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ZA CHABIAS D'
AÇA
Caçadas
Portuguezas
P a iz agens — F iguras do campo
LISBOASecção Ed z
'
ío n'
a l d a Compa n h i a Na ci o n a l Ed i t o r aA DM.
—ª ]Ús r mo GUEDESL a r g o d o C o n d e B a r ão , 50
1 898
DUAS P A LAVRAS
A E corre r mundo e ste l ivro . Largando-o da s m i
nhas mãos , faço votos para que e l l e n ão nau
frag ue no mar umas ve z e s e n cape llad o , outra s ve
z e s morto — da publ i c i dade . Não arvora bande ira de
Facção li t t e r a r i a , não lhe puz div i s a , e , ape sa r do e s
t r o n d e a r da fuzi l ar i a , não'
Va e a conqui s tar ; mas o
t itulo d iz que o an ima o e spiri to d a nossa te rra
fa l a d e coi sa s po r t u g u e z a s .
D e tigre s e l eõe s poderi a eu con tar hi stori a s tra
g ica s e horripi l an te s , mas nunca me defron te i com
e l l e s , e não me seduz o pape l de chr o n i s t a i n co n
sc i ente de a l he ias proeza s . O que se contém nªe s t a s
paginas são a s minhas impre s sõe s d 7um mundo ,muito proximo de nós
,mas de que , quasi todos o s
qu e e screvemos , andamos muito a lhe i a do s — o mun
do dos campos .
DUAS PALAVRA S
Os capítu los todos d 'e ste l ivro — afora doi s o u
t res são capi tu los da minha vida , e quando o s re
cordo,al egra—se—me ainda o coracão . E signa l ce rto
d e que foram dia s bem passados , é que a inda não
se me apagou da memoria o so l , que o s a lumiou . So l
que bri l ha no passado,so l poen te ho j e para m im
Mas as nuven s,que e l l e doi rava na s sua s pha n t a s
t ica s evoluçõe s,eram brancas e tran sparente s ; fugi
t iva s,como o s sonhos da moc idade , n ão fazi am man
cha s n o céu,como tambem não me de ixaram som
bra s n a v ida .
De quan tos dia s e l l a s e compõe,e ste s de que aqui
fa lo , e poucos mais , são o s un icos que eu que re ri a
reviver . Porque — não t'
o dire i,l e i tor amigo
,se n ão
é s cacador , que'
não me entenderia s,e aos que me
podem entender n ão e'
nece s sar io exp l i ca r- l h'
o . Os
e n thu s i a sm o s e os arroubos da paixão so os com
pr ehe n d e bem quem j á os experimentou .
Do na sce r a o pôr do sol s en timo—nos outro s e s
tamos em contacto ín t imo e con stan te com a natu
reza ., O corpo e a alma teem a con sc ienc ia
,e e stão
no pl eno exerc ício d e todas a s sua s facul dade s,de
todas as suas energi as ; man ife stam-se,de sen vol
vem- se , sem pe i a s , nem con strangimentos . A l egra se
nos a a lma e spraiando a vi s ta pe l a pa i z ag em ,e e s sa
a l acridade , sente -a tambem o corpo,rec ebendo
,em
che io , as onda s d'
e sse banho enorme de lu z ; aspi
DUAS PALAVRAS 7
rando,a p l enos pu lmõe s , a s l argas corrente s do ar
puro e oxigen ado dos campos e da s fi o r e s t a s .
Ha em todo s nós a lguma coi sa do se lvagem ,um
re s to do homem prim itivo , e e sse , ante s de tudo
fo i c açador — preou,como quas i todos os a n ima e s ;
O com requin te s d e tra j o,de mesa
,e de
h abi ta ção , i nven çõe s d e a rte s e sc i e n c i a s , e sse fe z -s e
d epoi s é obra do tempo . Os hi stori adore s re l ega
ram o p r imi t ivo para os primordio s da hi stori a , e
parece -nos,ao l e l—os
,que o t r o g lo dyt a lá fi co u s e
pu lt ad o na s sua s caverna s . Mas n ão — e l l e v ive,e,
dentro d e nós , como o e scravo dos t r iumpho s roma
n o s , ven ci do e a gri lhoado , ve i u - nos acom panhan do,
a s si stin do e re s i st indo a todas a s c ivi li sa ç õe s . É e l l e
quem faz o s caç adore s — e é e st a a phi l osoph ia da
c aça .
E ba sta d e prefac io e d e ph i lo so ph i a s , que me po
de riam l evar l onge,e fari am e ffe i t o con trario n o le i
t o r, qu e m e deixari a i r — s em m e acompanhar .
Indiv idua l i dade complexa,e sta do caçador t em al go
do sol dado , do via j ante , do aven ture iro e do art i sta .
D e tudo i sto pare ce -me que o l e i tor en con trar á a l
gun s reflexos e vi s lumbre s na s pagina s d'e sta s n ar
r a t iva s . Quadro s , scen a s , pa i z a g e n s , marinha s , fi gu
ra s tudo é de senhado ou e sboçado do natura l,com
excepção da Tr a g ed i a n akca ç a
, qu e m e foi contada
por te stemunha pre se nc i a l , qu e n ão hg u r a no l ance ,
8 DUAS PALAVRAS
e do F i n a l d º
uma ca ca d a — uma tradição da minha
famíli a .
E a gora , para t e rmin ar e sta apr e s e n t a cão se t u ,l e i tor b enevolo
,s en ti re s
,ao l e r e sta s h i stori a s
,n ão
o q u e e u s enti , quando as viv i , porque s eri a impo s
s ivel, mas um pouco do praze r que a inda t ive a o
e scr eve l-a s dar-me-he i por sati sfe i to e pago do me u
tra balho .
Va le .
4 d e j u n ho d e 1 8o8 .
ZACHARIAS DªA c i x .
O O O O O O O O O O O O
Bu lhão P alo
P oela P z'
n lor d o ma r Spa/'
Uma ”
E ce rta s o r g a n i sa ç õe s po e t ica s , e spi ri to s singula rme n t e dotados pe l a n atureza , podemos d iz e r que o decorre r do tempo , os ba ldõe s da
vida , os as sa l to s da má fortuna , a i n co n s t a n c i a dasort e , todo e ste mar revol to do mundo , o a ffr o n t am
e l l e s com o olhar se reno, e o an imo impavido . Ne sta
tortuosa navegação,com a experien ci a de tan tos nau
fr a g io s— os proprios e os a lhe ios e l l e s são como
e sse s g rande s navegadore s qu e , a despei to dos ventos
,dos mare s
,e dos homens — ainda peore s i n im i
gos , não de sconfi am da sua e stre l l a , e con seguemchegar - ao porto do seu de sti no !São e ste s o s poeta s d e raça , os verdade i ro s po e
ta s : para e ste s não ha a n n o s de prosa . Cantam na
IO CACADAS P ORTUGUEZAS
mocidade , n a primavera da v ida ; ca n tam no e stio ;o outono i l lumina-os , doira-os com os t ons me lanco l i cos da saudade , e o i n ve r n o da vida -dã- l he s umaseren idade a l t iva
,a t r a n qu
'
illi d ad e das a l ta s regiõe se spi r i t u a e s , em que a alma , sempre viva e l uc i da
,
na sua con stante evo lu cão , a lhe i ad'
a das paixõe s te rr ena s
,como a chrvsali d a va e -s e tran sformando
,para
s e abri r em novos mundos !A e s t a
'
pr iv ile g i a d a famíli a , a e sta a r i st o cr a ci a i nt e lle c t u a l
,pertence Bulhão Pato . Todos o conhecem ,
todos o sabem ; n ão é i s to novidade , que preci s e ded emo n s t r a cão .
Neste logar n ão fal aremos e spec i a lmente dogran de e scr ip t o r , d a s suas a l ta s e fi nas qual i dade sd e prosador e de poeta . Aqu i as l e ttras não são dece rto n em extranhas
, n em ma lvi n d a s , mas nos campos soam mai s do que os accorde s da lvr a a s trompa s e o vo z e
ºr dos c acadore s .
O auctor da P a qu i t a e' do L ivr o d o Mo n t e — o
s eu u l timo e prec ioso l ivro n ão é um e sc r i p t o r sedentari o
,não é um poeta d e gabi nete , i nven tando
s e n sa co e s,compondo com sent imentos imagin arios
s i t u acõe s em que nunca se encontrou ;n ão , e os seusl ivros — poemas
,narrat iva s
,cantos
,e sa t i r a s a
sua prosa e a sua poesi a , são obra s viv idas : e stãoa l l i o s personagen s
,a s scena s
,os epi sodios , os l an
ce s do drama da sua vida , s ão aqu e lle s o céu , a ste rras
,os mare s
,os homen s e a s mulhere s , qu e e l l e
v iu . qu e e l l e conheceu e que e l l e amou .
A lma curiosa e sedenta de impres sõe s , não se li
mitava a gosar dos encan to s do mundo das sa l a s ;
CA CA ÍMS P ORTUGUEZAS I
e e l l e sa i a d'
um bai l e e parti a para uma caçada,
e d i ah i para uma larga digre s são pe l a s nossas prov i n c i a s , .
o u i a- se de fo z em fora até a i l ha de S. Migue l , a Hespanha o u a I ta l i a
, com um ve rdade i ropraze r , e não era n ece s sario que n o l-o di s se sse , po rque bem se l h e v i a n o rosto
,que o sent ia .
São e sple n d id a s de verdade a s sua s pa i z a g e n s ;comum t oque ou doi s d a-nos o arti sta a impre s são domundo rea l, e e stamos vendo e ouvindo o s seu s a ld eõe s , os seus rusti cos . Os seus o lhos fi xam e gravam em s i para sempre o s movimentos
, o s ge stosdos a n ima e s — os da terra e os do ar , e o s aspe ctosda n atureza . A s grandes scena s mar ít ima s , a s l a rga s
pa i z a g e n s ocean icas que e l l e nos pinta — não digodescreve — na P a qu i t a ,
são o bra s—primas,quadros
agi tados,em que o turvar da a tmo sphe r a , o as sob iar
do vento na s e n x a r c i a s , o fuzi l a r do raio e o e stal a rdo trovão
,te em ta l certeza nos traços, ta l v iveza n o
co lor ido,que
,quando os l emos, como que nos acon
chegamos no gabinete,tanto a r ea lid a d e da descri
pção do tremendo espectaculo se impõe ao nos soe spír i t o !
No ma r e s t á o poeta no seu e l emento . No'
s momentos - so l emne s
,em pl eno vendaval , no mar dos
Açore s,quando os pa s sage iros re colhiam aos be l i
che s, e no co n véz só se viam os homen s .da fa in a
com as sua s j aponas e o s seu s n o r d e s t e s breados ,
CA CA DA S P ORTUGUEZA 5
e u ve j o,na minha imagin ação
,na popa do vapor ,
quatro vul to s , os doi s homen s do leme , o capitãoTel l e s Machado
,ve l ho lobo do mar , e Bulhão Pato .
E tudo a Que um tempo ra l n aqu e lle s mar e s é d e t remer ! Os naufra
'gios são , as vezes , as duz i a s
,quando o vento se l evanta , e a s ondas se enca
p e l l am n aq u e lla s costas !Era ahi que o poeta rec ebi a a impre s são di rec ta
do“
grand io so e medonho scenario das fo rm id ave i st ragedi a s do mar !Os o r ig i n a e s d o s s eus quadros viu- o s o grande ar
ti sta bem de perto de d i a , e mai s temeroso s aindad e noi te ! E com que a l to e s t vlo e l l e o s
'
p i n t o u l
Q u a n do o m a r,d e impr o v iso , se e n cape lla ,
Q u em n e sse i n sta n te a co r da,j u lg a um so n ho
,
Ho r r íve l so n ho , o a ssa lto d a p r o c e l la !
A fa i sca r , em v i r o tõe s , o r a i o !R i bo mba va o tr o va o
,i n da d i sta n te
O so l. a ca fr o ad o e d e so s la i o,
To ca va a s de n sa s n u ve n s d o l eva n te ;D a n do ás c r i sta s d a s o n da s r eb e n ta da sA e spa ç o , u ma tin ta co r u sca n t e !
F a i n a g e r a l ! O ve n to d e sg a r rão ,
A u s t r a l, ,i n t e r ca d en t e , a ca r r eg a r ,
E a r a j a d a ma io r qu e o r e ca lmão !
In ve stin d o fu r io sa s , a i n t e s t a r ,A s t o r va s o n d a s d e fuma n te e spuma ,Co
'
a s n u ve n s a ch a ta da s so b r e o ma r !
CA ( mm s P OR'
I'
UGUF ZAS 3
O '
m a r ! q u a n do a r e fr e g a v io l e n taEm pyr am ide a s o n da s t e a l e va n ta
,
Q u em se a t r e ve com t i g o n a t o rm e n ta ?A b e sta fer a a o t e u b r am i r se e spa n ta !Som e n te o ho mem t e co n tr a sta o s ímpe to s !El l e so co n tr a t i se n ão q u eb r a n ta !Em tu a s so l idõe s d e sampa r ado ,O l ha n do pa r a o céu —
qu e , em t a e s m o m e n t o s,
P a r ece po r Sa ta n r e co n qu istado !Ma i s a u da c io so q u e o fu r o r d o s ve n to s ,P a i r a a c ima d o ho r r o r d a n a tu r ez a
,
C o m o um D e u s, po r seu s a lto s pe n same n to s !
Tem o mar os seus amante s,o s seus apaixona
dos , e nós compr ehe n d emo s o sentimento de orgulho , que as a lmas forte s devem experimenta r
,ao
a ffr o n t a r em a s col e t a s imme n sa s do Oceano !Levantarem— s e - l he s a s ondas em montanhas
,e de
subi to ,'
e logo em segui da,cavar- se - l he s o abysmo
verde -n egro e medo-nho,entrevendo—se
,lá em baixo ,
a s fauce s do grande tragador,a bôcca e scan carada
e o se io da immen sa sepul tura ! Soprar- l he s o vento'
n o s r cabo s o hym n o de svai rado da proce l l a — os int er va llo s do s i l en c io t ragico cortados pe lo gemer arr a st a d o do arvoredo ' E as i nve stidas d l e sse maro des abar d
i
e s sa s montanhas,e ssa ba ld ea çã
'
o enorme ,em qu e e l l a s
'
se prec ip itam,onda sobre onda , e co r
r em e l avam -o co n véz de pr ôa a pôpa , e levam earr a stam tudo ! E as lufada s do vento , e as cam
.I4 CACADAS PORTUGUEZAS
b i a n t e s da a tmo sphe r a , e o fu lg u rar dos r e lampa
gos,e o sc i n t illa r do ra io , os gri tos d e te rror , a pal
li d e z dos rostos , o tremor das voze s , o a n ce io dosanimos
,o trep idar dos coracoe s ! . E tudo i s to a
su cce d e r - s e n a expre s são —dos olhos,e spe lhos da
a lma ! . Oh ! quem tive r as s i st i do a tae s s c enas,
se duraram hora s , pode co n t al—a s por secu los !Mas
'
os que e s capam as furi a s da tempestade,n ão
vo l tam as costas ao mar ! Ante s pare ce qu e mai s lhen c am querendo ! Já o Camõe s pi n tou e sse amor ,quan do poz na bôcca do Ad ama st o r aq u elle s ve r
sos,de se spe rados e saudosos
To d a s a s d eu sa s de sp r e z e i d o céu,
so po r ama r d a s ag u a s a pr i n ce z a !
Tem s ido navegador o nos so poeta , tambem foicava l l e i ro
'
; e quem e scapou da s tormentas do mare steve a pique de perder- s e em te rra
,e num r i o
sem ag ua ! Um mi l agre e ste , s e não maior , pe lo me
nos mai s ve ríd ico do que o su cced i d o ao bom e a
valle i r o D . P ua s R o u pi n ho , qu e o nos so grande poe taCasti lho immo r t a li so u na sua Cháca r a d a Sen ho r ad a Na za r eth .
Deu- s e o ca so um dia que Bulhão Pato s a íra apasse io pe los arre dore s da Arruda
,na companhi a
do V i sconde de As seca,Sa lvador Corrêa , pa e
'
d o
actua l t i tul ar . O cava l lo que e l l e montava,e r a um
CAÇADAS r o a'
rUGu z—JZA s 5
potro d l
A lt e r fo go s i s s imo , e o poeta , então na exube r a n c i a de forca s dos V i n te a n n o s , deu—l he l a rgas :o que a princíp io era t rote pa ssou a ga l ope
,e n a
de sen fre ada carre i ra chegaram a ponte,pequena e
i rregul ar , mas que mede ta lvez trinta pé s di
a lt o . O
parape i to é baixi s s imo,e o l e i to d o r io e stava secco
,
a de scoberto .
Bulhão Pat o quiz vo l ta r o potro,ao entrar na
ponte , mas j á n ão po u d e ! . O impul so da corridae r a maior
,e cava l lo e cava l l e i ro sa lvaram a s guar
das , e ca í ram no l e i to pedregoso do Si z a n d r o ! Ocava l lo fi cou i n u t i li s a d o , o cava l l e i ro inco lume ! Nãotinha uma be l i s cadura ! Valeu - l he o se r magro e depequen a e statura
,dirão : va l eu—l he a fortuna
,porque
o sal to e ra morta l !Quando a l gun s homen s corre ram para o r io ,
j áacha ram o poeta d e pé , sacudindo a terra de s i , eapre stando—se para sa ir do que quas i l he fôra tumulo ! E, impos sive l de screver o pasmo que d
'
e l l e s s eapossou , ao ve rem o caval l e i ro dize r- lhe s
— Você s v i nham para me l evar ! ? Hein ! Poi s , obrigado , eu cá vou andando . Se quize rem levem o cava l lo : e s se é que de ce rto não pode coms ig o .
Na vi l l a apontavam o poeta,e ol havam—n —o depo i s
com certa admiração re spe itosa .
'
Parec i a com e ffe i t o
que e l l e c ruzara os terríve i s humbr a e s'
d a morte !El l e
,todav ia
,preferiu a s campinas e a s varze as , o
mundo,a qu e tão cedo o qu iz e r a arrancar o fogoso
co r se l !
E por mare s e r ios , monte s e —val l e s , , o v i emosa companhando
,e cá e stamos com e l l e n as varzea s
CACADAS P ORTUGUEZAS
e nas campina s , na s vi nha s e n o s p i n ha e sê— numa
pa l avra,no campo das sua s ca ç a d a s .
No s eu tra j o de c acador , rodeado d o s compa n he iros — grupo sempre p ittore sco
,pe l a vari edade d o s
typo s , e a que dão a inda mai s vida e re al ce os cãe s ,o s perdigue iros , com a dese nvol tura dos s eus mo
v im e n t o s — Bulhão Pato l embra—nos um d e s se s 6d a lg o s d
loutro tempo,poetas corte sãos e fr a g u e i r o s ,
tão conheci do s nos saraus do paço da A lcãcova,como
n a s bati da s e monte ria s de Sa lvate r ra e d”
A lme i
rim ; aqu e lle s que corri am com egua l ardor as aventura s d o amor e a s da guerra , afi
'
r o n t a n d o - l he s o sperigos com a me sma galha rdia .
Ind ivi dua l i dade como a sua , tão a cce n t u a d a , tão
c he i a de carac te r,n ão conheco outra en tre os nos
sos poeta s co n t empo r a n eo s : e'
poe ta em toda a parte,
a toda a hora,com toda a gente — na rua , n o café ,
a mesa d'um hote l como no l ar domesti co
,n o sa
lão das duquezas como na s sa l a s da Academia ! EmVeneza
,-um“
d i a , entrando num dos hote i s mai s e legante s
,para j antar
, o creado u m ori gina l,que sã
bi a o Dan te de cór — a pouca s pa l avras trocada sencaran do com o nos so amigo , di s se —lhe , i n te rrogando e a fli rma n d o ao me smo tempo com o gesto
— Vo i s i et e p o et a ?
E d 'ahi a pouco os doi s t inham travado dia logosobre li t t e r a t u r a .
CACADAS P ORTUGUEZAS
Nasce - s e caçador , como se nasce poeta , como senasce orador . Bulhão Pato e
'
tudo i sto,de n a cão ,
como diz a inda o nosso povo d o s campos . Ser cac ador e
'
n e l l e quas i um tal ento,uma das formas do
s eu se r .
At i rar as co do r n iz e s nos t r i g a e s , persegu ir a s pe rd ize s nas v inhas , chofrar a s n a r ce j a s nos a lag ame n
t o s , de scobri r'
as g a lli n ho la s na s e xs t eva s , n o s pinhae s ,e spera r a pas sagem das rôla s e dos pombos
,car
re gar uma l ebre na campina,corre r um veado
, em
»
p r a z a r um j aval i , faze l -o sai r da ma n cha , e spe r a l-o
de cara numa p o r t a , é um prazer , para os que p r ocuram essa s sen saçõe s fora da vida banal das c idade s
,nos campos , nas Ho r e s t a s , nos mattos ermos e
se lvagens . E é mai s fac i l s en ti l-o , do qu e ex plica l-o
a o s qu e , e x t r a n ha n d o -o,por i sso me smo não 0 po
d em comprehen der . Tanto val eri a exp l i car a um surdo , ou a um cego, a s be l l ezas da musi ca e da pa i z ag em .
Haurindo o ar fre sco e embal samado d o s campos ;d ilatando a v ista pe l a s verde s e exten sas pradarias ,o ndulante s como o mar
,pe lo s doi rados vinhedos
pe los c imos quebrados da s serra s , en tra—se em maisi ntima commu n hão com a natureza .
Não são rua s a l inhadas e poei ren tas ,.
e d ihc io s r e
c t a n g u la r e s , sombras geometri ca s no chão , nem céure cortado
,aqui e a l l i , pe los te lhados da ca saria u r
bana . Terra,l uz e ar , estão al l i a de scoberto , não
n-o l—a s en cobre a mão do homem . O so l i rradi a e s
1 8 CA CADA s P ORTUGUEZXS
ple n d id o no l impo azu l do â rmame n'
t o , a aragem epura
,e a propri a terra e nvi a—nos o pe rfume das e r
va s raste i ra s e das Ho r i n ha s agre ste s,que p i samos .
Neste contacto com a terra o homem r e j u ve n e sce
,e a se re ni dade dos campos re sponde em nós uma
a l egri a,que nao e a que
“
rompe dªe n t r e o co n v iv10
das fe sta s rui dosas,mas outra , mais funda , de que
depoi s nos l embramos,e n o s appa r e ce , no e n t a r d e
ce r da vida , com o i n effave l encanto da saudade .
E no meio d e s se scenario rustico aqu e lle poeta ,que todos — os qu e sentimos e amamos a natureza ,t raz emos d entro de n os , occu l to e tac i to , acorda , en os vamos seguindo-o
,e a phanta s ia vae com e l l e a
voe j a r,a voe j ar .
Nasci do em Bi lb au e c re ado em Deusto a l de i aproxima
,diz o poeta
,nas su a s u llemo r i a s, « que era
a peste d o s n inhos » . A l l i pe rto e stavam a s En ca rª
la cto n es, onde nasc eu Anton io de Trueba , o popula r i s s im o auctor do L zbr o d e lo s ca n t a r es, e po rventura então outro i n imigo das ave s i n ha s . J á LaFonta in e o di s se : Cet ag e est sa n s e e l la s pod e rão dize r que as outras e dade s não são m e lhore s .
Os cantos da infanc i a ouviu—os e l l e truncados pe l oe strondear da fuzi l ari a : e ra a caca ao homem — a sembu sca d a s e recontros de ca r li st a s e de chr i st z
'
n o s .
Scenas d r ama t i ca s,t ragedi as , como a da hi storia
d”
aqu ella Mari a Sa lomé,que e l l e s fuzi l aram ! Vã
20 CACADAS P ORTUGUEZAS
g n i fi ce n c i a das suas cacadas , o fi da lgo do Farrobo ,em tudo grande — grande senhor e grande arti sta .
Havia n 'e s se tempo mai s riqueza nos pa l ac iose mai s caca nos campos .
Ficaram n a memoria dos ca ç a d o r e s a s famosase spingarda s i n gle z a s de Manton , d e Burdey , qu e s epagavam de vin te a quare nta moeda s ;e os que vi ram ,
n e sse s d ia s afortunados , trabal har o s cãe s da s racasdo Marquez das Minas , do conde da Ata l a i a e dov i s conde da Praia , recordam- s e ainda ho j e com saudade da be l l ez a d e formas , da e l eganci a e da fi rmeza d
'
e sse s ma g n i n co s a n ima e s . Racas ho j e e x t i ncta s e não su bs t i t u íd a s . Os do vi sconde da Pra i acomprou-os e l l e em Pari s , numa expos ição , e d eu ,s e não me engano , ci ncoenta l ib ras pe lo casa l . E ,
seme engano no pre ço
,é para menos .
Não são menos famosa s as cacada s princ ipe sc asna s terra s do Farrobo .
F o i com este s amadore s — em tudo mestre sne sta gran de arte da caça , os cu r i o so s, os ama d o r es,é qu e são os me stre s , e só e l l e s
'
o podem ser,tão
compl exa e l l a e'
, porque , sen do arte , é fe i ta de se i enc i a s fo i , digo , com tae s mestre s qu e o j oven poeta ,tão p recoce n
º
e s t e s campos como no das l e ttra s , feza s sua s primeira s armas .
Quando e u m e al i ste i na venator ia confrari a foiBulhão Pato meu padrinho
,e n a companh ia d 'e l l e
(SACADA S P ORTUGUEZA S 2 !
perpetre i os meus primei ros c rimes . Que Santo Hu
berto m"o s pe r dôe . A minha primeira ví ctima fo i um
maçarico . lamos no catraio do Lourenço para 0 J u nca l da T rafari a , que então — hela s f — ainda t inhaco d o r n iz e s , l ebre s e n a r ce j a s . F o i ha trinta a n n o s , epare ce—me que o e stou vendo
,a o pe rna l to
,ca i r n a
agua !Ante s d
'
i sto ja me tinha exerci tado , at i rando ao s
g a ivõe s , que todas a s tarde s vi nham faze r a s sua scorre ria s ae rea s no al to da quinta d o Desembargador , e po r c ima da minha casa , em S. Franci sco dePaula .
A angloman ia não se apoderara d o poeta , ape sarda moda e da tradi ç ão
,j á antiga . A sua e spingarda
dº
e n tão e ra uma be l l a arma he spa n ho la de Eyba rcanos de lzer r a d u r a s — como ne l l e s se l i a em le t
t ra s d”
oiro,e o i t ava do s até um terco . D
ªo i r o e ra a
mi ra , e com e l l e di scretamente ornada na bôcca eemvo lt a da fe char ia . Nada de orien ta l n e sta o r
n ame n t a ção sobri a — um fi l e te apenas . O guardamatto ti nha mol a d e seguranca . Elegante e so l i da ,e sta caca d e i r a havia dado as suas provas : a e s setempo entrara j á em muitas bata lhas
,e pouco an
te s Lopes Cabra l — um ath le ta — matou com e l l aem um d ia
,na Go lle gã, setenta e cinco co do r n iz e s .
A Eyba r su cce d e u Pari s , e a e spingarda q u e l heconheco em effe c t ivo se rviço , ha mai s de vinte a n n o s ,é uma Ga s t i n e —Renette , do systema Le fa u cheu x , cinze la da e acabada com a maior perfe icão . Arma finae d e pre ço .
Ga s t i n e —Renette e um dos mai s i l lu stre s entre os
22 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
fabri cante s dº
a rma s co n t empo r a n e o s . F o i o A r qu e
bu síer de Napol eão I I I , o seu fornecedor p redi l e c tode armas de caca e de guerra .
No cabi de de a rmas do poeta vêem—se mai s duasuma de fogo centra l , be lga , e outra Flobert -R e
m i n g t o n .
Tr a ico e i r a e sta u l t ima — Como os machos d 'arrie i ro morde e da
'
couc e ! O cão l evanta,e o ti ro
vem,as veze s , tambem para a cara do ati rador ! Pe
rigoso systema .
Do s cãe s da e spingarda para os da s perdize s atran si ção e
'
fac i l,e e sta fe ita .
O capitu lo d o s nos so s fi e i s a lli a d o s , e dedi cadoscompanhei ros
, e para nós a inda mai s importan te d oque o das armas :
,com uma e spi ngarda med ío c r e
pode— s e cacar - é com e l l a que ati ra a maior partedos cacadore s mas com um cão mau é impo s s ive l : a caça que l evanta é po r aca so , e , depoi s demorta o u fe rida , uma n ão s e acha , a
' outra perde -seo ra stro
,
,e a maior parte fi c a no campo para a s ge
netas , r apo z a s e m ilha fr e s .
Poi s os pa r a g r apho s d'
e ste capi tulo são bri l hante s '
Bulhão Pato t em t i do .a fortuna de cacar na companhia dos seus amigos , com o p t imo s perdiguei ros , e ,entre os seu s
,conhec i a lgumas esp a d a s de primei ra
ordem . Teve o P ombo,sobe rbo an imal pre sente ,
s e n ão me engano,do morgado Anton io Borges da
CACADAS P OR'
l'
U(3UEZA S
Camara Medei ros , d i s t in c t o amador,da i l ha de
S . Mi gue l : a Ni ed o'
r a,l i nd i s s ima perdigue ira
,uma
e s tampa , hn a .de de senho e de côr,e que era o en
l evo de A l exandre Hercu l ano,ape sar d e l l e n ão se r
c acador .
A e ste s seguiu - s e o Aía qepp a um verdade i ro tyrano do s campos , que a nada pe rdoava : o qu e e l l een contrav a deante de si havi a de i r para o ar Branco ,todo e l l e , al to , a cabeça grande , a ore lha curta , r obusto de formas , d um enorme a lcance de ol fac to
,
c acando com uma certeza e a di stanc ia s,prodigio
sas,era um be l lo e spectaculo vel—o traba lhar em
campo largo . Apontava a caca d e cabeca e rguida,
ia di re i to a e l l a,com ta l fi rmeza
,que n ão seri a
maior,se e l l e a v i s se !
Como toda s a s formosa s ti nha um senão — n ão
traz ia a caca ao dono ! Porque um ta l defe ito eman imal de raça , e tão â n o como este e ra
,a o c erto
n ão o se i Podia te l -o de natureza o u adquirido . Of
fe r e c i do ao i l lu stre poeta pe lo seu ve lho ami go , o
genera l S c'
hwa lbach,mandara -lhªo e ste d o Porto ,
a inda novo,mas
,s e bem me l embro
, j á fe i to , e ac acar . Ta lvez la fos se en si nado po r a l gum amadoringl ez , e e s te s , como se sabe , costumam , cacandocom doi s ou mai s
'
cãe s, de l egar no r et r i ever a s funcco e s subal te rna s de procurar e trazer a
'
mão a ave ,a l ebre
,o u o coe lho , l evantados pe lo s s eu s nobre s
p ow t er s ou set t e r s . Fosse o que fos se , Al a gepp a e ra ,ape sar d i
e s t a falta , um bri lhantí s s imo exp lorador .
La dy ,a cu j a morte o poe ta como outros , BV
ron,por exemplo — ded icou senti dos versos , n ão
24 CACADAS PORTUGUEZAS
de smerec i a d e st e s , e e r a dº
uma me ig u i ce notave l ed
º
uma rara d e d i cacão .
Eu n ão Hz versos aos meus , não sou poeta ;masquando e l l e s fe charam os ol hos para sempre , os meusnunca fi caram enxutos .
'
Madrugadas de caça
O dia oi to d e setembro e r a o escolhido por BulhãoPato para a abertura da s suas cacada s d o i nve rnono su l do Te jo , e o s i tio pre fe r ido o Jun ca l da Trafari a .
A mei a hora de caminho de Li sboa , e com uma trave s s i a encantadora n e s se s formosos di as do outono,t i nhamos al l i
,por a ss im dizer
,a nos sa coutada
nos s a e d e poucos mai s , fe l izmente . Os outros fre
qu e n t ad o r e s eram os rancho s d e'
J o sé Mari'
a Vi l l a r,
e de João Lourenço,ambos creados da Ca sa Rea l
,
e os s rs . Go u r lad e s . da Junque i ra . Os cacadore s deLi sboa , a un s de sv iava—os de la o terem de i r embarco de ve l a , e a outro s l evava-os para os pinhae sde Corroios a fal t a de bon s cãe s ou a ambicão das
g alli n ho la s . A s s im divert i dos d e concorre rem com
nosco , era raro encontrarmos competidore s .
