frente e para trás ao seu toque. Ele esperava que não estivesse vivo. Edgar agarrou e soltou pelo que pare-cia ser uma eternidade ao tentar envolver o artigo escon-dido com seus os dedos.

Ele arriscou soltar a outra mão do despenhadeiro e ficou na ponta dos pés, forçando o braço para dentro do buraco até que sua bochecha ficasse prensada contra a rocha. Acabou que a distância foi suficiente. Pelo menos tinha agarrado o objeto misterioso pelo qual vinha bus-cando há anos e o puxou para fora.

Ficou ao mesmo tempo extasiado e completamente devastado. Era um belo objeto, marrom e de couro com papel dentro. Era um livro. O livro não tinha muitas pá-ginas, mas estava cheio de palavras que entristeceram Ed-gar, não pelas coisas que diziam sobre honestidade, nos-talgia ou melancolia. As palavras entristeceram Edgar

porque ele não sabia ler, e tampouco qualquer outra pes-soa que vivesse na Terra Média.

Semanas se passaram e Edgar não retornou ao

despenhadeiro. Até onde se lembrava, era a primeira vez que se mantinha distante de lá por mais de um ou dois di-as. Mas não havia jeito de confortá-lo. Embora fosse jo-vem, a sensação era que o trabalho de toda sua vida — o trabalho de aprender a escalar e encontrar o que fora dei-xado para ele — tinha chegado a um fim triste e doloroso.

Dia após dia ele refletia sobre o livro que encontra-ra. À noite, quando todos já tinham deixado o pomar, ele folheava as páginas sob a luz minguante, tentando enten-der o que elas diziam. O livro não só estava repleto de pa-lavras, mas elas estavam escritas numa caligrafia confusa. Quem quer que tivesse escrito aquilo estava com pressa ou não aprendera a escrever muito bem.

Como este homem podia ter deixado algo tão inútil no despenhadeiro? Edgar tinha trabalhado tanto e se ar-riscado tanto apenas para encontrar uma terrível verdade no final — o tesouro que procurava lhe era inacessível de uma maneira que não havia escalada que pudesse supe-rá-lo.

Edgar se lamentou infinitamente sobre o que fazer com o livro. As regras da Terra Média eram claras e Edgar as tinha ouvido inúmeras vezes:

1. SE VOCÊ MANDAR COMIDA PARA AS TERRAS AL-

TAS, ELES LHE MANDARÃO ÁGUA. 2. NÃO DESPERDICE ÁGUA.

3. É PROIBIDO ESCALAR OU SE APROXIMAR DOS

DESPENHADEIROS. 4. SE ENCONTRAR UM LIVRO, ENTREGUE-O A UM

DOS GUARDAS PARA QUE SEJA ENVIADO IMEDIATAMENTE

PARA AS TERRAS ALTAS. NÃO QUEIME, DESTRUA OU

GUARDE O LIVRO. NÃO OLHE PARA SUAS PÁGINAS. EXIS-

TEM PESSOAS NA TERRA MÉDIA QUE NOS INFORMARÃO

CASO VOCÊ O FAÇA. Edgar refletira inúmeras vezes sobre essa última re-

gra. Para começar, como um livro poderia parar na Terra Média? Ninguém em Atherton sabia ler, exceto as pessoas nas Terras Altas. Isto o fazia se perguntar se era a única pessoa à procura do livro que encontrara escondido no despenhadeiro. Ele supôs, depois de pensar sobre o as-sunto, que alguma pessoa poderia caminhar pela borda das Terras Altas e acidentalmente deixar um livro cair pelo céu, fazendo-o voar como um pássaro com a asa quebra-da, com as páginas se rasgando enquanto descia. Ou, por razões que Edgar poderia apenas especular, talvez alguém escondesse um livro num dos cestos.

Até onde Edgar podia se lembrar, havia sempre cordas e cestos descendo em intervalos das Terras Altas pelos despenhadeiros. O povo da Terra Média enchia os cestos com figos, carne de carneiro, coelhos e lã. Os guardas faziam sinal para as Terras Altas puxando uma das cordas e então os cestos eram içados pelo ar. Mas por que alguém lá de cima iria esconder um livro no despe-nhadeiro?

Edgar por fim decidiu esconder o livro no pomar. Primeiramente, contou as árvores ao longo de uma fileira até usar todos os dedos das mãos e dos pés. Cavou um

buraco estreito, embrulhou o livro em folhas de árvores e o jogou lá dentro. Depois cobriu a abertura com uma pe-dra que mal conseguia levantar. No dia seguinte fazia o mesmo, contando nos dedos das mãos e dos pés enquanto passava por árvores em outra direção até chegar à base de uma árvore e enterrar o livro mais uma vez. Tinha tanto medo de perder o livro ou de alguém o encontrar que não conseguia pensar em outra coisa.

— Largue mão de ficar de mau humor, garoto bo-bo! — urrava o Sr. Ratikan sempre que via Edgar perdido em seus pensamentos, movendo-se sem prestar atenção pelo pomar. Regularmente, Edgar produzia mais em uma hora de trabalho do que a maioria das outras pessoas conseguia fazer em duas, mas agora ele tinha se tornado preguiçoso e desatento, incapaz de se concentrar nas tare-fas a ele delegadas. A queda de rendimento de um bom trabalhador enfurecia o Sr. Ratikan, e ele constantemente criticava o esforço do garoto, temendo retaliações do lor-de Phineus caso o trabalho no pomar se tornasse muito lento.

A grandes intervalos de tempo, quando os regentes das Terras Altas não ficavam satisfeitos com os artigos que lhes eram enviados, alguém das Terras Altas — ge-ralmente o próprio lorde Phineus — descia em um dos cestos. Lorde Phineus não descia até embaixo, mas che-gava perto o bastante para que todos reunidos pudessem ouvir sua voz inflexível, e normalmente o que ele tinha a dizer não era muito agradável... “Vocês não estão traba-lhando rápido o bastante!” ou “Não há coelhos o bastan-te” ou “Onde estão os figos que nos prometeram?” Em todo caso, o castigo era sempre o mesmo: “Haverá menos água por um tempo, até que as coisas melhorem.”

Edgar pensava se iria encontrar o lorde Phineus al-gum dia, e foi este pensamento que finalmente acabou com o mau humor de Edgar, certa noite. Ele se sentou e olhou para o livro em sua mão, e suas idéias se tornaram palavras no pomar.

“Se eu levar este livrinho para as Terras Altas, será que encontraria alguém que pudesse lê-lo para mim?”

Era uma idéia acintosa, mas ainda assim Edgar se agarrou a ela. Os cestos não eram uma opção viável, já que eram vigiados dia e noite. Mas por que não poderia escalar até o topo? Seria dez vezes mais alto do que já ha-via escalado, mas isto não significava que não conseguiria fazê-lo. Se fosse apanhado, provavelmente o jogariam da beira do mundo. Mas não havia uma chance de alguém lá em cima ajudá-lo? Ele não se importava em ser preso, transformado em escravo ou arremessado para a morte. Ficaria feliz em desistir de sua vida no pomar para ouvir algumas poucas palavras deste tesouro pelo qual tinha procurado toda a vida.

Ele enterrou o livro mais uma vez e se sentou com as costas apoiadas numa figueira, fitando o pomar. O pensamento de Edgar viajou até os despenhadeiros e ele se perguntou se possuía habilidade o bastante para escalar o caminho todo até o topo, até um lugar em que estava proibido de entrar.

CAPÍTULO

4 COMEÇA A MUDANÇA

Na manhã seguinte, Edgar começou a trabalhar cedo nu-ma parte do pomar onde as árvores começavam a dar fi-gos. Ele passaria o dia reunindo as minúsculas vinhas que se inclinavam dos galhos e amarrando-as em feixes de modo a penderem pesadamente da árvore, como cachos de pequenos ovos verdes. Poucas semanas depois que os figos fossem amarrados, Edgar retornaria às figueiras e arrancaria os figos negros de suas vinhas, desamarrando a corda e soltando o resto.

A monotonia de amarrar os feixes de figos ajudava Edgar a pensar com mais clareza, uma vez que sua mente era mais ágil quando suas mãos se ocupavam de tarefas repetitivas. Ele precisava encontrar uma maneira de sair cedo do pomar para executar sua fuga rumo às Terras Al-tas, e isto significaria perder o jantar. Mas só havia uma maneira de fazê-lo sem levantar suspeita sobre onde tinha ido: teria que se meter em alguma encrenca para que o Sr. Ratikan lhe privasse do jantar. Pela primeira vez Edgar desejava ser apanhado fazendo algo que não devia.

Deixou a idéia rolar em sua cabeça pela maior parte do dia enquanto tirava corda por corda de seu cinto e a-marrava os figos verdes em feixes. Ao retirar a última corda do cinto, Edgar já tinha decidido o que fazer.

Estava no meio da tarde e ele percorria a curta dis-tância até o velho pomar onde as árvores moribundas eram descascadas e evisceradas antes de se tornarem ve-nenosas. Este era um lugar estranho, diferente do resto do pomar, no qual as árvores tinham chegado bem ao final de suas curtas vidas. Muitas delas ainda permaneciam de pé aguardando seu destino, mas diversos galhos já tinham sido arrancados e os troncos haviam sido desenraizados. O local irradiava uma sensação deprimente de ossos es-palhados por todos os lados, enquanto as árvores rema-nescentes testemunhavam tudo desoladas, incapazes de fugir.

O Sr. Ratikan estava lá, distante, do outro lado, ba-lançando sua bengala e falando com um grupo de traba-lhadores que rodeavam uma árvore tombada. Edgar deve-ria encontrar o Sr. Ratikan aqui quando tivesse acabado o trabalho para então receber novas tarefas, mas, em vez disso, recolheu o maior galho que poderia carregar e co-locou seu plano em ação.

Ele espiou duas velhas árvores ainda em pé próxi-mas uma da outra, escalou uma delas carregando o galho nas costas e então o deixou cair até que sua extremidade alcançasse a outra árvore, onde enganchou com firmeza em seus galhos. O galho estava a quase 2 metros do solo. Não demorou muito até que o Sr. Ratikan percebesse Edgar na árvore, se preparando para caminhar por sobre o galho.

— O que você está fazendo aí, garoto? — gritou o Sr. Ratikan, marchando em direção a Edgar com o rosto contraído se avermelhando. — Saia desta árvore! — Ele se virou para os outros trabalhadores, que assistiam com

curiosidade à confusão. — Volte ao trabalho eviscerando aqueles galhos!

Edgar percebeu que o Sr. Ratikan estava ainda mais mal-humorado que o normal e começou a se perguntar se esta tinha sido realmente uma boa idéia. Passou por sua cabeça se jogar da árvore e correr, mas o Sr. Ratikan co-locaria todos no seu encalço caso o fizesse. Então, à me-dida que o Sr. Ratikan se aproximava, Edgar respirou fundo, sorriu, e colocou um pé sobre o galho que fixara entre as árvores.

— Só quero ver se consigo atravessar — disse Ed-gar. — Não vai levar muito tempo.

— Desça daí, seu idiota! Edgar deu mais um passo em cima do galho. — Que tal uma aposta? — perguntou Edgar. — Garoto estúpido! — gritou o Sr. Ratikan. Ele pô-

de notar que Edgar reconquistara a coragem e isto o en-fureceu.

— Se eu cair, pode me deixar sem jantar esta noite — disse Edgar.

— Você vai perder o jantar de qualquer maneira se ficar mais um minuto aí em cima.

A distância era de cerca de 3 metros até o outro la-do. Edgar não tinha certeza absoluta de que conseguiria atravessar todo o percurso. Ele se deslocou pelo galho instável e sentiu-o curvar-se sob seu peso. Embora o ga-lho oscilasse para a frente e para trás, Edgar caminhou com firmeza a metade do trajeto. O Sr. Ratikan deu uma pancada no galho com a bengala e ele balançou violenta-mente. Ao ver que Edgar não caiu, o Sr. Ratikan começou a agitar a bengala na direção de suas canelas. Mas Edgar saltava com agilidade e se esquivava abrindo caminho, de

modo que o Sr. Ratikan não chegou a acertar seu pé em cheio nem ao menos uma vez.

Assim que chegou ao outro lado, Edgar saltou da árvore e abriu um sorriso, já de pé na grama.

— Eu disse que conseguiria! O Sr. Ratikan não estava contente. — Nada de jantar e nada de água até amanhã de

manhã. Se eu o vir nos arredores da minha casa implo-rando comida, pode dar adeus ao café da manhã também! Está de bom tamanho para você?

O Sr. Ratikan tinha se virado para ir embora quan-do o chão começou a tremer como tinha acontecido ante-riormente. Estava mais forte desta vez, ou assim parecia dentro dos limites da parte velha do pomar. As árvores não eram saudáveis e muitas vieram ao chão com um grande estrondo. Quando o tremor parou, Edgar olhou para o Sr. Ratikan como se achasse que talvez o homem soubesse por que o solo tremia daquela maneira.

— Está olhando o quê? Volte para os campos e enfeixe os figos até escurecer. E não se aproxime da mi-nha casa até amanhã!

O Sr. Ratikan cambaleou apressadamente na dire-ção dos trabalhadores, ordenando que o encontrassem junto às árvores caídas e começassem a abri-las. Embora nada tivesse sido dito, havia uma sensação de que muitos dos trabalhadores tinham ficado assustados com o tremor de terra e com as novas árvores caídas. Mas o Sr. Ratikan discursava longamente e não deixava que conversassem entre si.

Edgar tinha sentimentos divididos enquanto volta-va pelo mesmo o caminho que tinha vindo. Tinha fome e sede e não havia nenhuma perspectiva futura de saciar es-

ses desejos. Isto o fazia pensar se teria forças para escalar todo o percurso até o topo do despenhadeiro. E por que o chão continuava a tremer daquele jeito? Parecia cada vez pior. Edgar ficou ansioso ao pensar no que poderia acon-tecer se o tremor voltasse a ocorrer quando estivesse es-calando bem lá no alto, tão longe quanto a vista alcança.

— Isso não pode estar certo — resmungou Edgar. A tarde chegou ao fim e ele já tinha alcançado o

despenhadeiro, enquanto todos os outros se ocupavam com o jantar. Estava mais claro do que das outras vezes e de início ele achou que talvez fosse por isso que as coisas pareciam estar diferentes.

Colocou as mãos na profunda superfície vermelha e marrom à sua frente. Depois prosseguiu escalando os primeiros metros, prestando atenção caso alguém apare-cesse inesperadamente. Com a dose extra de luz ele preci-sava ser mais cauteloso. Jogou-se no chão, deu dez passos para a esquerda e colocou as mãos no despenhadeiro mais uma vez. Ficou parado olhando para a superfície do pare-dão, balançando a cabeça e se perguntando o que poderia significar. A muralha parecia mais baixa do que há três semanas; cerca de 5 centímetros. Todos os pontos de pe-gada de Edgar — os locais onde tinha colocado as mãos e os pés inúmeras vezes — estavam mais próximos do chão.

Será que ele havia crescido tanto naquelas três se-manas desde a última vez em que esteve ali? Edgar nunca tinha ouvido falar de algo assim. Esticou os braços, a-chando que talvez eles tivessem crescido, mas estavam

como antes. Ainda assim, tinha certeza: os pontos de pe-gada estavam mais baixos do que já estiveram em toda sua a vida. Algo havia mudado.

— Preciso tentar dormir mais — disse Edgar, certo de que deveria estar imaginando coisas. Tentou tirar da cabeça qualquer pensamento que se referisse à mudança e agitou os dedos sem parar dentro do bolso lateral da calça. Agarrou dois figos negros e a funda e torceu para não precisar usá-los.

Edgar respirou fundo uma última vez, esfregou as mãos e começou a escalar. Assim que encontrou suas pe-gadas familiares novamente, sua mente se concentrou e ele passou a se mover com agilidade pela superfície da rocha.

Imaginou como o homem que deixara o livro po-deria ter sido. Se pudesse me ver agora, acho que me mandaria para a cama sem direito a pudim. Riu de sua própria observa-ção. Em toda sua vida, Edgar não conhecera os prazeres de um pudim de figo antes de dormir.

Edgar olhou para cima e refletiu sobre a distância até as Terras Altas lá no topo. Havia pensado nisto várias vezes nos dias anteriores e tinha novamente consciência de que faria a maior parte da subida na calada da noite, algo que nunca havia feito antes. Mas a hora de voltar já tinha passado e não ganharia nada duvidando de si mesmo agora.

Depois de subir 90 metros, olhou para baixo pela primeira vez. A Terra Média descansava abaixo dele — seu lar plano de pomares, pastos e pequenas aldeias. Se uma pessoa caminhasse junto à borda da Terra Média, le-varia uma semana para dar a volta completa. Caminhar próximo aos despenhadeiros das Terras Altas diminuía

esse tempo para alguns dias e a distância entre as aldeias podia ser percorrida em metade de um dia ou até menos, num passo apertado. O Sr. Ratikan nunca dera a Edgar a oportunidade de explorar o mundo além do pomar, então o menino só sabia destas coisas através do que os outros lhe contavam.

Enquanto segurava com firmeza, respirando o ar frio da noite que estava prestes a chegar, vislumbrou o mundo além da Terra Média. Lá embaixo — a quilôme-tros, parecia — havia outra terra, um lugar vasto e som-brio. A Planície, muito maior que a Terra Média, era um grande e tenebroso mistério que poucos compreendiam e sobre o qual ninguém falava. De onde Edgar estava, agar-rado às rochas, conseguia ver apenas uma pequena porção da Planície. A vista tinha sido bem melhor na tarde em que conseguira se safar do pomar e se deitara bem na margem da Terra Média, onde uma superfície de rocha inclinada levava à Planície lá embaixo. Ele colocou a ca-beça para fora da borda uma única vez, e nunca mais. Po-deria haver pessoas vivendo numa terra tão devastada? Ou será que havia outra coisa — algo que não fosse humano? Edgar não tinha certeza se queria mesmo saber.

Edgar começou a escalar novamente, desta vez com mais vigor. Tinha passado um longo dia no pomar e aparentemente poderia se cansar rápido. Mas Edgar pos-suía uma habilidade e resistência extraordinárias. Era co-mo se o despenhadeiro tivesse sido colocado na horizon-tal e ele estivesse simplesmente engatinhando, tão rápido quanto seus pés e mãos o carregassem. E então, subita-mente, parou.

Foi tomado por uma entranha sensação que come-çou nos pés e se espalhou por todo o corpo. Estava na

metade do caminho até o topo, o mais alto a que já havia chegado, quando o despenhadeiro começou a tremer em suas mãos. Edgar apertou a mão com mais força e se per-guntou se cometera um erro desastroso ao tentar escalar o paredão até as Terras Altas. O tremor ganhou força, des-pejando sobre Edgar pedaços de pedras e poeira.

Edgar estava pendurado como um galho quebrado numa árvore ressecada. Ele escalava por lugares desco-nhecidos e a superfície rochosa era apenas uma sombra à medida que subia. Bem lá embaixo, na Terra Média, as primeiras fogueiras da noite começavam a queimar. O pouco que conseguia enxergar da subida vertical acima dele eram rochas íngremes com poucos pontos de pegada.

Enquanto o odor lânguido da fumaça vinda das fogueiras lá embaixo flutuava ao seu redor, o pé de Edgar escorregou, esfarelando pedrinhas pelo ar noturno. A pos-sibilidade de cair passou por sua cabeça pela primeira vez. Arrepiando-se, Edgar começou a duvidar se algum dia voltaria para casa.

CAPÍTULO

5 SAMUEL

O tempo transcorrido entre o jantar e o anoitecer era de tranquilidade se você fosse uma criança das Terras Altas, pois os pais eram bastante rígidos quanto a manter seus filhos longe dos perigos dos despenhadeiros enquanto es-tavam sob a luz cinza e duradoura da noite. Mas Samuel era um garoto que morava na Casa do Poder — um sun-tuoso complexo, cheio de pátios, corredores, escadas e passagens, perfeito para a exploração —, e sua vida era diferente.

Samuel ficava extremamente feliz ao passar dias in-teiros — às vezes semanas inteiras — sem fazer outra coisa a não ser ler livros. Isto proporcionou ao menino um tom de pele um tanto pálido, como se estivesse sem-pre acabando de sair da padaria e seu rosto e braços tives-sem sido polvilhados com farinha. Samuel era tão magri-cela quanto Edgar, mas por motivos completamente dife-rentes. Sua mãe trabalhava na cozinha da Casa do Poder e isto lhe dava acesso a montes de comida, mas o apetite de Samuel sempre fora escasso e seu interesse pela comida se concentrava principalmente em tudo que tivesse um gosto adocicado.

Sua mãe trabalhava noite e dia e normalmente só retornava para seu aposento, do lado de fora do pátio,

quando já era muito tarde. Durante a noite, Samuel muitas vezes vagava pelos saguões da Casa do Poder quando se cansava de ficar deitado em sua cama lendo. O andar principal da Casa do Poder parecia ser o lado de dentro e o lado de fora, tudo ao mesmo tempo. Alguns dos sa-guões estavam situados sob arcos que cercavam os pátios, onde trepadeiras se enrolavam infinitamente em pequenas árvores. A folhagem abundante dos pátios resvalava des-controladamente pelas paredes de pedra e pisos de rochas arredondadas, como se estivesse tentando partir tudo e assumir o controle. O lugar possuía uma tranquilidade fo-ra do comum que fazia as pessoas desejarem falar aos sussurros.

Às vezes, Samuel visitava sua mãe depois de pe-rambular pelos saguões e pedia uma guloseima ou uma xícara de chá, e normalmente ela respondia incumbindo-o de alguma tarefa. É numa destas noites que encontramos Samuel, uma noite de caminhadas por corredores em que qualquer som é capaz de produzir eco. Ele subiu a escada-ria estreita próxima ao seu quarto até chegar a uma porta que sempre estava trancada. Continuou de volta pelas es-cadas e pelos corredores até não aguentar mais prosseguir sem uma guloseima.

— Talvez ela me dê um copo de leite com açúcar se eu oferecer ajuda — disse Samuel em voz alta. Ouviu o eco de passos vindo em sua direção a uma longa distância. Não desejando falar com ninguém, passou por uma arcada arredondada e alcançou o pátio a céu aberto. Quando chegou à cozinha, não tinha certeza se deveria entrar, por medo de receber muito trabalho. Então espiou pelo canto da porta o que sua mãe estava fazendo.

Ela era uma mulher frágil, mas encantadora de se olhar, embora Samuel tenha percebido, no momento em que a viu, que algo a perturbava. Corria de um armário para outro procurando alguma coisa, com os cabelos es-curos soltando-se parcialmente de um coque que dançava pela sala atrás dela enquanto ela se deslocava. E então seus olhos avistaram Edgar escondido atrás da porta.

— Pediram figos e torradas no quarto principal — disse ela, numa voz esbaforida. Sempre que a mãe de Sa-muel ficava aflita, uma mancha vermelha surgia embaixo de seu lábio e ficava ali por horas. Ela esfregou o sinal vermelho com nervosismo, procurando algo atrás da mesa onde executava a maior parte do trabalho.

— Por que eles têm que pedir coisas que sabem que não temos? — ela continuou. — Não posso fazer os figos surgirem do nada, e eles estão em falta há semanas. Mesmo assim continuam pedindo toda noite, apenas para me atormentar.

A mãe de Samuel continuou esfregando a mancha vermelha debaixo do lábio até que Samuel entrou e parou ao seu lado.

— Não vai desaparecer se você continuar a esfre-gá-la deste jeito.

Samuel estava com um pouco de pena da mãe, mas só um pouco, pois sabia o que viria a seguir.

— Você subiria até lá para dizer a eles que não te-mos figos, Samuel? Vou lhe dar algo que possa levar para eles, algo doce. Faria isto por mim?

A mãe de Samuel nem sempre foi tão frágil. Houve um tempo em que ela desfrutava de uma posição superior na vida e demonstrava mais estabilidade, mas então o pai de Samuel faleceu num terrível acidente. Quando isso a-

conteceu, sua fina carapaça externa de confiança foi aba-lada e ela pareceu se fragmentar em mil pedaços de uma só vez. Seu trabalho na cozinha foi resultado da perda do pai de Samuel, pois ele fora um homem de grande impor-tância antes do acidente. Sem sua autoridade, a mãe de Samuel foi relegada a uma vida de servidão.

— Você pode colocar algo doce na bandeja para mim também? — perguntou Samuel. Sua mãe já estava ocupada preparando uma bandeja de torradas salpicadas com farinha de figo, junto a algumas xícaras e uma tigela de chá quente coberta.

— Eu arrumo alguma coisa para você quando vol-tar. Apenas tenha cuidado para não deixar a bandeja cair ou derramar algo no caminho — disse, e entregou uma bandeja redonda para Samuel com um olhar preocupado. — Você consegue levar?

A bandeja não era muito grande ou pesada, mas Samuel suspirou mesmo assim quando a pegou de suas mãos.

— Sim, mãe, consigo levar sem problema. Samuel atravessou o pátio e entrou na Casa do Po-

der. O caminho que levava à entrada era feito de uma grande quantidade de pedras. Havia aberturas ao longo do trajeto onde pequenas árvores brotavam do solo, com os troncos cobertos por trepadeiras. O caminho acabava em uma arcada sem nenhuma porta. Do outro lado havia uma sala redonda que levava a três direções: um amplo saguão à direita, outro à esquerda e uma escadaria íngreme no centro.

Samuel levou a bandeja escada acima e, quando chegou ao topo, encontrou um homem com bochechas

redondas e sobrancelhas cinzentas cerradas à sua frente. Não possuía cabelo algum no alto da cabeça.

— O que você tem aí, Samuel? Era Horácio, cujo trabalho era manter as pessoas

distantes do lorde Phineus quando ele não queria ser per-turbado. O lorde nunca queria ser perturbado, então Horá-cio ficava quase permanentemente fixo em seu posto no alto da escada.

— Algumas guloseimas para o quarto principal — respondeu Samuel.

Horácio examinou de perto a bandeja e surrupiou uma das torradas.

— Você pode passar — disse, devorando a torrada com uma mordida e abrindo o braço num movimento majestoso que o convidava ao quarto principal. Samuel sorriu, pois embora tivessem poucas oportunidades de se ver, gostava de Horácio e de seus trejeitos teatrais.

Samuel se apressou em meio à tranquilidade do sa-guão superior, dirigindo-se à enorme porta no fim do a-posento, ansioso por terminar sua tarefa e retornar para a sobremesa que lhe fora prometida. Colocou a bandeja no chão e bateu na porta. Enquanto aguardava, a porta se a-briu e sir Philip se elevou sobre Samuel num roupão ver-melho como o que seu pai costumava usar. Sir Philip lan-çou um olhar penetrante para a bandeja no chão:

— Horácio roubou os figos de você ou ainda es-tamos esperando uma produção maior do pomar?

Ao se inclinar para pegar a bandeja, Samuel desejou não ter ido visitar sua mãe.

— Receio que ainda não haja figos, senhor. A co-lheita ainda está por vir.

As mãos de Samuel tremiam enquanto segurava a bandeja e as xícaras começaram a chacoalhar. Além da porta, viu uma grande mesa dentro do quarto, atrás da qual estava sentado o lorde Phineus. Ele também vestia um roupão vermelho, mais escuro que o de sir Philip e com uma larga faixa negra adornando as mangas e o ca-puz.

— Deixe o garoto passar, sir Philip. Não é culpa dele que tenhamos de esperar pelas coisas que desejamos. Uma colheita é feita quando está pronta, não quando exi-gimos.

Samuel hesitou diante da entrada. Havia um aspec-to sombrio em lorde Phineus e passou pela mente de Sa-muel largar a bandeja ali mesmo onde estava e correr de volta para seu quarto.

— Venha cá, então, vejamos o que você tem aí an-tes que, seja lá o que for, fique gelado.

Samuel se arrastou pelo quarto e colocou a bandeja sobre a mesa. Olhou para a direita e percebeu que havia outro homem olhando através de uma das janelas onde as trepadeiras entravam, cobrindo algumas das paredes e pi-sos. Era sir Emerik, o último dos três homens que con-trolavam quase tudo nas Terras Altas e na Terra Média. Não fazia muito tempo que seu próprio pai, sir William, fora o quarto destes homens poderosos.

À sua esquerda, Samuel notou uma coluna de pedra branca que tinha a mesma altura do menino. Em cima de-la havia a cabeça de um homem esculpida em pedra.

— Vejo que está intrigado com a cabeça de Mead — disse lorde Phineus. Samuel virou rapidamente o olhar para concentrar sua atenção em lorde Phineus.

— Estava apenas olhando.

Lorde Phineus sorriu e chamou o garoto para mais perto.

— É um de meus artigos favoritos. Melhor não to-car.

Sir Emerik atravessou a sala até a mesa e se incli-nou, cochichando algo para lorde Phineus numa voz que soava como um papel sendo amassado. Lorde Phineus não parecia muito interessado. Distraidamente retirou a tampa do chá e um sopro de vapor adocicado se espalhou pelo ar fresco do aposento.

— Ainda sentimos falta de seu pai no conselho dos anciões — disse sir Emerik com uma voz estridente que fez com que Samuel desejasse cobrir os ouvidos. — Ele era muito inteligente, mas estamos nos esforçando ao má-ximo para cuidar de tudo.

— Deixe-me fazer uma pergunta, Samuel — disse lorde Phineus, passando o braço por sobre a mesa e pe-gando uma torrada. — Você sente falta de ter seu pai por perto? Quero dizer, vocês dois eram próximos ou você é um desses garotos que é mais ligado à mãe?

Samuel enrubesceu e então abaixou a cabeça. Que-ria apenas sair do quarto e correr de volta para a cozinha para berrar com sua mãe por tê-lo feito trazer a bandeja. Lorde Phineus colocou a torrada na mesa e esticou o braço na direção de Samuel. Colocou seu dedo embaixo do queixo do garoto, levantando-o, e Samuel tentou des-viar o olhar mas não conseguiu.

Lorde Phineus tinha uma expressão cruel no rosto, como se magoasse intencionalmente o garoto ao mencio-nar seu pai.

— Seja um bom menino e peça à sua mãe que me traga manteiga de figo com meu pão pela manhã, sim?

— Mas não há figos, lorde. — Eu sei. Peça mesmo assim. Quando a vir pelo

pátio, me divertirei com aquela mancha vermelha embaixo do lábio dela.

Lorde Phineus pegou a torrada que tinha deixado de lado e a examinou, ponderando se queria comê-la ou não.

— Pode ir, Samuel. Samuel se virou para sair e encontrou sir Philip pa-

rado à sua frente. Parou abruptamente e não olhou para cima. O roupão vermelho familiar era tudo o que Samuel podia ver, fazendo-o desejar que seu pai estivesse lá para espantar toda a crueldade para fora do quarto.

— Deixe-o passar, Philip — disse lorde Phineus. — Muito em breve o colocaremos para trabalhar e tenho toda a certeza de que podemos lhe delegar tarefas que irão transformá-lo num homem.

Quando Samuel chegou ao outro lado da porta, correu pelo saguão, passando por Horácio sem dizer uma palavra, e desceu as escadas apressadamente em direção ao pátio.

Quando parou de correr, Samuel estava completa-

mente sem fôlego. Olhou para trás e viu o quanto estava longe da Casa do Poder, agora já nos campos abertos que ficam antes das bordas das Terras Altas. Não foi uma cor-rida extremamente longa, mas Samuel não tinha o hábito de correr ou escalar.

Atravessou o campo até chegar a um prado de grama verde que alcançava seu peito, e seguiu caminho por um matagal de árvores entrelaçadas.

Finalmente alcançou um lugar onde a grama dava lugar à terra e pedras, deixando as árvores para trás. Ali podia ver no escuro da noite que havia uma linha a partir da qual o chão se tornava negro: a borda das Terras Altas. Era um lugar perigoso. Um tropeço repentino ou um mí-sero empurrão por trás e aquele seria o fim de Samuel.

Deitou-se no chão e pendurou a cabeça para fora da borda das Terras Altas, perdido em memórias do pas-sado, um passado onde seu pai ainda estava vivo e sua mãe era uma pessoa diferente. Lá embaixo avistou fo-gueiras e sentiu um aroma fraco, mas rico, de madeira e figos negros queimando. Estava acima do pomar e ao lado da cachoeira mais próxima, que se encontrava a uma pe-quena distância da Casa do Poder. Enquanto estava ali deitado ficou imaginando o que o povo da Terra Média provavelmente fazia ao final de um dia de trabalho no pomar. Permaneceu na borda pensando por um bom tempo, até que ficou cansado e começou a pegar no sono. Era algo perigoso de se fazer na borda do mundo.

Samuel não sabia ao certo quanto tempo havia passado dormindo quando ouviu um ruído que o fez des-pertar pelo susto. De início não conseguiu descobrir de onde vinha o barulho, mas, ao sentar-se e esfregar os o-lhos de sono, ele entendeu. Samuel inclinou a cabeça len-tamente para além da borda das Terras Altas, observando a escuridão abaixo. E lá, para sua surpresa, avistou algo nunca visto antes por alguém das Terras Altas.

Alguém estava escalando o despenhadeiro.

CAPÍTULO

6 UM LIVRO DE COISAS SECRETAS

As horas mais escuras da noite se aproximavam e Samuel começou a se indagar se tinha apenas sonhado que alguém escalava o despenhadeiro. Estava certo de que o que quer que fosse, tinha braços e uma cabeça, mas parecia menor do que deveria ser estando tão perto. Talvez não fosse mesmo uma pessoa, mas algum tipo de criatura vinda para aprisionar criancinhas e empurrá-las da borda para uma caverna em alguma parte do despenhadeiro lá embaixo.

Samuel deu uma espiada ansiosa por sobre o om-bro em direção à Casa do Poder e se indagou se deveria alertar a todos sobre uma possível invasão. Mas, então, Samuel ouviu um tossido e uma vozinha resmungando algo para si mesma, e então virou-se para olhar a figura que se aproximava.

Percebeu que não era de forma alguma um mons-tro, mas um garoto. Um garoto. Aquilo poderia mesmo ser verdade?

Colocando-se de pé, Samuel caminhou em silêncio pela beira do despenhadeiro até ficar bem acima do garoto que subia, e depois se deitou novamente. Olhando por sobre a beirada, começou a ponderar sobre suas opções. Certamente lorde Phineus e os outros na Casa do Poder gostariam de ser informados sobre uma pessoa invadindo

as Terras Altas. Talvez houvesse até uma recompensa pelo empenho valoroso de Samuel.

Mas Samuel ficou preocupado em abandonar o vulto que subia. Talvez já tivesse partido quando ele re-tornasse. Se isto acontecesse, lorde Phineus ficaria zanga-do. Quanto mais Samuel esperava, mais tinha certeza de que deveria ficar.

Um garoto da minha idade subindo até as Terras Altas. Como pode? Samuel tateou seus próprios braços esqueléti-cos e ficou com vergonha — na verdade, com inveja — do garoto que estava agora apenas 6 metros abaixo dele. Como podia um garoto escalar tão alto — e por que ar-riscava a própria vida dessa maneira? Como se atrevia?

— Você aí! Estou te vendo escalar o despenhadei-ro! — Samuel deixou escapar no tom de voz mais amea-çador que conseguiu projetar.

Após um breve momento de medo intenso, Edgar olhou para cima e viu a cabecinha de Samuel se esticando além da beira, pelo céu noturno. A voz certamente não pertencia a um adulto e o tamanho da cabeça de Samuel era um estímulo consolador.

— Por que você está aqui tão tarde da noite? É como se estivesse esperando por mim — perguntou Ed-gar em um tom de voz amigável.

Samuel pensou por um instante, tentando descobrir como responder à pergunta. Que tipo de garoto era aque-le?

— Você não pode simplesmente subir até aqui — respondeu Samuel. — Não é algo normal. E de qualquer jeito, é proibido. Seus pais não lhe avisaram disto?

Samuel estava com dificuldades para esconder sua curiosidade e, apesar de todas as suas tentativas de intimi-

dar o garoto a não invadir seu mundo, realmente desejava saber mais sobre ele.

— Eu não tenho pais — disse Edgar. Tinha che-gado a apenas alguns metros abaixo das Terras Altas e os dois garotos podiam agora ver um ao outro sob a luz fra-ca. Edgar sorriu e esticou a mão para cima até que Samuel pudesse agarrá-la, mas em vez disso Samuel perdeu o e-quilíbrio dos cotovelos e derrubou terra solta sobre a ca-beça de Edgar. Samuel não tinha percebido o quanto es-tava desconfiado deste estranho até que sua mão chegasse tão perto. Fora educado para ver as pessoas lá de baixo como sujas e perigosas.

— Todo mundo nas Terras Altas tem esta educa-ção? — perguntou Edgar. Havia bom humor em sua voz e isto acalmou Samuel, que voltava a espiar por sobre a borda do despenhadeiro.

— Venha cá, então — continuou Edgar. — Não pode me dar uma mãozinha?

— Como se chama? — Edgar. Transcorrido um momento em meio à tranquilida-

de da noite e os dois garotos desviavam o olhar apreensi-vamente, tentando adivinhar o que o outro estava pen-sando.

— Espero não me arrepender disto — disse Samu-el, finalmente mudando de idéia. Depois de uma boa dose de hesitação, ele estendeu o braço para baixo. Edgar pe-gou a mão de Samuel e a achou muito pequena e frágil. Não havia força alguma nela e Edgar teve certeza de que os dois acabariam caindo pelo despenhadeiro. Para alívio de Samuel, Edgar soltou sua mão e rapidamente escalou sozinho a parte que restava do despenhadeiro. Chegando

ao topo, ele se afastou da beira, permitindo a si mesmo um suspiro de alívio ao sentir terra firme sob os pés.

Samuel compartilhou seu nome com Edgar, mas não conseguiu pensar em mais nada para dizer.

— Então estas são as Terras Altas — observou Edgar, inspirando profundamente o ar puro. — Aqui em cima tem um cheiro bom.

Edgar olhou ao redor e desejou poder enxergar o novo mundo ao qual acabara de chegar, mas encontrou apenas sombras de árvores a distância.

— Moro num pomar como aquele — disse Edgar, apontando para a silhueta de um grupo de árvores que conseguiu reconhecer no escuro.

— Não é um pomar, é só um monte de árvores. Elas não produzem nada. Apenas ficam ali e escondem o que está atrás delas.

— O que está atrás delas? — perguntou Edgar, com uma curiosidade tamanha que o fez seguir andando na direção do bosque.

— Não! Pare! Você vai ser visto... e eles não vão ficar felizes por você ter vindo. Vai se meter em encrenca.

Edgar voltou e se sentou perto de Samuel. Os dois garotos estavam na beira das Terras Altas e

nenhum deles sabia o que dizer ou fazer. Sempre disseram a Samuel que pessoas como Edgar só eram boas para uma coisa: atender às necessidades das Terras Altas. Quanto a Edgar, apenas sabia que o povo das Terras Altas contro-lava tudo em seu lar e que tomava tudo o que queria. Ed-gar tinha pouquíssimo tempo, mas ainda não estava certo se deveria confiar nesse garoto das Terras Altas. Os dois foram criados de modo a odiar um ao outro, embora nem

ao menos tivessem tido a oportunidade de se encontrar até então.

— Por que você veio aqui? — perguntou Samuel. Não havia acusação alguma em sua voz, apenas uma curi-osidade genuína.

Agora que estava finalmente sentado após horas de uma dura escalada, Edgar percebeu o quanto estava can-sado e com fome. Era quase impossível imaginar que em breve teria que descer tudo de volta e não sabia quando teria chance de voltar.

— Não sei se posso confiar em você — começou Edgar. — Mas também não tenho muito tempo. Preciso voltar para o pomar ou sentirão minha falta, e então o Sr. Ratikan irá me castigar.

— Você não está armado e nem parece uma amea-ça para mim — disse Samuel. — Não sei o que ganharia entregando você. Ninguém precisa saber que nos vimos.

Edgar notou a preocupação e a curiosidade de Sa-muel.

— Não sei — disse ele. — Quero confiar em você, mas acabei de conhecê-lo.

Samuel pensou por um momento antes de tentar mais uma vez convencer um garoto da Terra Média a con-fiar num garoto das Terras Altas.

— Não é o que você está pensando — disse Samu-el. — Não gosto daqui, das Terras Altas. Não quero falar para ninguém que você veio, não percebe? Quero que seja nosso segredo.

Edgar continuou a refletir sobre a questão. Poderia ser que esse garoto viesse a traí-lo no final, mas Edgar fo-ra até ali para que alguém lesse o livro e tinha acabado de

encontrar alguém capaz de fazer isto — alguém que pare-cia digno de confiança.

Com certa hesitação, Edgar contou a Samuel sobre o homem que achava que poderia ser seu pai, sobre os diversos anos de escaladas solitárias e sobre o item que procurava por anos sem conseguir encontrar (embora não tenha dito exatamente o que era).

Samuel ouviu com atenção a tudo que Edgar disse-ra antes de dar sua resposta.

— Então você passou toda sua vida burlando as regras escondido e colocando sua vida em perigo, tudo isto para encontrar esta coisa que alguém deixou para vo-cê?

Edgar confirmou com a cabeça, entusiasmado. — Mas por que veio até aqui? — perguntou Samu-

el. Edgar não respondeu prontamente. Será que podia

realmente confiar neste magricela que não resistiria a um dia no pomar do Sr. Ratikan? Não estava certo disso, mas sabia que tivera muita sorte por ter sido descoberto por um garoto de sua idade, em vez de um guarda. Decidiu que era um risco que estava pronto a assumir.

— Encontrei o que tinham deixado para mim — revelou Edgar. Enfiou a mão no grande bolso costurado na frente de sua camisa, mas então esperou mais um ins-tante.

— Não precisa me mostrar se não quiser — disse Samuel. Estava curioso, mas não queria afugentar Edgar. — Se você retornar, vou fingir que nunca o vi.

Edgar tirou o livro do bolso e o segurou firme no ar da noite. Samuel ficou imediatamente encantado diante do que viu. Adorava livros e este parecia diferente de to-

dos os outros que já tinha visto. Não era como aqueles das Terras Altas, que eram todos grandes, pesados e en-cadernados em capa dura. Este era pequeno e de couro. Parecia velho e desgastado.

— Onde você conseguiu isto? — perguntou Samu-el, com a voz deixando transparecer sua empolgação. Mas quando tirou os olhos do livro e viu o rosto de Edgar, su-bitamente lembrou-se das regras. — Você não sabe ler — disse Samuel.

— Foi por isso que veio, para encontrar alguém que pudesse ler para você.

Edgar não respondeu. Desviou o olhar para a escu-ridão com uma expressão de mágoa no rosto.

— Não é motivo para se envergonhar — disse Sa-muel.

— Não é culpa sua. Edgar estava hesitante. — Você não sabe quanta sorte tem em morar aqui

em cima. Deve ser o paraíso. — Não é bem assim — disse Samuel. Hesitante, ele

acrescentou em seguida: — Vou contar um dos meus se-gredos a você, e vai entender do que estou falando.

Samuel apontou para algum lugar a distância, abai-xo da linha do despenhadeiro.

— Ali embaixo, há cerca de um ano, meu pai caiu da borda. Desde então minha mãe não é mais a mesma — Samuel esfregou uma mancha abaixo do lábio, sentindo uma coceira sob a superfície da pele. — Agora passo boa parte do tempo no meu quarto, sozinho. Não gosto de sair.

Este foi um momento importante para Edgar, pois ele percebeu algo sobre o qual nunca tinha pensado: era um solitário. Dormindo sozinho no pomar, protegendo

seus segredos, mantendo-se longe das outras crianças. Sempre sentira alguma coisa, mas de alguma maneira nunca compreendeu do que se tratava. E havia algo mais. Edgar pela primeira vez entendeu que havia dois tipos de solidão. Um acontecia porque você o escolhia, e era bom por um tempo. O outro, por sua vez, escolhia você, e nunca era bom. Samuel vivia com o segundo tipo e Edgar ficou triste por ele.

Ainda assim, havia algo na história de Samuel que não fazia sentido para Edgar. Ele ficou pensando se Sa-muel poderia estar tentando enganá-lo.

— Estranho — refletiu Edgar. Samuel ficou surpreso com a palavra escolhida por

Edgar para aquele momento. Achava mais trágico do que estranho que seu pai tivesse caído rumo à morte.

— Todo mundo na Terra Média é tão compassivo como você? — disse Samuel asperamente. Dava patadas com facilidade quando feriam seus sentimentos.

— É que, bem, para ser sincero, esta história e um pouco difícil de se acreditar.

— O que quer dizer? — Quero dizer que se alguém caísse pelos céus até

a Terra Média, eu provavelmente teria ficado sabendo. Todos comentam sobre os fatos uns com os outros. Não é o tipo de coisa que deixaria de circular.

Isto pegou Samuel de surpresa e ele pensou sobre a questão por um momento. Será que a história poderia ser falsa? Quem inventaria uma narrativa tão terrível? Samuel não sabia o que dizer.

— Sinto muito pelo seu pai — disse Edgar, tirando Samuel de seu estado de pasmo.

Samuel tentou afastar estes pensamentos novos e agitados de sua mente.

— Vamos dar uma olhada no livro? Desta vez Edgar não hesitou. Segurou o livro e

Samuel o pegou. — Não temos muito tempo — disse Edgar, en-

quanto Samuel examinava a capa. — Eu trabalho no po-mar do Sr. Ratikan, bem ali embaixo, e ele vai me procurar pela manhã. Vai arrancar meu couro se não estiver lá ao amanhecer. — Edgar olhou cansado para a beira do des-penhadeiro. — E ainda vou levar um bom tempo para descer.

— Este é um livro esquisito, Edgar. — Por que diz isso? Ele parece diferente dos ou-

tros livros que você viu? Samuel tentou pensar em como explicar. — O papel é tão fino e branco. Todos os livros nas

Terras Altas têm páginas grossas e amareladas, e capas duras. Nunca vi nada assim nas Terras Altas. De onde será que veio?

Samuel o abriu na primeira página e descobriu lá dentro uma caligrafia tão malfeita que era difícil identificar o que dizia.

— O que está escrito? — Não estou certo — respondeu Samuel. — Você sabe ler, não sabe? — Havia pânico na voz

de Edgar. — É claro que sei ler! — retrucou Samuel. — Mas

a caligrafia é muito ruim e quase não há luz. Mal consigo identificar as palavras na página.

Samuel teve um pensamento hostil: “Com quem este garoto da Terra Média pensa que está falando?”, seguido por

outro, mais nobre: “Posso ter encontrado um amigo e não devia pensar assim dele.”

— A primeira linha é a única que está escrita com clareza — disse Samuel. — Ela diz: “Um livro de coisas secretas — para Edgar.”

Um arrepio de emoção e deleite subiu pela espinha de Edgar. O livro era para ele. Para ele. Estas palavras so-zinhas faziam valer por todo o trabalho que teve para chegar até ali.

— O que mais está escrito? Só a primeira página — você consegue ler as primeiras páginas?

Pelos vinte minutos seguintes, Samuel leu com a-tenção as palavras na primeira página e tentou desespera-damente uni-las. Sua leitura vinha aos trancos e barrancos e a espera pelas palavras que ainda estavam por vir deixava Edgar maluco. Mas basicamente o que Samuel leu para Edgar naquela noite se aproximava bastante do seguinte:

Estou com pressa e preciso escrever rápido. Te-

nho apenas esta noite para deixar para você o que

for possível e escondê-lo bem. Não sei se algum dia

este livro será encontrado, mas trata-se de uma boa

precaução e portanto irei escrevê-lo. Usar o cesto

para esconder este livro de coisas secretas até lá em

cima será outro desafio, mas acredito que consigo

fazê-lo sem ser descoberto. Veremos.

Edgar — estou deixando isto para você saben-

do que a maior parte do que escrevo não poderá ser

compreendida, Se por algum milagre você se depa-

rar com esta mensagem, acredito que não será ca-

paz de lê-la (a não ser que uma mudança inespe-

rada aconteça). Acho que você terá 11 anos — é

quando este livro irá surgir para você, se é que ele

surgirá. Minha esperança é que você o esconda até

encontrar alguém que o possa ler para você. NÃO

entregue este livro para ninguém das Terras Altas

sem ter certeza de que pode confiar nesta pessoa. E-

xistem muitos naquela parte do mundo que seriam

uma ameaça a você.

Meu nome é Luther. Alguns me chamam de dr.

Kincaid. Eu o trouxe aqui, Edgar. Falarei mais sobre

isto se houver tempo — apenas saiba que fiz o que

julguei ser o melhor para você.

Aqui está a primeira coisa que deve saber, é

algo muito difícil de se explicar: Atherton não é o

que você imagina. Tentarei lhe contar a verdade

nas poucas páginas que se seguem...

Ambos os garotos estavam sem palavras. Um ins-

tante de silêncio passou pela beirada das Terras Altas. A noite fechada já havia caído durante a leitura das primeiras páginas e o último vestígio de luz cinza já tinha ido em-bora. A escuridão total tinha chegado e rapidamente Ed-gar se deu conta da hora.

— Tenho que ir embora. — Tem certeza de que consegue descer durante a

noite? Edgar se inclinou por sobre a beirada e viu que restavam apenas quatro ou cinco pontos alaranjados das fogueiras remanescentes lá embaixo. Fiquei aqui por muito tempo. Olhou de volta para Samuel e estendeu a mão.

— A alta noite vai durar apenas uma hora e depois a luz irá lentamente retornar até a chegada da manhã. Se descer agora, acho que consigo chegar a tempo — disse Edgar. — Me dê o livro.

Samuel puxou o livro para perto do corpo e segu-rou com mais força. Seria difícil largá-lo.

— Por que não deixa o livro comigo? Posso des-cobrir o que está escrito e lhe contar tudo quando voltar.

Edgar sabia que Samuel não poderia correr mais rápido que ele ou subjugá-lo. Não seria difícil arrancar o livro dele e partir.

— Samuel — disse Edgar. — Eu confio em você. Sei que o livro disse que não deveria, mas confio. Não é que...

Houve uma pausa constrangedora enquanto Edgar tentava explicar.

— Não posso deixá-lo aqui, Samuel. Simplesmente não posso. Esta é a única coisa no mundo que realmente me pertence. Vamos ler juntos. Chegarei mais rápido da próxima vez, no mesmo lugar, e passaremos um bom tempo examinando-o.

Samuel queria tanto guardar o livro consigo que quase saiu em disparada pelas árvores. Mas Edgar era para ele o que mais se havia aproximado de um amigo até en-tão, e um amigo era algo de que realmente precisava. Sa-muel entregou o livro.

— Faremos o seguinte — disse Edgar, colocando o livro no bolso da frente de sua camisa. — Você continua me ajudando a ler este livro de coisas secretas e eu tento descobrir o que aconteceu com seu pai. Se ele caiu pelo céu, alguém na Terra Média saberá algo a respeito.

Edgar estava além da beira das Terras Altas, com os pés cegos procurando por pontos de pegada no escuro. Estava cansado e a viagem para baixo seria ainda mais pe-rigosa do que para cima, mas estava decidido e ansioso para retornar ao pomar antes do amanhecer.

— Quando você vai voltar? — perguntou Samuel. Edgar olhou para cima uma última vez.

— Vou precisar de algum tempo para descansar. Edgar pareceu refletir sobre quanto demoraria até que re-cuperasse a força para outra escalada até as Terras Altas. — Sete noites a partir de agora, é quando irei voltar. Pro-cure por mim!

E então um pacto foi feito: Samuel ajudaria Edgar a ler seu livro e Edgar ajudaria Samuel a descobrir o que acontecera com seu pai. O fato de terem se encontrado seria um segredo dos dois.

Alguns instantes depois de se despedirem, Samuel já não conseguia mais enxergar Edgar no despenhadeiro lá embaixo. Queira chamá-lo — para dizer adeus mais uma vez — mas tinha medo de que o ouvissem. Voltou para seu quarto e passou a noite acordado pensando em seu novo amigo, em seu pai e em todas as coisas estranhas que lera no livro à beira do mundo.

CAPÍTULO

7 UMA ESPIÃ COM UMA FUNDA

A coloração cinza da noite havia passado e a luz da manhã cobria o ar quando Edgar devolveu o livro de coisas se-cretas para seu esconderijo original, no caminho de volta pelo despenhadeiro. Nunca estivera tão alto no penhasco com a luz do dia sobre si e por um momento permaneceu completamente imóvel, inspecionando o mundo que a-cordava abaixo dele.

De onde estava agarrado à muralha sem se mover, Edgar podia ver todos os lugares por onde passara em sua curta vida. Raramente tinha viajado além do pomar, da pequena aldeia e dos pastos entre eles. Do alto, era um lençol magnífico de verde e dourado. Já havia diversas pessoas se movendo de maneira confusa pela aldeia. Em pouco tempo tudo estaria iluminado e o mundo estaria vivo e alerta. Edgar não tinha protetores — nem pais nem família —, e se o perigo chegasse não teria ninguém mais com quem contar além de si próprio.

Era difícil para ele imaginar uma encrenca pior do que ser pego à luz do dia naquele lugar proibido.

Edgar se virou para a muralha e começou a se mo-ver novamente, devagar, mas de forma obstinada. Como uma gotícula d’água, deslizava tranquilamente e em silên-cio. Parecia fazer parte do despenhadeiro; uma pessoa te-

ria de olhar com muita atenção para perceber que ele de alguma maneira não fazia parte das rochas. Edgar e A-therton eram uma só coisa.

Quando chegou ao chão, ele se moveu rapidamente pela vastidão coberta de pó até chegar às árvores distantes. Mas já era tarde e mesmo todo o seu esforço não foi ca-paz de impedir que chegasse ao pomar uma hora mais tarde do que deveria para cuidar das mudas.

Edgar rastejou silenciosamente em direção às árvo-res mais jovens, com os ramos fazendo um ruído en-quanto avançava e um sol a brilhar que tornava as folhas lá em cima transparentes. Era um momento sereno do dia no pomar. O ar estava frio, mas não congelando, e Edgar quase podia sentir seu hálito. Passou os dedos por galhos e folhas enquanto andava e o som das folhas se agitando o deixou feliz.

— Por que você não está cuidando das mudas? — O momento tranquilo no pomar foi quebrado pela per-gunta impetuosa do Sr. Ratikan. Ele possuía uma maneira irritante de surgir do nada quando menos se esperava. O cabelo do Sr. Ratikan estava emaranhado e suas velhas calças amassadas como se tivesse pulado da cama direto para o pomar.

— Eu te fiz uma pergunta, garoto — ele disse, ba-lançando a bengala na direção das canelas de Edgar, que não se moveu, achando que um pouco de crueldade iria melhorar o humor do Sr. Ratikan. Não melhorou. — Onde foi que se escondeu esta manhã? — perguntou.

Edgar não sabia o que responder. Não dormia ou comia há muito tempo e não conseguia pensar com clare-za.

— Tudo bem, se é assim que você quer — disse o Sr. Ratikan. — Não vai ganhar água ou comida até me di-zer. E nem pense em mentir: andei investigando os arre-dores e sei onde você não esteve. Quero saber onde foi que esteve.

O Sr. Ratikan cutucou o peito de Edgar com a bengala e quase o derrubou, mas o garoto permaneceu em silêncio. Edgar não conseguia pensar em mentira alguma para o despistar e certamente não poderia contar a verda-de ao Sr. Ratikan sobre onde estivera.

— Agora vá cuidar daquelas mudas e não pare até terminar com o restante delas! Talvez um pouco de traba-lho duro e fome abram essa sua boca.

Observando em silêncio o Sr. Ratikan ir embora, curvando-se para desviar dos galhos mais baixos, Edgar percebeu que “o restante delas” significava mais de cin-quenta mudas. Podar todas elas levaria até o fim da tarde, mesmo que trabalhasse rápido. Seria um longo dia, sem água ou comida.

Edgar foi para o campo das mudas e começou a podar a primeira de muitas arvorezinhas. Eram os bebês — o futuro do pomar — e eram só um pouco maiores que ele. A casca era fina como papel. Um sopro delicado sobre as pequenas folhas verdes faria todas dançarem, mas não as soltaria.

As árvores tinham apenas um ano e cresceriam rá-pido. Quando tivessem dois, produziriam uma safra de figos e quando tivessem três produziriam outra — conhe-cida como a colheita do terceiro ano — e então seriam cortadas e seu interior esvaziado para fazer farinha. As árvores eram um milagre de produção: figos, farinha, pa-

pel, madeira para construir e queimar — praticamente to-das as partes eram aproveitadas.

Mas as árvores no pomar também tinham proble-mas. Consumiam enormes quantidades de água, o que significava que a Terra Média poderia cultivar apenas u-mas poucas centenas por vez, deixando ainda menos água para os habitantes da aldeia. Duzentas mudas, apenas cem árvores com dois anos (pois as mudas eram delicadas e a metade morria antes de chegar ao segundo ano) e mais uma centena de árvores com três anos — isto era tudo o que o pomar conseguia manter, de modo a ainda fornecer água para a aldeia. As melhores das árvores produziam menos de cem figos utilizáveis por ano, enquanto muitas das árvores frágeis não produziam coisa alguma além de duras bolas negras.

O maior perigo em relação às figueiras era deixá-las plantadas por mais do que algumas semanas depois da colheita do terceiro ano. As folhas se tornavam tóxicas ao toque e a casca se transformava num musgo brilhante e alaranjado que secava e virava pó. Se esta se espalhasse pelo ar, muitos no pomar sofreriam com uma tosse ago-nizante que duraria semanas. Edgar suspeitava que este era o motivo pelo qual o Sr. Ratikan era tão rígido quanto ao cronograma da colheita de figos. Havia pouca chance para erros.

Edgar tentou trabalhar rápido o dia inteiro, só que mais de uma vez se encontrou dormindo em pé onde es-tava. Ia de árvore em árvore, podando e aparando, com-pletamente perdido em seu próprio mundo enquanto o dia lentamente passava até chegar a hora do jantar. Quando já se aproximava do fim da última fileira de mu-das, Edgar acordou de seu devaneio ao ouvir um estalo e

sentir algo arremessado passar a um fio de seu cabelo. Abaixou e imediatamente pegou sua funda.

— Estou te vendo. Edgar virou-se e viu Isabel a uns dez passos de dis-

tância, pegando mais munição de uma bolsinha cheia de figos negros pendurada na cintura. Ela começou a balan-çar a funda mais uma vez e Edgar congelou. Soltou uma das cordas num estalo e outro figo negro voou a alguns centímetros acima da cabeça dele.

— Você ficou maluca! — gritou ele, remexendo em seu bolso lateral à procura de sua própria arma. Mas Isabel já tinha recarregado e girava outro figo negro sobre sua cabeça. Seus movimentos eram incrivelmente velozes.

— Segui você depois do jantar na noite passada — disse ela. — Vi o que você fez.

— Não sei do que está falando — disse Edgar, carregando sua funda. — Abaixe esta coisa!

— Sei aonde você foi e o que estava fazendo. Soltou a corda novamente com um estalo e desta

vez o figo negro passou de raspão à direta da cabeça de Edgar.

— Eu sempre soube. Sempre soube? Seria verdade? E quando ela tinha fei-

to a funda? Edgar não achava que outra pessoa tivesse pensado em fabricar uma, e certamente não Isabel. Era ób-vio que ela tinha aprendido a manejá-la muito bem. Con-seguia mirar e atirar com força.

— Não poderemos conversar se você continuar arremessando essas coisas em mim — disse Edgar.

— Não ia te acertar — disse ela. — Minha mira é melhor que a sua e posso lançar um figo negro a uma dis-tância maior. Quer saber por quê? Porque passo meu

tempo praticando, enquanto você fica escalando por aí, tentando se matar!

Agora Edgar tinha ficado furioso. Quem esta garota de 9 anos achava que era, o seguindo por todos os cantos e o espiando dia e noite? Ele mostraria o quanto ela estava errada.

Edgar carregou a funda com um figo negro e co-meçou a girá-lo por sobre a cabeça.

— Está vendo aquela árvore do segundo ano ao fi-nal da fileira, aquela lá bem longe?

Isabel assentiu com a cabeça. Estava a uma grande distância, por um caminho estreito através das árvores. O figo negro de Edgar zumbiu pelo ar, passou pelo caminho e resvalou no tronco. Não acertou em cheio, mas de qualquer maneira acertou um alvo tão distante que Isabel nunca seria capaz de igualar.

— Não sei o que você está fazendo escalando até lá em cima — disse ela, pescando um figo em sua bolsinha. — É perigoso! E contra as regras. E estou falando daque-las regras grandes de verdade, aquelas que não podem ser quebradas ou levam você embora.

— Por que você tem sempre que bisbilhotar por aí? — disse Edgar. Seu segredo fora descoberto por alguém, e não era um alguém qualquer. Era Isabel!

Ela se aproximou de Edgar e começou a girar o fi-go negro em um grande círculo por sobre a cabeça. Edgar percebeu pela primeira vez que a funda dela era mais lon-ga que a dele, consideravelmente mais longa. Girava e gi-rava, ganhando força e velocidade. Quando Isabel soltou, Edgar ficou estupefato ao ver que o figo voava bem mais rápido que o dele. Não apenas isto, mas acertou bem no

meio da árvore do segundo ano na qual seu figo apenas resvalara.

Era verdade. Isabel atirava melhor do que ele. E provavelmente também poderia arremessar um figo negro mais longe.

— Há muito tempo atrás eu vi você fazer uma funda, então também fiz uma.

Edgar não sabia o que pensar. Não demonstrou nenhuma emoção — apenas um olhar vazio — o que não era surpreendente, já que não dormia, bebia ou comia há tanto tempo.

Isabel estava à sua frente, com a raiva agora trans-formada em preocupação.

— Na noite passada, quando você não retornou depois de um bom tempo — Isabel parou, constrangida, tentando encontrar as palavras certas. — Pensei que nun-ca mais fosse voltar.

Edgar finalmente começava a entender que tinha gastado tanta energia tentando afastar as pessoas durante todo aquele tempo para permanecer escondido, que não tinha percebido as verdadeiras intenções de Isabel. Ela queria apenas ser amiga dele. E mesmo assim ele conti-nuava furioso.

— Não confio em ninguém — disse Edgar. — E tenho medo que você conte a outra pessoa.

Isabel se virou e correu um pouco por entre as ár-vores. Quando voltou, trazia um punhado de farinha e uma xícara de água para Edgar. Isabel veio em seu auxílio quando estava mais fraco; e ele não conseguiu resistir e esticou a mão.

— Por que você tem que escalar os despenhadei-ros, sabendo que isso é proibido? — perguntou Isabel,

recolhendo a farinha e a água para que Edgar não os al-cançasse.

— Não posso te dizer. Os dois estavam diante de um impasse. Eram como

duas mudas solitárias perto uma da outra, enraizadas no solo, incapazes de se aproximarem.

— Tenho meus motivos para escalar o despenha-deiro — disse Edgar. — Não posso te dizer quais, mas são muito importantes.

As sobrancelhas escuras de Isabel eram seus traços mais expressivos, e se moveram levemente para cima, o que dizia a Edgar que ela esperava que ele continuasse. Ao ver que Edgar não tinha mais nada a oferecer, Isabel ce-deu e entregou a farinha e a água.

— Não vou contar a ninguém o que está fazendo, prometo que não vou. E nunca seremos amigos se eu continuar bisbilhotando por aí tentando entender o que você faz, então não farei mais isto.

Edgar tomou uns goles de água e engoliu um farto pedaço da massa de farinha, quase sem mastigar. Sempre fora um solitário, mas agora contava com Isabel e Samuel — dois aliados, quando antes não havia nenhum. A velo-cidade com que as coisas avançavam o deixava nervoso e ainda assim a idéia de ter parceiros em quem pudesse con-fiar o fascinava.

— Tem havido muita falação no pomar nestes úl-timos dias — disse Isabel.

Edgar olhou para cima nervoso, imaginando que a notícia sobre sua escalada tinha se espalhado.

— Ah, não, eles não sabem nada sobre sua escalada — tranquilizou-o Isabel, como se lesse sua mente.

— O que é, então?

— Lembra quando o chão sacudiu ontem e ante-ontem?

Edgar fez que sim com a cabeça. — As pessoas estão assustadas. Os adultos se reu-

niram na aldeia na noite passada, mas não consegui chegar perto o bastante para ouvir. Estão se preparando para al-guma coisa. E aquele homem, você se lembra, que passou mal durante o jantar naquela noite?

Edgar acenou com a cabeça novamente. — Bem, ele ainda está doente. Pelo que consegui

ouvir, ele não comeu ou voltou ao trabalho. Apenas fica deitado na cama gemendo. As pessoas estão aflitas com isto. Acham que a causa disto talvez esteja no pomar.

— Quer dizer, algo que ele comeu? — Não sei. — Isabel deu de ombros. — Bom, isto não tem nada a ver com a gente —

disse Edgar, mudando de assunto. A comida e a água es-tavam clareando seus pensamentos e havia um pouco mais de energia em suas pernas. — Daqui a umas duas noites terei que ir a um lugar. Acha que pode me conse-guir algo?

As sobrancelhas de Isabel se ergueram. Talvez Ed-gar tenha por fim decido confiar nela.

— Amanhã à noite, se eu conseguir, estarei viajan-do rumo à Aldeia dos Coelhos numa missão importante. Vou precisar de água e comida para a jornada. Você acha que consegue algo para mim?

— Sempre recebo mais comida do que preciso. A resposta fez Edgar se dar conta mais uma vez

que tinha subestimado por muito tempo a esperteza dessa garota do pomar.

— Sabe onde costumo dormir, no lado distante do pomar principal?

Isabel acenou com a cabeça. Pode me encontrar lá de manhã com algo para

comer, e de novo, depois do jantar? — Posso. Edgar comeu o resto da massa de farinha e bebeu o

que sobrava da xícara, devolvendo-a para Isabel. Os dois se separaram. Isabel caminhou em direção à casa do Sr. Ratikan e Edgar foi para o lado contrário, para o lugar onde passava a noite.

Pouco tempo depois, Edgar ouviu o estalo de uma funda e se abaixou no pomar. Um figo negro se chocou contra uma árvore ao seu lado e caiu no chão a seus pés. Quando olhou para trás não viu ninguém, havia apenas as árvores do pomar e o som de uma garotinha rindo a dis-tância.

CAPÍTULO

8 A ALDEIA DOS COELHOS

Fiel à promessa, Isabel levou comida para Edgar no dia e na noite seguintes. Conversaram, mas só um pouco, e I-sabel teve o cuidado de não fazer muitas perguntas. Edgar ficou surpreso com a quantidade de comida que ela con-seguira trazer e ficou especialmente satisfeito com a água, que era muito mais difícil de obter. Ela realmente sabia se virar bem.

Edgar aproveitara uma boa noite de sono na grama macia do pomar e um dia tranquilo de trabalho quase in-teiramente livre de encontros com o Sr. Ratikan. Enquan-to aguardava sob a luz do anoitecer, pronto para embarcar em sua jornada, um arrepio de empolgação percorreu seu corpo. Esta seria a primeira vez que Edgar exploraria a Terra Média longe do pomar.

— Você precisa de figos negros? — perguntou I-sabel. — Tenho alguns comigo.

Edgar balançou a cabeça, pois já levava dois figos consigo. Procurava andar com pouco peso.

— Eu poderia fazer uma destas bolsinhas para você amarrar na cintura. Na minha cabem até dez figos. Você pode enterrar a bolsa como eu e só pegá-la quando preci-sar.

Edgar tinha de admitir que esta parecia ser uma boa idéia para o futuro, uma vez que nunca se sentira tão vul-nerável antes. Ele quebrara duas das regras da Terra Média e planejava continuar a fazê-lo. Carregar uma quantidade maior de figos negros enquanto andasse por aí parecia in-teligente.

— Tome cuidado — disse Isabel, de saída, corren-do pelo pomar até a aldeia do outro lado.

Havia três aldeias na Terra Média e cada uma for-necia um artigo diferente — coelhos numa, figos na outra e ovelhas na terceira. As fazendas e aldeias ficavam perto das cachoeiras e Edgar tinha de ficar longe delas para evi-tar ser visto. Depois, quando estivesse bem afastado do pomar, poderia voltar e caminhar junto aos despenhadei-ros.

A Terra Média se tornava seca e poeirenta à medida que ele se distanciava da água. Depois de certo tempo, Edgar se abaixou e tocou o solo. Era duro e infértil, com-pletamente destituído de vida. Enquanto estava em silên-cio, sentindo-se com frio e sozinho, o chão começou a mexer. Devagar a princípio, mas logo depois a onda de tremores se tornou mais intensa e levantou poeira pelo ar. Edgar se ajoelhou no chão, esperando e pensando. Não demorou muito e quando acabou, ele se levantou e co-meçou a correr até ser capaz de expulsar a estranha ocor-rência de seus pensamentos.

Edgar trouxera consigo um único figo seco — um tesouro raro que tinha sido bem escondido desde a última colheita.

Não era um figo negro, mas sim um que já estivera fresco e macio. Se fossem guardados por tempo suficiente ficavam duros e esfarelavam, mas tinham um sabor mag-

nífico. O mesmo não podia ser dito dos figos negros, que não eram comestíveis em absoluto. Quanto mais longe Edgar se afastava do pomar, ele sabia, mais valioso seria seu pequeno tesouro. Edgar achava que na Aldeia dos Coelhos provavelmente conseguiria dez coelhos pelo figo seco em seu bolso, embora os coelhos não fossem seu objetivo. O que procurava eram informações sobre o pai de Samuel.

Neste momento, pode ser que tenha passado pela sua cabeça perguntar por que os figos eram um artigo tão cobiçado em Atherton e uma longa e enfadonha cami-nhada por um prado sem vida parece ser uma boa hora para contar. Não havia balas ou chocolate em Atherton, nenhum doce ou bombom. A não ser, é claro, que a pes-soa tivesse um figo, que neste caso poderia tornar tudo mais doce, fosse o figo fresco da árvore, batido para fazer manteiga ou ressecado e moído até virar pó. Na Terra Média, os figos eram realmente um tesouro, já que as Terras Altas exigiam toda a produção para eles. De milha-res de figos colhidos, apenas um décimo permanecia na Terra Média e estes eram geralmente afanados em segredo durante a colheita, arrancados um a um e escondidos num chapéu ou no bolso.

Era tarde quando Edgar chegou à Aldeia dos Coe-lhos e ele foi cuidadoso ao se esgueirar pela cidade. Era um lugar jovem. A pessoa mais velha da aldeia tinha 40 anos e cerca de trezentos indivíduos moravam lá. Não e-xistia cemitério no local, pois nunca ninguém da Aldeia dos Coelhos morrera.

Edgar esperava encontrar alguém com quem pu-desse conversar, alguém que não fizesse muitas perguntas mas que pudesse responder a algumas das suas. Percorreu

a poeirenta rua principal e entrou no único estabeleci-mento público que estava aberto — uma velha taverna com uma cozinha que servia coelhos, coelhos e mais coe-lhos. Também ofereciam pequenas quantidades de água, mas esse era um artigo muito caro para a maioria dos que passavam por ali.

Ao entrar, Edgar sentiu o cheiro da carne cozi-nhando. Uma mulher varria o piso duro e imundo com uma vassoura. O local estava parcamente iluminado por uma fogueira no centro, onde um sujeito girava três coe-lhos inteiros enfiados num espeto. O aroma era terrivel-mente bom.

Uma das três pequenas mesas do local estava ocu-pada por um homem e uma mulher, e as outras duas es-tavam vagas. Edgar passou pela fogueira e se sentou numa das mesas disponíveis.

— Está um pouco tarde para um estranho andar na rua — falou a mulher sentada à mesa. — O que um jo-venzinho como você está fazendo longe de casa a uma hora destas?

Edgar já esperava por perguntas e tinha inventado uma história.

— Trabalho no grande pomar. Quer dizer, na ver-dade moro no grande pomar — ele parou e fez uma cara de constrangimento, torcendo para que o vissem como o órfão que era. — Meu guardião me mandou buscar coe-lhos para uma comemoração, e acabei saindo tarde. So-mos muito ocupados por lá.

— O Sr. Ratikan? Ouvi dizer que é uma tarefa difí-cil trabalhar para ele — comentou o camarada sentado com a mulher. Ele tinha uma barba cheia de falhas no

rosto, como se ainda não fosse velho o bastante para ter uma barba vasta, mas estivesse decidido a tentar.

— Tomara que ele não o esteja esperando para o trabalho amanhã — acrescentou a mulher. — Você vai passar a maior parte da noite andando para conseguir chegar lá de manhã.

Edgar acenou com a cabeça melancolicamente an-tes de responder.

— Será uma longa caminhada e um dia cheio de trabalho no pomar amanhã. Ele nos faz trabalhar por ho-ras e horas, mas não ligo, de verdade.

— Está vendo? O Sr. Ratikan é um homem difícil, já tinha ouvido isto antes — disse o homem, satisfeito por estar certo.

Eles disseram seus nomes a Edgar — Morris e Amanda

— e Edgar disse o seu a eles. Edgar achou que eles pareciam do tipo que poderiam sentar a uma mesa e ficar por horas à toa, conversando sobre nada em particular com qualquer um que passasse por ali. Olhou para a fo-gueira no meio da sala e assistiu ao homem cutucar um dos coelhos com um espeto afiado, com o sangue aguado gotejando. Os carvões assobiavam e fumegavam.

— Como pretende pagar por estes coelhos que procura?

— disse o homem junto à fogueira. Tinha cabelos negros que pareciam águas escuras e um rosto solene que refletia a luz amarela e laranja. Edgar vasculhou o bolso à procura do figo seco e o colocou na mesa, o que causou uma mudança abrupta no tom vagaroso de Morris e A-manda. Os dois foram dominados por um súbito interesse

e o homem girando os coelhos lambeu os lábios, pensan-do naquele sabor que não desfrutava já fazia algum tempo.

— O Sr. Ratikan quer dez coelhos pelo figo — disse Edgar. — Foi o que ele me disse para pedir.

Edgar precisava de uma razão para tornar sua visita à taverna plausível, mas agora que tinha dito começou a se perguntar o que faria com dez coelhos caso realmente os conseguisse. Rapidamente analisando a questão, decidiu que poderia sorrateiramente deixá-los na porta das casas daqueles que tinham sido mais bondosos com ele no po-mar. Ninguém precisaria saber de onde tinham vindo.

Morris e Amanda olharam um para o outro por um longo e silencioso momento e então acenaram com a ca-beça.

— Temos dez coelhos em casa que podemos trazer aqui num segundo — disse Morris, levantando-se de sua cadeira a caminho da porta.

— Espere aí um minuto! — disse o homem que preparava os coelhos na fogueira, cujo nome era Briney. — Este lugar é meu e, se há um negócio sendo feito, eu devo estar incluído.

Edgar sentou-se calmamente e deixou as faíscas voarem por entre as pessoas no recinto. A mulher com a vassoura interrompeu o trabalho e juntou-se à conversa. Edgar captou que seu nome era Maude e que era esposa de Briney, o cozinheiro. O que se seguiu foi uma longa e acalorada discussão que jogou o preço do figo para as al-turas. Depois que tudo foi dito e feito, os termos da nego-ciação eram os seguintes:

• Morris e Amanda comprariam o figo e pa-gariam dez coelhos para Edgar e um para o cozi-nheiro. Deveriam trazer os coelhos imediatamente.

• Como proprietário do estabelecimento,

Briney receberia um pedaço do figo, o transforma-ria em pó e usaria para temperar os três coelhos pendurados sobre o fogo. Morris e Amanda fica-riam com o resto do figo para fazer o que quises-sem.

• Quando o casal retornasse com os onze

coelhos, receberia um coelho perfeitamente assado e temperado, além de uma pequena xícara de água. Edgar receberia uma xícara de água e um coelho temperado inteiro para o jantar, enquanto Briney e Maude se deliciariam com o coelho restante. Quanto mais tempo Edgar passava em silêncio,

mais vantajoso o acordo ficava para ele. Este seria um banquete de dar água na boca, algo a que ele não estava acostumado, pois Edgar só havia provado coelho duas vezes antes, em ambas as vezes preparados pelo Sr. Rati-kan, e em ambas as oportunidades o coelho estava seco como um deserto. Morris, Amanda e Maude olharam por sobre o ombro de Briney enquanto este partia cuidadosa-mente um pedaço do figo seco, debatendo se as porções eram justas ou não. Pouco depois de chegarem a um a-cordo, o casal saiu para buscar os coelhos, deixando Edgar sozinho com o cozinheiro e sua esposa.

— Posso fazer uma pergunta? — disse Edgar, se curvando próximo aos coelhos no espeto e imaginando

como seria o gosto daquela pele crocante. Briney res-mungou, acenando com a cabeça e parecendo de acordo, embora sua atenção estivesse na verdade voltada para o pedaço de figo que estava moendo. Era possível que nem mesmo tivesse ouvido Edgar.

— Já ouviu falar em pessoas caindo do céu? Briney tinha terminado de moer o figo e o salpicava

cuidadosamente sobre os coelhos, enquanto girava o es-peto com a outra mão. Não disse uma palavra até que to-do o pó grosso tivesse acabado de suas mãos e os coelhos chiassem saborosamente.

— Esta é uma pergunta um tanto esquisita, meu jovem — disse Briney. Em nenhum momento tirou os olhos dos coelhos. Estavam quase prontos. — Por que pergunta algo assim tão estranho?

Edgar não tinha pensado numa resposta para esta pergunta e subitamente se deu conta de que esta era uma pergunta bem esquisita, especialmente quando vinda de um garoto de 11 anos vagando no meio da noite à procura de coelhos para comprar.

— Estes coelhos têm um cheiro ótimo — disse Edgar, tentando mudar de assunto. Suspirou de deleite pelo aroma.

Briney finalmente se virou para olhar Edgar dire-tamente.

— Se algum dia algo caísse dos céus, posso prati-camente garantir que eu ficaria sabendo. Todo mundo passa por aqui a caminho de algum lugar e todos têm uma história para contar. Pessoas caindo do céu não faziam parte de nenhuma delas e nunca soube de ninguém que tivesse visto um corpo no sopé dos despenhadeiros.

Ele parecia pouco confortável com a idéia de uma pessoa morta, como se isto fosse para ele algo difícil de entender.

Edgar ficou aliviado ao ouvir aquilo. Certamente não parecia que o pai de Samuel tinha caído das Terras Altas, exatamente como suspeitava.

— No entanto — continuou Briney, tirando os co-elhos do fogo e os colocando sobre a mesa vazia. — Certa vez surgiu aqui um homem que falava sem parar sobre um quadrúpede enorme que tinha caído do céu. O homem tinha escutado o animal bater nos despenhadeiros en-quanto descia e mal conseguiu se desviar quando ele che-gou ao solo. Ou pelo menos foi o que o viajante disse. — Briney revirou os olhos e fez um gesto como que para di-zer que a pessoa que contou a história era provavelmente louca, tirando então os coelhos do espeto e os colocando, fumegantes, sobre a mesa.

Logo em seguida as portas se abriram e Morris e Amanda chegaram, cada um carregado de coelhos sob os braços. Para surpresa de Edgar, os coelhos ainda estavam vivos. Tinha pensado que eles viriam embalados e prontos para serem levados. Morris fechou a porta da taverna e soltou os coelhos no chão. Os animais saltavam em todas as direções e Edgar começou a rir, mas todos os outros agiram como se 11 coelhos pulando pelo salão fosse um acontecimento completamente normal.

— Como vou levá-los para casa? — disse Edgar. Então se imaginou caminhando de volta para o pomar com dez coelhos presos a uma corda. Ele provavelmente não conseguiria voltar.

— Não se preocupe, Edgar — disse Maude, que varria o chão. Tinha acabado de colocar todos os coelhos

cozidos em pratos de madeira. Quando ela se aproximou da mesa de Edgar com sua refeição, ele observou seu ros-to redondo e seus lábios grandes e vermelhos. Parecia o tipo de pessoa que seria um pouco rechonchuda se tivesse oportunidade para isso. Maude colocou o coelho na mesa à frente de Edgar, agarrando duas das patas e as arran-cando num estalo.

— É muito coelho para um garoto tão pequeno — disse ela. — Troco estas duas patas por uma sacola de co-elho.

Edgar fez que sim com a cabeça e Maude começou a comer a pata de coelho em sua mão esquerda enquanto andava. Pouco depois, retornou com uma xícara de água e então se sentou com Briney e degustou o que sobrara de sua própria refeição.

A meia hora seguinte foi uma das melhores na vida do ainda jovem Edgar. Todos pareciam convidá-lo para dentro de suas vidas, mesmo que apenas por uma noite, praticamente tontos pelo prazer inesperado provocado pelo coelho coberto de figo. Contaram uma fábula sobre coelhos gigantes que devoravam crianças e uma outra so-bre um homem que queria tanto ser um coelho que um dia saltou para fora da aldeia e nunca mais voltou. Todos eram simpáticos com ele, todos riram e o jantar estava de-licioso. Quando restavam apenas ossos em seu prato e uma xícara vazia em sua mão, Edgar mostrava-se satisfeito e alegre.

Depois que a refeição tinha acabado e todas as his-tórias foram contadas, Morris juntou os bichos na sacola de coelhos, um artigo bastante útil feito de peles de coe-lhos amarradas, com pequenos buracos por toda parte, para que pudessem respirar.

— É melhor ir andando — disse Morris. — Você tem uma longa caminhada pela frente e dez coelhos pe-sam um pouquinho. Tem certeza de que tem de voltar? Poderia passar a noite conosco se quisesse.

Edgar estava prestes a responder quando Morris colocou a mão no ombro do garoto e o interrompeu.

— Tenha cuidado, Edgar. Todos aqueles tremores no solo... Existe uma razão para aquilo. As coisas não es-tão seguras, pelo menos não por muito tempo.

— Morris! — gritou Briney de onde estava, próxi-mo ao fogo. Morris olhou para ele com uma expressão de impotência, mas Briney balançou a cabeça com um olhar de repreensão. Morris se virou novamente para Edgar.

— Apenas tenha cuidado, tudo bem? Volte para o pomar e fique lá por algum tempo. Nada de missões no-turnas.

— Deixe o garoto ir, Morris — disse Briney. — Existe algo que eu deva saber? — perguntou

Edgar. Briney fixou o olhar no fogo e não levantou os olhos ao responder.

— Você será bem-vindo aqui sempre que não tiver para onde ir, mas por enquanto precisa voltar para casa.

Edgar não sabia bem como agradecer a seus novos amigos, pois obrigado era algo que tivera poucas oportu-nidades de dizer. Torcendo para que compreendessem, acenou para o cozinheiro, pegou a sacola de coelhos e deixou a taverna.

Em pouco tempo Edgar estava fora da aldeia com um saco de coelhos se contorcendo às suas costas. Mesmo se viajasse rápido, teria apenas umas duas horas de sono no pomar antes do amanhecer. Mudou o percurso desta vez, caminhando próximo à beira dos despenhadeiros que

levavam às Terras Altas. A esta hora da noite não esperava encontrar ninguém tão longe das cachoeiras. Podia enxer-gar o despenhadeiro e gostava de passar a mão em sua superfície enquanto caminhava. Era um hábito ao qual se acostumara, como se as pedras fossem suas companheiras.

Os pensamentos de Edgar viajaram até Samuel e as Terras Altas lá em cima, e ele imaginou seu novo amigo sozinho em seu quarto, lendo livros. Seriam boas as notí-cias de que seu pai não tinha caído, ou pelo menos de que ninguém na Aldeia dos Coelhos tinha visto pessoas caindo ou encontrado corpos perto dos despenhadeiros. Mas Samuel teria que esperar mais alguns dias para receber es-sas notícias.

Edgar duvidava que também precisasse viajar até a Aldeia das Ovelhas para continuar sua investigação. Tinha certeza de que teria a mesma resposta que obtivera na ta-verna. Na Aldeia das Ovelhas havia um número maior de pessoas — cerca de quinhentas — e elas viajavam com frequência para a Aldeia dos Coelhos. Certamente alguém teria mencionado algo a Briney caso tivesse visto uma coisa assim tão notável.

Edgar caminhou por um bom tempo com o peso dos coelhos em suas costas, ouvindo os pés se arrastando no chão. Depois ouviu um barulho estranho que não conseguiu identificar muito bem. De início pensou que pudesse ser o som dos coelhos se contorcendo no saco mas, quando parou, os coelhos pareciam estar dormindo. O som continuava, como pedras raspando e faiscando umas contra as outras.

Edgar colocou a sacola de coelhos no chão e a viu se aplainar. O alto da sacola estava bem amarrado por uma corda, prendendo os coelhos enquanto saltavam para

a frente e para trás lá dentro. Os buracos na sacola eram do tamanho da ponta do polegar de Edgar e alguns ani-mais curiosos colocaram os focinhos nas aberturas.

Edgar ouvia com atenção, encostando as palmas das mãos no despenhadeiro. Sentiu uma vibração nas pe-dras que o fez pular para trás. Por que a muralha estava tremendo? Parecia a Edgar que o som vinha das próprias rochas. Mas a origem do som estava mais abaixo. Edgar se colocou de joelhos e examinou a base do despenhadeiro. E ali viu a fonte daquele ruído estranho, sob a luz fraca.

De início, não acreditou no que seus olhos viam. Mas então colocou a mão na fina camada de poeira onde o despenhadeiro se encontrava com a Terra Média. Podia ver e sentir o que estava acontecendo. O despenhadeiro estava lentamente afundando, raspando no solo da Terra Média e desaparecendo no chão.

Edgar compreendeu então por que seus pontos de pegada tinham sumido quando escalou até as Terras Altas. Entendeu o motivo dos tremores.

As Terras Altas estavam afundando. No restante do caminho para casa, Edgar assistiu e

ouviu aos despenhadeiros. Viu que naquela hora da noite os despenhadeiros tinham descido duas vezes o tamanho de sua mão. E então — como se estivesse sonhando com aquilo — o ruído cessou. O despenhadeiro permaneceu imóvel e silencioso e não se mexeu mais pelo resto da jornada.

Uma hora depois Edgar tinha chegado à aldeia junto ao pomar com a alvorada se aproximando rapida-mente. Se a sacola fosse aberta, todos os coelhos saltariam para longe. Também não poderia deixá-los nas portas das casas, então caminhou para dentro do pomar, largando

um coelho vivo aqui e outro ali ao longo do caminho. Quando finalmente adormeceu sob as árvores, havia dez coelhos ocupando-se em causar danos no pomar.

CAPÍTULO

9 PERIGO NO POMAR

Pouco mais de duas horas depois, o sono de Edgar foi in-terrompido pelo som da voz de Isabel.

— Levanta, Edgar! Levanta! — Ela puxou seu braço, tentando colocar Edgar sentado. Ele deu um salto e ficou de pé, se apoiando com a mão numa árvore. — O Sr. Ratikan está soltando fogo pelas ventas! Alguém soltou uns coelhos no pomar e eles roeram algumas das mudas. Nunca o vi tão furioso.

Ela olhou para Edgar e viu imediatamente por sua expressão que o garoto órfão do pomar estava seriamente encrencado.

— Foi você? Ela esperava que o Sr. Ratikan estivesse apenas co-

locando a culpa em Edgar, e não que realmente tivesse sido ele o responsável.

— Mas por que, Edgar? Edgar estava com dificuldade de compreender a si-

tuação. O descanso de duas horas o tinha deixado com um zumbido vertiginoso na cabeça.

— Pensei que já estariam cozidos quando eles me deram — disse Edgar, o que fez Isabel pensar que ele a-inda estivesse dormindo e sonhando.

— Acorda, Edgar! Isto é sério! O Sr. Ratikan está realmente furioso desta vez. Não sei o que pode fazer se o encontrar aqui.

Estava finalmente desperto e plenamente consci-ente da estupidez de suas ações na noite passada. Ele tinha pouco tempo se o Sr. Ratikan estivesse vindo na direção deles.

— Escute, Isabel — Edgar fez um sinal para que ela se juntasse a ele atrás da árvore onde estava. — Pode ser muito perigoso para mim permanecer aqui. Se ele vier me procurar, terei que ir embora.

Isabel não podia imaginar o pomar sem Edgar. — Quero que faça mais uma coisa para mim —

continuou Edgar. — Tudo está mudando, Isabel. Não entendo por que e nem exatamente como, mas existe um lugar onde eu talvez encontre algumas respostas. Se eu ti-ver ido embora quando você tentar me encontrar nova-mente, precisarei que coloque sua discrição e seus méto-dos de espionagem em ação, entendeu?

Isabel assentiu com a cabeça. Começava a suspeitar onde Edgar estava indo e parecia ser uma péssima idéia.

— Não pode ir às Terras Altas, Edgar. Não irão ajudá-lo. Irão castigá-lo por subir até lá.

Edgar deu uma olhada de trás da árvore para ver se alguém estava vindo e não viu nada, voltando-se então para Isabel.

— Fique de olho no Sr. Ratikan e preste atenção, como nunca fez antes. Ouça o que as pessoas da aldeia estiverem falando. Descubra o máximo que puder. Eu voltarei, prometo.

— Leve isto com você. — Isabel desamarrou a bolsa de figos negros de sua cintura. — Tem um pouco de

massa de farinha aí com os figos, e minha funda. Posso fazer outra.

Isabel queria dizer mais — para convencê-lo a não escalar até as Terras Altas — mas foi forçada a parar quando o som de uma voz masculina veio rolando através das árvores.

— Edgaaaaaaaaaar! — gritava o Sr. Ratikan. — É melhor correr, Edgar. Melhor nós dois cor-

rermos — disse Isabel. O Sr. Ratikan já estava à vista, segurando a bengala

numa mão e um coelho marrom, se contorcendo, na ou-tra. Isabel sumiu num piscar de olhos antes que o Sr. Ra-tikan pudesse vê-la, mas Edgar permaneceu por um pouco mais de tempo, amarrando a bolsa de figos negros em volta da cintura.

O Sr. Ratikan avistou Edgar escondido atrás da ár-vore. Apontou a bengala na direção da árvore e desejou estar perto o bastante para derrubar o garoto.

— Eu sei que foi você. Sei disso. Você ousa negar? Edgar analisou suas opções: poderia confessar, mentir ou colocar a culpa em outra pessoa. Qualquer que fosse sua escolha, tinha certeza que ficaria sem água e receberia uma surra pavorosa. O Sr. Ratikan sabia da verdade e não havia escapatória. Então Edgar deu as costas para o homem malvado e correu para longe do pomar o mais rápido que pôde.

— EDGAAAAAAR! — gritou o Sr. Ratikan, com a raiva se transformando em fúria enquanto começava a perseguir o garoto. Mas Edgar continuou a correr, certo de onde suas pernas o levariam. Atherton estava mudando e Edgar precisava encontrar mais respostas do que o po-

mar tinha a oferecer. Precisava pegar o livro e encontrar Samuel.

Edgar passou o dia escondido na aldeia, entre uma

pilha de lenha e uma casa. Era um lugar bem apertado, mas uma vez lá dentro conseguiu deitar e adormecer. Quando veio a escuridão, a aldeia ainda estava cheia de vida e foi difícil encontrar o momento certo para escapar. Teve que ficar deitado ali por um bom tempo até que as coisas finalmente começassem a se acalmar e pôde então se esgueirar silenciosamente até os despenhadeiros.

Ao escalar a superfície rochosa, parou para reaver o livro de coisas secretas. Alguns instantes depois, sentiu o penhasco vibrar levemente sob sua mão. Estaria o pare-dão movendo-se para cima ou para baixo? Será que as Terras Altas estavam sempre subindo e descendo, como uma respiração profunda que só acontecia durante a noite, quando ninguém estava acordado para notar?

A noite passou e o início da manhã chegou en-quanto Edgar ainda escalava. O início tardio faria com que chegasse às Terras Altas à luz do dia. Quando chegou ao topo do despenhadeiro, o tremor parou e tudo ficou i-móvel novamente. Era como se as próprias rochas sou-bessem que Edgar estava prestes a chegar ao topo para ver as Terras Altas pela primeira vez, e pararam em res-peito à sua visita.

A empolgação de Edgar foi momentaneamente acompanhada por um súbito receio. Seu estômago fez um estrondo no instante em que sua cabeça começava a ul-trapassar a beira, uma vez que já fazia muito que comera a

massa de farinha da bolsa. Estava sem comida e água e não tinha idéia alguma do que iria encontrar nas Terras Altas. Era um visitante num lugar hostil com quatro dias inteiros pela frente, até que seu único amigo viesse a sua procura.

As árvores que antes tinha visto apenas no escuro em sua última visita estavam a uma curta distância. Eram diferentes daquelas no pomar, muito mais altas e majesto-sas, e tinham a casca branca como o leite. Não conseguia enxergar além delas. Em frente às árvores havia um mar de grama verde e alta que parecia macia e atrativa. Seria um bom lugar para se esconder.

Edgar invadiu as Terras Altas e correu em direção à linha verde. Quando chegou à grama, descobriu que ela alcançava a altura de sua cintura, mas conseguiu facilmen-te abrir caminho por ela, empurrando-a de um lado para outro como se fosse líquida. Arrancou alguns pedaços com a mão, cheirou-os e tentou comê-los. O gosto era amargo demais e Edgar os cuspiu, desejando um copo d’água como nunca.

Em pouco tempo a sede sairia de seus pensamen-tos. Edgar sempre fora um garoto curioso, mas o acesso a um mundo completamente novo que nunca tinha visto fazia sua cabeça zunir de empolgação. Edgar se abaixou por entre a campina e se arrastou até chegar ao final do campo, deixando a grama para trás.

As árvores diante dele eram grossas e tinham folhas douradas que se inclinavam em todas as direções. Andou por entre elas e sobre as cascas brancas e lisas. Tocou as folhas douradas e momentaneamente se perdeu na idéia de subir até a copa e pular de um galho para outro, sen-

tindo as grandes folhas roçarem em seu rosto enquanto voava.

Do outro lado das árvores, oculta por mais folhas pendentes, Edgar avistou mais uma parte coberta por grama — mas desta vez a grama era amarela.

Curioso para saber como seria tocá-la, andou em sua direção, mas a poucos passos de distância se assustou com um ruído. Parecia um espirro do Sr. Ratikan com todos os perdigotos e fluidos voando de sua boca, mas era muito mais alto. Edgar correu ao ouvir o ruído novamen-te, mergulhando de cabeça na grama amarela do outro la-do das árvores.

Depois de um longo período de silêncio, que pare-ceu durar uma eternidade, Edgar lentamente se pôs de pé até que seus dois olhos espiassem por sobre o gramado amarelo. Olhou para as árvores, mas não havia coisa al-guma; virou então para o outro lado e ali avistou o que tinha provocado o barulho.

Eram animais enormes, dez vezes o tamanho de uma ovelha e cem vezes o tamanho de um coelho. Esta-vam numa cerca, comendo a grama amarela bem perto dali. Um olhou para cima e fez o barulho de espirro no-vamente. Olhou para Edgar mas parecia indiferente à sua presença.

Os animais eram incríveis de se ver, mas mesmo assim só chamaram a atenção de Edgar por um instante, pois atrás deles estavam as Terras Altas, completamente à vista. Os sonhos mais loucos de Edgar não o tinham pre-parado para o que viu.

As Terras Altas pareciam vivas, como se a própria terra estivesse respirando. Havia campos de verde e dou-rado se estendendo infinitamente até onde a vista de Ed-

gar alcançava. Espalhados por entre eles estavam peque-nos pomares com as árvores de tronco branco. Riachos de um azul brilhante serpenteavam em curvas acentuadas de um lado para outro, cortando a terra em pedaços. As campinas de verde e dourado empalideciam à beira dos rios, como se as cores fossem lavadas pela força da água. Edgar seguiu com o olhar o riacho mais próximo — para a frente e para trás pela grama — até não ter certeza de onde uma faixa azul terminava e outra começava.

Seus olhos se concentraram bem no centro das Terras Altas, onde o entrelaçamento de riachos tinha seu ponto de partida. Havia lá uma grande colina de inclinação suave com uma formação de pedras brancas cercada por uma parede de pedras ainda mais brancas no topo. A água, ao que parecia, vinha de algum lugar do topo da colina, de dentro da estrutura branca.

Edgar sentiu o céu da boca seco, junto a uma língua igualmente seca, e não desejou nada mais do que caminhar para o canal de água mais próximo e saciar sua sede. Mas havia pequenos grupos de casas em todas as direções ao longo dos riachos e teve receio de ser visto. Os animais gigantes partiram em grupo e ele pôde senti-los amassan-do a terra com os pés. Será que eram eles que faziam as Terras Altas se moverem?

Os animais tinham se assustado com alguém que entrara na área cercada. Era um homem vestindo calças azul-chumbo e uma camisa comprida cor de creme. Outro homem veio atrás do primeiro e os dois começaram a conversar enquanto tratavam dos animais. Edgar ficou nervoso e foi arrastando os joelhos na grama até chegar às grandes árvores. Ali não viu ninguém e decidiu correr a-baixado junto à grama alta em busca de água. Se conse-

guisse permanecer incógnito e atravessar a fileira de árvo-res, no fim acabaria chegando a um dos três riachos.

A correnteza azul em curva que tinha visto estava se movendo lenta e silenciosamente; Edgar não podia es-cutá-la. Tentou ouvir o som de uma cachoeira, mas logo percebeu que o barulho de água caindo da beira das Ter-ras Altas seria bem diferente do estrondo que a água pro-vocava ao bater na Terra Média. Correu, curvado próximo à grama, até que sua boca ficou tão seca que pensou que não conseguiria mais engolir.

Edgar começou a achar que sua vinda às Terras Al-tas tinha sido um erro. Se tivesse permanecido no pomar, Isabel teria lhe trazido água e comida. Mas não tinha co-mo descer agora, com o pouco de energia que lhe restava. Não tinha nem mesmo certeza de que conseguiria sobre-viver a este dia, estando tão sozinho e confuso. E se um daqueles animais viesse atrás dele? E se fosse descoberto por um guarda e atirado do despenhadeiro como punição?

Procurando por um mínimo de consolo, Edgar ti-rou do bolso da frente de sua camisa o livro que vinha carregando. Seu livro. Ele o abriu e olhou para as palavras que não conseguia ler, imaginado o que significavam. A-therton não é o que você imagina. Edgar fixou o olhar nas ár-vores e na grama e falou num sussurro seco e estalado: — Preciso encontrar Samuel.

Colocou o livro de volta no bolso e continuou procurando desesperadamente por uma corrente de água límpida e fresca que pudesse salvá-lo.

CAPÍTULO

10 O EXPERIMENTO DO SR.

RATIKAN O caminho ficou mais estreito até que Edgar não pôde mais correr sem roçar nas árvores e na grama alta. Quan-do a trilha desapareceu completamente, ele se viu andando sobre um mar de grama amarela cuja altura ultrapassava sua cabeça. Assim, foi uma surpresa quando subitamente se libertou do relvado alto e caiu de cara num riacho transparente.

Edgar nunca tinha sentido o aguilhão de água gela-da antes e, quando ergueu a cabeça para respirar, gemeu e tossiu. Sentiu-se mais acordado do que jamais estivera — vivo e gelado, com água pingando do seu rosto. Isto esta-va muito distante do reservatório sujo e quente no qual se banhava uma vez por semana na Terra Média.

A correnteza não chegava a bater em seus joelhos, mas era tão clara que dava para ver o fundo de pedras do canal riscado de verde e dourado. Nunca estivera em á-guas como estas e não tinha certeza sobre o que fazer. Era como estar num mar de figos com tanta abundância ao seu redor que não conseguia pensar em pegar alguns e comer. Pensou que poderia gritar ou gargalhar alto, mas em vez disto se inclinou e colocou as mãos calejadas na

água. Edgar estava prestes a levantar as mãos e beber quando foi surpreendido por uma voz aguda e tranquila.

— Esta é a minha área. Você não pode brincar a-qui.

Edgar virou-se e viu uma criança com os cabelos molhados e sem camisa, de uns três ou quatro anos, para-da no meio do canal a uma curta distância. O garoto em-purrava um brinquedo flutuante de madeira para a frente e para trás na água entre suas mãos.

— Esta é minha área — repetiu o garoto, manten-do a atenção no brinquedo, sem olhar para Edgar. Atrás do garoto, o canal fazia uma curva para o lado e se perdia de vista. Edgar olhou rapidamente para o outro lado para pegar seus pertences caso precisasse fugir. Percebeu que não muito adiante o canal também se curvava para a outra direção e desaparecia mais uma vez. Estava numa espécie de charco gigante com uma correnteza calma e vagarosa.

— Onde está sua mãe? — perguntou Edgar. Não tinha bebido nem um pouco da água ainda e sua voz pare-cia áspera e cheia de ar. O garoto olhou para cima.

— Está bem ali. — Apontou para um canto lá em cima. Como que respondendo diretamente à pergunta de Edgar, a voz da mulher veio a seguir, invisível, mas pró-xima.

— Não vá além do charco, David — disse, pare-cendo uma ordem que já tinha sido dada muitas vezes an-tes.

— A mamãe está lavando — disse o garoto. — Está é minha área.

Edgar compreendeu o risco da situação. A mãe poderia chegar rapidamente e avistar um estranho — um invasor vindo lá de baixo — a poucos passos de distância

de seu filho. Ainda assim, viu uma oportunidade que não podia deixar passar. Edgar apanhou um pouco de água com as mãos e bebeu enquanto pensava no que dizer. Seu peito e sua mente se encheram de energia.

Virando-se para o garoto, disse: — David, posso sair da sua área se me ajudar com

uma coisa. O garoto logo ficou alerta, pensando se tratar de um jogo.

— Estou procurando um garoto mais velho cha-mado Samuel, um garoto da minha idade. Sabe onde ele mora?

David sorriu e segurou seu brinquedo de madeira, agora já sem interesse em fazê-lo flutuar entre suas mãos.

— Sim! Eu conheço. Ele mora perto da casa gran-de.

— Em que lugar perto da casa grande? — Da-vid... — a mulher cantarolou o nome como

as mães geralmente fazem. — Estou aqui, mamãe — disse David. Edgar te-

meu que o garoto mencionasse seu novo amigo, mas não o fez. Teve certeza de que a mãe apareceria a qualquer momento.

Edgar pressionou o garoto com um pouco mais de energia na voz:

— David, em que lugar perto da casa grande Samu-el mora?

— Perto da cozinha — respondeu. — E como faço para encontrar a casa grande? O garoto apontou para trás de si, na direção da

muralha branca e da estrutura igualmente branca que Ed-gar tinha visto de seu esconderijo na grama. Edgar tomou

mais uns goles d’água e agradeceu o garoto enquanto par-tia.

— Vou sair da sua área agora — disse ele. — Con-segue guardar um segredo?

O garoto começava a gostar de Edgar e assentiu com a cabeça veementemente.

— Não diga a ninguém que me viu, está bem? Vol-tarei para te visitar em um dia ou dois ou três, mas só se você ficar em silêncio.

O garoto acenou com a cabeça novamente. Voltou a brincar com o brinquedo flutuante enquanto Edgar de-saparecia por entre a alta grama amarela.

Samuel era a única criança que morava na Casa do

Poder e isto lhe conferia certa visão das coisas. No início, tinha sido colocado ali porque seu pai fora nomeado para o conselho dos anciãos e era o único ancião que tinha fi-lhos. Sendo uma única criança rodeado por adultos, Sa-muel era ignorado por todos e logo descobriu que podia se deslocar sem chamar muita atenção se assim o desejas-se, especialmente à noite. Durante muito tempo não se interessou pelo que se passava no aposento principal, já que isto lhe trazia lembranças dolorosas de seu pai. Mas a humilhação que sentiu ao levar as torradas para lorde Phineus e a visita de Edgar mudaram o rumo de suas i-déias. Na noite seguinte ao encontro com o garoto da Terra Média, Samuel decidiu que era hora de observar mais de perto as coisas à sua volta.

Havia um bocado de curvas e cantos na Casa do Poder, além de todo tipo de formações rochosas atrás das

quais poderia se esconder. Algumas das estruturas susten-tavam árvores, outras cercavam plantas floríferas e outras ainda eram apenas pedras decorativas de diferentes for-matos e medidas. Não eram artigos cujo tamanho pudesse esconder um adulto, mas para uma criança constituíam uma cobertura formidável caso alguém inesperado surgis-se de um canto. Era esta arquitetura recorrente de salões e objetos que fazia da Casa do Poder um lugar tão perfeito para uma criança explorar sem ser vista.

A noite se aproximava enquanto Samuel se dirigia ao andar principal, conseguindo passar por Horácio em meio às sombras enquanto o vigia cochilava. Atravessou o salão escuro até a porta do grande aposento central e ten-tou ouvir, mas não escutou nada. A porta era grossa de-mais para que Samuel escutasse através dela, mesmo que alguém do outro lado gritasse. Ali perto, uma escadaria levava aos quartos de sir Emerik, sir Philip e lorde Phi-neus. Samuel rastejou escada acima até chegar a uma pla-taforma ampla.

Em um dos lados havia uma janela de pedras por onde chegava uma luz fraca vinda de fora, e Samuel ca-minhou em sua direção. O menor barulho poderia dela-tá-lo, pois estava bem acima da câmara onde havia entre-gue o chá e as torradas a pedido de sua mãe. Não havia muita movimentação pelos andares da Casa do Poder, mas ele podia ouvir vozes do aposento abaixo.

— Temos notícias do pomar do Sr. Ratikan. Parece que nossas suposições estavam corretas. Seu experimento deu resultados favoráveis. — Era sir Emerik.

— Lorde Phineus vai querer saber. — Desta vez falava sir Philip, que parecia satisfeito com as novidades. Houve certa discussão sobre quem compartilharia a in-

formação e então Samuel repentinamente ouviu a porta do aposento se abrir. Passos se aproximavam vindos da escada e o coração de Samuel acelerou quando ele perce-beu que, quem quer que fosse, estaria na plataforma num piscar de olhos. Havia apenas uma pequena árvore cheia de folhas em um vaso de pedra para se esconder e Samuel correu até ela o mais rápido que pôde.

Estava de joelhos quando sir Philip e sir Emerik chegaram à plataforma, mas ainda não havia alcançado a pequena árvore. Samuel ficou completamente imóvel e observou. Embora a luz fosse fraca, estava completamen-te exposto e tinha certeza de que seria visto a qualquer momento.

Sir Philip e sir Emerik pareciam apressados quando viraram à esquerda e bateram à porta de lorde Phineus. Isto deu a Samuel a oportunidade de que precisava e num segundo ele estava atrás das folhas da árvore, escondido. A porta de lorde Phineus se abriu.

— Desculpe incomodá-lo, lorde — disse sir Eme-rik, sempre aproveitando a oportunidade de tomar a fren-te quando isso era possível. — Tenho notícias do pomar do Sr. Ratikan, e estou certo de que o senhor gostará de ouvi-las.

Lorde Phineus levantou a mão como se quisesse que sir Emerik parasse de falar, mas este não era tão fa-cilmente silenciado. — Podemos encontrá-lo no aposento, dentro de instantes?

Lorde Phineus se pôs de lado e convidou os ho-mens ao seu quarto.

— As paredes têm ouvidos. Cautela nunca é de-mais. Lorde Phineus observou atentamente o salão e sen-tiu que algo não estava certo. Farejou o ar enquanto os

homens entravam e relutantemente fechou a porta. Quando a porta se fechou, Samuel saltou de trás da árvore e correu escada abaixo rumo à cozinha. Ao passar apres-sado, viu Horácio ainda inclinado na cadeira, com o quei-xo caído sobre o peito.

Ao chegar à cozinha, sua mãe estava muito ocupada com o trabalho e não pôde parar para conversar com o garoto. Estava retirando baguetes do tamanho de uma mão de dentro de um forno de pedra quando espiou por sobre os ombros e viu o filho ali parado.

— Já cansou de ler? Samuel deu de ombros. Viera à cozinha instintiva-

mente porque sua mãe geralmente o fazia se sentir seguro, mas agora estava repentinamente com medo de que sua mãe pudesse encarregá-lo de levar pães ao aposento prin-cipal.

— Que tal um pãozinho? A mãe de Samuel empurrou uma das baguetes

quentes por sobre a mesa e Samuel a pegou. Com um a-gradecimento rápido, se dirigiu à porta, decidido a partir antes que sua mãe lhe presenteasse com uma missão no-turna.