Qua n do,pe l a s c in co da manhã
,eu chegava , equi
páti o e armado,a .ca sa do poeta
,que morava então
1 867— na rua das Pracas
,a Lapa , j á l a
'
e stavam ,
sentado s à porta , doi s vu l tos , que d e l onge e pe lo
CACADAS P ORTUGUEZAS 2 (J
'
e scuro eu apena s di st ingui a e ram o Lourenço daPinha , o nosso barque i ro de Bel em
,e um d o s ti
l hos .
O ba irro j az 1a , as ruas e ram ermas , mas la dent r o tudo estava a p é . A morada d o poeta
,que ainda
hoj e con se rva o mesmo aspecto,é sobre s i e tem a
appa r e n c i a d,
um co t t a g e rez —d o - chão,primei ro an
dar , e , sobre e ste , outro pavimento mai s baixo , comquatro j an e l l a s , d onde se d e sfr u c t a , po r c ima d o ste l hados fronte i ros , o Tej o — vi sta que tanto r e a lca
e al egra a ca sari a d'
e ste s ba irros da Lapa e deBuenos Ayre s .
O F a lz'
e'
r o e a iWed o'
r a , ja de spertos , l at iam n o
can i l , ru idosos e co n t e n t e s ;. n a coz inha o José,r o
busto e sympa th i co rapaz , honra da raca d, a l ém Mi
nho , com as suas bota s d i agua,a camiso l a de fla
ne l l a d e l i s ta s,a sua cara sempre a legre , e ,a Ma
r i a, a cre ada , davam a ul t ima demão nos apre stos
do a lmoco e no arran j o das bagagen s,porque
,as
veze s , e sta s excursõe s duravam dia s . O poeta,i n s
ta l l ado no seu quarte l genera l ven atorio,em casa da
s r .
a Maria do Adri ão,na Costa
,havendo caca e di a s
amenos,deixava—se la fi car , at é que algum sudoe ste
bravio,do s qu e costumam acoit ar aque l l a pla n íc ie
d are ia , o . fo r cava a l evantar vôo e recolher aos abrigos da c idade .
A prime ira pe s soa qu e e u v i a aque l l a hora matin a l
,e que , no al to da e scada , me dava o s bon s d ia s
era sua i rmã,a s r .
ªD . Maria da Pie dade , com o seuar senhori l
,e a sua
'
vo z a l ta e vibrante . Muito parecida n as fe icõe s com e l le, não o era menos no fi no
A.
20 CACADAS P ORTUGUEZA S
e spír i t o e na amenidade d o trato . Mai s ve lha do queRaymundo fo i , po r ass im dize r
,sua segunda mãe .
A companhou —o na vida , e tudo com e l l e parti c ipoua glori a e a advers idade . Tinha um animo varo
n i l a i l lu stre senhora : aqu elle s primeiros anu os dasua mocidade
,pas sados em Hespanha
,no meio das
guerra s c ivi s , deram— l he a tempera . Era uma almaforte , e po r i s so mesmo egua l , se rena e re si gnada ,na bo a e n a ma fortuna .
Este s Bu lhõe s são de bom e antigo sangue . Man ue l de Bulhão fo i um homem em t o d a a a ccep ca
'
o
da pa l avra — honrado,forte
,e va lente .
Tran sposta e sta prime ira e stação , em c ima estavao poeta
,j a' a p é
,ve st in do- se
,e spre itando pe l a s j a
ne l l a s,vol tadas a o su l , o cari z d o c éu , e o rumo d o
vento,e fazendo o prognost ico da cacada .
A l l i e ra o seu m i radouro,o s eu gab in e te de tra
balho , a l l i re ceb i a o s seus in timos,al l i compunha os
s eu s poemas . Apos en to mode sto e simple s,que ti
nha n a s parede s, po r un i co ornato , uma cercadura
fe i ta com os be l lo s retrato s d o s co n t empo r a n eo s i l
l u stre s,gravados po r Souza , para a Revi st a Co n
t emp o r a n ea .
la eu subindo a pequena e scada de doi s la n co s , e
j á o ouvia fa l ar .
É s tu,Zachari a s ?
E logo,em seguida , quando eu abria a porta
28 CACADAS P ORTUGUEZA S
na e strada,mas e u
,fe l izmente
,sempre fu i mais novo
que a minha e d ad e . E ainda ho j e tenho e s se defe i to .
Su rp r ehe n do , as veze s , em mim ingenuidade s i n fa nt i s — aurora s , e spl endore s , e soe s po e n t e s
'
d e dia s ,que ha muito pas saram . Na minha memoria evocoe sse s phanta smas , que me app ar e cem vivos , e travodial ogo com e l l e s . E tudo i s to é p ela v i r t u d e d o
mu i t o ima g i n a r . A phantasi a , a memoria viva , fazem—nos o milagre d e sta s r e su r r e icõe s !Tomado o viat i co , a cce so s o s c i garros Pato pre
fere a c ig a r r i lla a o ha va n o — d e spe d i amo —n o s deD . Maria da Pie dade
,e part íamos . El l a He ava a l
gumas veze'
s tambem n o s acompanhou ne stas excu r sõe s — mas nós tí nhamos a c ertez a de que o seupen samento não n o s de samparava
,porque no seu
e spír i t o , como no de todos , a i de'
a da caca an davaa s soc iada a d o perigo .
De sc íamos a rua de S . Domingos e chegavamo s
a rocha do Conde dª
Obi do s , atrave s sando as ruasa inda dese rta s . Os Lourencos e o Jos é t inham marchado na fren te com as bagagens .
A ss im abriam para n os e s se s di as — j ama i s e squ e c i d o s . A lvoradas a l egre s d e rosado
'
ori e nte e c éudªa n i l
,ou manhãs pardacentas , humidas e tri ste s
,
encontravam em nós o me smo animo . Nos dias bon i to s tínhamos a crença ; nos fe ios e r a a e sperança ,e em todos a grande poe s i a da mocidade . .
O tempo voou,mas
,todos o s a n n o s . nos primei
(JA CAHAS P ORTUGUEZAS 29
r o s dias de setembro,nas l i ndas madrugadas d o o u
tono , se rena s e che i a s de luz,l embro-me com sau
dade de quando , ao en tra r n o quarto d o poeta , eue r a saudado com o s versos da cacada d o A l ca ideMór d e Af on so Henriques :
Ma n hãs fr e sc a s d e se tembroqu a n d o o r va lho e stá a ca i r ;
A rocha do Conde de Obidos — João LourençoBulhão Pato no Juncal
Aque l l a rocha do Conde di
Ob i d o s — a s s im chamada por se r
'
a lli j unto o so l ar,o pal acio dos i l lustre s
Hd a lg o s di
e s t e ti tu lo — vemo l-a ho j e mascarada comparape ito s
,varandas e e scada s , e coroada , n o a l to ,
c om uma pequena praça a j ard inada,donde se gosa
a l inda vi sta do n os so r i o . Qúa n t um mu t a t a a b i llo !
Era então toda egua l a uma ne sga , que ainda l á secon serva — uma encosta pedregosa , adusta pe lo sol ,bat ida d o s ven tos
,e scalva d a pe l a s chuvas , coberta
aqui e a l l i por uma ve g e t a cão rachit ica e parda . Umtre cho da n atureza se lvagem
,uma verdade i ra arrib a
do mar !De sc i a-s e para o r i o po r um longo corre dor , e n
t r e doi s muros — um do pal ac io , e outro da céreado convento da s A l be rta s — e a e scada que conduz ia aO
'
pequ e n i n o cae s , lá em baixo , e ra um verda
º
DO LA CA DA S P ORTUGUEZA S
de iro quebra-costa s — tortuosa , o s degraus i r r egu lare s , aberto s un s n a rocha , outros na te rra . Do al to darampa , ve rdade iro pr e c ipíc io , ví eu um d ia , sendomuito novo
,ca ir um mari nhe i ro in glez ébrio . Um
horror !Parece impos s íve l que a qu i llo fos se , at é a o s nos
sos dia s , um d o s c ae s de de sembarque dªe s t a be l l ac i dade ! Era ah i que embar cavamo s .
Arrumadas a s mal a s , seguros o s cãe s , os remo sca íam na agua .
Je su s ! diz i a Lourenco .
Mari a ! segundava o hlho .
E o catraio segu ia , de voga arrancada , r i o abaixo ,d ire i to a Trafari a , quando n ão a Be l em ,
onde i amosbu scar o João Lourenco o João da Burra , comolhe chamavam de sde pequenino , d
ªu ma burra com
que da sua vi l l a n o s arredore s C in tra,cre io eu
costumava e l l e vi r a c idade .
Cacador de E l -Rei D . Luiz , morava em Be lem ,
e,quando n ão t inha serviço n o P a co , '
a compa n hava
n o s ne stas digre s sõe s ao Juncal .De bo a e statura
,e robusto , o olho pequeno e v ivo
a t e z ro sada,as fe i ç o e s regul are s , o nariz aqui l i no ,
João pareci a um abba d e minhoto , dos que tem bon spre suntos n a de spen sa e bom vinho na adega .
Bo a e sp ingarda,bom garfo
,bom copo
,bom rosto ,
e,portanto
,bom companhe iro
,e ra , a l ém de tudo i sto ,
(J A F «XI)A S P OR'
l'
UGUl—lZA S
li no como um cora l . Rapaz,fi lho d o povo
,li z e r a —se
homem na cidad e , tin ha , o que é raro n o s homen sda sua c l a ss e e profi s são
,aprendido a sc ie n cía d íflí
c i l d e se mante r sempre n o s eu logar . mas quandoqueri a obse quiar a l guem , faz ia—o com a gent i l ez ad 'um fi dalgo .
Um exemplo .
Homem v i d e i r o,abri ra e l l e em Be l em
,defronte
dos J e r o n ymo s, um re staurante , a que po z o nome
de Ca ca d o r . Um dia , em que eu fui vi s i ta r a egre j a ,demore i—me mai s , e e ram horas de j antar
,quando
d e lã sa í . A minha ca sa fi cava l onge,dirigi-me a o
Ca ça d o r .
Prevenin do j a a hypothese de l a' e star o dono , e ntre i pe l a porta do l ado . O cre ado que ve i u recebera s minhas orden s
,parece qu e me conheci a , porque
el l e a vo l tar costas , e João a appa r e ce r com o seurosto praze'nte i ro . Eu dis se —l he o que queria , e l l esen tou—s e no logar fronte i ro
,e t ravamos a conver sa ,
e'
c l aro,sobre a mater i a vasta — a caça
,e arte s e
hi stori a s corre l at ivas .
Quando eu i a no fim do primeiro prato , João , t omando os ventos
,di s se —me
Está-me che i rando bem . Parece -me que lhe façocompanhi a
,se me d a l i c en ca .
Ora es sa . O João e sta na sua ca sa .
E j antamos os doi s,e n t r eme i a n d o o paio com e r
v i lha s,e as e i r o z e s gre lhadas , com hi s tor i a s , a lg u
mas mai s s al gada s d o que os gui sados , que iamossaborean do .
Quando a cce n d emo s os charutos , e eu pedi a
CA CADAS PORTUGUEZASconta , e l l e fez um signa l ao servo
, qu e d e sappa r e
ceu , e l ogo vol tando—s e para mimV . Ex .
ª d eu -me a honra de j an tar comigo naminha casa , e e u e stou pago . Não deve n ada .
E ' c laro que n ão i n sís t i . Se te imas se , eu e que e r am al'cr e a d o .
Tempos ante s fi z e ra-lhe uma pequenina fi neza,e
e l l e quiz—me mostrar qu e n ão a havi a e squec ido . Pod i a contar d i e l l e outras h i stori a s . mas e sta ba s ta .
Joao Lourenco traz ia coms ig o , para a s nos sa s cacada s
, o s seus cãe s , n a companh ia dos quaes vi nhama l gun s
,que perte nci am a Ca s a Real , e que , s e j a dito
de pa ssagem,n ão envergonhavam os nos sos . E n ão
t raz i a so i s so mui t a s veze s ve sti a tambem o seu pi tt o r e sco tra jo do Rea l s ervico , e com e l l e vinham outros cacadore s da Ca sa , bem armados , e bon s ati radore s .
Quem vi s se então no Junca l Bulhão Pato,e os
seu s amigos, com aque l l a comi tiva de cacadore s
,
perdigue i ros,e batedore s d o sít i o , que se n o s ag g r e
g avam ,e attenta s se n a chapa , com as armas r e a e s
de prata re luzente, q u e orn ava o chapéu a Mo squ e
t e i r a do nosso mo co d o mo n t e, cuidari a que eramosa lgun s principe s sac iados de caça , que , para variaro men u cyn eg e t ico de Mafra e Vi lla
'
V i ç o sa , i am , pe
de stre e bu r g u e zme n t e , atirar a l l i á s co do r n iz e s e
n a r ce j a s .
(SACADAS P OR'
I'
UGUEZAS 3 3
Cacadore s r eae s e verdade iros e ramos n os,e pri n
c ipe s tambem ás veze s i am doi s : um era.
Lope s Çab ra l que nós e leva r amo s a e s sa dign idade , o outrot inha- se e l evado a s i propr io , e ra Bulhão Patom a s o seu prin cipado era , e é , na Repub l i ca dasLettras . Tem menos fausto
,menos repre sentação
,e
i n comparave lmente menos rendimentos,mas tem
sobre os outros uma vantagem,uma ab soluta supe
r i o r i da d e : os , seu s su bd i t o s podem não lhe t i ra r ochapéu
,podem d i scu t i l-o , podem não o l er qu e é
maxima affron ta — mas o que não podem é obri
g al-o a abdi car !As corôa s dos poeta s e stão ac ima das r evo lu cões !
36 CA ç A DA s P ORTUGUEZAS
o poeta d e todos os a s sumpt o s t i ra p art i do ; e e l l e ,qu e não é um natura l i sta , um sab io
, é—um fi no
observador da natureza , e n a sua conversação omundo rea l re força e co n cr e t i sa o imagin at ivo .
A s s im como os companhe iro s , variavam os a ssumptos . Se eram art i sta s
,musi cos
,pre dominava o ly
r i smo — S. Carlos , os teno re s , a s p r ima s-d o n a s,os
ma est r o s ; se nos acompanhava a l gum pol ít i co ca soraro
,que os pol i t i co s ati ram a outra caca — e r a a
oratori a t r ibu n i c i a — José Estevam,Pas sos Manue l ,
Rodrigo , Rebe l lo da S i lva , Garre tt , s e iam mundanos
,então ba i l e s , amore s e aventura s . Não fal tavam
a s sump t o s para os quadros , nem ao arti sta a s côr e spara os pintar .
Uma coi sa h avi a prohib i da n a nos sa soci edadeo si l e nc io . Quando nós
,ao l argar da Rocha
,nos con
se r vavamo s c in co m inutos ca l ados , Bulhão Pato prote s t ava
Leva de rumor ! — dizi a e l l e , apo s t r opha n d o com icam e n t e o nosso muti smo . Parece que morreuaqui a l guem ! O '
D i ogo,tu pa s sa ste mal a noite ?
D . D i ogo,d 'uma antiga e nobre fami l i a do A l em
te j o, e r a u m dos mai s íntimos amigos do poeta .
Era -o desde a infanc i a : t inham fre quentado j untoso co l l e gio in g l ez da rua do Que lhas . Nascera na Ind ia . Os olho s e os cab e l lo s pretos
,os dentes a lv i s
s imos,e a côr bronze ada do ros to , denunc iavam
ne l l e o exot i smo da procedenci a,a i n fi u e n c i a do
sangue ori en ta l . Exce l l e n te rapaz e i nte l l igente , e r aum mag n ífi co c ompanhe i ro — d e ste s qu e não se se nt em , qu e não p e sam .
c A t zA n A s P OR'
rUGUEZA s 3 7
Como todos os cacadore s que são um pouco art i s t a s
,D i ogo não de sgostava d o pittore sco
,e tinha
,
de tempos a tempos , os seus capri chos de t o i le t t e .
Um d ia , depoi s de osten ta r a o s nossos ol hos deamadore s un s l i ndos ce i fõe s am a r e llo s d e pe l l e decabra
,preparada a co r d o ve z a , d ebr u a d o s de e n ca r
nado , e or lados de pha n t a sío so s fi o rõe s , abertos sobr e panno da me sma côr obra -prima d 'a lgum arti s ta anda luz — para comple tar o e ffeít o t i rou da saccaum barre te verme lho
,um f ez, com uma longa e fo r
n ida borl a preta , e pol - o na cabeca , ag e i t a n d o - o art i s t i came n t e . D iogo não era bon ito
,mas aqui a côr
sa lvava o de senho .
Um '
e sple n d id o model o para um F o r t u n y ! A pal eta comple ta — uma orgia de côr e s ! Vermel ho , preto ,encarnado
,ama r e llo , e s t r e lla n t e s , i llumi n a d o s pe lo s
ra ios do so l na scente,e de stacando sobre o fundo
gl auco do mar ! O que fal tou fo i o pin tor .
Chegou a vez do cigarro , e a bol sa do tabaco eo fuzi l de D iogo tambem e ram e legantemente hi stor i a d o s .
Depº i s de o accender , e l l e r e la n ce o u o s ol hos a legre s sobre nós
,acabando pe los pôr em Bulhão Pato .
No olhar d e D iogo havi a uma provocação á galho fa , na sua bôca brincava um sorri so ga iato .
Então Pato,que e stivera a olhar para e l l e , desde
a imprevi sta appa r i cão do barre te verme lho , di s s elhe , com uma grande se ri edade
Estás boni to,e stás . Parece s o bey de Tuni s !
O e ffe i t o foi fulminante , e a garga lhada gera l . Opropr io D iogo ri a como um perdi do .
38 CA c ADA s P OR'
l“
UG lílíZA S
ataque não fi cou,porém ,
sem répl i ca . Cruzad o s os fe rros , houve a lgun s co z/p s d e bo u t o n bemexecutados
,bon s ataque s e boas re spostas , propri as
de doi s j ogadore s que se conhec iam , que se e st imavam e que se re spe i tavam . Um assa l to de ch i ste spa ra a ri sota .
Travado sobre a su pe r fíc i e das aguas , parti c ipouda natureza d
'
e l l a s — os golpe s n ão e ram sanguinol en tos , mas e ram sal gados . E po r i s so lá fi ca ramno sa lso a r g
º
en t o .
E nós ainda a ri r,um barco a pa s sar perto
,e um
d o s fi l hos d o Lourenco a gri ta r- l he :—Aí
,minha perna
,sr . doutor !
Os varino s acudiram a resposta,n a l in guagem qu e
l he s é pecu l i a r,e que
,s e é propri a , não é correc ta .
El l e s u sam de braga s — mas n ão e'
n a l i ngua .
A s nossa s bate ria s vol taram - se então para e l l e s,e
quando,j á longe
,n ão o s pod íamos ouvi r , a inda o s
viamos ge sticul a r . Era uma d ive rsão aque l l a qua siob rigada
,en tre o s frequen tadore s d o r io .
A s ga ivota s vinham , as veze s , reconhece r—nos detão perto
,que , ape sar de n ão cu l t ivarmos e ste g e
n ero de sp o r t , s e e l l a s s e con ta s sem a i da , haviamde achar a lguma de menos .
Is to,porém
,e ra raro . Patos tambem
,s e passa
vam a o a l cance,eram saudados , mas de ord inario
a l teavam , ao ve r—n o s,e ape sar d o que se costuma
diz e r , não lhe s chegava o chumbo — não ca íam .
Um d i a fo i que o [ eve r d e r i d ea u — o prologoe steve quas i a s er a tragedia . A e spingarda de Eulhão Pato era a de Evba r — de ixara—a e l l e
“
car em
MZA l iA s [ 'U R I I u r l:/ x s
A lem t j u e r , n ude fu ra ca ç a r , e ( ]abra l , q u e d e la a t ru nxe ra , m a n d n i t lh
'
a u a ve spe r a . C a bra l — um g randee e Xpe r ime n t a d o caçador - e r a tudo qua ntu ha demai s cui da doso ;pu d ia -se -llt e chamar
,sem troca di lho
,
re i da s c a ute la s . Mas uma ve z t o d o s e rram, e
quando Bulhão P a to , que t inha o costume de darum l
'
u g a chn a e spinga rd a ,a nte s de princ ipi a r a a t i
ra r,n fe z sem a me n o r d e sco n li a n c a , porq ue nenhum
d o s p i st o n s t raz ia fulminante , d'
um d o s canos sa iui ncendiada a polvora sôlt a
,mas o o u t r o di spa rou um
ti ro a va l e r ! En ca r aí'n u —n o s t o d o s . Estavamos l'
e
lízme n tc i lle s o s .
O q u e n o s va leu fo i o t e r e l l e , tambem prudente ,d i spa rado
,como usava s empre , po r c ima da borda .
Hein ! di s se poeta de q u e n os e scapamos !Mestre Cab ra l d
'
e sta ve z e squeceu-se !E fo i e s te
, em tantos anuos , o un ico acc idente , queteve as somos de gra v idade .
E o mar,ne s sa s t rave ss ia s ? pe rgunta ra o le i tor ,
c urioso d'
e ste s pormenore s .Como a o outono se segue o i nverno , alg uma s ti
z emo s em que o c atra io d o pat rão Lourenço dan
ç ava um tan t o sobre a s aguas .
Um d i a, q u e nós t ínhamos e scol hido pa ra dar uma
sa ltada a o J unca l,amanhec eu-nos ca rregado o ceu ,
a spe rrimo sudoe s t e , promettendo de inun
40. CA CA DA s P ORTUGUEZA S
dar um Saha r a l. A r e so lu cão e stava tomada, e
nós fomos por te rra a Be l em . Lourenco, qu e n ão
nos v iera buscar , por ve r a fe i a catadura do tempo ,l evou—nos ao cae s , e ah i , com os bracos abertos e a s
mãos e spa lmadas , mostrando-nos a s ondas ve rde-e scuras
,cre spas , picada s pe lo vento , fran j adas de e s
puma,e o mar de serto
,di s s e -nos :
Os senhore s bem vêem . Nem um pau aocimo d
'
agua ! E a ccr e sce n t o u , para reforçar — Osoutros senhores que aqu i tambem costumam vi r , fo
ram - s e para ca saEntão você , Lourenço , não nos quer l evar .
Tem medo ? perguntou Bulhão Pato,o lhando depoi s
para m im .
Eu não , senhor . Medo não tenho,mas é qu e
os senhore s fi cam enxovalhados . Leval -os,l evo-o s
eu . Agora enxutos . Por i s so é que e u n ão re spondo .
E o intrep ido a l garvio e l l e e r a de Ferragudochamou, com
'
o mesmo rosto sereno , os âlho s , e sa ltamos todos para o barco . Armada a ve l a
, qu e ovento logo e n fu n o u , part imos . Atrave s samos
,com a
borda quas i s empre rente da agua , e , uma ou duasveze s
, ,eu sent i fugir o banco debaixo de m im .
Já e s t á morto um dos,nos sos companhei ros d '
e n
tão, qu e em tae s casos s e sentava logo em ba ixo ,
nos pane iros .
P r a t i co s do r i o , hab i tuados a viver n e l l e , os nossos homen s conhec i am—n -o como os seu s dedos ; a scorrente s da agua e do vento v iam- n - a s tam bem qu e ,ne sta manobra d e vi rar de bordo
,debaixo do vento ,
e x c i u ms r o n'
r u c u ez A s 4 l
o catra io o be d e c ia como um h n o corce l,qua s i sem
parar n a carre i ra , com ta l c e rtez a e r a fe i ta , tão a j u stados s e concertavam o s mov imentos do que ia a o
l eme com o que cambi ava o panno !Iamos faze r o ul t imo bordo
,mai s perto da terra
,.
e qu e e ra o mai s serio .
Agora ! di s se o ve lho Lourenço,com os olhos
na ve l a , ao fi l ho , que i a em pé junto do mastro . O
c atra io , que estava a tocar n o vento , parou um in stante , atrave ssan do ; a ve l a cambiou e e l l e seguiu .
Mas , nes se s momentos , quem vae no barco e n ão
é do mar , é qu e l he sente o bal anco .
Conforme e l l e d is sera,chegámos a sa lvo
,s e não
enxutos . A i n da a s sim a a spersão fo i l evi s s ima , sea t t e n d e rmo s ao que pr ome t t iam o céu , e o mar !
Bulhão Pato teve muita s mai s o cca s iõe s de a fi r o ntar torva catadura do Padre Te jo , e depoi s , aol argo
,a s temerosa s i ra s do Oce ano . Mas , como tanto
se pode morre r afogado aqui como la, sente- se umgrande prazer
,quando
,roçando pe lo perigo , l he e s
c apamos . pe l a tangente .
44 CA CADA s P ORTUGUEZA S
t i n u o pe l a s febre s . A s agua s do i nverno,e stag n ada s
em charcos,tornados paú e s , fermentando—as o so l
ardente da can icul a,evo lavam de s i mia smas mor
taes,que o vento n ão varri a , e que não poupavam
n em a s c r e a n ç a s , nem os adul tos .
Em dia s de sol , com o ar parado,aqu elle ermo
de scampado é uma amos t ra da pa iz ag em afri can a !Ao fun do
,para o lado do Oceano
,a s cabanas d e
colmo d o s pe scadore s,baixas e negra s
,e perto d ”
el
l a s a cape l l i nha branca ; de fronte o cemiterio , comos cyp r e s t e s e sguios , ba lo u ca n d o
-como nós — e n
tre a vi da e a morte , a e squerd a o Monte — aridarocha a pi que , com o seu aspecto de fortal eza ; ad ire i ta a prai a e o marNada mai s t ri ste ! Um dia
, em que la âqu e i , ouvi ndo , ao sol posto , o toque da s A ve -Mari as , d e uem mim ta l me l ancol i a
,que de sate i a chorar !
Não era ameno o s iti o , tampouco o foi , em t empos ,a fama : dos seus moradore s .
_ Anda fugido na Costa — e r a uma phrase corren te n a bôca do povo
,quando s e fa l ava d e a l gu m
criminoso faca n hu d o , que d e sappa r e ce r a d e L i sboa .
Tran sposto o Te j o,l adrõe s e a ssas sinos a l l i se
acoi tavam e e scondiam na s compa n ha s dos barcosde pe sca . A s sim escapavam no mar aos qu ad r ilhe iros de Li sboa
,quando l á i am pe r se gu i l
-os . Uma vi
( :A t ziu ms vo a'
r u o ín i z a s t o
s it a da j ust ic a a Costa — quando a pol íc i a e stavalonge de ser o que é hoj e — e ra uma exped iç ão ar ri sc ada , e quasi sempre inut i l .A c ivi li sa ção ja la chegou , e , s e n ão mudou a na
t u r e z a , mudaram o s costumes . A i n da a ss im n ão po
demos dize r que re i na a l l i sempre uma pa z octavi ana . Um d i a , logo depoi s de sa í rem de la o s nossosamigos , um homem
,chamado Damião
, fo i e sfa
qu e a do .
A cas a da sr .
ªMari a do A d r ião — o nos so hote le r a re spe itada , e nós , sa in do de lá , n ão faz íamos
«detença n a povo acão .
Os pescadore s , pobre gen te , quando ha pe ixe an.dam na sua fa ina ;quando e l l e fa l ta vêem- s e a portad a s choça s , ou na praia , olhando , tri ste s e sombrios ,p ara o mar a l to . E ' d'al l i que lhe s vem a ventura ea de sgraça . Aque l l a vida
,que para nós tem uma
grande poe sia,traz—l h e s s empre deante dos o lhos
duas sombras n egra s a fome em terra,quando e s
ca sse i a o pe ixe , e a morte , quando os su rpr ehe n d e o
'vendava l !Serios e concen trados , mantinham um discreto
s i l e nc io,quando appa r e ci am onde nós es tavamos .
Com os rostos semi -o ccu lt o s , os g abõe s ca ídos eml arga s prega s
,t inham um quer que d e sombras
,mo
v e ndo-se l e ntamente n aqu e lle fu nebre scen ario .
A nota a legre,un i ca
,mas esta viv i s s ima , e ram as
c r e a n ç a s . Essa s,s im
,que vinham sempre vi s i ta r
nos . Nós,para e l l e s
,e ramos a n o vid a d e — com o s
n ossos tra j os,armas
,e perdigue i ros . El le s — o bando
b ul içoso,sa l tão e gárru lo corr iam para n os , cheios
40 CA CADA s P ORTUGUEZA S
de pi ttore sco e de vi da . Uns de g abõe s i t o s pardos ,outros de camisol a s ri scadas , branca s , a z u e s , vermelhas ; a l gun s semi—n ú s , mostrando pe los ra sgõe s d ofato a pe l l e trigue ira , com os seus ton s fu lvo s ; todosdesca l ços ; os cabe l l o s , pretos lo i ros
,arru ivados ,
cre spos e revol to s ; queimados os rost inhos pe lo sol ,e cre stados pe lo norde ste .
A l gum,mai s atrev ido
, co lle ava , l en ta e so r r a t e i
r ame n t e , at é a ca sa do j antar ; os outro s miravamnos de longe por entre a s portas
, com os ol hos v i “
vo s , e sperando a sa ída . Poderi a a vi s ta sat is faze rlhe s a curios idade , mas nós , a e ste praz e r , puramenteopt i co
,a j u n t avamo s al guma co i sa mai s tang íve l .
Os pr imeiros a recebe r os nos sos don s e ram o smai s ve lhos
,os que nos tinham pre stado al gum se r
viço,que e l l e s
,no a cto
,não s e e squec iam de a l l e
gar . A e st a d i s t r i bu i cão seguia - s e outra , que e r a
ge ra l . A t i r avamo s para o monte .
Tinha qu e ve r então ! O bando prec ip itava- s eavi do e furio so , sobre a s mea lhas e sparsa s na area .
Era uma confusão v ivi s sima de corpos as r eba t i n ha s ,de cabec i ta s re sfol egante s e afogueadas
,de mãos
a d u n ca s , lu c t a n d o , qua l de ba ixo , qual de c ima , pe laposse do meta l . Aqui e a l l i
,d entre a r evôlt a mole ,
e rguiam-se al gun s , che io s de a le g r i a e de poe i ra ,mostrando orgulhosos o premio da lue ta . E e l l a r epet i a— se
,se um olho mai s agudo de scobri a no chão
al gum cobre,que aos outros e scapara .
Depoi s os vencedore s di sper savam . A l gun s , raros ,.
paravam nos l imite s da povoação,l evando a s mãos
aos barrete s , outros i am— se l ogo,
r e t o u ca n d o,a o s
CACADAS P o a'
r u d u em s 47
pu lo s , pe lo area l . Mas a lgun s ainda nos acompanhavam . Não e r a o amor
,nem a grat idão .
Não tinham apanhado nada,e vinham la s t íma n
do-se , até que al guma alma , impaci ente o u api edada ,repart ia com e l l e s o s u l t imos miudos . Um vintempara cinco , dez ré i s para Conta s d ífi i ce i sde fazer , mas que e l l e s lá reso lviam com a sua arithme t i ca de pequeninos .
Eram os p r emi o s d e co n so la cão .
Com t itulo s ba stante s para ser procurado pe lo s :
mestre s da venatori a , não os t inha e g u a e s e ste sít io
para se r frequen tado por senhora s . Quem al l i a sl evava , não e r a a fama das amen idade s do l ogar
,
e ramos nós , os caçadore s , auxi l i ados po r um certo .
e stimulo arti s t i co,o da curios idade do contraste
ve r a povoação dos pe scadore s , com as suas ca sasd e colmo , armadas sobre os barcos ! Um trecho daAfri ca
,á vi sta
, e a doi s pas sos de Li sboa !Da s c las s e s populare s tambem algun s a l l i iam fã
z e r a s sua s agapes campestre s . Mas e ss a s , n ão raro
,t inham um epílo g o comico , quando não tragi co .
Vinho quas i s empre,e,as vez e s , sangue .
Casa s d e cal e a r êa havi a lá então duas ou tre s .
Na parede exterior d uma d e l l a s l i a- se uma i n scr ipção
,em gros sas le ttra s d a lmag r e , commemorando
qu e a mode sta v ivenda fôra honrada , ta l di a , por
48 CA CA n A s P ORTUGUEZAS
um r e i nosso . Se bem m e recordo,foi D . João VI .
E tambem me mostraram o t inte iro d e fa i a n ca nacion al , pintal gado de ama r ello
,verme lho e ve rde
tons crus — de que e l l e s e serviu para e screver oua ss i g n a r n ão me l embro o qu e .