O caminho da cozinha até seu quarto tinha duas curvas acentuadas pelo jardim do pátio. Enquanto cami-nhava, apenas duas perguntas faziam parte de seu pensa-mento: Que tipo de experimento teria feito o Sr. Ratikan e porque lorde Phineus teria algum interesse nele?

O quarto de Samuel ficava a exatamente 25 passos da porta da cozinha. Sabia disso porque gostava de dar exatamente esta quantidade de passos entre os dois cô-modos sempre que fazia essa jornada. Contava os passos enquanto caminhava, abraçando o pão junto ao peito para

que o aroma subisse até seu rosto. Um, dois, três, quatro, cin-co, seis, sete — alcançou a primeira curva e o arranjo de ár-vores e trepadeiras — oito, nove, dez...

— Samuel... aqui, Samuel — sussurrou uma voz do jardim. Samuel se agachou instintivamente, assustado pela voz.

Tinha sido uma noite arriscada e seus nervos esta-vam à flor da pele. Apertou o pão com mais força do que deveria e a casca se esmigalhou em sua camisa.

— Quem está aí? Edgar se levantou alto o suficiente para que Samuel

o visse — mas só por um instante — e depois se abaixou de novo no jardim.

— Sou eu, Edgar. — Você está dias adiantado! — disse Samuel, subi-

tamente consciente do risco da situação. Se Edgar fosse encontrado nas Terras Altas, não havia limites para o que lorde Phineus poderia fazer.

— Tem algum lugar para onde possa me levar? — sussurrou Edgar. — Um lugar onde possa me esconder?

Samuel olhou em volta e, não tendo avistado nin-guém, tirou Edgar de trás dos arbustos e o colocou no caminho.

— Vou levá-lo para o meu quarto. Fica bem aqui, basta virar.

— E se sua mãe voltar? — Ela trabalha até tarde e tem uma porta separan-

do nossos quartos. Está tudo bem, Edgar. Vamos! Os dois andaram rapidamente até a curva seguinte,

onde Samuel impediu o avanço de Edgar e deu uma espi-ada. Não havia ninguém. Samuel retomou sua contagem

de onde tinha parado — vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro, vinte e cinco — abriu a porta e os dois entraram.

CAPÍTULO

11 A REVELAÇÃO DO DR. KINCAID

— Temos de fazer silêncio — disse Samuel. — Ninguém pode saber que você está aqui.

Edgar balançava a cabeça concordando enquanto examinava a sala parcamente iluminada pelo bruxulear de uma pequena chama. A vela repousava sobre uma mesa diante da parede e projetava um brilho pálido sobre um grande livro aberto. Samuel pegou uma vareta fina da me-sa e a segurou sobre a pequena chama. Andando pelo quarto, acendeu outros dois pavios, o primeiro iluminan-do uma cama com um banquinho redondo a seu lado, o segundo revelando uma pequena pilha de livros dispostos numa estante. Samuel apagou a chama na vareta com um sopro e balançou a mão para dispersar a fumaça.

— Não acredito que esteja aqui, Edgar. Como me encontrou?

Samuel mostrava-se encantado por ver seu novo amigo, mas estava acolhendo um fugitivo da Terra Média e a lógica lhe dizia que isto não era algo muito aconselhá-vel de se fazer. Os dois não poderiam permanecer escon-didos por muito tempo.

— Perdoe-me por voltar tão cedo — disse Edgar. — Eu não tinha outro lugar para ir.

Edgar contou a Samuel por que teve de deixar a Terra Média, como tinha esbarrado com o garoto chama-do David e depois esperado até o anoitecer para se es-gueirar até o pátio.

— Mas só existe um portão na Casa do Poder e ele é vigiado. Como conseguiu entrar?

Edgar não precisou responder. Havia uma muralha altíssima cercando a Casa do Poder e embora fosse muito lisa, não era páreo para Edgar.

— Você escalou a muralha! — disse Samuel, mais uma vez surpreso com a habilidade e a coragem de Edgar.

Edgar não estava tão impressionado com seus pró-prios feitos.

— O que você tem aí? — perguntou ele, cedendo finalmente à sua própria fome e curiosidade. Samuel o-lhou para a mão na qual segurava o pão do qual já havia se esquecido, seu cheiro estava mais forte por causa do quarto fechado.

— Ora, é pão — disse Samuel, estendendo-o para Edgar. — Deve estar morrendo de fome.

Edgar nunca tinha visto algo assim e quando o se-gurou em suas mãos não estava bem certo do que fazer com aquilo. Será que havia algo dentro que pudesse der-ramar quando mordesse?

— Vá em frente, coma. Não preciso comer nada. Não estou nem com fome.

Edgar lembrou da grama verde e amarga que pro-vara no início do dia.

— Como é o gosto? Samuel não acreditou no que ouviu. Poderia mes-

mo não haver pão na Terra Média? Começava a se per-guntar o que de fato existia na Terra Média.

— Confie em mim, Edgar. Você vai gostar. Isto irá te sustentar.

Edgar segurou a baguete próxima ao nariz e a cheirou, dando então uma mordida. Nunca tinha provado algo tão bom.

— Espere aqui um instante — disse Samuel. — Vou buscar um pouco de água e já volto.

Edgar comeu todo o pão e o empurrou para dentro com a garganta seca antes de Samuel retornar com a água. Bebeu-a em três goles e depois soltou o arroto mais alto que Samuel já tinha ouvido. Os dois garotos não conse-guiram evitar a gargalhada, embora Samuel tivesse cons-ciência do perigo que ruídos descuidados podiam provo-car.

— Não faça isto de novo — disse Samuel, tentan-do ao máximo manter um sorriso. — Devemos realmente tentar ficar em silêncio.

Os dois garotos sentaram-se nas cadeiras próximas à mesa e Edgar ficou imediatamente fascinado pela visão de um grande livro aberto.

— Existem muitos livros nas Terras Altas? — Ah, sim. Milhares. Todos têm livros, não apenas

nós. — Ele se referia às pessoas que moravam na Casa do Poder.

— Sempre existiram por aqui, mas nunca chegam novos livros, então os tratamos com bastante cuidado. Aquele ali é sobre Poseidon.

— Sobre quem? — perguntou Edgar. — É mitologia. Ele é o deus da água, meu favorito. Edgar não entendia o que Samuel estava falando.

Embora quisesse ouvir mais sobre livros, também se sen-tia subitamente cansado. A comida tinha se assentado no

estômago e todos os acontecimentos do dia e da noite ti-nham tirado cada gota de energia que ainda lhe restava. E ainda havia tanto sobre o que conversar. Tinha notícias importantes a compartilhar com Samuel.

— Tenho de lhe contar algo. Andei fazendo per-guntas por aí e não acho que seu pai tenha caído.

Samuel parecia cauteloso, incerto sobre como rea-gir.

— O que você acha que aconteceu com ele? — Não sei, mas a única coisa que me disseram que

poderia ter caído do céu era um animal gigantesco de qua-tro patas. Vi um hoje enquanto me escondia. Algum deles pode ter caído uma vez.

— E caiu! — disse Samuel. — Um deles caiu, me lembro disso. Meus pais ficaram muito preocupados. A Casa do Poder debateu longamente sobre o que fazer.

— Samuel, que coisas são aquelas? Edgar tinha medo daqueles animais, mas não quis

dizer. Samuel ficou ainda mais surpreso em ver como os mundos da Terra Média e das Terras Altas eram diferen-tes.

— São apenas cavalos, Edgar. Eles comem grama e carregam as pessoas por aí. Não precisa ter medo.

Edgar soltou um suspiro de alívio. — Também tenho algo para lhe contar — disse

Samuel. Ele inclinou-se na direção de Edgar, de alguma forma sentindo a necessidade de sussurrar o que estava para dizer. — Você disse que o homem que cuida do po-mar se chama Sr. Ratikan?

Edgar fez que sim com a cabeça, imediatamente desconfiado de seu antigo guardião.

— Consegui ouvir algo esta noite. Ele realizou um tipo de experimento, algo que lorde Phineus queria que fizesse. Talvez você deva procurar saber sobre isso caso volte lá.

— Isso é tudo que ouviu? Nada mais? — Lorde Phineus e os outros fecharam a porta

depois disso, mas pelo tom em suas vozes, era como se estivessem tramando algo desonesto.

Estava ficando terrivelmente tarde e havia muito sobre o que conversar, mas Edgar sabia que nada era tão importante quanto aquilo que trazia consigo do despe-nhadeiro. Cavalos, livros e tramas ouvidas pelos cantos teriam de esperar. Puxou o livro de coisas secretas do bolso e o entregou a Samuel.

— Estou muito cansado — disse Edgar, arfando um grande suspiro na tentativa de se manter desperto. — Mas acho que este livro pode ser ainda mais importante do que pensávamos. Atherton está mudando e este livro talvez nos diga o motivo. Vamos ao menos ler algumas páginas enquanto ainda consigo manter os olhos abertos. Talvez vá mais rápido desta vez, com mais luz.

Samuel ficou maravilhado diante da visão do livro misterioso. Pegou-o da mão esticada de Edgar e o segurou próximo à luz em sua mesa. A luz vinha de uma tigela cheia de um líquido claro, com um pavio no centro. A substância cerácea era derivada da gordura de animais e queimava feito combustível. Os mesmos tipos de luz eram utilizados na Terra Média, então Edgar não ficou surpreso ao vê-los, ainda que nunca tivesse visto tal quantidade num quartinho pequeno como aquele antes. Combustível, água e comida eram escassos na Terra Média e vistos co-

mo algo precioso. Edgar sentia que as pessoas nas Terras Altas não lhes davam o mesmo valor.

Samuel abriu na página em que ele e Edgar tinham parado duas noites antes e começou a ler. Estava se acos-tumando a decifrar os rabiscos na página e a dose extra de luz ajudou Samuel a entrar no ritmo. Ele passou os vinte minutos seguintes lendo a seguinte passagem em voz alta:

Como o tempo é meu inimigo, este breve relato

de eventos terá que Ser suficiente, dentarei explicar

tudo em termos simples de modo que um garoto pos-

sa entender.

Atherton é um mundo que foi construído, Ed-

gar —-um lugar criado por homens numa época em

que quase todas pontes do mundo conhecido tinham

sido exauridas. Ao início, cultivávamos e acumulá-

vamos alimentos e recursos e, ao fazermos isto, aca-

bamos com inúmeras espécies de árvores e animais.

Muitos anos depois, desenvolvemos máquinas para

fazer o trabalho por nós. Você sabe o que é uma má-

quina? Suponho que não. As máquinas tornavam a

vida mais fácil — ou assim parecia — ao cortar e

rasgar a terra e o céu de maneiras que mal com-

preendíamos. Estes dois primeiros progressos — o cul-

tivo e a invenção de máquinas, para fazer todo

trabalho — deveriam nos ter ensinado a cuidar da

mundo, mas, isto não aconteceu. Apenas aprende-

mos a destruí-lo com mais eficiência. Próximo ao

fim, construímos máquinas capazes de pensar e esta

foi nossa ruína. Elas se tornaram tão poderosas que

as utilizamos para construir lugares para morar,

fontes de alimentos, quase tudo. Essas máquinas a-

cabaram de vez com o que sobrara das florestas e

animais selvagens. Fiz você ficar completamente

confuso, não? Mas sou um cientista e não sei como

tornar isto mais simples. Prosseguirei falando de

algo totalmente diferente.

Havia um garoto que se tornou adulto en-

quanto o mundo chegava ao seu fim. Encontrei-o

quando era muito jovem, num parque repleto de

nada além de lama e metal, um lugar onde apenas

as crianças pobres brincavam. Aos dez anos ele já

compreendia a ciência, a matemática e o próprio

mundo de maneiras que eu já não podia entender

muito bem. Aos 20, mostrou-me um tubo de ensaio

colocado na horizontal, sem aberturas nas extre-

midades. O tubo continha um mundo próprio — in-

setos, terra, plantas. Com as mãos trêmulas, me disse

que na semana anterior aquele mesmo tubo conti-

nha apenas um pingo de lama. Aplicara todo o seu

conhecimento sobre biologia, ciência e máquinas

para atuar em porções ínfimas da terra e construir

para si um mundo dentro de um tubo. Tinha trans-

formado uma gotícula de lama em um minúsculo

habitat que fervilhava de vida.

Esta foi a primeira experiência que, muitos

anos depois, levaria à criação de Atherton, o lugar

que você chama de lar. Atherton é cheia de mistérios

que mesmo eu não compreendo. É um mundo que

tem vida própria, mas é instável e mudanças catas-

tróficas estão em andamento. Atherton não está

pronta para receber pessoas, como pensávamos. O

homem que a construiu não é bom. Escondia coisas

de nós, coisas terríveis que só um cientista maluco

poderia conceber, É possível que tenha enlouquecido

durante a criação de Atherton.

Irei lhe contar o máximo que puder sobre co-

mo seu mundo foi criado, por que foi criado e por

quem foi criado — mas antes devo lhe avisar sobre

algo. Edgar, se tiver encontrado este livro, então de

fato ele veio a você e o mundo começou a mudar. De

que outra maneira o teria encontrado? Você deve

manter a guarda. Confie apenas em quem tiver ab-

soluta certeza de fazê-lo. Mudanças maiores virão e

trarão destruição, e talvez até mesmo guerra. Você

sabe o que é guerra, Edgar? Me pergunto se sabe o

que é...

Samuel parou de ler. Não entendia como Atherton

tinha sido criada, mas sabia o que significava a palavra guerra e isto o assustou. Tinha lido sobre guerras entre deuses em seus livros. Eram empolgantes no papel, mas ele não tinha desejo algum de vivenciar o terror de uma guerra de verdade.

Samuel olhou para Edgar e viu que seu amigo mal conseguia ficar acordado, tentando com todas as forças manter os olhos abertos.

— Acorde, Edgar! Não entende que temos que continuar lendo? Temos que saber o que irá acontecer conosco.

Edgar tinha ouvido tudo o que Samuel dissera, mas não conhecia o significado da palavra guerra. Mesmo se conhecesse, estava tão cansado que não seria capaz de demonstrar surpresa ou preocupação. Seu ânimo estava tão baixo que não conseguiria mais reerguê-lo.

— Tenho uma ideia — disse Samuel. — Deite-se embaixo da minha cama e descanse, ninguém irá vê-lo. Vou examinar o resto do livro de coisas secretas. Quando você acordar, contarei o que tiver descoberto.

Edgar queria apenas dormir e pela primeira vez perdeu a vontade e o impulso de proteger o livro. Trope-çou até a cama, escorregou para debaixo dela e caiu ime-

diatamente num sono profundo. Samuel se esforçou para colocar um cobertor sobre Edgar e ter certeza de que es-tava bem escondido, retornando então para sua mesa.

As horas se passaram e o único som em todo o quarto era o virar ocasional de páginas velhas e esfarrapa-das. Vez ou outra durante a noite ouvia-se o som do papel sendo virado, e isto agitava Edgar por um instante, embo-ra nunca o acordasse por completo.

— Por que sua luz está acesa a esta hora? Do lugar onde estava embaixo da cama, Edgar ou-

viu a voz, alta e aguda no meio da noite. — O que você tem aí? O que está lendo? A voz era de um homem adulto. Desorientado,

Edgar virou a cabeça de modo que conseguisse ver o que estava acontecendo de onde estava, e então se lembrou — aquele era o quarto de Samuel. Edgar podia ver a luz dan-çando no chão, agitada pela porta sendo fechada. O ho-mem atravessou o quarto com passos pesados e parou de modo que Edgar podia ver suas botas.

— Onde conseguiu este livro? ONDE O CON-SEGUIU?

— gritou o homem para Samuel, mas o garoto não respondeu. — Lorde Phineus ficará muito interessado em ver isto

— disse o homem. — £ você. Samuel foi arrancado da cadeira e agora Edgar po-

dia ver quatro pés se movendo pelo chão. Ouviu quando Samuel foi arrastado para fora do quarto e a porta bateu.

Edgar estava sozinho. Samuel tinha ido embora e o livro levado pelo que parecia ser um homem cruel. Para onde tinha levado Samuel e o que aconteceria a ele? Edgar se surpreendeu ao descobrir que se importava mais com o que aconteceria ao amigo do que com o livro, o único bem que realmente pertencia a ele. Sentiu-se responsável por colocar Samuel em perigo. Um novo sentimento de medo se assentou em seu estômago, algo que nunca sen-tira antes. Eu nunca deveria ter vindo aqui.

Depois que seu coração acelerado se acalmou, Ed-gar rastejou para fora da cama. Olhou por todos os lados do pequeno quarto, depois sentou-se na cadeira de Samuel e inclinou-se por sobre a mesa. Foi surpreendido pelo ba-rulho de algo se dobrando, como se houvesse algo no bolso da frente de sua camisa. Edgar endireitou-se na ca-deira, colocou a mão no bolso e tirou um pedaço de papel de dentro dele, rasgado e amarrotado nas bordas. O ta-manho e a caligrafia eram familiares. Era uma página do livro de coisas secretas.

Mas como foi parar no bolso de Edgar? E, mais importante, o que dizia? E então teve uma sensação terrí-vel que fez seu coração acelerar novamente.

Irão procurar por esta página e o primeiro lugar que virão é este. Tenho que sair.

Edgar abriu a porta silenciosamente, olhou ao redor e se aventurou pela noite.

Lorde Phineus estava diante de uma janela aberta

numa câmara particular no topo da Casa do Poder, inspe-cionando o mundo lá embaixo. Era um homem alto de

rosto comprido e cabelos negros e curtos, que formavam um “v” acentuado em sua testa. Um corte de cabelo que intensificava a dureza de seu rosto — os olhos frios, o na-riz magro.

Não havia lugar mais alto no mundo do que a jane-la onde estava, e lorde Phineus parecia apreciar a sensação de estar acima de tudo, saboreando o poder que tinha conquistado. Controlava o fluxo de água em Atherton so-zinho. Vivia numa poderosa fortaleza de pedras e tinha um exército de montanheses para protegê-lo caso hou-vesse necessidade. Tinha em sir Philip, sir Emerik e no Sr. Ratikan um círculo de aliados dedicados que fora cuida-dosamente construído. Todos estavam em débito com ele e se mostravam determinados a seguir suas ordens. Tinha se livrado daqueles que haviam questionado sua autorida-de.

E, ainda assim, enquanto estava diante da janela, lorde Phineus não conseguia deixar de pensar sobre o que aconteceria se algum dia as pessoas na Terra Média se re-voltassem e tentassem encontrar um caminho para as Terras Altas. Este pensamento tirou o sorriso perverso do seu rosto. Ele tinha armas e cavalos, algo que a Terra Mé-dia não possuía. Os despenhadeiros sempre o protegeram e ele nunca poderia ser atingido por um exército vindo lá de baixo. Mesmo assim, a ideia de uma invasão perturbava sua mente sombria enquanto observava o mundo ador-mecido. Seu exército inteiro consistia de cento e vinte homens e cavalos. Havia muito mais gente lá embaixo, mais de mil, e todos serviam os poucos que habitavam as Terras Altas.

Sua ansiedade aumentara quando as pessoas come-çaram a relatar que os cavalos estavam indóceis. E havia

outra coisa, algo ainda mais peculiar. Tinha acordado du-rante a noite várias vezes e pensou ter sentido um tremor. Era um movimento profundo e silencioso que não com-preendia. Nos últimos dias, o tremor ocorrera durante o dia e tinha se tornado mais forte. Outros também o senti-ram. Poderia ser a água saindo mais rápido da nascente embaixo da Casa do Poder? Ou talvez fossem os próprios cavalos — agitados por uma força desconhecida — piso-teando pelos campos furiosamente.

Enquanto lorde Phineus meditava sobre esses a-contecimentos, sentiu o tremor novamente. O ruído suave e constante prosseguiu por certo tempo antes que o lorde saísse do quarto em busca de sua origem. Tinha agora a-penas um pensamento em sua mente: O que significa este tremor estranho?

Enquanto Edgar escapava das Terras Altas, um coelho en-

controu um buraco em seu cercado e escapuliu da Aldeia dos Coe-lhos. Saltando, passou pela taverna onde Briney se ocupava em cui-dar do fogo e sua mulher varria o chão. Depois de certo tempo, o co-elho chegou nos despenhadeiros que se inclinavam até as Terras Al-tas. Fuçou pelo lugar enquanto a muralha rochosa à sua frente des-cia.

O coelho saltou para a frente e para trás, assistindo. Tinha vislumbrado um pedacinho de grama verde brotando do penhasco 1,5m acima e sonhou em poder alcançá-lo.

Não teve que esperar por muito tempo.

Aprenda, se não pelos meus preceitos, pelo menos por meu exemplo, o quanto é perigosa a aquisição de conhecimento, e o quanto o ho-mem que acredita que sua cidade natal é o mundo é mais feliz do que aquele que aspira a se tornar maior do que sua própria nature-za lhe permite.

DR. FRANKENSTEIN FRANKENSTEIN, 1818 MARY SHELLEY

PARTE

2

— Como pôde deixar isto acontecer? Você sabia que ele era instável e mesmo assim o deixou partir,

O dr. Kincaid não sabia o que lhes dizer. Estava tão

desolado quanto eles.

— Sempre soubemos que isto poderia acontecer. Por mais brilhante que fosse, sabíamos que havia o risco de perdê-lo. O risco

de perder tudo.

— Inaceitável! Tem de haver uma maneira de recuperar o esquema. VOCÊ tem de recuperá-lo.

O dr. Luther Kincaid sabia que o que lhe pediam

era impossível. Se o dr. Harding não quisesse ser encon-trado, sua vontade teria de ser atendida, e ninguém pode-

ria fazer nada a respeito.

— Lembra-se de quando o encontrei? Ele estava brincando na lama à beira do parque. Mesmo naquela época eu já sabia que

havia riscos. Estava esmagando as formigas com uma pedra. Conhe-cia o poder da Terra.

— Do que você está falando, Luther? Por Deus! Está tão

louco quanto ele!

Mas Luther sabia que isso não era verdade. Mesmo aos 78 anos ele tinha uma saúde excepcional. O dr. Luther Kincaid conhecia bastante a si próprio para saber que não

enlouquecera.

— Ainda há uma chance.

— O que você quer dizer?

Luther desligou o dispositivo e sorriu vagamente, com os pensamentos em outra época, outro lugar.

CAPÍTULO

12 UM MUNDO TRÊMULO

Sir Emerik era um homem que estava sempre tentando descobrir como poderia aumentar sua própria autoridade e colocar aqueles à sua volta num patamar mais baixo. Um homem assim tem a cabeça cheia de pensamentos descon-fiados, sempre à espreita de alguém cujo poder possa pri-var para aumentar o seu. Foi exatamente um pensamento assim que o levou a Samuel.

Aquele garoto está circulando muito por aí. Está aprontan-do algo. Devo ficar de olho nele.

Poucos dias após este pensamento surgir na mente de sir Emerik, ele estava atravessando o pátio à noite quando viu a luz acesa por baixo da porta de Samuel. Perguntou-se o que o garoto estaria fazendo tão tarde da noite e, não tendo escutado nada, deu uma pancada na porta e entrou sem pedir licença. Que magnífica surpresa foi encontrar Samuel em posse de um documento secreto, contendo informações que certamente interessariam a lorde Phineus.

Sir Emerik agarrou Samuel pelo braço e o arrastou para fora do quarto. Ao passarem por Horácio no topo da escadaria principal, Samuel tentou falar, mas sir Emerik o silenciou com um olhar frio. Prosseguiram até uma esca-daria estreita que era mais inclinada do que todas as ou-

tras. Sir Emerik empurrou Samuel na direção dos degraus sinuosos e o seguiu. No topo havia uma porta, a qual sir Emerik destrancou e abriu. Jogou Samuel lá dentro e o garoto caiu sobre o chão de pedra. Estava frio e escuro lá, com uma sensação macabra de vazio.

— Eu voltarei — disse ele — com lorde Phineus. Espero que esteja pronto para dar algumas explicações.

Depois de trancar Samuel no aposento, sir Emerik partiu em direção ao quarto de lorde Phineus, mas mudou de idéia quando estava prestes a bater à porta do seu mes-tre. Devo realmente ler este livro antes de entregá-lo. Lorde Phineus me privará dele e irei perder minha oportunidade.

Sir Emerik ficou ali parado por um momento, a-garrado ao livro, analisando suas opções, e então decidiu se recolher a seu próprio quarto. Ao se virar para partir, lorde Phineus estava diante dele. Sir Emerik pulou de susto e tentou esconder o livro atrás de si.

— O senhor me assustou, lorde Phineus. O soberano da Casa do Poder estava de mau hu-

mor e falou num tom venenoso. — Posso fazer algo por você, sir Emerik? — Não, nada. Estava apenas me preparando para

dormir. Tenho uma pergunta a fazer, mas isto pode espe-rar.

Sir Emerik se arrependeu no momento em que disse isto.

— O que pode esperar? — disse lorde Phineus. Estava bloqueando a passagem para o quarto de sir Eme-rik.

— Ahhhh... — Sir Emerik hesitou. — Seria algo sobre isto que está escondendo aí a-

trás? Sir Emerik sabia que não podia tentar enganar lorde

Phineus. Tinha sido apanhado. Com alguma hesi-tação, revelou o livro que estava às suas costas.

— Pensei que pudesse estar dormindo e não quis acordá-lo, mas agora que vejo que está de pé... Bem, pe-guei o garoto, Samuel, com este livro. Nunca o vi antes, e o senhor?

Lorde Phineus arrancou o livro dele e seu humor se tornou ainda mais sombrio. Suas sobrancelhas se curva-ram sobre os olhos enquanto contemplava o objeto em sua mão.

— Há quanto tempo tem isto em seu poder? Sua voz tinha se aprofundado a um sussurro frio e

estridente. Não reconhecia o livro, mas havia algo nele que o deixava ansioso, como se já o tivesse visto antes mas não conseguisse lembrar quando ou onde.

— Ah, não muito tempo. Não mesmo — gaguejou sir Emerik. — Tranquei o garoto lá em cima e vim direto para cá.

Lorde Phineus olhou para o livro, com a ponta do “v” de seu cabelo apontando para o chão. Quando seus olhos se fixaram em sir Emerik, eles estavam cheios de desconfiança.

— Chame sir Philip e me encontre no aposento principal. Um pensamento passou pela mente de lorde Phineus e ele fez uma modificação pouco antes de sair.

— Deem-me uma hora sozinho com ele; depois podem vir. Após a saída de lorde Phineus, sir Emerik to-cou em sua têmpora.

Um suor frio grudou em sua pele e suas mãos tre-miam. O que será que encontrei?

O aposento principal da Casa do Poder era um lu-gar estéril e privado, feito de pedra e madeira. Havia tige-las redondas na mesa central cheias de um combustível oleoso com pavios compridos no centro, flamejando em ar aberto. A estátua da Cabeça de Mead quase parecia es-tar viva envolta pelas sombras dançantes da noite. Tinha se passado uma hora, na qual lorde Phineus explorou as páginas do livro. Sir Philip e sir Emerik tinham chegado ao lado de fora da porta, se perguntando se deveriam en-trar.

— Fique sabendo que ele está de mau humor — disse sir Emerik.

— E quando ele não está de mau humor? — per-guntou sir Philip. Este tinha um dente torto que parecia querer pular para fora da boca, pois sempre empurrava seu lábio superior e o fazia abrir uma espécie de mei-o-sorriso, o que acontecia naquele exato momento.

Sir Emerik bateu à porta e os dois entraram. Quando lorde Phineus tirou os olhos do livro, havia um olhar frio e misterioso no rosto do homem. Sem nenhum tipo de introdução, lorde Phineus voltou algumas páginas e começou a ler em voz alta. Leu para eles as partes pelas quais Samuel e Edgar já tinham passado e em pouco tempo estava lendo trechos que Edgar não tivera oportu-nidade de ouvir.

...Havia voluntários, pessoas muito ricas e so-

cialmente reconhecidas, que tinham meios para fi-

nanciar esta chance de fuga. Havia também aqueles

famintos por aventura, por algo natural e belo que

não podiam encontrar mais em seu próprio mundo.

E havia um jeito — um jeito de botar a pessoa para

dormir e lhe dar um novo tipo de memória. Você

não deixaria de ser você mesmo; apenas mudava

suas recordações sobre certas coisas. Quando as pes-

soas acordavam, estavam em Atherton — você estava

em Atherton, Edgar — e você era novo, da mesma

forma que Atherton era nova. Não sei de que outra

forma poderia explicar para que você compreenda.

Enviei você a Atherton para salvá-lo, não para lhe

fazer mal.

As palavras tiveram um efeito avassalador sobre sir

Emerik e sir Philip, mas não pareceram ter efeito algum sobre lorde Phineus. Os mecanismos de sua mente pro-curavam a melhor maneira de usar a informação, mas não traía qualquer emoção externa. Havia um trecho de sete ou oito páginas no qual as palavras tinham borrado com o tempo. Seções inteiras eram praticamente impossíveis de serem lidas. Próximo ao fim, as palavras se tornaram legí-veis novamente, como se o interior do livro tivesse de al-guma forma sido molhado ao longo dos anos e as páginas mais externas, junto à capa de couro, tivessem permane-cido secas e seguras. Ao chegarem ao final do livrinho, lorde Phineus percebeu que uma página — a última pági-na — tinha sido arrancada. Passou os dedos sobre a borda esfarrapada onde a página estivera e uma grande curiosi-dade cresceu dentro de si. Estas foram as últimas palavras que os três homens encontraram:

Edgar — você deve entender que sou um ho-

mem inteligente, mas minhas ideias são simples

comparadas às do dr. Harding. Eu e os outros o a-

judamos, mas foi ele o idealizador de Atherton e re-

ceio que tenha escondido muitas coisas de nós. Ao

deixá-lo aqui na Terra Média e fugir, estou certo de

que trouxemos você e os outros precipitadamente.

Mas não é tarde demais. Você está aqui, os outros

estão aqui e Atherton não é o que pareceu quando

começamos. Pensamos que estivesse completa, estável

e pronta para ser habitada. Foi o que ele nos disse,

mas descobri uma parte de seu plano secreto e isto

traz algo novo. Se você encontrou este livrinho, só

pode significar que ele chegou a você e o que eu te-

mia aconteceu. As Terras Altas sucumbiram até a

Terra Média. É a única maneira de você ter obtido o

livro, a única maneira pela qual ele chegaria a vo-

cê. O tempo é curto e há só mais uma coisa que devo

lhe contar. É...

E então lorde Phineus compreendeu o que signifi-

cava aquele tremor suave. Descobriu, e sua mente fervi-lhou com o pensamento. As Terras Altas estão afundando.

— O que este dr. Harding contou ao dr. Kincaid é verdade — disse a eles numa voz firme sem oscilações. — Ele transformou tudo isto num jogo, vocês não veem? Todas as coisas que temos e eles não...

— Como pôde? — perguntou sir Philip, com o medo inundando o rosto. Não obteve resposta alguma, apenas um olhar de espanto de sir Emerik e algo mais de lorde Phineus — algo estranho. Era uma decisão fria.

— É um louco. — Era um louco — disse sir Eme-rik. — Será que isto pode realmente ser verdade?

— Se é verdade — disse sir Philip —, devemos agir rapidamente e com grande cuidado.

Ele era quem tinha a mentalidade mais militar dos três e compreendeu imediatamente o risco de um mundo que estava afundando.

Sir Emerik sentiu o mundo tremer novamente de-baixo de seus pés e se perguntou em voz alta:

— O que será de nós? Lorde Phineus não disse uma palavra, pois sua

mente tinha apenas uma preocupação: Que tipo de ho-mem ele teria sido antes de chegar a Atherton? Se este dr. Harding tinha planejado submetê-lo a este tipo de teste, então lorde Phineus deve ter sido de fato um homem po-deroso. Bem, dr. Harding — suponho que o jogo esteja em anda-mento agora, não está? Vejamos se as coisas caminham do jeito que você espera.

Lorde Phineus fechou o livrinho e o empurrou len-tamente por sobre a mesa, fixando o olhar em sir Emerik.

— Traga-me o garoto.

• Não levou muito tempo para sir Emerik retornar e

empurrar Samuel para dentro da sala, onde caiu de joe-lhos. Samuel levantou a cabeça do chão humildemente e avistou o rosto sinistro de lorde Phineus, claro sob o bri-lho alaranjado das chamas.

— Você leu este livro, Samuel? Lorde Phineus tomou um gole de uma bebida que

estava na mesa. Pareceu não notar que gotas d’água es-correram dos cantos dos lábios até o queixo.

— Não o li — disse Samuel. Lorde Phineus pegou o livro e o segurou diante do

nariz do menino por um momento. Depois, inclinou-se sobre a mesa e o esfregou na cara de Samuel. Samuel ten-tou se afastar, mas sir Emerik o segurou com firmeza.

— Sente o cheiro, Samuel? Cheira a combustível, não acha? Lorde Phineus afastou o livro do rosto de Sa-muel.

— Não acredito que tenha tentado destruir as pá-ginas deste livro, certo, Samuel? Talvez você estivesse borrando as páginas quando sir Emerik chegou e impediu que terminasse o trabalho. Você iria queimar o livro, era isto?

Samuel se debateu para se livrar de sir Emerik. Ele segurava os braços do menino com força e eles começa-vam a doer.

— Você compreende, Samuel, que temos um grande problema em nossas mãos. — Lorde Phineus se mostrava sério e direto diante de um mundo que sofria mudanças.

— Eu mal toquei no livro — disse Samuel. — Só dei uma olhadinha e não consegui ler. Como alguém po-deria lê-lo?

Lorde Phineus avançou na direção do garoto. In-clinou-se de modo que seu rosto ficasse bem próximo ao de Samuel.

— Então você não sabe que as Terras Altas estão afundando e que em breve nossa cidade na colina ficará no mesmo nível que o mundo abaixo de nós?

— O que quer dizer com isso? — Samuel tentava ao máximo esconder o que sabia.

— Não estou aqui para responder a suas perguntas, você está aqui para responder às minhas — disse lorde Phineus. — Existem algumas coisas que preciso saber, Samuel, e até que eu as descubra, receio que não possa permitir que você deixe este quarto.

Lorde Phineus segurou o pulso de Samuel e o tor-ceu até que parecesse uma espiral comprimida em sua mão. Samuel gritou.

Não levou muito tempo para a determinação de Samuel se esvair. Ele era um garoto esperto, mas sua força e determinação eram finas como papel. Em pouco tempo lorde Phineus descobriu quem era Edgar e de onde ele ti-nha vindo. Samuel conseguiu ao menos contar uma men-tira convincente, sobre algo que estava determinado a manter em segredo mesmo se lorde Phineus quebrasse seu braço em dois.

— Não sei coisa alguma sobre a página desapareci-da. Não vi que tinha sumido. Estou dizendo que não sei!

O esforço heróico de Samuel escondeu o paradeiro das últimas palavras do livro, e ele só podia esperar que Edgar de alguma maneira conseguisse ler o conteúdo da página antes que fosse tarde demais.

Lorde Phineus puxou Samuel pelo braço e o botou de pé, depois pensou melhor e deu uma rasteira nas per-nas magrelas do garoto, jogando-o ao chão.

Deu dois passos na direção da cabeça de Mead, a estátua de pedra branca no pedestal, e tocou a face ro-chosa. Colocou seu polegar sobre o olho de pedra e se perdeu em seus próprios pensamentos. Sua mente se a-calmava enquanto tocava a cabeça de Mead e se questio-nava sobre ela. O tempo passou em silêncio e então lorde Phineus deu a sir Philip uma ordem.

— Prepare os homens e os cavalos. As Terras Altas têm sofrido tremores por semanas e agora sabemos o porquê. Não haverá muito tempo para nos prepararmos e em breve é possível que utilizemos nosso pequeno exér-cito.

Lorde Phineus pegou o livro mais uma vez. — As pessoas lá de baixo devem ser mantidas fora

das Terras Altas. O dente torto de sir Philip emergiu lentamente e

um sorriso ameaçador dominou seu rosto. A oportunida-de de provar seu valor tinha finalmente surgido. Não per-deu tempo em sair do quarto e logo o som de suas botas que ecoava pela escadaria de pedra já havia se dissipado. Lorde Phineus fixou os olhos penetrantes em Samuel.

— Ele tem mais do que está contando em sua ca-becinha, mas agora não há pressa para descobrir. — Lorde Phineus voltou o olhar para sir Emerik. — Tranque-o sem comida ou água e volte logo em seguida. Tenho uma mis-são importante para você.

Sir Emerik ficava furioso quando lorde Phineus de-legava tanta responsabilidade a sir Philip, mas agora estava radiante. Fora ele que encontrara o livro e agora lorde Phineus certamente iria recompensá-lo com um grande cargo em proteger as Terras Altas, algo digno de sua po-sição. Ordenou ao garoto que se levantasse, pegou-o pelo braço e o puxou porta afora.

CAPÍTULO

13 FIGOS NEGROS E BOLHAS

Edgar levou metade do tempo que levara da primeira vez para descer à Terra Média. Ficou orgulhoso de si mesmo ao ver a noite virar dia enquanto chegava ao solo. Ao o-lhar para cima, entendeu por que sua descida tinha sido tão fácil e sua satisfação se transformou em surpresa. A distância até o topo era a metade daquela de quando tinha subido.

Havia um ruído constante e empedrado vazando das entranhas do mundo e isto deixou Edgar alarmado. Viu o despenhadeiro desaparecendo lenta mas constante-mente para dentro da terra. Se isto continuasse, não de-moraria muito para que as Terras Altas deixassem de exis-tir — chegariam ao mesmo nível da Terra Média em questão de dias.

Edgar rastejou pela vastidão em frente ao pomar até ficar a poucos metros das primeiras árvores. As pesso-as já deviam estar trabalhando e ele precisava se esconder rapidamente. Escolheu a primeira árvore grande que en-controu e escalou até seus galhos grossos, cercados por folhas e minúsculas bolas verdes que logo se tornariam figos. Tirou a página do bolso da frente e olhou para ela mais uma vez, desejando ser capaz de ler as palavras. Ao relembrar as linhas confusas, as volutas e os pontos na

página, sentiu-se seguro, escondido nos galhos da árvore — mas estava errado ao supor que ninguém o vira entrar no pomar.

Ouviu o estalar de uma funda e depois o som de um figo negro acertando o tronco da árvore onde se es-condia.

— Você voltou terrivelmente cedo. — A voz de Isabel surgiu por entre as árvores.

— E você fez outra funda. Ela chegou embaixo da árvore e examinou atenta-

mente por entre os galhos. Edgar saltou da árvore e ob-servou preocupadamente o centro do pomar.

— Todos estão trabalhando nas árvores do terceiro ano hoje. São as que ficam mais afastadas dos despenha-deiros e o Sr. Ratikan está tentando mantê-los concentra-dos no trabalho. Não houve outra coisa que não rumores desde que você partiu.

— Rumores sobre o quê? — perguntou Edgar. Isabel lançou os olhos na direção do setor de ter-

ceiro ano do pomar antes de responder à pergunta. Quando voltou o olhar para Edgar, falou rapidamente.

— Todos na aldeia sabem que as Terras Altas estão afundando. Só falam sobre isto. E outra pessoa ficou do-ente no pomar.

Edgar não conseguia acreditar no que ouvia. O que estava acontecendo com o pomar, o único lugar a que chamava de lar?

— Estou preocupada, Edgar — disse ela. — Todos estão se perguntando se as Terras Altas vão ou não con-tinuar caindo e se haverá água suficiente. O nível do re-servatório embaixo da cachoeira está metade do que esta-va ontem. O Sr. Ratikan diz que as Terras Altas vão parar

de afundar, que todos no pomar devem continuar a co-lheita ou eles irão racionar ainda mais o fornecimento de água. Mas ele está encontrando dificuldade em manter todos trabalhando. Eles querem falar sobre o que está a-contecendo. Querem saber se a água continuará a vir. Se as Terras Altas descerem ainda mais, acho que todos po-dem deixar de trabalhar. As pessoas estão assustadas. Não sabem o que fazer.

Edgar pensou sobre tudo o que ela disse. Avistou o figo negro que Isabel tinha arremessado a alguns metros de distância e o pegou.

— Então todos estão no setor das árvores do ter-ceiro ano agora?

Isabel acenou com a cabeça enquanto Edgar lhe entregava o figo.

— Até o Sr. Ratikan? — Especialmente o Sr. Ratikan. Ele está fazendo tudo

o que pode para mantê-los ocupados e distantes dos des-penhadeiros.

— Acha que conseguiríamos entrar na casa dele sem sermos vistos?

Enquanto Edgar caminhava para o centro do po-mar, Isabel se perguntava qual o interesse que alguém po-deria ter na casa do Sr. Ratikan.

Edgar sussurrou enquanto os dois ziguezagueavam por entre as árvores.

— Tenho um amigo nas Terras Altas. Um garoto da minha idade chamado Samuel. Ele ouviu algo que me deixou ainda mais desconfiado quanto ao Sr. Ratikan. Se existe alguma coisa a ser descoberta, é na casa dele que a encontraremos.

Isabel quis saber tudo sobre Samuel e as Terras Al-tas. Foi difícil para Edgar descrever algo tão diferente da Terra Média, mas fez seu melhor para compartilhar o que tinha visto com ela. Isabel achou que tudo soava como se fosse verde e dourado, repleto de água e de animais exó-ticos. Sua imaginação estava a mil quando se aproximaram da clareira entre as árvores onde ficava a casa do Sr. Rati-kan. Os dois ficaram instantaneamente mais sérios.

Não havia ninguém perto do local, nem mesmo sons de pessoas a distância. Edgar foi na frente, seguido por Isabel, mas quando alcançaram os três degraus da va-randa, ambos se sentiram paralisados. Aquele sempre fora um lugar proibido.

— A porta vai estar trancada — disse Isabel, rom-pendo o silêncio entre eles. — Vamos dar a volta por trás e ver se conseguimos outro jeito de entrar.

Andaram nas pontas dos pés até a parte de trás da casa. No canto superior do telhado triangular havia uma única janela coberta por venezianas de madeira.

— Esta é nossa melhor chance — disse Edgar. — Vou escalar e tentar abri-la. Volte à porta da frente e se certifique de que está mesmo trancada.

Ele começou a subir sem esperar pela resposta de Isabel. Edgar não queria ir até a varanda e esperou que Isabel tivesse coragem para fazer isto por ele. Ela acenou com a cabeça hesitantemente e se apressou em direção ao outro lado da casa.

Quando Edgar alcançou as venezianas, viu que es-tavam trancadas pelo lado de dentro. Balançou-as para a frente e para trás — e chegou a tentar socar uma — mas elas não se abriram. Então ouviu o ruído de algo girando, vindo lá de baixo.

— Posso dar um jeito nisto — Isabel tinha encon-trado a porta da frente trancada e voltou para os fundos. Estava girando uma funda bem longa em círculos por so-bre a cabeça e começava a ganhar impulso.

— Vá um pouco mais para o lado — disse ela. Edgar se abaixou no pequeno espaço ao lado de

uma veneziana e esperou até ouvir o estalo da funda e, para sua grande surpresa, sentiu o figo acertar seu ombro. Doía mais que qualquer coisa que já tivesse sentido, como se alguém tivesse pegado um graveto afiado e o tivesse apertado contra sua pele até que ele surgisse do outro lado de seu peito. Edgar tentou ao máximo segurar o urro de dor que subia pela garganta, mas não conseguiu contê-lo.

Isabel pediu desculpa 11 vezes antes que Edgar conseguisse fazer com que qualquer palavra coerente saís-se de sua boca. Sacudiu o braço para a frente e para trás, segurando-o com a mão, e então a dor aguda em seu bra-ço começou a formigar.

— Esta é nossa única chance, Isabel — disse Edgar por fim, com a voz rachada enquanto tentava não gritar de dor. — Você tem que tentar outra vez. Alguém certa-mente me ouviu berrar e virá em nossa procura.

— Não consigo controlá-la. Eu a fiz muito com-prida.

— Confio em você — respondeu Edgar. — Ape-nas tente outra vez. Se conseguir acertar a veneziana, posso entrar logo em seguida.

Isabel apalpou o bolso em busca de um figo negro e o colocou na funda. Suas mãos tremiam. Ou vou jogá-lo para longe da casa ou vou acertá-lo na cabeça e matá-lo. Não posso fazer isto.

— Rápido, Isabel. Alguém virá até aqui!

Girou o figo várias vezes e sem nunca tirar os olhos da veneziana, a uma certa distância de onde se encontrava Edgar. Quando o soltou com um estalo, fechou os olhos e ouviu um barulho alto. Ou tinha acertado a cabeça de Edgar e possivelmente o matado ou conseguira atingir a veneziana. Ao olhar, havia um buraco na veneziana que não existia anteriormente e Edgar estava passando a mão por ele.

— Consegui! Consegui, Isabel! As venezianas se abriram e Edgar saltou para den-

tro, fechando-as atrás de si. Estava agarrado a um peitoril alto próximo ao teto num canto escuro da casa. Um feixe grosso de luz vazava através do buraco na veneziana en-quanto ele observava o quarto abaixo de si. Uma cadeira encostada numa parede, uma cama, uma tina redonda cheia de... o que era aquilo? Água. O suficiente para tomar banho ali dentro se desejasse. Xícaras e colheres estavam empilhadas num canto e uma grande cesta com tampa num outro. O quarto cheirava a roupas suadas, um cheiro quente e azedo. Uma escada se apoiava contra uma parede distante e Edgar imaginou que fosse esta a maneira como o Sr. Ratikan abria as venezianas.

— Isabel! Por que não está trabalhando com os outros?

Era o som de uma voz vinda lá de fora. Exatamen-te como temiam, o Sr. Ratikan tinha ouvido o urro de dor de Edgar.

— Vá para o pomar e não perca o seu tempo apa-recendo na fila do jantar hoje à noite! Talvez isto a cure de seu hábito de bisbilhotar por aí.

Edgar ouviu Isabel escapar e teve certeza de que ela havia se exposto apenas para desviar a atenção do Sr. Ra-

tikan da casa. Mas agora o Sr. Ratikan subia em direção à varanda: um degrau, depois a batida de sua bengala contra a madeira, depois outro degrau. Estava bem diante da porta.

Edgar ouviu a grande chave girando e observou o trinco virando, imaginando o quanto seria terrível ficar trancado num lugar pequeno com o Sr. Ratikan e uma bengala balançando à sua frente.

Enquanto a porta se abria, Edgar se deu conta de que o feixe de luz ainda atravessava o buraco que Isabel fizera na veneziana e esticou uma das mãos para cobrir a abertura.

O Sr. Ratikan deixou a porta aberta e a luz inundou o local. Caminhou decididamente em direção à cesta num dos cantos e a abriu, tateando seu interior e tocando em algo que Edgar não conseguia ver. Fechou a cesta nova-mente.

Ao se virar para a porta, o pé do Sr. Ratikan escor-regou e ele quase caiu antes de recuperar o equilíbrio com a bengala. Fechando a expressão em seu rosto, se abaixou e pegou algo do chão. Era o figo negro que tinha aberto o buraco na veneziana.

— Alguém esteve aqui — disse ele em voz baixa. — Isabel. Pulou em direção à porta com o figo negro nas mãos e a bateu com força, trancando-a bem antes de cor-rer degraus abaixo, gritando o nome de Isabel por todo o pomar.

Edgar desceu no mesmo instante até o chão e cor-reu em direção à porta, mas parou quando já estava pres-tes a sair. Olhou para trás na direção da cesta no canto da sala. O que o Sr. Ratikan está escondendo ali?

Dentro da cesta, Edgar encontrou uma sacola feita de couro de carneiro fechada na parte superior por um cadarço amarrado. Parecia um saco pesado cheio de terra, mas por que o Sr. Ratikan esconderia uma coisa dessas? Talvez houvesse figos escondidos ali dentro, uma provi-são oculta que ele comia quando não havia ninguém por perto.

Desatando o cadarço, Edgar descobriu que estava cheio de terra, exatamente como tinha imaginado. Colo-cou a mão lá dentro, esfregando um pouco do conteúdo entre os dedos. Tinha de haver algo especial naquilo — ou algo escondido ali — que Edgar não conseguia enxergar.

A sacola de couro de carneiro era um artigo comum utilizado em todo o pomar para carregar figos durante a colheita. Edgar examinou a sala em busca de um saco va-zio. Estava no lar do homem que comandava o pomar e portanto deveria haver sacos de figo armazenados em al-gum lugar. Estava prestes a desistir quando olhou embai-xo de uma mesa e encontrou uma caixa com uma dúzia — ou mais — de sacos de figo, abarrotados ali dentro. Pegou uma das sacolas, destrancou a porta e correu — sabendo muito bem que o Sr. Ratikan poderia retornar a qualquer momento.

Edgar encheu a sacola com lama do pomar o mais rápido que pôde e a devolveu à cesta na casa do Sr. Rati-kan. Depois de colocar a sacola original na varanda e de ter trancado a porta de dentro, Edgar escalou até as vene-zianas e saiu, fechando-as atrás de si.

Enquanto descia pelo exterior da casa, começou a sentir uma coceira nos dedos da mão e a esfregou na calça para aliviar a sensação. Mas ela voltou com tudo enquanto

o garoto corria para a frente da casa, pegava a sacola pe-sada e partia para o pomar.

Ao chegar à árvore onde tinha se escondido pela manhã, sua mão estava ardendo e coberta de bolhas. Era a mão que ele tinha enfiado na sacola.

Isabel não sabia ao certo como reagir quando ouviu

o Sr. Ratikan berrando seu nome à medida que se aproxi-mava da fila de árvores do terceiro ano onde ela estava. Tentou se fazer de ocupada perto da mãe e do pai, que ficavam tanto tempo olhando de maneira preocupada por sobre os ombros na direção das Terras Altas quanto pas-savam amarrando figos em feixes.

Ao ver Isabel, o Sr. Ratikan marchou diretamente até sua mãe e empurrou o figo negro em sua direção com uma centelha acusadora nos olhos.

— Sua filha invadiu minha casa! O pai de Isabel, Charles, aproximou-se com outros

trabalhadores do pomar. Uma multidão se formou. — Voltem ao trabalho. Isto não diz respeito a vo-

cês! — gritou o Sr. Ratikan, mas ninguém se mexeu. Isabel tirou a funda do bolso e a segurou.

— Eu estava apenas me divertindo com meu brin-quedo quando lancei um figo por uma das suas venezia-nas. Não tive a intenção.

— Dê-me esta coisa ridícula! — vociferou o Sr. Ra-tikan, esticando a mão e arrancando a funda de Isabel.

— Deixe a garota em paz — disse o pai de Isabel. — Ela estava só brincando.

O Sr. Ratikan levantou a bengala de forma amea-çadora na direção do pai de Isabel e a multidão avançou. Ele deu um passo para trás, por um momento inseguro quanto à sua autoridade no pomar. Mas a sensação logo passou e o grupo diante dele pôde ver a expressão amea-çadora em seu rosto.

— Vocês vão se rebelar contra mim, é isso? — dis-se o Sr. Ratikan. — Tivemos sorte de ter as Terras Altas tão distantes, mas agora elas estão se aproximando. Se descobrirem que vocês não estão progredindo no pomar, as punições serão mais duras e virão de forma mais rápida do que vocês jamais viram.

— O que nos impedirá de entrar lá se elas chega-rem aqui embaixo? — perguntou o pai de Isabel, encora-jado pelos homens a seu lado. — Você vai nos impedir?

O Sr. Ratikan olhou feio para o pai de Isabel e res-pondeu sem demonstrar o menor medo em sua voz.

— Existem diversas formas de mantê-los do lado de fora, formas violentas que vocês não devem testar.

Isto pareceu enfraquecer a postura hostil do grupo e eles murmuraram entre si.

— Voltem para o trabalho! O Sr. Ratikan fixou o olhar em Isabel. — E você! — Levantou a bengala no ar diante dela.

— Nunca mais apronte outra destas se pretende continuar se alimentando na minha casa.

A multidão se dispersou. Quando o Sr. Ratikan já tinha se afastado o bastante para dentro do pomar, o pai de Isabel se ajoelhou a seu lado e sussurrou:

— Pode me mostrar como fazer uma destas fun-das?

— Posso.

— E ela é capaz de arremessar um figo negro bem longe e bem rápido?

— É. O pai de Isabel se levantou e contemplou os im-

ponentes despenhadeiros. — Então você terá que me ensinar a usá-la, está

bem? Ela olhou preocupada para o pai. Eram um povo cortês e

Isabel tinha suas dúvidas quanto a esta inclinação súbita para pensamentos violentos. Não tinha certeza de que compreendia as intenções do pai.

— O que vai acontecer se as Terras Altas afunda-rem até aqui embaixo?

O pai de Isabel hesitou. Era um homem trabalha-dor que não estava habituado a este tipo de conversa fa-miliar.

— Se eles vierem com crueldade, terei de ajudar a proteger as famílias. Tenho de proteger você, Isabel.

Olhou para ela com força e determinação, como se fosse um escudo que a protegeria.

— Posso ensiná-lo a usar uma funda se o senhor acha que isto irá ajudar — disse ela.

Seu pai acenou com a cabeça e ambos voltaram ao trabalho imaginando o que estava por vir.

CAPÍTULO

14 FOLHAS SECAS E POEIRA

LARANJA Apesar do discurso acalorado, o Sr. Ratikan sabia que a maioria das crianças do pomar era de pouca serventia no trabalho com as árvores do terceiro ano. Eram muito bai-xas para amarrar os figos e muito fracas para transportar as árvores que haviam sido derrubadas. Ele não tinha pa-ciência para bancar a babá e logo Isabel escapulia mais uma vez para procurar Edgar.

Ao chegar à árvore onde o havia encontrado pela manhã, não se deparou com o mesmo Edgar de antes. Ele deixou-se cair dos galhos e se sentou na base do tronco, segurando a sacola que havia pegado na casa do Sr. Rati-kan. Um de seus olhos estava fechado de tão inchado e sua mão estava coberta de bolhas.

— Encontrei o que o Sr. Ratikan estava esconden-do — disse Edgar, tentando ao máximo fazer uma cara boa.

Isabel já tinha visto feridas como as da mão de Ed-gar.

— Não pode ser! — gritou, incrédula. Estes foram os sintomas sofridos por quem entrou em contato com as

folhas de uma árvore que tinha sido deixada por muito tempo no pomar.