Este se rt ão , i n ho spi t o para gente cív i li sad a,fo i
,
.durante muitos a n n o s , t a lvez pe lo seu e stado denaturez a prim it iva
,um para í so para os cacadore s !
Um compl eto m a t t a gal, al to , den so , e espinhoso . Inve rno s hav ia , porém , aben çoados , em que pare c iat e r - se al l i aberto a a rca de Noé ! A caca d e arribacão em bando s ! Eram ab ibe s , t a r ambo la s , n a r ce j a s ,patos , ma ca r i co s r e a e s , g alli n ha s d
'
agua , bo r r e lho s ,t o i r õe s
,co d o r n iz e s , e depo i s l ebre s , e at é g a lli n ho
l a s e perdize s , que de sc i am do monte — tudo com os eu acompanhamento de ave s carn i ce i ra s
,corvos ,
gri fo s e m i lha fr e s !Quando Bulhão Pato comecou a fr equ e n t al—o com
o s s eus amigos , a inda o Junca l e r a i sto . Hoj e lembra o lo cu s u bi Tr oj a fa i t . Aqu í foi o Junca l ! .
Catado de norte a sul, d e l e ste a oe ste , d iz em-me
qu e n ão de i ta de s i quatro co d o r n i z e s !
Não vou la, ha talvez quinz e a n n o s , e no ul t imod ia as
'
m inha s perdiguei ra s l evantaram apena s dua s !Ephéme r o s todos os pa r aíso s ! At é o s dos caca
d ore s !
ÉQQSCÉ AÉ A ÉÉA É É ãºêm㪪êA 㺠ÉA õ
fºê-aªâ
Tªí, —Tª? QST D
ETajTªígôâº)
Uma caçada no j unca l
A l-Zmílío A ch i lle s Mo n t e v e r d e
A QUELLE d i a , ao romper da manhã — uma man hãde novembro
,fr e sca e luminosa — abi cava
ao cae s do Aterro,fronte iro ãRocha
,toda a
e squadri l ha do patrão Lourenco — tre s be l lo s cat r a i o s , governados po r e l l e , pe lo seu fi l ho mai s ve lho ,João — um rapagão d e s emba r a ca d o , e po r outro arrae s
,al to e membrudo como um athl e ta , e que hoj e
é mestre d um dos vapore s de Caci lha s .
Mocos e ve lhos,e ram todos marí timos as dire i ta s ,
e n aqu e lle s ba rqu i n ho s i am e l le s a pe sca , e po r l áa ndavam
,sem medo e a ventura , fora da barra !
Quantas veze s,para n ão fa l tarem á sua pa lavra ,
e l l e s nos vi nham buscar a l l i,t endo perdido a noite
no mar ! E i sto pe r cebiamo l—o nós pe lo arran j o dobarco, denunc iante d o servico da noi te . D a bôcanão lhe s saiu nunca uma palavra , que pode sse s e r
DO CACADAS,P ORTUGUEZAS
tomada como um encarec imento in tere s sado,um ap
pe l l o a no s sa gen eros i dade !João Lourenco já vin ha com e l l e s d e Belem
,tra
zendo as suasmelhore s e spadas—'
o!Thi er s
,aNo rma ,
o Ti ba u,e outros . A companhavam—n -o o Euseb io
,e 0
Joaquim Tavare s , da Junque i ra , como e l l e c readoda Casa Rea l , bo a e spingarda e s i z u d o companhe i ro .
Um exce l l ente rapaz .
Iam senhoras tambem com n o sco,mas
,s e eu e s
c r eve sse em e s tylo c l a s s i co , não poder i a dize r quenós fo rmavamo s o corte j o de D i ana
,a caca d o r a .
Nem a sr .
“ D . Mari a da Piedade,a irmã do i l lu st re
poeta , nem as outras senhoras , suas amigas , t inhama minima pr e t e n cão a sp o r t swomen .
A maré era boa,e aproamos a o Torrão , evi tando
o fadigoso tran si to pe lo are a l .
Bem ausp ic iado o dia . Encontramos logo as cod o r n i z e s a beira mar
,no princ ip io do matto . Cru
z avam -s e o s rastros , como de costume , mas os cãe s ,
pr a t i co s do te rreno e conhecedore s da caça , l ogode stri nçaram a meada . D
"ahi a pouco estavam todo s
p a r a d o s a mostra do que i a na frente .
Formoso e s ingul ar espectacu lo ! Impre s s iona atodo s e ste repentino e stacar dos perdigue i ro s . A
pa sso ,'
a trote,a galope
,que vam , ao sentirem a
caca proxima,fi cam de improvi so immove i s , na po
52 CA çADA s P ORTUGUEZAS
caca,que lhe s fugira . Não tardaram em achal —a , e
e i l—os outra vez e stac ados . No rma mantinha a d i ante ir a — a codorn iz t i nha—a e l l a apontada . E como j a'
não havi a defez a,porque e stava n o l imite do matto
,
e l l a pôz —se nas az a s .
O vôo,e s t r i du lo no arrancar , denunc iava um ma
cho . Naqu ella e s t a ção ,'
n a qu elle s l ogar es a s codorn i z e s encontram abundante e succul ento pas to n asmyr i a d a s de -pequeni nos ca r a co e s , que cobrem li ttet a lmente a s j o i n a s . A l l i s e preparam para a grandetrave s si a da sua emigração para a Afri ca .
Aque l l a,como não havi a ve nto
,voava ba ixo
,mas
di s tanc iava-s e rapidamente . Ouviu—se um ti ro . A cod o r n i z caíu .
A pontari a certe i ra foi de Bulhão Pato — pensaráo l e i tor
,que vae seguindo
,e as veze s ant icipando
,
o s fa ctos .
Não foi,e dev i a ser . Era o mai s ve lho
,o mai s
graduado — e ra o cabeça , o chefe .
Mas entre nós havi a um que,por ser o mai s
novo,o menos experimentado , s e e squeceu de tudo
i s so,e, e n thu s ia sma d o com os l ance s d aqu e lle jogo ,
não s e conteve . A codorn iz caiu redonda,mas eu
qu e fui o ta l at irador — t ambem ca í l ogo em m ime v i que , apesar d a pontari a certe i ra , havi a e rrado !Aqu i fi c a o meu — P eccam
'
.
Pato,confi ado em s i , t inha—a de ixado al argar . Não
vi u d onde part i ra o ti ro,e perguntou d e quem fôr
'
a .
— F u i eu .
Está bem . Bom tiro . De ixa-a vêr — di ss e e l l e .
— Es tãgorda . Mas aqui ha mai s . Vamos devagar .
n
U
n
CACADAS P ORTUGUEZA S
Effe c t ívame n t e a s parada s repeti ram- se,e d
'
ahi apouco d e z co d o r n i z e s t i nham al l i en contrado su a fim .
Escusado é dize r que foram quas i toda s mortas po re l l e , que e r a de todos nós a mel hor e sp ingarda .
Coitada s , como o seu desti no era a trave s sa r ume stre i to , pas saram po r um — mas n ão fo i o de C ibr a lt a r .
O sol ia apertan do . A s senhora s de ixaram-n o s , etomaram , com as creadas
,o caminho da Costa .
A' nos sa e squerda t inhamos
,em frente
,a vinha
do Miran da,bom abrigo para a caça
,e,a di re i ta
,
de scobr ia—se a prai a fron tei ra ao mar ;mas no l imited e l l a , a bei ra do matto , appa r e c i am -nos
,aqui e a l l i
,
al gun s l agos , qu e as chuva s do outono t inham fo r
mado . A agua e r a tão límp id a , que se l he v i a ofun do ; apenas al guma s moitas de j uncos lhe sombreavam a su pe rh c i e , que refle ctia a s rara s nuvemz i n ha s branca s
,que pairavam quieta s no ar .
A qu elle s l agos eram tentadore s . Se e l l e s t ive ssemn a r ce j a s .
— Vou—me aos l agos — di s se eu ao meu amigo .
Está-me sorr indo a i de'
a de la encontrar c erta s sen ho r a s .
Poi s va e . Eu não vou,não me quero agora mo
lha r . Tu não te importa s com i s so . Talvez l á e stej am al gumas . Eu ea vou andando para a t ap a d i n ha .
Eu fu i , e e l l a s l a'
e stavam . Não eram a o s centos ,
f"
3 4 CACADAS P ORTUGUEZAS
ainda a ss im encontre i a s bastante s para errar umaduzi a de t i ros . Mas não erre i todas .
Não se i o que a s n a r ce j a s t e em commigo , o queé ce rto é que eu —
q u e em theori a , a frio , prefi ro asperdize s e as g a lli n ho la s — quando defronto com el l as
,
n o s te rrenos alaga d i co s , que são o s s eus predi l e ctos ,perco a cabeça , e n ão ha l amas , n em agua s
,nem
lodos de m a r n o t a s,que me impeçam de as fuz i l ar !
Se r á a d iffi cu ld a d e d o t i r o Í/ ITa lve z . E é provave lque se j a , porque é a caca qu e mai s se e rra .
Entrar n aqu e lle s lagos era o mesmo que entrarem um t anque . A agua e stava tão fri a
,e em al gun s
e ra tão a l ta,que t ive de sa i r d um rapidamente
senti a j á um comeco de ton tura . O que n ão m e im
pediu de me mette r l ogo em outro,e de andar as sim
mai s d uma hora , a entrar e sa i r da agua , debaixod
'
um so l'
ardente , e num si t io tão se z o n a t ico . Masparec e que eu andava então a guarda de Deus ! Nems e z õe s , n em nada !A s n a r ce j a s ti nham j á d e sappar e c i d o deante de
mim n o s l agos , e a fuz i l ari a conti nuava a ouvir—s epara a s b andas da t ap a d i n ha .
Encaminhe i-me para lá .
Bo a caçada . Pato e stava radiante — a s co d o r n i z e ssa l tavam- l he da s j o i n a s aos pare s ! E e l l e j á s e h rm ava
com el l a s,por c ausa da bri s a que se l evantara , e tam
CAC /XDA S PORTUGUEZA 8
bem '
po r cau sa d o s cartuchos . Contava —as a e l l a s,e
ja o s contava a e l l e s, qu e i am ra re ando n o c in to .
Então a t ap a d i uha rende . d i s se - l he eu . Mereceo nome que lhe
'
po z e s t e .
E,
como vês . Tudo i sto e s t á che io d e l l as . Mastu tambem achaste n a r ce j a s .
Trago a qui c inco , mas fi caram-me la muita s .
Estão um pouco asperas .
— Olha o s c ãe s , Zacharia s .
Pal avras não eram dita s e t re s co do r n i z e s a sa ltarem . Estavam e spertas , n ão e speravam . Bastava
qu e o s cãe s a s apontas sem .
Tre s t i ros . Pato dobrou a duas,e eu mate i a te r
c e i ra .
—Dã c á , Thi er s . Olha,e stão m ag n ihca s . E di
z endo i sto , pas sava -me a mão um e sple n dído macho ,n egro e d e pe i to redondo . Todas a s s im — a ccr e sce n
t o u e l l e . E , a sa zão da partida .
João Lourenço appr o x im a r a - se com o s seu s com
pa n he i r o s . Estendemo—n o s em ordem , e a fuzi l ari acont inuou nutri da . Parec i a o ti rote io d uma l inha deat i radore s !Cruzavam- se
,por veze s
,os t iros , porque a c aça ,
e spal hada pe lo Juncal,i a- s e l evantando deante de
nós em toda a exten são da l inha . Os nos sos impr ovi sados mo co s d e mo u t e — r apa z i t o s do sit io , ques empre se n o s ag g r e g avam
— â cavam—se atraz , ade scançar n as raras sombras d o s m édão s , e Pato j ái a repart i ndo comigo o s de spo jos , q u e l he come ca
vam a pe sar n a rede .
A bri sa da 'manhã ce ssara,mas as n u vemz i n ha s
56 CAçADA s P ORTUGUEZAS
branca s quebravam,de quando em quando , o ardor
do sol, qu e n os prin cip iava a morder .
- Só a s melg asnos persegu iam
,obrigando-nos a fazer dos l e ncos
guarda-nuca s .
Aqui ha rastro d uma lebre , sr . Pato — di s se oJoão Lourenço , que i a atrave ssando um claro daare i a . E la va e e l l a ! — gri tou e l l e . Vae a o l ongo domedão ! A h i a sua di re i ta !Com effe i t o e l l a i a- se furtando por entre a s j oma s
e o s j uncos , ao s sa l to s . Estava perto de n os .
D eixa-a endi re i ta r a carre i ra — di s s e Pato .
Era a prime ira , que eu a l l i v i a .
Agora . E ati rou - l h e .
A l ebre , ao ti ro , deu um sa l to , e atrave ssou , co rtando pe lo Juncal . Ia fe ri da
,e os cãe s
,que a tinham
vi sto , segu iram- n —a, e não tardou que a agarra ssem .
Estava cr ivada de chumbo .
— Agora vae um cigarro . E vamos as n a r ce ja s ,emqu a n t o o so l n ão aperta mai s . Eu não entro naagua — ape sar do nome — mas você s n ão fazem ce
r emo n i a s,e sacodem-m
'
a s para fora .
Quando chegamos j a lá e stavam outra ve z a s r e
g a cha s, como lhe s chamam na provi nci a , e princ ip i aram a e spi rra r d en tre os j u n co sít o s , que bordavam o s l agos .
O t i rote io re dobrou en tão de in ten s idade,porque
e l l a s — ha pouco batida s por mim — andavam levantada s , e s al tavam umas atraz da s outras , a roda denós , c ruzando- se no ar em todas a s d i r e ccõe s .
A e st a e spe c i e são doi s o s momentos em qu e sel he pode ati rar — quando l evantam
,e então é um
CAÇXl) .XS P ORTUGUEZA S
t i ro de chofre , o u quando , depoi s de faze rem o s seu sz igzagues , e l l a s ace rtam o vôo . O mai s seguro écho fr a l-a s — o que , em todo o caso , é um tiro deaca so — porque
'
n ão ha tempo para apontar . Depoi sé quasi sempre tarde , ao endire i tar vam saindo doa lc ance .
Quem não é prat ico, e n thu s ia sma - s e
, da muitost i ros , e não mata n enhuma . F o i o que me su cce
deu nas primeira s veze s . O commum d o s cacadore sn ão gosta d e l l a s por i s so
,mas o s outros capricham
em emendar a mão,e vol tam . E ha ta l que as pre
fere a tudo .
O i l lu stre poeta j á então era optimo ati rador . Euadmirava—o , quando o vi a dobrar o s t i ros
,e tambem
ingenuamente me admirava,quando v i a cai r alguma
d a qu e lla s bicudas , que eu mal entrevi ra , ao d e sfecharPara arredonda r a conta das n a r ce j a s appa r e ce
ram doi s ma r r equ i n ho s .
Fe l iz a nos sa vi s ita a região dos l agos .
Curta s a s tarde s do inverno . O so l desc i a rapidamente sobre o hori sonte
,e a s nos sas sombras prin
c ipi avam a a longar- s e no chão . Era tempo de n o s
appr o x im a rmo s da Costa .
Iamo s subindo pe lo Juncal,quando a minha cade l
l a a J o i a que acabava de me apontar com grande
58 CACADAS PORTUGu EZA sfri eza uma codorn iz
,deu uma fi ada rapida
,e logo
outra,formando um angulo recto com a prime ira , e
fi cou—se como uma rocha . Uma n a r ce j a perdidaa l l i
,e que apena s sa l tou ca iu . E logo em seguida
uma codorn iz .
Fin i s sima perdigue i ra — cacada pe lo Manue l Candido
,da Charneca
,as n a r ce j a s , as l ebre s , as gall i
n ho la s e as perdiz e s — a primeira ve z que a l eve iao Juncal , vendo o s outros cã e s a cce so s n o rastroda s co d o r n i z e s , não fazi a caso nenhum d
'
e lla s i'
e'
p arava a ol har para mim,como admirada
,e x pr o
brando—me ta lvez o eu te l—a arrancado a o s s eusfrondosos p inhae s da Amora e de Corroios
,para
l evantar pa s sarinhos n aqu e lle area l ! D epoi s hab it u o u - se
,n ão deixava e scapar uma — m a s e ra só por
cump r i r .
At é chegarmos ao fim d o Juncal , as Cabanas , acaca não ce s sou de sa l ta r .
A h i t ivemos uma scena — armada de impr o x i so ,que s e apre sentou desde l ogo com torvo aspecto .
A o l ongo do caminho sobrance i ro,que atrave s sa ,
n o a l to do Junca l , para a s cabanas d o s pe scadore shavia uma nesga de chão , que o trabalho perti nazdo homem tentara tran sformar em horta . Em cima ,a bei ra d o ta l caminho , um poco exp l i cava , e , atéc erto pon to
,« j u st ifi cava aque l l a pr e t e n cão . Couves
de ta l o r i j o,e sgrouviadas
,e meio se cca s , e ra apenas
o que a l l i s e vi a !A ! e squerda
,em terreno mai s a l to
,duas choca s de
cólmo domin avam e sta hort icu l tura , pobre , t ri ste , eagre ste
,como toda a regi ão d aqu e lla costa . O couva l
bo ç A ç A o A s P ORTUGUEZA S
ç ava para e l l e com os punhos cerrados o u e st ari ala a lguem
,que o segurou ?
Quando n os , seguindo o me smo tri l ho de BulhãoPato , atrave s samos a horta e depoi s , trepando pel arampa
,pa s samos em frente da palhota
, o lha'
mo s pa r a
lá . No escuro da porta n ão havia n inguem
Vol tara o s i l e nc io aqu e lle s l ogare s . A nuvem n e
gra,que de repente surgiu , a turvar - n o s a límpi d a
a tmo sphcr a d aqu e lle formoso dia , d e sappa r e ce r a ,varrida pe l a vo z d o poeta .
D'
al l i a pouco e stavamos todos reun idos n a cas ade j antar da s r .
ªMaria do Adri ão . Ao l ado , na sal a ,de paredes e stucadas
,e tecto com re l evos — uma
surpre sa para nós aque l l a re s tauração — a menin aCaz im i r a e x t r ahia das gaveta s da s suas be l l a s commodas de polimento
,e mostrava ingenuamente as
senhoras,as ri quezas e o s primore s da sua guarda
roupa — cha l e s,ve stidos de côr e s garri das , sai a s com
renda s ti nas , camis as bordadas , l encos de seda deramagen s
,que tão bem fi cam
,e tanto rea lc e dam
aqu elle s rostos campesinos , ja i llum i n ad o s de ton squente s pe lo ar do campo e pe l o so l.
Uma fi gura g o th i ca — e s ta men ina Ca z 1m1r a . A l tae de l gada de corpo , nem pal l i da , nem cór a d a
,a vo z
d um t imbre a lgo dori do , avara de pa l avras , o s olho ssempre posto s no chão
,e um n ão se i que de tri ste
CACADA S P ORTUGUL'
ZA S
e enigmati co , davam-me a impre s são de quem n ão
anda sati s fe i to cá na te rra .
Estas fi g u r a s , _ qu a n d o te em uma pl a st ic a indiv ídua l , e caracter í st i ca , po r apagada que se j a ne l l a sa expre ssão da vida , são
,como as e statuas
,s u g g e s
t iva s . Imprimem- se i n d e leve i s na memoria,e entram
na gal e ri a d o nosso mundo inte rior . E ”
com e sta simagen s , cu j os con tornos o tempo vae e sbatendo .
que os art i s tas e o s poetas compõem o s s eus quad r o s , os seu s romances , e os s eus poemas .
Aque l l a donze l l a,se rena e s i l en c iosa
,recortava -se
a l l i , aos m eus olhos — de stacando d o di s corde scenario , e parec i a ter sa ído d
º
a lg um velho paine l flamengo , de Van Eyck o u de Meml ing — in te ri or decathedra l g o thica , ou comitiva ca s t e llã, em ca ç a d a fi
dal ga,com pag e n s , lebr e u s e fa l cõe s .
A 's Ave —Maria s v ínhamos nós n o s barcos , ja devol ta
,aconchegados na s mantas , fumando e conver
sando . Nos pane i ros o s cães , enroscados , dormiam .
Ouviam — s e,rio ac ima
,a s s inetas de bordo , e , para
o norte,o ti ro de peca da torre de Be lem annunci a
vã,com o seu ru idoso pregão
,o pôr do so l— um sol
poente de outono,i l luminando e doirando os a e r e o s
ca s t ello s das nuvens,tão cambiante s , d iapha n o s , e
fugit ivos,como os da minha phantas i a , n aqu e lle s
a u r e o s tempos da mocidade ! .
UANo o chegamos a Bel em vinha rompendomanhã . O mar e stava se reno
,o ceu azul fe r
rete e l impo de nuven s , apenas uma bri sali ge ira da terra encre spava a agua
,que corri a ra
pida na va sa n t e,mostrando aqui e a l l i grande s man
chas escuras,j unto as duas margen s , e em vol ta d o s
n av io s d al to bór do,surtos em frente do Lazareto .
O sol , erguendo—se detraz d umas nuven s d i aphanas , n acaradas , e com uns ton s .al a ran j ados n o centro
,parec ia affa s t a r brandamente a s faixas em que
tinha j az ido, e com toda a natureza acordar tambem
para o traba lho,para a v ida .
A s gaivota s,com os seus gri tos e s t r i d u lo s , cruza
vam—se no ar,e desenhavam as su a s graciosa s cur
va s,ora sub in do
,ora de scendo , a ade j ar , poi sadas
nas aguas quie tas,mergulhando n o s s it ios onde a
babu g em l he s a t t r ahía o s olhos penetrante s e gulo so s .
CACADAS P ORTUGUEZA S
Ja se ouvi a o rumor da terra.
,que pri nc ipi ava a
despertar . No r i o o toque das s ine tas , o virar dosç abr e s ta n t e s , a s cornetas a bordo , a vo z arrastadados ca t r a e i r o s , o som compas sado dos remos
,os
apitos d o s vapore s , tudo mostrava que a fain a domar começava a par da l abutação na te rra .
O fri o da manhã entorpe ce ra -me o corpo . Levant e i -me
,pass e i da pôpa para a pr ôa , a spi re i a pl enos
pulmõe s a bri sa do norte,saudei como um orienta l
o so l nascente , aconchegue i me lhor o gabão, acce nd ium charuto
,e sente i -me outra ve z , e puz -me a olhar
para tudo o que me ce rcava , neste vago s c i sma r
que sempre provoca em nós a contemplação d o sgrande s e spe ctacu los da natureza .
A ” dire i ta erguiam- s e as rochas n egra s e e scalva
das da Outra Banda ; a e squerda a s terra s e col l in a s averme lhadas do norte ;a c idade prolongando—s epara o fundo , e stendida em amph i t he a t r o . Aqu i ea l l i i llumín avam - s e as v i draça s das torre s e d o s mírante s
,as grimpas dos co r u cheus e campanarios , a
fr o n t a r ia'da A j uda , a torre da s Nece ss idades , a
cupol a da E stre l l a : os pr imeiros fulgore s do so l nascente i am accendendo n as a l turas , como fachos dealmena ras , focos de s lumbrante s de luz fa i scan te ev iv i s s ima
,que pareci am incendios , de spedindo os
seu s reflexos i r i sa d o s , fu lvo s e verme lhos comochammas . Ao centro , e enchendo o val l e pr o fu nd ís s imo que j az entre as duas montanhas , o r io l a rgoe t ranquil lo , re cortando- s e n as gra ndes curvas da smargen s
,aqu i pardacen to e e spe lhado , al ém em
plena luz ; be i j an do mol l emente a terra com o l eve
cA e Am s vo a'
r e u r íi z A s (35
e fre sco rumor das s u a s aguas,como um tímido
amante , que murmuras se o seu a fl'
e c t o a mulhe ramada ; de ixando depoi s na praia a s sua s pero l asv iva s e e spumosas , i r i s a d a s pe lo so l
,que pa r ec ia
be i ja l- a s tambem , embalando o s ba rqu i n ho s e legante s e os grande s navio s ; e indo depoi s po r uml ado l ancar- se no mar , e pe lo outro abri r , ac ima dac i dade , a larg a e adm i r ave l bahía de S anta A polon i a !
O mar in spi ra os poeta s , po r que tem a grandezae a sol i dão. Quem, no me io d a vasta exten s ão dasaguas , não sente o e spi r ito l eva n tado , e impe llid oír r e s i s t ive lme n t e para a contempl ação interior d o utros mundos , d outras épo ca s , . d o u t r a s sociedade s ,d outra s c ivi li sa ç õe s ? I so la- s e a a lma de tudo que ace rc a
,e l eva—se , e pa ira na s regiõe s da hi stori a .
Neste logar em que e st amos , quan tas geraçõe spas saram ! Quantos homens i l lus tre s vi ram este smesmos rochedos , aque l l a s me smas torre s , quea gora contemplamos , nós , que pas saremos tambemcomo e l l e s !
Sobre a s aguas do mar quanta s tragedi a s sangu in o le n t a s , quanta s batal ha s famosas , deci di ram dasorte “dos povos e dos re i s ! Aqu i — d i z o via j ante- é Sal amina , e j ul ga . ouvir o som das e spadas edas l anças nos e scudos gregos , acompanhando oshym n o s fr eme n t e s da vi cto r i a ! Aqui é-Actium , as
' CACADAS PORTUGUEZAS« s i s t e a fuga ' d e C l eopa tra , a deshonra
'de Ma rco'
A n
ton io ! Aqui é Lepanto, e vê as e spadas hespa n ho
l a s e i ta l i ana s t i n c t a s'
no sangu e dos orgu lhosos Osma n li s , de stroçados e me t t íd o s a pique ! Aqui é Trafalg a r , uma das feri da s sempre abertas no fl anco domoderno P
_
r ome theu ! Aqui é Navarino , e vê surg ira Grec i a l ivre !E n ós ? Não fo i d aqu i mesmo que l evantaram
ferro a s naus de Vasco da Gama ? E todas a s daA fr ica , da Ameri ca , e da Indi a ? Oh ! os mare s e o srios tambem teem sua hi storia
,e a h i stori a d o
Te jo anda l i gada a nos sa , no as sombroso períododa sua gran deza !F o i j á moda , e ntre certo s e spi ri tos , fa z e r
'
mo fa do
g rande , do e splen d i do r io . Sem ideas , e até sem
grammatica,al gun s di s s eram mal d e l l e , mas o Pa
d r e Te jo é generoso , e squece a in j uri a , l ava—a na suacorrente , e tambem o s
ª
lu s t r a a e l l e s , quando , poracaso —o procuram !
Ora fo i exac tamente n e ste ponto de l avagen s quee stava a gente do nosso barco
,quando e u acordei
da s minha s divagaçõe s . A tripul ação andava - j á n al abuta diurna .
t L ouren co — o a r r a e s enxugava com um'
pa n n o
os bancos,molhados pe lo . o r va lho da noite , em
quanto o fi lli õ '
ma i s v e l ho. l avava com o '
lambaz'
o
e xter ior do : bote .
68 CA CADA s P ORTUGUEZAS
ve lo s com a forca da corren te , e l avou a c ara. D epoi s fo i a proa , e - a j oe l hando , vol tado p a ra o so ln ascente
,r e so u . Percebi—o , q uando e l l e s e be n
zeu .
Novo para mim,e ine spe rado , aqu e lle pequenino
epi sodio,fi que i-me a s c i sma r n a qu e lla saudação
orienta l a qu e lle d ialogo de duas aurora sTerminada a re sa vol tou e sentou—s e no fundo d o
bote,a calç a r os s apatos para i r a terraJoão — d i sse o a r r a e s para o fi l ho mai s ve l ho ,
l eva e s se comt ig o , e a mãe, que te dê o gabão .
Talvez se j a prec i so , la para a tarde — comple tou e l l e ,e,olhando pa ra mim : O senhor ha -de quere r o
s eu c afé,ma s te nha paci enc i a de e sperar um “ nadi
nha,porque o ra io do fogare iro apagou —se , e agora
vamos a cce n d el-o outra vez .
Esta fre squ inho . Vae uma golada,Lourenco
Isto não e'
nada , j á pa ssa : é a aragem da man hã. Obrigado
,patrão . Esta é de Paraty .
E"
de Paraty 'no Braz i l, mas aqui é para nós .
O senhor s empre e sta com a caninha na agua .
Lourenco — o Lourenço da Pinha — e ra então onos so barque i ro . Bulhão Pato , José C a l ache , Lope sCabra l
,D . D iogo Bote lho
,Emi l io Monteverde
,quasi
todo s o s cacadore s de Be l em,n ão queri am outro
para a s suas e x cu r so e s ao sul .Tr igue i ro , robusto , curado pe l a b risa aspera do
Te j o, apez a r dos c incoenta j á pass ados , faz ia. go s tovel-o e ncarar o mar e o vento
,governar o barco e
mandar a compa n ha .
E ninguem a t inha me lhor : e ram os s eus fi l hos .
CACADAS P ORTUGUEZ AS
Quanta s veze s , durante a s nos sas trave ss ia s eu m e
su rpr ehe n d i a ob servar aqu e lle homem , aqu e lle s rapaze s — a lhe ios a tudo — fa l an do só na sua vi da
,sem
inve j as , e sem ambiçõe s ! Em terra o l a r aco n che
gado , al l i a bei ra d o I'
lO I,n o mar o s barcos — t inham
doi s — e a s rede s : n i sto se cifrava o seu pa ssado,o
seu pre sente e o seu futuro . Deus, o mar , e a fã
mil i a , e i s os ponto s ca r d e a e s d o mundo d aqu e lle s homens verd ade iramente s imple s — no bom sentido dapa l avra — e como hoj e só se encontram
,n aqu e lle
e stado de pureza , na gente d o mar e d o campo .
A qu elle s e spi ri tos , s inceros e crente s , eram virgen s de toda s as duvi da s , de todas a s negaçõe s domundo moderno
,e repre sentavam ao s meus olhos
o povo de outras e ras . Demoraram—se n a e strada dac ivi li sação , chegaram mai s tarde , e achavam- se n o
meio d uma soci edade , formada de e lementos parae l l e s de sconhec i dos .
Entre e ste s traba lhadore s i sol ados sc i sma d o r e s
forçados pe l a sua vida , ora embalados n o dorso da sondas
,ora sacudidos pe lo vento e n ão raro affr o n
tando a morte.
— e os operarios da s c idade s , sem educação moral
,e mui tas veze s pervertidos pe l as le i t u
r a s ,onde e l l e s pro curam o recre io e a i n s t r u ç ção , e
encontram o veneno d o s odios , das ambiçõe s vãs , eda s i llu sõe s de tanto v is ionario — hã um abvsmo
!
Um espir i to,cego e rebe l de , que i n fi u e a s ge raçõe s
7o CAÇADAS P ORTUGUEZA S
a c t u a e s , orgu lhosas pe l a sc i e n c'
i a, e d e sm o r a li sad a s
pe l a po lít ica , e l he s dá o valor para i n sul tarem todasa s j e r ár ch ia s e div i ndades , e , como o A j ax ant i go ,a ffr o n t a r em o c éu , de punho cerrado , não pode morar n o pei to d e ste s homen s , porque , quando o ventol evanta o oceano , l he erri c a a s ondas , e o faz br amar como um le ão enf urec ido
,e l l e s sentem—s e pe
qu e n o s deante de tamanha grandeza ! .
Ouviu - s e o toque da s ineta n a ponte d o s vapore s .
Era a re al i dade do mundo exterior a de spertar-meoutra vez das m inh as meditaçõe s . Logo depoi s , n ocae s
,a vo z do João Lourenço , o s l ati dos d o s cãe s
e as saudaçõe s amiga s dos companhe i ros , que vinham ao nosso encontro .
A bri s a refre scara um pouco . Armou- s e a ve l aarrumou -s e a gente toda a uma banda , e o catraiod o Lourenco l argou e seguiu ve loz , arfando , e cortando a agua
,que a lj o fa r ava a prôa com a sua e s
puma i r i sad a e bri lhante .
Lourenço con seguira,fi na lmente , aquecer—nos o
café : bap t i z amo l-o com a l gumas g o t t a s d um cognaca lambr e ad o e fi n íss imo
,e brindámos a l egremente a o
i gnoto , ao futuro ! O”
mocidade !A pp r o x imavamo -nos do su l : a que l l a trave s s i a com
vento norte faz - se de pre s sa . A Trafari a j a'
rumore
CA C XDA S
j ava : o s rapaze s e o s cãe s r e t o u ca x am na p í a ía .
Tambem lá e stava um amigo a nossa espe ra .