— Imaginei que esta sacola estivesse cheia de fo-lhas secas e esmigalhadas, mas junto com isso está mistu-rado um monte de poeira laranja...

Isabel interrompeu: — A poeira que sai das árvores velhas e invade o

ar. — Exatamente — Edgar concordou. — E eu fiz a

besteira de esfregá-la no olho. Edgar estava certo de que, se pusesse a cabeça den-

tro do saco, seus pulmões iriam se estreitar e ele passaria dias e dias tossindo violentamente.

— Agora acho que sei do que se tratam os experi-mentos do Sr. Ratikan — continuou. — O que acontece-ria se eu colocasse um pouco do que está na sacola numa xícara d’água e bebesse? Você acha que meus órgãos fica-riam parecidos com a minha mão e meu olho? Imagino que iria vomitar um bocado... ou pior.

— As duas pessoas doentes no pomar! Edgar fez que sim com a cabeça. Isabel saltou para

debaixo da árvore junto a Edgar e os dois olharam fixa-mente para a sacola. O pensamento de um ato tão desu-mano era difícil de ser compreendido por Edgar e Isabel, e ainda assim era igualmente difícil dar as costas para os fatos.

— É um bocado de veneno. O que você acha que iam fazer com isto? — perguntou Isabel.

Edgar titubeou, incerto quanto a dizer o que pen-sava por receio de assustar Isabel.

— Não sei, mas acho que temos informações que precisam ser compartilhadas. As pessoas precisam saber que esta sacola de poeira e folhas existe. E quem a fez.

Edgar coçou a mão, que ardeu ainda mais. Tinha tocado apenas numa porçãozinha mínima da poeira da sacola e torcia para que os ferimentos não piorassem.

— Está parecendo que acertei seu rosto com um figo negro — disse Isabel.

Edgar abaixou a camisa e exibiu o ombro roxo e inchado cuja aparência era quase tão repugnante quanto a de seu rosto. Isabel suspirou.

— A dor no ombro me ajuda a esquecer a ardência na mão. Você me fez um favor.

Os dois gargalharam debaixo da árvore, mas mes-mo assim Isabel se sentia péssima.

— Parece bem pior do que realmente é — disse e-le. — É apenas uma coceirinha e uma irritaçãozinha, nada que eu não possa aguentar.

Isabel explicou o que acontecera no pomar. Eles concordaram que Edgar deveria levar a sacola para a ta-verna na Aldeia dos Coelhos. Ele tinha amigos lá que pre-cisavam saber da verdade. Talvez até o ajudassem a en-contrar alguém que pudesse ler a página em seu bolso. I-sabel permaneceria no pomar, ajudando os outros aldeões a fazerem fundas e ensinando-os a utilizá-las. Também contaria a eles o que Edgar tinha encontrado.

O som tormentoso das Terras Altas descendo ru-mo à sua terra natal tomou conta de Isabel e Edgar ao partirem em diferentes direções, ambos imaginando se voltariam a ver um ao outro.

Poucas horas antes de Edgar escapar do pomar, um

grupo de homens estava nas Terras Altas diante de um grande cesto pendurado nos despenhadeiros. O cesto fi-cava estendido sobre a beira, apoiado num tronco amplo de uma árvore tombada, e descia através de grossas cordas de couro trançado. Era grande o bastante para içar uma grande quantidade de sacos de figo, ou de coelhos ou de carne de carneiro lá para o alto até as Terras Altas. O ces-to era largo e curvado em forma de “V” no fundo, o que tornava um desafio manter-se em pé sobre ele. Era parti-cularmente difícil para sir Emerik, que não costumava se equilibrar dentro de um com muita frequência. Ele estava sentado no cesto, de modo que não conseguia ver por so-bre a beira.

— Levante-se, idiota! Lorde Phineus não suportava covardia, especial-

mente vinda de alguém que estava tão perto dele. Sir E-merik se esforçou para ficar de pé. O cesto foi içado do chão por uma corda e uma roldana, oscilando como um pêndulo e assentando-se no céu aberto. Os dois homens que manobravam o cesto se divertiram quando o rosto de sir Emerik ficou branco como giz depois que olhou por sobre a beira.

— Quando chegar à cidade com todos os coelhos, quero que analise como as pessoas estão reagindo — disse lorde Phineus. — Descubra se estão assustadas, confusas e, mais importante, organizadas. E pergunte sobre o garoto. Quando tiver cumprido esta tarefa, venha me encontrar no pomar, na casa do Sr. Ratikan. Estarei lá pouco antes do anoitecer numa missão própria.

Lorde Phineus se manteve perigosamente próximo à beira do penhasco e olhou para baixo mais uma vez. Estava espantado pela distância que as Terras Altas ti-nham descido sem que tomasse conhecimento. Já haviam passado dois dias desde que os cestos foram utilizados pela última vez, um intervalo comum no transporte de suprimentos dada a época do ano. Não havendo coisa al-guma para transportar, nem mesmo os homens que bai-xavam os cestos costumavam se aproximar da beira. Era um lugar perigoso, evitado por todos, e ninguém ia até lá a não ser que fosse necessário.

Lorde Phineus voltou seu olhar para sir Emerik e percebeu que ele estava novamente sentado no cesto.

— Desçam-no com o dobro da velocidade! — gri-tou para os dois homens segurando a roda. Passaram a soltar mais a corda e o cesto começou sua rápida descida até a base.

Sir Emerik teve uma viagem tranquila até o cesto chegar à Terra Média, onde este tombou de lado e fez com que o passageiro rolasse pelo chão como um saco cheio de coelhos. Esfregando o corpo com as mãos, olhou na direção do pomar vazio. Onde estão todos? Aquele Sr. Ra-tikan deve tê-los amarrado às árvores.

Horas depois, sir Emerik se aproximou, de mau

humor, da Aldeia dos Coelhos. Gostaria de estar cuidando da preparação dos cavalos e dos homens treinados, como sir Philip.

Sir Emerik sentia-se como se estivesse numa mis-são tola, perdendo seu tempo enquanto sir Philip o insul-

tava com suas buscas gloriosas por cavalos e armas. Can-sado e faminto, mal podia acreditar que deveria retornar ao pomar naquele mesmo dia. Aquilo era um ultraje e ele pretendia dizer isto a lorde Phineus quando se encontras-sem de novo.

Com uma noite passada em claro e uma manhã de ignóbil caminhada às suas costas, os pensamentos de sir Emerik se concentravam na comida e no repouso que poderia encontrar na aldeia. Estivera antes na taverna e comera os coelhos cozidos, o que o fez ser tomado por um desejo de encher o estômago. Não podem esperar muito de mim sem ao menos ter algo para comer. E além disso, a taverna será um bom lugar para começar a arrancar informações sobre este garoto Edgar. Como um livro tão importante contendo os segredos de A-therton poderia ter sido escrito para uma reles criança da Terra Mé-dia?

Foi com estes pensamentos que sir Emerik chegou à taverna na Aldeia dos Coelhos com um grande apetite e um olhar abatido em busca de comida, repouso e, se as coisas dessem certo para seu lado, algumas informações úteis.

CAPÍTULO

15 O INTERROGATÓRIO DE

SIR EMERIK Edgar ficou com água na boca ao abrir a porta da taverna e sentir o aroma familiar de coelhos assando. Lá fora o mundo estava mudando, mas, no conforto da taverna, tudo continuava igual. Maude limpava uma mesa e Briney tomava conta do fogo e assava um apetitoso coelho num espeto. O animal crepitava enquanto Briney olhava para cima para ver quem tinha entrado.

— O que aconteceu com você? — perguntou ele com um tom preocupado, deixando o trabalho de lado e acenando para que Maude se juntasse a eles. Estavam a-gindo de forma extremamente comedida ao se aproxima-rem de Edgar, e Maude apontou para a parede dos fundos da taverna. Havia outro homem, quieto e sozinho, senta-do num canto escuro do salão. Seu capuz estava puxado e a cabeça estava sobre a mesa.

Maude pegou Edgar pelo braço, olhou em seus o-lhos como faria um médico e o empurrou até o quarto dos fundos. Estava mais escuro do que o salão principal da taverna, onde um brilho laranja saía das chamas que queimavam em tigelas de combustível gorduroso coloca-das sobre cada mesa. Maude se ajoelhou diante de Edgar e

então Briney entrou, trazendo uma perna do coelho que estava assando.

— Aqui, coma isto — disse Briney, olhando fixa-mente para o olho inchado de Edgar. — Você está horrí-vel.

O olho de Edgar estava tão inchado que estava quase se fechando e ele tinha dificuldades para enxergar naquele quarto escuro. Maude ofereceu-lhe um pouqui-nho de água e Edgar os agradeceu enquanto devorava a pequena refeição.

— O Sr. Ratikan bateu em você? — perguntou Maude, com a voz se elevando de raiva. — Irei até o po-mar para arrancar a cabeça dele com minha vassoura!

— Não é o que vocês pensam — respondeu Edgar. Fez um sinal com a cabeça na direção do homem que es-tava no salão da frente.

— Quem é aquele homem ali? Maude suspirou e sussurrou de volta.

— É um sujeito muito estranho. Chegou aqui pa-recendo exausto e faminto, colocou um dos maiores figos que já vi sobre a mesa e pediu uma xícara d’água e dois coelhos inteiros.

— Ele veio das Terras Altas, você sabe — conti-nuou ela. — Ouvi dizer que é assim que as pessoas im-portantes de lá se vestem, com estes mantos e capuzes.

— O que vocês acham que ele está fazendo aqui? — perguntou Edgar, tentando não deixar seu medo transparecer. Suspeitava que viriam no seu encalço, mas não imaginou que o encontrariam tão rápido.

— Bem, não sei ao certo. Ele devorou os coelhos e logo caiu no sono. Devia estar terrivelmente cansado, a-quele ali. Nem se mexeu.

Edgar comeu o que ainda restava da perna do coe-lho e colocou o osso sobre a mesa.

— O que você tem aí? — perguntou Briney, apon-tando para a sacola que Edgar trouxera do pomar. Os dois adultos então perceberam as feridas inchadas na mão de Edgar.

— No que você se meteu, Edgar? — perguntou Maude, com a preocupação se elevando em sua voz.

Edgar não sabia ao certo como começar. Havia muito a dizer, mas não esperava que um homem adorme-cido das Terras Altas estivesse sentado na taverna, po-dendo acordar a qualquer momento.

— As Terras Altas estão afundando — disse Edgar. — Vocês sabem disso, não sabem?

O clima mudou completamente no pequeno quar-to. Briney espiou o salão da frente e viu que o homem a-inda dormia.

— Sabemos, Edgar. Todos na aldeia sabem. Tem se falado muito sobre o que irá acontecer se elas alcança-rem o chão. As pessoas estão falando sobre entrar lá. So-bre forçar a entrada. Falam principalmente sobre a água, sobre como as Terras Altas não poderão nos manter afas-tados dela por muito mais tempo.

Edgar esfregou a mão cheia de inflamações na per-na da calça e então rapidamente contou a eles sobre o que havia dentro da sacola, de onde vinha e o que imaginava que as Terras Altas planejavam fazer com aquilo.

— Preferia que tivesse deixado isto lá fora — disse Maude quando ele terminou, se afastando da sacola e e-xaminando a mão infectada de Edgar. — Eles planejam nos fazer mal, isto é certo.

— O que devemos fazer com isto? — perguntou Edgar.

— Deixe a sacola comigo — disse Briney. — Com as Terras Altas afundando, temos pessoas viajando entre o pomar, a Aldeia das Ovelhas e aqui. Todos estão decidin-do o que fazer e, quando. Vamos descobrir o que deve ser feito com isto.

Edgar ficou surpreso ao saber que as aldeias da Terra Média estavam mantendo contato. Estariam elas se organizando, se preparando para... o que dizia o livro de coisas secretas? Uma guerra?

Edgar se levantou e deu uma olhada no homem que dormia.

— Vocês poderiam ir lá para fora e me deixar aqui sozinho com ele? — perguntou Edgar. Era um pedido esquisito.

— Acho que sim, por quê? — perguntou Maude, confusa.

— Há algumas perguntas que eu gostaria de fazer e só ele pode me responder, mas não quero que pense que vocês estão envolvidos com isso de alguma maneira. Não quero colocar vocês ou seus planos em perigo.

Edgar percebeu que ambos ficaram intrigados com o que ele queria fazer.

— Alguém pode chegar à taverna a qualquer mo-mento e minha chance estará perdida — disse Edgar. — Por favor confiem em mim, está bem? Só vai levar um minuto até que eu consiga o que preciso, mas vocês não podem se envolver. Ele irá saber que estão contra ele. Eles irão saber.

Edgar fez um sinal com a cabeça para o alto, em direção às Terras Altas.

Tocados pela determinação no rosto de Edgar, Briney e Maude atenderam ao seu pedido. Saíram em di-reção ao salão da frente para fechar a porta da taverna, mas Edgar os interrompeu.

— Será que vocês podiam me ajudar a amarrá-lo? — disse Edgar. — Não posso deixar que pule sobre a mesa ou tente escapar.

O menino esfregou o olho e os dois adultos fica-ram cara a cara. Não disseram nada, mas em vez disso pa-receram ler os pensamentos um do outro e souberam, sem precisar perguntar, o que cada um tinha decidido.

— Vamos precisar de um pedaço grande de corda — disse Briney.

— Eu sei bem onde encontrar — continuou Mau-de, se encaminhando para os fundos do quarto escuro.

Edgar tinha conquistado uma pequena vitória, mas saber se o homem leria a página escondida em seu bolso era uma outra questão.

Quando sir Emerik acordou, não abriu os olhos

imediatamente. Primeiro se endireitou na cadeira e tentou esticar os braços por sobre a cabeça, algo que sempre fazia ao se levantar da cama em seu quarto na Casa do Poder. Ainda estava sonolento e teve a sensação de estar preso num sonho no qual não podia se mover. Estava tão can-sado que achou melhor voltar a dormir mais um pouco. Mais uma hora não fará tanta diferença. Depois percorrerei a aldeia e farei uma longa caminhada até o pomar. Uma caminhada extre-mamente longa.

Estava prestes a retornar ao seu mundo de sonhos quando sentiu algo quente próximo ao rosto, o que o forçou a abrir os olhos.

O local estava escuro e demorou um momento até que sir Emerik conseguisse ver algo além do objeto laranja brilhando perto de sua bochecha. Piscou com força e de-sejou poder tirar a remela dos olhos, mas ainda estava imóvel. Enquanto retomava a consciência, conseguiu i-dentificar o vulto de um garoto sentado numa cadeira do outro lado da mesa.

— Não se mexa — disse Edgar. — Você não vai querer se queimar.

Edgar tinha uma tocha em chamas em sua mão, com o fogo dançando bem ao lado da cabeça de sir Eme-rik. Só havia eles dois na sala. Briney e Maude estavam lá fora para impedir que outros entrassem.

Sir Emerik estava completamente acordado agora e percebeu que tinha sido amarrado a uma cadeira. A sujeira em seus olhos tinha se movido para os cantos e ele podia ver Edgar com clareza. Notou que o garoto tinha sido golpeado no rosto e imaginou que o Sr. Ratikan tivesse lhe batido com a bengala.

— É melhor saber o que está fazendo, garoto — disse sir Emerik em seu tom mais ameaçador. — Este é um jogo perigoso.

Edgar não se deixou intimidar. Colocou a página sobre a mesa onde a chama da tocha iluminava as pala-vras.

— Leia isto para mim. Leia ou coloco fogo em seus cabelos. Sir Emerik mal podia acreditar no que acontecia. Estava furioso com a audácia do garoto diante dele e ao mesmo tempo em estado de êxtase por ter encontrado

Edgar e a página perdida. Se apenas tivesse me mantido acorda-do, teria os dois em minhas mãos. Deve haver uma maneira de fazer com que as coisas fiquem sob meu controle.

— Você foi às Terras Altas, não foi? Edgar apenas olhou para sir Emerik e aguardou. — De que outra maneira teria conseguido esta pá-

gina de Samuel? Fez uma pausa, deixando o garoto pensar sobre o

que dissera; depois retomou, impondo o máximo de seri-edade que conseguia.

— Há consequências duríssimas para quem escala os despenhadeiros, você sabe disto. E há punições ainda mais severas para aqueles que mantêm páginas escritas sob seu poder. Você está bem encrencado, não está, Edgar?

Edgar oscilou um pouco para trás na cadeira diante da menção de seu nome. Samuel devia ter lhes contado.

— Ah, sim, sabemos tudo sobre o jovem Edgar. Temos nossas fontes.

Sir Emerik se inclinou para a frente tanto quanto as cordas lhe permitiram. Agora, acabe com este rapaz de vez, pensou.

— Se o pegarem, quebrarão suas pernas. Irão se certificar de que você nunca mais sairá fazendo escaladas por aí. Não há onde se esconder, Edgar. Mesmo que con-siga escapar desta taverna, acabaremos o encontrando e você vai pagar por isto.

Sir Emerik estava começando a se sentir bastante confiante — apesar do fato de que ainda estava amarrado e de que Edgar não tinha nem mesmo hesitado de incô-modo diante de suas palavras.

— Posso ajudá-lo, Edgar. Vou ajudá-lo. Apenas me desamarre e poderei te tirar da encrenca em que está me-tido.

Sir Emerik se recostou na cadeira com um olhar presunçoso no rosto, certo de que estava prestes a ser de-samarrado.

Edgar aproximou a chama da tocha da cabeça de sir Emerik. E então, com um simples giro do pulso, ateou fogo no cabelo do homem. Sir Emerik não tinha nem mesmo considerado a possibilidade de se preparar para o ataque. O cabelo se tornou laranja de um lado, com uma luz brilhante da qual saía uma erupção de fumaça preta. Sir Emerik começou a gritar.

Edgar jogou um saco de coelhos sobre a cabeça de Sir Emerik, acabando com o fogo tão rápido quanto tinha começado. Quando tirou o saco da cabeça de sir Emerik, uma coluna de fumaça escapou e sir Emerik tossiu e ur-rou. O cabelo queimado exalava um cheiro horrível.

— Você ficou maluco! — gritou sir Emerik. A maior parte do cabelo no lado direito de sua cabeça se fo-ra. O que sobrou foi uma bola negra e melada que se a-garrava ao couro cabeludo.

— Leia a página — ordenou Edgar. — Rápido, a-gora. O tempo é curto e tenho de ir andando.

— Você é um pequeno maníaco, isto é o que você é. Um maníaco em miniatura!

Edgar passou a tocha para a outra mão e a segurou próximo ao lado oposto da cabeça de sir Emerik.

— Por favor, leia a página. Não é tão difícil assim. Sir Emerik olhou para baixo. Embora estivesse es-

crita em uma caligrafia péssima, era uma mensagem curta e conseguiu ler as primeiras palavras sem muita dificulda-

de. Parte do que leu foi um grande choque. Mas quando retomou a compostura, sir Emerik percebeu que podia contar a Edgar uma parte do que lera, mas não tudo. Co-mo ele saberia a diferença? Sir Emerik saboreou este mo-mento de êxtase ao olhar para Edgar.

— Não há nada de importante nesta página — dis-se sir Emerik. — É inútil.

Edgar notou que o rosto de sir Emerik parecia tor-to de certa maneira sem o cabelo num dos lados e teve de impedir a si mesmo de colocar fogo no outro lado para deixá-lo mais simétrico. O pobre homem estava horrível.

— Isto é algo que decidirei por mim mesmo. O que diz a página?

Sir Emerik não gostou do fato de estar recebendo ordens de uma criança. Com fogo ou sem fogo, não con-seguia evitar olhar para o garoto com desdém. Este foi seu erro, pois naquele mesmo momento Edgar ateou fogo no outro lado de sua cabeça.

Depois que o saco de coelhos foi arremessado e re-tirado mais uma vez da cabeça de sir Emerik, com a fu-maça acre se dissipando pelo ar, sir Emerik estava nova-mente simétrico, embora ainda houvesse um tufo de ca-belo preso ao topo da cabeça, que Edgar estava tentado incendiar.

Edgar segurou a chama debaixo do nariz de sir Emerik e perguntou mais uma vez se poderia, por favor, ler a página. Irritado e com medo, sir Emerik finalmente cedeu.

— Está escrito que existe um segundo livro de coi-sas secretas em Atherton.

Edgar não sabia ao certo como receber a notícia. Era terrível saber que, mesmo que tal livro existisse, não

seria capaz de lê-lo. Estava sempre dependendo de outras pessoas para conseguir as informações de que precisava.

— O que mais está escrito? Diz onde o livro está? — É só isso — exclamou sir Emerik soltando uma

risada sinistra, com o medo superado pela chance de ar-ruinar as esperanças do garoto. — A única maneira de encontrá-lo é ir lá embaixo, até a Planície. É o que diz a página, O que lhe parece, Edgar?

Sir Emerik estava contente consigo mesmo uma vez que, pelo que sabia, só havia uma maneira de descer à Planície: escalando. Não conseguia pensar em uma ma-neira melhor de se livrar do garoto do que enviá-lo numa busca que só poderia terminar em desastre. Esta criança atrevida acreditaria nele e acabaria tentando, tornando apenas ele — sir Emerik — conhecedor da verdade sobre o que a página realmente dizia.

— Já lhe disse tudo o que queria saber, por mais inútil que seja. Agora me solte, seu monstrinho!

Edgar apenas se levantou da cadeira onde estava, pegou a página e caminhou em direção à porta.

— Não pode me deixar amarrado aqui assim, Ed-gar. Tem de me soltar — insistiu sir Emerik, ainda com um tom condescendente. Edgar precisou de toda sua de-terminação para não retornar à mesa e queimar o que so-brava do cabelo do homem. Em vez disso, deixou a tocha cair sobre o fogo, pegou casualmente o que restava do co-elho sem a perna e partiu sem olhar para seu prisioneiro novamente,

Edgar pôde ouvir sir Emerik gritando de indigna-ção quando chegou lá fora, onde foi recebido por Maude e Briney.

— O que você fez com aquele homem? Parece que ele vai matar alguém!

— Ele está bem, apenas furioso, Edgar decidiu não mencionar o cabelo queimado.

Em vez disso, levantou o coelho assado. — Sei que é pedir demais, mas será que poderia le-

var isto comigo? Briney deu sua aprovação. — Claro que pode levar o coelho. Mas o que ele

disse? Onde você está indo? — Vou descer até a Planície. Maude e Briney suspiraram ao mesmo tempo. — O que você está dizendo? — perguntou Maude.

— Isso não é possível! — Já escalei até lá em cima — disse Edgar, apon-

tando para as Terras Altas. — Duas vezes. Edgar encolheu os ombros. — Eu escalo bem. Escalo muito bem. — Bem, tenho mesmo que reconhecer — disse

Briney. Passou os dedos pela barba grossa e contemplou com grande assombro os despenhadeiros e o garoto dian-te dele.

— Vocês têm sido muito gentis — disse Edgar, com genuína gratidão. — Mas agora devo ir.

Edgar começou a caminhar, mas Maude pediu que esperasse mais um momento. Correu até os fundos da ta-verna e, ao retornar, tinha nas mãos um pequeno saco feito de pele de coelho.

— É água. Era tudo o que tínhamos para hoje, mas pode levá-la.

Edgar agradeceu aos dois e partiu, abrindo caminho rumo à beira do mundo.

Briney e Maude abriram a porta da taverna com um olhar de perplexidade ao verem a cabeça chamuscada de sir Emerik. Depois de soltá-lo, ficaram surpresos ao ve-rem sir Emerik sorrir, pois o que tinha lido no papel era um segredo magnífico a respeito do qual várias coisas ú-teis poderiam ser feitas. Ele o reservaria para contar a lor-de Phineus depois que se livrasse da confusão em que es-tava.

CAPÍTULO

16 HORÁCIO DEIXA SEU POSTO

A manhã deu lugar à tarde nas Terras Altas e as notícias sobre a estranha queda em direção à Terra Média come-çaram a se espalhar. Aumentavam os rumores sobre ho-mens armados lá embaixo, preparando-se para saquear e queimar todo aquele paraíso montanhês. O medo fluía a passos largos pelas delicadas casas de pedra e ao longo de córregos reluzentes, tornando mais sombrio o humor de cada família que habitava as Terras Altas. Todos os ho-mens que compunham a população da cidade eram bom-bardeados com perguntas desesperadas ao deixar suas ca-sas pela manhã sob ordens de sir Philip.

— O que faremos se vierem atrás de nossas crian-ças? E se vierem com tochas para pôr fogo nas casas? Você vai voltar?

Enquanto se reuniam num grande campo aberto, com lanças de madeira afiadas e cavalos, os homens se perguntavam se a catástrofe chamada guerra, sobre a qual todos já tinham lido em livros, havia finalmente encon-trado seu caminho até Atherton.

Enquanto sir Philip se ocupava em armar e dar ins-truções a seus homens, Horácio sentou no topo da esca-daria em seu posto de sempre, refletindo sobre o que vira e ouvira na Casa do Poder na noite anterior. Tinha volta-

do ao trabalho após uma manhã de descanso e olhou pelo corredor até o aposento principal, tentando imaginar por que Samuel não tinha voltado. Era um bom garoto que tinha perdido o pai. Por que motivo lorde Phineus e os outros iriam querer atormentar a pobre criança trancan-do-a num aposento?

— Horácio? Foi afastado de seus pensamentos pela mãe de Sa-

muel, que tinha subido silenciosamente as escadas atrás dele. Esfregando com ansiedade a mancha vermelha de-baixo do lábio, ela lhe entregou um pequeno pedaço de pão.

— Cheguei tarde na noite passada e Samuel não estava no quarto. Perguntei a todos no pátio e na cozinha e até a sir Emerik e a lorde Phineus. Ninguém parece sa-ber aonde ele foi.

Horácio sentia-se envergonhado por aceitar o pão em troca de informações, mas ele estava com muita fome. Com todo o alvoroço na Casa do Poder, não tivera sequer tempo para comer. Aceitou o pão e agradeceu à mãe de Samuel.

— Você parece ter passado a noite acordada — disse Horácio.

— E passei. Estive por todo lugar nas Terras Altas à procura dele. E com a Terra Média ficando tão perto e os rumores sobre o que podem fazer... — sua voz foi morrendo e ela abaixou a cabeça, esfregando a mancha vermelha mais uma vez.

— Você viu meu menino, Horácio? Horácio fez uma pausa. Lorde Phineus e seus dois

homens já tinham saído, deixando seus quartos e os apo-sentos acima vazios e em silêncio.

— Tenho uma ideia de onde ele possa estar, mas não sei ao certo — disse ele. — Direi a ele para ir para casa se eu o encontrar.

— Você o viu durante seu turno ontem à noite? Horácio não quis se mostrar muito confiante sobre o pa-radeiro do garoto.

— A Casa do Poder está numa espécie de caos, como você deve ter notado. Mas vou dar uma olhada por aí quando tiver uma pequena folga das minhas obrigações. Existem alguns lugares para os quais ele pode ter escapa-do.

— Obrigada, Horácio! — A mãe de Samuel tocou desajeitadamente no ombro de Horácio e desceu alguns degraus pela escada. — Já estou atrasada para a cozinha. Se encontrá-lo, mande-o para lá, sim?

Horácio assentiu com a cabeça e a afastou. Depois de comer alguns pedaços do pão, deu início a sua busca. Sabia que o garoto não estaria no aposento principal ou em qualquer dos três quartos privados no piso acima. Es-taria escondido no topo da escadaria estreita e sinuosa, se é que estava próximo àquela parte da Casa do Poder.

Quando chegou à porta do aposento onde Samuel estava trancado, deu uma batida e esperou. Achando ter ouvido algum movimento do outro lado, destrancou e a-briu a porta. Samuel estava agachado contra a parede dos fundos, olhando para Horácio como um animal enjaulado.

— Você veio para me levar ao aposento principal? — perguntou Samuel, certo de que seria intimado para mais um interrogatório.

— Estou aqui para levá-lo até sua mãe, que está morta de preocupação atrás de você — disse Horácio. —

Não devia assustá-la assim. Esconder-se aqui durante a noite. Perdeu o juízo?

Horácio fingia não saber a verdade sobre a prisão de Samuel. Caso lorde Phineus perguntasse, seria melhor agir como se tivesse encontrado Samuel e o tivesse liber-tado, pensando que o garoto tivesse se trancado por aci-dente enquanto brincava se aventurando por lugares onde não deveria estar.

— Estas portas fecham sozinhas — continuou. — Lembre-se disso da próxima vez que estiver bisbilhotando por aí!

Samuel estava pronto para voar para fora do apo-sento, mas lembrou que algum dos homens que o pren-deram poderia estar por perto.

— Não há ninguém, Samuel — assegurou Horácio. — Vá encontrar sua mãe na cozinha.

Samuel sorriu de uma orelha à outra, enfim livre, e disparou pelas escadas.

— E diga a sua mãe para me trazer outro pedaço de pão — gritou Horácio. — Estou morrendo de fome!

Quando Samuel alcançou o pátio, imediatamente percebeu que algo havia mudado nas Terras Altas durante o curto período em que esteve aprisionado. Cestos de ali-mentos eram carregados de um lado para o outro, homens com ferramentas e armas corriam em todas as direções. Parecia que todos estavam com pressa para chegar a al-gum lugar. As muralhas ao redor da Casa do Poder esta-vam sob a vigília de homens sombrios, uns tipos que nunca tinha visto antes.

A mãe de Samuel ficou radiante quando o filho chegou à cozinha, choramingando enquanto os dois se abraçavam. Samuel aderiu à história de Horácio e disse à

mãe que tinha se trancado num aposento por acidente. Enquanto recontava sua narrativa, ela lhe trouxe uma pe-quena baguete e uma xícara de água.

— Você tem de parar de ficar bisbilhotando pela Casa do Poder — disse ela, se ajoelhando de modo a ver a expressão no rosto de Samuel. — Samuel, você sabe o que está acontecendo nas Terras Altas? — ela perguntou.

O olhar vazio de Samuel indicava que não, então ela lhe disse apenas o que julgava necessário.

— As Terras Altas estão afundando. Nossa terra está se deslocando rumo à Terra Média, mas não sabemos o que isto significa. Mas não se preocupe. Você está se-guro na Casa do Poder. Permaneça aqui dentro e tudo vai ficar bem.

Estava realmente acontecendo! Samuel não conseguia deixar de pensar em Edgar, no pomar e em como preci-sava encontrar seu amigo. Havia coisas que Edgar não compreendia, coisas que não poderia saber sem ler a últi-ma página do livro de segredos.

— Agora — disse a mãe de Samuel — tenho muito pão para assar.

Como se para confirmar o que ela disse, um guarda entrou na cozinha e levou o grande cesto de pães embora, deixando um vazio em seu lugar. Ela esfregou o nariz com as costas da mão e se levantou.

— Fique em seu quarto até que eu diga para sair, tudo bem? Samuel assentiu e seguiu o homem com a cesta de pães da cozinha até o pátio.

— Com licença, senhor — falou, depois que já ti-nha se afastado o suficiente da cozinha para que sua mãe não o ouvisse.

O homem voltou o olhar para baixo na direção do garoto com uma certa irritação.

— O que você quer? — Quanto as Terras Altas já afundaram? O homem começou a se afastar de Samuel nova-

mente, mas disse algo por sobre os ombros. — Mais do que você possa imaginar. Raciocinando

com agilidade, Samuel voltou à cozinha e implorou à mãe por mais dois pedaços de pão e um pouco de água, o que ela hesitou em conceder. Não conseguia entender a inse-gurança de sua mãe, uma vez que nunca houvera falta de comida ou bebida e Samuel sempre recebera tudo o que queria. Embora os pedidos na cozinha estivessem maiores e mais frequentes do que nunca, a mãe de Samuel acabou cedendo, mandando-o embora com os itens que tinha pe-dido.

De volta a seu quarto, Samuel transferiu a água da xícara para um recipiente de couro, fechando-o com um barbante. Colocou o recipiente e as duas baguetes dentro de um saco retirado de baixo de sua mesa. Amarrando o pacote na cintura, se encaminhou ao portão principal.

Um alvoroço cercava a passagem de entrada da Casa do Poder. Homens sobre cavalos a atravessavam e recebiam suprimentos para levar aos campos. Quando uma grande quantidade de homens passou pelo portão carregando cestas e sacos, Samuel virou o corpo de lado e se infiltrou no meio deles. Um dos homens o viu e sorriu, achou que o garoto estava em busca de aventura, e não quis estragar sua diversão.

— Aonde você está indo? — Só quero ver o que todos estão fazendo.

— Então deve vir por aqui — disse o homem. Chamou seus companheiros: — Temos um soldadinho aqui!

Embora os homens temessem o confronto que pudesse ocorrer, também estavam orgulhosos e estranha-mente animados e dispostos a deixar que um futuro cole-ga desse uma olhada para ver do que se tratava toda aque-la agitação. Samuel os seguiu de perto, fazendo perguntas enquanto planejava escapar furtivamente para os despe-nhadeiros quando não estivessem olhando. Esperava de-sesperadamente descobrir uma maneira de descer com esperanças de que encontraria o amigo esperando por ele no pomar.

Durante o tempo todo o solo não parava de tremer, deixando Samuel mais perto do mundo que anteriormente só conhecera a distância.

CAPÍTULO

17 VIBRAÇÕES E TREMORES

Quando sir Emerik chegou ao pomar, tentou colocar o capuz para esconder a falta de cabelo, mas o tecido gru-dou em sua cabeça provocando tamanha ardência e co-ceira que ele não foi capaz de suportar. Enquanto abria caminho por entre as árvores, alguns dos trabalhadores o fitavam, curiosos. Quando finalmente chegou aos degraus da entrada da casa do Sr. Ratikan, estava pensando no que poderia inventar para mascarar o absurdo que realmente ocorrera. Não bateu à porta até estar seguro e satisfeito com a própria versão dos fatos.

— Lorde Phineus, o senhor está aí? O Sr. Ratikan abriu a porta e sir Emerik encontrou

lorde Phineus sentado numa cadeira à sua espera. — O que aconteceu com você? — zombou o Sr.

Ratikan, logo atrás de sir Emerik, examinando o que res-tara de seu cabelo.

— Ah, cala a boca! Sir Emerik estava prestes a contar a lorde Phineus

sobre a batalha que travara com aldeões rebeldes quando o chão da casa começou a tremer. Começou de forma su-ave, transformando-se em um sacudir violento logo em seguida. As xícaras e colheres sobre a mesa do Sr. Ratikan chacoalharam furiosamente e começaram a cair no chão

em grupos de três ou quatro. Os três homens correram para fora e sir Emerik caiu de joelhos, enquanto lorde Phineus e o Sr. Ratikan se equilibravam apoiados numa árvore que também oscilava. A casa começou a desabar.

— Minha casa! — gritou o Sr. Ratikan. — Minha linda casa!

Lorde Phineus já não olhava mais para a casa do Sr. Ratikan quando ela se desmantelou. Seus olhos estavam fixos em sua própria casa nas Terras Altas, atormentado ao vê-la afundar dentro do solo, mais rápido do que pode-ria imaginar em seus sonhos mais loucos,

— Olhem lá — disse com uma calma surpreen-dente, apontando para os despenhadeiros que mergulha-vam com extrema fúria. Um ruído brutal de algo sendo triturado murmurou pela terra enquanto ela fazia sua des-cida. Lorde Phineus estimou que, a esta velocidade, levaria apenas algumas horas até que as Terras Altas colidissem com a Terra Média.

E então, rápido como tinha começado, o tremor diminuiu até um se tornar um zumbido baixo, e a descida das Terras Altas ficou mais lenta. Lorde Phineus podia ouvir sua terra se agitando, desgastando o solo abaixo dela enquanto demoradamente continuava sua marcha. Estamos a um dia, no máximo. Devo agir rapidamente.

Sir Emerik se levantou do chão e algumas folhas caídas tinham grudado em sua cabeça.

— Todos em Atherton já sabem agora, disso po-demos ter certeza.

O Sr. Ratikan se encontrava em estado de choque diante do que uma vez fora sua casa. Tudo o que restava eram os três degraus que levavam a uma pilha de entulhos.

— O que está acontecendo, lorde Phineus? O que você fez? — perguntou o Sr. Ratikan, com a raiva fer-vendo em seus olhos. Olhava para lorde Phineus como se o soberano das Terras Altas fosse capaz de mover mon-tanhas.

Lorde Phineus segurou a bengala do Sr. Ratikan e a arrancou de sua mão. Deu um passo para trás e investiu contra o dono do pomar, errando sua cabeça à medida que o Sr. Ratikan se abaixou e caiu no chão.

— Eu apreciaria se o senhor não empregasse este tom de voz comigo, Sr. Ratikan.

Não havia nada que agradasse mais a sir Emerik do que ver alguém importante ser subjugado. Sempre odiara o Sr. Ratikan por sua falta de inteligência e tinha certeza de que o homem possuía o hábito de desviar figos que deveriam ser enviados para as Terras Altas. Está finalmente tendo o que merece, pensou sir Emerik.

Lorde Phineus continuou, segurando a ponta da bengala a poucos centímetros do rosto do Sr. Ratikan.

— Estou feliz por um de nós ter sido inteligente o bastante para trazer isto para fora da casa.

Com a outra mão, ele agarrava o saco de poeira que estava dentro do cesto.

— Podem imaginar o pomar com isto espalhado livremente pelo ar?

Sir Emerik começou a perguntar a seu mestre sobre a curiosa sacola que estava em suas mãos.

— Silêncio! — gritou lorde Phineus, apontando a bengala para o seu companheiro. O Sr. Ratikan tentou se colocar de pé, mas a bengala estava de volta a centímetros de seu rosto antes que pudesse escapar.

— Mantenha seus comandados sob controle até eu retornar. Se houver uma rebelião no pomar, você é quem irá pagar.

Lorde Phineus levantou o olhar para as Terras Altas mais uma vez e então jogou a bengala de lado.

— Temos de ir, mas suspeito que estaremos de volta antes do que você imagina.

Lorde Phineus não estava disposto a jogar conversa

fora enquanto caminhavam sob a copa das árvores. Sir Emerik tinha aprendido que certas vezes falar não lhe se-ria vantajoso e assim manteve a boca fechada. Nenhum dos dois gostava do fato de estarem no pomar, uma vez que as árvores os forçavam a movimentos incômodos como abaixar e desviar, o que irritava a ambos. Quando finalmente se livraram das árvores e conseguiram ficar e-retos, sir Emerik pôde sentir a pergunta vindo de seu si-lencioso colega mesmo antes de ela chegar ao ar.

— O que aconteceu com a sua cabeça? — pergun-tou lorde Phineus. Estavam caminhando na direção dos despenhadeiros e sir Emerik tinha outras preocupações em mente.

— Acha que é realmente inteligente tentarmos su-bir de volta? E se houver mais tremores e o cesto se sol-tar? Estaremos mortos.

As Terras Altas se moviam lentamente agora, mas os dois ainda podiam ver e ouvir seu avanço contínuo e determinado.

— Tudo bem, então, se não quer responder a esta pergunta, me diga como as pessoas na aldeia estão rea-gindo à descida das Terras Altas.

Sir Emerik pensou, Queimando todo meu cabelo, seu maníaco insensível! Retomando a compostura, contou a his-tória que maquinara no caminho de volta da Aldeia dos Coelhos.

— A recepção foi cheia de questionamentos e hos-tilidades. A população da cidade me encurralou na taver-na, um lugar que deveríamos pensar seriamente em fechar, e não quiseram me deixar sair. Quando lutei para escapar, aqueles monstros tentaram me incendiar! Acho que de-víamos nos preparar para o pior, lorde Phineus.

Lorde Phineus sorriu cruelmente. — Acho que está certo, sir Emerik. Faremos bem

em nos antecipar, não concorda? Sir Emerik fez que sim com a cabeça. — É sempre melhor estar na ofensiva — disse ele,

embora não tivesse o mínimo de conhecimento militar no qual basear sua afirmação.

— Algum sinal do garoto? — perguntou lorde Phineus.

— Não, não vi o garoto. Ninguém na aldeia sabia sobre quem eu estava falando.

Não seria exagero dizer que sir Emerik era um ex-celente mentiroso e era impossível para lorde Phineus descobrir que tinha acabado de ouvir uma grande mentira.

Não trocaram mais nenhuma palavra enquanto se dirigiam às muralhas do despenhadeiro. Dois guardas es-tavam de serviço no cesto quando eles chegaram. Os ho-mens estavam acostumados a vigiar o reservatório do pomar, mas lorde Phineus tinha ordenado que mudassem

de posto mais cedo. As coisas se mostravam instáveis, pensara ele. E se alguém da Terra Média tentasse assumir o controle do cesto, deixando-o preso lá embaixo?

— Tudo em ordem? — perguntou sir Emerik, dei-xando o nervosismo transparecer em sua voz.

— Sim, senhor. Está tudo funcionando perfeita-mente — disse o mais alto dos dois guardas.

— Ótimo, então voltem a vigiar o reservatório. Pode ser que o abastecimento de água fique... comprome-tido.

Sir Emerik não conseguia esconder um certo grau de desdém quando falava com estas pessoas. Não sabiam ler e em sua cabeça isto fazia deles uns estúpidos que eram apenas parcialmente úteis. Mas lorde Phineus os via de maneira diferente. Há muito se reconfortava em saber que podia controlar as coisas de longe. Os guardas no cesto pertenciam a uma minoria na Terra Média a qual podia-se comprar mediante um preço para que mantivessem o controle. Trabalhavam para lorde Phineus e recebiam pri-vilégios especiais para isso, mas era difícil dizer a qual lado permaneceriam leais em caso de conflito. Perguntava-se agora se as Terras Altas podiam contar com eles.

— Cavalheiros, os senhores compreendem que as Terras Altas podem desmoronar e chegar ao mesmo nível da Terra Média, não?

Os guardas fizeram que sim com a cabeça. — Vocês serão de grande utilidade caso isso venha

a acontecer. Compreendido? Ambos disseram “sim”, mas nenhum dos dois es-

tava completamente certo quanto a qual lado servir caso as relações entre as duas regiões se tornassem violentas.

— Logo receberão instruções.

Lorde Phineus colocou a sacola trazida da casa do Sr. Ratikan no cesto cuidadosamente e então subiu no re-cipiente que o transportaria. Sir Emerik não se mostrava tão entusiasmado em segui-lo, mas a outra opção o inco-modava ainda mais. Não poderia ser deixado para trás enquanto sir Philip e lorde Phineus planejavam uma guer-ra sem ele.

Como se marcasse o tempo, o monte de corda aos pés de sir Emerik se acumulava enquanto os despenha-deiros continuavam a descer.

— Entre, sir Emerik. Não temos o dia inteiro — estourou lorde Phineus.

Sir Emerik suspirou, se agarrou à borda do cesto e pulou para dentro.

Era uma sensação esquisita subir ao mesmo tempo em que o despenhadeiro descia, algo que para sir Emerik era especialmente desorientador. Tinha passado por um dia difícil, no qual fora amarrado, tivera o cabelo queima-do e fora obrigado a percorrer uma extenuante jornada entre o pomar e a aldeia. Em vez de contemplar o mundo lá embaixo, sentou-se na base do cesto questionando-se quanto à finalidade da sacola aos pés de lorde Phineus. O cesto balançava de um lado para o outro e sir Emerik sen-tiu o estômago se revirar.

Lorde Phineus olhou para ele por um instante e viu sua expressão de enjoo. Somada à cabeça e aos cabelos chamuscados, formava uma visão repulsiva. Lorde Phi-neus logo desviou o olhar.

— Se vai vomitar, não o faça aqui dentro. Lorde Phineus se afastou de sir Emerik, que se le-

vantou e se inclinou por sobre a beira do cesto. Lá se fo-ram os coelhos da taverna e a água que tinha bebido, além

da baguete que comera no café da manhã. Continuou en-joado pelo resto da viagem e, quando o cesto chegou ao topo, lorde Phineus partiu sem demora, deixando sir E-merik seguir sozinho e cambaleante até a Casa do Poder.

Mesmo em seu infortúnio, sir Emerik não conse-guiu deixar de observar o ritmo frenético que tomava conta dos habitantes das Terras Altas. Cavalos e alimentos eram transportados, os portões do pátios estavam forte-mente vigiados e as crianças estavam sendo reunidas e a-brigadas no interior das casas. Sir Philip certamente preparou a todos, não? Será que isto lhe está subindo à cabeça?

Quando sir Emerik chegou à porta do aposento in-terior, encontrou-a trancada e nem lorde Phineus tam-pouco sir Philip estavam por perto. Os dois estavam lá dentro, sir Emerik tinha certeza, e o preocupava o fato de não ter conseguido retornar mais cedo. Não confiava nos dois sozinhos.

Bateu à porta com grande urgência, mas sua entra-da foi recusada.

— Vá embora! — Mas senhor, sou eu, sir Emerik. — Vou mandar chamá-lo quando eu estiver prepa-

rado. Pode descansar por um tempo. Sir Emerik pensou que talvez pudesse tentar escu-

tá-los, mas e se abrissem a porta e o encontrassem ali? Hesitou, e depois começou a subir as escadas rumo a seu quarto.

Quanto mais penso nisso, mais fico satisfeito por ter mantido meu segredo. Apenas eu conheço o conteúdo da última página do li-vro. Tenho que encontrar sir Philip a sós para extrair o máximo dessa situação.

• O Sr. Ratikan tinha reunido todos os homens do

pomar e, apressado e furioso, ordenou que parassem o que estavam fazendo e fossem direto trabalhar na recons-trução de sua casa. Trinta homens reerguiam as paredes e puxavam o teto caído. Quando eles recuperaram a mobília — em sua maior parte, esmagada —, o Sr. Ratikan cha-mou todas as mulheres e crianças para consertarem a ca-ma, as cadeiras e as mesas quebradas.

Todos no pomar tinham suas próprias casas desa-badas às quais não podiam se dedicar. Alguns possuíam uma ovelha ou uma caixa de coelhos em casa — tesouros, com toda a certeza — e estes animais foram vistos cor-rendo pelo pomar, mordiscando a grama debaixo das ár-vores. O Sr. Ratikan andava imponentemente pelo lugar, golpeando joelhos e costas com sua bengala, e gritando coisas como “Fiquem longe da água!” ou “Já para o tra-balho, você aí!”

E assim sucedeu que as pessoas do pomar começa-ram a cochichar baixinho umas para as outras a respeito da possibilidade de se rebelar e ir embora do pomar, dei-xando que o perverso Sr. Ratikan cuidasse de sua própria casa. A crueldade acabou por fim sendo a ruína do Sr. Ra-tikan. Os moradores do pomar amarraram-no a uma ár-vore e o deixaram sozinho, sem comida ou água, olhando para sua casa aos pedaços. Ele se lamentou e praguejou o dia inteiro, mas na maior parte do tempo se perguntava o que aconteceria quando lorde Phineus retornasse e visse que ele tinha perdido o controle do pomar.

Na Aldeia dos Coelhos, algumas pessoas examina-

vam os entulhos que tinham sido feitos de suas casas. Ou-tros corriam atrás de milhares de coelhos que saltavam pelo pavimento através dos escombros da aldeia, tentando em vão recuperar suas propriedades.

E havia algo mais, um acontecimento macabro que mexia com os nervos das pessoas. Alguém havia morrido e isto nunca tinha acontecido antes na Aldeia dos Coe-lhos. Uma Mason — Gabriella Mason — que fora esma-gada por uma das paredes que desmoronou de sua casa. Não havia cemitério em Atherton e ninguém sabia o que fazer com o corpo. Por fim, levaram-no para os degraus da taverna, onde Maude o limpou e o cobriu com sacos de coelho.

Depois de um tempo, algumas poucas centenas de pessoas da aldeia se uniram ao redor da primeira vítima da queda das Terras Altas e permaneceram em silêncio. Al-guns coelhos saltaram sobre o corpo de Gabriella Mason, farejando por toda parte antes de continuarem a procurar algo para comer.

CAPÍTULO

18 O SOM DE OSSOS QUEBRANDO

O sol havia atravessado até o outro lado de Atherton, projetando uma sombra fria sobre o despenhadeiro onde Edgar estava sentado fitando a Planície. As pedras eram mais escuras e lisas ali, com curvas longas sinuosas que eram praticamente impossíveis de segurar. Com sua e-norme agilidade e habilidade para escaladas, Edgar conse-guiu deslizar pelas fendas destas formações monstruosas e se movimentar com rapidez.

Mas havia um problema que ele logo percebeu quando deu início à sua descida. Seria impossível — mesmo para ele — subir novamente. Cada centímetro que descia era um centímetro ao qual nunca retornaria e ele começou a perceber que a misteriosa terra devastada logo abaixo em breve seria seu novo lar. Não haveria como fu-gir uma vez que chegasse lá. Era um pensamento que o assombrava em sua descida rumo a lugares sombrios e desconhecidos.

Sentiria falta do pomar e da Aldeia dos Coelhos, mas não tanto quanto das pessoas que conhecera — Isa-bel, Samuel, Briney e Maude. Edgar não achava que seria tão difícil deixá-los e se perguntou se, afinal, o fato de ter feito amigos teria sido um erro.

Edgar estava quase chegando à saliência de um ro-chedo onde poderia descansar, quando se movimentou de um jeito que esmagou o coelho assado em seu bolso pelo que pareceu ser a centésima vez. Tentava guardar a comi-da para quando realmente precisasse, mas estava ficando ensopada e oleosa em contato com sua pele e o aroma começava a deixá-lo com fome. Depois de se sentar cui-dadosamente — com as pernas balançando para fora da borda — puxou o coelho assado do bolso da camisa.

— Melhor que vá para o meu estômago, onde será de alguma utilidade — ele disse em voz alta. Comeu pri-meiro as três pernas remanescentes e então arremessou cada um dos ossos ao ar depois de roer cada pedacinho de carne que restava neles. Não resistiu ao impulso de incli-nar-se para a frente e ver os ossos desaparecerem lenta-mente, muito antes de atingirem a Planície.

— Espero que não esteja jogando os ossos na ca-beça de alguém.

Riu consigo mesmo, mas de repente percebeu que não sabia quem ou que tipo de ameaça poderia estar na planície. Esforçou-se para ver pessoas se movendo ou fumaça subindo lá de baixo, mas não havia coisa alguma — apenas um solo infértil e rochoso abaixo de si. Depois daquilo, parou de arremessar os ossos e colocou o resto numa pequena fresta nas pedras.

As feridas em sua mão começavam a melhorar. Naquele momento, todas as bolhas tinham estourado e estavam cicatrizando, e ele já conseguia enxergar sem pre-cisar forçar para abrir o olho. Olhando para cima, foi no-vamente lembrado da distância quase imensurável até a Planície. Estimou que tinha descido apenas um terço do caminho levando o mesmo tempo que fazia uma viagem

completa de descida das Terras Altas, mesmo conside-rando a rapidez com que descia rumo à Planície.

Edgar era um garoto impulsivo de uma determina-ção incomum e colocara na cabeça que encontraria o se-gundo livro de coisas secretas, sem pensar muito no que faria com ele quando o encontrasse. Mesmo que desco-brisse o livro na vastidão da Planície — o que seria por si só uma proeza —, não tinha como lê-lo e era improvável que encontrasse alguém na Planície que pudesse fazer isto por ele. Nem mesmo sabia se existia outro ser humano naquela região.

Edgar rapidamente tirou aquele pensamento horrí-vel de sua cabeça. Este seria um tipo de solidão que nunca tinha vivenciado e que nunca escolheria para si.

Edgar passou o resto daquele primeiro dia escalan-do, deslizando e quase caiu inúmeras vezes. A noite ficou mais fria do que estava acostumado e, quanto mais descia, mais frio se tornava o ar que o envolvia. Quando a noite caiu, ele encontrou, na superfície da rocha, um lugar onde podia apoiar as costas. Não era uma caverna, mas era pra-ticamente plana e, apesar de ter tido dificuldades para dormir por um tempo, com receio de cair, no final acabou entrando numa espécie de cochilo que o restaurou.

Quando a manhã chegou, viu que tinha avançado mais que a metade do caminho. Tomou alguns goles da preciosa água do saco de couro amarrado à cintura e mor-discou os poucos ossos remanescentes em seu bolso, para então reiniciar a descida.

O dia estava na metade quando Edgar chegou a um lugar no qual convém nos juntarmos novamente a ele: es-tava agora tão próximo do chão que, de fato, começava a enxergar a Planície pela primeira vez.

Antes de descobrimos o que Edgar viu, vale a pena notar que ele era geralmente um escalador cuidadoso, mesmo quando percorria rotas fáceis pelas quais já tinha passado mil vezes antes. Acontece que todos os escalado-res dizem a mesma coisa: ter cuidado durante a maior parte do tempo é justamente aquilo que o colocará em perigo no final. Você pode muito bem não ser cuidadoso em momento algum desde o início, cair logo cedo, desistir da escalada e se livrar deste hábito com suas costelas inteiras e sua vida intacta. Mas não, é mais provável que um garo-to como Edgar acabe se envolvendo em encrencas da pior espécie no final do percurso.

Não chega a ser surpreendente que Edgar estivesse encantado pelo que viu na Planície. Abaixo dele descan-sava um mundo devastado de pedras pontiagudas, onde luz e escuridão eram separadas em duas por sombras de todos os formatos e tamanhos. Por entre as sombras a Planície se fazia viva através de movimentos espasmódi-cos que o garoto nunca vira antes. Edgar estava tão fasci-nado que, por um instante, se descuidou ao apoiar um dos pés. Este ato único de negligência lhe custaria caro.

Enquanto olhava a Planície lá embaixo com admi-ração, Edgar moveu o pé esquerdo para um ponto que parecia firme e seguro. Mas, no momento em que soltou o peso do corpo sobre o apoio, este se soltou e o pé es-querdo de Edgar oscilou pelo ar. Ele segurou firme com as mãos por um instante, mas em pouco tempo estava ar-ranhando as pedras, deslizando rapidamente pelas ondu-lações da superfície rochosa sem nenhum ponto no qual agarrar.

O queixo de Edgar batia contra as pedras enquanto deslizava. Ele lutou como pôde para conseguir agarrar al-

guma coisa, qualquer coisa, mas sua velocidade só aumen-tava.

Felizmente, a ampla desenvoltura e os instintos de escalada de Edgar vieram à tona e o garoto teve uma idéia. Seria doloroso, muito doloroso, mas ele era capaz de fa-zê-lo. A superfície rochosa à sua direita era cheia de pe-dregulhos e, se pudesse se esticar e segurar em um deles, talvez fosse capaz de diminuir a velocidade ou até mesmo interromper a queda.

Preparando-se para a dor que estava por vir, Edgar examinou conturbadamente a superfície do penhasco en-quanto descia. No momento certo, lançou a mão numa minúscula fissura.

Sentiu um solavanco violento em todo o corpo e uma dor forte e ardente, mas continuou caindo depois que sua mão deslizou. Edgar tentou mais uma vez e, contando com a sorte, sua mão encontrou uma fenda longa e fina na rocha, que começava larga e se estreitava gradualmente. A abertura segurou seu braço até que ficasse preso na rocha e seu ombro estalasse.

Edgar parou de forma brusca e cruel, balançando no ar sem firmeza e gritando. O mesmo ombro que Isabel tinha quase destruído com um figo negro agora estava firmemente encaixado na lateral do penhasco.

Os pés de Edgar instintivamente encontraram no-vos suportes e o braço entalado permaneceu imóvel. Foi um lance de sorte, pois Edgar logo desmaiou e fechou os olhos.

Quando acordou algum tempo depois, estava certo de que tinha deslocado o ombro. A dor que pulsava do cotovelo até o pescoço, em compensação, era quase insu-portável, mas a mão estava completamente dormente. E

ele agradeceu por esta pequena bênção. Isto é, até arrancar a mão para fora da rocha e ver como estava sangrando, algo que de início o perturbou, pois nunca tinha sofrido cortes tão fundos antes. Quando percebeu o motivo de todo aquele sangue, ficou ainda mais horrorizado. Edgar virou a mão e viu que o dedinho no final — seu mindinho — tinha sumido.

Lembrou como seu corpo tinha sacudido e conti-nuado a cair, deixando o dedo mindinho para trás. Havia sido uma espécie de bênção oculta ter a mão tão pressio-nada entre as fendas da rocha quando finalmente conse-guiu parar, pois tinha praticamente prendido sua circula-ção e interrompido o sangramento. Isto, aliado ao fato de ter involuntariamente ficado com a mão levantada sobre a cabeça por cerca de uma hora, tinha salvado sua vida.

Havia outros problemas, no entanto. Seu ombro não suportava peso algum e a mão sem o dedo pendia na altura da cintura. Era a mesma mão que tinha tocado a poeira da sacola e as cicatrizes tinham sido abertas. Na medida em que a dormência se esvaiu, sua mão começou a pulsar impiedosamente e havia sangue gotejando devagar de uma cicatriz grossa que se formava no toco onde o dedo mindinho costumava ficar.

Edgar estava quase tonto de tanta raiva e frustração consigo mesmo por ter sido tão descuidado. Uma façanha que era praticamente impossível tinha se tornado ainda mais difícil. Teria que se virar sem o dedo mínimo pelo resto da descida e não sabia bem ao certo se conseguiria.

Só quando olhou para baixo novamente na direção da Planície, com a mão e o braço sendo tomados por uma dor extraordinária, se lembrou do que tinha visto antes de

cair — e agora sabia por que tinha sido um choque tão grande.

O que se movia pelo chão abaixo dele, fosse o que fosse não era humano.

Dúzias de trilhas finas reluzentes surgiam contra as sombras como uma grande confusão de filamentos verdes brilhantes e cordas tortuosas. Ainda que não conseguisse identificar o aspecto das criaturas — ou o que fossem — de onde estava, no alto do penhasco, podia ver que se moviam rapidamente. Contou sete abaixo dele, se contor-cendo pela paisagem e vez ou outra deslizando para den-tro ou por cima uma da outra.

Além destes seres estranhos, Edgar conseguiu iden-tificar formações de pedras cheias de recortes e depres-sões e uma grande quantidade do que só poderia ser des-crito como um nada absoluto. Era assombroso e silencio-so em sua vastidão, um lençol de pedras e terra seca com uma energia primitiva que tirou o fôlego de Edgar.

O resto do dia passou bastante devagar, como se pode imaginar, mas Edgar avançou constantemente à me-tade da velocidade com que descia antes. Se não fosse pela dor que tinha de suportar, poderia até ter apreciado o de-safio de tentar escalar com três membros, em vez de qua-tro. Xingou a si próprio por não ter tentado isto antes, de modo a ter desenvolvido a técnica necessária.

Edgar era um garoto de 11 anos, ferido, sozinho no mundo, e não encontrava consolo na comida, na água ou em lágrimas de autopiedade. Mas chegou um ponto em que até ele se viu pensando: Não vou conseguir sobreviver a ou-tra noite aqui. Estou cansado demais para conseguir segurar firme no escuro. Eram pensamentos como estes que o faziam a-vançar diante de probabilidades impossíveis. A vida lhe

concedia uma adversidade a cada esquina e tornara-se um hábito encontrar uma maneira de seguir adiante. Seu pas-sado humilde o ajudava a realizar sua descida final rumo ao desconhecido. E ele a teria completado sem outros problemas se não tivesse se surpreendido tão dramatica-mente próximo à base do despenhadeiro.

Faltavam apenas seis metros e a noite tinha caído há muito sobre a Planície. Edgar não sabia ao certo o quão perto do solo estava — sabia apenas que a distância era curta o suficiente para que pudesse sentir sua proxi-midade. Já estivera junto à base de um despenhadeiro du-rante a noite antes e reconhecia o cheiro característico, a mudança de temperatura, e outras sutilezas que jogavam com seus sentidos.

De repente veio um ruído enorme que Edgar nunca ouvira antes, como o som de mil ossos secos estalando ao mesmo tempo. Era próximo, como se viesse de algum lu-gar bem abaixo dele. Edgar se virou e suspirou — mas não viu nada, pois quando endireitou a posição do corpo a dor em seu ombro ardeu como fogo e ele se soltou do despenhadeiro.

Rolou na direção do chão — em pedras lisas ba-tendo aqui e ali por seis metros ou mais.

Quando atingiu o solo, Edgar se sentiu como se o corpo houvesse estilhaçado por dentro e o cérebro, ex-plodido em pedacinhos que vagavam pelo interior da ca-beça. Ouviu o terrível ruído novamente, ainda mais perto desta vez. Depois, Edgar fechou os olhos e se deitou i-móvel na Planície.

CAPÍTULO

19 A IDÉIA DO PASTOR

Muitas das casas na aldeia do pomar tinham desmorona-do, mas algumas tinham resistido aos tremores surpreen-dentemente bem e a maior parte destas zunia de tanta ati-vidade. O Sr. Ratikan estava amarrado a uma árvore e na-da podia fazer enquanto pessoas de todas as três aldeias se reuniam na noite. Havia duas mulheres e um homem da Aldeia das Ovelhas, Briney e Maude, da Aldeia dos Coe-lhos, e um grupo de adultos do pomar.

Isabel sentou-se a uma mesa do lado de fora, te-cendo fundas com fios finos de casca de árvore junto a outras duas garotas. Tinha se tornado uma heroína entre as crianças, guiando-as na tarefa de recolher figos negros e armazená-los em sacolas nos fundos da casa. Vez ou outra uma criança se aproximava dela como a uma imperadora e lhe fazia alguma pergunta. Está escurecendo, devemos continuar? Encontramos tudo o que podíamos nas árvores do segundo ano, onde devemos ir agora? Me ensina a arremessar um figo negro como você? A história de Isabel já tinha se tornado lenda entre as ou-tras crianças — sua amizade perigosa com um garoto es-calador, sua notável habilidade com a funda. Alguns até cochichavam que Isabel tinha destruído a casa do Sr. Ra-tikan sozinha e libertado o pomar.

O grupo na casa discutia sobre o que fazer com a sacola de veneno trazida por Briney e Maude quando Wallace, um homem com pelos dos pés à cabeça que vivia na Aldeia das Ovelhas, se cansou de escutar.

— Acho que devemos ir atrás dele, se queremos saber toda a verdade.

Todos sabiam de quem Wallace estava falando e onde esta pessoa podia ser encontrada. O grupo inteiro concordou e alguns foram designados para conversar com o Sr. Ratikan. O grupo consistia de Briney, Wallace e do pai de Isabel, Charles.

— Como estão as coisas, Isabel? — perguntou seu pai, atravessando a porta.

— Muito bem! Temos sacos e mais sacos de figos negros e ainda tem muito mais chegando a cada minuto. Estas garotas são excelentes tecelãs.

Ela acenou para as duas garotas a seu lado, que fi-caram radiantes de orgulho.

— Já temos vinte fundas e estamos cada vez mais rápidas.

— Vamos precisar de bem mais do que vinte — falou o pai de Isabel. Ele parecia preocupado. — Por que não mostra a alguns dos adultos como fazê-las?

As garotas olharam zangadas para o pai de Isabel, como se ele tivesse insultado a heroína delas, e então se voltaram para Isabel na esperança de que as funções im-portantes a elas delegadas não lhes fossem tomadas pelos adultos da aldeia.

— Temos um monte de figos negros — disse Isa-bel, tentando dar mérito a seus seguidores. — Vou deslo-car algumas das crianças para fazer fundas e vejamos co-mo nos saímos. Me dê uma hora.

Deixando Isabel com seu trabalho, os três homens abriram caminho pelo pomar. Pararam no reservatório e beberam um pouco de água, pois os guardas tinham per-cebido o erro de suas ações. A lealdade deles à Terra Mé-dia era superior ao encanto temporário de receber uns poucos figos extras por trabalharem para lorde Phineus.

Charles encheu uma xícara enquanto partiam e a levou consigo pelo pomar. Ele e os outros dois homens chegaram à árvore à qual o Sr. Ratikan estava amarrado. O pobre homem dormia em pé, com as cordas mantendo-o ereto e a cabeça pendendo para baixo. Charles mergulhou os dedos na xícara e jogou água na cabeça do Sr. Ratikan. Ele continuou roncando e Charles tentou chamá-lo pelo nome, sem sucesso, e então deu-lhe um chute no queixo.

— Saia da minha casa, seu canalha! — gritou o Sr. Ratikan. Sua garganta estava seca como pó e ele teve difi-culdade para engolir. Mas então viu a xícara na mão de Charles.

— O que você tem aí? — perguntou o Sr. Ratikan, com a voz estalando num sussurro áspero. Tinha gritado até a voz acabar e tinha ficado sem água o dia inteiro.

Charles ignorou a pergunta. — Você envenenou dois homens do pomar? O Sr. Ratikan ficou surpreso com a pergunta e dei-

xou transparecer isso em sua reação. Como eles sabiam? Negou a acusação e exigiu que o soltassem. Briney deu um passo à frente, segurando a sacola.

— Sabe o que tem nesta sacola? — perguntou. — Não tenho a menor idéia — disse o Sr. Ratikan,

embora o formato e o tamanho fossem bem parecidos com a que lorde Phineus tinha levado de volta para as Terras Altas, pensava ele.

Briney abriu a sacola, tomando cuidado para não agitar seu conteúdo. Pegou um graveto no chão, o mer-gulhou na xícara e então na sacola. O Sr. Ratikan engoliu em seco quando viu que o graveto estava coberto por uma poeira laranja. Briney entregou o graveto a Charles e a-marrou a sacola novamente.

— Parece que você está com sede — disse Charles. O pai de Isabel bebeu ruidosamente a água da xíca-

ra e estalou os lábios molhados. — Posso lhe oferecer um pouco de água? O Sr. Ratikan chegou a pensar por um momento

que sua sede poderia finalmente ser saciada depois do dia longo e seco que passara amarrado à arvore.

— Não bebi um gole sequer o dia inteiro — disse ele. Charles mergulhou a ponta do graveto na água, com a poeira laranja girando pela xícara, e então estendeu-a sob o queixo do Sr. Ratikan, onde ele poderia alcançá-la com a boca.

— Tire isto daqui! Não vou beber isto! Não vou! — Estava bem claro para o Sr. Ratikan que estes homens tinham em seu poder as folhas e a poeira do pomar. Sa-biam o que ele tinha feito. Como lorde Phineus permitiu que a sacola fosse parar nas mãos de trabalhadores do pomar?

— Vou lhe perguntar mais uma vez — disse Char-les, segurando a xícara a poucos centímetros do rosto do Sr. Ratikan. — Você envenenou duas pessoas do pomar?

— Isto é coisa de lorde Phineus! Ele me forçou a fazê-lo! Não demorou muito até que os três homens es-cutassem do Sr. Ratikan o que lorde Phineus tinha plane-jado fazer com a sacola de poeira laranja. Enquanto ca-minhavam de volta para casa para contar aos outros o que

tinham escutado, o Sr. Ratikan não conseguiu deixar de pensar: Lorde Phineus ficará furioso. O que será que fará comigo?

Os homens nas Terras Altas se cansaram de ter um

garoto curioso por perto e logo esqueceram de Samuel, uma vez que tinham que se preparar para uma possível guerra. Samuel sentiu uma leve empolgação ao fugir de vista, escondido nas árvores altas que ficavam diante da borda das Terras Altas. Permaneceu nas árvores o dia in-teiro e desejou mais de uma vez ter trazido um livro para passar o tempo.

Quando a noite chegou, Samuel estava sem água e com sede, e decidiu procurar um canal. Atravessou a gra-ma alta e amarela como pôde até se cansar do esforço, dando uma guinada rumo à beira das Terras Altas outra vez. Quando finalmente chegou ao fim do campo doura-do, abriu o capinzal e descobriu que estava próximo ao topo da cachoeira. Ali avistou um vulto dentro da água.

Era um homem e, embora a luz fosse tênue, Samu-el pôde reconhecer lorde Phineus. Estava de pé no meio do canal próximo à queda e a água ondulava vagarosa-mente por seus joelhos enquanto ele despejava o conteú-do pulveruloso de uma sacola aberta na corrente à sua frente. Quando a sacola estava pela metade, lorde Phineus parou, amarrou-a bem saindo da água em seguida pelo outro lado do canal.

Como um fantasma, lorde Phineus escapou silen-ciosamente através da grama alta e desapareceu, fazendo Samuel se perguntar aonde tinha ido e o que estava tra-mando.

Os três homens caminharam em direção à casa, e-

vitando os galhos enquanto avançavam. Charles e Briney falavam bastante, mas Wallace permanecia quieto e os ou-tros dois começaram a ficar curiosos quanto ao novo a-migo. Não haviam percebido que o fato de ele passar dias incontáveis num campo de ovelhas sem falar uma palavra o tornara pensativo por natureza.

— Você está bem, Wallace? — perguntou Briney. Wallace fez um gesto para seus companheiros pararem.

— Sabe, Charles, sua tramóia com a poeira na sa-cola me deu uma idéia — disse Wallace. Cocou a barba ruiva desalinhada com as costas de sua mão peluda e prosseguiu. — Fiquei matutando isto a noite toda. Como podemos utilizar o que está na sacola sem espalhar seu conteúdo entre nós? Não podemos encher as mãos e ar-remessá-lo no rosto de nossos agressores. Não é uma ar-ma muito prática.

— Concordo — respondeu Briney. — Parece tão perigosa para nós quanto para eles. Pelo menos lorde Phineus não poderá usá-la contra nós como tinha plane-jado.

— Mas o jeito como você mergulhou o graveto na água e depois na sacola... — disse Wallace. —Aquilo me deu uma idéia. Não podemos fazer o mesmo com um figo negro?

Briney começava a entender. — Ora, isto é brilhante! — disse ele. — A poeira

ficaria seca na superfície dos figos e poderíamos usar as fundas para arremessá-los onde quiséssemos!

Charles fez uma observação que trouxe um pouco de realismo à conversa.

— Nenhum de nós sabe usar uma funda. É tão provável que arremessemos um figo venenoso uns nos outros quanto que consigamos acertar um inimigo que se aproxima.

Isto tirou um pouco da empolgação de Briney, mas Wallace não se deu por vencido.

— Então é melhor voltarmos o mais rápido possí-vel — disse Wallace. — Sua filha tem algumas lições a nos dar e dispomos de um tempo escasso e precioso para a-prender.

Os três homens se apressaram pelo pomar para encontrar Isabel e testar a idéia de Wallace. Ao se aproxi-marem da aldeia, Briney perguntou a Charles se conhecia um garoto notável de nome Edgar.

— Sim! É um órfão do pomar, muito bom traba-lhador. Por falar nisso, não o tenho visto ultimamente.

— Ele partiu à procura de algo — disse Briney. — O que quer dizer? Você falou com o garoto? —

perguntou Charles. — Falei. Você nunca irá acreditar para onde ele foi.

Vai pensar que estou inventando. Os três homens não sabiam, mas tudo o que con-

versavam estava sendo ouvido por alguém escondido ali perto, no pomar. Isabel tinha colocado as crianças para trabalhar e ficou imaginando aonde o pai teria ido. Co-nhecia o pomar tão bem quanto Edgar conhecia os des-penhadeiros e podia deslizar de uma árvore para outra tão silenciosamente quanto um sussurro. Escutava tudo en-quanto Briney contava sobre o encontro de Edgar com o visitante das Terras Altas, sobre como tinha colocado fo-

go no cabelo do homem e como tinha partido rumo à Planície lá embaixo.

Isabel rastejou sem que a vissem ou escutassem an-tes que pudessem perceber sua ausência. Seu amigo tinha ido longe demais desta vez, ela sabia. Começou a questio-nar se voltaria a ver Edgar algum dia.

CAPÍTULO

20 LIMPADORES

Pode ser difícil de perceber à primeira vista, mas Edgar havia se deparado com partes iguais de sorte e azar ao mesmo tempo. Foi um infortúnio dos diabos encontrar um local onde havia um grupo de criaturas repugnantes com bocas enormes e cheias de dentes afiados. Também era verdade que ele tinha caído duas vezes — se machu-cando em ambas — e que as criaturas próximas a ele pa-reciam querer devorá-lo.

Mas é preciso dizer que a sorte de Edgar em muito superava seu azar, pois um caçador seguia a distância estas feras perigosas e imprevisíveis há muitas horas. Parecia ser um homem importante, cujo cabelo era escasso no alto da cabeça, enquanto nas outras regiões tinha um cabelo lon-go que caía por sobre as orelhas. Estava vestido com rou-pas escuras que faziam com que fosse difícil enxergá-lo, exceto por seu nariz um tanto grande e aquilino, curvan-do-se sobre o rosto. O nome do homem era Vincent.

Sob a luz decrescente do dia, Vincent viu Edgar descendo a lateral do penhasco e se perguntou com gran-de surpresa como alguém poderia ter chegado tão longe — e por que teria vindo, para começar. Não tinha como saber quantos anos tinha o indivíduo, mas presumiu erro-neamente que era alguém que lhe trazia problemas ou que

estava, ele mesmo, encrencado. Prosseguiu com bastante cuidado, sem ter certeza se o perigo maior vinha das cria-turas que perseguia ou deste desconhecido que acabara de chegar à Planície.

Após a espetacular queda de Edgar, passou pela cabeça de Vincent deixar que as criaturas acabassem com o invasor, mas não era de sua natureza permitir tal ato de crueldade. Havia então o problema das próprias criaturas, que perdiam todo o senso de direção no escuro — não havia como dizer se suas bocas repulsivas se deparariam com Edgar. Seria melhor continuar com o plano. Mataria as quatro feras primeiro — e depois lidaria com o corpo caído.

As quatro bestas eram o que Vincent chamava de Limpadores. Haverá tempo de sobra para falarmos mais sobre eles depois, uma vez que são habitantes terrivel-mente importantes de Atherton. Por enquanto, devemos permanecer apreensivos diante da presença destas feras, cada uma do tamanho de dois seres humanos adultos, com uma quantidade assombrosa de patas e dentes que chacoalham como ossos quebrados.

Vincent já tinha matado Limpadores muitas vezes antes, mas precisava ser extremamente cuidadoso para não cometer nenhum erro; do contrário, teria sérios pro-blemas. Usava uma lança comprida com uma ponta afiada como arma, mas mesmo assim sempre esperava até ficar praticamente escuro para fazer seu trabalho desagradável.

O que tornava possível atacar um Limpador sem a luz do dia era o fato de que estas criaturas, embora horri-pilantes de se olhar e perversas ao extremo, eram incri-velmente estúpidas em todos os aspectos imagináveis. Po-diam ser bastante rápidas com suas inúmeras patas, mas

não eram espertas o suficiente para desviar quando uma lança era apontada diretamente para suas gargantas, e des-ta maneira seguiam adiante, com as presas afiadas voando na direção de Vincent a uma velocidade assustadora, até serem atravessadas de lado a lado.

Havia três coisas que um caçador deveria ter em mente ao se deparar com Limpadores:

1. SEM UMA LANÇA, AS CHANCES DE ALGUÉM

SOBREVIVER A UM ENCONTRO COM UM GRUPO DE

LIMPADORES SÃO PRATICAMENTE NULAS. NUNCA

SAIA DE CASA SEM AO MENOS UMA LANÇA PRESA ÀS

COSTAS, DUAS SE POSSÍVEL. 2. NUNCA ATAQUE MAIS DE UM LIMPADOR

AO MESMO TEMPO. SE HOUVER TRÊS OU QUATRO, ELES IRÃO ATACÁ-LO AO MESMO TEMPO, VINDOS

DE DIREÇÕES DIFERENTES. AINDA QUE CONSIGA

MATAR UM OU DOIS, OS OUTROS PODEM ACABAR

DEVORANDO ALGUMA PARTE DO SEU CORPO QUE

VOCÊ PROVAVELMENTE PREFERIRIA MANTER. O MELHOR É SEPARÁ-LOS E DEPOIS ATACAR UM POR

UM. 3. SE OS DETECTAR A DISTÂNCIA — E ISTO É

COMUM, JÁ QUE SÃO BASTANTE RUIDOSOS EM SEUS

AFAZERES — MANTENHA-SE À ESPREITA SILEN-

CIOSAMENTE ATÉ A NOITE, JÁ QUE SUA VISÃO É

PÉSSIMA QUANDO TUDO ESCURECE. Os LIMPADO-

RES TAMBÉM TÊM DIFICULDADES PARA OUVIR, SEN-

TIR E CHEIRAR NO ESCURO, AUMENTANDO AINDA

MAIS SUAS CHANCES DE ÊXITO.

Vincent tinha seguido todas as regras e assim não teve problema em acabar com os dois primeiros Limpa-dores. Simplesmente caminhou até eles e enfiou a lança em suas bocas abertas. Infelizmente para Vincent, no momento em que foi lidar com o terceiro já estava muito escuro, o que resultava numa margem de erro maior. Quando ele atacou, a lança resvalou à direita e só feriu o Limpador, fazendo com que este se agitasse, soltando um guincho ensurdecedor.

Isto assustou tanto o outro Limpador quanto Edgar, sendo que este despertou e começou a fazer ele mesmo muito barulho. Primeiro foi um grito e depois urros de dor, os quais Vincent julgou serem decorrentes do fato de o outro Limpador estar devorando uma das pernas ou um dos braços do escalador. Vincent se assustou ao ouvir a voz de Edgar, percebendo pela primeira vez que tinha si-do um garoto, e não um homem, que caíra à Planície. Se o garoto estivesse em apuros com o Limpador, como pare-cia estar, Vincent nunca se perdoaria. Um adulto introme-tido lá de cima era uma coisa, mas um garoto inocente era algo completamente diferente e inesperado,

Vincent entrou em ação. Era um trabalho perigoso, pois o Limpador ferido baqueou violentamente sobre o chão, se debatendo em todas as direções, com os dentes procurando algo para agarrar a todo custo, mas Vincent rapidamente acabou com o terceiro Limpador após uma série de ataques brutais à sua cabeça.

O último dos Limpadores tinha se afastado um pouco e permanecia imóvel no escuro. Vincent prestou bastante atenção ao som de dentes rangendo e batendo. A besta procurava por ele, embora não pudesse vê-lo. Esta-va instintivamente mastigando o ar para se proteger.

— O que é aquilo? Era Edgar, que tinha se levantado e se movia atrás

de Vincent no escuro. O som da voz de Edgar fez com que o Limpador avançasse na direção deles e Vincent teve que agir rapidamente para interrompê-lo.

— Guarde esta pergunta por um instante, se não se incomodar — disse Vincent, empurrando Edgar para fora do caminho. — Não posso deixar este aqui escapar.

O Limpador passou por ele e Vincent virou o cor-po, sem perder tempo para um segundo ataque. Desta vez, Vincent estava preparado e quando o som de ossos quebrando veio em sua direção, rápido e barulhento, ele mirou, lançou e acabou com o último dos Limpadores.

Finalmente Vincent pôde se virar para encarar Ed-gar. No escuro, ele mal conseguia distinguir as feições do garoto, embora pudesse ver que seu olho estava inchado, como se tivesse levado uma pancada.

— Como chegou aqui embaixo? — perguntou Vincent, olhando na direção da Terra Média lá no alto, estupefato. — É impossível. Ninguém fez isto antes.

Edgar sentou-se, exausto. O cotoco onde ficava o dedo mindinho pulsava de dor, mas seu ombro o inco-modava ainda mais.

— Você não conseguiu chegar aqui inteiro — disse Vincent. — Quando perdeu o dedo?

De início, quando Edgar viu Vincent enfrentando os Limpadores, ele parecia selvagem e violento. Mas agora Edgar via que Vincent tinha um rosto bondoso. Embaixo do nariz curvado, na escuridão, Edgar conseguiu enxergar um sorriso tímido, mas sincero.

Edgar contou a Vincent sobre como tinha caído durante a noite, como o dedo mindinho tinha sido arran-

cado e sobre a ferida que incapacitava o ombro. Vincent sabiamente acenou com a cabeça.

— Dá para ver que o osso foi arrancado de sua ca-vidade. Posso dar uma olhada? Possuo algumas habilida-des que podem ser úteis.

Com o consentimento de Edgar, Vincent pegou o braço machucado em sua mão e o moveu lentamente de um lado para o outro. Edgar berrou, mas Vincent conse-guiu levantar o braço acima da cabeça do garoto.

— Deite-se, por favor — pediu Vincent. Edgar de-lirava de dor e cansaço e simplesmente desabou de lado sobre o chão. Vincent permaneceu em pé e segurou o braço de Edgar em linha reta, mudando-o de posição até ficar satisfeito com a localização em que estava e então, com súbita força e velocidade, empurrou o braço para baixo. Houve um estalo barulhento e Edgar gritou.

O ombro voltara ao lugar e Edgar estava sem ener-gia, duas coisas pelas quais Vincent esperava. O garoto estava febril, tinha perdido sangue e seu corpo fora seria-mente enfraquecido pela falta de água e comida. Vincent levantou Edgar e ficou surpreso ao perceber como o ga-roto era leve.

— O que está fazendo aqui? — Vincent se per-guntou em voz alta, embora soubesse que Edgar não po-dia ouvi-lo. Seus olhos percorreram a monstruosa superfí-cie rochosa que levava à Terra Média e depois retornaram para admirar o menino em seus braços. Vincent balançou a cabeça. Será que ele podia realmente ter descido aquilo tudo?

O que se seguiu foi uma longa jornada noturna na qual Edgar permaneceu adormecido, mas vivo, nos braços de um homem da Planície, que levava-o a um lugar que ele não poderia ter imaginado.

CAPÍTULO

21 A SURPRESA DE SIR EMERIK

Ao retornarem à aldeia, Briney, Charles e Wallace ficaram contentes ao encontrar uma dúzia de crianças sentadas no chão num círculo em volta de Isabel, todas trabalhando com afinco na confecção de fundas. Enquanto observa-vam, dois garotos vieram de trás com sacos cheios de fi-gos negros.

— Fizemos mais 19 fundas na última hora e esta-mos cada vez mais rápidos — disse Isabel. — Eles vão trabalhar a noite inteira se for preciso, não é, pessoal?

Ela olhou para o grupo ao seu redor e todos balan-çaram a cabeça em afirmação. Um garoto pequeno, que não devia ter mais de 5 anos, entrou no círculo carregando uma porção de quadrados de couro.

— Mais vinte peles de coelho para vocês — disse o garoto, satisfeito com seu progresso. Entregou-as de mão em mão ao longo do círculo e as crianças começaram a amarrá-las às cordas trançadas, como Isabel lhes ensinara.

— Eles são capazes de trabalhar sem você? — perguntou o pai de Isabel, ciente de que centenas de fun-das seriam feitas durante a noite, talvez até mais do que precisavam. Pegou uma das fundas para examiná-la.

— Está na hora de começarmos a ensinar a alguns dos adultos como utilizar uma destas aqui — disse.

Isabel concordou, satisfeita, e partiu com os ho-mens, deixando os colegas de sua idade embasbacados ao verem como ela andava entre os adultos em tempos de perigo.

Por toda a noite, centenas de pessoas vindas da Al-deia dos Coelhos e da Aldeia das Ovelhas fluíram pelo pomar. Algumas passaram horas mergulhando figos em água e depois na poeira, utilizando peles de ovelha para revestir as mãos e enchendo saco atrás de saco com pe-dras negras. Cerca de cem aprenderam a manejar as fun-das com razoável habilidade sob a orientação de Isabel, enquanto outras passaram a cobrir uma das mãos com pele de coelho para se proteger e começaram a arremessar os figos negros.

Quando a manhã chegou, os aldeões voltaram às casas despedaçadas, cada um carregando um saco de figos negros preparados para o ataque e uma funda ou pele de coelho. Sob a luz de um novo dia, todos podiam ver como as Terras Altas estavam próximas, tão próximas que as majestosas árvores perto da borda pareciam uma muralha de soldados ao alcance de um figo a ser arremessado. Os aldeões haviam concordado em se abrigar sob os entulhos de suas casas. Se precisassem sair, tinham ordens para agir como se estivessem doentes. Mas era difícil não olhar para cima ao mesmo tempo apavorados e admirados pela terra suprema que nunca tiveram a oportunidade de conhecer.

Na Aldeia das Ovelhas, Wallace estava preocupado com seus animais, como é comum entre os pastores. Era uma região verde, tranqüila e pacífica no sopé dos despe-nhadeiros. O tremor tinha se tornado tão freqüente que seus animais pareciam não notá-lo mais. Era o único lugar fora do pomar onde a grama podia crescer. Mas, ainda as-

sim, ele andava para a frente e para trás, cocando a barriga peluda e vermelha, acalmando os animais com sua voz suave.

— Não se preocupem—disse. —Não vou deixar que nada de mal aconteça. Aprendi a usar uma funda. Posso protegê-los.

Passou a meditar silenciosamente, esperando pela chegada das Terras Altas.

Lorde Phineus estava levemente inquieto quando a

manhã irrompeu, olhando para baixo, por sobre a borda das Terras Altas. Desde a última noite, a queda tinha a-vançado com ainda mais velocidade do que ele imaginava e assim estava feliz por ter tratado de seus assuntos nas três cachoeiras durante a noite. Todos tomariam suas xí-caras d’água quando o sol se levantasse e ele ordenaria que se mantivessem afastados uma vez que todos estariam doentes. Isto lhe daria tempo para impor sua vontade no mundo novo e alterado que o esperava. Estes pensamen-tos o tranqüilizavam enquanto se afastava da borda.

Ele, sir Emerik e sir Philip estavam postados em algum lugar entre a Aldeia do Pomar e a Aldeia dos Coe-lhos, todos montados em cavalos, algo com o que sir Emerik se sentia extremamente desconfortável. Nunca gostara de cavalos e não dedicara seu tempo a aprender a cavalgar como fizera sir Philip. Sir Emerik ficava profun-damente incomodado ao olhar para sir Philip e vê-lo ao comando de seu corcel.

— Estamos prontos, então? — perguntou lorde Phineus.

— Sim, absolutamente prontos, senhor — respon-deu sir Philip. Sir Emerik circulou com seu cavalo numa tentativa de se aproximar dos dois, mas logo percebeu que estava virado para o lado contrário e que o traseiro de seu animal estava à sua frente. As cicatrizes e a ausência do cabelo o tornavam uma figura ainda mais ridícula.

— Desça do cavalo, sir Emerik — disse lorde Phi-neus. — Se é que consegue.

Lorde Phineus estava num bom humor incomum ao dirigir a palavra a seus homens. Parecia satisfeito sobre o cavalo, prestes a ficar frente a frente com um mundo que anteriormente se encontrava abaixo dele.

Sir Philip prosseguiu, fazendo as últimas conside-rações sobre a estratégia que empregaria, enquanto sir Emerik descia do cavalo e segurava as rédeas do animal, contente por estar de pé novamente.

— Existem quarenta homens sobre cavalos acima das três aldeias — começou ele. — Eles foram treinados para utilizar uma lança e receberam instruções para atacar ao menor sinal de provocação, lorde.

— Muito bem — disse lorde Phineus. — Mas logo você vai descobrir que eu já os derrotei para você.

Sir Philip pareceu intrigado. — De qualquer forma, se por acaso não estiverem

derrotados quando chegarmos, meus homens cuidarão deles sem dificuldade.

Lorde Phineus acenou com a cabeça, em aprova-ção, embora esperasse que tais precauções não fossem necessárias.

— Logo vão implorar por água — disse sir Emerik do chão, observando o baixo nível da água sobre as ca-choeiras.

Mas lorde Phineus não dava ouvidos a sir Emerik. — Em tempos como estes, quase desejo que os ti-

véssemos ensinado a ler. Teria sido bem mais fácil enviar um bilhete, não acham?

O humor negro incomodou sir Philip, mas não pa-receu perturbar sir Emerik.

— Tomem seus postos, então — disse lorde Phi-neus. — Quando estivermos próximos o bastante para que nos ouçam, devemos lhes dizer que suas vidas não mudarão. Ainda são nossos súditos e deverão permanecer em suas aldeias ou então pagarão um preço alto.

Lorde Phineus daria a ordem àqueles na Aldeia do Pomar, sir Philip àqueles na Aldeia das Ovelhas e sir E-merik faria o mesmo na Aldeia dos Coelhos. Sir Emerik estava feliz por já estar à metade da distância até seu pos-to, sem precisar cavalgar por muito tempo.

— Sir Philip — disse sir Emerik. — Poderia me dar algumas valiosas instruções sobre o comando desta besta antes de partir?

— Ajude o homem, sir Philip — lorde Phineus or-denou. — Pare e me encontre quando passar para o outro lado. Posso ter mais trabalho para você.

Lorde Phineus deu com a espora em seu cavalo e galopou para longe. Vê-lo cavalgar majestosamente lhe concedia uma aura de poder ainda maior, provocando ar-repios na espinha de sir Emerik.

Depois da partida de lorde Phineus, sir Philip se virou para sir Emerik.

— É uma surpresa para mim que tenha demorado tanto tempo para dominar a simples técnica de montar a cavalo.

Sir Philip balançou a cabeça em desgosto.

— Rápido, agora! Você tem que montar primeiro se quer que eu o ajude.

— Tenho uma idéia melhor — disse sir Emerik. — Por que não desce aqui? Tenho algo a conversar com vo-cê. Algo particular.

Sir Philip desceu do cavalo, ao mesmo tempo irri-tado e intrigado com o convite de sir Emerik.

— Fez um excelente trabalho preparando tudo isto, sir Philip — elogiou sir Emerik. — Realmente impressio-nante, devo dizer.

O sentimento não era mútuo. Sir Philip não queria mais nada além de se livrar de sir Emerik. Vê-lo montado sobre um cavalo com o cabelo chamuscado apenas con-firmava suas suspeitas de que o homem era um idiota e não pertencia mesmo às altas esferas. Sir Emerik perdia rapidamente sua respeitabilidade e logo seria uma carta fora do baralho.

— O que você tem a dizer, sir Emerik? Temos ne-gócios importantes a tratar e preciso seguir meu caminho.

— Tenho uma informação que você pode julgar interessante — ofereceu sir Emerik.

Ainda estavam cerca de 30 metros acima do nível da Terra Média e sir Emerik fez sinal para que sir Philip caminhasse junto a ele até a borda. Sir Philip o seguiu, não inteiramente de boa vontade, mas sua curiosidade tinha sido atiçada. Os dois homens pararam bem próximos ao limite das Terras Altas, a apenas alguns passos de distância da beira.

— Que tipo de informação você tem? — pergun-tou sir Philip.

— Quando estive na aldeia ontem, encontrei o ga-roto Edgar e a página desaparecida.

— Você o quê? Sir Emerik seguiu meticulosamente o roteiro que

tinha preparado em sua mente. — Sir Philip, nós dois sabemos que lorde Phineus é

simplesmente poderoso demais. Você nunca será capaz de superá-lo, tampouco eu. Mas juntos podemos controlá-lo. Ou, melhor, podemos colocá-lo de lado.

Sir Philip permaneceu impassível. Percebeu então que o pobre homem estava obcecado por um poder que nunca estaria ao seu alcance. Destronar lorde Phineus? Aquela era uma idéia inimaginável e também completa-mente louca vindo de alguém tão inábil quanto sir Emerik. Mas sir Philip era um homem inteligente e procurou usar isto a seu favor.

— O que você descobriu que lorde Phineus pode ainda não saber?

Isto é perfeito, pensou sir Emerik. Ele é mais idiota do que eu imaginava.

— Em primeiro lugar, deve jurar que seremos nós dois, contra um. Certo?

Sir Philip assentiu com a cabeça, mas agarrou com força a lança em sua mão, pronto para tomar sir Emerik como prisioneiro no momento em que a traição se com-pletasse.

— Li a última página e sei para onde foi o garoto. Sir Emerik se segurou para não contar mais, pois

subitamente teve certeza de que sir Philip iria traí-lo. Ha-via algo nos olhos dele e na maneira como sua mão segu-rava a lança. Da parte de sir Emerik, a astúcia de sir Philip não foi páreo para sua capacidade de perceber as coisas — assim como ele o tinha subestimado no que diz respeito a ambição.

Sir Emerik inclinou o ombro por sobre a borda. — Ouviu aquilo? — Aquilo o quê? — perguntou sir Philip. — Aquele barulho lá embaixo. Eles estão bem a-

baixo de nós! Sir Philip cometeu o erro catastrófico de se virar para olhar para baixo e por uma fração de segundo seus olhos atentos não estavam fixados em sir Emerik. Foi então que sir Emerik se moveu rapidamente para detrás de sir Philip e o empurrou com um forte impulso, súbito e vingativo. Os olhos de sir Philip se arregalaram com a surpresa. Conseguiu balançar a lança na direção de sir Emerik enquanto tentava retomar o equilíbrio, oscilando bem na borda das Terras Altas. Mas era tarde demais. Sir Emerik o empurrou novamente e sir Philip foi lançado de costas pelo céu.

Sir Emerik observou enquanto o corpo rolava pelo despenhadeiro e os membros de sir Philip se agitavam fantasmagoricamente ao vento até ele se chocar contra o solo lá embaixo.

Agora só resta um para combater, e então chegarei ao topo. Sir Emerik se recompôs, encarou a difícil missão de

subir no cavalo e seguiu rumo ao seu posto, onde encon-traria quarenta homens à sua espera.

CAPÍTULO

22 UM VELHO DE ORELHAS CAÍDAS

A sensação de congelar até os ossos fez com que Edgar acordasse. Um cobertor tinha sido colocado sobre ele, mas ainda tremia silenciosamente. Na Planície, o ar gelado saía do solo e se mantinha firme até o meio da manhã, quando a terra rochosa finalmente se aquecia e era possí-vel andar descalço e quase aproveitar o frescor.

O ferimento no ombro de Edgar tinha passado de uma dor aguda a uma irritabilidade enfadonha. Mas seu dedo — ou o lugar onde ele costumava ficar — era outro problema. Uma ardência inclemente irradiava dali. Edgar apalpou o local. Alguém tinha colocado um pedaço de pano velho em volta do cotoco.

Edgar dardejou o olhar para a frente e para trás em direção ao teto de pedra acima, certo de que estava no subterrâneo. Sentiu o pânico subir pela garganta. Dormira em uma clareira do pomar sob um dossel de árvores por toda sua vida, mas este novo lugar era como estar dentro de um caixão negro do qual não podia sair. Ouviria com prazer o Sr. Ratikan gritar em seus ouvidos se pudesse ao menos ir para casa. Pela primeira vez na vida, lamentou ter aprendido a escalar.

Edgar sabia que ficar deitado era o pior a fazer quando estava prestes a começar a chorar. Mesmo a me-

nor das lágrimas que escapasse de seus olhos correria rá-pido e direto pela lateral do rosto até entrar em seu ouvi-do. Edgar lembrou disto por causa dos dias, quando era mais novo, em que às vezes se sentia sozinho depois que todos tinham ido para casa. Fez um verso para si mesmo, que repetia olhando para o céu noturno com milhares de folhas balançando sobre sua cabeça.

Não há ninguém aqui, só eu e a natureza. Posso me balançar se quiser, olha só que beleza. Ninguém para me ver, nem chegará tão cedo. Não há por que chorar, nem por que ter medo. Daí então ele pegaria qualquer galho que estivesse

sobre a cabeça, o balançaria para a frente e para trás e re-petiria aquelas palavras até que o vento secasse seus olhos e ele se sentisse cansado mais uma vez. Quando voltava a se deitar, normalmente já tinha esquecido o que o inco-modava.

E então, deitado ali com a mão latejando e a mente cheia de pensamentos sombrios, começou a sussurrar o velho verso e virou a cabeça lentamente em meio à luz que preenchia o ambiente.

Edgar não estava no subterrâneo como havia pre-sumido. Estava numa grande caverna e a luz brilhante que via flutuar pelo espaço era a manhã chegando à Planície. A gruta era um aposento natural de terra e rocha, com um teto alto e que inclinava-se para baixo, formando um lon-go túnel numa das extremidades. Tinha uma forma ponti-aguda, pensou Edgar, bastante parecida com um figo ma-duro cortado longitudinalmente e apoiado numa superfí-cie plana. Estava olhando para um círculo de luz na ex-

tremidade estreita do ambiente quando um vulto negro surgiu na entrada distante. Aproximava-se lentamente de-le.

Edgar olhou para o teto mais uma vez. Seu coração batia acelerado e podia sentir as estranhas cócegas provo-cadas pela água em seu ouvido. Nesse meio tempo, o vul-to tinha encontrado o caminho até o pé da cama de Ed-gar.

— Você não está acostumado ao frio — disse a voz, desenrolando outro cobertor sobre Edgar.

Edgar arriscou abrir os olhos, da maneira que as crianças fazem quando querem que os outros pensem que ainda estão dormindo. Abriu apenas o suficiente para en-xergar através da floresta formada por seus cílios e da nódoa aquosa de suas lágrimas.

O homem estava de pé bem acima de Edgar. O garoto não conseguia distinguir as feições do rosto diante de si, mas sentia-se estranhamente confortável na presen-ça do homem. Edgar já tinha desenvolvido há muito tempo a habilidade de sentir o perigo quando este se a-proximava e, embora ainda tremesse, sentiu-se tranqüilo.

Edgar piscou duas ou três vezes e então olhou di-retamente para o rosto do homem acima dele.

— Então decidiu acordar, não é? — disse o ho-mem. — Começava a me perguntar se aquela queda tinha posto um fim em você.

— Quem é você? — sussurrou Edgar. — Sou Vincent. Nos conhecemos na noite passada,

embora eu entenda como você pode não se lembrar. Você estava, digamos, metido numa boa encrenca.

Edgar teve uma visão de si mesmo mergulhando até o chão e agora reconhecia o homem que estava lá quando ele acordou.

— Que lugar é esse para onde me trouxe? Vincent esticou o pescoço pelo ambiente de pedra

e olhou de volta para Edgar como se pedisse desculpas. — Receio que esta seja minha casa. É o único lugar

que conheço onde os Limpadores não conseguem entrar. Criaturas nojentas.

Limpadores. Edgar se lembrava dos monstros horrí-veis que tinha visto no escuro. Pensou que faziam parte de um pesadelo.

— O que são aquelas coisas? — Você tem um monte de perguntas! Mas também

tenho algumas para você e acho que já passou da minha vez.

Qualquer pessoa que visitasse a Planície poderia ser um motivo de preocupação.

— Por que veio até aqui? — as sobrancelhas de Vincent se curvaram para baixo. — E como chegou aqui?

Edgar estava prestes a responder quando, tanto ele quanto Vincent, foram distraídos pelo som de alguém — ou alguma coisa — se movendo fora da caverna. Sombras serpenteavam na parede perto da luz na abertura e Edgar instantaneamente ficou alerta.

— Pensei que tivesse dito que as criaturas não conseguiam entrar aqui! — Edgar tentou se sentar, tre-mendo de dor ao se apoiar na mão machucada. Mas para seu alívio, era uma figura humana que estava a se aproxi-mar.

— Ah, Vincent! Onde esteve a noite toda? — in-dagou a figura. — Estava preocupado com você. Espero

que tenha conseguido nos trazer algo para comer. Fiquei andando lá fora desde antes do amanhecer e estou bem certo disso agora, apenas...

O homem parou subitamente quando chegou perto o bastante para perceber Edgar deitado na cama. Houve um longo e profundo silêncio enquanto o homem con-templava o garoto de maneira pensativa. Era velho, mais velho do que todas as pessoas que Edgar conhecia e, en-quanto estava ali olhando fixamente para os olhos de Ed-gar, Vincent rompeu o silêncio.

— Encontrei-o durante a caçada, despencando pelo penhasco.

O velho tinha um nariz grande e redondo e orelhas salientes que ficavam penduradas numa cabeça coberta de cabelos grisalhos. Quando Vincent falou, o velho olhou para ele, rápida e incredulamente, fazendo suas orelhas balançarem para a frente e para trás. Olhou novamente para Edgar com olhos castanhos brilhantes que eram jo-vens demais para o rosto que os abrigava.

— Como se chama? — perguntou o homem. Es-tava bastante interessado tanto na pessoa diante dele quanto na maneira como tinha chegado à Planície.

— Meu nome é Edgar. Apenas um suspiro inspirado cortou o silêncio em

resposta. O velho esticou a mão e a colocou sobre o braço de Vincent.

— Deixe-nos — disse ele. Vincent partiu sem pro-testar e quando chegou à entrada da caverna o velho ber-rou para ele.

— E traga dois pratos de Preto e Verde!

Depois que Vincent partiu, o velho cruzou o am-

biente e retornou à lateral da cama com um banquinho para se sentar. Estava visivelmente emocionado ao ver o garoto diante dele: com um olho inchado e tão magro que o fazia ficar envergonhado por seu corpo comparativa-mente normal.

— Simplesmente não consigo imaginar como con-seguiu chegar aqui — disse ele — com a voz cheia de compaixão. Era um homem irrequieto e cheio de energia, que gostava de gastar, em sua maior parte, falando. E as-sim deixou escapar as surpreendentes palavras seguintes de sua maneira habitual — rápido e desajeitado, transbor-dando de emoção.

— Sou eu, Edgar. Não se lembra? Eu lhe trouxe até aqui anos atrás. Sou eu, Luther. Dr. Luther Kincaid.

Os dois se olharam, ambos entrando em conflito por motivos inteiramente diferentes. Edgar não conseguia acreditar que era verdade. Poderia este ser realmente o homem que Edgar tinha guardado na memória por tanto tempo? O que estaria fazendo na Planície? Por que ver a ele provocava uma mistura tão estranha de emoções? Raiva: Como podia estar tão perto e ter me deixado sozinho por tanto tempo? Como pôde me fazer seguir um caminho tão traiçoeiro? Incerteza: Não só ele não me ama, como parece querer me matar! Alegria: Finalmente o encontrei. Ele gosta de mim; tem que gostar de mim.

Já quanto ao nosso complicado e brilhante dr. Kincaid, um conjunto completamente diferente de senti-mentos e perguntas o inundou: Surpresa: Como este garoto chegou aqui? É absolutamente impossível e mesmo assim aqui está ele. Felicidade: Ele está vivo (certamente ferido e magricela demais,

mas vivo). Culpa: Ele irá me odiar pelo que fiz. Ele deve me odiar. Como poderei explicar?

— Venha comigo, Edgar — disse o dr. Kincaid. — Vamos lá para fora onde está mais quente e você pode comer alguma coisa. Podemos conversar o dia inteiro se quiser.

Edgar se sentou com um pouco de ajuda do dr. Kincaid. Foi para a frente e para trás ao tentar escapar dos cobertores.

— Coloque isto, sim? — Luther havia rapidamente cortado uma tipoia para o braço de Edgar e os dois tive-ram muitas dificuldades para colocá-la, pois o braço ainda doía. A sensação era melhor com a tipoia, embora o alívio apenas servisse para lembrá-lo de que sua mão estava ain-da pior. O dr. Kincaid tentou fazer com que Edgar vol-tasse sua atenção para mudanças mais positivas.

— Você cresceu! — disse ele, vendo que Edgar a-gora estava quase tão alto quanto ele e se dando conta pe-la milionésima vez de que era um velho realmente muito baixo.

— É realmente você? — perguntou Edgar. Lágri-mas começavam a brotar novamente de seus olhos en-quanto tentava compreender o homem que entrava no-vamente em sua vida.

O dr. Kincaid colocou o braço em volta de Edgar para equilibrá-lo e ao mesmo tempo foi dominado pela emoção.

Era mesmo um velho chorão, verdade seja dita, e então abraçou Edgar como um avô faria com um neto que não vê há um ano ou dois ou três.

Foi uma reunião estranha e confusa de duas almas e levaria a maior parte da manhã para que os dois compre-endessem o que tinha se passado e por quê.

CAPÍTULO

23 UM PRATO DE PRETO E VERDE

— Vamos lá, Edgar! Você não imagina como a comida aqui embaixo é boa. E temos água, o quanto você quiser! Apenas eu e Vincent a usamos, então temos bem mais do conseguiríamos beber. O que acha?

Nem é preciso dizer que aquilo tudo soava bom de-mais para Edgar. Quando chegaram do lado de fora, o dr. Kincaid não demorou a acomodá-los numa mesa. Edgar nunca tinha visto uma madeira tão escura como aquela utilizada na confecção da mesa e das cadeiras e o dr. Kin-caid percebeu sua curiosidade.

— É bem diferente das coisas às quais está acos-tumado — discursou, incerto sobre como ou quando ex-plicar todas as novidades e estranhezas do mundo mais baixo de Atherton.

— Verá que existem algumas outras esquisitices na Planície sobre as quais posso lhe esclarecer, mas talvez es-te não seja o melhor lugar para começarmos nossa con-versa.

O dr. Kincaid seguiu o olhar de Edgar para os des-penhadeiros longínquos, que avançavam bem alto no céu.

— Sempre tomo meu café da manhã do lado de fora, onde posso olhar para cima e imaginar o que está acontecendo por lá.

A mesa e as cadeiras estavam sobre uma superfície plana cercada por pedras imensas, cada uma pelo menos do tamanho da casa do Sr. Ratikan, que se elevavam ao redor de Edgar como ovos disformes apontados para o céu numa ou noutra direção. Podia ver através das aber-turas entre os seixos, como se uma cerca assimétrica de pedras tivesse sido erguida por gigantes não muito cuida-dosos. Um caminho passava em torno do conjunto de pedras e seguia para além da beira, uma vez que a casa do dr. Kincaid estava bem acima do nível do chão. A entrada da caverna atrás deles agora estava escura, como se esti-vesse dormindo e não quisesse ser incomodada.

Havia uma tigela cheia de água no centro da mesa além de duas grandes xícaras de madeira diante de Edgar e do dr. Kincaid. Edgar começou a bebericar a água. Era esplêndida — tão gelada, limpa e abundante. O líquido instantaneamente despertou todos os seus sentidos. To-mou mais uns goles, fazendo barulho, e chegando a colo-car o dedo dentro da xícara, girando-o voluptuosamente. Divertiu-se desta maneira por um tempo — perdido num sonho sobre água — até ficar surpreso ao ver a xícara va-zia e voltar sua atenção para o dr. Kincaid.

Havia um alvoroço de perguntas fervilhando des-consoladamente na cabeça de Edgar e era difícil saber por onde começar. O dr. Kincaid parecia enfrentar o mesmo problema quando esticou o braço por sobre a mesa e mergulhou a xícara de Edgar na tigela, colocando-a de volta diante do menino.

— Acredito que deva lhe contar como cheguei aqui e por quê — disse Edgar com hesitação. — Tudo come-çou com uma lembrança que eu tinha sobre algo escon-

dido nos despenhadeiros, algo que tentei encontrar por muito tempo.

— O livro de anotações que deixei para você! — disse o dr. Kincaid. — Você lembrou de nossa conversa e o encontrou quando ele chegou a você, exatamente como eu esperava.

O dr. Kincaid estava se sentindo bastante orgulho-so de si mesmo naquele momento e então percebeu as implicações.

— Então é verdade, as Terras Altas desceram? Ed-gar fez que sim com a cabeça.

— Desceram, mas encontrei o livro antes disso acontecer. Eu escalava os despenhadeiros todos os dias à sua procura.

Esta informação foi como uma pancada no rosto do dr. Luther Kincaid. Nunca tinha imaginado que o ga-roto arriscaria a vida para encontrar o livro que ele escon-dera.

— Então você escalou até lá em cima para pegar o livro e depois escalou até aqui embaixo?

— Primeiro tive que escalar até as Terras Altas para encontrar alguém que pudesse lê-lo para mim. Depois vim até aqui embaixo para encontrar o segundo livro de coisas secretas.

O dr. Kincaid estava devastado. Tinha enviado uma simples criança por um caminho extremamente traiçoeiro.

— Esperava que você aguardasse que Atherton vi-esse até você, e não que fosse até Atherton! Quando as Terras Altas desceram... Era este o momento em que você deveria encontrar o livro de anotações escondido no local onde estava o símbolo, não antes disso. Esconder aquele

livro foi um capricho estúpido, para começar. Vejo agora que foi um terrível erro tê-lo deixado para você...

A voz do dr. Kincaid foi se esvaindo aos poucos e ele esfregou o grande lóbulo da orelha em sua mão, no espaço entre o polegar e o indicador.

— Trouxe-o até Atherton porque me importo com você, Edgar, e porque este era o lugar mais seguro para você. Nunca deixei de pensar em você no tempo em que estivemos separados e sempre soube que algum dia esta-ríamos juntos novamente. Apenas não pensei que seria tão cedo.

— E quanto ao segundo livro de coisas secretas? Você está com ele? — perguntou Edgar.