Emí l io Monteverde , rodeado de monte s de pe ixe svario s , dava as ul t imas ordens , como gene ra l eXpe r imentado , e nós fomos recebidos com todas a s honrasd o e s tylo e com uma saboros ís s ima ca l de i rada
,fe ita
a l l i,a o ar l ivre , e regada com um vinho branco ex
cepc io n a l. A melhor ca l de irada e o melhor vinhobranco de que he i con servado memoria .
I sto fo i ha muitos anuos . Que saudades d e ssetempo ! Lembram-me , ne ste momento , a qu e lle s sentidos versos da In t r o d u cção d o F a u st o , de G oe the ,que o Garre tt c i ta n as Vi a g en s n a m i n ha t e r r a :
R e su r g i s o u t r a ve z,vag a s fi g u r a s
Va c i l lan te s ima g e n s, qu e á tu rb adaV ista a cu díe i s d a n te s
Tr a z e is -m e a imag em d e d ito so s d ia s,
E d 'a h i se e rg u e mu ita s o mb r a am ada !
E lá,a o l onge
,perdidas n as b rumas d o e spaco
e d o tempo .. entreve j o agulha s de cypr e s t e s .
Ufma partida demestres
ERDIZ feri da com o s pé s de sembaraçados , emterreno que a a j ude a de fender- se
,qua s i sem
pre d a agua pe l a barba a c ãe s e cacadore s .
E as vez e s e l l a n ca lã, e então o big o d e é completo !I sto é ve l ho , e todos temos casos d e s te s para co n
tar .
Agora faze r uma codorn iz o mesmo , te r a s m e s
mas hab i l i dades ! . é mai s raro .
Andando eu a caça r no Junca l,uma d e sta s se
n ho r a s deu,dean te de mim
,sota e az ao F a d i st a ,
ome lhor cão que eu conhec i para co do r n i z e s n a qu e lles i t io
,então um campo unico de exame e prova s
pub l i ca s para bon s narize s de perdigue iro s ! Poi s e raum me stre na arte de cobrar o ferido
,o que se chama
um ti ra - te imas,tanto n i s so como em as l evan tar .
Aponto o l ogar da s suas proezas , e quemo fr equ e n
tou,hã vinte a n n o s
,fara i dea da s ventas do animal .
e,sobretudo
,da sua pertinac i a no ataque !
74 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
'
l zr a t e ima s é qu e e l l e se dev1a chamar , é o que
l he a ssen tava bem,porque d e fadista é que e l l e não
t i nha n ada ._ Com ,
e ffe i to n a da, n o, ,sen phys i ç o , ,lem
brav a o exterior d e s te typo ori gina l das n o s sa s c i
dade s . Parec ia mais um porco,do que um perdi
g u e i r o !
Pequeno e fe io - absolutamente fe io — rusti co,
gros se i ro,sem um atomo d e d i s t i n ccão . A pellag em
castanha escura , l onga , cre spa e hi rsuta , atarracadoe baixo de perna s ; a cab eça de um g o so z, os ol hospequeno s , sumidos e humil de s , a s ore lha s com a flex ibi li da d e d uma sol a
,e a cauda gros sa e curta
, com
um longo p in ce l de pello s na extremidade : e i s o i nvo lu c r o
'
e x t e r i o r ! Mais um caso do fe io de corpo , ebon ito de . nariz .
Genealogi a Não lh e e r a conheci da . Não havi a'
emtodo o re ino de Po rtugal e A l garve k en n el—bo o lc ari st o cr a t a , bu r g u e z o u v i l ão
,que lhe t ive s se regi strado
a ascendenc i a : e ra um e n g e i t a d o , um fi l ho das e rvas ..
Mas D'
A lembe r t tambem o fo i , e nem por i s so o filho de Madame de —Tencin de ixou de ser um grande .
sabio e fundador da Eu c r clop ed i af
. O nosso her o e , n ão podendo se r um grande sabio , re signou—s ecom a sua sorte
,e fo i um grande . cão de codor
n i z e s !
Vadio — tudo o que ha de mai s bohemio,faz ia e l l e
uma ou duas appa r i ç o e s po r d ia em ca sa de BulhãoPato , e a noite pedi a ho sp ita l i dade a D . D i ogo , queva i d o same n t e s e in t itul ava seu dono . Ahi , em ve s
pera de caçada,vigiavam—n —o cuidadosamente , para
que , a hora da partida , e l l e e stive s se pre sente a cha
76 ç AçA n A s P ORTUGUEZA S
A scen a do costume ! d i ss e Bulhão Pato . F a
d ist a ! Vol ta aqu i !O cão ouviu , l evantou a cabe ça , olhou para n os
,
e . continuou n a su a faina .
Repeti ram—se as chamadas em todos os tons ag udos
,e e l l e aos pul os , z igzagu e ando furioso po r entre
as j o i n a s , não arredava pé de la ! Ja'
l adrava !A l gum o u r i ç o . l embrava um .
Uma cobra . diz i a outro .
— Tudo i s so pode se r , mas n ós nem o deixamosca, nem havemos de fi car aqui
,a e spera que l he
pas se a phanta sia — e diz en do i sto encaminhe i-mepara a s j o i n a s .
Não sal tava n ada,e o F a d i st a amarrava - s e
,des
amarrava— s e , rodeava e c ruzava as moita s , l adrando ,e at i ran do—se para c ima d e l l a s P arec i a doido !Eu pri nc ipi ava a e star muito i nt ri gado com aque l l a
scena,cu j o desen l ace me appa r e c i a um pouco nebu
loso,e j a fal ava tambem ao cão , e j á apo s t r ophava
o mys t e r i o so , o e squivo an imal , que tanto s e e sco nd i a !
O que e s tava a l l i,que s e fu rtava con stantemente ,
e q ue o cão , por veze s , pare ci a vêr ? Umas poucaso de ix
'
e i l á sos inho , a contas com aque l l a i n cog n i t a ,
e outras tantas,dados a l gun s pas sos , vol te i atraz ,
parti lhando j á d aqu e lla e spec i e de fa scinaç ão , quea e l l e o pr e n d i a a l l iFinalmente
,depoi s de mui tos ce rcos
,vol ta s , r e
viravo l ta s e sa l tos,o F a d ist a deu uma pa n cad a a o
c entro d'
um ma c i s so de j o i n a s , e sa iu de l a'
com umacodorn iz n a bôc a ! Tr iu mpha r a a sua pertin ac i a .
(:A e ADA s P o a'
rc o vez i xs 7
A codorn iz , extenuada da lu c t a , agachou -s e,e
e l l e,que a viu
,abo co u -a .
Estava fe rida . d aza c la ro . Quem fôra ? Nen hu n s outros cacadore s
,al ém de n os
,andaram la
n aqu e lle dia , e n os de manhã , encontrando a l l i c aca ,
t ínhamos-l he ati rado .
Aque l l a codorniz, com que acabava de s e íllu s t r a r
mais uma ve z o nosso cão , e ra a l guma das quec humbámos , e que al l i s e con se rvou a e spera d aque l l e ma u zra zs qu a r t d
'
he u r e , que fo i o ul t imo capitulo da s sua s peregr inaçõe s .
O F a d i st a ganhara a parti da..
Coelho por lebre
A J o se Au g u s t o C a lache
EBA IXO dos pé s se l evantam os coe lhos e , ásveze s
, ao mesmo tempo , os trabal hos . Estecaso _que vo u contar , não fo i , mas i a sendo
serio .
Era n umerosa n aquelle d ia — um domingo — a
' cohorte d o s caç adores , que nos aprazáramos para oJun cal . Muitos
,e de diver sas procedencia s — o que ,
' se é bom para a variedade , é mau para a ordem .
Não eram os meus companhe iro s habi t u ae s , comtudo
,como fos sem todos conhe c idos e bon s rapaze s ,
correu as m il marav i l ha s a ca ç ad a . Havi a muita scod o r n iZe sg —e todos e st avam contentes . Tive r amo s
bom ve n t o .
'
á . i da , e a tarde pare ci a amena para avol ta .
Um be l l o'
. d i a d e'
ca ç a , emfim ;
Explorado o J u n call fomo s subindo , e a chavamo
nos defronte das Cabanas da Costa , quando deantede nós se l evantou um an imal , que partiu a o s sa l
l t o s , po r entre o matto , mais r a r o'
n a qu elle s ít io
(SACADAS PORTUGUEZA S'
Uma lebre l— gritou X,o m eu
companhe i ro"
da d i re ita .
— Uma'
lebr e ! repeti ram em toda a l inha .
— E'
um coe lho — di s s e e u ao ami go X. Não lh eat ire s — porque te ns de paga l-o .
E” l ebre — re spondeu e l l e,e avançou rap ida
men te , na d ire cção que e l l e l evara .
X era bachare l , e n ão desmentia a fama de quegosam os seus pa t ríc i o s : — e ra mui to te imoso , e levava muito tempo a desce r da burrinha — como secostuma diz e r . E como n aqu e lla o cca síão , não havi a ot empo nece s sario
,e l l e n ão desceu
,ati rou a lebr e , e
matou um coe lho !Um bicho enorme , e o que havi a d e mais manso !
Leg ít imo fi lho. da coe l he i ra , nasc ido e cre ado al l icom as couve s e as a l face s da horta .
Quando X vol tava com o i nnoc ente roedor suspen so da mão, acaric i an do-o com um ar guloso , masnão glorioso , di s s e—l he eu *
— Então para i s so foste tu a Coimbra formar—teem di re ito ! Para não re spe i tare s a proprie dade a lhe ia !At é a tua e sp ingarda e st a
' de bôca aberta ! Que ta la lebr e ?E'l l e — me t t i a d o . Que comprimento de nari z !
Santo D eu s ! P are c i a te r morto al guem .
Ca l l a- te,Zachari a s
,e stou deshonrado ! E então
dean te d e sta gente , qu e e u não conheço , e que mevae pôr pe l a s ruas da amargura ! . Não ten s ahiuma lebre , que me pas se s ?
— Para qu ê? Estas tonto ! Aqui de cada ve z . não
appa r e ce sen ão uma . Vamos andando . Mette o
c x t zAuA s P OR'
I'
UGUEZAS 8 1
c oe lho na sac a , «e diz - s e—l he s que fo i l ebre . Den trod a
' rede poder a pa ssar .
Estava , porém , d e c i d id o'
qu e o inc idente não fi"cas
'
s e por al l i . D'
umas'
choças a nossa e s'querda,saiu
uma mt i lli e'
ra ç a, g
'
o r dan chu d a , e detraz d e l l a , a po uc o s passos,
'
d o i s homen s , n ovo s , . reforçados , t r ig u e iros e bar bad o sª, d irig indo- se todo s ' para 'nos . Emfrente e do l ado da s Ca ba n a s, como
'
e r a domingo,
havi a tambem e spectadore s encostados as sebe s .
A matron a e r a a dona do coelho . O rosto coler ico , e o ar a s so
'mado .
Então“ os “senhore s ve '
e n'
f aqui ma ta r a «—cr e acão
d a voci fe'
ro u '
ella '
n'
um fa l set e, qu e não c
'orre spondia a o
'
ag i ga n t ad o d a e statura .
”
Su rpr ehe n dído co.m'
o coe lho n a mão , X travouu m
'
dialo'go' an imad íss imo com '
a ve l ha matrona , quen a o me
'
par e ceu lo'
g oªd e fac il composição . Naqu
'
e lle
pl e ito o r eu corr i a o ri s co de não sa lvar a s sua s prosap ia s
'
d e ca ç a dor . F ôr a apanhado em fi a g r a n'
t e .
— i al cr e a ç a o , t i a s i n hã? r ep l i cou e l l e ..
O meu co elho ,"í
e
'
si
se qu e o sen hor t em ahi n amão — di s s e e l l a com o gesto a ccu sad o r
'
e a vo z i rada .
Coe l ho ! A uma lebre é que e u ati re i .Ora ve j am observou um dos do povo ati
rou a ' uma l ebre,e matou um coel ho !
X i n s i s t ia em qu e er a- l ebre . A parte queixosa co r .
t r a d i tava , ace rrima ,'
que e ra
82 ç A ç A n A s P ORTUGUEZA S
Finalmente o doutor , forçado n o s ul t imos - entr inche i r ame n t o s , dec l arou te rm in antemente qu e n ão t in ha obrigação d e d i stingu ir l ebre s d e coe lhos d a qu e lletamanho , a quarenta metros d e di stan c iaA s e s sao pr o t r ahia -se , e po d ia , d
'um instante parao outro , tornar- se tumul tuosa .
Um confl icto a l l i s e r ía caso grav í s s imo . Eramosmu itos — ta*lvez d ez — e todos armados com e spi n ga r
da s d e do is canos , de carregar pe la cul atra . Comoeu to dos ti nham a m i;nha pa rte
, co sramava levar .
setenta cartuchos , a lgun s emba lados : Abat idos o s
qu e d i sparara , a inda me re stari am c in coen ta , E a
maior —parte dos f rú êu s companheiros'
n ão 'eifam li o
mens d e vol tar : a s costas . Mas tinhamos o r i o n a
re taguarda e haviamos d e embarcar deante do inimigo , e pe lo fi anco e sque rdo ter íamos contra n ós agente da Trafari a . Era um de sastre ce rto , e ,
n ão
poder íamos vol tar lá ma i s . Uma sen sabori a enorme .
Naquella s ituação uma pa lavra imprudente podiaprecip ita r o s aconte cimentos . X mant ive ra-se at éa l l i te imoso , mas correcto . Um dos outros é qu eprinc ipiou a a l te rcar com os homen s , e como as pal avr'a s — «diz o povo são como as cere j a s
,o dia logo
j á se i a azedando .
Era tempo d e i n t ervir na pendencia. Corn o, eu se i,
"
e nunca “
me e squeço , qu e e ste s casos , quando se
CAÇADAS P ORTUGUEZAS
Nesta a l tu ra do d ial ogo ti n ham-se aprox imado d emim
"uns pequenos, e um "d e l l e s d iz iaEl l e anda va por ah i fug ido
,ha mai s d e quinze
E verdade , s egundou o_ço u t r o ê e tambem ha
ma is d e vi nte. El l a “nem —j á sabi a d e l l e . Eu não lhedava n em uma de X.
'
Ch'amava-lhe um -fi go, 6 Z é .
A gora , sr .ª'Ma r g a r i d a , como n ós . n ão havemos
de fi ca r aqu i parados continue i e u , qu e não pe rder
'
a as palavras“ dos r apaz i t o s , vamos a fa l ar s erio
quer o coe lho o u dinhei ro ?— Ora e ss a ! Leve V . S .
ª o coe lho — e qu e lhe
faca muito bom prove ito .
Os pequenos continuavam os seus apartes .
º
— O t i a Margar ida , você'
?fez negocio . Tinha j áperdido o an imal , e agora compram—lh o !
De ixa-me re smungou e l l a sa cu d i d ame n t e .
Qua n to val e o bÍCho ? ,d ig a l á ;O que
,
o'
senhor "q'
i i íz e r dar .
:
Não me s erve e s sa '
r e spo s t a . D i ga quan to quer .- Nada , n ão , s e nhor : O que .V . S.
ª di s ser e stábem dito .
Então fi ca b em pago por doz e vi n t en s ?
Sim , s e n hor . Muito obrigada;Depoi s
,de l_h'
os da r , ai n da ín s i s t i para que e l l a fic as se com o coe lho . Era gra n de gen e rosi dade danos sa parte , mas , ao mesmo temp o , e r a boa pol it i c a .
A t i a Margari da re cus'
Oi i —se , porém , a acceít al-o .
Os olhos de t o d a'
a qu e lla ge n t e“
, há pouco“
ameaca d o r e s ,
"s eguiam a gora,s ere n os como os de “ s imple s
CAÇADAS r omDOUEZAS 85
e spectadore s,a s n egoc iaçõe s . Quem sabe se a l gu ns
já l he inve j ari am o dinhe iro , que e l l a acabava demette r n a a lgibe i ra .
A human idade é ass im . A nota mora l d a qu e lla
scen a ti nham—n - a dado o s aparte s d o s rapaz inhos .
Em V a l d e Z e b r o
ESSA no ite — a d e 28 d e novembro de i 86 .
u e noite , e qu e fr io ! — nenhum d e n os fa ltou ao praso dado
,que e r a a meia-l aran j a do
Terre iro do PacoR ecebe r amo s o santo e a senha de Lope s Cabralo chefe d a expedição — e al l i nos achamos todos ,
às tre s hora s da manhã , com armas cãe s e bagagen s .
Eramos muito s , e tantos que o Lourenco — o n o sso
barq u e iro , qu e o l e i tor j á conhece .
— trouxe ra doi sbp t e s ca t r aío s magnifi cos , costumados com e l l e a a f
fr o n t a r o _ma i' da barra .
Feita a chamada pre sente s todos os bote s atracaram ao cae s
, e procedemos ao embarque com as
caute l as '
.qu e exigiam o escorregadio do l agedo, asbotas ªpreg
'
ad aªsç ro s
'
cãe 's se n ºs em
88x x ?
ba r acavam er
o r a'
t raª'
zíiª, fi a s'êãva ba rcos
A n õ i te e s t áva e ra com “b Aª'
co rfiªp a r a'
êão
t em a côr loca l, e e ve r e i ra : quasi que n ão . n o s
vi amos un s ao s outros !Arrumada s a s bagagen s e os c ãe s , e di s tribu i
dos os l ogare s , armaram-s e as ve l a s , e l argámos ,aproando ao su l . Pouco a n tpS
.de nós parti rmos t inham caído uns l ige iros bo r r i fo sªi ma s o ceu l impara ,e só v i amos
,na ampl i dão imme n síã, as e stre l l a s sc i n
ti l l ar v iv í s s ima sUm de unos
,n
'otando o extraordin ario b ri lho d a sco n s t ella cõe s , d i s
'
se
-Lavaram a cara com a agua da chuva .
O dito fo i fe ste j ado e pôz -nos l ogo de bom__hu
_
rp o r' E a'
apre s en tacão'
do'
s intere s sante s caçadore s ?
A h i'
Va e L
Bulhão Pato .
. Jose Jac i ntho Lope s Ca bra l de Mede iros '
,d e
Vil l a Franca do Campo —.umme stre n a ar te d a cag a ,
perfeito em toda —a espe cie de t iro , e m'
ilag r o so . i i o .
das n a r ce j a s .
Il s ig n o r e Co sselli , marido dap r ima -d o n n a Ca r
lo t a'Mar c-bi s io , grande amador .
_de pi ntura e , ,d e , ca :cadas cavalhei ro mag r o , , palli d o , phys io n omia
dís t i n ct a,e l egantemente ve sti do . .
Mandava a de l i cadez a qu e e st e fos s e o prime i roapre sentado , vi sto s e r extrange iro — por
'
i s so p e ç ode sculpa da minha fa l ta .
Dr . José d A vellar — medico pe l a e scol a d e Lisboa — ín t ellíg e n c i a e fi gura e levadas , e um dos mai s
CAÇADAS r o a'
r u cvem s 89
formosos typos de homem,olhos pre to s , rosto ova l
e moreno, emmo ld u r a d o por uma be l l a barba preta
a s se t i n a d a , qu e dava .a sua phys io n om i a um aspec t o or i enta l , s eren o e mag e s t o so , como o d
'
um fi lh odo P r ophe t a .
Carlos e Jayme Br amão — e ste al to , forte e sym
pa thico moço e agradabi l í s s imo companhe i ro , ,
e o
outro , Carlos , . baixo , r e forçado , rosto franco e a l e
g r e , mui_to e stimado e'
d i s t i n ct o no mundo mus ica l .Este s t re s
,no segundo bote , são o João Louren ço ,
0 Eusebio , um exce l l en te homem e uma boa e sp ingarda
, e o
'º
J oaqu im Tavare s , da'
J u n qu e i r a , todo s j ánossos conhec idos .
,
Re sto eu — e a l não digo ;
Q u a n d o cheg ámo s atme i o ri o a c orrente da maré
vasau re. e r amapi d a a _ n qg t ad a , se qç a e ri j a , bo java a sve l a s , : e .met t ia r n o s
,a bord a n a a g u a .
, A n o i t e , ,ape sa r
do e scuro da lu a , não pod ia ser mai s bella, n aquellae sta
'
ção , ma s o frio tambem não podi a s e r maiorpen e trava nos at é aos os sos !
Vamo s ao .café , rapaze s ? di s se Cabra l .Lourenço
,Sse t
' á possivel faze r; l ume ?
Vamos a ve r , meu sen hor .E Lo urenco d e se n ca n t o o u da cas i nha do ca o com
pasmo nosso um fogare iro, e ca rvão , e ca r qu e j a , e
uma cafete i ra chei a d e café , e ch ícara s , e tudo
90 CAÇADAS PORTUGUEZAS
Um= esplendor ! Lopes Cabr alh ão . se e squece ra d ecoisa alguma , segundo o
*
se u costume .
Mas t e'
r'a pre ci so con tar com o ma r : uma vol ta dobarco voltou tambem o fogarei ro , qu e se partiu !
Mgldíçãõ ! clamgímo s nós , como um côr o d e
t raged ia ant iga .
A provi den c ia , porém , ve l ava ainda sobre n ós . O .
p r i n cipe'ma n d a r a comprar doi s fog arei ros , e a oper ação pr o se g u iu , a de spe ito da s i ras
"do Te j o !
Dentro do catra io o nos so aspecto e r a immen sa
men te p ittore sco , quando a s l abaredas da carque j alan çaram sobre n ós os seus c l aroe s , ve rme lhos e int erm i t t e n t e s .
norte. a : u n s dera ton s vi o lace o s , a .outros au
gmen t a r a a nat iva pa lli d ez . Os gabõe s, as manta s l i st r ad a s e os v i stosos co br e jõe s , var i avam d e a spectocom os '
effe i t o s da luz , vaga e in ce r t a r —A s —cabeça sd o s cães , friorentos , su r g iam
'
aqu i e a l l i , t entandoappr o x imar
-se do lume bemfa z e j o , e nós com os ded o s e ntorpec idos pr o cu r avamo s
,nas vasta s a l gibei ras
dos nossos casacos d e caça , a c i g a r r eír a amiga .
O Te jo , n aqu ella s paragen s e em noite s e scuras ,toma umas proporçõe s grandiosa s e imponente sparece um mar ! Os olhos , c i r cumvag a n d o , não eu
c o n tr avam senão a s luze s da illum i n ação d e Li sboa
qu e s e r efi e ct iam n a agua em l ongas fi tas tremula s-o » r esto e ram t r evas .
02 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
l adainhas . pi care scas , q u e nos faz i am est a l ar d eris o !F i na lmente s urgiu o c afé ,fumegante n as mãos doLouren ço
,que tomara aos n o s sos o lhos proporções
épica s , e “mag i ca s , de sd e que sa í ra vi ct o r i o so d a s u alue t a com as onda s r evôlt a s do ve lho r i o , apparecendo-nos co m aqu elle l íquido maravi lhoso , qu e va
l i a para nós , n aqu e lla s a l turas , —ma i s dº , qu e t odosos eli x i r es d e lo n g a . vid a dos ve lhos _
alch im i s t a s !
E rompeu um côr o d e .,a cclama ç o es —
_
tr,emul a s
de frio mas a r d e n t e s ,f. eri thu s ia s t ica,s .e convencidas— um côr o em vo z baixa i como a gen t e as vez e s
os : ouve « em S . C arlos , , sem ..a attenuante das tre shoras da madrugada , no meio do Te j o !E , porque o café e r a sup erior — Mok a l egi t imo .
Lope s —Cabra l , pr imo r o so n e s t a s co i sa s , achou umcafé soberbo d i g n o , d um pa chá d e tre s caudasphrase que na .bôca o cumulo dofausto e da r iqueza !Sobre o café appa r eceu um Vi eu x Cog na c
]fu e Champ a g n e conhec ido dos frequentadore s doantigo Ho t el. d
Í
Eu r op e, , e qu e t inha e n ca n ec i do , nalon ga ociosi da de de muitos a n n o s . O
, , Co g n a c daboa 'madame Radegonde !
Iamo-nos cheg ando a .te rra .
,En t r á izamo s no e ste iro
d e 'Valf d e Zebro .
Quantas horas são ? perguntou José d A vella r .
CACADAS P ORTUGUEZAS
Esta a romper o d ia — re sponde u um dos bar
q ue iros .
A i nda n ão — repl i cou outro .
Estavamos a accend'
e r um pho spho r o para ve r
«
quanta s hora s e ram ,quando
,de repente ªe sobre a s
n ossa s cabe ça s , uma pequena nuvem branca princ ipío u a t ingi r—s e com a mai s be l l a côr de la ran j a , quev i em v ida m inha ! Um des lumbramento !F icámos todos e x t a t i co s a olha r para e l l a , e Cos
.se l l i , qu e e ra arti sta,correu a prôa , agarrou—se ab
mastro , e al l i e s teve pre so d aqu elle formos í s s imoe spect acu lo , em quanto ell e durou .
-Bello ! b'
e'
llo l r epe t ia e l l e , extas i ado .
Era be l l o'
e e r a s i ngul ar ! Toda a a thmo sphe r a
ainda em treva s , e só a quell a n uvem com o d e slumbrante
"
color ido , forte'no centro e e sbat ido 'suave
rri e n t e'
nas Orl a s — refle'
ctindo -Se m a i s fraco n a aguadormen te ! '
Que deli c ioso e arrebatador quadro,se
fos se poss ive l r epr o d u z i l- o , como a l l i o v íamosVol tamos lá muita s veze s
,mas n unca mai s as s i s
t imos a uma alvorada como aque l l a ! F o i decerto ume spectacu lo seme lhan t eªqu e i n sp i rou a poes i a d ave lha Grecia , quando e l l a creo-u
“
a radios a fi gura da”
Aurora , abrindo , com o s'
d edo s rosado'
s ,'
as p ortasdoi rada s do o ri e nte ! ”
—A t teh cã'
o — di s s e Cabra l em voz baixa . Olhemah i — e apontou com ' a e spingarda para a nos sa
Bai xando os ol hos n a d irecção i ndicada , e afi i r
mando-n o s,vimos
,sobre a ag u a
'
t r a n qu i lla e ai ndan o e scuro , uma la rga man cha , mais e spe ssa e carre
94 CAÇADAS PORTUGUEZASgada , e , continuando a olhar , lo br igámo s dois vul tose levando—se sobre a mancha .
Uma enorme bandada d e » patos . Os do is vul tose ram as se n t i n e lla s .
Estavamos sobre e l l e s . Romp ia a manhã .
_ C i a a“
r ei ! — mandou o Lourenco . E d e vag ar . »
Os ca t r a i o s re cuaram . Estando mui to chegadosaos patos , o chumbo emba lado “ pouco destroçofari a ne l l e s .
*A um signa l de Lope s'
Cab r a l fi zemos fogo . Os
pato s ' l evan taram,mas n o
'
a r ainda os a l cançou a se,
gunda de scarga , e d uma e: outra fi caram mu i tos n a
agua , mortos un s , outros fe ridos , e force j an do po rse e scapar .
Este s egundo acto o d e re colhe r a caç a e stro
pe ad a é muito“
mai s an imado do qu e o pr ime iroo s barcos se guem—n -a , e os cãe s , sa l tando a agu a ,travam com os pa lm ípede s uma lu c t a d e ve loc idadec om pe r ípe c i a s , qu e a tornam d r ama t ica . Os marrecos defendem a vida . E então
,se a s margens e stão
proximas , e te em j uncos,onde e l l e s se ' furtem aos .
c ãe s,, ou e ste s ca n cem e desa i i imem , a lgun s man cos .
por lá ficam , pa ra con tarem aos outros da bata lha .
Levavamo s bon s cãe s para a caça d'agua , e por
isso foram poucos os qu e con segui ram l ivrar-se d ocapt i
'
Ve i r o . e do e speto .
CAÇAI 'AS P ORTUGUEZAS
Sa l tamos em t e rra e d ah i a pouco e stavamos a lmo ç a n d o numa ca smha de Val de Zebro
,muito
a ce i ada e ri sonha , cu j a porta , orl ada de trepade i ra s ,com a sua folhagem verde e as flo r i t a s verm e lhas
, .
contra stava a legremente com a ar idez da pa i z ag em .
A lmoço que l eváramos , é c la ro , ma s a qu e o loca l forne ceu
'
um contingen te de ,pr ime ira ordem
as ostras .
Ostra s,do Mont i jo , que n ós al l i encontrámos fre s
qUISSlm&5,' e qu e foram acompanhada s pe lo sequi to
a qu e t inham l egit imo d ire i to — um a lambr e ad o Bu
ce l la s — o Buce l l a s da quinta da s Romeiras — domarquez d e Ca ste l l o Me lhor !Boa caçada
,boas ostras , bons vinho s e melhor
conve rsa , ia j a' o sol bem a l to , quando algu em pe r
g u n t o u , se iriamos exe cutar o segundo numero donos so programma .
— A s n a r ce j a s ? di s se o Cabral .— 1 1 est u n p eu t a r d p o u r les be
'
ca ss i n es — o bse r
vou Co s selli .Tambem achamos . E
º
tarde, e o so lestá qu en te
d i s seram todos.
E fi caram 'a s n a r ce j a s para outro di a .
Uma caçada pr incipesca
A o d r . Ma n u e l Be n t o d e Sou sa
sr o , as veze s é sugge st ivo diz i a-me , ha dias ,um amigo
,a quem e stava mostrando as minhas
co lle ccõe s de gravuras .
Tinha raz ão o meu amigo . Uma d e s sa s gravura st i rada da Cha sse i llu st r e
'
e de 1 867— e que e sta
d e ante de m im ,traz -me viva a l embrança , com to
d o s os seus epi sodios , uma das me lhore s cacada s
q u e fi z emos , e que todavi a , por um aca so , é que não set ran sformou em tragedia para todos os que ne l l a t iveram parte !Um desenho de Riou
,apenas regu l ar . Não é pe lo
s eu m ere cimento , que eu s into prazer em a ver ,n ão , não é por i s so ; é porque , s endo uma pura phant a si a do arti sta francez , os quatro cacadore s , quen e l l a fi guram
,são quas i retrato s d e todos nós o s
co mpanhe i ro s e amigos que , um d ia , fomos , com
CAÇADAS PORTUGUEZASoutros
,at i rar a
'
s n a r ce j a s , nos a r r o z a e s de Va l de Zebr o .
Este a qu i , no prime iro p l ano , é Bulhão Pato , v i s tode costa s . Todo in te i ro como se costuma dizerum pr o díg io de sem e lhança ! A sua fi gura , os seuscabe l lo s l ongos , appa r e c e n d o deba ixo d um chapéude fe l tro , de abas l arga s , exactamente como o quee l l e traz i a , a sua tun i ca de belbu t i n a fr a n ce z a , e a s
sua s bota s a l ta s . At tentando ne l l e parec e qu e d aparte do art i sta houve a i n tenção de o retrata r
,como .
s e o conhece s se !A qu e lle mai s affa s t a d o
,a e squerda do i l l u str e .
poeta,e mai s a l to e encorpado
,com a barba toda ,
da-me o contorno , o—perfi l athl e ti co de Lo peS
'
Ca
bra l . Perna l to e br a c i lo n go , e s t á parado , pr omp t oa fuzi l ar a s n a r ce j a s , e a dob rar o s ti ros, como s e
at i ras se a co d o r n i z e s ! Estou a ve l- o com o seu j a
qu e tão feu i lle-mo r t e, o chapeu.
de pal ha , veteranode cem campanhas
,e a s a l ta s bota s fr a n ce z a s , for
rada s de gutta-percha, com que e l l e s e sent i a capaz .
de a fi'
r o n t a r todos os l ame iros,e as propria s tor
rente s do d i luv io !A l ém , ma i s l on ge , e stá um com a cabeca mu ito .
de e sco r ç o,mas que tem a corporatura do me u
amigo J avm e Br amão , e , fi na lmente , o ul t imo , oquarto , que vae atrave ssando o campo , ao fundo ,vol tando— se para o s companhei ros
,parece - s e com o
que eu era então,aos tri nta a n n o s .