— Receio não saber do que você está falando. Nunca mencionei algo assim.

Edgar tirou a última página do livro de seu bolso da frente. Estava amassada e rasgada, mas legível.

— Mas está escrito bem aqui! — insistiu Edgar. — Foi por isso que vim: existe outro livro secreto aqui em-baixo. Você deve ter se esquecido...

O dr. Kincaid pegou a página da mão de Edgar e a alisou contra os joelhos. Examinou-a meticulosamente e depois a devolveu a Edgar.

— Está vendo? — disse Edgar. — Por isso que vim: para pegar o livro.

O dr. Kincaid estava ciente de que o que estava pa-ra dizer poderia magoar o garoto e então hesitou em con-tar.

— Edgar, quem leu esta página para você? — Por que pergunta? Nunca passara pela cabeça de Edgar que o homem

na taverna poderia ter mentido para ele.

— Lamento — disse o dr. Kincaid. — Eu nunca teria trazido você aqui embaixo à procura de um livro. É perigoso demais. Mal posso acreditar que você conseguiu chegar até aqui. Mas você deve ficar bastante orgulhoso de si mesmo! Fez algo que pensei que ninguém fosse ca-paz de fazer, assim como pensou o dr. Harding! Você es-calou até aqui embaixo. Você me encontrou!

O dr. Kincaid sorriu para o garoto e agitou a mão pelo ar.

— De qualquer forma, guardo inúmeros segredos. Vou lhe contar todos. Temos todo o tempo do mundo agora que estamos juntos.

Edgar estava perplexo. Estava exilado na Planície para sempre e tinha perdido um dedo na descida. Nunca mais veria o pomar, nem Isabel, Samuel, Briney e Maude. Lágrimas verteram novamente de seus olhos.

— O que diz a página? O dr. Kincaid tinha pensado o tempo todo numa

boa resposta e se saiu com o melhor argumento que jul-gou poder oferecer.

— Prometo a você, Edgar, que você irá saber o que diz a página. Mas, por favor, confie em mim: será melhor se esperarmos mais um pouco. Acho que será melhor se eu puder mostrar a você o que diz a página, e não posso fazê-lo neste exato momento.

Edgar enxugou as lágrimas dos olhos. Chorar o fi-zera sentir-se melhor e passou por sua cabeça que as coi-sas poderiam ser bem piores. Poderia ter perdido o braço inteiro na queda ou acabado na boca enorme de uma da-quelas criaturas nojentas. E estava conversando com o homem que tinha escrito o livro para ele. Em muitos as-

pectos, a jornada que ele começara há tanto tempo tinha chegado a um bom final.

Assoou e esfregou o nariz com a tipoia e então fez a pergunta que esteve evitando até o momento.

— Dr. Kincaid, o senhor é meu pai? O dr. Kincaid sabia que em algum momento aquela

pergunta seria feita, mas ouvi-la agora não a tornava mais fácil de responder.

— Receio que não, Edgar — disse ele. — Mas todo o tempo eu tentei agir como um pai. Sei que parece que coloquei você em grande risco, mas tem de acreditar em mim quando digo que não foi minha intenção. Só queria protegê-lo. Você estava mais seguro sob os cuidados do Sr. Ratikan no pomar do que estaria aqui na Planície, com Limpadores percorrendo livremente cada esquina. Espe-rava ter resolvido o problema dos Limpadores até este momento, mas minhas tentativas de controlá-los falharam. Perdão, Edgar.

Edgar viu o quanto o homem estava arrependido. Era verdade que o livro tinha involuntariamente enviado Edgar numa jornada arriscada, mas para sua grande sur-presa Edgar começava a sentir um bem-estar crescente junto ao dr. Kincaid, além de um certo contentamento com aquelas viradas do destino.

— Ninguém é capaz de escalar como eu — se van-gloriou Edgar. — Sou o único.

Isto pareceu reanimar o dr. Kincaid e ele incitou Edgar a continuar.

— Se você não tivesse deixado o livro para mim, eu teria passado toda a minha vida no pomar, atormentado pelo Sr. Ratikan. Adoro escalar. Eu iria direto até a muralha agora mesmo se não fossem aquelas criaturas e isto —

disse Edgar, olhando pensativo para a própria mão. — Foi um estranho presente este que você me deu, e ele pode não ter saído da maneira esperada, mas isto acabou me proporcionando uma aventura com a qual outras pessoas podem apenas sonhar.

Um sorriso de alívio se estendeu pelo rosto do dr. Kincaid, como se um grande peso tivesse sido tirado de seus ombros. Edgar lhe contou o que havia ocorrido no mundo acima e o velho o escutou com grande interesse. Falou sobre lorde Phineus, o saco de veneno, o pomar, a Aldeia dos Coelhos e assim por diante até que sua memó-ria chegasse ao segundo livro de coisas secretas. Neste momento, Vincent surgiu pelo caminho carregando uma bandeja.

— Ahhh, aqui está nosso café da manhã, então — comentou o dr. Kincaid. — Acredito que você irá apreci-á-lo bastante.

— Estão se conhecendo, não é? — perguntou Vincent, enquanto colocava dois pratos cobertos por pe-daços de pano sobre a mesa. Vincent se virou para o dr. Kincaid:

— Vejo que ainda não contou a ele — disse. — Contou o quê? — perguntou Edgar. O dr. Kincaid lançou um olhar penetrante para

Vincent, mas se dirigiu a ele como fazem dois velhos a-migos quando compartilham um segredo.

— Você não tem de sair para caçar? Está ficando tarde. Vincent sorriu astutamente para o dr. Kincaid e en-trou na caverna. Quando voltou, carregava duas lanças nas costas.

— Estarei de volta antes do anoitecer, já que não vou matar nada hoje. Ontem tivemos o suficiente.

Depois que Vincent partiu, o dr. Kincaid esfregou as mãos com ansiedade e, de um modo teatral, retirou os panos que estavam sobre ambos os pratos.

Havia dois itens no prato diante de Edgar. Um era algo preto e carnudo, mas ele sabia não se tratar de coelho ou carneiro. O outro era um pudim verde encorpado que parecia muito com um fluido que Edgar vira sendo expe-lido por narizes quando as pessoas ficavam doentes após as árvores do terceiro ano não serem cortadas na época certa.

O dr. Kincaid pegou a carne do próprio prato dire-tamente com a mão e a mergulhou no pudim verde. Então ergueu o pedaço de carne na direção de Edgar, como se fosse fazer um brinde com um copo, em seguida deu uma mordida tão grande que Edgar teve certeza de que o velho acabaria se engasgando. Enquanto o dr. Kincaid já havia comido a maior parte de sua refeição, Edgar não tinha sequer se mexido.

— Coma, Edgar. Tenho certeza de que irá gostar — disse ele, com a boca cheia de comida, fazendo com que a má impressão que Edgar tinha a respeito da refeição à sua frente apenas aumentasse.

Mas Edgar não conseguia se lembrar de uma oca-sião em que estivesse mais faminto, o que não era pouca coisa, já que tinha sentido fome em quase todos os dias de sua vida. Hesitantemente, ele pegou a carne e moveu o braço para colocá-la na boca.

O dr. Kincaid fez um ruído de desaprovação e o-lhou para ele zangado mostrando a Edgar que primeiro ele deveria mergulhá-la no pudim.

— Eu chamo o prato de Preto e Verde por um motivo — disse ele. — Os dois formam uma combinação ótima e seria um desperdício comê-los separadamente.

Edgar estava prestes a perguntar do que Preto e Verde era feito, mas algo lhe dizia que era melhor não sa-ber. Seguiu as instruções do dr. Kincaid, mergulhando a carne no pudim, e descobriu que Preto e Verde era de fato muito saboroso. Era salgado e doce ao mesmo tempo e o alimentou de uma maneira que nenhum outro alimento tinha feito.

Agora que o garoto apreciava um prato de Preto e Verde, o dr. Kincaid sabia que não havia outra coisa a fa-zer senão começar a contar a Edgar sobre o mundo em que vivia. Era difícil começar, já que o dr. Kincaid só conseguia usar termos e conceitos que simplesmente não faziam o menor sentido para Edgar: microciência, biome-cânica, DNA, metal, máquinas. Era com se o dr. Kincaid falasse uma língua diferente, e Edgar se inclinou na cadei-ra, aborrecido.

— Esta carne é muito boa — comentou o menino, enquanto engolia o último pedaço, sem ter entendido uma só palavra do que dissera o dr. Kincaid. — De onde ela vem?

— Vem dos Limpadores, aquelas criaturas que quase o devoraram na noite passada.

Edgar sorriu com nervosismo, encantando o dr. Kincaid de tal maneira que ele resolveu prosseguir com o tema.

— Os Limpadores são, na verdade, criaturas notá-veis. São apenas uma das invenções que saíram da mente da pessoa que criou Atherton.

— Você criou Atherton? — perguntou Edgar. Lu-ther sorriu, se retorcendo.

— Receio que não. Este mundo é complicado de-mais até para que eu o entenda completamente.

O dr. Kincaid estava prestes a começar a explicar a origem de Atherton em termos científicos, mas desta vez conseguiu deter a si mesmo.

Tenho de explicar isto de forma simples para que ele enten-da. Não posso assustar o garoto.

— Deixe-me colocar desta forma, Edgar. Você não nasceu em Atherton. Você nasceu em outro lugar. Onde fica este lugar realmente não importa, porque você não pode voltar para lá. E posso lhe assegurar, você não iria querer. Embora não seja seu pai, sou seu guardião e não concordaria em vir para Atherton a menos que você pu-desse viver aqui comigo.

— Não compreendo — disse Edgar, sentindo que isto era algo que repetiria algumas vezes ao ouvir o dr. Kincaid.

— Quase não existem árvores no lugar de onde você veio. Consegue ao menos imaginar um lugar tão di-ferente do pomar? O ar é imundo, quase impossível de se respirar. Há meios de viver no lugar de onde você veio, e muitas pessoas o fazem, mas não é mais o mundo lindo que costumava ser. Se quer mesmo saber, o lugar é cha-mado de Planeta Sombrio e está mais próximo do que você imagina.

— Mas como cheguei aqui? Como alguém chega aqui? E por que não recordo de minha vida antes de A-therton?

Novamente, o dr. Kincaid se pôs a falar em termos que Edgar não conseguia entender. Discursou sobre

computadores, máquinas e algo chamado de terceira onda, até que Edgar balançou a cabeça em desaprovação. Ciên-cia, arranha-céus, televisões, carros, poluição... Tudo isto deixava o garoto desorientado. Parecia não haver saída para o pobre dr. Kincaid.

— Tente de novo — sugeriu Edgar. — Finja que é um garoto como eu. Talvez isto ajude.

O dr. Kincaid refletiu sobre esta abordagem por um momento, antes de prosseguir.

— Houve uma época no Planeta Sombrio em que eu e um grupo de cientistas, isto é, pessoas que tentam solucionar problemas, tivemos a idéia de construir um novo lugar onde as pessoas pudessem morar. Trabalha-mos nisto por muito tempo e tudo o que conseguimos foi andar em círculos, sem chegar a lugar algum. Mas então encontramos alguém que poderia nos ajudar.

Tomou um gole de sua xícara e a mergulhou mais uma vez na tigela d’água.

— Havia um garoto, Edgar, um garotinho muito esperto que era órfão como você. Seu nome era Max.

Edgar identificou esta como sendo provavelmente a parte da história que Samuel tinha começado a ler para ele no livro de coisas secretas.

O dr. Kincaid pareceu se iluminar ao pensar no tal garoto, mas Edgar sentiu uma pontadinha de remorso. Percebeu então que era órfão não apenas em um, mas em dois mundos.

— No início o chamávamos de Max — continuou o dr. Kincaid. — Mas em pouco tempo adquirimos o há-bito de chamá-lo de dr. Harding.

— Você diz, como uma piada? Para fazê-lo sentir que pertencia às coisas?

— Não, quero dizer que ele era bem melhor con-sertando e construindo coisas do que o resto de nós.

O dr. Kincaid estava se tornando melhor em utili-zar termos que Edgar conseguisse entender.

— O que Max fez de tão especial? — perguntou Edgar.

— Para falar a verdade, quando chegou aos 21 a-nos, nenhum de nós realmente compreendia tudo em que ele estava trabalhando.

O dr. Kincaid queria que o garoto soubesse como aquilo poderia ser possível e se apegou a uma idéia que provavelmente tornaria as coisas mais claras.

— Existe algo no Planeta Sombrio chamado avião. Sabe o que é isto, Edgar?

Edgar pensou por um momento que poderia saber, mas então lhe veio um branco. Balançou a cabeça.

— Um avião é uma criação do homem que pode transportá-lo pelo ar. Mas é uma máquina complexa, muito complexa, e muitas são bem maiores que estas pe-dras que se elevam ao nosso redor. São necessárias cente-nas de pessoas para fabricá-lo. Cada um trabalha numa pequena parte, mas ninguém pode fazê-lo sozinho. Cada pessoa recebe instruções sobre a parte que está constru-indo, mas ninguém sabe como construir o avião inteiro. Seria muita informação para uma única pessoa compre-ender de uma só vez.

O dr. Kincaid não sabia ao certo se tinha desorien-tado o menino, mas achou que estava indo bem e então prosseguiu.

— Imagine, Edgar, algo bem mais complicado que um avião, na verdade tão complicado que envolveria mi-lhares de pessoas inteligentes de todos os tipos fazendo

coisas extraordinárias todos ao mesmo tempo. E agora tente imaginar uma pessoa que tenha inventado isto tudo, que o criou inteiramente em sua cabeça aos 30 anos de idade. Se conseguir imaginar tal pessoa, então estará perto de saber por que passamos a chamar Max pelo nome de dr. Harding.

— Então o dr. Harding criou Atherton, é isso? — Em termos mais simples, sim. Mas houve algu-

mas... complicações. — Que tipo de complicações? O dr. Kincaid pensou por um momento antes de

responder. — Digamos que o dr. Harding não era completa-

mente normal. Ele era... perturbado. — O que quer dizer com “perturbado”? Não havia razão em esconder alguma coisa de Ed-

gar agora. O garoto acabaria sabendo de tudo mais cedo ou mais tarde.

— O dr. Harding era o que chamamos de “cientista maluco”, Edgar. Ele escondeu um monte de coisas de nós. Algumas nós sabemos, outras não. Receio que a his-tória fique um pouco obscura a partir daqui. Você quer que eu continue?

Edgar não conseguia pensar em algo que quisesse mais (não havendo mais Preto e Verde para ser saborea-do), e então o dr. Kincaid começou a desvendar o misté-rio do dr. Maximus Harding para ele.

CAPÍTULO

24 DOIS MUNDOS COLIDEM

— Isabel.

— Sim. — Está pronta? — Sim, pai, estou pronta. A luz atravessou por debaixo da porta de seu pe-

queno quarto enquanto a menina tocava a sacola de figos ao seu lado.

— Como combinamos, lembra? Isabel fez que sim com a cabeça.

— Só um arremesso, depois corro e subo numa árvore. Charles a puxou para perto, pensando melhor quanto a deixá-la de fato sair de dentro da casa.

Os dois foram para o lado de fora e descobriram que não existia pessoa alguma à vista na aldeia. Um silên-cio macabro pairava absoluto, tirando o fôlego de Isabel. Todas as crianças receberam ordens para subir nas árvores do pomar, e o som familiar de suas vozes infantis não po-dia ser ouvido. “Era do som que sentia falta?”, se pergun-tou Isabel. Não era. O silêncio era mais enlouquecedor do que sereno. Era o som de um mundo que secara.

Nunca houve um só dia em que Isabel não pudesse ouvir a cachoeira, mas hoje o som não estava lá. Lorde Phineus havia interrompido o fluxo de água completa-

mente. O som alegre da água se chocando com as pedras logo seria uma coisa do passado na Terra Média. Falariam sobre isto como se tivesse sido um sonho e tentariam se lembrar, mas o som logo seria esquecido.

Isabel levantou os olhos na direção das Terras Altas e viu uma parede de homens montados a cavalo ao longo da borda. Estavam perto o suficiente para que Isabel pu-desse ver as expressões em seus rostos e ouvir ruídos es-tranhos emanando das criaturas.

— Não são homens — falou ela em voz baixa, es-pantada. — São bestas gigantes de quatro patas e dois braços!

Charles não tinha lembrado de contar a Isabel so-bre as estranhas criaturas que tinha visto pela primeira vez naquela manhã. Estava ele mesmo numa espécie de estado de choque.

— Nós os vigiávamos enquanto se aproximavam — ele disse. — Não são ligados. Os homens estão mon-tados sobre aquelas feras. Como quando você era criança e a colocávamos sobre uma ovelha e andávamos por aí. Lembra-se disto?

Isabel não lembrava, mas o pensamento de que es-tes homens comandavam animais tão grandes a fez ques-tionar se combatê-los era mesmo uma boa idéia.

— Será que estamos cometendo um erro, pai? — perguntou Isabel. — Talvez devêssemos ouvi-los antes e fazer o que disserem. Se fizermos isto, talvez a Terra Mé-dia não mude tanto... Poderíamos reconstruir as casas e você poderia tomar conta do pomar.

Charles ajoelhou-se ao lado de Isabel. — Receio que seja tarde demais para isto.

Havia tristeza em sua voz enquanto fitava o pomar às suas costas.

— Sentirei falta da vida simples no pomar, dos dias de poda e tratamento das mudas.

Ele olhou de volta para Isabel e ela pôde ver o fogo em seus olhos.

— Mas não vou sentir falta de vê-la passar fome ou sede sempre que o humor deles está alterado.

Como se para tornar mais claro o ponto de vista de seu pai, o estômago de Isabel roncou. Ela não sabia ao certo se era de fome ou nervosismo.

— Você é jovem demais para que levem embora sua inocência— disse ele. — Envenenar-nos, envenenar a todos nós, incluindo as crianças, é algo injusto. A verdade é que as Terras Altas estão cheias de pessoas cruéis e eles vieram aqui para tentar nos dominar pela força.

Com este pensamento ecoando de maneira sombria por sua mente, Isabel olhou fixamente para os homens, esperando ver olhares perversos em seus rostos. No en-tanto, não viu nenhum sinal disto. Por um breve momen-to, imaginou que eles pudessem estar tão atordoados pela queda das Terras Altas quanto todos os que moravam na Terra Média. Mas, confiando nas palavras do pai, lançou um olhar de fogo e raiva na direção dos homens enfilei-rados. Assim que o fez, o solo começou a tremer.

Houve um ruído terrível, como uma fileira imensa de dentes rangendo, e as Terras Altas desabaram sobre a Terra Média como se o que estivesse ali embaixo man-tendo-as no lugar tivesse acabado de ser empurrado.

A fileira de cavalos se dispersou em todas as dire-ções. Um dos animais, sem saber do risco que a borda re-presentava, chegou tão perto ao se virar que suas patas

traseiras se inclinaram para além da beirada. Momentos depois, as Terras Altas balançaram bruscamente até para-rem a três metros do chão, fazendo com que o cavalo e o cavaleiro fossem lançados além da borda, chocando-se dramaticamente contra a Terra Média. Os dois ficaram fe-ridos, mas não morreram. O cavalo permaneceu de lado, guinchando e choramingando, enquanto o homem tentava retirar sua perna de debaixo do animal.

Os cavalos enfileirados nas Terras Altas retornaram a suas posições. Isabel ouviu os homens lá em cima gri-tando “Afastem-se! Afastem-se”. Quando olhou para trás, viu os homens e mulheres do pomar correndo para tomar seus postos. Levaria apenas um minuto até que chegassem e, naquele curto intervalo de tempo, muitas coisas estavam para acontecer.

— Isabel! Esta é a hora certa, agora! — gritou seu pai.

Os olhos de Isabel dardejaram para a frente e para trás por entre os homens e ela percebeu que um indivíduo no centro da fileira não era como os demais. Vestia um manto escuro que cobria as laterais do seu cavalo, balan-çando contra suas botas negras. O “v” em seu cabelo a-pontava na direção dela e ele aparentava ter um olhar con-fiante de triunfo em seu rosto, como se a desafiasse a se rebelar contra ele. Aquele era lorde Phineus: o alvo que ela estava procurando.

Um figo devidamente empanado em poeira laranja já estava posicionado em sua funda e ela começou a ba-lançá-la sobre a cabeça, fazendo um ruído tão intenso ao rodopiar que parecia levar o resto do mundo ao silêncio. As pessoas do pomar, protegendo-se atrás dela, pararam e esperaram. Quando os homens se depararam com aquela

corajosa garota do pomar, uma mistura de assombro, in-dignação e curiosidade silenciou sua gritaria. O tempo congelou por um momento e houve uma vibração de ex-pectativa.

Não vou acertá-lo. Sei que não vou acertá-lo. pensou Isa-bel enquanto a funda girava cada vez mais rápido sobre sua cabeça.

Lorde Phineus se manteve reto sobre seu cavalo, quase deleitado pela brincadeira da criança. Voltando o olhar para a terra logo abaixo, desejou que as Terras Altas terminassem logo sua descida para que pudesse cavalgar pelas aldeias, mirando sua lança onde bem quisesse. Podia quase imaginar o momento em que apertaria a espora em seu cavalo e o faria dar um grande salto por sobre a borda das Terras Altas. O animal certamente poderia fazer isto sem quebrar as patas e assim ele poderia liderar seus qua-renta homens como um general faria.

Preferiu falar, em vez disso. — Se podem me ouvir, ordeno que voltem para

seus lugares! Não ousem pensar que podem invadir as Terras Altas. Haverá derramamento de sangue se tenta-rem!

Sentia a força de sua voz atravessar a aldeia e entrar no pomar.

Percebeu então que as pessoas não estavam doen-tes como imaginava que estariam. Tinha pensado apenas na vitória enquanto as Terras Altas desabavam, mas agora entendia que seu plano tinha dado terrivelmente errado.

E então: Snap! Isabel tinha se acostumado à funda longa e observou o figo negro atravessar o ar na direção do seu alvo.

Lorde Phineus tinha sido imprudente ao subestimar a ameaça da pequena garota do outro lado. Quando viu o objeto se aproximando, um segundo antes de acertá-lo, já era tarde demais. Abaixou-se para o lado e o figo negro que Isabel tinha mirado em seu peito o acertou bem no ombro.

A dor foi aguda e instantânea. Lorde Phineus a-vançou sobre seu cavalo e descobriu que estava em meio a uma nuvem de poeira laranja. Movimentou o ar com as mãos e sentiu a garganta fechar, começando a tossir como nunca em seguida.

Isabel tinha concordado em arremessar apenas um figo para mostrar àqueles das Terras Altas do que ela e os outros eram capazes, para mostrar a eles que não deveri-am entrar no pomar. Mas sob a tensão do confronto, não conseguiu se segurar. Pensou que se pudesse acertá-lo apenas outra vez, o líder deles cairia e todo o resto perde-ria a disposição ao combate. Quando lorde Phineus olhou para cima, Isabel já estava girando a funda sobre a cabeça novamente.

Ouviu o estalo mais uma vez. Naquele instante, puxou as rédeas do cavalo e o

animal ficou sobre as patas traseiras. O figo se chocou contra o pescoço do cavalo e uma coluna de fumaça es-palhou-se pelo ar. Lorde Phineus teve seu desejo satisfeito e voou por sobre o penhasco, uma vez que o animal, as-sustado, disparou no instante em que suas patas tocaram o chão.

O cavalo aterrissou surpreendentemente bem mas parecia enlouquecido ao chegar ao solo, disparando a toda velo cidade na direção do pomar com lorde Phineus tos-sindo e ofegando sobre seu dorso. Nenhum dos homens

o seguiu. Pareciam mais propensos a esperar um pouco mais até que a distância não fosse tão grande. Alguns já consideravam uma rendição diante da visão de uma fileira de centenas de homens e mulheres da Terra Média, pre-parando suas fundas.

As Terras Altas ganharam vida novamente e desta vez o ranger dos últimos três metros foi tão ensurdecedor que fez todos na Terra Média cobrirem os ouvidos e o-lharem para a frente, espantados. Os cavalos deram pino-tes e correram em todas as direções até que as Terras Al-tas ficaram a poucos centímetros de tocar o chão da Terra Média. Depois de uma parada brusca, os últimos centíme-tros se foram sob um murmúrio suave.

Era o fim das Terras Altas.

• Quando lorde Phineus alcançou as primeiras árvo-

res do pomar, percebeu que não podia ficar sentado reto sobre o cavalo, pois bateria contra os galhos das árvores. Agarrou-se ao pescoço do animal enquanto este galopava, correndo aterrorizado até seus pulmões ficarem tão infec-tados pela poeira laranja que não conseguiu mais ir em frente. O cavalo começou a agir como se fosse tombar para a frente e lorde Phineus rapidamente saiu de cima dele, curvando-se e tossindo tão forte que chegou a ficar de joelhos. Quando se pôs de pé novamente, o cavalo es-tava deitado de lado, resfolegando com dificuldade.

Lorde Phineus percebeu então que estava se apro-ximando da clareira onde ficava a casa do Sr. Ratikan. Ti-nha desembainhado a espada e queria usá-la em alguém, qualquer um sobre quem pudesse despejar sua fúria. Não

conseguiria correr com os pulmões tão comprimidos e te-ria que dar uma boa caminhada para reencontrar seus homens. Precisava desesperadamente de água e por um momento desejou não ter limitado o abastecimento da Terra Média.

— Sr. Ratikan? Sua garganta doía ao dizer o nome do homem. — Onde está? Não houve resposta, mas em pouco tempo pensou

ter ouvido alguém tossir. Virando-se para a esquerda, viu o Sr. Ratikan amarrado a uma árvore.

— Não me ouviu quando o chamei? — disse lorde Phineus, com a voz áspera e sofrida. Aproximou-se do Sr. Ratikan tomado pela fúria.

— Eu estava dormindo... — disse o Sr. Ratikan. Imediatamente desejou que não o tivesse feito, mas era tarde demais.

— Você falhou comigo — disse lorde Phineus. — Eles estão com a poeira que você recolheu das árvores.

Lorde Phineus tossiu violentamente ao dizer estas palavras e uma grande bola laranja de algo bem nojento voou para fora de sua boca e escorreu do seu queixo até o chão. Esfregou o rosto com a manga da camisa.

Lorde Phineus ouviu o Sr. Ratikan reclamar seve-ramente das pessoas que trabalhavam para ele, prome-tendo que logo teria tudo sob controle se ao menos o sol-tassem da árvore. Mas lorde Phineus respondeu apontan-do a espada para o Sr. Ratikan. O homem implorou por clemência, o que apenas serviu para atiçar ainda mais a crueldade de lorde Phineus.

Receio que não iremos mais ouvir falar do cruel Sr. Ratikan nesta história.

A habilidade de sir Emerik para escalar as camadas

do poder não se transportava para o campo de batalha e ele descobriu em si um desprazer instantâneo pela admi-nistração de homens numa guerra. As pessoas na Aldeia dos Coelhos não perderam tempo em arremessar centenas de figos negros envenenados sobre sir Emerik e seus ho-mens. No momento em que as Terras Altas desabaram sobre a Terra Média, sir Emerik tinha sérias dúvidas quanto à possibilidade de subjugar as pessoas da aldeia.

Metade de seus quarenta homens já estava tossindo tão forte que mal podia permanecer sobre os cavalos, en-quanto a outra metade parecia completamente desnortea-da e incerta do que fazer. Quando sir Emerik retomou o comando, ele mesmo virou seu cavalo e disparou rumo à proteção da Casa do Poder. O resto de seus homens so-freu uma chuva violenta de figos negros até perceberem que não havia outra escolha senão se renderem.

Havia dois, entretanto, que eram realmente homens violentos e foram estes dois que correram pela aldeia com as espadas desembainhadas em meio aos figos voadores. Mas dois homens com espadas e montados a cavalo não eram páreo para uma centena de aldeões enfurecidos. Briney e Maude haviam instruído a todos a não jogarem figos envenenados na aldeia, de modo a protegê-la dos e-feitos do veneno. Em vez disso, deveriam utilizar porretes feitos das árvores do pomar.

Era uma segunda linha de defesa e no momento em que os dois cavaleiros se depararam com ela, desejaram não ter se aproximado tanto. Ambos foram dominados

pela multidão, golpeados muitas e muitas vezes até caírem dos cavalos. Assim que os homens foram ao chão, os ca-valos galoparam em disparada, deixando-os a pé para en-carar um tropel de homens armados com porretes.

— Basta! — disse Briney no instante em que seus homens se preparavam para cercar os dois até que largas-sem as espadas. Então olhou para os homens das Terras Altas e ordenou: — Deixem suas armas e partam.

Os dois apoiaram as costas um no outro e pareciam relutantes em ceder.

— Não lhes faremos mal — disse Briney. — Mas têm de deixá-las conosco.

Apontou para as espadas. Um dos homens parecia pronto a consentir, mas o

outro sempre havia acreditado que aqueles na Terra Média existiam para servir. Enfurecido, atacou Briney com sua espada. Este foi seu último momento, já que uma chuva de porretes caiu sobre sua cabeça mais rápido do que po-dia ter imaginado. O outro homem largou sua arma e se afastou, depois saiu correndo de volta para a Casa do Po-der.

Devido à completa falta de liderança diante da au-

sência de sir Philip, os quarenta homens das Terras Altas que se colocaram sobre a Aldeia das Ovelhas tiveram um resultado semelhante aos outros grupos. Não possuir a menor experiência real com a arte da guerra apenas au-mentou a confusão quando centenas de objetos negros infestados de veneno foram arremessados na direção de-les. Ainda assim, não desfrutaram das vantagens de um

homem como sir Emerik, cuja covardia os teria apontado na direção de casa mais cedo. Todos, com exceção de três, foram atingidos por figos voadores e pela poeira laranja pelo menos uma vez, outros foram acertados até três ve-zes. Um ruído alto de tosses e chiados aumentou o clamor da batalha, enquanto cavalgavam sob uma tempestade de figos, com um combate intenso seguindo-se a essa.

Foi esta batalha, junto à que ocorreu no pomar, da qual falaremos adiante, que fez com que Atherton trilhas-se por um caminho violento. Homens de ambos os lados ficaram doentes na Aldeia das Ovelhas naquele dia, e quando tudo terminou, a maioria daqueles vindos da Casa do Poder tinha sofrido ferimentos de um tipo ou de ou-tro. Foi a única das três batalhas na qual os cavalos foram capturados e mantidos, tendo em vista que pastores são muito bons com animais e são capazes de ver sua beleza e bondade independente de seu o tamanho.

Quando lorde Phineus finalmente conseguiu voltar

à sua tropa, estava bem claro que a batalha não havia prosseguido como ele esperava. Muitos de seu pequeno exército já haviam sucumbido. Ele avistou dez homens que permaneciam montados. Todo o resto parecia ter, ba-tido em retirada ou então estava estirado sem vida sobre o chão.

Um cavalo e um cavaleiro perambulavam próximo ao pomar, à procura de seu líder. Tanto o animal quanto o homem pareciam não estar feridos. Lorde Phineus come-çou a correr, o que era algo terrivelmente doloroso para

ele, com os pulmões debilitados, e encontrou o homem na metade do caminho.

— Aí está o senhor, lorde! — gritou o homem. — Estive à sua procura em toda parte!

— Desça deste cavalo! — ordenou lorde Phineus. O homem hesitou em desmontar do seu corcel. Se ele fosse abandonado deste lado das forças inimigas, como poderia retornar vivo? Esticou a mão na direção de seu mestre.

— Podemos cavalgar para um lugar seguro. Pegue minha mão — disse o homem.

Lorde Phineus desembainhou a espada e mais uma vez deu o comando para que o homem descesse do cava-lo, e então ouviu um som vindo do pomar: snap! Uma fra-ção de segundo depois um figo negro atingiu em cheio a testa do homem sobre o cavalo, provocando um estalo bem alto. A cabeça do homem foi lançada para trás e en-tão seu corpo inteiro se inclinou para a frente na direção do pescoço do cavalo, por fim desmoronando sobre o chão.

Lorde Phineus montou no cavalo e o chutou bru-talmente, ouvindo outro estalo vindo do pomar. Escutou o barulho enquanto cavalgava, mas o figo negro errou seu alvo e zuniu acima de sua cabeça. Lorde Phineus olhou por sobre os ombros e avistou Isabel correndo na sua di-reção.

Aquela garota! Ela foi a razão de todos os meus problemas hoje!

Virou o cavalo repentinamente, mas no momento em que o fez lorde Phineus viu que Isabel tinha colocado outro figo em sua funda e o girava por sobre a cabeça.

Lorde Phineus sabia que fora derrotado e pensar nisto o enfurecia. Ainda assim, havia uma maneira que apenas ele conhecia para garantir sua permanência no co-mando. Precisava apenas voltar à Casa do Poder.

Com vigor renovado, passou correndo por seus próprios homens sem dizer uma palavra e aqueles que es-tavam em condições o seguiram em meio aos gritos triun-fantes do povo do pomar.

CAPÍTULO

25 O PLANETA SOMBRIO

O dr. Kincaid afastou a cadeira da mesa e se levantou. Era velho, mas tinha uma condição física realmente surpreen-dente. É verdade que seu rosto estava bastante envelheci-do, mas em contrapartida o resto do corpo negava-se a acompanhá-lo.

— Vamos entrar e fugir do sol por um tempo, sim? — Ajudou Edgar a levantar da cadeira, embora o menino já se sentisse mais forte. Tinha descansado durante toda a noite, havia bebido como nunca e sua barriga estava cheia de alimentos nutritivos. Para um garoto com o passado de Edgar, aquilo tudo era uma dose concentrada de sorte ú-nica em sua vida.

Quando entraram na caverna estava difícil de en-xergar. O dr. Kincaid se agitou com habilidade dentro da escuridão devido à familiaridade que tinha com o cami-nho. Havia apenas uma vela acesa no canto e o dr. Kin-caid a utilizou para acender outras. Depois que acabou, foi de uma em uma e as cobriu com um tubo de vidro — uma substância não conhecida em Atherton, ou pelo me-nos não por Edgar. A luz ocupou todo o ambiente com um brilho que Edgar jamais vira.

— Que coisas são estas? O dr. Kincaid falou algo sobre as propriedades re-

fletoras do vidro e Edgar percebeu que fazer perguntas

sobre objetos estranhos levaria seu companheiro a longas explicações que estavam além de sua compreensão. Como a cachoeira próxima ao pomar, a voz do dr. Kincaid era um ruído distante e estranhamente confortável, servindo como pano de fundo enquanto Edgar examinava as mesas à sua frente, cobertas com todo o tipo de artigos, coisas que nunca tinha visto antes. Edgar não conseguiu adivi-nhar para que servia cada um daqueles itens. Também observou com certa apreensão que havia uma grande quantidade de livros e diários espalhados por todo o lugar.

— ...Você estava perguntando sobre os Limpadores antes, não estava? — perguntou o dr. Kincaid.

A palavra Limpadores chamou a atenção de Edgar. — O problema é que há muitas coisas para expli-

car. Temos de nos concentrar no que é importante, e os Limpadores são muito importantes.

O dr. Kincaid conduziu Edgar mais para dentro da caverna e pediu que se sentasse na cama para descansar.

— Os Limpadores parecem mesmo terríveis, não é? — perguntou o dr. Kincaid.

— Parecem — respondeu Edgar, surpreso com o fato de alguém poder pensar diferente.

— Concordo que poderíamos tê-los embelezado um pouco e os feito menos perigosos, mas eles fazem um trabalho magnífico limpando tudo. Foi para isso que os criamos: para limpar Atherton. Tudo desliza para baixo, Edgar, e quando isto ocorre acaba caindo aqui na Planície. Aquelas criaturas devoram praticamente qualquer coisa que encontram em seu caminho. E não deixam quase na-da para trás, apenas um rastro inodoro de excremento verde brilhante por onde quer que andem. Algo comple-

tamente inofensivo. Sem os Limpadores, receio que A-therton não seria muito melhor que o Planeta Sombrio.

— Então por que não deixá-los soltos por lá, em vez de criar este lugar? Por que não deixá-los limpar o Planeta Sombrio?

— Excelente pergunta! Excelente! Infelizmente, como já dissera, eles comem tudo que encontram. Em Atherton esta é uma situação tolerável, uma vez que eles ficam restritos à Planície. Mas no Planeta Sombrio temo que muitas coisas importantes seriam devoradas, como crianças.

Edgar fechou o rosto em uma careta. — Então por que você e Vincent não foram devo-

rados? — Porque os Limpadores ficam perto dos despe-

nhadeiros, que é por onde a maior parte da comida desce, e esta caverna fica bem distante de lá. Nosso lar fica bem acima do solo, o que faz daqui um lugar seguro. Eles não escalam muito bem com aquele monte de patas magras.

— E só tem você e Vincent aqui, ninguém mais? — Exatamente, só nós dois. Vincent foi enviado

para cá para me proteger; eu fui enviado por outros mo-tivos.

Edgar estava contente por deixar de falar dos Lim-padores por um momento.

— Sei que isto é muito difícil para entender — dis-se o dr. Kincaid. — Então vou explicar para você da ma-neira mais simples que conseguir. Apenas ouça com aten-ção, está bem?

Edgar assentiu com a cabeça, querendo absorver o máximo que pudesse, mas percebendo que talvez fosse informação demais para ele compreender completamente.

— Quando Atherton estava em seu estágio inicial de desenvolvimento, isto é, quando tinha crescido ao ta-manho de uma casa, pudemos perceber que havia níveis se formando. Perguntamos ao dr. Harding sobre esta es-tranha ocorrência. Ele disse que o centro manteria a água e que os níveis cresceriam separadamente uns dos outros. O fundo tinha de ser bem pesado para que pudesse se a-fastar do Planeta Sombrio, de modo a se estabelecer no espaço da maneira que deveria, depois que fosse lançado. Atherton criou seu próprio abastecimento de ar e entrou em órbita ao redor do Planeta Sombrio. Tenho uma ilus-tração aqui que irá ajudá-lo a entender — disse o dr. Kin-caid. Ele atravessou o ambiente e retornou com um livro de anotações. Folheando-o, chegou a uma página, virando o livro para que Edgar pudesse ver.

— Mas se é assim tão perto, por que eu nunca vi o Planeta Sombrio? — perguntou Edgar, vendo como o Planeta Sombrio era grande na ilustração, se perguntando como poderia não ser visto.

— Porque você está sempre virado para o outro lado, é claro. A gravidade do Planeta Sombrio impede que Atherton voe pelo espaço, mas também o mantém em uma certa posição. Em outras palavras, o fundo de Ather-ton está sempre virado para o Planeta Sombrio. Se você se inclinasse por sobre a borda de Atherton aqui na Planície, poderia ver o Planeta Sombrio com seus próprios olhos.

Edgar quis ir até lá naquele exato momento. — Você me leva? Para que eu possa ver o lugar de

onde vim? O dr. Kincaid hesitou, pensando ter revelado mui-

tas informações e de maneira muito rápida, temendo que

o garoto pudesse perambular sozinho pela planície e aca-bar caindo da beira do mundo.

— Vamos esperar Vincent retornar e pedir para que nos acompanhe. Seria mais seguro.

Isto satisfez Edgar naquele momento e ele pergun-tou sobre algo mais que estava em sua mente.

— Dr. Kincaid, de onde vieram todas as pessoas que habitam Atherton? Por que elas nunca falam sobre o Planeta Sombrio?

— Outra pergunta excelente! — disse o dr. Kin-caid. — Você não pode imaginar a quantidade de pessoas que queriam se mudar para Atherton. Todo mundo queria ir. Era um mundo novo, leve e limpo. Haveria árvores e grama. Você deve lembrar que o Planeta Sombrio é exa-tamente isto. Sombrio. É sujo. É difícil de respirar quando não se está dentro de casa, onde máquinas purificam o ar. Mas havia algo que tornava um pouco indesejável vir para Atherton. Para ser completamente sincero, era na verdade um grande problema para muitas pessoas.

— O que era? — Bem, a coisa era que, se você quisesse vir para

cá, tinha que passar por um período de... treinamento de aptidão, digamos assim.

— O que é treinamento de aptidão? O que ele faz? — Faz de você um cidadão de Atherton, e não do

Planeta Sombrio. Você se recorda de algumas coisas: u-mas novas, outras antigas. Mas a sensação é de que A-therton é o único lugar que você conhece. Você perma-nece sendo você, na maior parte. Mas acontece que muitas pessoas achavam que se você não podia lembrar de expe-riências e pessoas da sua vida anterior, como entes queri-dos, dias mais felizes ou experiências mais dolorosas, você

deixaria de ser o verdadeiro você. Foi por esta razão que se-lecionamos na maior parte pessoas que tinham uma liga-ção menor com o Planeta Sombrio, para começar. Pessoas sem filhos, de poucos laços com a comunidade, pessoas que queriam esquecer o passado, este tipo de coisa. E assim é bem possível que possamos ter deixado alguns poucos indivíduos com certas falhas de caráter passarem por nos-sa triagem. Afinal de contas, o dr. Harding desenvolveu e requisitou o treinamento de aptidão e foi ele o responsável por decidir quem viveria em Atherton. Quem pode saber quais são os critérios de um louco que muda de idéia de um dia para o outro?

O dr. Kincaid acrescentou que ele próprio não ti-nha passado pelo treinamento de aptidão e esperava nun-ca passar. Estava em Atherton porque tinha ajudado a cri-á-lo e fora enviado para tomar conta dele.

— Embora o dr. Harding compartilhasse muito do que fazia com todo mundo, ou pelo menos todas as coisas boas, ele não contou a ninguém sobre as coisas erradas que também estava fazendo.

— A que tipo de “coisas erradas” se refere? — perguntou Edgar, embora não tivesse a certeza de que queria saber de toda a verdade.

— Atherton está se movendo, Edgar, porque ainda não está completamente terminado. O dr. Harding nos fez acreditar que estava pronta, mas na verdade não estava. Ele nos usou como um experimento. No Planeta Sombri-o, poderíamos dizer que ele nos usou como “ratinhos de laboratório”. Este lugar é perigoso, Edgar, e não é ade-quado para abrigar pessoas. Pelo menos, não por enquan-to.

O dr. Kincaid sentou-se na banqueta diante da ca-ma, novamente se perguntando se estaria falando demais ao garoto.

— Dr. Kincaid, quantos anos tem Atherton? — Completou 32 anos no mês passado, mas só e-

xistiram pessoas residindo aqui por cerca de doze. Não era possível habitá-la nos primeiros vinte anos e havia tam-bém outras complicações. Visitei Atherton muitas vezes: havia uma maneira de chegar aqui que, acredite em mim, você não entenderia. E depois vim com você até aqui sete anos atrás e nunca mais voltei.

Era praticamente impossível de acreditar. O mundo que Edgar supunha ser antigo, o único mundo que existia em qualquer lugar, não era muito mais velho do que ele. Agora as perguntas se multiplicavam em sua cabeça, mais rápido do que Edgar podia acompanhar.

— Por que não voltou mais para o Planeta Sombri-o, como fazia antes?

Pela primeira vez, o dr. Harding parecia não saber como responder. Havia tanto que o garoto não consegui-ria compreender, e ele tinha apenas arranhado a superfície de tudo o que estava em jogo. Decidiu responder hones-tamente às perguntas, embora soubesse que isto só traria outras perguntas que não sabia ao certo se seria capaz de responder.

— Não posso voltar — disse o dr. Kincaid, com a voz tomada por um sentimento de perda que só ele pode-ria entender. — A conexão entre Atherton e o Planeta Sombrio se rompeu e, pelo que sei, não existe maneira de unir os dois mundos novamente.

Um som trovejante irrompeu no ambiente de ma-neira inesperada, como uma grande onda no oceano, um

som que o dr. Kincaid conhecia e que o fazia lembrar de seus dias no Planeta Sombrio. Edgar, é claro, não conse-guiu encontrar o som em sua memória que se restringia a um Atherton sem oceano. O volume aumentou e os vi-dros que protegiam as velas começaram a tremer até que um deles caiu no chão e se estilhaçou.

— Venha! A queda das Terras Altas sobre a Terra Média deve ter acabado. Agora poderá ver o que dizia a última página do livro que deixei para você!

Os dois correram para a entrada da caverna e a luz do dia ofuscou os olhos de Edgar. Levou um instante até que pudesse ver com clareza.

— Veja lá! A última página do livro que deixei para você previa isto! — gritou o dr. Kincaid, caindo de joe-lhos, já que o estrondo provocado pelas pedras que ran-giam era muito mais alto do lado de fora da caverna. Ed-gar fixou os olhos onde o dr. Kincaid estava apontando.

A Terra Média estava desabando sobre a Planície. Observaram e escutaram enquanto a queda pros-

seguiu por cerca de meio minuto. Depois o som desapa-receu pelo ar e tudo ficou imóvel novamente.

Mas o silêncio não acalmou Edgar, que foi tomado por uma onda de preocupação com Isabel e Samuel. Não poderia imaginar as batalhas que tinham acontecido lá em cima, o papel que Isabel desempenhara ou o triunfo ines-perado daqueles nas aldeias. A única coisa que Edgar sabia com certeza era que o mundo tinha mudado. E estava mudando de novo.

Dois Limpadores batiam as patas silenciosamente na base dos despenhadeiros. Tinham conseguido evitar o encontro com Vin-cent ao atravessarem toda a Planície, chegando finalmente ao despe-nhadeiro que levava à Terra Média. As criaturas raspavam os den-tes contra a rocha, procurando algo para comer, quando subitamente se ergueram sobre as patas, confusas. Aproximaram-se do despe-nhadeiro mais uma vez e fuçaram a lama com seus focinhos horren-dos e molhados. Depois assistiram à rocha começar a se mover len-tamente.

O movimento tinha assustado as feras de início, mas agora os Limpadores estavam curiosos e batiam os dentes provocando um barulho poderoso. Eles se divertiam. Pareciam compreender que os despenhadeiros estavam descendo e as criaturas ficaram animadas ao pensar que comida fresca poderia estar a caminho.

Vejo por sua impaciência, e pela admiração e esperança que seus olhos expressam, meu amigo, que você espera ser informado quanto ao segredo que mantenho. Isso não será possível.

DR. FRANKENSTEIN FRANKENSTEIN, 1818 MARY SHELLEY

PARTE

3

— Você percebe que nunca o conseguiremos de volta.

Um silêncio enlouquecedor pairou sobre a sala na qual só se ouviam as respirações.

— O dr. Kincaid é um homem bom — uma nova voz

apareceu. — Mas não é mágico. Não pode fazer um gesto e o tra-zer de volta.

— E quanto ao dr. Harding?

Escutou-se uma batida estéril de vidro sendo colo-

cado sobre uma mesa de metal.

— Ele se foi, e com ele todas as esperanças de um novo mundo.

O som de um homem tossindo preencheu a sala,

seguido de uma pausa na qual os dois homens olharam um para o outro por um longo momento. Foi o mais ve-

lho que quebrou o silêncio entre eles.

— Acha que Deus nos esqueceu i

Era um pensamento terrível, cheio de desesperança.

— Não há mais nada que possamos tentar? O destino do Planeta Sombrio está em aberto. Qualquer um pensaria que pode-

ríamos ter nos saído melhor.

Os dois homens se assustaram com o barulho dis-tante de ossos quebrando. Voltaram-se para uma parede

de vidro grosso observando a desolação de seus lares no Planeta Sombrio. Do outro lado do vidro estava uma dú-

zia de Limpadores,tentando invadir a sala a toda força.

CAPÍTULO

26 UM ESTRANHO NO POMAR

Enquanto Isabel observava lorde Phineus e seus homens correrem de volta para as Terras Altas, seu olhar captou um pequeno movimento ao longe, distante da aldeia. Al-guém seguia em direção pomar, rápido e próximo ao solo. Isabel continuou junto à fileira de árvores e abriu caminho rumo àquela pessoa até que estivesse bem perto. Carregou sua funda e esperou, imaginando ser um espião ou o início de um segundo ataque.

Então percebeu que não se tratava de um homem, mas sim de um garoto, correndo em campo aberto, ten-tando chegar ao pomar sem que ninguém o visse. Quando chegou perto o bastante, Isabel lhe deu um aviso.

— Volte ao lugar de onde veio! Não o queremos aqui!

Era Samuel quem ela tinha avistado. Assustado com a voz, o garoto tropeçou e caiu de rosto no chão, com uma coluna de poeira se levantando à sua volta. Le-vantou os ombros com dificuldade e olhou para o pomar, mas não viu ninguém. Quem quer que tivesse detectado sua presença, conseguiu saber pela voz que não era um adulto. Era uma garota.

— Não vou machucá-la! — gritou Samuel, achando que sua aparência pudesse ter assustado uma criança me-nor que ele. — Só me deixe chegar ao pomar, por favor!

Isabel não sabia como agir diante deste garoto que tentava escapar das Terras Altas. Poderia ser um intruso enviado para lançar mais veneno, uma parte que ela e Ed-gar talvez não tivessem encontrado. Talvez os adultos das Terras Altas tivessem enviado o garoto numa missão per-versa. O próprio povo da aldeia estava disposto a usar os esforços da menina para enfrentar um inimigo. Por que os adultos das Terras Altas não fariam o mesmo?

— Não chegue mais perto ou vou acertar sua ca-beça! — disse Isabel, entrando na área aberta e girando a funda no ar.

Samuel viu que era de fato uma criança pequena que o encarava com sobrancelhas negras viradas de uma maneira fria contra ele, enquanto ele lentamente se levan-tava. No momento em que se pôs de pé, Isabel lançou um figo negro que acertou a canela de Samuel. Uma dor lan-cinante percorreu todo seu corpo e ele foi ao chão nova-mente. Ao olhar para cima, Isabel tinha recarregado a funda e a estava rodopiando mais uma vez.

— Eu avisei — disse ela. — Levante-se e vou mirar um figo envenenado bem na sua cabeça.

Isabel não era a garotinha tímida que ele esperava encontrar, mas Samuel achou mais provável conseguir a-juda dela do que de qualquer adulto que encontrasse. Co-meçou então a implorar para que ela o ajudasse.

— Conhece um garoto chamado Edgar? — gritou Samuel, identificando um vislumbre de confirmação no rosto de Isabel. — Eu o conheço! Ele veio me ver nas Terras Altas. Estou apenas tentando encontrá-lo!

— O que quer dizer com “eu o conheço”! Como vo-cê pode conhecer Edgar?

— Estou lhe dizendo, ele veio me ver — duas ve-zes, para falar a verdade — e eu só queria falar com ele.

Isabel desacelerou a funda e deixou que parasse a seu lado. Será que era este o garoto sobre o qual Edgar tinha lhe contado, aquele que tinha lido o livro para ele? Não conseguia acreditar que ele tinha seguido a perigosa jornada até o pomar à procura de Edgar e ainda estava in-certa quanto a Samuel enquanto o examinava de cima a baixo.

— Descreva a aparência dele — exigiu Isabel. — Se errar, arremesso este figo negro no meio dos seus o-lhos.

Samuel gaguejou um pouco, tentando organizar suas lembranças.

— Rápido! — berrou Isabel. Ela tinha visto pesso-as a distância vindo em sua direção.

— Ele tem cabelos negros, como os seus. Nariz pequeno, olhos grandes e castanhos. Vestia uma camisa com um bolso enorme na frente e calças velhas. Estava meio sujo, mais ou menos como você como se não tivesse se limpado por um bom tempo. E...

— Tudo bem, tudo bem — disse Isabel. — Isto basta! Tinha se sentido insultada pelo garoto chamando-a de suja, mas tinha de admitir que ele conhecia Edgar pes-soalmente e deve ter sido aquele em quem o amigo esco-lheu confiar. Fez um gesto para que Samuel entrasse no pomar.

Os adultos que se aproximavam ainda não tinham chegado perto o suficiente para ver o cinto, a camisa branca e as calças cinza de Samuel, que o denunciavam

como uma criança das Terras Altas. Isabel conseguiu aju-dá-lo a subir numa árvore para se esconder o mais rápido que pôde.

— Você tem de ficar em silêncio — disse ela. — Não se mova até que eu diga para fazê-lo, entendeu?

O aceno de cabeça de Samuel mal foi perceptível por entre a tela de folhas verdes. Isabel correu junto à fi-leira de árvores e depois no campo aberto, onde seus pais e alguns outros habitantes da aldeia a cumprimentaram.

— Isabel! Conseguimos! — disse seu pai. — Fize-mos com que voltassem!

Houve uma rápida reunião e até certa comemora-ção, embora breve, antes que Charles a perguntasse com quem estava falando.

— Ninguém. Era apenas um garoto do pomar. Foi procurar os pais.

Isto pareceu satisfazer a curiosidade de seu pai e o grupo caminhou em direção à aldeia.

— Preciso ir até as outras aldeias para ver como se saíram

— disse seu pai. Contemplou o centro de Atherton, fascinado pelo primeiro vislumbre pacífico de sua beleza exorbitante.

— Embora seja bem tentador se aventurar pelas Terras Altas — completou.

— Isto pode esperar — disse a mãe de Isabel. Ela era uma mulher bastante prática e não via razão alguma para se aproximar do inimigo por enquanto. Tudo que sa-bia era que precisavam se preparar para a noite. Era pos-sível que lorde Phineus preparasse uma emboscada no-turna acompanhado de seus homens, seus cavalos e suas espadas.

— Deveria mandar alguns homens para o pomar — disse Isabel. — O Sr. Ratikan ainda está amarrado à árvore, mas receio que lorde Phineus não tenha ficado sa-tisfeito com ele.

— Você quer dizer... — começou a mãe, sem pre-cisar terminar. Isabel afirmou balançando a cabeça, fa-zendo uma expressão que indicava que o Sr. Ratikan não estaria vivo quando o encontrassem.

— Precisamos tomar providências antes que mais crianças o vejam — disse seu pai. — Vou convocar alguns homens para cuidar disto. Depois vou à Aldeia dos Coe-lhos encontrar Briney e Maude.

Isabel nunca tinha visto o pai tão animado. Tinha ganho uma vivacidade que até então era desconhecida. Para ela, era como se ele estivesse partindo para uma grande aventura.