Ao pé de Bulhão Pato, a e squerda , aqu elle ele
gante p o i n t e r branco , malhado , é a minha cad e l'la
a J o i a nome com que e u, pr o phe t icame n t e , a ba
I00 CAÇADAS PORTUGUEZA S
d r o s do Te j o , que vam dar a Val de Zebro . A um
e outro l ado as margen s , lódace n t a s , cobertas d umar elva z i n ha verde-escura , en cobrem , sob e s sa apparenc i a innocente
,um perigo , as veze s morta l , para
o s que se arri scam a pôr -l he o pé . Um abysmo d e
l ama,um sorvedoiro , d onde é quas i imposs ive l ar
r ançar-se,sem aux í l io extranho
,quem t ive r a i n fe
li c i d a d e de n e l l e cai r !Ia romper a manhã
,quando entramos no e ste iro :
C o n t avamo s encon trar patos , e não nos enganámoslá e stavam . A meio c aminho uma mancha e scurad onde se de stacavam duas s e n t i n ella s
,d e c abeça
e rguida,de olho a mira
,fez -nos engat i l har
,s i l en
c io sa e rapidamente , a s e spingardas , ape sar do frio .
que nos i n t e i r i cava os dedos . Ao me smo tempo so
p e avamo s com o gesto o João Lourenço,que
,pas
s ando para a pr ôa do nosso catra io , se preparavapara l he s dar a saudação matin a l .Neste momento todos con tínhamos a s re spi ra
cõe s , encurtavam-se as remadas,para evi tar quanto
pos s íve l o r u íd o , e ava n cavamo s , l entamente , sobrea mancha
,immo ve l na superfi c ie da agua . De re
pen teio João m e t t e u a arma a cara .
O João,n ão ati re . Por Deu s, não ati re . A i nda
e s tão longe .
El l e — um vete rano e squecendo-se d e que apruden ci a tambem é nece s sari a aos cacadore s
,ava
l iando mal a di stanc i a,e não podendo re s ist i r ao de
se j o de se r o prime iro a e s t r e ia r -s e,ati rou . O chumbo
d e u na agua doi s ou tre s metros para c á,e a ban
dada l evantou o vôo,di spersan do-se i ntac ta n o ar !
CA CAD .
-XS P ORTUGUEZA S 1 0 1
Uma de scarga gera l,mas pre cip itada , t i rou -l h e
muita penna,mas não ca iu nem : um ! Tinham a
pel l e ri j a,e guardaram a carn e para outro s caca
dore s .
E para mai s ca sti go nosso,logo adean te l evan
tou -se outra,maior a i nda
,que al l i e stava encoberta
po r uma curva do terreno , e que nos achou j á comas armas de scarregada s ! Naqu ella madrugada o s
patos fomos nós !A fa l ta de prudenc ia recorremos a re s i gnaç ão ,
ape llamo s para Santo Huberto e para a s n a r ce j a s ,e seguimos avante .
Os palm ípede s líbr avam - se nas a l tura s , a cemm e tros
,e pareci am-nos os seu s bando s r ede s trian
g u la r e s d e cruz inha s,de sdobradas no e spaco , e
l evadas pe lo Vento .
Um extravi ado ! — gritou um dos nos sos com
pa n he i r o s , que i a numa das chata s , que o Manue lda Charneca t inha al l í a nossa di sposi ç ão .
Lopes Cabra l,que di ri gi a a c açada
,faz i a as coi s a s'
em -grande,e mandara vi r quatro canoas , sem qui lha ,
para andarmos mai s l ivremente n aqu ella s aguas depouco fundo .
Era um pato , que vinha de pei to para nós . Ou
v iu - se um ti ro , e e l l e vo lt e o u de c abeca , e ca iu numa
da s margen s lodosa s . Ir l á bu scal- o , era arr is cado .
A in da as s im um dos barque i ro s,mo ç o e l eve
,atre
1 02 CACADAS P ORTUGUEZAS
veu -se a sa l tar , mas , a pouco trecho , e stava empegado até a barriga , e
i r a va n te n ão se a tr eve
Os cãe s do Cabra l ! . d i s se o que t inha atir ado
,e n ão queri a perder a preza .
A l gun s prote staram ; eu fu i um d e l l e s . Não val iaa pena arri scar um an imal d aqu elle s por causa d
'umpato
,porque , s e o cão não pode s se l ivrar—s e do
l odo,n i nguem o i a l á bus car . Cabra l
,s empre ama
v el para os seus companhe iros ,—
a de spe i to do per i go , mandou sal tar a agua o seu P r omp t o .
O P r omp t o obedeceu e a t irou-se l ogo ao charco .
Era um animal j a ve lho , e n ca n e ci d o no servico— cobrar o feri do n a caca d
'
agua fôra sempre asua e specia l i dade — e n i sto e r a d e primeira ordem .
O an imo tinha—o o me smo , as forcas é que lhe e s
ca s se avam ,e quando o vimos . d e sappa r e ce r numa
dobra do terreno , fi c ámos todo s com os Ol hos fi xosn aqu e lle ponto , com a respi ração suspen sa , como see st iv e s s e a l l i correndo perigo a v ida d um ho
D ecorreram uns i nstante s,que nos pare
c eram horas , até que , fi nalmente , v imos surgi r acab eca do bravo an imal
,muito affr o n t ad o , com o
pato n a bôca , parando a cada pas so , e fazendo
g rande s e sforços para se desencravar do lodo , em
q u e s e enterrava .
— Bravo ! Bravo ! P r omp t o ! g rít ámo s todos a umt empo .
Foi uma fe sta . Não o abraçamos , porque v inha
CACADAS P ORTUGUEZA S
Ni sto um gri to,uma exclamação .
Outro pato !O m a r r equ i n ho passou ao al c ance do Bulhão ,
e l l e fel-o descer com um t i ro de r e i , a l to , ma g n í
fi co .
Agora somos doi s — di s se o poeta , mettendo-ona saca , mas e ste é mudo e não faz versos .
O sol ía subindo : eram hora s de almoçar .
O nosso p avi l hão de caça , n aqu elle s s i t ios , e r a a
casa da s r .
ªLuz ia .
Entre os conviva s havi a medi cos,lít t e r a t o s , e arti s
ta s,e entre e ste s Co sselli .
Ninguem fal tou ao emp r a sam e n t o , e ã-hora marcada todos se achavam re unidos na povoação, emfrente da mode s ta ven d a
,ao ar l ivre , a sombra d um
ve lho pal aci o em ru ínas, d onde a s se z o e s impla ca
ve i s t inham afugentado para sempre os nobre s hãb i t ad o r e s .
Es tavamos nós contempl ando uns a n ima e s hera ldi cos — uns ursos muito fe io s —
qu e s e ameaçavamatravez d um br a zão , qu e pr o cu r a vamo s dec i frar ,quando nos appa r e ceu o Manue l da Charne ca — ç a
cador da Amora — acompanhado d outro , para n ós
de sconheci do , e que nos chamou desde logo a mt en ção .
Era um homem de tri nta a n n o s fe itos ; robu sto ,,
c x c x n x s P ORTUGUs s 1 05
trigue i ro , côr de aze i tona , nari z aqui l ino , cabel l o ebarba pre ta e revol ta
,olhos e scuros
,muito re don
d o s , com a pu p i lla'
a de scoberto o lhos d'
a n ím a l
de rapina . Tra j ava j a l eco e c a lç a s de saragoça , comapplica cõe s de panno d outra s côr e s . P hys io n om ia
e t ra j o n ao e ram d a qu e lle s s i tios . Pareceu-me l ogoum cigano . Era - o e ffe c t ivame n t e , e l egitimo .
Manue l Candido,i nte rrogado po r Lope s Cabra l
sobre a i denti dade do s eu companhei ro,affi a n co u -o .
E ' meu compadre,e andamos a caçar j untos
ha quinze d i a s . Não ha de have r novidade , s r . Ça
bral . Fico po r e l l e : e ste j a o s enhor d e sca n cad o .
Cabra l,como todos os homens prudente s e pra
t i cos , não gostava de andar n a companhi a de individuos , cu j o s h abi t o s e prendas e l l e des conheci a .
Poi s bem,s e j a a ss im
,mas tenha- o voc ê l á
com s i g o , porque nós c á n ão o conhecemos .
E caminhando para n os , di s se—n o s , com uma certavi sa g em e um me n e i a r de cabeça , que e lle tinhaquando a s coi sa s não l he corri am bem :
- Bast a de he r a ld i ca e de c iganos ! Vamos ao a lmoço .
O oiro e'
magico — com dinhe iro faz - se tudo . O
p r i n czp e tran sformara a casita pobre e humi l de , eimprov i sara a l l i uma sal a de j antar
,como as do s
me lhore s hote i s da cap i tal !O que vimos , ad entrar , não era a fumegante as
i o õ CA çA o A s P ORTUGUEZAS
s orda ru sti ca,n em o baca l hau
,pratos apre ciados
p e los e st oma go s qu e trabal ham em s ete d iamante s,
como diz i a o nos so chorado e ch i s t o so vi sco nde d eBe n a lca n fo r —
qu a n dó são a companhados com v inhomouro
,t i rado de sobre a mãe a nossa vi sta
,e be
b ido em a l tos e l argos copos de fi gura — n a phrasepi ttore sca dos amadore s , não , não era e s se o e spec t acu lo qu e s e n o s defrontava . A
l
s duas m e sa s reun idas — nós e ramos muito s — cobri a -as a lv í s sima elu xuosa t o alha
,
'
d e e l egante s e fi nos desenhos ; a baix ella e r a i n g le z a fi ore s ao centro . Não fal tava nada— n em os chr i s t o fi e s , nem os c r i s t a e s desdizi am dore sto e emqu a n t o a man j are s ostras , mortade l l ad e Milão , fi ambre s , sa l ame , peixe ,
“
a s sados,paste i s ,
torrão d A li ca n t e , emfi m os mai s aprimorados produ ctos da co s i n ha do Ho t el d u r op e e dos fornosdo Balt r e squ i ! E Borden s , e Buce l l a s , e Champagne .
Um fe st im do Café Ri c/ze ou do C/í'n g la i s , n um ca
se br e d e Coina !
O)
t emp o r a l O”
cacada s !De screve r uma d estas agape s rui dosa's
,ho j e , a
d i stan ci a de tantos a n n o s e empres a imposs ive l .D i s se - l he s que era sup erior o ele n cho d esta companhia . F i guravam ne l l a a rti sta s d e p r imo ca r t ello , e ,
para a tornar de primei ra ordem bastava-lhe a presen ca de "Bulhão P a t o
í
e stre l l a então n a forca davi da e na compl eta e fflo r e sce n c i a do s eu bri lhante esp iri to
,do s eu formoso ta l en to
,o poeta , d e quem
outro — Casti lho me d iz ia,por e sse tempo
, qu e dev ia andar sempre acompanhado d um s t e n o g r apho ,
qu e nos con se rva s se os e loquen te s e des lumbrante s
'
I08 CACADAS PORTUGUEZASa l guem se referiu a uma rece ita i n fallive l, para a s
caçar,a pé enxuto ! Uns servi dore s
,l eve s e sem rheu
ma t i smo s,nem receio de os vi rem a ter
,entram n o s
chabo u co s , e fazem n as l evantar . Os amadore s hyd r ophobo s
— n ão confundir com d am n a d o s — e speram-n a s , o ccu lt o s , e armados bín o c u lo s
,
v êem- n -a s poi sar , a l l í perto, a oi to ou d e z metros ,e fuz i l am—n -as , no chão , sem mi se ri cord i a ! Uma caç ad a i deal ! Era nova em fo lha : v inha na Cha sse
i llu st r e'
e . Bem diz i a o outro , que tudo se encontranos l ivros !F o i a cclamad o com calorosas gargalhada s o e n
g e n ho so e a n o n ymo i nventor d e ste novo me tho do
venatorio . Quando e l l a s se r e n a r am ,
!
J o sé d Ave llar
— o medi co que ha pouco fal l e cen — e que s e conse r va r a tri ste e me r e n co r io no meio da gera l alegria
,l evantou-se , e apontando para a s sua s a l tas
e e l egante s bota s tambem novas em fo lhadi s se :
— Poi s , meus amigos , eu , pe l a minha parte , n aoprec i so d e reco rre r a e s s a i nvenção , n ão careco dobi n o cu lo : subs ti tuo-o , e com vantagem ,
pe l a s obrasdo meu sapate iro . Esta s botas
, qu e ho j e ca l ce i p e l aprimei ra ve z . s ão a dm i r ave i s : a s outra s botas sãopara andar , e stas s ervem para e star parado , exactamente como os tae s caçadore s ! Agora
,emqu a n t o a
a l cance, n ão s ão d e s ete l eguas , dei tam muito maisl onge ! Não
'
são bota s,s ão doi s te l e
'
scopios ! Comel l a s não me e scapa n em uma n a r ce j a gal l e ga , d a sma i s pequenas !
Não percebo bem . ob se rvou um .
c a r./u ms r o a r u o u ez A s 1 09
— E' porque e u com e l l a s ve jo tu do . Se até ve j o
a s e stre l l a s ! Ca l ce -a s' voc ê,e ve r á !
A vo z de Jos é d A vella r e ra d o r i d a , mas as gar
g a lhadas re tumbaram , e s t r u g i r am , po r toda a ca s a .
Cabra l,que se l evantara para dar as suas orden s
para o regre s so da expedi ção appa r e ce u entre po rt as , j á armado , e com tom imperat ivo
,apo n t a n
d o -nos para o campo , di sseMessi eu r s, ces d ames n o u s a t t e n d en t . i
'
l/Ia r cho n s !
O dia e stava e sple n d id o . Atrave s sámos os tabol ei ros dos a r r o z a e s e d ir igimo-n o s ao p inha l : eraquasi certo encontrarmos al l í a s g alli n ho la s .
E , bom varia r d e caca , e depoi s t inhamos cãe sd e primei ra ordem , esp a d a s para tudo . E com assympa th i ca s bi cu d a s l evantar-s e - i am tambem n a r ce
j as,que segu ndo o costume , se teri am la re fugiado ,
e spantadas pe l a nos sa fuzi l ar i a . Para completar at r indade impluma d a tambem uma que outra codorniz s a l tari a
,de improvi so
,deante dos caçadore s .
Estava o te rreno um pouco encharcado : choveranos dia s an tecedente s . Entrados no pinha l os cãe sderam logo pe lo rasto da s g alli n ho la s . A minha cadel l a
,a poucos pas sos achou uma :
,mas era uma
me stra . Quatro l evante s lhe deu,s em eu l h e poder
a ti rar ! Não e sperava,mas a J o i a pareci a qu e a v i a
poi sar , tão certe i ra lhe acud ía a .r evo ad a ! Primoroso
i O CAÇADAS PORTUGUEZAS
animal ! Só quem vê traba lhar a s s im,deante de s i
,.
d e cabeça a l ta,a vent os , um p o i n t er , é qu e pode
aval i ar o praze r i ntenso , d r ama t íco,que sentimos n o
s eguimento d uma perd iz , ou d uma g alli n ho la , comoaque l la
,que mostrava conhecer todos os re cantos do
pinha l , on de tão bem se defendia , e s e furtava amos savi sta . Poi s se ha bon s o lhos
,eram os meus d e n tão .
Mas an na l sempre ve iu para L isboa,com as sua s
primas do arroza l . Q u e e l l a s , a j ulgar pe l o b i co , devem ter entre Si al gum parente sco .
Havia g a lli n ho la s no pinha l , mas não eram tanta scomo as n a r ce j a s em baixo , nos a l agamentos . Vo lt amos para e l l a s . Cabra l e Bulhão Pato pre fe ri amn -as : e ram doi s e specia l i s ta s e go stavam de fazertorne io .
Quando desc íamos a encosta,muito l amacenta e
e scorregadia , como e r a po sswel que a lgum de nósapalpas se a mãe -te rra
,e alguma e spingarda s e di s
para sse , ouviu - se uma voz forte e
'
br eve :
— Armas no d e sca n ç o !Iamos todos
,em magote
,descendo a rampa . A
'
minha dire i ta,e um pouco atraz — em se rra-fi l a
v inha o cigano ;— adeante de m im e um pouco so
bre a esqu e rda i a Lopes Cabra l . De repente ouviu- se um t i ro , que partiu no me io de nós .
Cabra l,um pouco e nfi ado , mas com o olhar fi rme , .
vol tou- se , e perguntouO que fo i i s so ?
Eu olhara para o cigano,que me segu i a .
O cão da e spingarda , qu e me escapou d i s see l l e
,com a voz-sumida .
I I 2 (SACADAS P ORTUGUEZAS
Apen as po z em o s d e novo o pe'
nos a r r o z a e s r e come
co u o t irote io . Ao cigano l evantou -se - l he uma narce j a
,e e l l e
,como para mostrar que sab ia p egar
numa e spingarda , chofrou - a, e tão de perto o fe z
que a e sfr a n g alho u- fi cou fe i ta num bolo .
Seguiu a caçada , e fi ndou sem ma i s in c idente s .
Este pas sou rap ido , e as s im como o céu,n aqu e lle
d i a,não t inha a mai s pequena sombra , que lhe ma
cula s se o puro azul,não mai s nos l embramos
,n em
do tiro,n em do desas trado caçador . Eramos muitos
,
e novo s , e portanto a l egre s . Nas nos sas a lmas haviatambem o azul do fi rmamento .
Um d i a cheio . E,graça s a Deus , chegamos a L i s
bo a todos e intactos . Quando e n t rãvamo s,ao cai r
da noi te,no Ba lt r e squ í, da rua
“ dos C apelli s t a s , adescan çar e a beber o copo da de spedida , entroutambem um amigo e conheci do de quas i todos o s
que a l l i e stavam,e,vendo um ce sto che io de caca
,
pergu ntou—nos quantos d i a s t inha durado a fe sta .
Fomos hoj e de madrugada — re spondeu Bulhão
— Então , s im , senhor . Boa caçada — boa de le i !Quanta s n a r ce j a s ?
C i ncoenta e c inco al ém do mais patos,gal
li n ho la s,e co d o r n i z e s .
A minha caca e'
maior,mas
,quando e stou fe l iz
,
o mai s que dou e um ti ro .
CACADAS P ORTUGUEZA S 1 1 3
Era Jos é Mari a de Carvalho Cos ta,grande amigo
d o c e l eb re Mira — o g e n er a l dos cacadore s do A l emte j o
,e s eu companhe iro nas famosas monte ria s aos
j ava r d o s .
P o ís « m e s t r e Cabra l , que al l i e s ta, a sua partematou vinte e duas , e dobrou duas veze s os t iros .
El l a s amam-n -o muito , l ançam- s e - l h e nos b raçosd i s se Bulhão P ato , olhando para o p r i n c ip e, quegostava immenso , e que r i a como um perdido
,
quando o poeta o faz ia a lvo d o s s eu s imaginosos e
p i t t o r e sco s grace j os .
Eu,continuou e l l e , trate i de não faze r ma
'
fi
gura , e ande i as s im ao r ez do Cabra l,menos o
d obrar,que em d obr a s é e l l e ma is r ico do que eu .
'Tem a fortuna de não se r poeta ! I s so l he bas ta .
E seguiu a l l i o t i rote io de chi s te s , em que B u lhãoPato não t inha r ival — porque os seus improvi sos
,
ne ste genero,e ram como uma de s lumbran te maj / o n
n a i se, em qu e se s aboreava ver ve fr a n ce z a , osa ler o andaluz , e a graça portugueza — tudo temperado por mão de mestre .
E,fi nalmente , para fechar d is se e l l e e por
q u e e st e s senhore s e stão a cair d e somno com a sminhas graças
,gostos não se di s cutem , e uma caçada
aos j ava r do s , comp o r t a s e uma pe s soa al l i parada , dearma ao hombro
,amigo Costa , para mim não é uma
caçada,é uma sentine l l a . Tenho dito .
E agora a quarte i s di s se Lope s Cabra l . Cosse l l i
, a u r evo i r .
Esta caçada , que foi para nós uma festa por tod o s os motivos i n o lvi d avel, fôra o ffe r e c i d a ao
'arti s ta8
I 14 CAçAo A s P ORTUGUEZAS
au s t ría co , qu e , na sua qual i dade de pintor , mostraraaos seus amigos de se j os de ve r os campos e a paiz ag em do sul do Te j o .
Devia fi car sat i sfe i to . Uma madrugada e sple n d i d a ,um formoso dia , op t imo s at i radore s , muita caça ,uma pa i z ag em sobri a de effe i t o s , mas caracte ri st i ca ,c avaco do ma is fi no
,rui doso
,al egre
,e espumante.
como o Champ a g n e ! E ,fi nalmente
,para qu e não
fal ta sse nada a um amador de t he a t r o , teve 0 a n
t ego s t o d uma tragedi a !
I 1 6 CACADAS P ORTUGUEZAS
t am,com ar sol emne
,os sít i o s onde ha caça e onde
a n ao hã '
, qu e mand am em tudo ; qu e passam o diaa cruzar o te rre no em todas a s dire cçõe s , fazendorodar a l i nha a todo o momento
,e
,dando , s em s e
ca n ça r em ,tremendas e stafas nos de sgraçados qu e
vam na outra ponta ! Uns senhore s muito amigos d es i,que n a s paragen s tomam a melhor sombra , ao
j antar o me lhor bocado,n as pousadas a me lhor
cama que teem sempre os melhore s c ãe s , a s me lhor e s e spingardas , e a s mais ext raordin aria s hi stor iasd e t i ro s raros e de fabulosas aventura s , com quemas sam cl ero , nobrez a e povo ! Verdade i ros i rma o s
t er r ive i s d e sta maçonari a de San to Hu be r i o , d e
qu e e l l e nos l ivre — a t i,honrado le itor , s e é s con
frade , e a mim emqu a n t o o fôr !O nosso amigo , poi s , n a qu elle momento o qu e qu e
r ia e r a almoçar , e ape sar dos meus prote stos , l evava -se como um galgo na direcção da ca sa
,para
onde o seu e stomago faminto despo t icame n
'
t e o im
pellia . Farto d e o chamar,vo l te i at raz
,em busca da
g alli n ho la , mas dona B i cud a não e sperou por mim ,
l evantou , e , a d e j a n d o por e ntre o s p inhe iros,su
miu- se .
E e r a uma vez uma g a lli n ho la , e uma caçada ! Dosa l agamentos n ão sa l tou n em uma n a r ce j a , n em uma
codorn iz . Uma sol i dão completa !A
's tre s horas , t ermi nada a exp loração dos terrenos , d aquelle s u be r r imo s a r r o z a e s , d onde BulhãoPato , Lope s Cabra l , Jos é C al ache , Antonio A lve s ,eu , e outros t r o u x e r am o s , umdia , c i ncoenta e c i ncon a r ce j a s , al ém d e patos
, co d o r n iz e s , e outras b iche
CACADAS P ORTUGUEZAS 1 7
zas , afamadas n a g a s t r o n om i a , di s se -me X — o ta lamigo — com ar me r e n c o r i o :
Bem , a ava l i ação d e sta s te rra s e d e ste s pi nhae spor ho j e e stá fe ita , podemos vol tar para Li sboa . Lál avra ras o auto .
Rimo—nos do grace jo,mas o ri so devia se r um
pouco ama r e llo .
— Para a outra vez se rá . Tambem nem sempre
g alli n ho la s l.
Como para tudo ha compe n saço e s , Santo Hubertol embrou-se do s s eus fi e i s , e , á vol ta para L i sboa , doi sep i sodios i n d emn i sa r am -nos da s emsabo r i a da malograda excurs ão .
Traz i a muita gente o vapor na coberta,a t r avan
cada,demai s
, com grande s c estos , malas , e bahu s .
Os pas sage i ros formavam grupos animados . Entree l l e s des cobr i al gun s , meus conheci do s .
Então boa caçada ? pergunto u-me um .
Nada,o peor pos s ivel . Viemos ás n a r ce j a s ,
mas o tempo aqueceu, e não vimos n em uma . E gal
li n ho la s , uma por j un to , e e ss a mesma l evantou , e .
foi-se !Poi s eu fu i mai s fe l iz , rep l i cou e l l e ; e , de sv ían
do-se um pouco , mostrou-nos se i s magn ifi ca s ga l l in ho la s , pre sa s pe lo b ico , secu n d um a r t em, e oste ntando- se — como uma e stre l l a sobre uma das e scot ilha s env idraçadas do vapor .
I 1 8 CACADAS P ORTUGUEZA S
Dou-lhe os paraben s , di s se eu . Onde as encont rou
— Longe . Venho do A lem t e j o ,”
e d e l á a s trag o .
E não repare em e u estar a ss im ve stido . De ixe i l átudo — fa rpella , cãe s e e spingarda .
Com e ffe i t o eu notara a e l eganci a e a impropr iedade do tra j o do fe l i z cacador . Sapatos de po limen
to , calça pre ta , fr a k , capa a he spa n ho la , e sombre iroa l to ! Comt u d o podia ser .
Então vol ta para la ?
Vol to . A inda l á vou e star un s d ia s . E ia a ffa sta r- se .
De ixa -as a l l í ? ! Olhe que li aNão tem duvida .
Ficou por aqu i o dia logo . Havia l á , a um cantoun s olhos negros , que o chamavam , impac ientes j át a lvez da long a ausenci a .
Sente i-me , olhando ora os pas sage i ros , ora o céu ,que me o ffe r e cía um espectacu lo be l l i s s imo — umpôr do sol de s lumbrante , ora a s g a lli n ho la s , juntodas quae s e stavam d e p é un s , qu e me parec iamciganos
,de rostos trigue iros e agudos , os ol hos grande s
e re dondos , os nariz e s a d u n co s . E,ao vel-os al l i , pas
sava -me pe lo e spír i t o a idea d e qu e o meu di tosoconfrade não chegari a ao cae s do Terre iro do Paçona pos se effe c t iva das suas se i s g alli n ho la s .
Ao meu l ado vi e ra s entar-se outro col l ega caça
I 20 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
Todavia , decorri dos minutos , os ingenuos e se n
t ime n t a e s foragidos vol taram ao vapor ! E novosgritos agora de admiração e de r e go s i jo saudaram o seu regre s so !Se o amor os l evara , o amor os trouxe , porque
nas gaiol a s tambem vinham “a s pombinhas,sua s
companhe i ras . E e l l e s vieram .
d a l d i s i o ch i ama t e
como do Paol o e da France sca de Rimin i d i s se ogrande fi orenti no .
Um i dylli o a qu e só fa ltou um Anacreonte , parao tornar immorta l .
Chegamo s ao cae s . D e semba r cãmo s , e eu , depoisde me despedi r dos meus confrade s da má fortuna
,
entregue i,na Arcada , os meus cãe s ao fi e l Me n
d o n ça , ant igo sol dado , honrado homem de grande sbarbas
,que g o sava e merec i a a confi anca de todo
o bai rro da Estre l l a .
E , e stava e u parado a e squina da rua do Oiro,
a e spera d um carro,quando vi app r o x im a r - se o
meu fe l iz confrade .
“Olá !O senhor v iu aque l l as g alli n ho la s , qu e e u tra
z i a .— di sse -me el l e com um ar dubio , e r e t i ce n
ci a s em cada pal avra .
D e certo que vi . Eram sei s . Fal ta -lhe alguma ?
pergunte i,l embrando-me logo dos c iganos .
CACADAS P ORTUGUEZA S 1 2 1
— Falta-me uma . Quando desembarque i ache i
S i nto muito,mas eu é que n ão a tenho . E leve i
a mão a saca , para lhº
a mostra r .Or a
'
e ssa agora ! Eu,nem por sombras
— Poi s Sim . Está c l aro que nem por sombra s ,mas ve j a sempre ; pode e l l a te r-s e cá m e t t i d o , sem
eu dar por i s so C on sol e - s e , amigo , que aindalhe de ixaram cin co . Eu avi se i- o , para que a s guardas se , mas o s e n hor não fez caso . Queri a gosar d o sseus t r i umpho s . E por i s so pagou a patente .
Para a outra vez se re i mai s acaute l ado .
Lembre-s e de que a o cca s ião fa z o l adrão .
E com um nariz mu ito compr ido , tão compridocomo o da sua chorada bi cu d a ,
l á se fo i o fe l iza rdo ,favori to de D i an a .
Encerr a e sta h i s tori a doi s s egredos . Nenhum d e l l e sé raro , mas o encontro , a coinci denci a dos doi s , é qu eé curiosa e pi can te .
Para m im cacador de raca qu e ainda aquime e stou de l e itando com esta s narrativa s d e ha vi nt ee t r i n t a
'
a n n o s , uma g r a d e de mai s , ou de menostão frequen te s são e l l a s en tre os que n ao s ao donosd e Mafra ou d e Vi l l a Vicosa e r a quas i i n dífferente . D e toda a maneir a eu tinha-me divert ido .
Nessa s o ccaSi o e s , senti a—me domin ado por umaverdade ira febre . Trez d ia s ante s j á eu a t i nha , e tre s
i 22 CA çADA S P ORTUGUEZAS
d epoi s a inda e l l a durava . Uma ca ç a d a d um dia traz i a -me entreti do uma semana !
Ve r romper a manhã em terra , ou sobre as aguas '
atrave s sar a s l argas campin a s da lez i r a embrenharme pe l a immen sa fi ore sta dos pinhae s do su ldo Te j osol i tarios e sombrios ;e spre itar , aqui e all i , um 10
g a r e j o rusti co , p ittore sco , i sol ado , perdi do numa e ncosta erma e pedregosa ; de scobri r ao lon ge umapaiz agem verde j ante
,enquadrada entre duas r e n qu e s
d e a l to s pinhe iros,e logo occu l ta pe l a massa verde
e s cura do e spes so arvoredo , ob servar un s effe i t o s
de sol n o de l i c ioso verde e oi ro dos pampanos .
Tudo i sto,que e u g o sava i nten samente , supri a—me ,
nos maus di as,a ausen ci a da caca .
Mas para os que n ão são art i s tas,uma ca ç a da é
um pe r ío d o com uma só oração, e e ssa é portanto
a princ ipa l . Tirada e l l a não l he s re sta nada . Ou ante s resta no e spír i t o uma impres são , ta lvez egua l ad um j ogador
,que perdeu . Gastou
,e não ganhou
n ada .
Depoi s ha as fam í l i a s,as senhoras — a s nossa s e
a s sua s amigas . Para urnas e outra s a caca é umariva l , n aqu e lle momento preferida . E então , peranteum r eve z , e l l a s , l onge d e t erem a generosidade dasgrande s a lmas
,são impla caveís ! .O drama da caça ,.
para nós,pas sa- se no campo
,mas e l l a s as sobi am-nos
em ca sa,qu a n do não vêem o epílo go na mesa do
j an tar !Sol te iro
, e sem fami l i a então , quando eu re col hi aa Li sboa
, e pendurava a minha saca , vas ia d e caca ,não havia a l l i
,ao pé d e m im ,
n inguem qu e o extra
[ 24 CACADAS P ORTUGUEZA S
— Eu tambem não . Encontre i c i n co perdize s, e
não trouxe nenhuma . Mas não diga i sto , porque eu ,ao pas sar pe l a Praça , vi lá uma g alli n ho la boa e
fre sca,e comprei- a , para l evar a l guma coi sa para
casa . Você compr ehe n d e
C ompr ehe n d o , s im . Pol it i ca domest i ca .
Ecl aro — di s s e e l l e,e fo i -se .
E tambem i sto podia se r .
Poucos di a s depoi s , contando eu , numa reun iaod e caçadore s , os pequenos epi sodios d e sta excursão , quando ve iu o das se i s g a lli n ho la s;um dos pr esentes
,a ri r muito , di s se
Poi s,s im , senhor , não fo i má parti da . A s se i s
g alli n ho la s v i —a s eu comprar n a e stação do Barre iroa um regatão , dos que a l l í vendem caca . D a morted aqu ella s e sta o homem innocente .
E quem lhe pi lhou a e l l e a bi cud a ? Foram os c i
Qu'e foss e uma boa parti da , n ão o dire i eu , porque ,comprada ou ca ç ad a , e r a d e l l e , mas para a v íctima ,quando , ao de sembarca r , d e u pe l a fal ta , foi decerto— uma má chegada !
M M É M É
Campinos n a lez ira
O m a i or a l
A Bu lhão Pa t o
ISTO da pa i z ag em , como emtudo , os gostos sãod ive rsos . Uns gostam dos t e rre nos l evementeacci dentados , outros da s a lta s s erra s — eu ,
s em a s de sprezar , prefi ro os gran des p l ainos , asle z i r a s s em fim
, que'
me dam a idea,a impres são
d o mar sem l imite s .
Os meus terrenos , para caçar , s ão a lez i r a e os piu bac s . E na lez 1r a a âg u r a qu e mai s gosto de ve r é ocamp ino — o g en u ín o , o typo anti go , de barre te verde'ou pre to , col l e te forrado e av ivado d e encarnado ,calção d e fi ve l a , mei a d e l ã , e sapato d e prate l e ira .
Se eu fosse s enhor d e terra s no R ib a—Te j o e stet ra j o , o tradic iona l , e r a d e r igor nos meus cre adosn ão l he s a dm i t t ia a ma i s l eve a l te ração» Si n t u t
s u n t , a u t n o n s i n t .