Depois que o pai foi embora, a mãe de Isabel co-locou o braço em volta do ombro da menina enquanto caminhavam, desejando que não saísse de perto dela, nem a poucos passos de distância. Quando chegaram à aldeia, Isabel ficou surpresa ao descobrir que algumas pessoas da aldeia pagaram o preço da batalha com suas próprias vi-das. O pai não lhe havia passado esta impressão. Ao che-gar à sua casa que estava aos escombros, ficou chocada ao ver quantos das Terras Altas e quantas pessoas do pomar tinham sido perdidos naquele dia de luta.

— Para onde vão? — perguntou Isabel. A dúvida veio de um lugar vazio lá de dentro.

— Como assim? — perguntou sua mãe. — Quero dizer, agora que não há mais vida neles.

Para onde vão?

A mãe pensou ter uma resposta pronta e começou a dizer algo, mas foi como um sussurro que desapareceu em sua memória e não conseguiu responder. Deu de om-bros como se para dizer que não sabia e as duas sentaram num banco feito de galhos diante de sua pequena casa, se abraçando.

Enquanto estavam sentadas no banco, começaram a sentir um tremor que logo se transformou em algo mai-or. A sensação as deixou sem fôlego, como se o chão es-tivesse sendo puxado debaixo delas. Um ruído de bocejo sem fim veio de algum lugar bem distante e as duas se a-garraram ainda mais forte.

Agora que as Terras Altas tinham caído, Isabel pensara que os tremores tinham chegado ao fim. Olhou para a mãe com curiosidade, esperando uma explicação, mas novamente não houve resposta. As duas tentaram esquecer aquele pensamento e se concentrar no trabalho que tinham a fazer.

— Mãe — disse Isabel. — Quero fazer algo de útil. Deixe-me ajudar as outras crianças a recolher mais figos negros. Podemos precisar deles à noite.

A mãe olhou para as Terras Altas e viu as árvores altas e a grama dourada. Estava pensativa quando abraçou a filha.

— Seria bom entrar lá, não acha? — perguntou. — Não sei — disse Isabel. — Talvez. Mas eu nun-

ca gostaria de deixar o pomar. Aqui é o nosso lar. A mãe de Isabel a olhou e viu que sua filha tinha

amadurecido além de sua idade nos últimos dias. Teria que deixá-la ir, sua pequena rainha do pomar.

— E uma pena que as coisas tenham acontecido desta maneira — disse a mãe de Isabel. — Dizemos que

só queremos ser tratados com igualdade, mas olhar para as Terras Altas faz brotar novos sentimentos, não acha?

Isabel pensou saber do que sua mãe estava falando, mas não tinha certeza.

— Nós queremos tomá-las. Nunca tínhamos pen-sado nisto antes de estarem tão perto como estão. Mas agora temos de tê-las. Posso ver nos olhos de seu pai — disse a mãe de Isabel.

Isabel estava confusa e não sabia como responder. Sabia que além das árvores e da grama dourada havia ho-mens terríveis com cavalos e espadas. Mas também deve-ria haver água abundante, abrigos e confortos com os quais jamais sonhara. E sabe-se lá que tipos de aventuras.

A mãe de Isabel soltou o braço da filha e colocou as mãos no colo, olhando de maneira pensativa para as árvores.

— Tome cuidado, Isabel. Fique por perto da aldeia e do pomar. E venha me ver em uma hora para que eu saiba que você está bem.

Isabel não queria que a mãe mudasse de idéia e se levantou num segundo, se esgueirando até a árvore onde tinha deixado Samuel.

Um ruído distante ecoou pelo pomar e Samuel

percebeu que a árvore onde estava escondido começara a dar a sensação de estar afundando no solo. Ao parar, ele desejou que a garota voltasse logo para lhe fazer compa-nhia, mas depois de um tempo não conseguiu mais su-portar ficar ali esperando. Decidiu deixar a segurança de seu esconderijo e saiu à procura de Edgar. Quando Samu-

el saltou da árvore, descobriu que Isabel estava bem à sua frente.

— Falei para ficar na árvore até que eu voltasse — disse ela. Isabel estava certa de que se as chamasse, as cri-anças do pomar surgiriam das árvores como pequenas fa-das e fariam o que ela ordenasse.

— Você sumiu por tanto tempo — disse Samuel na defensiva, mas Isabel provocava um efeito incapacitante sobre ele. Sua boca ficou seca e a voz oscilava enquanto tentava continuar.

— Ia só dar uma olhada ao redor e voltar para lá. Isabel estava começando a gostar de Samuel e não via sentido em brigar mais com ele. Samuel limpou a gargan-ta, pensando em uma maneira de mudar de assunto.

— Você sentiu aquilo? Quando o chão começou a afundar abaixo de nós? Sentiu? — perguntou.

Isabel assentiu com a cabeça e Samuel pôde ver que ela começava a confiar nele, mesmo que só um pouco.

— O que você acha que foi aquilo? — perguntou ele, imaginando se ela sabia tanto quanto ele.

— Não sei. Samuel se deu conta de que os dois ainda nem sa-

biam o nome um do outro. — Você tem um nome? O meu é Samuel. — Isabel — respondeu ela. — Sabe onde posso encontrar Edgar? É importan-

te que eu o encontre. — Ele saiu do pomar e ainda não voltou. Isabel não estava pronta para contar a Samuel o que

conseguira ouvir da conversa de Briney. — Para onde ele foi? — indagou Samuel, com uma

preocupação crescente na voz.

— Não sei ao certo — disse Isabel, ainda insegura sobre as intenções de Samuel.

— Tem certeza de que não sabe para onde ele foi? É realmente muito importante que eu o encontre.

Isabel não conseguiu encarar o olhar de Samuel e ele soube então que a menina estava escondendo alguma coisa.

— Ele pode estar enfrentando sérios problemas — disse Samuel. — Seria melhor se eu pudesse falar com ele.

— Acho que não irá encontrá-lo na Terra Média. — O plano de Isabel de omitir a informação começava a cair por terra.

— O que quer dizer? Ele não voltou às Terras Al-tas para me procurar, voltou? Isto seria desastroso.

Isabel balançou a cabeça, o que confundiu ainda mais Samuel.

— Para onde, então? Para onde foi Samuel? — Lá para baixo — disse Isabel, apontando para o

chão. De início, Samuel ficou intrigado com a resposta, olhando para o solo e cocando a cabeça. Depois compre-endeu.

— Não quer dizer... — Ele desceu até a Planície — disse Isabel. — Ou

pelo menos tentou. — É inacreditável! Por que faria algo assim? Os dois pensaram sobre o assunto e ambos sorri-

ram hesitantemente pela grandeza do que o amigo Edgar tinha tentado fazer.

— Queria ter ido com ele — disse Samuel. — Apenas Edgar poderia descer até lá. Como acha

que poderia ir com ele? Acha que ele poderia ter carrega-do você lá para baixo? — disse Isabel, inesperadamente

sentindo um espírito de concorrência pela amizade de Edgar. Samuel apenas sorriu.

— Não sei por que ele fez isso, mas daria tudo para ter o encontrado antes que partisse. Fico me perguntando se ele sabe o que diz a última página do livro de coisas se-cretas.

Agora era Samuel quem tinha deixado escapar seu segredo e Isabel não demorou em exigir uma explicação.

— Que última página é essa da qual você está fa-lando? Ele olhou para Isabel e pensou que era melhor di-zer a ela o que sabia. A informação era importante demais para mantê-la em segredo por mais tempo.

— A página continha informações que, penso eu, poucas pessoas conhecem — disse Samuel. — Talvez Edgar tenha ido lá embaixo à procura de alguém que a pudesse ler para ele. Mas espero que não.

— O que dizia a página que você deu para Edgar? Tinha chegado a hora de Samuel revelar o que tinha lido.

Teve dificuldades para começar. Por todo tempo tinha imaginado que esta seria uma conversa que teria com Edgar, e não com uma garota do pomar que ele mal conhecia.

— A Terra Média está afundando rumo à Planície — disse Samuel. — Aquela sensação de queda e o tremor devem ter sido o início. A página revelava que a descida de Atherton continuaria mesmo depois que as Terras Al-tas e a Terra Média ficassem no mesmo nível.

Isabel ficou emudecida e por um bom momento não conseguiu responder. Pensou no momento em que ficou sentada com sua mãe, algo que a fez se sentir leve como uma pena. Mas, depois pensou em outra coisa que a tinha assustado.

— O que... o que há lá embaixo? Quero dizer, além do Edgar?

Samuel estava diante de algo que precisava revelar, mas, no entanto, não gostaria de fazê-lo.

— Não sei ao certo — disse ele. — Só sei que, mesmo que Edgar tenha conseguido chegar até lá, ele a-inda corre bastante perigo.

Isabel fez a mesma pergunta novamente, com mais energia desta vez.

— O que há lá embaixo? Samuel sabia que ele e Isabel teriam de revelar aos

outros da Terra Média o que estava por vir. — Uma espécie de... animal — disse Samuel. —

Ou bestas. Coisas que tentarão nos fazer mal. Isabel ofegou e imaginou Edgar sozinho num lugar

tão perigoso como esse. Por trás daquele pensamento es-tava a compreensão de que a Terra Média provavelmente cairia um dia até chegar ao mesmo nível da Planície. Será que as criaturas invadiriam o pomar?

— Queria que ele não tivesse descido sozinho — disse Isabel.

Isabel e Samuel olharam um para o outro como se ambos tivessem perdido o melhor amigo.

— Tenho de contar aos outros o que você me falou — disse Isabel. Assim que acabou de dizer tais palavras, Isabel partiu à procura de seu pai na aldeia, deixando Sa-muel sozinho para refletir sobre o perigo que Edgar corri-a.

CAPÍTULO

27 A CASA DO PODER

Quando sir Emerik voltou à Casa do Poder, estava um pouco preocupado em ser visto como um covarde. Lorde Phineus não se encontrava em lugar algum e o portão era vigiado por apenas dois homens. Sir Emerik desmontou desajeitadamente de seu cavalo enquanto assistia ao resto dos homens de sua tropa passarem com seus próprios corcéis pela Casa do Poder, em direção a um estábulo. Não havia pessoa alguma para tomar-lhe as rédeas e ele não sabia ao certo o que fazer com o animal, então o sol-tou e assistiu ao seu trote em direção aos outros cavalos.

— Sir Emerik! — surgiu um grito por trás dele, enquanto passava pelo portão e adentrava a Casa do Po-der. — Lorde Phineus se aproxima!

Era o guarda, que apontava para além da entrada principal até os pastos verdejantes a distância. Um cava-leiro vestido de preto correu na direção deles e sir Emerik sentiu o olhar frio que pousava sobre ele mesmo estando tão longe. Teve a idéia passageira de fechar o portão e deixar seu mestre do lado de fora.

Em vez disso, sir Emerik ficou imóvel. Esperou ao lado do portão e no devido tempo lorde Phineus chegou.

— Alguma notícia de sir Philip? — perguntou lorde Phineus. Não estava tão doente quanto antes. Cavalgar em meio ao ar fresco tinha começado a limpar seus pulmões.

— Nenhuma notícia, lorde — respondeu sir Eme-rik. — Somos os primeiros a chegar.

Lorde Phineus desmontou de seu corcel e se ergueu imponente sobre o homem diante dele. Seu olhar tor-nou-se mais frio ao examinar a cabeça cheia de crostas de sir Emerik.

— E vocês obtiveram sucesso em sua missão na aldeia? Sir Emerik escolheu bem suas palavras, pois sabia que o olhar no rosto diante dele era o de um homem prestes a se tornar violento.

— Não obtivemos, lamento dizer. Estavam arma-dos com um método de defesa sobre o qual nada conhe-cíamos. Parece que não só estão dispostos mas também são capazes de se rebelarem contra nós. Lutamos com bravura, mas fomos obrigados a retroceder... mas não an-tes que eu descobrisse o que estávamos procurando.

Esta explicação pareceu acalmar lorde Phineus e seu interesse foi despertado. Mas, antes, virou-se para re-preender todos os homens diante dele, que não pareciam ter oferecido muita resistência na batalha.

— Todos vocês falharam comigo! — gritou lorde Phineus. Tossiu novamente e tentou limpar a garganta dolorida, ansioso pelo balde d’água que o aguardava em seu aposento. — Mas não ousem falhar outra vez. Todos os homens: para dentro do portão!

Todos os cinqüenta homens restantes partiram em direção ao portão e lorde Phineus acenou para que se a-fastassem.

— Os que fazem parte das tropas de sir Emerik deverão ficar do lado de fora vigiando. Não vou permitir que um bando de covardes coma da minha comida e beba da minha água!

Os homens que cavalgaram com sir Emerik recua-ram e se olharam de maneira desconfortável. Estavam cansados e com sede, lorde Phineus tinha cortado o abas-tecimento de água para a Terra Média. Quando os deixaria entrar?

Lorde Phineus limpou a garganta e cuspiu no chão, virando as costas para o restante dos homens e fazendo um gesto para que sir Emerik se aproximasse.

— Então encontrou a página — sussurrou lorde Phineus.

— Encontrei! Havia um homem da taverna, o re-conheci da minha visita anterior. Joguei-o no chão em meio a uma chuva violenta de figos voadores e espadas afiadas. Ele a ofereceu em troca de sua vida e julguei ser um bom negócio.

— E o garoto? — O homem da taverna não sabia ao certo. Apenas

disse que o garoto provavelmente tinha voltado para o pomar. Mas isto não tem importância agora. Tenho tudo de que preciso!

— Me dê a página — disse lorde Phineus, esten-dendo a mão e esperando que sir Emerik entregasse a pá-gina do livro. Sir Emerik não havia previsto esta situação e teve de inventar rapidamente uma mentira para acobertar as outras mentiras que vinha contando.

— Bem, senhor, não é... não é assim tão simples — gaguejou sir Emerik. — Eu li a página, mas não a trouxe comigo. Acredite em mim, lorde, era delicada demais para

ser transportada por aí. E se eu fosse morto no campo de batalha e alguém a pegasse?

Lorde Phineus deixou a história passar até que ti-vessem um tempo a sós para discutir o assunto. Todos seus homens tinham passado pelo portão e aguardavam instruções do outro lado. Lorde Phineus se dirigiu pri-meiro aos homens de sir Emerik.

— Lembrem-se que aquelas pessoas do pomar ten-taram nos envenenar!

Tinha toda a certeza de que apenas o Sr. Ratikan sabia de seus planos de envenenar os aldeões, e queria que isto permanecesse assim.

— Da próxima vez, não tenham piedade. Caminhou a passos largos para sir Emerik e o

manto negro seguiu se arrastando em seu encalço. Quatro homens empurraram as enormes portas de madeira, que começaram a ser fechadas com bastante lentidão. Lorde Phineus gritou suas últimas instruções para sir Emerik.

— Fique com seus homens até a chegada de sir Philip e então quero que os dois venham ao meu encon-tro. Temos assuntos importantes para tratar.

Lorde Phineus sentiu todo o peso da condição em que se encontrava quando ouviu os portões se fecharem atrás dele. Tinha esperado boas notícias de sir Emerik e podia apenas presumir que as coisas tivessem acontecido de maneira semelhante com sir Philip.

Sir Emerik, por sua vez, estava envolvido em suas próprias idéias enquanto seus homens se espalhavam na frente do portão e conversavam entre si. Ficou imaginan-do por quanto tempo deveria manter segredo sobre o que tinha lido na última página do livro. Era uma informação suculenta e ele saboreava o fato de ser o único a conhe-

cê-la. O garoto Edgar certamente pereceu na tentativa de realizar aquela missão feita para enganar a tolos — ha!

Sir Emerik bateu vagarosamente com os dedos em sua cabeça cheia de cicatrizes e outro pensamento passou por sua mente. Samuel dissera que nunca havia lido o li-vro, mas sir Emerik não tinha tanta certeza disso. Samuel poderia saber da mesma informação que ele sabia. Preciso me livrar dele antes que lorde Phineus o interrogue novamente.

Os campos verdes sumiam a distância e as cabeças de alguns cavaleiros se aproximavam balançando.

— Ah, é sir Philip! — gritou um dos homens que fazia a guarda do portão. — Será bom tê-lo de volta.

— Será mesmo — disse sir Emerik, com os olhos se estreitando ao examinar as Terras Altas. — Espero que nada de mal tenha lhe acontecido.

Lorde Phineus sentou-se sozinho na câmara prin-

cipal, olhando pela janela na direção do portão. Incomo-dou-se ao não detectar seu general de dente quebrado en-tre os poucos homens que retornavam. Franzindo as so-brancelhas, lorde Phineus tomou um bom gole de sua á-gua e então cruzou a sala até chegar à cabeça de Mead. Colocou a mão nos cabelos de pedra e falou com a estátua como se estivesse viva.

— De onde veio, Sr. Mead? — disse ele, com a voz assumindo o tom de um louco. — Fica aqui sentado, dia após dia, vigiando absolutamente nada. O que será do se-nhor?

A cabeça de Mead estava na Casa do Poder desde que lorde Phineus conseguia se lembrar. Conhecia seu

nome apenas porque estava gravado na lateral do pescoço de pedra.

Enquanto lorde Phineus conversava com a cabeça de Mead, sir Emerik correu pelo pátio, subiu as escadas e passou por Horácio sem dizer uma palavra, projetando uma sombra pálida na parede. Não desperdiçou tempo ao subir os estreitos degraus até o aposento onde esperava encontrar Samuel. Antes de entrar, sacou um afiado espe-to de madeira de sua bota, com a intenção de tirar a vida do garoto e colocar a culpa em sir Philip.

Abriu a porta bem devagar, aspirando o ar poei-rento do lugar. Ao olhar por todo o ambiente, ficou es-pantado ao ver que o garoto tinha desaparecido.

Aonde quer que tivesse ido, sua mãe certamente saberia seu destino e foi a ela que sir Emerik decidiu fazer sua próxima visita. Desceu pelas escadas estreitas e então encontrou lorde Phineus.

— Horácio me disse que Samuel o enganou e fugiu — disse lorde Phineus. — Aparentemente, o garoto fez bastante barulho para chamar a atenção e quando Horácio foi investigar, Samuel agiu como se tivesse ficado trancado por acidente.

Lorde Phineus começou a refletir. — Temos de ser mais cuidadosos com nossos

guardas no futuro. Horácio não tinha a menor idéia de que o garoto seria de utilidade para nós.

Sir Emerik concordou e fez um movimento para seguir seu caminho, mas lorde Phineus bloqueou a escada de modo que não pudesse passar.

— Esperava arrancar alguma informação de Samu-el? — disse abruptamente, com um olhar acusador.

— Absolutamente — disse sir Emerik, indiferente à acusação. — Daria apenas uma olhada nele, por precau-ção.

Lorde Phineus se afastou da escada e partiu para o aposento principal.

— Nem a mãe do garoto sabe para onde ele foi. Entre os homens corre o boato de que ele pode ter esca-pado para a Terra Média.

Aquela informação satisfez sir Emerik imensamen-te e sua preocupação sobre o que Samuel poderia saber diminuiu, mudando de assunto para questões mais urgen-tes.

— Meus homens ainda guardam o portão para o senhor, lorde — disse sir Emerik. — Mas receio que sir Philip não tenha ao menos aparecido na Aldeia das Ove-lhas para liderar seus homens. Parece que ele nos deser-dou, lorde.

O sentimento de sir Emerik era de extremo prazer e satisfação ao ver o olhar de descrença no rosto de seu mestre. Viu a oportunidade de se redimir e a agarrou com força.

— Não quis falar isto antes, na frente de todos os homens — começou sir Emerik —, mas sir Philip parecia inseguro quanto a si mesmo na última vez que o vi, antes de partir para seu posto. Talvez tenha acabado perdendo a coragem por fim.

Eles chegaram ao aposento principal. Lorde Phi-neus atravessou a sala e sentou-se à mesa. Não fora um bom dia para ele e a perda de sir Philip, um aliado confiá-vel, parecia ter o levado a um humor ainda mais sombrio. Até mesmo sir Emerik ficou preocupado quando seu

mestre não expressou sua raiva em voz alta diante da notí-cia da suposta fuga de sir Philip.

— Tem de me contar agora, sir Emerik — disse lorde Phineus. — Conte-me tudo o que leu na última pá-gina do livro.

Sir Emerik viu uma sensação peculiar crescer em seu peito. A teia verde emaranhada na parede coberta de hera atrás do seu mestre parecia envolver a figura negra diante dele e lorde Phineus nunca antes tinha parecido tão perverso em suas intenções. Era como se as próprias tre-padeiras do ambiente tivessem se envolvido ao redor do coração pulsante de sir Emerik e o tornado tão frio que nunca mais encontraria calor em todo o mundo.

Olhou seu mestre nos olhos. — As modificações por que Atherton está passan-

do ainda não acabaram. As Terras Altas caíram, como o livro disse que aconteceria. Mas ainda há outras mudanças por vir.

Sir Emerik deixou as palavras ecoarem pelo ambi-ente.

— Que mudanças? — indagou lorde Phineus, per-dendo a paciência. — Diga-me!

— A Terra Média irá desabar sobre a Planície. É só uma questão de tempo.

Lorde Phineus ficou imóvel por um momento, pensativo.

— Havia informações sobre quando isto irá ocor-rer?

— Acredito que já tenha começado, mas não estou seguro. O senhor não teve uma sensação estranha esta manhã, como se o chão tivesse sumido debaixo dos pés?

Lorde Phineus também tinha sentido. Era como se estivesse flutuando no ar e seu estômago fosse parar na garganta. Mas havia pensado que era o veneno da poeira laranja que estava lhe atordoando.

— Ainda há mais — disse sir Emerik, com uma nuvem negra de malícia crescendo em seu coração. — Existem certos tipos de criaturas na Planície. Criaturas pe-rigosas, muitas delas. E elas devoram... tudo.

— Tudo? — repetiu lorde Phineus, estupefato. Sir Emerik fez que sim com a cabeça.

— Mas essas criaturas não são absolutamente per-feitas; elas têm uma falha, algo que está a nosso favor.

— Que falha é essa? — perguntou lorde Phineus. — Não conseguem subir em despenhadeiros —

disse sir Emerik. — Nem em paredes. Lorde Phineus refletiu sobre esta medonha revela-

ção. Era pavoroso pensar em bestas invadindo as Terras Altas e devorando tudo pelo caminho. Uma parte dele sentiu um súbito desejo de salvar Atherton inteira de ini-migos desconhecidos. Mas havia uma outra parte repleta de deslealdade, uma parte ainda maior em seu coração que enxergava os benefícios de ver o mundo livre de seus ini-migos. Na Casa do Poder havia água e jardins e uma grande quantidade de alimentos armazenados. Poderia fa-zer as criaturas morrerem de sede. Não há necessidade de to-dos perecerem. Ou, pelo menos, não eu, certamente.

— Se por acaso você tiver inventado esta história, este será o seu fim — disse lorde Phineus. Os olhos, completamente vermelhos, analisavam o rosto de sir E-merik em busca da verdade. — Pode ter certeza disso.

— Eu juro, lorde — disse sir Emerik. — E será rá-pido desta vez, de acordo com o que li.

— O que quer dizer? — A queda da Terra Média sobre a Planície. Será

rápida. A página dizia que aconteceria mais rápido do que o desabamento das Terras Altas.

Os dois homens se olharam em meio ao silêncio da sala sombria. Este era o tipo de informação catastrófica que lorde Phineus desejaria desesperadamente manter pa-ra si próprio pelo máximo de tempo que pudesse. Passou por sua cabeça enfiar uma espada em sir Emerik ali mes-mo, para manter o segredo de modo que não fosse reve-lado. Mas no final acabou tranqüilizando sua mente e percebendo a importância de um homem como sir Eme-rik ao seu lado. Não era absolutamente confiável, mas lorde Phineus tinha agora poucos aliados e precisava de sir Emerik para seguir suas ordens por um pouco mais de tempo.

— Quantos dos homens na Casa do Poder têm esposas e filhos nas Terras Altas? — perguntou lorde Phineus.

Sir Emerik não tinha a menor idéia. Não era o tipo de informação que o interessava.

— Não saberia dizer ao certo — disse ele. — Por que o senhor gostaria de saber?

— Descubra a resposta o mais rápido que puder. Aqueles que estão aqui na Casa do Poder e têm famílias devem ser mandados para casa. Diga-lhes que ofereço li-cença de um dia e depois se livre deles. Os que tiverem esposa e filhos estão com a lealdade comprometida, devo recrutar apenas homens completamente dedicados a mim.

— Não compreendo — disse sir Emerik. — O que o senhor pensa em fazer?

— Está na hora de resistirmos sozinhos, do lado de dentro destas muralhas — continuou lorde Phineus. — As Terras Altas e a Terra Média agora são uma só e ambas deverão se curvar a mim. Ou não terão água alguma.

Sir Emerik deixou um sorriso perverso tomar seu rosto ao compreender as intenções de seu mestre. A fonte de água estava dentro da Casa do Poder, escondida num local que só lorde Phineus conhecia. Quando o portão fosse fechado, poderiam ter toda a água que quisessem. Isto lhes daria poder para exigir qualquer coisa que dese-jassem ou de que precisassem. Deixariam de ter relações com o mundo lá fora. Havia apenas a Terra Média agora — as Terras Altas não mais existiam —, e aqueles na Ter-ra Média faziam o que a Casa do Poder ordenava.

Existia um outro detalhe fundamental que satisfazia sir Emerik ainda mais. Seu maior desejo era governar A-therton sozinho e começou a planejar uma maneira de descobrir a fonte de água e se livrar de lorde Phineus, quando a hora certa chegasse.

CAPÍTULO

28 A FORÇA DA GRAVIDADE

Edgar já estava ansioso para colocar sua habilidades à prova e ver se conseguiria escalar com um ombro ferido e sem um dos dedos, mas descer do lugar onde estava na caverna não era um grande desafio. Em vez disso encon-trou uma estrada de inclinação leve e decepcionante que fazia curvas pelas altas pedras ovais. Ao longo do cami-nho, Edgar ficou feliz ao se deparar com uma pilha grande de pedras bloqueando a passagem. Não havia jeito de passar pela lateral, apenas por cima, e a muralha tinha pelo menos três vezes a altura de Edgar.

— É para impedir a entrada dos Limpadores — disse o dr. Kincaid. — Já fiz isso muitas vezes e existe uma maneira fácil, se você souber como usá-la. Tenho de encontrar Vincent!

— Posso ir com você? — Lamento, Edgar. Mas com este ombro e sem

um dos dedos você não conseguirá atravessar, e eu não consigo carregá-lo como Vincent. Ele é muito mais forte do que nós dois juntos.

Edgar olhou de cara feia. Havia uma muralha à sua frente — pequena, mas ainda assim uma muralha — e lhe dizerem para não escalá-la era uma afronta.

— Espere aqui enquanto procuro nosso compa-nheiro — disse o dr. Kincaid. — Não acho que esteja longe.

O homem já velho fixou a mão na muralha de pe-dras e começou a escalar pela lateral. Subia devagar e Ed-gar pôde perceber que ele estava indo pelo caminho mais seguro, embora não o mais rápido. Quando o dr. Kincaid chegou ao topo, grunhiu e jogou as pernas para cima, fi-cando de pé e então olhando para Edgar lá embaixo.

— Este não é o caminho mais rápido — disse Ed-gar.

— O que quer dizer com “não é o caminho mais rápido”? E claro que é.

— Não é não — disse Edgar. — Já fiz isto mil vezes e estou dizendo que este é o

caminho mais rápido. Edgar removeu a tipoia do braço, fixou a mão na

parede rochosa à sua frente e em alguns segundos escalou a muralha até o topo, tomando um caminho diferente. O dr. Kincaid ficou sem palavras. O garoto não apenas tinha subido mais rápido, mas também o tinha feito de maneira graciosa, com apenas nove dedos e um ombro inchado.

— Um dia lhe ensinarei a escalar de maneira apro-priada — disse Edgar, sem se abalar nem um pouco pelo esforço. As horas de sono, o prato de Preto e Verde e to-da a água de que desfrutara tinham lhe dado uma energia com a qual apenas sonhara no passado.

— Você é o garoto mais incrível em quem já pus os olhos — disse finalmente o dr. Kincaid, deixando Edgar radiante.

O dr. Kincaid teve bastante dificuldade para descer do outro lado. Levou para descer quase o dobro do tempo que tinha levado para subir.

— Tenha cuidado — gritou para Edgar. — Verá que este lado é um pouco mais traiçoeiro.

Edgar desceu tão rápido que era quase como se es-tivesse em queda livre até o chão.

— Agora você está só se exibindo — disse o dr. Kincaid, aos risos, e os dois marcharam pela estrada.

No fim do caminho, os seixos imensos que os ha-viam cercado se dispersavam. A sensação lembrava a Ed-gar de como era deixar o abrigo das árvores no pomar pa-ra ganhar a terra aberta mais além. Fez a última virada e a última das pedras desapareceu de seu campo de visão.

Edgar ficou sem palavras diante da visão de algo que nenhuma criança de Atherton jamais vira, e não era o que Edgar esperava.

O dr. Kincaid continuou chamando por Vincent até perceber o olhar de espanto no rosto de Edgar. Lem-brou-se da primeira vez que viu o que o garoto via agora e o deixou apreciar a vista por mais um instante antes de quebrar o encanto do momento.

— Fique aqui — falou. — Não há Limpadores pe-las redondezas por enquanto, mas, se vierem, corra para a escada de pedras e a atravesse de novo. Tenho certeza de que consegue fazer isto.

Edgar acenou com a cabeça vagarosamente, sem realmente ouvir o que o dr. Kincaid tinha dito, e o ho-mem saiu apressado à procura de Vincent.

Havia duas coisas no final do caminho que choca-ram Edgar, cada uma em uma direção diferente. A pri-meira delas foi sua visão ampla inicial da Planície em si:

vasta e aberta, salpicada de grupos enormes de pedras ex-tremamente altas. Por entre os grupos de seixos lisos e acinzentados, como aqueles que cercavam a casa do dr. Kincaid, espalhavam-se pedras pontudas e ameaçadoras em tons de laranja e vermelho. Fileiras selvagens e sinuo-sas de uma penugem verde ziguezagueavam por entre as pedras afiadas. E tudo isso decorava um solo desértico marrom-escuro e negro. Parecia que a Planície estava completamente morta e ao mesmo tempo ameaçando ex-plodir de vida.

A segunda coisa que Edgar viu era ainda mais em-polgante. Estava de frente para a borda de Atherton e ela estava mais próxima do que tinha imaginado. Dava a im-pressão de que Vincent tinha atravessado a Planície inteira durante a noite carregando Edgar e que a casa do dr. Kin-caid estava situada bem ao lado da beira do mundo. Mal podia acreditar que aquilo era realmente o fim de tudo. Começou a caminhar na direção da borda e sentiu os pés o carregarem quase sem fazer esforço.

— Afaste-se — disse o dr. Kincaid. Tinha voltado sem Vincent e vigiava Edgar de longe com toda a atenção.

— Você não vai querer estar perto da borda quan-do um Limpador se aproximar.

Edgar deixou os ouvidos atentos à procura de um som de ossos rangendo, mas não ouviu nada. Sentia-se tão atraído para a borda que era difícil parar.

— Não vou chegar muito perto, prometo. O garoto tinha chegado até aquele ponto e precisa-

va ver o restante. — Tudo bem, Edgar. Dr. Kincaid se aproximou, pegou Edgar pela mão e

os dois começaram a caminhar.

— Devemos andar rápido e acabar logo com isto. Tenha cuidado: há uma força impressionante que o puxa quando você se aproxima da extremidade.

Quando estavam a aproximadamente seis metros da beira, Edgar começou a sentir como se ela o estivesse puxando em sua direção, como se houvesse cordas amar-radas a seus dedões e estas o estivessem levando para a frente.

— A sensação é muito estranha — comentou Ed-gar. — Por que é assim?

— O fundo de Atherton tem a forma de um semi-círculo e é extraordinariamente pesado. Quando você se aproxima da beira da Planície, na verdade está se aproxi-mando do fundo de Atherton. Ele te puxa na direção dele. É isto que faz você ficar preso ao chão, em vez de flutuar pelo ar. É algo que chamamos de gravidade, Edgar.

Ao caminhar um pouco mais, quando Edgar levan-tava os pés percebeu que eles eram empurrados para a frente no ar. Inventou um jogo no qual assistia a seus pés se moverem por iniciativa própria.

Quando chegaram a poucos metros da beira, o dr. Kincaid se sentou no chão e disse a Edgar para fazer o mesmo. Foram se arrastando com os cotovelos até chegar bem na borda e o dr. Kincaid jogou as pernas para o ou-tro lado, balançando-as em pleno ar. Edgar hesitou por um instante, incerto se seria capaz de prosseguir, mas de-pois jogou, ele também, as pernas por sobre a beira.

Se você pudesse ter observado Edgar e o dr. Kin-caid do espaço além da borda, teria visto algo incrível: os despenhadeiros de Atherton se elevando sobre duas pe-quenas pessoas que agitavam as pernas sobre a beira do

mundo. O dr. Kincaid se inclinou para a frente e Edgar o seguiu, hesitantemente.

O Planeta Sombrio podia ser visto pela primeira vez. Tinha um tamanho monstruoso e estava surpreen-dentemente próximo. Era sombrio, como o dr. Kincaid tinha dito que seria: um mundo imenso e redondo, com tons variados de cinza e marrom. Havia uma tristeza que o envolvia, como se estivesse chegando ao fim de uma lon-ga vida de dor e sofrimento. A visão provocou emoções conflitantes em Edgar: ainda que o fizesse ter vontade de chorar, sentiu um estranho desejo de ir até lá, de ver o mundo onde tinha nascido.

— Se caísse, você não cairia direto no nada — disse o dr. Kincaid. — A gravidade o atrairia na direção do fundo semicircular de Atherton até que você se chocasse contra a superfície. O impacto poderia matá-lo.

Mais do que tudo, Edgar queria passar para o outro lado, escorregar e escalar pelo fundo de Atherton. Se o que o dr. Kincaid tinha dito fosse verdade, a gravidade não o seguraria? Olhou para a mão sem o dedo e sentiu uma dor terrível onde ficava o mindinho. Este não era o dia perfeito para sair em escalada pelo baixo-ventre do mundo.

Edgar pensou ter ouvido um leve estalo, embora possa tê-lo apenas imaginado. A idéia de um Limpador o agarrando com aqueles dentes monstruosos e o arrancan-do da borda era demais para ele e Edgar puxou as pernas de volta para a Planície.

— Foi bom você matar esta curiosidade — disse o dr. Kincaid. — Era algo que precisava ver e fico satisfeito de termos vindo aqui juntos, mas há outros assuntos ur-gentes para tratarmos.

Os dois rastejaram para longe da beira até se senti-rem confortáveis o bastante para ficarem de pé e começa-rem a andar novamente pela estrada.

Vincent esperava por eles no início do caminho com uma corda jogada por sobre o ombro e carregando algo debaixo do braço.

— O que achou do Planeta Sombrio, Edgar? Edgar disse as primeiras palavras que vieram à sua

mente. — Parece triste. E sujo. — Em apenas quatro palavras você o entendeu

melhor do que a maioria das pessoas — observou Vin-cent. — Parabéns.

À medida que se aproximavam, Edgar percebeu que Vincent arrastava um pedaço grande de um Limpa-dor. Era uma fatia da grossura do pé de Edgar. Seis patas magricelas, ossudas e com garras afiadas balançavam sa-indo da base, com um líquido verde e grosso que parecia pudim escorrendo dali.

— Excelente! — gritou o dr. Kincaid. — Parece que finalmente Vincent caçou algo hoje. Trouxe água?

Vincent se inclinou e a corda caiu do seu ombro. Estava amarrada a um jarro repleto de água, como se ti-vesse acabado de ser mergulhado num tanque e ainda não tivesse secado.

— Perfeito! — disse o dr. Kincaid. — Agora venha conosco, Vincent. Precisa ver este menino escalar. Ga-ranto que você nunca viu algo parecido!

CAPÍTULO

29 DESTRANCANDO O CÉREBRO DO

DR. HARDING Quando Edgar e seus novos companheiros haviam volta-do em segurança à Planície, ficou claro que o dr. Kincaid e Vincent estavam planejando uma viagem. Os dois tinham falado interminavelmente sobre o que levar e que cami-nhos seriam mais seguros, e Edgar tinha ouvido atenta-mente tudo o que disseram. Ainda assim, estava confuso em relação a onde iam e por quê — até que os três se sentaram para outro prato de Preto e Verde. Foi então que Edgar pôde insinuar uma pergunta enquanto os dois homens mastigavam a comida.

— Por que precisam viajar tão longe? — perguntou Edgar.

Dr. Kincaid e Vincent se entreolharam entre uma garfada e outra e pareciam inseguros sobre o que dizer.

— Olhe atentamente para o seu antigo lar — disse Vincent. O dr. Kincaid acenou com a cabeça e pareceu concordar com o raciocínio de Vincent. — Você o vê se mexendo?

— Não se move muito rapidamente, mas está mantendo um ritmo regular — disse o dr. Kincaid. — Vai continuar descendo e não vai parar até...

— Até o quê? — insistiu Edgar. — Até chegar bem ao fundo — disse o dr. Kincaid.

— E nosso mundo é plano. Então vai parar quando che-gar aqui.

Edgar ficou surpreso, mas não tanto quanto teria ficado caso não tivesse visto a mesma coisa acontecendo com as Terras Altas apenas poucos dias antes.

— Quanto tempo vai levar? — perguntou Edgar, que ainda não tinha comido nada. Finalmente pegou um pedaço de carne do prato e mergulhou-o no pudim escor-regadio.

— Não estamos muito certos — disse Vincent. Seus cabelos castanhos compridos pendiam sobre o pu-dim verde quase o tocando quando se abaixava sobre o prato. — Pode ser que desça totalmente até amanhã, ou pode ser que leve alguns dias. Não temos total certeza.

Edgar não havia se dado conta de que a mudança aconteceria de forma tão rápida e subitamente teve uma visão dos Limpadores correndo à solta no pomar, devo-rando árvores, ovelhas, coelhos e pessoas.

— Que tal mudar de assunto? — disse o dr. Kin-caid, vendo o medo na expressão de Edgar. O menino ainda não obtivera resposta para sua pergunta sobre o seu destino e ele começou a desconfiar que não queriam que ele soubesse aonde iam e por quê.

— Por que não contar a Edgar um pouco mais so-bre o nosso dr. Harding — sugeriu Vincent. — Eu mes-mo não me canso de apreciar histórias do estranho cien-tista.

O dr. Kincaid concordou com um movimento da cabeça e então ficou de pé. Sempre pensava melhor de pé.

— O homem tinha muitas excentricidades. Odiava pássaros, insetos e a maioria dos vários animais de grande porte. Ao contrário da maioria dos cientistas modernos, achava que existiam espécies demais no Planeta Sombrio o que, segundo ele, complicava o mundo natural e causava inúmeras doenças. Ao projetar Atherton ele se fixou em coelhos, ovelhas e cavalos e nada muito além disso. Estes, falou, serão mais do que suficientes. Orgulhava-se muito da figueira híbrida que criara e a via como uma fonte per-feita de alimento e de outros recursos. A descoberta de que ficavam venenosas depois do terceiro ano pertur-bou-o profundamente. Não havia encontrado uma solu-ção para aquilo antes....

Vincent viu que o dr. Kincaid rumava para um ter-ritório delicado e redirecionou-o.

— Ele também tinha opiniões muito firmes sobre livros, não é, Luther?

— É verdade. — O dr. Kincaid limpou a garganta, voltando a atenção para a pergunta de Vincent. — Acre-ditava que livros só deviam ficar em mãos daqueles que os mereciam, aqueles que eram capazes de entendê-los e de dar-lhes um bom uso. Havia aqueles que trabalhavam — no pomar e com os animais — e aqueles que estudavam. O dr. Harding via os dois mundos como mutuamente ex-clusivos. Ou uma pessoa trabalhava com as mãos ou com a mente e misturar as duas coisas criava todo tipo de pro-blemas. Um trabalhador com um livro tinha perguntas, curiosidades e, no fim, exigências. Ele acreditava que al-guns dos levantes mais violentos da história foram causa-dos devido ao acesso à educação àqueles que deveriam ter sido deixados nos campos. E assim as Terras Altas têm

livros — embora alguns muito antigos — e a Terra Média não os tem.

— Eu gostaria de saber ler — observou Edgar. — Não se queixe, Edgar: eu mesmo tenho muitos

livros e um dia vou ensinar-lhe a ler. Existe uma porção de livros muito antigos lá nas Terras Altas, coisas que não seriam capazes de despertar uma memória de vida no Planeta Sombrio. Meus livros são melhores e você vai ter a oportunidade de lê-los! Na verdade, não vejo razão al-guma para que todo mundo em Atherton não aprenda a ler de novo. O treinamento especializado pode ter ocul-tado esse talento de muitos, mas ele voltará rapidamente para aqueles que têm vontade de aprender.

O dr. Kincaid caminhava para cima e para baixo enquanto continuava a contar sobre o homem que fizera com que Atherton existisse.

— O dr. Harding guardava muitos segredos de nós. Guardava-os até de si mesmo, se é possível imaginar uma coisa destas. Usava uma técnica pela qual podia trancar vastos grupos de informações complexas através de nú-meros em sua cabeça, de modo que não necessitasse lem-brar de todos eles imediatamente. Designava um número para cada conjunto de informações, como se fosse uma chave em sua mente. Uma vez aberta a fechadura, ela da-ria acesso às informações armazenadas e escondidas atrás dela.

O dr. Kincaid partiu rapidamente em direção à ca-verna, sem avisar.

— Ele faz isso às vezes — disse Vincent casual-mente. — Surge uma idéia em sua cabeça e ele sai cor-rendo atrás dela sem me dizer nada. Espere um momento. Ele vai voltar.

Em pouquíssimo tempo o dr. Kincaid estava diante de Edgar e Vincent com um diário em sua mão. Tinha uma capa gasta e páginas amarelas e desbotadas, com bordas rasgadas e sujas, não muito diferente do livro de coisas secretas.

— Este é um dos diários do dr. Harding. Enquanto o dr. Kincaid virava as páginas, Edgar

notou que cada uma delas estava cheia de colunas de nú-meros de cinco dígitos que vinham logo após pala-vras-chaves.

Funcionamento interno 44857

Formações rochosas 22302

Secreção 32439

Glândulas de memória 32441

Mundos exteriores? 13120

— Cada um destes números destravava algo que ele

ocultou dentro de sua cabeça ou, eu deveria dizer, destra-vava a primeira câmara, que às vezes levava a outra, e a outra, e quem sabe quantas além dela. O dr. Harding montou centenas destes diários. Havia equações, idéias e invenções incontáveis trancadas na sua mente — e ele po-dia encontrar uma delas sempre que quisesse seguindo o roteiro que traçara para si. Mas surgiu um problema que foi o começo de todos os outros problemas.

— De que tipo de problema está falando? — per-guntou Edgar.

— Este é o único diário que restou. Todos os ou-tros sumiram.

— Sumiram? Alguém os levou?

— Ele os queimou. Todos menos este, que foi o primeiro. Fez este quando era menino, aos 12 anos, e não creio que exista nada de grande valor nele.

— Por que ele queimaria as combinações numéri-cas?

O dr. Kincaid voltou a sentar-se em sua cadeira e fechou o diário.

— Este é um outro grande mistério, Edgar. Talvez o dr. Harding tenha chegado ao limite do que sua mente era capaz de armazenar. Talvez ele achasse que, se pudes-se destruir os números existentes, sua mente seria apagada e poderia enchê-la novamente. Não sei. Era uma pessoa muito complicada.

— Dr. Kincaid — disse Edgar. — Por que nunca mais voltou ao Planeta Sombrio como costumava fazer?

— Quando deixei você na Terra Média eu não sa-bia. Não tinha como saber.

— Não sabia o quê? — Ora, eu sabia que havia problemas, problemas

enormes à frente. Não sabia o que seria exatamente, mas sabia que estava para acontecer.

— Não se torture — disse Vincent. —Já discuti-mos isso muitas vezes e não foi sua culpa. Não havia nada que pudesse ter feito.

— Dr. Kincaid, do que está falando? — perguntou Edgar. Dr. Kincaid puxou do bolso algo que trouxera junto com o diário da caverna. Edgar nunca tinha visto algo parecido com aquilo. Era reluzente e preto como um figo, mas era oblongo e feito de um material desconhecido para ele.

— Houve uma época em que as pessoas do Planeta Sombrio, tão distante, podiam ouvir minha voz com outro

objeto como este. Eu podia falar nele e, mesmo estando muito longe, eles podiam me ouvir.

Isto parecia uma fantasia para Edgar e ele não con-seguia acreditar nela.

— Não funciona mais — continuou Vincent. — Dr. Harding não permitia a entrada em Atherton de coisas que, segundo ele, pudessem contaminá-lo... coisas como máquinas e computadores, que poderiam transformar A-therton num lugar como o Planeta Sombrio.

O dr. Kincaid voltou à conversa. — Mas esta coisa funcionou por algum tempo. E

não eram apenas pessoas do Planeta Sombrio que falavam comigo. Havia outro....

— O dr. Harding? — perguntou Edgar. — Sim, o dr. Harding — respondeu o dr. Kincaid,

parecendo lúgubre ao se lembrar. — Foi o dr. Harding quem o desconectou. Nós não sabíamos disso na época, mas ele pôde cortar todas as conexões entre Atherton e o Planeta Sombrio Ele cortou para sempre a ligação que Atherton tinha com seu lugar de origem. Estamos flutu-ando livres ao redor do Planeta Sombrio. Eles podem nos ver, mas não podem estabelecer contato conosco.

— Onde está o dr. Harding agora? Ele morreu? O dr. Kincaid colocou o dispositivo sobre a mesa e

deu um suspiro fundo de frustração. Vincent comeu o úl-timo pedaço de Preto e Verde do prato e esfregou o rosto com seu braço nu.

— Meu rapaz — disse ele. — Você finalmente chegou a uma pergunta que o bom doutor não pode res-ponder.

CAPÍTULO

30 SAMUEL SE EXPLICA

Um pequeno grupo de homens agachava-se debaixo de árvores altas, eles esperavam e pensavam se deveriam ou não se mover. Todos com exceção de um eram os mem-bros sem líder da brigada de sir Philip. Haviam suportado uma longa manhã de combates e voltado a uma Casa do Poder que não se mostrou disposta a recebê-los. Preocu-pados por não saber em quem confiar, foram compelidos a aproximar-se da Aldeia dos Coelhos e ver que aliados poderiam encontrar.

Um membro do grupo em particular tinha dúvidas em relação a lorde Phineus. Era o único que não estivera entre os combatentes de sir Philip na Aldeia das Ovelhas. Era Horácio — da Casa do Poder — a quem pediram que deixasse seu posto poucas horas antes. Quando voltou, o portão estava fechado e Horácio teve o reingresso recu-sado, por isso partiu em busca de outros que também ti-vessem sido barrados no portão.

Alguns dos homens haviam se dispersado, tentando achar um jeito de entrar na Casa do Poder, outros sim-plesmente voltaram para casa sem planos de conseguir água ou comida. Mas Horácio havia reunido cinco dos homens de sir Philip e todos tinham concordado: lorde Phineus era um homem violento e sua maneira de gover-

nar Atherton não havia funcionado. Ele precisava ser de-tido.

Na ausência de sir Philip, Horácio assumiu a lide-rança dos cinco homens, pois ele ocupava um posto im-portante — muito próximo ao assento do poder —, e os homens estavam em busca de um líder.

— Não podemos esperar aqui o dia todo — disse Horácio. — Um de nós vai ter de ir até eles.

Encarou os rostos de cada um dos homens e não viu um voluntário sequer entre eles. Isto não chegou a ser um problema para Horácio, pois, quando voltou a olhar para a Aldeia dos Coelhos, viu um grupo de homens com porretes caminhando em direção a ele e aos seus homens.

— Deixem suas espadas nas árvores — disse Horá-cio. — E venham comigo.

Tinha certeza de que não haveria esperança de um encontro pacífico se ambos os lados portassem armas de guerra. Os homens obedeceram com relutância enquanto Horácio saía da proteção das árvores e caminhava em di-reção ao grupo que se aproximava, com seus homens o seguindo hesitantes.

— Voltem para sua própria terra! — gritou alguém da Aldeia dos Coelhos. — Estamos preparados para nos defender se for preciso!

Horácio ergueu os braços e mandou o resto dos homens fazer o mesmo.

— Não trouxemos espadas. Estamos desarmados e só queremos conversar. Vocês têm um líder que possa nos ouvir?

Houve troca de palavras entre o grupo e então um deles correu até a estalagem e desapareceu. Quando o

mensageiro reemergiu, estava acompanhado de Briney e Maude.

Eles discutiam sobre algo que Horácio não pôde discernir, embora tivesse a certeza de que debatiam se ele e os outros das Terras Altas não teriam vindo para enga-ná-los.

Finalmente, Briney e Maude se aventuraram mais para perto de Horácio sem o resto do grupo.

— Está aqui a mando de lorde Phineus? — per-guntou Maude. Ela era a mais direta do grupo e não teve problemas em ir direto ao ponto.

— Não fomos mandados por ninguém — disse Horácio. — Queremos apenas conversar.

Maude e Briney sussurraram um ao outro. — Como se chama? — perguntou Maude. O guar-

da lhe disse. — Muito bem, Horácio. Você pode vir conosco

sozinho até a estalagem. Mande seus homens de volta para as árvores.

Uma visão do filhinho de Horácio passou diante dos seus olhos, sentado à mesa da sua cozinha com tigelas e colheres, observando o riacho correr na frente de sua pequena casa. E então lembrou como a água que sempre escoara diante de sua casa havia subitamente desapareci-do, a sensação de caminhar com os pés sobre o fundo se-co do leito do córrego.

— Podem voltar — disse ele aos outros homens, fazendo sinal para que retornassem para as árvores. Não estavam dispostos, no início, e desejavam que tivessem trazido suas lanças, mas Horácio os convenceu de que aquela era a única saída.

— Se descobrirmos que foi mandado por lorde Phineus você nunca mais vai ver aquelas árvores de novo. Pode ser que queira dar uma última olhada. — Maude a-inda não confiava naquele homem com olhos caídos e nenhum cabelo no alto da cabeça que vinha das Terras Altas.

Quando entraram na estalagem, estava completa-mente escuro a não ser por algumas velas acesas, e Horá-cio foi escoltado até uma mesa. Coelhos eram assados no fogo com um grupo de homens e mulheres ao redor.

— Aquela mesa — disse Briney apontando para o mesmo canto em que sir Emerik fora interrogado por Edgar. Horácio atravessou a sala e sentou-se enquanto Maude mandava o resto deixar os coelhos no espeto em paz e esperar do lado de fora. Logo a estalagem estava va-zia a não ser pelo crepitar do fogo e por três pessoas sen-tadas num canto sombrio.

— Por que veio até aqui? — perguntou Briney. Encarou o homem à sua frente de forma pensativa, ten-tando ler a expressão em seu rosto.

— Porque acho que existem mal-entendidos des-necessários entre nós — disse Horácio.

— Entendo perfeitamente bem que lorde Phineus tentou nos envenenar e que você é um de seus homens — disse Maude.

Horácio tentou responder, mas Maude o impediu. — Eu entendo como vocês pegaram cada figo, coe-

lho e ovelha que conseguiram arrancar de nós. — Sim, mas... Maude bateu com a palma da mão sobre a mesa e o

homem se calou. Para Maude, Horácio simbolizava tudo e

todos nas Terras Altas e ela diria o que pensava, quisesse ele ou não.

— Vocês recolheram o pó laranja — disse ela. — Algo que aqueles no pomar tinham trabalhado tanto para conquistar diante de suas exigências de mais, mais e mais figos! Como ousaram tentar aproveitá-lo para usar contra nós!

— Vocês tentaram nos envenenar — disse Horácio, surpreso com a acusação. Isto pareceu fazer Maude recuar e ele tirou proveito do momento de silêncio. —Vai negar isso? Nega ter usado veneno contra nós? Homens morre-ram. Existem outros nas Terras Altas que mal conseguem respirar. O que me diz? Eles têm queimaduras nas mãos e no rosto. O que acha que podemos pensar? Que vocês são um povo pacífico?

Briney não podia mais agüentar ver aquele homem insultando Maude e apontou o dedo no rosto de Horácio.

— O seu lorde Phineus pediu ao Sr. Ratikan que cultivasse a poeira laranja e a testasse colocando-a em nossa água, o que ele de fato fez. Tivemos a sorte de des-cobrir o plano antes que pudesse ser usado contra nós, mas não tenho dúvida de que lorde Phineus planejava en-venenar a todos nós. Foram vocês que tentaram nos enve-nenar. Só tentamos nos proteger.

Horácio não sabia exatamente o que responder. Se o que Briney disse era verdade, a situação mudava de fi-gura. Nunca soubera de tal plano. Nenhum deles soubera. Podia lorde Phineus ser tão cruel?

Maude retomou o fôlego. — Por que sempre foram tão mesquinhos com a

água? Pelo que posso ver das Terras Altas, vocês tiveram tudo o que queriam por todo esse tempo.

Esta era uma questão que Horácio tinha dificuldade para discutir mesmo no âmago da sua consciência. Sabia há muito tempo que as Terras Altas dispunham de mais água. Vendo toda a seca da Terra Média em primeira mão o fizera perceber quão mesquinho havia sido lorde Phi-neus.

— A água é uma das razões por que vim — disse Horácio, sentindo que poderia chegar a um tópico em que eles poderiam concordar. — Lorde Phineus trancou-se na Casa do Poder com seus aliados mais próximos. Há bas-tante comida na casa, pois muito dela é armazenada lá mesmo. Ele controla o fluxo da água de um lugar secreto que só ele conhece.

Horácio olhou para o outro lado da mesa e não po-dia saber se Briney e Maude entenderam o que queria di-zer, por isso se repetiu.

— Ele está trancado na Casa do Poder e controla lá de dentro a única fonte de água, existente. — O guarda disse de novo. — Parece que lorde Phineus se voltou não só contra a Terra Média, mas também contra as Terras Altas.

— Como pode se trancar desta maneira? — per-guntou Briney. — Não é possível.

— Está enganado — respondeu Horácio. — A muralha ao redor da fortaleza é muito alta e bem protegi-da por seus guardas mais dedicados.

— Quem conhece este lugar de onde vem a água? — perguntou Maude.

— Só uma pessoa: lorde Phineus. Antigamente ha-via três, foi mais ou menos o que fiquei sabendo do meu posto na Casa do Poder. Sir Philip — que morreu em combate na Aldeia das Ovelhas hoje — e sir William, que

se foi algum tempo atrás num acidente infeliz. Existe um outro, sir Emerik, que parece ter sido deixado fora do plano, imagino, por não ser considerado de confiança, embora detenha considerável poder.

— Então precisamos chegar até lorde Phineus! — gritou Maude. — Temos de ir à Casa do Poder e forçá-lo a fazer a água correr de novo. E então teremos de matar os dois: ele e este sir Emerik.

— Isto, receio, será mais difícil do que imaginam — disse Horácio, esfregando as mãos tentando decidir como diria aquilo a eles. — Eu e aqueles cinco homens que trouxe comigo são os únicos combatentes que co-nheço que concordariam em nos ajudar. Encontraremos resistência não só da Casa do Poder, mas de muitos outros homens que não desejam ninguém da Terra Média nas Terras Altas. Só porque eles não podem entrar na Casa do Poder não significa que tolerarão a entrada de vocês nas Terras Altas.

— Não pode conversar com eles? Convencê-los de que só queremos a mesma coisa que eles? — perguntou Briney.

— Vocês querem a mesma coisa? — perguntou Horácio. — Podem afirmar que só querem água? Podem afirmar que não querem também viver nas Terras Altas como nós? E ainda nos darão comida quando não forem mais forçados a fazê-lo?

— Ele tem razão — disse Maude. —Vejo isso nos rostos de todos na aldeia. Eles querem entrar. Não que-rem mais ser dominados.

A porta da estalagem se escancarou e a luz inundou o recinto.

— Briney? Maude? — Eram Charles e Wallace, das outras aldeias. Estavam ambos ofegantes, como se tives-sem tentado correr toda a distância entre as aldeias.

— Estamos aqui, Charles — disse Briney do canto escuro da sala. — O que aconteceu?

Charles teve de retomar o fôlego antes que pudesse falar. Sua voz era um sussurro fino e rouco e era difícil ouvir o que estava tentando dizer. Arrastaram a ele e a Wallace até a mesa e os colocaram sentados num banco.

— O que é, Charles? — perguntou Briney. Horácio observou a situação com uma mistura de preocupação e espanto.

— Isabel — murmurou Charles. — Ela falou com um menino das Terras Altas, um garoto que conhecia Edgar, do pomar. Ela o fez contar-lhe algo antes que es-capasse para sua casa. Está acontecendo de novo, só que muito pior desta vez!

Charles engoliu em seco, desejando um copo de água, uma substância que não havia na estalagem.

— O que está acontecendo? O que quer dizer? — perguntou Maude.

Charles estava tão agitado pelas notícias que nem ao menos pensara em usar alguma discrição. Mas Wallace ficara observando Horácio, meio escondido nas sombras, desde o momento em que entrara na estalagem.

— Quem é este homem? — perguntou Wallace antes que Charles pudesse prosseguir.

Entreolharam-se todos, inseguros de como proce-der, e então o chão começou a tremer sob seus pés.

Samuel e Isabel estavam escondidos na parte mais distante do pomar, sentados entre as folhas e os galhos de uma árvore de terceiro ano.

— O pomar está ficando abandonado — disse ela. — E não tem água no reservatório.

Samuel tocou uma das folhas que murchavam. — Lorde Phineus desligou a água — disse Samuel. — Eu não sabia que ele podia fazer isso — Isabel

começava a pensar que lorde Phineus detinha ainda mais poder do que fora levada a acreditar.

Samuel não tinha certeza se podia contar a Isabel tudo o que sabia. Crescer na Casa do Poder com um pai que era parte da classe dominante o havia exposto a muito mais informações do que qualquer um imaginava. Sempre fora um menino fechado, especialmente depois que só ti-nha sua mãe em quem confiar. A idéia de que ela estava sozinha na Casa do Poder, e o seu ato egoísta de deixá-la, o fazia esperar que pudesse confiar a Isabel um dos se-gredos mais importantes de Atherton.

— A maneira de controlar a água está escondida debaixo da Casa do Poder — disse Samuel. — Apenas duas pessoas a conhecem.

— E quem são elas? Samuel chutou a areia, tentando encontrar as pala-

vras certas. — Havia três homens que sabiam como controlar a

água: lorde Phineus, sir Philip e meu pai. Meu pai nunca me mostrou como era, mas isso não fez diferença.

— Por que não fez diferença? — Ela sentiu como se estivesse lentamente puxando a história para fora da garganta de Samuel num barbante, pouco a pouco.

— Conheço todos os cantos da Casa do Poder. Ninguém nunca me vigiou.

Ele olhou para Isabel até que ela o encarou. — Além de lorde Phineus, eu sou a única pessoa

que sabe onde fica a fonte de água. Não é fácil de achar e é um lugar pavoroso, mas eu conheço o caminho.

Samuel fez uma pausa e sacudiu a cabeça em frus-tração.

— O que é? — perguntou Isabel. — Para chegarmos até a água seria preciso que an-

tes entrássemos na Casa do Poder, — Isto não seria difícil — disse Isabel. — Pode-

mos contar a meu pai e ele irá até lá com uma porção de homens. Lorde Phineus terá de escutá-lo.

Samuel quase sorriu com ironia diante da visão simplista que Isabel tinha do desafio diante deles. Claro, ela nunca tinha visto uma fortaleza antes, ou qualquer es-quema de segurança mais complexo do que o dos guardas que haviam caminhado até as cascatas e riachos perto da Terra Média.

— Não acho que será tão fácil — disse Samuel. — Só existe um portão de entrada e ele é fortemente guar-dado. É cercado por uma muralha que só Edgar consegui-ria escalar. É reta e lisa como água. Se lorde Phineus qui-ser impedir as pessoas de entrarem, ele pode facilmente mantê-las do lado de fora. Mas existe um lugar por onde poderíamos entrar...

Isabel esperou, deixando as palavras pairarem no ar e então puxou a corda novamente.

— Onde fica esse lugar?

Samuel estava preocupado com a mãe. Quanto mais ficava sentado na árvore, mais sentia que precisava voltar até ela e ter certeza de que estava segura.

— Isabel, se vamos fazer isto, devemos ir sozinhos. Isabel começou a protestar, embora estivesse se-

cretamente animada com a idéia de entrar nas Terras Altas com alguém que conhecia o caminho, livre do domínio de sua mãe. Ela imaginou a adoração das outras crianças no pomar quando a água fluísse espessa por entre as árvores de novo e elas descobrissem que fora ela quem fez aquilo acontecer.

— Somos pequenos, Isabel... Podemos nos escon-der com mais facilidade, especialmente quando estivermos dentro da Casa do Poder. Conheço muitos lugares onde podemos ficar escondidos, mas são lugares pequenos. E existe uma razão mais sensata para irmos sozinhos, tam-bém.

— Qual é? — perguntou Isabel, embora já estivesse apalpando sua sacola de figos negros, pensando se os ti-nha em quantidade suficiente para uma jornada perigosa.

— O caminho oculto de entrada na Casa do Poder só é largo o bastante para nós. Um adulto não caberia ne-le.

E assim ficou decidido que os dois seguiriam sozi-nhos rumo à Casa do Poder quando a noite caísse no po-mar. Isabel passaria o resto da tarde juntando comida, á-gua, se a conseguisse, e os melhores figos negros. Ela ti-nha uma sacola extra no seu quarto cheia de figos mergu-lhados em poeira laranja, que também poderia trazer.

Enquanto tramavam sua jornada, a sensação do chão caindo debaixo deles surgiu novamente e os gemidos distantes rolaram soltos pelo ar. Dessa vez durou tanto

tempo que por fim Isabel resolveu correr para fazer seus preparativos com os tremores ainda ocorrendo.

Depois que ela partiu, Samuel refletiu sobre alguns dos detalhes que omitira da sua história e sentiu-se arre-pendido por não ter contado tudo a Isabel. Mas, se o ti-vesse feito ela poderia não ter concordado em vir, e ele precisaria dos seus talentos com a funda para fazer a via-gem e estar junto de sua mãe novamente.

Havia duas coisas que ele não contou a ela na ár-vore. A primeira era como a fonte de água ficava distante no subsolo e como o caminho seria perigoso. Mas esta não era a parte mais preocupante. Também não contara a ela que, mesmo que conseguissem entrar na Casa do Po-der e na profunda passagem subterrânea, isso de nada a-diantaria. Pois no final havia uma porta que se abria com uma chave que só lorde Phineus possuía.

CAPÍTULO

31 O ESPÍRITO DE UM MENINO

PERSISTE — O que acha, Wallace — perguntou Charles. — Vamos ou não confiar nele?

Charles havia acabado de contar a Briney e Maude sobre a descida da Terra Média e as criaturas horrendas que eles poderiam encontrar na Planície. O grupo havia mandado Horácio esperar do lado de fora e agora tinham de decidir se contariam a ele também.

— Há ameaças surgindo de todos os lados — Wal-lace resmungou. — Este mundo em mudança é uma ver-dadeira maldição.

Wallace era um pensador e um protelador, menos inclinado à ação do que o resto. E, no entanto, seu jeito quieto e filosófico exercia um efeito calmante sobre as pessoas, como se fossem suas ovelhas e ele estivesse ten-tando conduzi-las na direção certa.

— Não sabemos o que está a caminho — prosse-guiu. — Os perigos da Planície são um mistério, mas me parece que ameaçam a todos. — Olhou para os outros, vendo que não entendiam o que estava insinuando.

— Seria insensato travar uma guerra em duas fren-tes se existe a possibilidade de lutar numa só, juntos, con-tra o inimigo maior.

Houve um silêncio na taverna enquanto cada um ponderava os riscos.

— Poderia este menino das Terras Altas ter men-tido para Isabel, a fim de assustá-la? Poderia lorde Phineus tê-lo enviado?

— Ela não se deixa enganar tão facilmente — disse Charles. — Ela veio a mim não com um boato, nem com uma possível mentira, mas com a verdade. Estava con-vencida de que o menino veio para nos advertir.

— Mas até o menino poderia ser enganado, não é? — perguntou Briney. — Esta página do livro secreto... poderia estar cheia de mentiras.

Todos ouviram o gemido profundo da Terra Média descendo lentamente. Sobrancelhas ergueram-se e queixos se empinaram ao redor da mesa enquanto eles concorda-vam em silêncio que algumas previsões da página já esta-vam se concretizando. Seria tolo esperar um encontro pa-cífico com a Planície.

— Confiamos neste homem sob nosso próprio risco — disse Maude. Ela continuava sem se convencer. Horácio, o livro secreto e o menino podiam facilmente ser parte de uma intrincada fraude armada por lorde Phineus. E, no entanto, ela captou a sabedoria que Wallace havia compartilhado com eles. Como poderiam combater dois inimigos ao mesmo tempo se só agora tinham começado a entender como combater de verdade? Estavam condena-dos a fracassar em ambos os esforços.

— Quem deseja que Horácio entre para contarmos a ele o que sabemos? — perguntou Charles. — Levantem as mãos.

Wallace levantou a mão quase antes que as palavras fossem ditas. De todos eles, era o mais seguro de que es-tavam traçando um caminho precário. Passou pela expe-riência da batalha e chegou a ter o gosto da vitória, mas nas horas que se seguiram ao combate tivera uma terrível sensação da inquietude e um pressentimento cada vez mais forte de que no fim eles fracassariam. A guerra con-tínua não era um comportamento próprio de um povo pacífico e aquilo não o agradava.

Charles votou a favor logo em seguida. Então Bri-ney olhou para Maude como se para dizer que ele não le-vantaria a mão se ela não quisesse. Seu coração estava di-vidido entre a devoção a ela e a esperança de trabalhar com as Terras Altas em vez de contra elas. Ficou muito contente quando Maude suspirou fundo e ergueu a mão também.

— Wallace, você falará por nós — disse Maude. Ela estava decidida a impor um pouco de sua vontade naquela mesa cheia de homens. — Os homens que ele li-dera lutaram na sua aldeia e perderam amigos para seus tacapes. Deve existir confiança entre vocês dois se quise-rem que eu me convença.

Assim que Horácio se instalou no banco onde ha-via sentado antes, ele olhou nervosamente para os rostos à sua frente, perguntado-se por que ninguém falava. Wallace apreciava o silêncio na sala, mas aquilo claramente inco-modava Horácio.

— Parece que a Terra Média está se mexendo — observou Horácio, tentando quebrar o gelo. — Gostaria de saber do que se trata.

Ainda nenhuma palavra fora dita pelo grupo sen-tado à mesa. Horácio não era uma pessoa impulsiva dada a tagarelar a fim de preencher um espaço vazio, e então não disse mais nada. Charles cutucou Wallace no ombro, achando que o homem tivesse pegado no sono, mas Wal-lace não estava dormindo. Ele estava esperando que as palavras certas chegassem até ele, algo que pouquíssimas pessoas conseguem fazer em momentos de tensão.

Wallace olhou atentamente para o homem à sua frente. Os maxilares acentuados diziam-lhe que Horácio havia comido demais durante muito tempo. Em seus o-lhos, sentia o cansaço e a preocupação do homem, a pre-ocupação de um pai.

— Você tem mulher e filhos — disse Wallace, rompendo o silêncio. — Eu só tenho minhas ovelhas, mas elas significam tanto para mim quanto tudo o que já co-nheci.

Outro silêncio seguiu-se, fazendo Horácio pensar nos carneiros que seus cinco homens haviam provavel-mente atropelado com seus cavalos. Meu filho está seguro, por enquanto, mas alguns seres sob os cuidados deste homem pereceram antes do tempo.

— Seus homens lutaram bem — disse Wallace, co-locando as mãos sobre a mesa.

— Ao que me parece, vocês também — disse Ho-rácio, pensando nos muitos homens das Terras Altas que sucumbiram à batalha.

— Não, isso não é verdade. Eu não sei combater bem. Nós não sabemos combater bem. — Wallace olhou

para os amigos. — Tivemos muita sorte. Briney nos con-tou que você tem muitas dúvidas em relação a lorde Phi-neus. Nós não temos dúvida alguma. A história nos conta que ele usará seu poder para nos controlar, mas temos al-guma esperança de que sua visita seja um sinal de que nem todos nas Terras Altas pensam como ele.

— Suas esperanças têm total fundamento — disse Horácio. — Não afirmo que todos nas Terras Altas pense como eu, mas existem alguns. Quantos, não posso dizer.

— Temos um novo inimigo, algo que poderia unir nossos dois povos.

Horácio ficou desconcertado com o comentário. — Refere-se a lorde Phineus? — perguntou. — Receio que ele seja apenas parte do nosso pro-

blema, o restante eu pediria a Charles que lhe explicasse. Charles ia começar a falar quando Wallace o tocou

no ombro, fazendo com que esperasse mais um pouco. — Horácio, sinto muito pela perda dos seus amigos

na minha aldeia. Eu desejaria que as coisas não tivessem acabado assim.

O homem sentiu a sinceridade em suas palavras. Queria dizer a Wallace que ele também lamentava muitas coisas, mas parecia ter dificuldades para começar. Wallace acenou com a cabeça, parecendo entender o que o ho-mem sentia sem precisar ouvir suas palavras.

Alguns minutos foram suficientes para Charles contar a Horácio tudo o que sabia de Isabel e de seu mis-terioso visitante em relação às temíveis criaturas da Planí-cie. Ao ouvir o relato, Horácio começou a pensar que tal-vez fosse Samuel quem tinha vindo ao pomar com as no-tícias. Aquele pensamento era preocupante, pois ele sentia como se o menino fosse seu filho. Mas Horácio era um

homem de ação e não perdeu tempo desviando seus pen-samentos do perigo iminente, como se fosse treinado para tal encontro.

— Deveríamos mandar alguém até a borda o mais rapidamente possível. Precisamos saber a que distância estamos do fundo. Logo estas criaturas, sejam o que fo-rem, estarão próximas o suficiente para conseguirem nos enxergar. Precisamos conhecer nosso inimigo.

— Eu vou — disse Maude. — E Morris e Amanda vão comigo. Nós três poderemos estar de volta antes do anoitecer com as notícias.

Ela nem sequer esperou por uma resposta do resto do grupo e Briney sabia que seu lugar era na taverna, su-pervisionando a aldeia. Ficou contente que ela tivesse pensado em levar alguém consigo. Por enquanto, ele a queria o mais longe possível das Terras Altas, pelo menos até que a Terra Média tivesse se aproximado mais da Pla-nície.

Depois que Maude deixou a taverna, Horácio foi o primeiro a falar.

— E uma mulher forte — comentou. — Você não faz idéia — disse Briney. Os quatro

homens sorriram e juntos começaram a discutir como se preparariam para o dia em que Atherton ficasse num só nível. Foi uma conversa breve, pois suas bocas estavam ficando secas e pegajosas fazendo-os perceber que teriam de poupar energia.

Horácio levantou-se para ir embora e o resto dos homens o seguiu até o lado de fora. Pararam diante da ta-verna.

— Vou deixar um homem no bosque, bem ali — disse ele, apontando para o local onde seus homens a-

guardavam seu regresso. — Quando Maude voltar com as notícias, deve ir procurá-lo. Ele vai saber me encontrar. Se chegarmos perto do fundo e de fato existir a enorme a-meaça conforme o menino disse, irei diretamente à Casa do Poder e tentarei convencer lorde Phineus de que de-vemos combatê-los juntos.

— Leve seus homens até as Terras Altas por um novo caminho — disse Wallace. — Siga o limite entre as duas terras, onde antes eram separadas. Existe um homem e um cavalo naquela direção, se você continuar cami-nhando, e imagino que talvez possa ser alguém que você conhece.

Não demorou para Horácio encontrar sir Philip onde ele havia caído, longe de todas as aldeias, no meio do nada, e se perguntar como ele teria chegado ao seu fim em um lugar tão desolado.

Foi uma daquelas ocasiões em que Isabel desejou

de todo o coração que soubesse escrever e que os pais soubessem ler. Ela queria mais do que tudo deixar um bi-lhete para a mãe e o pai dizendo para não se preocuparem, pois voltaria logo. No entanto, sabia também que se lhes contasse eles certamente sairiam à sua procura e seriam recebidos com violência nas Terras Altas. Não, ela não poderia correr o risco de perder a oportunidade de ajudar Samuel em sua importante missão.

Decidiu contar a uma de suas mais devotas segui-doras do pomar, uma menina muito afetuosa e leal, de apenas sete anos.

— Você poderia dizer uma coisa para minha mãe por mim?

— Digo — falou a menina. — Espere uma hora e então vá a ela e diga que fui

fazer uma coisa que não podia esperar, mas que voltarei amanhã.

— Aonde está indo? Ela vai querer saber. —Na verdade era a menina quem queria saber.

— Não posso lhe dizer e ela não pode saber. — Você vai voltar? — A voz da garotinha tremia e

Isabel se abaixou sobre um joelho diante dela. — Prometo que vou voltar. Existe algo que eu

posso fazer para ajudar o pomar, mas ela não pode vir a-trás de mim. Você precisa dizer a ela que eu vou voltar.

— Posso fazer isso — disse a menina. — Vou es-perar até uma hora depois de escurecer e então conto a ela.

A garotinha saiu correndo e Samuel desceu de uma árvore próxima. O começo da noite chegava; enquanto o céu se acinzentava, Isabel arrancou uma folha de uma das árvores. Havia uma mudança sutil ocorrendo, algo que somente quem tinha morado no pomar a vida inteira po-deria perceber. A folha estava um pouco seca, começando a pegar uma coloração ligeiramente diferente. Isabel pen-sou nos rebentos do pomar e imaginou por quanto tempo aquelas árvores frágeis e jovens resistiriam. Elas eram de-licadas e exigiam muito cuidado e grande quantidade de água. Se eles fracassassem, o futuro do pomar estaria em risco.

— Precisamos ir rápido — disse ela. — Não há tempo a perder.

E assim Isabel e Samuel começaram uma jornada que os levaria através de terras perigosas e bonitas, na missão de trazer água para uma terra seca e para um povo com sede. Seria mais perigoso do que qualquer um deles suspeitava.

Isabel e Samuel arrastaram-se pela terra, que já en-durecia, onde costumava ficar o leito da cascata e ambos pensaram no menino que os havia reunido.

— O que acha que Edgar está fazendo neste mo-mento? — perguntou Samuel enquanto ingressavam nas Terras Altas sem serem vistos.

— Gostaria de saber — respondeu Isabel. — Ainda existe uma chance de nós três voltarmos

ao pomar. Os dois voltaram o olhar para as árvores enquanto

penetravam no alto capinzal verde. Mesmo à luz acinzen-tada Isabel vira como as Terras Altas eram suntuosas, mas toda a beleza das Terras Altas empalidecia diante da visão das preciosas figueiras que ela tanto amava. O pomar conquistara seu coração e jamais o deixaria. Estava carre-gado do poder da memória e, acima de tudo, do espírito do menino Edgar.

Quando ela voltasse ao pomar, ele não seria mais como ela o lembrava.

CAPÍTULO

32 A COVA DE MEAD

Ao longo do dia Atherton emitiu um bramido surdo co-mo se, com dificuldades, desse um último suspiro labori-oso e final em sua queda para o fundo. A descida regular era mais fácil de ouvir do que de sentir, uma canção de ninar de sons obscuros que pareciam tocar para sempre e desvanecer ao fundo como o clamor da cascata o fazia an-tigamente. De vez em quando a terra gemia e uivava, ca-indo rapidamente, depois rilhava mais lentamente, des-pertando os sentidos de todos em Atherton. Mas nunca parava por completo, como as Terras Altas tinham feito durante os muitos dias que levaram para tombar sobre a Terra Média.

Quanto mais Maude e seus companheiros se apro-ximavam dos limites da Terra Média, mais seca e sombria a paisagem se tornava. Rochas poeirentas entulhavam o chão e o ar ficava mais difícil de respirar. Maude parou bem perto da beirada e apontou para um lugar ao longe. Já podiam ver a Planície a distância. A Terra Média havia descido mais do que eles ou qualquer um teria acreditado. Os três olharam de volta para o centro de Atherton, onde as Terras Altas um dia haviam se elevado.

— Isto não é mais o nosso lar — disse ela. Sua voz estava seca e baixa. Morris desejou que pudesse derramar

um copo d’água sobre as palavras, tornando-as úmidas e fluidas de novo. Talvez então elas não soassem tão deses-perançosas. Mas ele tinha de concordar que a ausência da elevação fazia a Terra Média parecer de certo modo erra-da. Atherton parecia vazia. O despenhadeiro dava a eles certa sensação de aconchego e fazia com que se sentissem abrigados e seguros, mas havia desaparecido agora, subs-tituído por uma sensação de pavor da qual Morris não conseguia se livrar.

— Está ficando tarde — disse ele. Tinham falado pouco no caminho e ele ficou surpreso ao ouvir sua pró-pria voz fraturada.

Os três continuaram em direção à borda, lenta-mente agora, mas ainda determinados. Quando estavam a dez passos da beirada, Amanda parou.

— Não posso ir mais adiante — disse. Não era uma mulher de fibra como Maude e quanto mais se apro-ximavam da beira, mais ela queria voltar. Deixou Maude e Morris seguirem sozinhos o resto do caminho.

Quando chegaram à borda, inclinaram-se e olharam para baixo.

— Não é possível — disse Maude, exaurida. Era como se um monstro enorme tivesse rastejado por trás dela num pesadelo e agora estivesse bem a seus pés. Não era a mesma sensação que tivera quando as Terras Altas foram avistadas pela primeira vez. As Terras Altas esta-vam cheias de gente. O que ela via agora diante de si era um mistério que fez um terror obscuro subir à sua gar-ganta.

Maude e Morris podiam ver as pedras recortadas da superfície e as estranhas linhas verdes enredadas por toda

parte. Também podiam ver as estranhas criaturas que as causavam.

Tinham chegado ao lugar onde todo o lixo da aldeia era jogado, incluindo os ossos e as vísceras indesejadas dos coelhos. Limpadores juntavam-se aqui em grande quantidade antes de escurecer. Edgar havia descido à noi-te, quando a maioria dos Limpadores tendem a se escon-der entre as pedras denteadas e só uns poucos se aventu-ram na busca de um osso que pode ter sobrado. Mas quando ainda havia luz eles vinham às centenas até este lugar, procurando ossos e sangue, qualquer coisa jogada pela borda que pudesse alimentar sua fome insaciável.

Os estômagos de Maude e Morris se reviraram quando eles viram as formas que se contorciam lá embai-xo, sentindo o cheiro da morte carregado pelos vapores que subiam até eles. Maude teve de resistir à vontade de vomitar e cambaleou para trás da borda num estupor.

O som da Terra Média descendo abafou os ruídos distantes dos Limpadores que se mexiam e matraqueavam os dentes mas, se fosse um dia silencioso, Morris e Maude teriam ouvido o som distante de ossos se quebrando lá embaixo.

— Talvez não estejamos mais sozinhos ao ama-nhecer — ela disse.

Morris acenou com a cabeça concordando, e afas-tou-se dali. Havia uma pedra enorme ali perto, o dobro do tamanho da sua cabeça, e ele a levantou, esforçando-se para carregá-la até o lugar onde estivera olhando para a Planície lá embaixo. Quando a jogou pela beirada, quase perdeu o equilíbrio e foi junto com ela. Maude gritou e mandou que voltasse, mas Morris ficou parado e obser-vou.

A pedra caiu de forma certeira na cabeça de um Limpador. O animal ferido sacudiu o corpo em todas as direções como se estivesse tentando voar. Morris ficou estupefato ao ver dúzias das criaturas famintas atacarem a besta caída.

— Precisamos prevenir os outros — disse Morris. — Se estas criaturas entrarem nas aldeias, não teremos onde nos esconder.

Maude foi até Amanda e colocou o braço ao redor de seus ombros.

— Você e Morris vão até o pomar. Quando chega-rem lá, mandem alguém à Aldeia das Ovelhas. Vou voltar para casa e avisar todo mundo.

Morris e Amanda apressaram-se em direção ao pomar, e Maude partiu sozinha. Iria diretamente até Bri-ney e acharia um meio de dar a notícia a Horácio e a seus homens. As Terras Altas e a Terra Média precisam se unir con-tra o grande inimigo. Ela repetiu o sentimento que Wallace havia expressado mais cedo aquele dia. É nossa única espe-rança.

Maude pensava melhor sozinha, sempre fora assim. Preferia a solidão de passar a vassoura na taverna, dei-xando Briney falar com os aldeões. Pensara muitas vezes em mudar-se para a Aldeia das Ovelhas e tornar-se uma pastora, atividade em que poderia ficar sozinha e ter tem-po para pensar. Mas Briney nunca deixaria a taverna. Pen-sava nestas coisas num esforço para esquecer o que vira na Planície, mas a visão da pedra atingindo a criatura e das outras atacando o animal condenado continuava voltando à sua mente. Ficou obcecada com uma idéia que cruzou sua mente no final da sua jornada quando a Aldeia dos Coelhos já podia ser vista a distância.

Precisamos achar um jeito de voltar estes monstros uns contra os outros.

Lorde Phineus estava de pé diante da cabeça de

Mead no aposento principal, ele estudava a estátua como gostava de fazer, correndo os dedos sobre o nariz branco, até a testa, e sobre as ondas de cabelo entalhadas na pedra. Pensava em sir William, por alguma razão desconhecida, lembrando o desafio que tinha sido mantê-lo na linha.

Quando lorde Phineus tocou a nuca de Mead, sua mente clareou e ele colocou a outra mão sobre o rosto, mantendo a peça firmemente segura entre duas mãos. Fez pressão para um lado e a cabeça de Mead começou a se deslocar para a direita. Fez o mesmo à esquerda e de novo para trás. Quando empurrou para a esquerda de novo, um clique agudo se ouviu do piso logo atrás da cabeça de Mead. Algo havia sido destrancado.

Ele repetiu o giro da cabeça na ordem reversa, o que produziu um outro tipo de estalido. Lorde Phineus então abraçou o busto, erguendo-o do seu pedestal. Co-locou a mão dentro de um tubo em que a cabeça ficava apoiada e tirou uma chave.

Lorde Phineus recolocou a cabeça no lugar e veri-ficou a porta do aposento principal, para ver se havia al-gum som do lado de fora.

Afastando cuidadosamente a hera que cobria a pa-rede e ia até o chão, atrás da cabeça de Mead, encontrou uma grande placa de pedra abaixo de si com reentrâncias de cada lado, para que fosse erguida. Lorde Phineus ar-rastou-a com um grande rangido, depois olhou para o bu-

raco sob o chão. Respirou fundo enquanto escutava com atenção, à procura de algum som suspeito.

Lorde Phineus sentiu um pavor horripilante en-quanto sua vela acesa iluminava as escadas que desciam para a escuridão. No primeiro lance estavam entalhadas as palavras que havia lido muitas vezes, em cada jornada que fizera à fonte de toda a água: COVA DE MEAD, Não era uma passagem amistosa e aquela visão sempre o fazia estremecer, mas transitara por ela muitas vezes e conhecia bem o caminho.

Quando avançou o bastante pelas escadas íngre-mes, colocou sua pequena tigela com o pavio aceso sobre um degrau aos seus pés. Escutou cuidadosamente mais uma vez, olhando para a passagem estreita abaixo. Então, lorde Phineus colocou a pedra sobre a abertura e foi en-volvido pela sombra e escuridão, apenas com uma peque-na chama alaranjada dançando do pavio aos seus pés.

Levou consigo duas estacas pontudas de madeira para se proteger e a chave da cabeça de Mead. Tinha tam-bém uma sacola pendurada do lado do corpo, que apalpou nervosamente. Estava cheia de nacos de pão seco, pois havia criaturas perigosas na Cova de Mead. Elas o deixa-riam seguir em sua tarefa contanto que recebessem algo para comer.

Lorde Phineus segurou a pequena chama na escu-ridão, procurando por pequenas tochas que acenderia para iluminar o caminho. As paredes à sua frente eram total-mente recobertas de hera marrom e preta. Pareciam os ossos secos de alguma besta selvagem que não o deixaria passar. Sentiu calafrios novamente e começou sua jornada sob a Casa do Poder. Depois de alguns passos, ouviu um grunhido surdo familiar e colocou a mão na sacola de pão.

Sir Emerik realmente estivera de pé diante da porta

durante todo aquele tempo, quieto, tentando escutar os sons que já tinha ouvido antes. Conhecia o poder da ca-beça de Mead e da passagem conhecida como a Cova de Mead, mas nunca experimentara o prazer de abri-la. Não estava seguro até aquele momento do lugar onde a chave ficava escondida, mas agora tinha a certeza de que era dentro da própria cabeça, pois ouvira os sons da pedra se mexendo. Sir Emerik sorriu de forma sinistra, pensando apenas como poderia se livrar de lorde Phineus, assumir o controle da água e dominar toda Atherton.

CAPÍTULO

33 INVERSÃO

O tom acinzentado do anoitecer havia sumido e só restava um feixe opaco de luz. A noite se aprofundava em Ather-ton e três figuras atravessavam a pé o mundo silencioso. O som de tremores e de fricção do solo havia se apagado. Não havia cascatas rugindo a distância. Os Limpadores estavam escondidos e quietos entre as rochas denteadas. Toda Atherton estava calada como um sussurro.

Edgar estava acostumado a seguir seu caminho sem muita luz, mas o silêncio sinistro durante a noite fazia o mundo parecer assombrado de uma maneira que ele nun-ca experimentara antes. Parecia que Atherton estava mor-to.

— Tudo vai ficar sempre assim, tão silencioso? — perguntou Edgar nervoso. — Não gosto disso.

— É muito estranho — disse Vincent, que andava à frente dos outros liderando o caminho.

— Não me incomoda o silêncio — disse o dr. Kincaid. — E muito melhor do que ouvir o som de Lim-padores pelo ar.

Tinha sido um longo percurso através da Planície, mas eles finalmente se aproximavam da borda da Terra Média. Caminharam mais um pouco sem falar nada.

— Dr. Kincaid?

— Sim, Edgar. — Obrigado por me deixar vir também. Tinha havido uma discussão entre Vincent e o dr.

Kincaid anteriormente sobre se deviam deixar o menino para trás na segurança da Planície. Não queriam dizer a Edgar para onde iam, apenas que o manteriam em segu-rança.

— Você vem andando por conta própria há muito tempo — disse o dr. Kincaid. — É melhor tomar estas decisões sozinho.

— Por que não dizem aonde estamos indo? O dr. Kincaid não respondeu imediatamente à

pergunta, mas vinha pensando há algum tempo o quanto deveria contar ao menino. Achou que poderia falar um pouco mais.

— Não temos muito tempo, Edgar. Poucos dias, talvez uma semana, e nossa oportunidade será perdida.

— Refere-se aos Limpadores? — Edgar imagi-nou-os invadindo o pomar e a aldeia.

— Não exatamente — disse o dr. Kincaid, tentan-do acalmar a imaginação do garoto. — Nossa rota está traçada, Edgar, mas nosso destino deve continuar a ser um mistério para você por mais algum tempo. Por en-quanto, deve concentrar-se no presente.

Edgar estava acostumado a aventuras e as palavras do velho homem o acalmaram, embora continuasse preo-cupado com os dias à frente. O dr. Kincaid tentou mudar de assunto.

— Devia me chamar por um nome mais amigável, não acha? Dr. Kincaid é muito formal.

— Como acha que devo chamá-lo?

O dr. Kincaid refletiu por um momento, esfregan-do o grande lóbulo de sua orelha entre o polegar e a junta do dedo.

— Meu nome completo é Luther Mead Kincaid. “Mead” é um tanto estranho, não acha? Não sei o que minha mãe tinha na cabeça quando pensou neste nome. Por que não me chama de Luther?

— Vou tentar — disse Edgar, embora soubesse que seria difícil.

Vincent fez sinal para que os dois parassem de fa-lar. Eles prenderam a respiração e então ouviram um som suave. Vincent acenou para que ficassem de lado e os guiou lentamente através da luz que diminuía. Ao conti-nuarem, o som se afastou e Vincent virou-se para os companheiros.

— Um antro de Limpadores — disse ele. — Já se recolheram para passar a noite. É possível que encontre-mos alguns deslocando-se em pequenos grupos, mas a maioria só vai sair quando puder enxergar novamente.

— Quantos Limpadores tem aí? — perguntou Ed-gar, esperando que fosse um número suficientemente pe-queno para que Vincent pudesse matá-los.

— Mais do que o número de pessoas que habitam Atherton — disse Vincent. — Quando houver luz, eles seguirão todos juntos em direção à beirada, se é que exis-tirá uma beirada.

A idéia de milhares de Limpadores saindo de ma-nhã e não encontrando nenhuma barreira que impedisse seu avanço era mais do que Edgar ousaria imaginar.

— Preciso ir direto para o pomar — disse Edgar. O tempo todo estivera preocupado com Isabel e os outros

na aldeia, mas o fato de ter chegado tão perto havia revi-gorado sua determinação em encontrar os amigos.

— Vamos certamente passar por lá — disse o dr. Kincaid, sentindo a preocupação que cercava o menino.

Caminharam em silêncio por muito tempo, até que o som dos Limpadores que dormiam ficou longe demais para ser ouvido, e os três estavam sozinhos na Planície novamente. Quanto mais avançavam, mais Edgar não po-dia acreditar que Vincent o tivesse carregado por toda a-quela distância na noite em que ele caíra.

— Estamos chegando perto da borda da Terra Mé-dia? — perguntou o dr. Kincaid, com os pés começando a doer devido à longa caminhada. Mal havia terminado de falar essas palavras quando o som súbito de ossos que-brando veio de algum lugar à sua frente, um lugar muito próximo.

— Vão para trás! — gritou Vincent. Ele vinha u-sando a ponta cega da lança como um bastão de cami-nhada, mas agora virou a ponta afiada da seta para a frente a fim de protegê-los.

— Tem dois aqui! Vão para trás! —Vincent gritou de novo. Sem pensar, Edgar puxou sua funda do bolso e dois figos negros da sacola. Segurou um na mão e colocou o outro na funda, afastou-se do caminho e começou a gi-rar a funda sobre a cabeça. O dr. Kincaid não sabia o que Edgar estava fazendo.

— Edgar! O que é isso que você tem aí? O menino estava tão profundamente concentrado

que nem ao menos respondeu. Vincent enfiou sua lança repetidamente em um dos

Limpadores enquanto a fera atacava e balançava a cabeça de forma ameaçadora. Sua cauda fustigou violentamente,

fazendo com que uma dúzia das patas traseiras do Lim-pador fossem arrancadas do chão. Vincent finalmente encontrou uma boa posição e o trespassou através da bo-ca aberta, mas quando o fez o Limpador mordeu a lança com os dentes serrilhados, e não queria largar. Estava morrendo no chão, e embora a lança estivesse enfiada bem no meio do seu corpo, ela tinha sido perdida.

O segundo Limpador investiu contra Vincent en-quanto ele tentava puxar uma segunda lança que mantinha guardada em suas costas. Foi então que o dr. Kincaid ou-viu o snap! da funda enquanto Edgar arremessava o figo negro pelo ar.

O figo atingiu a cabeça do Limpador e a criatura recuou surpresa e com dor. Edgar colocou o segundo figo na funda e começou a girá-la por cima da cabeça.

— Espere até que ele tente nos atacar — disse Vincent. Os ataques do menino não matariam um Lim-pador, mas pareciam causar algum dano.

Edgar esperou até que o Limpador começasse a correr na direção do som da voz de Vincent. Então soltou o figo com um snap!, fazendo-o voar pelo ar e se chocar na cara do Limpador, arrancando um de seus dentes ser-rilhados.

O Limpador parou com a pancada e matraqueou os dentes em choque. Vincent pôde se aproximar e enfiar sua lança na boca da besta atordoada. Fora uma das mortes mais fáceis de que tinha lembrança em seus muitos anos de caça na Planície.

O dr. Kincaid aproximou-se e colocou um braço ao redor de cada um e seus companheiros.

— Muito bem! Vincent sorriu para Edgar, sacudindo a cabeça.

— Parece que encontrei um parceiro de caça. O dr. Kincaid ficou contente.

— Ainda podemos chegar ao nosso destino em segurança!

— Luther — disse Edgar. O nome parecia estranho e ele estava seguro de que era a última vez que o usava. — Para onde estamos indo?

— Seguimos em direção a uma jornada miraculosa — disse o dr. Kincaid. — E estou feliz por ter você e Vincent para me protegerem.

Vincent cortou um naco de um dos Limpadores e o ofereceu a Edgar e depois ao dr. Kincaid e então comeu um pedaço ele mesmo. O Limpador fresco estava en-charcado de gosma verde e viscosa que borbulhava e cha-pinhava nos dentes de Edgar enquanto ele comia.

— Tenho que perguntar de novo, Vincent — disse o dr. Kincaid. —Já estamos próximos do penhasco ou a-inda não? Você fez esta viagem muitas vezes, mas não consigo me situar.

Vincent abocanhou um bom pedaço de Limpador e Edgar podia ver que ele estava com uma porção de gosma no rosto. Ela reluzia como água negra na luz cada vez mais fraca.

— Acredito que já estamos na Terra Média — disse Vincent. Esfregou um lado do rosto contra o ombro. — Os penhascos não existem mais.

Edgar voltou o olhar para a Planície e percebeu que os Limpadores que haviam combatido jaziam mortos sobre a Terra Média. Foi uma revelação espantosa. Uma coisa era imaginar a Planície e a Terra Média no mesmo nível, outra era encarar a realidade que vinha como um golpe na

cabeça, deixando-o tonto com pensamentos sobre o mundo mutante em que vivia.

Edgar olhou na direção do pomar, mas não conse-guia vê-lo, embora pudesse imaginar exatamente o lugar onde estava, a distância. Havia chegado o momento em Atherton em que não havia mais penhascos a serem esca-lados. Edgar disse então as únicas palavras que lhe vieram à cabeça.

— O mundo está plano. O dr. Kincaid olhou para o horizonte escurecido,

atônito com as mudanças diante de si. — De fato, está. Vincent pareceu o menos surpreso dos três, pois

era completamente incapaz de dar importância a qualquer coisa que não fosse proteger o dr. Kincaid e Edgar em sua jornada. Ele sabia que chegaria o momento em que os penhascos desapareceriam, e só pensava em como seria complicado proteger seus dois companheiros de qualquer ameaça.

— Acabamos de passar para o outro lado — disse o dr. Kincaid. Ele tinha dado alguns passos e agora se ajo-elhava. — Aqui. Era aqui que o penhasco ficava. Quase não consigo acreditar que tenha desaparecido.

Seus dois companheiros se ajoelharam com ele e examinaram o local onde a grande muralha de pedra se erguia.

— Esta não é tão perfeita quanto a outra — disse o dr. Kincaid. — É como eu suspeitava.

— O que quer dizer? — perguntou Edgar. — Pelo que sei sobre a descida das Terras Altas,

acredito que elas caíram sem deixar brechas de grande importância. Olhem aqui. — O dr. Kincaid caminhou ao

longo da divisão irregular e cheia de pedras, apontando para o chão enquanto se deslocava. Edgar seguiu a linha do seu dedo na profundeza da noite e achou que viu uma parte do terreno que era ainda mais escura.

— Aquela escuridão que você vê é uma fenda, um lugar onde as duas terras se encontraram, mas sem se en-caixar. Haverá muitas rachaduras como estas ao longo da borda — disse o dr. Kincaid. — Algumas serão do tama-nho do seu pé, outras grandes o suficiente para se cair dentro delas. Certa quantidade delas será profunda e ines-capável.

— Fico pensando se não poderíamos nos livrar dos Limpadores em algumas das brechas maiores — disse Edgar. — Talvez pudéssemos encontrar um jeito de em-purrá-los ou guiá-los até lá.

Vincent olhou para a linha, calculando quão pro-fundas e largas algumas das brechas poderiam ser.

— Com o tempo saberemos — disse o dr. Kincaid. Olhou na direção das Terras Altas e fez uma careta ao pensar na longa jornada que tinham pela frente, maldi-zendo seus velhos pés por sua má vontade em caminhar.

— É melhor seguirmos em frente — disse Vincent. — O pomar ainda está a uma boa distância e devemos deixá-lo pela manhã.

A hora mais escura da noite havia chegado e as três figuras avançaram através da Terra Média. Foi uma cami-nhada pacífica e silenciosa, em que os três aproveitaram para meditar, cada um sozinho com seus próprios pensa-mentos sobre o que o amanhecer traria.

Vincent preparou o espírito para muitas batalhas futuras, nas quais seus talentos seriam desesperadamente necessários. O dr. Kincaid pensou no lugar aonde iam e

nos complicados desafios que os esperavam lá. Edgar i-maginou onde Samuel e Isabel estariam, aonde iriam e se ele os encontraria um dia. Ficou pensando se voltaria a escalar. Pensou no pomar e nas aldeias, nas Terras Altas e em lorde Phineus, no vasto exército de Limpadores que invadiria seu lar e arrancaria todas as árvores do chão.

E, no entanto, Edgar não temia o amanhecer e o que ele traria. Não era mais um órfão solitário que dormia debaixo das figueiras do pomar. Ousara visitar cada domí-nio de Atherton e, mais ainda, fizera amigos por todos os lugares onde passara. O sol se levantaria num mundo de aventuras grandiosas e arriscadas a cada passo, com com-panheiros ao seu lado, travando uma luta justa para salvar coisas que realmente importavam.

O que mais um garoto poderia querer?

• Enquanto Edgar e seus companheiros viajavam a-

través da Terra Média, algo completamente inesperado começou a acontecer. Nem mesmo o dr. Kincaid sabia sobre aquilo, pois era um segredo conhecido apenas pelo dr. Harding. As primeiras pessoas a notarem foram Samu-el e Isabel, que estavam escondidos no capinzal alto das antigas Terras Altas. Preparando-se para se infiltrar na Casa do Poder.

— Sentiu isso? — perguntou Isabel. — O quê? Isabel estendeu a palma da mão sobre o chão, mas

não havia nada. — Acho que senti alguma coisa. Foi diferente de

antes. Mais perto.

— Não senti — disse Samuel. — Devíamos partir agora. É o período mais escuro da noite.

Mas Isabel se sentiu compelida a ir a algum outro lugar antes.

— Venha comigo um momento. Preciso ter a cer-teza sobre uma coisa.

Ela saiu correndo do capinzal e Samuel a seguiu até que chegaram ao local onde as Terras Altas tinham se fundido com a Terra Média. Na escuridão, Isabel topou com algo duro contra seus joelhos e caiu para a frente a-poiando-se nas mãos. Levantou-se, esfregando as canelas e sentindo-se confusa.

— De repente você está muito mais alta do que eu — disse Samuel, com a voz trêmula e insegura.

Houve um ruído aterrador no ar, difícil de discernir, mas constante. Era um som familiar — familiar demais.

Os dois ficaram de frente um para o outro — Sa-muel nas Terras Altas e Isabel na Terra Média — e des-cobriram que Isabel estava ficando cada vez mais alta.

As Terras Altas haviam começado a afundar para dentro de Atherton.

FLUXO DE DADOS SUPLEMENTARES

DO CÉREBRO DO

DR. HARDING

LIMPADORES. DIÁRIO DO DR. HARDING 47, LINHA 6, NÚMERO 22395 Os Limpadores foram originalmente desenvolvidos pelo dr. Harding num ambiente de laboratório depois de uma longa série de esforços fracassados para montar uma cria-tura cujo propósito singular era sanear a face inferior de Atherton. Milhares de tentativas fracassadas no nível celu-lar nunca foram suficientemente desenvolvidas. Versões iniciais do conceito do Limpador incluíam uma boca virada para o lado, pernas mais longas e um corpo muito mais largo.

O PLANETA SOMBRIO. DIÁRIO DO DR. HARDING 16, LINHA 35, NÚMERO 43682 O Planeta Sombrio é a Terra no ano de 2105. A poluição transformou o Planeta Sombrio num lugar onde as pesso-as ficam dentro de compartimentos fechados durante o maior parte do tempo. O ar é denso de fumaça e é impos-sível respirar por mais de uns poucos minutos sem o uso de unidades de Filtragem Compacta Descartáveis (FCDs). Uma visão do Planeta Sombrio a partir do espaço mostra a ausência dos tons de azul e verde que antes existiam. Os oceanos são turvos, as florestas estão quase todas mortas e o Planeta Sombrio está marcado pela frieza cortante do metal.

Na história do Planeta Sombrio houve três ondas de progresso. A primeira foi a agrícola, na qual a humani-dade se instalou em lugares distintos e conseguiu cultivar alimentos e criar rebanhos de animais para consumo e u-so. A segunda onda foi a mais perigosa, e levou o Planeta Sombrio ao seu caminho final para a ruína. Foi a onda das máquinas industriais, que tornaram a vida mais fácil para a humanidade. A terceira onda viu a ascensão da tecnologia da informação e das máquinas pensantes, permitindo que a humanidade criasse habitats e fontes de alimentos de maneiras nunca antes imaginadas, mas que causaram um dano incalculável ao Planeta Sombrio. Com o tempo, as três ondas de progresso esgotaram os recursos naturais do Planeta Sombrio e ele não foi mais capaz de se recuperar. Por volta de 2085, sua antiga beleza estava perdida para sempre.

CIENTISTAS LOUCOS. DIÁRIO DO DR. HARDING 154, LINHA 18, NÚMERO 37782 O dr. Harding segue os passos de outro louco cientista literário, o dr. Frankenstein. Ambos têm muitas coisas em comum e o dr. Harding carregava por toda parte um velho exemplar de bolso do famoso romance de Mary Shelley, Frankenstein. Era obcecado pelo retrato que o livro fazia de um cientista que enlouquecera com a idéia da reanimação. De interesse particular para o dr. Harding era o embate com que o dr. Frankenstein se defrontou ao descobrir como trazer uma pessoa morta de volta à vida. Será que o fato de saber como fazê-lo implicava que ele devesse fa-zê-lo? As conseqüências de concretizar seu plano insano foram devastadoras no caso do dr. Frankenstein e o dr. Harding se perguntava se o mesmo aconteceria com ele caso criasse Atherton.

GRAVIDADE, ÓRBITA E DISCONEXÃO.

DIÁRIO DO DR. HARDING 267, DADOS PARCIAIS, ARQUIVO PERDIDO Gravidade: Era necessário que o fundo arredondado de Atherton fosse extremamente pesado. Sem um fundo pe-sado, as pessoas ou flutuariam no ar ou não pesariam quase nada. Há água no interior da metade inferior de A-therton, mas uma certa quantidade do fundo é feita de um material orgânico vivo com uma massa semelhante à do chumbo sólido. Se vocês visitassem Atherton e ficassem de pé em qualquer um dos seus três níveis, se sentiriam de certo modo mais leves do que se sentem agora. Uma pes-soa de 50 quilos do Planeta Sombrio pesa cerca de 40 quilos em Atherton.

Órbita: Atherton orbita ao redor do Planeta Som-brio, geralmente seguindo a mesma duração do dia e da noite. Além disso, Atherton sempre está com a face vol-tada para o lado oposto do Planeta Sombrio, de modo que aqueles que moram em Atherton jamais vêem o local de onde vieram. Quanto mais próxima a órbita de um objeto em torno do Planeta Sombrio, menos tempo ele levará para cumprir um giro completo e também viajará mais rá-pido. Atherton orbita ao redor do Planeta Sombrio a exa-tamente 35.680 quilômetros de distância na termosfera.

Desconexão: Houve uma época em que a comunica-ção e o transporte entre Atherton e o Planeta Sombrio era possível, mas o dr. Harding cortou o contato e não existe atualmente nenhum modo de restabelecer esta conexão. Existem alguns no Planeta Sombrio que acreditam que

acabarão encontrando um meio de fazer contato com A-therton novamente.

PÁSSAROS, INSETOS E ANIMAIS. DIÁRIO DO DR. HARDING 82, LINHA 7, NÚMERO 29430 O dr. Harding tinha uma forte aversão à variedade exage-rada de espécies existentes no Planeta Sombrio. Afirmava que o que originava a poluição, o consumo de massa, a superpopulação e uma série de outros problemas era o que ele denominava de “variedade maciça” e, embora não fosse a favor de destruir vastas espécies de animais, estava decidido a fazer o possível para que o mesmo problema não ocorresse em Atherton. Pássaros e insetos voadores de qualquer tipo eram uma preocupação particular, devido em parte ao desejo do dr. Harding de manter a pureza bi-ológica em todos os níveis de Atherton, mas também porque ele sofria de um caso terrível de ornitofobia (medo de pássaros) e simplesmente não queria colocar criaturas voadoras em Atherton. Existem, porém, insetos não voa-dores em Atherton.

O dr. Harding gostava muito de coelhos e de ove-lhas e, por algum tempo, tentou criar versões genetica-mente modificadas destes animais com uma utilidade ain-da maior. Depois de um período de experiências fracassa-das, decidiu-se pelos animais como eles eram. Existe ainda o caso secreto das criaturas que residem na Cova de Mead.

O dr. Harding acrescentou cavalos primeiramente como animais de carga. Não tinha a intenção de usá-los como armas de guerra embora este fosse um tópico que o perturbava e que não era discutido, por isso é possível que dedicasse alguma reflexão à questão.

A FIGUEIRA. DIÁRIO DO DR. HARDING 304, LINHA 92, NÚMERO 15943 A agrociência era uma paixão do dr. Harding. Ele combi-nou incontáveis variedades de árvores e plantas num es-forço para criar algo novo e útil. A figueira tornou-se ime-diatamente sua invenção mais querida e, ao mesmo tem-po, seu maior fracasso. Ele queria desesperadamente criar uma fonte de alimento que fosse fácil de manter, causasse danos mínimos ou inexistentes ao meio ambiente e que fosse quase inteiramente comestível ou útil. Obteve su-cesso em todos estes quesitos, mas ficou posteriormente arrasado ao descobrir que a árvore que havia criado se tornava venenosa após o terceiro ano.

AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, preciso agradecer à minha editora neste projeto, a incomparável Andréa Spooner. Ela teve a habilidade e a coragem de me dar uma pá e dizer onde de-via cavar, e soube quando chegou o momento de tirar a pá de minhas mãos e me deixar sozinho e bem na empreita-da. Ela se perdeu em Atherton assim como eu, e saímos de lá juntos com um livro muito melhor do que se eu o tivesse escrito sozinho.

Quero tirar o chapéu para David Ford. Foi uma honra ser escolhido por ele e por sua talentosa equipe em Little, Brown and Company.

Obrigado a você, Sangeeta Mehta, por me acom-panhar na jornada, corrigindo meus equívocos e sempre demonstrando um contentamento genuíno ao ouvir a voz distante de Washington Oriental.

Muitos agradecimentos a meu agente, Peter Rubie, por conduzir-me através da corda bamba de forma precisa e graciosa, sem me deixar cair. Você conhecia nossa rota e nunca vacilou, mesmo na presença de minha indecisão colossal.

Obrigado à sempre presente (e especialmente apre-ciada) equipe criativa da minha cidade natal de Walla Wal-la, que me ajudou a tornar este projeto um trabalho tão divertido (e gentilmente me resgatou quando fiquei per-dido em algum recanto profundo da floresta): a Squire Broel pelos desenhos inspirados e pelas maquetes, a Je-

remy Gonzales pelo trabalho de filmagem e a Matt Mc-Kern pelo conteúdo interativo.

Obrigado a Corey Smith, leal amigo e mentor, por acreditar em mim por sua conta e risco sem nunca desistir; a Remy Wilcox pela inspiração no traçado de um perso-nagem que não será revelado aqui; e a Marcus Wilcox por adoráveis discussões científicas em meio a sanduíches e Coca-Colas.

Obrigado a você, Skip Lee, por fundar a Agros, uma organização que traz esperança a milhares de pessoas presas no ciclo de pobreza (e ajudar este escritor a per-manecer consciente em relação ao que é realmente im-portante). E a três pessoas que não conheço, mas às quais agradeço por sua capacidade de mudar minha opinião, me fazer pensar e me desafiar a parar de falar e começar a re-tribuir: Al Gore, Bono e David James Duncan.

Por fim, não há livros sem Karen. Ela torna tudo possível.

— P.C.

Digitalização: villie

Revisão: Yuna