1 26 CACADAS P ORTUGUEZAS
O l e i tor perdoará e sta i rrupção do l at im em pl enacampina — mas an te s l at im qu e fran cez — e d'ahie sta s que stõe s d e gosto — que stõe s d”arte para mim
,
que vivo e me preoccupo tan to com estas fr ívo li d ad e s , como outros com a pol i t i ca e outras materia sde a l ta transcendenci a — são da maior importanci a
,
e não acho d e mais uma c i t ação z i nha da l ingua mãe .
C i tari a até sa n s k r i t o . se o soubes se .
O campi no e'
,d e todos o s hab i tante s da s nossas
terra s — a l tas e b a ixa s — o mais e l egante e typico .
Nenhum lhe so fªfr e o confronto n em os dos p l a i
nos , n em os das serras , n em os da s costa s e arribasdo mar . A um tempo povo e fidalgo é peão e ca
va lle i r o . No olhar , no porte , tem o quer que de sen ho r il, de superior , de con sc io d e s i , sem vaidaden em o s t e n t a cão .
— É o que ê— e no meio da lez i r a ,o seu todo — não e l l e — parece dizer-nos
,quando
vae cortando , ao passo seguro e fi rme do seu ca
val lo , e com o pampi lho desca ído sobre o hombroNós — eu
,o meu cava l lo
,e a minha vara aqui
governamos : i s to é no sso !
El l e o seu cava l lo, e a sua vara l Este s tre s ele
mentos con st i tuem a i nd iv idu al i dade campi n a — o
guardador .
O homem,nasc ido e creado no campo , e por a s
sim dizer entre a se l la e a manta , e'
e n t r e sêcco ,
muscu loso,agi l , e bravo — como os a n ima e s , os
a 28 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
O seu caval lo — é como e l l e rust i co e sobriot d e sco n hece os co n cheg o s , ós conforto s da c ivi li sa cao .
Nunca dormiu numa bo x e l egante,n unca l he ve st i
ram pa n n o s de côr e s de li s tõe s variados,nunca se
m ostrou em campos de corri da s,n em gal opou
,n a
p i s ta , ouvindo os hu r r a hs d o s sp o r t smen e n t hus i a s
m a d o s . E ) fe io,e squ a li d o e h irsuto
,se o comparar
m o s com um corredor , um cha r g er de raça , e e s te“ ven ce -o n a c arre ira . Mas em servi-co , no campoao frio , ao so l , e às chuva s e u vo u por e l l e .
A vara o pamp i lho — comple ta a phys i o n om i a d ohomem com e l l a é o camp i n a , sem e l l a um campon e z a cava l lo
,como outro qua lquer . A um tempo in s i
gn i a e arma quando a empunha sente -s e r e i,t em
ne l l a o scep t r o , e a l ança , e com e l l a di rige , governa. e c asti ga os seu s i n d om i t o s e feros su bd i t o s !Coi sa s in gu lar e sta íi g u r a , tão ori gin al , mixto de
p a s tor e de sol dado,cu j a vida — perpetua bucol i ca
,
ás veze s cortada por uma tragedia — n o s parece tãosuggest iva de poe si a
,t em passado , e squec ida dos
poe tas,e n ão li g u r a no cancion ei ro popu lar da nos sa
' te rra l
A n d avamo s ás co d o r n iz e s nas hervas . Com bonscãe s , e quando as ha , é boni ta c acada .
D e repente um aguace i ro e m c ima d e nós . Nãoo fi
'
e r e c i a outro abri go a immen sa le z i r a, qu e se
, e sten di a dea nte de nós,a n ão s er uma barraquinha
,d e pa lha -
p o n t e ag u d a , que se vi a , l á ao longe , noW i o .da campina de serta . Corremos para l á .
CACAUA S P ORTUGUEZA S 1 29
Maiora l d a l i c e nca ? d i s se J o sé C al acheum dos nos so s companhe iros di rigi ndo-s e a o campino
,un i co habi tante d i
aq u e lle palac io .
Os senhore s , podem entrar . O caso é caberem— re spondeu o guardador , l evando a mão a o barre te verde .
Era um homem de quarenta a n n o s —
.
meão d'e s
t atura,forte e atarracado , tri gue i ro , a barba rapada ,
um pouco p icado de bexiga s , olhos c l aros , o lhos dehomem val ente — o que l ogo , a primei ra v i s ta , e l l ed enunc iava pe lo bem pl antado da hg u r a e pe l a fi rmeza dos movimentos .
A chuva durou p'
ba s t a n t e para n o s molharmos .
Nós a chegarmos a pa lhota , e e l l a a para r . Saímospara fora
,e emqu a n d o faz iamos e a cce n d iamo s um
c igarro,tinha— s e travado conversa com o maiora l .
A cem metros de nós e stavam os toi ros un s animae s negros , de boa e stampa .
— D e quem é e ste gado ?- E
7 do dr . Jos é Vaz Monteiro .
— E que ta l ?
Não é mau de todo . Os senhore s lá o vêem em
Lisboa .
Olhe,lá e stão ,
aqu e lle s doi s a quere rem brigar— d i s se eu .
Jos é , vae la.
O Jos é,que a s s im fo i mandado faze r a po líc i a
do campo,e ra um pequeno de d e z a n n o s , ro l i ço e
forte,mas de quem nós n ão d e r amo s fé . El l e não
he s itou — t inha- o j á fe i to tanta ve z ?— e , sa l tando d o
c aminho o n de e stavamos para a le z i r a , fo i dire i to9
1 30 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
aos toi ros,e com doi s berros e quatro ma t a cõe s de
terra, qu e ati rou aos d e so r d e i r o s ,
'
a cabo u a contenda .
Er a um domingo .
_ Faz hoj e o ito“
dias , i a aqui havendo u ma d e s
graça . D á-m e o seu l ume ?Tome la um charuto .
_ Muito obrigado — eu não fumo d l
i sso . Quemme tira o cachimbo , e o _cigarr i to . Poi s fo i as s imcomo lhes digo . Estava .eu aqui — al l i na barracaa comer , e va e qu e oi ço , de repente , uns gri tos
d e homem a fi i i c t o Quem me a co d e l? quem m e
aco de l? Sl
alt o'
lo g o fora , e o que havi a d e se r ? Umalma do diabo , montado num burro podre
, e ,um
dªaqu elle s toiros — aqu elle , e apontou um caraca
a contas com e l l e , j á para sa l tar a va l l a , e sta val laaqui ! Ái , senhore s , debaixo dos p é s s e l evantam o s
trabalhos ! — bem s e diz . Eu não se i como aqu i l iofoi : t inha a l l i
,fe l izmente
,a egua e a vara . Num
pr ompt o e stava em c ima do t o iro l. Mas podia—m e
l evar . o diabo o canastro , qu e e l l e é o mai s Va l e ntedos qu e t enho a minha guarda ! Custou-me a v ira l—o l
Queria i r a ma cara para cima do homem , e deume agua pe l a b arba para o arrancar d i aqui . Em
fim , como eu era pes soa co n heç i d a , l á me obedeceudi s se e l l e
,sorrin do do s eu gracejo
,e mostrando
uma fi ada de dente s brancos e curtos .
Se eu aqui não e stou , e r a um homem perdido .
Ahi fi cava e str ipado,e l l e
,burro e tudo ! E olhem
qu e a cu lpa e ra só dº
e lle . El l e propr io m'o di s se .
Sempre ha cada homem,que mai s lhe val i a ser
burro ! Ao menos ninguem se enganava com e l l e s .
1 3 2 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
ha u m de svio , e l á va e um corno pe lo pe ito ou pe l abarriga dos qu e e stão bu lli a n d o , e e r a uma vez umtoiro ! A inda ha poucos di as qu e i s so aqui a conteceu .
E o maioral,para fechar e comme n t a r a n ar ra
uva,co n ú n u o u
— I sto é,uma compa r a cão . Arma- s e uma que stão
com amigos nos sos , e uma pes soa quer apa r t a l-os ,e va e
,entra , e mette a nava l ha ao meio , e por d e s
graça apanha um corpo dea nte d e s i . A faca faz asua obrigação . .
Aqui o campino , qu e não t i rava os o lhos da ma i
nada,gritou para o rapaz
— 'Pára ahi,Jos é — que e u l á vou .
E,sa l tando d ,um pulo p ara cima da egua , j á com
o pampi lho às costas , di s se -n os— Adeus
,meus s enhores . De scu lpem
,mas vou l á
eu . Não m e facame l l e s a l guma de sfe i ta ao pequeno .
E , meu fi l ho .
E part iu,como um ra io , a galope , pe l o c ampo
fora .
Nós vol támos para as co d o r n i z e s . Havia muita sna lez i r a , e fi zemos boa cacada .
Na Con tada —Velha e Sesmar iasdeSua j
ªlltez a
BENAVENTE
A J o sé Q u a r e sma d e Pa u la .
oi á vol t a d 'uma grande cacada , em dezembro'
de que Bu lhão Pato me di s se vi s i tan do -o'
e u n a sua casa da rua da s PracasJá vi ste
,l á em baixo , o que ve iu de Benavente ?
Uma das maiore s cacada s que tenho fe i to . A qu i llo
e ra uma arca de Noe — menos tigre s e l eõe s ! F o ipena qu e nao acompanhasse s ;mas havemos de lá irjuntos . E qu e hosp ital i dade ! Has de gostar muito donosso Quare sma . Que aconchego d e cas a ! Havemos d e « l á i r os doi s — tornou e l l e a diz e r-me . Hade se r para o anno . Q u e a entrada d
'
e ste fo i umassombro
, e provave lmente n ão se repete tão c edo ;mas
,em todo o caso , aqu elle s pinhae s sempre d e i
tam de * s i muita caça . E depoi s , que abertos q u esão , e qu e p i so ! A i n da se r e sen t em do qu e foram
1 34 CACADAS P ORTUGUEZAS
Pinhaes r e a e s ! Has de gostar — afi i a n co —t 'o eu .
'Equando d e sce r e s ,
'
apa r t a o que quiz ere s . Cá em cas an ão se come —tudo .
Um ann'
o depoi s,quas i dia por dia
,numa be l l a
manhã de dezembro,part íamos d e Santa Apolon i a .
com dest ino ax Benavente .
O tempo uma formosura — o ar fr io , o vento norte .
al to , o-
ce
'
u sem uma nuvem,e na s nos sas a lmas
muita a l egri a . E”
ca so
/
d e dizer aqui — o i ro sobre azul '
Na Azambu j a e n t r amo s no barco, q u e nos
—
haviade l evar
,pe l a va l l a
,ate
'
Benavente . A l ém d e nós i amdois pas s age i ros
,um cavalhe iro dªaqu e lla v
'
i l l a,e um
advogado d e Li sboa,o sr . dr . L . F .
,que eu então
apenas conhec i a de vi s ta . Este e r a con soc io d e Eulhão Pato , n a , A ca d em i a d a s Sc i en c i a s .
A co n ve r sa cão , a qu e a .principio me conserve ia lhe io , versou de sde logo sobre li t t e r a t u r a , como eranatura l : houve
,porém
,um momento em qu e eu que
bre i a minha hab i tua l re serva,apoiando o'meu ami go
n a di scus são . Esta entrada deveu d e c erto parecerextranha ao i llu s t r e
'
j u r i sco n su lt o . O barrete d e ' lã
pre to , qu e eu l evava de sc ido até aos o lhos — a man hã e stava fri a — a manta d e l i s tras , os ce i fõe s , a spol ain as
,os sapatos de prate l e i ra
,o cinto che io
'
d e
cartuchos , a e sp ingarda , e a tre l a d e cãe s , qu e se
g u r ava n a mão , todo e ste co n ju n ct o e r a de certop ittore sco , mas ninguem suspe itari a
,vendo-me a s
s im tra j ado,quem e u e r a .
A s s im e'
que e u costumava sair d e casa , fossed ia o u fos se noite . Quando tencion ava demorar—me
,
a mal a l evava a s ve ste s ci dadãs . Era mai s commodo ,
1 36 CAÇADAS P ORTUGUEZAS'
Conta Loui s V i a r d o t , nos seu s So u ven i r s d e cha sse
, qu e um di a em que szr Robert Pee l , tão grande
po lít i co como apaixonado Sp o r t sma n ,andava, com
grande comitiva —de amigos e c reados,caçando n o
No r fo lk sh i r e , um dos con dados da Escoci a mai s abundante s de caça notou
,en tre os bat edore s , o reve
rendo cura da freguez i a cathol ica lQuem sabe o qu eé uma cacada n aqu e lla s te rras , compr ehe n d e r a o r eparo e o e spanto de s i r Robert ! O g ame-bo o k — diarioda caca — da re s idenc ia para onde Vi a r d o t , em 1 855
,
fora convidado,regi stava em cinco dia s de caca no
mez de outubro de 1 853 — doi s mi l quatro centos equatro fai sõe s ! R epa r e o l e i tor bem — que n ão e ramco d o r n iz e s , nem perdize s . E mesmo qu e fos sem .ca
lha n d r a s .
Quando ' chegou a hora do lu n ch, o i l lu stre e stadis ta
,dir igin do—se ao reverendo cura , e apontan do
para o ca j ado que e l l e t i nha na mão,perguntou- l he
se nunca havi a ca cad o .
Pelo contrario,re spondeu o cura — cacei muito .
Mas j á“
lhe perdi o gosto .
Eu acreditava qu e e s se gosto nunca seQuando é que deixou de cacar ?
— Quando deixe i de errar .Si r Robert fez com a bôca um t r eg e i t o , que que
r i a d izer que l he custava a a cr e d i t al—o , e qu e os gaba r o la s appa r e c iam em toda a parte ate
'
no condado
(SACADAS vo a'
rUGm—j z i xs 1 37
de Tyrone e sob as ve ste s humi l de s d'
um cura d 7 a ld êa !
Este percebeu .
D u v id a e s ? J u lg a e s que min to ? P e rm i t t ís queeu prove o que di sse ?
E,pegan do em uma das espin gardas de s i r R o
bert , quando r e com eco u a cacada , po z - s e ao l adod
j
e lle , e com do ze t i ros,e uma po r uma , matou
doze peças . Então , vol tando- se para e l l e , di s s el he
A caba e s de ve r , que eu fal ava verdade . Foide sde que de ixe i de e rrar
,que eu perd i o '
amo r a
caça .
E,dita s e stas pa l avras
,re sti tuiu - l he a e spingarda
,
com que j u s t i fi ca r a'
tão bri lhantemente o qu e di s sera
,e retomou o seu logar n a l inha d o s batedore s !! r ev .
º prior de Be n aven t e ,'
qu e com outros amigos seus e de Bulhão Pato
,nos ve iu e sperar n a
ponte,e cu j a hosp ita l i dade i amos recebe r
,não po
deri a ta lvez di sputar o campionato d o ti ro com e stei dea l cura e sco sse z , ade strado em rtão opulen tas capoe i ras — quero diz e r em tão opul entas co u t a d a s º
mas o que posso affi rm a r a'
e vi sa , é que ,'
duranteos quatro di a s que durou e sta noss a cacada
,não
me lembro de elle “
e r r a r um tiro .
E ' v erdade que a s g a lli n ho la s e a sç
'
pe r d iz e s n ão
sa l tavam aos mi lhe iros,como nas abe n co a d a s t erra s
que Vi a rdo t — o fe l i zão teve a ventura de e x plo
rar : todav ia , s e e l l e n ão e r a i n fallive l, s e não atti n'
gira aque l l a semsabo r o n a perfei cão digamos a ve rdade o nos so amigo José Quare sma era uma boa
1 38 CACADAS P ORTUGUEZA S
e spingarda — a g o o d sho t , como e l le s dizem — osin su l ares do Re ino—Un ido .
Não seri a aqui de e x t r a n har uma pequeni na amostra da minha e r u d i cão archeologic a , l imitada q u efos se as ant igas cacadas r e a e s n e sta s coutadas e sesmari as ; mas , com a mão na con sc ien ci a e n a memori a
,dec l aro, e at é j uro , se prec i so for , que neste
momento sou comple tamente ignorante em todosos cap itu los da archeologi a be n ave n t i n a .
O que e spero me perdoarão os meus sab ios co ll egas da Commi ssá
'
o d o sMo n umen t o s ;porque , quantoaos l e i tore s; e sse s darão graças a Deus d
i
e s t e m e u
exce s so de con scien ci a,e d e . i gnoranc ia .
- Fiquemos poi s na s cacadas moderna s , e fi camosbem .
Benavente e ra,com e ffe i t o
,merecedora do s gabos
do'
meu i l lu stre amigo . A pura verdade,quanto e l l e
m e d i s se ra de coi sa s e pe s soas .
O te rreno a dm i r ave l— quas i p l ano em toda a parte ; mag n i â co s o s pinhaes , d i s t ahc i a d a s as r e n qu e s
do arvor'
ed'
o, .de forma a poder— se segui r por entre
e l l a s uma gallinhola'
a t odo o a lcance do t iro ; e da sv inhas e mattos
,que marg in avam os caminhos , at é
debaixo d o s pé s d o s cava llo s,na propri a e strada ,
sa l tavam as co d o r n i z es!
' E,como se i sto n ão fos se bastante para nos sa
I40 CACADAS P ORTUGUEZAS
nos appa r e ce um cava lhe iro da terra , o sr . EugenioPaim dos Re i s , q u e , i nformado do inc idente , coma 'maior amabi l i dade
“
me o ffe r e ceu o j eri co qu e e l l emontava
,perguntan do
,porém
,previ amente , s e eu
e stava costumado a andar a ssim — e apontava paraum m a g n ífi co a lbardão , sem e s tr ibos . El le, - apezar de r e co n he ce r _ OSo m e r e c im e n t o s
'
d o bi cho , nãolhe ' con cedi a a s honra s da cavalla r i a : transportava- s en 'e l l e sentado .
“
Em tudo o ma i s o maior a sse i o e e s
me ro — o pêlo br o s sa d o , macio e l uz idio como 0'
d'
um puro—sang ue os arre io's dos melhores —
'
a ferragem “ compl eta e nova .
Respondi—l he,com o maior despl ante , que s im ! Não
sei se che gu'
ei '
a d iz er- l he, qu e nun ca andara em bur
ros d i
o u t r a mane i ra A qu elle an imal : — que D eu s meperdoe caír a al l i do ceu . E seri a quas i o ffe n d el-o ,não me aprove i tarPassar de cava l l o para burro — não é b om ,
masn aqu e lle d ia eu não perdi n a troca — ante s pe lo cont r a r i o .
Os meus amigos — u n a u o ce — te ceram o e logiodo an imal , enumerando as apostas , que o seu donot inha ganho com e l l e em vista do que me r e co '
m
me n d a r am,que me segura s se .
Eu , para n ão perder a cacada , sent ia -me capaz demon tar em pêlo um potro se lvagem dos Pampas !
Senti a—me g a ucho a t é a raiz d o s fcabe llo s ! E , comonão havi a tempo a perder
,sal t e i l ogo para c ima do
albardão . a trote !Pato , o padre Quare sma , o doutor Borra lho , Ma
nue l Couti nho,Thomaz da Rocha
,e os outros com
CACADAS P ORTUGUEZAS 1 4 !
pa n he i r o s , fi caram—me r e sa n d o pe l a pe l l e , quandovi ram a andadura que o bi cho tomara . Eu so u al toe gros so , e e l l e e ra ba ixo de perna s . Os menos ima
g i n o so s pr o phe t i s avam varia s fi guei ras , a ensombrar a e stra da , o s outros , mai s a s su s t a d ico s e tra
g i co s , fa l avam em cabeca partida o u coste l l a amol
Eu , que i a t rotan do , s ent ia -me admirave lmente,e
pos so affi rma r que nunca tive me l hor mo n t a d a ,como
dizem,em cal ão d e ca serna
, o s'd a cava lla r i a . A qu e lle
podia l evar um copo che io de agua,que n ão a e n t o r
n ava !A e strada fi cou v irgem de n e i ra s
,por mim p lan
tadas . E parece que,á ri j ez a d o s musculos a llia va a i n
t elli g e n c ia , aqu e lle raro an imal :'
fo i o meu tran sporte , e s eri a t ambem o meu guia , s e fos se nece s sario . O
endemoninhado , fi rme e rapido como um cha r g e r ,
nunca ma is parou,nem mudou de pas so, a t é chegar
mos a o s pinhae s ! Monte s de pedra bri tada , charcosp ite ira s , que am e acavam a inte g ridade das nossa sre spect ivas epi dermes , tudo e l l e sa l tava o u torneava ,s em me dar tempo para eu faze r um movimen to !Os meus amigos
,montados nos seus grande s ca
va l l os , de ixe i—os logo para traz , e a poucos pas so spe rd i—os completamente de vi sta !Não t orne i mai s a encontrar o fe l iz pos sui dor d
il
a
q ue l l e maravi lhoso exempl ar d'
uma e speci e , qu e nãoprima nem pe l a ce l e ridade , n em pe la e sperteza ,mas ,apenas chegue i a Li sboa
,n a primei ra carta que e s
c r ev i ao nosso am avel e hosp ita l e i ro amigo , pedi - lh e
q u e l he renovas se os meus agradec ime n tos pe l o pra
1 42. CACADAS P ORTUGUEZAS
z er d'
aqu e lla s duas corridas , que fi gu ram na minhamemori a de cacador , sem o enxova lho da mai s l evesombra d e fi gue i ra !
F ôr a excepciona lmente grande a entrada d e ga lli n ho la s em Portugal, nos doi s anu os anteriore sappa r e ce r am até em horta s e quinta s d e n t i o d e Lisboa ! 0 Manue l Can dido
,da Amora
,e 0 Anton io
da Gata , tambem cacador d e profi s são , em um dia ,até as duas horas da tarde
,m e t t e r am na saca
,nos
pinhae s da Amora e d e Corroios , trinta e se i s , abandonando o te rreno . por se lhe s terem a cab ado a smu n i cõe s E o , s r . Franci sco Negrão um d i s t i n ct oamador — t a l abundanci a encontrou em Salvate rra ,que , tambem num d i a matou vinte e oito !
As nos sas esperança s , ou melhor di re i — os nossosde se j os
,não s e r e
'
a li sa r am ,porém
,d e todo ne ste
anno : ainda ass im fo i um anno regular . A s tarambol a s e os abibe s viam—se em bandos n umerosos ,r evo lu t e a n do sobre os campos
,porém as nossa s
quatro cacadas fi z emo l-as nos pinhae s , e apenas umdia ati ramos tambemas perdiz e s
,n a s vi nhas e n a
charneca . Dirigiu—a s toda s o nos so bom amigo JoseQuare sma
,prat i co nos terrenos
,e , como j á dis se ,
be l l i s s ima e spingarda .
Ca cavamos , segundo as boas praxe s ,'
em l inha,
mantendo cada um o seu' lo g ar ; e , quando entrava
mos em pinhal mais fechado,a s .vozes de a ler ta
CAÇADAS P ORTUGUEZAS
Na caça,como no j o go , revezam—se a -fortuna e
o azar . Naqu elle pr ime iro di a sorriu —me a sorte,
.e a s g alli n ho la s deram-me a preferencia , a quee u corre spondi com egua l co r t ez i a z— bem sa l tadas
,
mal sal tada s,não erre i u ma : a toda s de i ho sp i t a li
dade na minha rede . Foi pena serem poucas,por
que eu e stava afi nado , e n a saca , apesar de nãose r g rande , cabiam muitas ma is .
Era a primeira ve z que e u entrava n aqu elle s p i
n ha e s,os seus hab itante s qu i z e r am por i s so o bse
qu i a r-m e
, e co r t ezm e n t e v ieram ao meu -encontro .
No di a seguinte fo i Bul hão Pato o r e i , com muita s
g a lli n ho la s— uma dªe lla s morta com -
um t i ro qua s ia prumo
,verdadei ramente rea l .
Como d i s se,a minha e strei a fo i fe l iz . C a cavamo s
na Coutada Velha —. ve lho e ra tambem 0 pinhal ,
aberto,com grande s c l aros no arvoredo -quando
d e repen te me surde uma g a lli n ho la , . vo a n d o de bi copara m im . Vinha ba ixa
,a meia a l tura dos pinhe i ros
,
m a s, quando m e de scobriu , quebrou d
º
a z a sobre adi re ita . Estava quas i a cava l l e i ro
,ao levantar
,e su
bi a ob l iquando : e ra um ti ro verdade i ramente d iffi c i le de acaso ; mas perdi a—a , s e a de ixas se entrar n ae spe ssura d o arvoredo . A t ire i - l he poi s . El l a seguiu
,
e e u tambem a segui com os olhos até á grimpad
7
um pinhei ro , onde , de repente , s e sumiu .
Aque l l a vae e scapa — di s se um .
Não lhe deu a fli rmo u outro .
E ass im,até ao fim da l i nha
,todos a j ul garam i a
co lume : A m im parec ia—me,todavi a ter-lhe a ce r
t ado ; vi ra —a e stremece r , e portanto , ape sar da gera l
C A C A UA S UUUIzZA S 1 4 3
n e g a cão , como tinhamos fe i to uma pa r a g em , e u ande id i re i to ao pinhe i ro , onde e l l a s e me furtara a v i s t a º
e , olhando atten tamente em vol ta , v i que n ão meenganara a g alli n ho la lá e s tava morta n o chão .
Coi s a s ingu lar nem uma mancha de sanguenas pennas
,n em ve s t íg io d
'
um bago de chumbo n asperna s , nas aza s o u na cabeca ! Um exemplar ma
g n i fi co para museu . Não morreu de susto,de certo
nem eu verifi que i d epoi s po r onde a morte l he entrara .
Ver e cre r , como S . Thomé — n a caça,como em
tudo . Se eu n ão vi s se , la fi cava a lmoco fi no para a lguma rapoza aventure i ra . Na queda a bícu d a encobrir a - se de ta l modo com o s t ron cos e a r am a r i a dopinhe i ro
, qu e n inguem a viu cai r!
E todos i riam j urar que eu a ti nh a e rrado !
Um d o s nossos bon s companhe i ro s'ne sta s excur
sõe s foi Manue l Coutinho .
Conhec i a e ste nome,havia ja muitos anuos . Uma
noite e s t avam o s — eu e outros condi sc ípulo s meusda Esco l a P o lvt e ch n i ca — na barraca da Lima
,n a
fe ira da s Amore i ra s,que então se armava n a P a
t r i a r ch al — hoj e praça d o Prin cip e Ondei s to va e ! Foi;ta lvez , em 1 856 o u 57 . O a ssump t o
do cavaco eram toiradas . D”e l l a s pa s sou - s e a fal a r
da vida do campo a l gunsd o s que a l l i e stavam eram1 0
146 CAÇADAS l—ORTUGUEZAS
fi l hos do Ribate j o . E d'
ahi , das le z i r a s , d o gado edos g u a r d a d o r e s , , pe lo natura l pen dor , e ntrou - se nod r ama t i co e i n e x g o t ave l cap i tu lo da s va l en ti as .
Rapazes e po r t u g ue z e s fi da lgos,bu r gu e z e s o u
plebeu s — ? quando conversam é de amore s,ou de
proezas e aventura s . Se são i llu s t r ad o s princip iampe los l ivro s , romances , versos , ou t he a t r o , mas d
"ah i
a pouco l á vam parar . São aq u e lle s os e ixos sobreque gira a conversação .
Entre outros epi sodio s,um do s pre sente s narrava
uma grande de sordem . n uma_fe i r a
,onde os p impõe s
os ga l lo s do campo,fi zeram actos grande s de va l en
ti a ; e pronun ciou en tão o nome de Ma n ue l C o u t inho , pondo-o em evidenc i a como homem agi l e de stemido . Esqueceu a minha memoria o s pormenore sda bri ga , e tambem o nome d o chr o n i s t a , ma s guardou o nome do heroe , com quem e u , qu as i vintea n n o s depoi s
,havia de cacar n o s pinhae s de Bena
vente .
Manue l Coutinho ra ste j ava pe los se s senta anuos .
Homem de boas mane i ra s_e poucas pal avras . Baixo
e secco de carne s,não' te r1a si do de grande s forca s ,
mas tinha a s condiçõe s apparente s da agi l i dade , e ,apesar de j a quebrado e doente , no campo aindanão faz i a ma fi gura ao pé do s novos . Era de boatempera . F o i e ste o meu compan he iro habitual , e omeu guia .
Apesar da s ma g n iâ ca s recordações q u e d e la trouxe , nunca mai s vo l te i a Benavente a gente n ão fa ztudo o que de se j a — e não me fi cou de memori a at o po g r aph ia d o s te rrenos em qu e n os ca cámo s ;mas
1 48 CACADAS P ORTUGUEZAS
c eu dª
aqu e lla'
m i n ha'
a t t e n c i o sa fín ega , como e l l e lhechamou
,e,em cartas que depoi s me e screveu , ai nda
a e l l a s se referia , d izendo que a s con serv ava comol embranca minha .
A lma ingenu '
a e grata,l embrava—se de ta l i n s ign i
fi ca n c i a ! Eu ti rara -as das m inha s mãos , para lh'as
dar : era i sto que o penhorara . Mas na cacada dodia seguinte , fi cou -me e l l e d evendo muito maior tinez a . Se eu fôsse , como muito s , imprudente ,t e l - o —hia morto
,ou
,pe lo menos , fe rido gravemente .
Das mãos d outros ta lvez não e scapasse s em grandeavaria .
Exten so 0 pinhal que iamos atrave ssando e muitoe spe s so e sombrio . O acampamento dos toiro s jafi cava para traz . De repente achamo -nos i nundadosde luz ' O contra ste e ra viol ento
,mas os nossos
o lhos t ive ram mais,para os de s lumbrar a l egremente
,
o maravi l hoso e encantador quadro , qu e al l i s e nosdefrontou .
E aqui n ão ha penn a que valha , só o pin ce l di
um
grande art i sta o poder ia reproduzi r . Estacamos todos
,na orl a do pi nha l ! E
"
qu e'
n aqu elle momentotodos se sent iram pre sos — tanta era a be l l eza doin e sperado espectaculo ! V i a -se
,aspi rava- se
,sent i a- se
a fr a g r a n c i a e a fre scura da s pa i z ag e n s m a t i n ae s !
Em frente de"
nós , para o fundo e'para os l ados
,
e stendia-s e um vive i ro cerrado de pinhe i rinhos,em
CÁCA ILXS POR
toda a e fi lo r e sce n c ia e vigor da se ix a j uven i l . D e lgados
,fle x u o so s , e l egante s , com toda a pu j ança e
fre scor da mocidade , mas pequenos e ra ste i ro s ai nda ,fi cariam sepul tados na grande massa d o arvoredo q ueo s rodeava , se n ão fôs se a lu z d o so l, que , de scobrindo- se por c ima da copa d o pinhal
,de improvi so
o s i llum i n o u !
A manhã ia a inda n o se u c re sce r . Os raios sol are sobl íquos
,que prime iro lhe s tocaram n o a l to a s fi nas
agulhas,i am de sce ndo
,reve l ando-o s e colori ndo—o s .
Verde e oi ro a côr na caruma,verme lha e mai s v i
g o r o sa nos tronco s , mais c l a ra na s rugosidades , carregada e baca n o s planos in teriore s . P o r c ima e a o
l onge so br e sa i a—l he s a grande mancha ac inzentad a eindec i sa do p inhe i ra l , que segu i a .
A lu z continuava baixando ; a l a st rando-se sobre omassico do p l an ti o
,e,cre scendo com e l l a o mo vi
mento e o e ffe i t o das sua s c ambian te s,in a n t i n ha o
contra ste com a sombra .
Como se a terra qu i z e sse amparar , no seu cre sc imento
,a qu e lle s ve g e t a e s adol e s cente s , i n vo lv i am - l he s
o s troncos os fe to s e as e s t eva s,e n le i a n d o -o s , abra
cando—os , cob r i n do -o s e defendendo- os com as fi na sve r go n t e a s , com o seu recortado e e l egante fol hedo , tocado de ton s r o se o s , verde s e nacarados !E o sol
,Subindo , continuava a vari ar e a faze r
val er,ao s nossos o lhos . a s harmon ias do colori do
o s ton s e meios ton s d aqu e lle agre ste mas suav i ss imo quadro , que a natureza — a suprema arti sta compo z e r a , des enhara e e sculpi r
'
a,e que e l l e
— o divino decorador — nos vinha a l l i reve l ar,t i
CAÇADAS P ORTUGUEZA S
rando-o das treva s , dando- l he a v ida , i l luminando -0
com a sua pal e ta de s lumbradora !No chão sombrio , a s e r vi n ha s sêca s
, o matto ra st e i r o , rude fr o u x e l dos campos , tosado pe los rebamhos
,reque imado pe lo s e s t io s
, completava , com amesc l a da sua morte -côr , a mol dura d a qu ella par ad i sía ca pa i z ag em ,
que tinha a o fundo,a massa
e scura do pinhal , e em cima , no a l to , o puro e frioazul do céu !Corr id as todas a s e sca l a s ch r oma t i ca s , chegara
ao seu termo a symphon ia da luz ! . Nenhuma ssombras re stavam — tudo i llum i n a doQuebrámos
,fi na lmente o encanto d
'
e sta magiadominadora . E mandamos entrar os cãe s n aqu e llej a rdim
,amostra
,vi são de parai so .
Era quas i uma p r o fa n acão !
A”
s u rp r e z a d o s a rti sta s s u cce d e u a su rp r ez a doscacadore s : o vive i ro d e pinhei ros parec i a tambemum v i v e iro de g alli n ho la s ! Estava chei o ! Nunca vitanta s
,reun ida s em
i
tão curto e spaco ! As qu e nãoencontramos em toda a manhã tinham- se recolhidon aqu e lle sombrio e de l i cioso bosque . E é pre ci soconfe ssar que tiveram bom gosto n a e scol ha— bomgosto e até j uizo , porque como defeza era optimo .
A o primei ro rebate , que os perdigue iro s l he s deram
,da nos sa chegada , fo i logo um l evan tar doi do ,
CACADAS PORTUGUEZAS
Mas o pinhei ra l novo , o vive i ro , e s se nunca mai so e squec i . Ficou-me n o s olhos ; a inda o e stou vendo !
A nossa excursão do di a segui nte uma quartafe ira
,s e não me engano — e a ult ima
, fo i umm osaicode pa i z ag e n s : corremos vinha s , charneca s , e pin ha e s . E com o s te rrenos tambem va r ia r am
i
a s e s
pec i e s— ati ramos a co d o r n i z e s , t a r ambo la s
,perd i
z e s,l ebre s e g alli n ho la s .
Este s nome s,em rima , davam para uma quadra
— famosa se o nosso companhe iro e amigo BulhãoPato a fi ze sse — e ainda sobe j avam as l ebre s
,que
nas febre s de Benavente tinham um terrive l consoante ! Nos aprove i tamos tudo
,menos a quadra que
n ão s e fe z , e a s febre s , que tambem l a'
fi c aram . Epara despedida , e sta caçada fo i uma das me lhore s ,e d
i
e l l a r e i o nossol
amphi t ryão e amigo José Quare sma
,que na vol ta fo i e n thu s i a s t icame n t e pr o cla
mado e saudado , a mesa , com um eloquente impr ovi so de Bulhão Pato .
Começamos pe l a s l ebre s . Acompanhava-nos umcaçador da te rra
,que era n i sto pratico
,ex pe r im e n
tado . Conhec i a- l he s bem os habi tos,e de longe a s
lo b r i g ava na cama . Manue l Coutinho tambem tinhabom o lho para a s desencantar . E parece -me q u egostava mai s d e l l a s qu e d asg a lli n ho la s . A caca d i e sta s é mai s arti st ica
,a outra mai s co s i n he i r a .
(J A F NUAS POR ]'UGUEZASSaimos mai s c edo da vi l l a
,e,ape sa r de i rmos a
caval lo , n ão t e n c io n avamo s corre l -a s : nenhum den ós com excepção de Bulhão Pato e Manue l C o ut inbo — era corredor de l ebre s . A s nove da manhãtinhamos nas saca s tre s sa l tadoras . Uma fo i mortaa minha vi sta .
Cam i n havamo s pe l a orl a d ªum pinha l,quando Ma
nue l Coutinho me fez s igna l de parar,e,apon tando
na d ire cção d i
um pinhe i ro,que fi c ava na frente de
Bulhão Pato,di ss e -me '
Vê ? A l l i e s ta uma na cama .
Eu olhe i , e n ada vi .
Não vê a s sim um vapo r z i n ho a o de c ima date rra ? i n si sti u e l l e .
Baixe i—me,para v er melhor ao rez d o chão , mas
debal de .
Vamos de vagar,e faça si gnal a o s r . Pato para
e l l e n ão avançar . E rode amos,para l he cortar a re
t i rada do pinha l .A s s im se fe z . Mai s perto é que eu percebi o ta l
nevoe i ro , que e l l e de l onge de scobri a . A l ebre com
o frio da manhã estava entorpec i da,e com pouca
vontade de abandonar o n inho . D eixou— n o s app r o x i
m a r a t i ro , e só então é que l evantou mas queria - s ede sfor 'rar da demora e sa lvar a pe l l e
,porque partiu
,
como uma ba la,
. em d i r eccão ao pi nhal . Na carre i r acega que l evava
,i a topar com Bulhão Pato .Demos— l he
um gri to,e ou por i s so o u porque o v i u
,
'he s i t o u,e
vol tava j á para fôr a , . qu a n d o fo i a l cançada pe l o t i roce rte i ro
,que e l l e l he di sparou . Uma cabrio l a n o ar
,
e
'
fi cou-s e : e stava morta . Era uma m a ca r ica . A s o u
CACADA S P ORTUGUEZA S
t ra s duas ca íram aos ti ro s do nos so am igo Quare sma e de Manue l Coutinho .
O capít u lo das l ebre s na cama e stava fechado .
Pas samos as vinha s , e ah i a chamo s co d o r n i z e s
bastante s para dobrar , e at é trip l i car os ti ro s A s ce
pa s d e spa r r a d a s não a s defendiam , e e l l as eram prompta s no l evan tar . Uma boni ta caçada , que durouemqu a n t o t ivemos vinha a percorrer .
Continuam aqui a andar perdize s observouo guia , quando chegámos ao extremo , onde com ec ava a charn eca .
Poi s vamos a e l l a s di s s e o_nos so chefe . A i nda
que e l l a s aqui e stão no seu ca ste l lo .
E e ffe c t ivame n t e e stavam . Eram más de l evan tarmas de at irar
,porque j á corri a uma bri s a um nadi
nha forte , e mas de achar ou morta s ou fe ridaspe l a e spe s sura e forta l eza do e steva l .Aos cãe s che irava- l he s , mas as e s t eva s e as .s i l
v a s cast igav am - n —os,e e l l e s l argavam a todo o in s
tante o r astro,para procurarem melhor tr i lho
, e com
e sta s manobra s davam tempo as pe rdiz e s , que sei am refugian do no mai s ce rrado do ma t t a g a l. Mas naprimei ra inve stida , a entrada , a inda se a lca n ca r am
a l gumas .
Uma d 7e l l a s,um ti ro l argo do m e u am i go Qua
re sma c o r i o u - l he o vôo , ma s,feri da d
"aza
,ca iu no
matto,e la' fi cari a
,se e l l e n ão l he t iv e s s e marcado
bem a pancada , e se as fi na s“ venta s da sua P omba
não lhe tiv e ssem seguido,como a v i s ta , a peugada .
A charneca e r a dec l ive , e e l l a n ão corria . voava ,porque para aqu elle l ado a s e s t eva s i am rare ando .
156 cx c x n x s P ORTUGUEZA S
baixa, qu e e ra um mau tir o . Vendo—me
,ob l iquou a
dire i ta,i ndo pas sar para a nossa retaguarda pe l a mi
nha e squerda , entre mim e Manoe l Coutinho . Cont i n u ava a se r um t i ro d i fli c i l e arri scado , porém eutinha-a j á na mira . Mas o meu compa n he i ro
,que
momentos ante s eu acabava de ve r , d e sappa r e ce1
Olhe i , por cima da espi n garda , para todos o s l ad o s . Nem sombras de Manoe l Coutinho Ea -
g alli n ho la i a voando , i nternando- se no p i nha l .E e u não a queri a pe rder
,nem chumba l-o a e l l e .
Eu não o v i a,mas e l l e devi a e star a pouco s passos
de mimO le itor imagina b em o s tran s e s d
º
aqu e lle s rap id o s momentos . Eu fôr a -me torcendo , girando sobremim , para acompanhar a ave . Fina lmente
,quando
a g a lli n ho la i a j á muito para traz de n os,completa
mente fór a da l inha dos cacadore s , at ire i - lhe . Eraquas i um ti ro perdido . A pe z a r d i s so a minha Sco t t ,e o chumbo , fi zeram a sua obrigação caiu re dondaE l l a no chão , e Manoe l Coutinho a sair detraz
d uma ma cho ca de pi nhei ros novos ! Encobriam—n —o
compl etamente,ma s
'
n ão o defenderiam ,se eu de s
fechas se n aqu e lla di recção . Quando e l l a pas sou al l i .é que estava a bom al cance
,e se eu aprove i ta sse
o en se jo — o que todos fariam, com raras ex ce
p ç õe s— o pob re Manoe l Coutinho seria um homem
morto , o u , pe lo menos , e stropeado ! A minha espi ngarda era nova e muito forte
,e o s cartuchos e sta
vam carregados por mim com po lvora i n gle z a echumbo n .
º 5! Uma carga de re spe ito !
( IA C A I'A S P O R'
I'
UGUli ZA õ
Bravo ! Be l l o ti ro,e que e spi ngarda !
— Obrigado,Manoe l Coutinho . Mas o que n ós
ambos t ivemos fo i oração boa ! E' e x pliq u e i- l he o
ca so,para e l l e pe rcebe r bem a s minhas pa l avra s .
— De que eu , e scape i ! Como as veze s se podemandar uma pes soa para o s an j inho s ! Bo a o r a
cão ! Bom companhe i ro é que e u t iv e !Aqui o mais contente dos doi s fui eu . Eu é que
v i bem ,e sen t i o perigo que e l l e correu .
Com este epi sodio , que i a sen do tragico , termin aram e sta s cacada s em Benaven te . De tudo . eprinc ipa lmente dos exce l l en te s e amabi l í s s imos com
pa n he i r o s , que al l i encontre i , e dos qu ae s a lgun s j ásão mortos , con se rvo g rat í s s ima s recordaçõe s .
As duas horas da madrugada de -
1 4 de dezembro ,d e spe d i am o -nos
,Bulhão Pato e eu , d o nosso bom
amigo José Quare sma,que tão bi sa r r ame n t e n o s
recebera e hospedara,e nos ve iu acompanhar .
O tempo e stava se reno,mas o frio e ra cortante .
Duas horas da noite . No b arco da val l a havi a gros sose nce rados e fogare iros a cce so s , e n os v í nhamos re sguardados com encorpados g abõe s : eu traz i a muitoscasacos e grossa s me ias de campino , e pol a in a s decoi ro forte s e sapatos
'
de tre s sol l a s , e cobri ra—mecom a minha manta de A lmodovar , que pe sava comoo pe cca d o . Poi s bem , ape sar d o nosso gros so e
1 58 c x c x n x s P o a'
r u o u ez x s
abundante equipamento,nunca sent i ta l fri o
,e ne s sa
noite memo r ave l fi quei fazendo idea perfe i ta da ve rdade d
”
e sta phra se : o fr i o cheg o u-me a o s o sso s
que,as veze s , a gente ouve , e que n o s parece exa
gerada ! Em vão me revolvi a e appr o x imava do fogar e i r o , e aconchegava a roupa so o c alor do so l damanhã e
'
que havi a de pôr te rmo ás horrorosa s dóre s , que sent i a em todo o corpo ! Finalmente e l l erompeu
,e acabou com o meu m a r tyr i o ! A be n co ad o
a stroTeve outr'ora 0 pinha l da Azambuj a terr ive l fama
pe los seus sa l teadore s . Os bandidos foram-se masainda lá fi cou aqu e lle l adrão do frio , que nos tortura e nos rouba o somno ! Con tra o s outros recorri am os medrosos as perna s d
'
um bom caval l o ,os val ente s aos canos da s sua s e spingarda s ; mascontra e ste he rde i ro dos antigos si car ios
,con tra o
frio,so nos pode va l er o sol !
E ainda ass im ha de se r , quando as nuven s n ãoe stive rem na o ppo s i cão
'
ca ç a n a s P ORTUGUEZAS
Nenhuma repet ia “ o fu n cc io n a r i o , _ como o
e cho .
A not ici a e spal hou-se , chegou aos j o r n ae s , e dº
ahi
a dias os pe r i o d i co s de todas a s côr es ped iam isto ,a qu illo e aq u ell
'
o u t r o para o paiz e para e l l e s —'
e tam
bem polvora para os cacadore s .
D'
ahi a mai s di a s e ram at t e n d i do s , i n p a r t i bu s , e
o governo havi a . por bem concede r— l he s i s to , aqu illoe aqu e ll
i
o u t r o , mas'a re spe i to d e po lvo r a , nem uma
pa lavra — quero dizer,n em uma caixinha !
O caso pr i n c ipi ava s a in trigar-nos . D i rigimo-nos aodepos ito d e A l c antara , e pedimos polvora . Obtivemos a me sma l aconi ca re sposta
Não ha n enhuma .
Emprega'
mos todos os recursos da nos sa e lo qu e nc i a , desde a voz commov i da até as l agrima s , masforam bal dado s os nos sos e sfo r co s : '
n em D emo s the
ne s se r i a bem su cced i d o nesta empreza ! Não havian em um grão de polvora nos depositos do e stado !Saimos d
'
al l i t r i ste s e m edi tabundos, j a ama ld i
coando o monopol i o,
“
que nos privava da mate ri aprima de qu e prec i savamos , ja su spei tando vagam ente a exi s tenc i a de al guma temerosa con sp iração ,preparada de longa dafa , e que , para os seus tenebr o so s fi n s
,fos se
,a pouco e pouco , comprando toda
a polvora que appa r e c i a a' venda nos deposi tos da
fabri ca de Barcarena .
Recolhendo-n o s a casa desa l e ntados,achamos a
vi s i ta de um nosso vel ho amigo,caçador
,que vive
n o campo , n o s suburbios da capi ta l , e que nos deuo grande praze r de confi rmar con i a sua na *
r—a cão a
CACADAS P OR'
l'
UGUlí ZA S
a ex i sten c ia da trama suspe i tada , que ho j e para n ose'
j á uma certeza .
Ha d ias , es tando e l l e a armar al gun s l aços paraapanhar un s' coe lhos , que lhe andavam na horta colhe n do a s tenra s prim íc ia s das sua s murci ana s
,e
j az endo tudo no mais profundo s i l enc io,s ent iu um
pequeno rumor por en tre a s l e i ra s do couva l . A mão
p r ompt a e stendeu— se para a e sp in garda , fi e l compan he i r a , mas parou no seu movimento , quando o caç a d o r ouviu um leve sus surro , como o d e voze s fãl ando mans inho , q u a s i em segredo . Poz-se a e scuta
,
e mbora não vi s se n inguem ,e su rpr ehe n d eu o se
g uinte d ialogo'
Então s empre foste— F u i .
E qu e .ta l—Bem . O mini stro recebeu-nos perfe itamente
, e
.
.a fli a n co—t e '
qu e temos o . negoc io re so lvi do. a
- nos sofavor , di s s e a segunda voz , com tom empha t íco eimportan te . Mas
,continuou ell a , ve j o que —te n s curio.
s íd ad e de saber como se pas sou tudo , o que lhe d i ssemo s , a re sposta d
i e l l e , e t c .
Sim , muita curios id ade ; todo e u sou ore lhas .Bem se vê. Tu não e stive ste nun ca em L isboaNão , n em
_ tenho vontade .
—' Compr ehe n d e- s e por um lado . p e lo da co
s inha . Mas nós e n t r amo s para a sa l a , e então cor-r eu . t u do ás mi l maravi lha s . q uan to a t r ave s—s e i ac idade com os meu s companheiros
, v i qu e e ramosa lli . muito e stimados e co n hec idos , e qu e , at é me smo
d epoi s d e mortos a i nda n o s procuravam ; chegandol
1 6 2 CACADAS P ORTUGUEZA S
o in te re ss e que mostram os habi tante s , pe la s nos saspes soas
,ao ponto de darem muito bom din hei ro
pe lo s nossos ca d ave r e s , as veze s j á pôdr e s ! Vê látu aonde pode chegar a pa ixao Mas vamos ao caso .
F ômo s introduz i dos.
no sa l ão d e s . ex .
ª,o grande
min i stro da guerra , e sempre te di go qu e fi cámosum pouco encol hi dos quando e l l e
,l evantando os ol hos
d e c ima de un s pape i s,nos pergun tou qu e negocio
da publ i ca admini stração nos l evava a l l i— El l e falou n a pub l i ca admin i stração . Hum !
_ Fa lou,s im
,e nós , pequen inos . e com uma
vontade d e bater cane l l a , qu e nem tu imaginas ! Ma s
ca em baixo,a porta , e stava um malvado com uma
e spingarda . e então nós chegamo—nos un s parao s ' o u t r o s
,e o João Coe lho , que era ,um dos da
comm i s são,tomou a pal avra, e fez um magn ifi co
di scurso , que produz iu sobre o min i s tro grandee ffeít o , porque o vimos todos cruz ar pr ime iro a s
mãos,depoi s encostar—s e para t raz n a cade ira , d e
poi s fechar os olhos,e He ar a . pen sa r .
A pen sa r,ou a dormir ?
A dormir . I s so s im . Quem t em cui dados n aodorme . Á pensar — digo t o eu .
Então o João Coe lho fa lou bem ?Se fal ou ! A qu i llo , tu sabe s , e j á d e famí l ia ,
São todos e spertos . Vê l á tu,0 Latino , 0 qu e e stá
na Academ ia de Li sboa e qu e s abe t u do , , aín d a é .
parente dest e , . e'
o qu e e s creve no D i a r i o d e No t i
c i a s tambem; por i s so o que e l l e 'd i s se —fe z um '
e fªfe i
t a r rão ! E depois apre sento u—s e bem , i a bem . e n fa r
'
pellad o , e como el l e é da quin ta do nosso regedor ,
1 64 CACADAS P ORTUGUEZAS
ain da tem'
umas pern a s magnifi ca s : tambem é defami l i a , e ahi
,no Ri ba-Te j o , não havi a quem lhe
g anhas se na carre i ra ! — Hoje ainda s e mexe bem .
Com a con sc ienc ia do seu meri to di scorreu l argamente sobre a conveni enc ia qu e haveri a em o g o.verno t e r a sua d i spo s i cão um i n dividuo como e l l e ,e fo i e sple n d i d o no momento em que , pintandocom viva s côr e s as grande s lu ct a s pol ít i cas , di s s e aomi n i stro « Chegado o momento sol emne em queo paiz t em de man ife star a sua op in i ão
,l ivre d e to
da s as co a cç õe s , como é proprio d 'um povo c iv i l is ado e l ib era l como o nosso , v . e x .
ªpode ter a cert ez a
'
d e que não trepidaremos deante da execuç ão dass uas orden s , e que g alopi n a r emo s — s im
, e x ce lle n t i s
s imo senhor, g a lop i n a r emo s p o r monte s e va l l e s , ad e spe i t o d e todos os obstaculos d i urna oppo s i ção ,
facciosa , ambicio sa do poder e ingrata,que não
quer reconhece r o s a l to s pensamentos do grande _m i
n i s t r o,que diri ge os negocios : da pub l ic a admin i s
t ração ! »A dmi r avel, é ve rdade . Esple n d i do ! C em vez e s
e sple n d i d o !
A cousa não fi cou aqui . O min i stro j a se mostrav
'
a bem d i sposto,mas n ão di s sera ainda nada po
s i t ivo . S aiu então di
um canto o Rapozo , e , adeant ando —se para o meio da sa l a
,com aqu elle ar qu e
nós lhe conhecemos,princ ipiou a fa l ar .
— A proposi to , ha mui to qu e e l l e n ão frequentacao s itio ! .
Bem se i . E l l e teve ahíuma questão com o guarda , por causa d iurnas g alli n ha s , qu e lhe d e sappa r e
c x cx u x s P ORTUGUEZA S 1 65
ram . O guarda encontrou-o , peg a r am se,e o Rã
pozo ía apanhan do uma c arga de chumbo ! Mas olha,
mano Coe l ho , que e l le tem graça as pi lhas,i s so é
ve rdade . Sempre é um partid i sta ! El l e l argou umas
poucas de pi ada s ao min istro , mas tão encoberta sque quas i se n ão sent iam ! Falou—l he no seu . an te «
pas sado Rodrigo e na primei ra Regene ração,a gran
de , e de ta l mane i ra di scorreu que , sem fal ta r a ve rdade
,l ouvou uma época
,e deixou entrever uma cen
sura para a outra,i s to r e che i a d o de tanta s a n e cd o
ta s ch i s t o sa s e d e di tos tão p icante s,que o Barj ona ,
que e stava pres ente , r i a a bom ri r , e qu e r i a j á l evard
”
a l l i o Rapozo par a o Gremio !Findara a audi en cia . S . e x .
a l evantou- s e,affa g o u
o bigode,e , com o seu mai s magn ifi co sorri so , de s
pediu-n o s , dizendo—nos que fari a tudo o que nós , comtanta j u sti ça , ped íamos , e que fos semos em paz paraos nos sos campos . — E sub l i nhou e sta s ul t imas pal avra s .
Bravo ! Vou j a l evar a noti c i a a fami l i a . Adeus .Adeu s .
Os inter locutore s sumi ram—se por entre a s l e i ra s ,e o nos so am igo
,depoi s de os procurar em vão para
t e r ma is pormenore s,re t irou- se t ambem ,
r e capi t u
l ando o que e scutara, e parec endo- l he re so lv ida a
que stão , pe lo que acabara de ouvir .A s famíli a s dos Coe l hos
,Lebre s , P êg a s , R apo z o s ,
e provave lmente mai s a l gumas,t inham e l e i to uma
comm i ssão , que fôra a Li sboa procurar o sr . m in íst r o da guerra
,o ffe r e ce r - l he os seus serv iços pol i
t i cos , e pedir- lh e uma coi sa . .
1 66 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
Ora este p edido,devi a ser da maxima importanc ia
para e l l a s , uma vez qu e os s eus mai s i l l u stre s r ep r ese n t a n t e s t i nham arrostado o s perigos d”uma grandevi agem ! . Era
,portanto
,uma questão d e vi da ou de
morte,cu j a re solução depen dia da vontade —do m i
n i s t r o .— Logo e r a a que stão da polvora .
E aqu i est á o motivo porque em vão a procuravam todos o s caçadore s !
1 68 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
os p i t t o re sco s =l o s de core s garr idas, cur 'vam-se
sobre a s cepa s a e alliviam- l he s as for tesvara s do s d e r o s o s á m aduros c achos . Entrea V inha e o lagar cruzam-se os ce stos , u n s qu e vol
tam,e outros qu e vam — che ios , a t r e ssu a r e a g e
me r , como se a carga l he s pe sa sse .
A poe si a vem a l i ge i rar e s sas hora s de“
trabalho ,
Os cantare s ao de safi o , n a redondi lha penin sular ,tão fac i l e tão harmon iosa , entoado s pe l a vo z al ta eargentin a das rapari ga s , a qu e re spondem , em t om
mais grave,os mocos vindimadore s
,dam um singul ar
encanto a e sta scena,e transformam qua s i em a le
g r e fe sta , e,as veze s
,em poeti co torne io
,aque l la
dura fain a,se entre e l l e s se acha al guma cantadei ra
c e l ebre,ou o trave sso Cupido al l i vem armar o s
seu s a r r a ia e s , e di sparar os t e rr ívei s dardos contrae sse s agre ste s
,mas sen s ive i s co r ac õe s .
A l ém , na adega , o quadro é outro . A s grande s .
portas encarn adas,abertas de par em pa r , de ixam
ve r as r e n qu e s dobradas dos va stos ton ei s , de stacan do sobre a a lvura da s parede s a l ta s e nuas .
Os la g a r e i r o s , d e sca lco s e arregaçados , vam e vem ,
pr e o ccu pado s com o s trabalhos pr epa r a t o r i o s do fab r i co , e com o ar de
'
quem t em a con sci enc ia d a simportante s fu n cç õe s que exerce .
No meio d 'e l l e s o l avrador , com o s eu gros soj aquetão abotoado
,o chapéu sobre a ore lha , uma
vara na mão,atten de a tudo como um -genera l n o
calor da re frega : diri ge os trabalhos , di s tribue a s tar efa s , da ordens ao ca se i ro , e stimul a os pregui çosos , galhofa com as rapariga s ;e , re cordando-s e com
c a ç a o x s P o n'
ru o u cz a s 1 69
a s'maís ve lha s d i
um pas sado saudoso , vê o pre sentea sorri r- l he n os amplos tone i s que e spe ram o espumoso l i cor , nos compradore s que vam afi i u i r
,e so
br e t u d o na a l egri a da s cr e a n ca s que o rodei am,e
d e n tre a s quae s se de stacam os rostos a n g elíco s eo s ol ha re s
,fag u e i r o s e che ios de prome s sa s , dos fi
l ho s do seu amor !
E rapida e sta phase da v ida agrícol a . CÁd i eu , p a
n i er s, . u en cla n g es so n t fa i t es — dizem os fr a n ce z e s . V inha s
,c e sto s e l agare s
,tudo vol ta a antiga quietação
e i sol amento,apenas acabam as vindimas . Ermam
se d e novo os campos , j á de spo j ado s da s suas ri queza s ; os bandos da s pe rdize s expatr i ada s tornam aser o s un icos hab itadore s d aqu elle s l ogare s , ain daha pouco tão che io s de bul ício
,e o canto do perd i
gão , re c l amando as t ímidas companhei ra s , é a un icavo z
,que a e spaços quebra o si l en cio dªaqu e lla s sol i
Esta .voz,que parece c l amar no de serto , e ou
vi da . Dl
e n t r e o s mattos e as pe n ed ia s re spondemlhe outras :
,e , sol tando o e s t r i d u lo e l argo vôo , e i s
a s foragida s outra ve z d e vol ta ao pa t río torrão , are conhe ce rem o s ít io
,e como que a tomarem de novo
pos se dos seus an tigo s domin ios .
E' sedentar i a a perdiz — não emigra como a poet i c a andor inha
,i a
,
sombri a g a lli n ho la , a e l egante e
e squ iva n a r ce j a . Act iva e vi go rosa,a formosa ga l l i
1 70 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
macea ama a terra em qu e n as ceu : ah i v ive e ah i
morre .
Ei l -a , poi s , a percorre r em todas asdír e cço e s , pore ntre as rugosas cepa s
,os seus tri lhos conhec idos
e predi l e ctos . Os movimentos são rapidos ; aqui ea l l i va i colhen do , as b icadas e aos sal tos , os fructose squeci dos ou d e sp r e sad o s pe l a mão do homem . Sãoe s se s fructos
,é a uva
,quem dá a sua carn e o del i
c ioso perfume , tão grato ao pal adar , e q u e tanto ad i stingue das sua s irmas da charneca
,menos favo
r e cida s da fortuna .
Paz ephemera , fortuna pouco d u r a d o ír a , é e s s a !Gosa a l ib erdade e os seus encantos , in te re s santeave : de spede—t e d e ss a s vinhas , tão banhadas pelosol creador — dos abrigos e nsombrados , qu e tu procurava s para a s sés t a s do e st io da fonte e scondida
,
rumorosa e sempre fre sca do val l e,onde t e desse
dentava s — d e tudo i s so , qu e e r a t eu,e qu e domi
navas do a l to dos montes , ca st e llo s roque i ro s , qu ej u l gava s i n a cce ss iveís ! D i z adeus a tudo e foge ! Osteus d i a s e stão contados .
Neste t he a t r o , onde ha pouco se repre se ntava uma
bu co li ca v i r g i li a n a , toda“
r e sce n d e n t e dos suave s e
penetrante s aromas do campo,vam entrar novos—pe r
so n a g e n s , su cce d e r-se .nova s scenas , e tu serás a vi
ct ima e scolhi da da nova e fatal t ragedi a Quem vem
acordar agora o s e chos dos montes e an imar e sta
pa i z ag em , não é o côr o a legre dos campo n e z e srui doso mas pac ífi co hymn o do trabalho e do amor— é o e strondear da fuz i l ari a
,os l ati dos das mati
l has , os gri tos dos cacadore s !
1 72 CACADAS PORTUGUEZAS
i nve stiam com o portão , como se O'
qu i z e ssem levard e a s sa l to, » ora pu l avam em v ol ta dos do nos , . l ad r a n d o , como , para o s despertar d
i
aqu ella aborreci da immobi li d a d e .
Eram esse s be l los a n ima e s,quasi todos
, p o i n t er s
i n g le z e s então ai nda pouco conhec idos em Portugal . P e r n a lt o s , e l egante s e ardent e s , t inham o cr a n eoarredondado e proemin ente
,olhos grande s
,che ios
d e fogo , ven ta s largas e humidas,a bôca '
sêca , o
pei to vasto , r i n s forte s e arqueados como os d ogal go , a cauda fi n a e curta
,a s patas pequenas e
n ervosa s,toda a muscu latura de senvolvida
, e de senhando—se vigorosamente debaixo da pe l agem , fi n i ss ima e rara .
Raça n d alg a e exoti ca,producto do ho u n d e d o
navarro he spa n ho l— o ld spa n i sh d og denun c iavamnas qual i dade s a sua dupl a origem .
Esbe l tos , rap idos nos movimentos , d i s t a n ce a n do -se
do caçador,e exp lorando em c inco minutos uma
are a em que outro perdigueiro gastar i a me ia hora ,e ste s cãe s t inham 'herdado a ce l eri dade do gal go corredor , o antigo companhe i ro , o lebr éu dos ri cossenhore s do s t empos fe u d a e s , porém no t i r a r a
'
ven
t o s a caça , fa zen d o -a a di stanc ia s prodigiosa s , n a
certeza da s mostras,na fi rmeza do parar
,mostra
vam possui r a s sol i das qua l i dade s do antigo perd i
gu eír o navarro , qu e em nada t inham desmerec idocom o cruzamento
,ante s pareciam t e r requintado
nas suas pe r fe i co e s .
Estava- se então n o mais acce so da bata lha ent reos antigos e os modern os . Uns , os ve lhos amadore s ,
CAÇADAS P ORTUGUEZA S 1 73
j uravam a inda pe lo navarro , os novos e ram todospe lo p o i n t er . Q u a n t o s . d u e llo s , quan ta s V i c tor ia s ,quanta s derrota s '
: O p o i n t er , aventure i ro de sconhecido , invadira apen in su l a
,pe l a prime ira ve z :
,n aªcom i t iva dos o fli c ia e s
i n g le z e s de Bere sford e de W e l l e s l ey , e i llu s t r o u - s ecom a l tos ' fe i to s n a s pla n íc i e s e enco sta s d e Torre sVedra s ! Se não traz i a e spada , e l l e proprio e ra umae spada , tão fi e x ível e bri lhante com o uma folha d eToledo , e o seu nariz podia competir em a l cance e
ce rteza com os mai s de stro s e expe rimentados r iflesdos fuzi l e iro s e sco ce z e s de Spence r e d e P i cton !Como um meteoro e ste be l lo e ve l oz exp l orador
“pas sou —
e d e sappa r e ce u , mas não fi cou e sque c ido“
n a memoria dos nos sos cacadore s ; e al guns , maisi nte l l igente s
,procuraram conse rvar nos seus can i s
uma parc e l l a do sangue genero so , qu e i anto os mar avi lha r a .
Tempo depoi s,n a epocha da nos sa h i stori a
,tor
nam a appa r e ce r e ste s heroe s no campo das sua s
p roezas , e ah i travam renhi da pe l e j a com os r e .
ª
pr e se n t a n t es d o pa ssado , qu e e l l e s pre tendiam .d e s
t hr o n a r . O ve lho e sp iri to nac iona l o ppo z —lhe s o n a
y a r r o , cão d e porte severo e mag e s t o so , e spa d au d o
e possante , mas vagaroso e demorado nos mov ime n
tos — an imal d i s t i n c t o pe l a s lon gas ore l ha s , qu e a u
gme n t avam as avantaj adas dimen soe s da sua enormec abeça . Grave e comedi do , digno d e fi gurar n asc açadas dos nobre s e de sembargadore s do tempod
'e lre i D . Jos é e de D . Mari a I , havi a entre e l l e e
o cão ingl ez a mesma d iffe r en ça qu e entre um po e
[ 74 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
ma d e Garre tt e uma o d e d e Anton io Din iz — ummundo !A caçada qu e tentamos de screver , fo i mai s um
epi sodio d 'e ss a longa c ampanha , mais um l ance doencarn içado due l lo entre a s duas raças
, qu e só d ev i a te rminar pe l a derrota e compl eta a n n i qu i la ção
dos fi e i s companhe i ro s dos nossos avós . Hoj e o n ava r r o portugu ez perte nce a hi stori a .
“
Requ i esca t i n
p a ce .
O e stampido seco dos fo g acho s a n n u n c i a ra a u lt ima scena d e s se prime iro acto , preparator io obr igado d e toda s as ant igas cacadas . O portão d e fe rro
, qu e , dava i ngre sso para o pateo , abriu -s e d e parem par
, e tod a a cohorte venator ia gol fou impetuosapara o campo , e e st endeu- se l ogo em l inha d e atir ad o r e s , com um garbo e fi rmeza verdade iramentema r c i a e s .
Detraz d '
e lle s o u vi u -se outra vez o ranger d o sgonzos
,e o som d o s fechos , qu e Jos é Domingos , o
ve l ho case iro , corri a l entamente , ao mesmo tempo
qu e ia seguindo com os olhos pa smados a a la d o s
bri l hante s caçadore s .' José Domingos
,o t io Domingos
,como lhe cha
mavam no s iti o,t i nha v i sto mui ta co i sa n a sua longa
vi da de g uarda d e vinhas e d e ca se i ro d'
aqu ella quintamas cu r i o so s a s s im é que e l l e nunca v ira . O bomdo homem “ e stava boquiaberto no pateo , quando
CACADAS P ORTUGUEZAS
São al guns principes“ encobertos — re spondeu oco s i n he i r o ,
que e stava sempre em o ppo s i ção com os e u i n te rlocutor , ape sa r , ou por causa , d
ªuma s frie
cõe s de marme l e iro , que o guarda lhe appli ca r a certodia em qu e e l l e se e x ce d e r a .
- Eu se i l á s e são , ou de ixam de se r . O ques e i , e o qu e você não pode negar , n em n inguem , éa mane i ra porque cá o patrão os trata — e que égente muito r i c a tambem é certo . Basta o lhar -parae l l e s . Eu cá n ão sou como certa s pe ssoa s : sempregoste i de vêr homen s que s abem empregar o seudinhei ro . Sem fazer offensa a n inguem
, cá nos s i t iosn inguem se apre se nta a ss im . El l e s
,hontem a ce ia ,
Joanna — continuou o case i ro,vol tando—se para um
canto da casa — olha qu e não fa l aram senão de —é s
p i n ga r d a s i n gle z a s d e quarenta moedas , de se tentamoedas ! Eu se i Tambem
,e l l e é verdade ,
quando a gente v ê ass im uma coi sa mais fi naa inda que mal pare ça
,e u s empre digo — ha de ser
extrange i ra . El l e,d'ante s , tambem cá se faz iam ri cas
armas : e u,quando e st ive em Salvate rra , l á as v i .
Eram do sr . D . Mi g u eh Q u e riqueza d i
e sp i n g a r d a s ,
e como aqu i llo punha , santo D eus ! Era como se agen te po z e sse o chumbo com a mão !Falando e ge sti cu l ando
,o tio Domingos fôr a-se
chegando para a chamin é , e pegando num t i cão
accendera o c igarro , depoi s , s i l en cioso , pr inc ip ioucom o pau tostado a faz er pontos negros n a paredecaiada de fre sco .
— Ahi e s t á você a su j ar-me a parede — voci ferou ,fora de s i
,o Va t e l se rtane j o .
CACADAS P ORTUGUEZA S [ 77
Não é por sua conta — re spondeu se ren amenteD omingos . Olhe
,
!
e ra ass im juntinho,que a s e spin
g a rda s de S a lvate rra punham o chumbo .
— Ora e sta ! P ara que havia agora de lhe dar !“
r e smungou me stre Anton io . Se o patrão vê aqu i llo
v a e ahí tudo pe lo s are s ! Vol ta—se contra m im , e e ué que tenho de o ouvir ! — E
,vi rando-s e para o t i o
D omingos , que o olhava de sos l a io e se l embrava dom arme l e i ro , continuou : Leve o diabo as e spi n ga r
d a s ! Você diz que cu stam quarenta moedas ! Entãoé um pre d io de ca sa s , qu e cada um d e sse s homen sleva as costa s J á é ma n i a ! São cinco . A quaren ta“moedas — faz duzentas moedas . Duzenta s ! E acha
q u e é bem empregado tanto dinhei ro ?! Hei n ! Pois»e u n ão digo o mesmo . A qu illo faz i a a sua fortuna»ou a e a e l l e s de qu e l he s se rve ? Para,a ndarem por ahi aos ti ro s as perdiz e s e aos coe lhos ?
Para i sso qua lquer cha n fa lho ve lho se rv e — e me s
t r e Anton io , che io d e avarez a e di
i n ve j a , apon tava ,c om o l abio in fer ior de sdenhosamente de sca ído ,
'
p a ra a ve l ha ca cad e i r a do ca sei ro , encostada a umcanto .
— A qu illo , s r . Domingos , às veze s é a perd icão d
'
um homem . Olhe qu e é .
Je sus ! Credo ! Você sempre tem coi sas , sr . Ant on io ! Não diga ta l : nem pen sar n i s so é bom ! Longevá o s eu agoiro ! Umas pe ssoa s tão hon radas e boa sc omo Deus o s l ivre ! Amen .
A vo z do l en te e can ca d a da t i a Joanna , qu e rom
p e ra o si l e nc io , provocada pe l a s s in i stra s refl exõe sd o co s i n he i r o , ba ixou logo de tom ,
e continuou quasis um ida a s sua s reza s , marcadas pe l a s contas e scu
1 2.
1 78 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
ras e po l i da s dl
um ve lho rosario, qu e lhe passavam
vagarosas por entre os dedo s ve rme lhos , os sudos el ust rosos , curtidos pe l a s geadas d e se ss en ta i nvern o s ,
Ninguem rep l i cou a ve lha c ase i ra, e tudo recaiu
no mai s profundo s i l e ncio . Apenas se ouv i a o cr e
p itar d o s ramos verde s, qu e s e torci am e que imavam
na l are i ra .
O t i o Domingos pegou num podão, so br a co u a
e spingarda,e s aiu em direcção da v inha
,can taro
l ando uma cantiga .
Mestre Anton io,depoi s de at içar o lume , mett i
das as mãos,nos bol sos das ca l ç as
,âco u quedo ,
encostado ã hombr e i r a da chaminé , e pare c ia , pe lovago do
”
olhar e pe l a comple ta immo bi li d ad e do vul to ,achar—se ta lvez entregue a profundas cogitaçõe s sobrea in j ustiça da fortuna
,que a uns dava riquez as fabu
losas, e co n d em n ava outros , como el l e , a eterna
manipul ação do perú r eche i ado e d o pa io com ervil has
,numa co s i n ha provinc iana !
Os terrenos,em qu e s e faz i a a caçada , eram do
brados e trabalhosos ; a s cepas a l tas , a s va r a s fo rt íss ima s
,o chão r evo lt o ,
'
o torr ão duro como p edra .
Para todos os l ados só s e viam col l in a s , monte s eencostas cobertas de vinha
,e apenas , d e l onge em
l onge,
“
uma'
pequ e n a chapada , reve st ida' de matto ,
1 80 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
Muito ob rigado , es tavam perto : ass im fossem
João d e Betten court — o doutor —
qu e dir igia acaçada , por se r dos ma i s pr a t i co s nos sít i o s , e r a umhomem entre tr inta e se i s a quarenta a n n o s , de é statura median a é reforçado
,m a s enxuto d e carne s ;
uma barba pre ta e a s s e t i n a d a emmo ldu r ava —l he orosto trigue i ro
,e o -bigode farto , mas cortado nas
ponta s,a moda da epocha
,sombreava- lh e a bôca
fi na e bem í fechad a , i n díc i o d e grande fi rmeza : oso lhos pretos e vivos eram che ios d e vivaci dade e energi a . Vesti a e l egantemente uma ca cad e i r a c l ara combotõe s d e meta l , um col ete dire i to , ca l çõe s d e ve
l udo côr d e vinho e grande s botas , qu e lhe de senhavam as perna s
, bem torneadas e musculosas . Traz iaum chapeu d e castor a lva d i o . Um dup lo chumbeír o
e um po lvõ r i n li o d e s eguranca ornavam-lhe a c inturae neste momento acabava d e e sco r va r a magn ífi cae spingarda d e doi s t i ros , em cu j a fi ta s e l i a o nomece l ebre d e J o seph Ma n t o n
,d e Londre s .
F ôr a e ste, d e todos os hosped e s do s eu patrão , o
qu e mais a t t r ahi r a a s a t t e n ço e s e o olhar ex pe r ime n
tado do nosso t io Domingos . Não lhe er a extranhaaque l l a fi gura . Avivando recordações , l embrava—s e d et e r vi sto o doutor em Salvaterra , qu e foi ant igamente ,no tempo das coutadas réac s , uma especi e d e academia
,o n de se formaram os mais afamados caçado
CAÇADAS P ORTUGUEZAS 1 8 1
re s . Effe ct ívame n t e o doutor,ao vol ta r de Coimbra
,
frequentara,no i nverno . Sa lvate rra e Benavente , e
conqu is tara os seus prime iros lo i ro s , matando ga l in ho la s na Coutada ve lha e nas Se smaria s de SuaA l tez a .
João d e Bettencourt era um dos mai s afamadosat i radore s do s eu tempo , e n ão hav ia reunião d esp o r tsmen em que não s e narra ssem as a dm i r aveísproeza s dos seus Cãe s e da sua e spingarda
,sa ída da s
o fii c i n a s do grande arcabuze iro ingl ez . A s sua s opin iõe s em materi a de caça , e ram um evange lho ; osseus t i ros reputavam—se ín fa llive i s ; a admi s são naroda qu e e l l e p re s id ia equ iva l i a a um t itulo honorifi co ; caçar n a sua companhi a e r a favor a poucoscon ced ido ; s e r e logiado por e l l e , -no syn hed r i o
'
em
que se reun iam os mestre s , a inda e r a ma i s raro ; e ,sobre tudo , o mai s d ifli c il de a l cançar , o qu e os n eo
phi t o s con s ideravam como a maxima honra , e r a. sepre senteado por e l l e com um cão da sua apu r a u iss ima raca .
I sto corre spondia a uma'med alha d e hon ra , no
exerc ito dos caçadore s !O doutor mandava matar todo s os fi l hos da s suas
pe r dígu eír a s ; re servando apena s al gum para s i oupara um ami go muito i n t imo . Não era i sto avareza
,
e r a amor a pureza da raça , qu e e l l e nao qu e r i a vêr
abastardada por caçadores menos escrupulosos .Um dia
,s abendo qu e um dos seu s creados nao
executara ri gorosamente a s sua s orden s e ven deraum cachor ro , chamou-o ao seu quarto
,tosou-o ,
'
e
despediu-o !
CACA'DAS PORTUCUEZAS»
Carre gada a e sp ingarda , to dos o s cacadore s re tomaram os s eus logare s , e a al a avançou , s i l en cios a el entamente
,pe l a encosta .
Os p o i n t er s brancos , malhados , uns d e preto , o utro s d e ca stanho ou ama r ello , das raças de m aiornomeada então , fr a n cez e s de S a in t-Germain , ou i n
gle z e s , rapi dos n a busca,s eguros nasmostras , eram oqu e nós chamamos , esp a d a s de primei ra ordem .
Na frente do doutor t raba lhavam admirave lmentedoi s soberbos perdigue iros brancos e castanhos
,e
e l l e s eguia-os , attento aos seus movimentos , qu e den u n c i avam
'
caça j á proxima . Aos prime iros r ep a r o sd
'
um d'e l l e s correra o outro e co nfi rma r a -o s s e
g u i ram-se a s mo st r a s, e d e f a d a em j i a d a , at é qu e
chegaram a p a r a d a fi rme : a perdiz t inha fer r a d o .
Os -cãe s parec iam du as r ochas .
— Está a D i an a — di s se o doutor ao s eu compan he i r o da dire it a . Quer—lhe at i rar ?
Muito obrigado,mas parece-me qu e j á se p a s
so u e e s t á'
ao cão .
— Não,rep l i cou o doutor ,
“
ha d e sa l tar a cad ellae l l a p ár a ma i s longe , co r r em—lhe mais os ventos .
En tra,D i an a
A ca d ella d eu a p an cada , e . a perdiz l evantou—s e ;Ouviu-se um tiro , e a ave , que tomara para a e s
q u e r d a , sub iu a “prumo e foi ca ir dentro d iurn aqu inta , conheci da por se r o couto das perdize s d
'aque lle s arre dore s .
1 84 CAÇADA S P ORTUGUEZAS
Foram as prime ira s pal avra s que e l l e d ir igiu ao
doutor .João d e Bettencourt , -mediu o homem, e viu im
mediatamente que tinha deante d e s i um d estesguarda s do campo , ás veze s as sa s s inos façanhud
'
os,
qu e al gun s propr ie tarios r u r aes e ncar regam da d efeza das suas quinta s e herdades
,sem se l embra
r em do odioso que i s so acarreta sobre e l l e s,e d o s .
grande s pre ju ízos e pe r igos , qu e d'
ahí l he s podemadvi r .
— Sou um cacador , e venho bu scar uma perdiz, ,
qu e ca iu morta n aqu ella vinha — repl i cou o doutor,.
como se não t ive s se reparado n a s palavra s e no t om!
i n so l en t i s s imo do case i ro .
Qual perdiz,n em qua l d i abo ! Você n ão me em
baca a mim ! O'
qu e você quer é cacar a s perdizesaqui da qui nta
, e e ntão vem dei tar—me lôa s , a ve r“
se
eu ca io . Olhe , i s so e r a bom no tempo do o u t r º“
para cá n ão pega .— Rua !
— Já lhe di sse o qu e dev i a dize r . A perdiz e st aal l i morta
, e eu não saio da qu i s em e l l a . Foi parai s so que vim cá, entenda vo ceme cê — repl icoudoutor , apparen tando uma grande sere n idade .
“ E
principiou a camin har para o logar qu e apontar a .
Debaixo dos pé s se l evantam os traba lhos, d iz O»
po vo , e é verdade . A re solução do dou to r e stavatomada : havi a de sa ir d
i
alli com a perdiz , cu sta sse .
o qu e custas se . Er a sua , t inha con sc ienci a do seu
dire i to, e pe l a primeira vez l h'o negavam com um
modo tão insolente . Estava costumado a se r r e spe itado em toda a pa r t e
, e nao e r a - homem qu e se d e i
CAÇADAS P o ar u cu sz x s 1 85
x a sse enxova lhar impunemente : n ão ser ia aqu elle
víllão quem o faria recuar .O guarda
,vendo o mov imen to do caçador , rosnou
uma praga , e atrave s sou- se,voci fe rando , na frente
do se u
'
contendor .Saia j á da qu i pa ra fora
,seu a lma do diabo !
Você , cãe s e tudo — e depre s sa , que j á 0 nao ve j o !E o rosto negro do ca se iro t inha uma expre ssão
d e fe roc idade best i a l , os olhos in j e ctados parec iamquerer s a ir- l h e da s orb i ta s
,a voz tremia—l he e os g e s
tos eram fur iosos ! Sa e , ou não sa e ? — rug iu e l l e ,chegando , com os punhos cerrados , quas i a tocar n ae sp ingarda do doutor .
Não sa io da qu i sem a perdiz , e , se nao que r
qu e e u entre n a v inha , leve os cãe s , e vá-m'
a buscar . Se não , vou e u .
— Va e ?! d i s se e l l e , como admi rado d'uma ta l au
dacia , e com um sorri so te rr ive l .Vou , e j á— re spondeu o doutor
,dando l ogo um
pas so avante .
Espere , qu e eu j á l h'a dou — e diz en do i s to o
gu arda corr eu a ca sa . O doutor s egu iu—o , mas poucos passos t inha dado , no pequeno terre iro qu e ade fron tava , qu e j á o homem estava d e vol ta , com umafoice r o cad o i r a , e a r r eme t tía contra e l l e , a t i r a n dOe lhe
e sta s pa l avra sTome l á aperdiz acompanhada s d'um golpe
temeroso á cabeça — uma pancada redonda — comolhe chamam no jogo do pau , e qu e dada com uma
foi ce é sempre morta l .João d e Be t t encou rt conhecia todos os segr edos
11 86 CAçADA s P ORTUGUEZAS
d aqu e lle jogo . Nas suas vi s i ta s a Sa lvaterra fr equ e nt ara os melhore s j ogadore s do Riba—T e j o
,ape r fe i
ç o a r a-s e em Lisboa
,na e s col a do ce l ebre José Maria
,
nos logare s por onde pas sara t i n ha'
d e i
_x ado recordaçõe s da força do se u braço , da sua dest reza e agi l i dade . D eu um salt o a retaguarda
,e a foice
p assou—lhe , como um relampago, deante dos o lhos .
Cre sceu - o outro sobre e l l e , e at irou -lhe o segundo
g olp e tambem a t r ave ssad o, , que n ão
'
o al cançou,e ao
t er ce i ro , d e ponta , o doutor , furtando o corpo , d e sfe
O estrondo do ti ro confundiu-s e com um grito«o malvado caiu . Estava morto !
A s sim , o qu i z e s t e — dis se o doutor,encarando
cadaver , qu e lhe j az 1a a o s pés , e carregando a é s
(p i n g a r d a .
Depoi s,com . a phys i o n om i a co n t r ah id a pe l a im
p re s são da t r a g e d i a , _d_
e qu e a sua ma' fortuna o fi z e r a
p rotagoni s ta , olhou em vol ta de Sl . Não hav ia n i n
g uem . Deante d 'e l l e e stava só a fi e l D i ana com uma
p erd iz n a bôca .
O pobre a n imal,ouv indo o tiro , entrara n a vinha ,
«c i—'d e lá ,
t r o u x e r a a causa innocente da qu e lla tri stea ventura
Dá cá,D i an a — d is s e 'o caçador
,vol tando-lhe as
c osta s , e , pegando na perdiz , r ela n ce o u os olhos ac asa sol i taria do guarda , s eguiu -pel a r u a l arga da
(1 ) J o sé Ma r i a d a Si l ve i r a — 0 Sa lo i o , ape sa r d a alcu n ha
n ão o e r a, po r qu e n a sceu em Li sbo a , n a ca lçad a d a Gr aça .
1 88 CAçA DA s P ORTUGUEZAS
do bronze chr i s tão , chamando os h ei s á o r acão d a
tarde,perdeu-se l e ntamente n a a tmo sphe r a tr iste
dos campos abandonados !No di a segui nte e spalhou-se no sít i o a noti ci a d e
t er s ido encontrado morto com um tiro o Migue lMaltez
,case iro da quinta
,e tempos depo is o tio Do
mingos , que sab ia tudo , contava n a co s i n ha aos trabalha do r e s , reun i dos em vol ta da l are ira
,a h ist or ia
da pe rdiz e do p er d igão .
lNHA-ME, n a vé spe ra , di to o nos so hospede iro ebom am igo, Ulpi o da Ve iga , qu e ir íamos as perdize s , e te r iamos para guia 0 Anton io P i a s .
Com e ffe i t o , ao romper da manhã — uma formosamanhã dos pr inc íp ios d e s etembro d e l 87o
— punhamo—nos a caminho
,e i amos bater a porta do rustico
c açador .Um casebre grande d e pedra quas i e n so ssa , com
u ma , cobertura d e te l ha vã, e outro egual , co n t íg u o ,p ara o gado e uten s í l io s agri col a s . Na frente da cas aum g rande terre iro — a e ira .
O modesto casa l as sentava numa pequen a chapad a , na enco s ta d
'
um terreno d e v inha — a s famosa sv inhas da Arruda — bom couto d e pe r diz e s , ondeé dífli c i l ba te l-as e ç a —çal
—as , tam dob rado é o chao ,t am a l ta s e val ente s são a s varas do V inhe do !A fam í l i a d o rm i a ainda . Procurava eu com os
[ 90 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
ol hos a . porta,quando um do s - companheiros apon
tou para um grande buraco n a parede , uma espec ied e j ane l l a
,que o tempo al l i t inha .aberto
,e por qn d e :
entrava o ar e a l i t z . Espre ite i para dentro . Ehe'
o s
tada a parede e s tava uma cama e stendi a mão e toquei num hombro . O homem acordou : e r a 0 A n
ton io,um dos fi l hos do ve lho Pias .
D'ahi a nadinha
,a D i a n a ,
uma D i ana muito fe iae de sengraçada de formas
,ma s muito me lhor cac a
dora do qu e outras D i anas de m a i s a l tos e e le
gante s co thu r n o s , ve iu compr ime n t a r -nos , a nós , eaos seu s i rmãos do mesmo pêlo
, qu e do a l to da ssuas bri lhante s co lle i r a s olhavam de sdenhosamente .
para a ve lha perdigue i ra .
Dm instante depois appa r e ce r am-n o s'
o s —d o i s i rmão s
homens de — trin ta a“
quaren ta a n n o s , fe ios , cara s.angulo sa s — de barre te s n a mão . P hys i o n om i a s ín
genu as , humi l de s e boa sEntão os senhore s querem caçar ? perguntou :
um d'e l l e s .
— Queremos,s im .
l— E7
qu e nós a inda não di s semos“
n ada aoUns r apaze s de d ez a n n o s
'
dos bem . e ducado s ,j á se vê
,o qu e princ ip ia a se r raro não pr o n u n
cía r i am aque l l a s pal avras com o -tom d e d e safi'
ect ad o
re spe ito com que e l l es as di s seram !Estavamos em
'
frente da porta . O .pae appr o x i
mou—se . Era um ve lho — uma c abeca fi na , rosado ,de fe içõe s co r r e ct i s s ima s , olhos br i l hante s , nariz aqu íl ino
,cabe l l o ane l ado
,branco como a neve . Tinha oi
tenta a n n o s fe itos , mas ninguem o di r i a , tam a pr u
l92 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
A ave , com e ffe i t o , depo is do e s t r eme ção qu e
dera ao re ceber o t iro , s egu ira com o me smo v igor ,e ba ixou a g rande d is tanc ia d e nós , como se nãofoss e tocada .
No emt a n t o o Pias , qu e se afas tara , achava do i scoe lhos e uma perd iz
,n a sua vol ta , e traz ia -os j á a
c inta,todo ufano , n ão d e s i , mas da sua e spi n g a r
da — uma caçadei ra b ri l hante como prata,j á com
um malbete d e e stanho num dos canos,atte stando
não a ex celle n c i a do t o r cha d o , mas a ímpr evi d e n c i ae a ignoranc i a do homem , qu e traz i a n as mãos ta linimigo !
— É certa para a caça — d i s se-me e l l e , acar ic i ando a e scopêt a , quando eu lhe gabava a de st reza .
'
— E certa para a caça , é , e i n certa para vocêobserve i e u , apontando para o malbe te , a ccu sad o rd lum acc idente .
I sto não foi nada . At é fi cou mai s forte ! Poraqui não torna e l l a a rebentar . Aqu í onde e stá
,cus
tou-me doze mi l r é i s . A gente é pobr e s i n ha , o senhor bem vê. E de sgraças a todos acon tecem . Emfi m,
andamos todo s a mercê d e Deus .
Ignoran t e s e pobre s,
. exte nuados d o trabalho ma l
c om idos , mal dorm idos , e ste s homen s são maisfe l ize s do qu e mui tos de nós . Teem as mesmas
(SACADAS P ORTUGUEZAS 1 93
a l egri a s e a s me smas tri s teza s,mas aque l l a s mai s
i nten sas,mai s d e spr e o ccu pa d a s , mai s n a t u r a e s z
,e
t eem,sobre tudo i sto
,uma coi sa
,que n ós j á n ão
t emos,um sentimento que e l l e s n ão a n a lys am ,
e quen em podem di scuti r , nem j usti fi ca r — a crença i naba lavel e ab soluta n a i n t e r ve n cão con stante da P r ovíd e n ci a — Para e l l e s o bem é sempre um premio
,
e o ma l um castigo .
São mai s fe l iz e s,são .
Quando encontro al guma d e sta s a lmas,s inge l a s
e cre nte s , nunca m e vem ao e sp íri to o perturbar— l hea se ren idade , l evanta r a mai s l eve ruga , l anca r amai s pequena nuvem sobre a superfi cie d 'e sse l ago
,
que só r efi ec t e o azu l e as e stre l l a s do cé u ! .
Que lhe dari a eu em troca da sua fé,que o faz
e ncarar a morte como uma i n t r o d u cção á D iv i n aPre sen ça
,á vida e tern a ? A s minhas duvidas Nada
mai s . O roubado,o e spol i ado seri a e l l e , e o que
lucrari a eu com i s so ? -Tanto ma is que a s minha ssombras
,la n ca d a s ne s se e spiri to de sarmado , tornar
s e —l h e- i am l ogo em treva s !
— Mas,
Antonio,continue i eu — a sua e sp in
garda n ão curs a tanto como a minha .
Lá i sso,com perdão do senhor , cursa e l l a .
Ora vamos vêr .
Tinhamos fe ito a l to a' sombra d'
um moinho Sa iu
I CAÇADAS P ORTUGUEZAS
um (D i a r i o d e No t i c i a s de dentro da saca d'
umde nós
, e d ivi dido ao me io . pregadas as duas me i a sfolha s com doi s pau s i t o s aguçados n a parede domoinho
,servi ram-nos d i
a lvo . Medimos c incoentapassos , e di spara'mos . A minha esp ingarda crivouo pape l
,a d i e l l e metten um bago aqui
,outro acol á !
Pias v i a , e não queri a acreditar nos seus o lho s .
O ar vi ctorio so que e l l e t inha,quando
,depoi s d e
at irarmos,cam inhou para o j orn al
,tornou-s e -lhe na
expre s são tri st e dos ven ci dos . Uma i llu são de me
nos ! Pobre An ton io !P oi s s im , senhor — diz ia e l l e
,sen tan do -se numa
pedra,e cruzando a sua companhe ira sobre o s j o e
l ho s . Vencida esta e l l a por e s sa fi dalga,porque o
dinhe i ro sempre mostra o que é,mas aqui por e s
t e s arredore s não appa r e ce u ainda quem a bate s se .
S ão a s mãos do dono,que a fazem va le r An
Não,s enhor
,desculpe a sua pal avra honrada ,
n ão,s enhor é que canos como este s
,não queri a
que os houve s se melhore s . E não sou e u que odi go . O mestre Augusto
,que o senhor ha de conhe
cer muito bem,tambem me di sse o mesmo , quando
e l l a l á e steve em Lisboa a concertar .
I sso se rá tudo verdade,mas quem bate aqui
tudo,toda s a s e spingardas pre sente s
,pas sada s e
futura-
s,é a minha r ey u n a
Vol tamo- n o s t o d o s para o novo interlocutor . Era umrapaz reforçado
,l ouro
,de cara boa e j ovi al , que até
a l l i no s acompanhara,sem dize r pal avra
,e sem dar
um ti ro ; El l e empunhava e expunha aos nos sos ol hos
1 96 CAÇADAS PORTUGUEZA S
e l l a ! Observe i- l he o r is co , qu e todos iam correr comaque l l a v i s i n ha n ca .
Não ha medo . I s to é sol ido : é capaz d e aguentar um pa iol
,quanto ma i s uma carga !
E,dizendo i s to
,foi carregando a arma
,a ol ho
uma mão che ia d e polvora , outra de chumbo ! Umaenormidade !
Agora marquem a di stanc ia gritou e l l e .
C em pas sos — será ba stante ? perguntou um .
Vá os cem .
Contaram—se os cem pas sos . A t o u t se ig n eu r t o u t
ho n n eu r .
Eu e os outros co llo cámo -nos a re spe itosa di s tanc ia .
Preparar ! Apontar ! Fogo ! di s s e um .
A' terce ira vo z o t iro part iu . E , com sobre sa lto e
t e rror d e todos , Xav ie r ca iu re dondo , d e costas nochão , l evando as mãos a cabeca !Corremos a leva n t a l-o . Não es tava ferido fe l iz
mente,mas na te sta t inha uma grande mancha , n e
gra e verme lha .
Fomos examin a r a colubri na . A borrachinha tinha d e sappar e c i d o , e fôra e l l a que , proj ectada a cabeça do pobre rapaz pe l a viol enc i a do t iro
,o de itara
ao chão .
— D'e s ta vez e scapou
,mas si rva -lhe de li cão , e
não torne a ati rar com espingardas fe rrugentasd i s se - l he um dos nos sos companhe iros
,pondo ao
hombro a sua caca d e i r a d e ferro fundido .
— Bem o prega fr . Thomaz — pense i eu,vendo
e s te tão arri s cado como o outro !
CACADAS P ORTUGUEZAS 1 97
O sol pr incipiava a de sce r,e e stavamos longe
d e casa . F íz emo —nos de vo l ta,e fomos engordando
a s saca s, vi c t ima n do aqu i uma perd iz
,al ém um coe
lho , até que dêmos e ntrada no nos so quarte l—genera l .A
' porta Jos é D in i z — o ve lho case iro — apre sentou-me uma perdiz .
— Eª aque l l a
,a que o senhor ati rou de manhã
,e
qu e fo i para aMa r t i n a cha . Ia fe rida — eu bem v i . El ladepoi s vol tou
,e ve iu morre r lá em baixo
,ao .pé d o
r i o .
Eque não me quiz de ixar por ment iroso .
200 CACADAS PORTUSUEZAS
Mestre Dominguizo não e r a um campo n i o vul gar ,di st ingui a—se entre os seu s pa t ríc i o s e r a um typo .
D e z lego a s á vol ta do torrão qu e o vira nascer , c itavam - se a s sua s hi storias
,a sua e spingarda
,as suas
botas , e o seu nariz ! Comqu a n t o as Gracas n ão t ive ssem de certo ausp ic iado o seu despontar n e s t emundo , e r a engraçado , e onde e l l e e stive sse não parava a tri steza .
Tinham um quer que d e comi co as fe içõe s e a 6gura do m e u companhei ro d e caca . Meão de estaturae e n t r e sêco , o que avul tava em mestre Dominguizoera o nariz — um nariz enorme
,cu j a are sta
,s inuosa
e fi na,vi n ha termi nar em ponta aguda
,l adeada por
duas l arga s n arin as d e seg u a e s e dotadas d uma mobi l i dade e spantosa .
Quando e l l e contava al guma das i n n ume r a s hi s
t o r i e t a s do seu vasto repertorio , era d e ve r como el la si am acompanhando os l an ce s da n arrativa — bra ndas e suave s no i dyllio , l ubri ca s n a scena amorosa ,fr eme n t e s no drama
,di l atadas e furiosas n a trage
d i a ! Um nari z as s im va li a meio ta l ento . Estavapedindo um Talma
,um F r éd éríc k Lemai tre !
S e um grande actor o pos su í s s e , qu e e ffe i t o s nãot irari a de tão portentoso orgão
,de tão flexive l e v i
brante in strumento !Ao appendic e n asa l devi a o nosso homem o co
gnome,com que o appe li d avam
— o P i ca n co . Bem
CACADAS P ORTUGUEZA S 20 !
sabi a e l l e i s so,mas não se lhe dava de ta l
,an te s
commentava a a lcu n ha . com va r i acõe s da sua l avra,
e hi storia s,faceta s e garotas
,de monge s n arigudo s
— un ic a heranc a que t ive ra de seu pae e mestre,
que fôra sapate iro dos frade s da vi l l a . E qu e fre sca s , que e ram as tae s hi s tori a s ! Umas
,ape sa r do
seu tra j o rusti co,conhec ia-se que v inham di rec ta
mente do Boccacc io —
po r i nte rmedio d o s reverendosmonge s ; outra s a cce i t al—a s -h i a de bom grado o A rmand S i lve stre para a s ve st i r , ou , ante s , para a s de spi r com a sua penna u l tra —g a u le z a !No fi m do j an tar
,entre a p itada e o ci garro
« Sou um poço de costumava e l l e d iz e r é
qu e mestre Dominguizo gostava de osten ta r o s seusta l e n to s de n arrador . Então era d ifi i c i l, ainda ao mai sfleu gma tíco dos seus ouvinte s , con servar o s erio , pri nc ipalmente se lhe attentasse n a physío n om ia , e vi s sea mascara do arti s ta acompanhar a phrase
,su bli
nhando os pontos mai s inte re s sante s da n arrat iva !Esqueci a-me dizer que , a l ém do nariz e x t r ao r d i n a
r i o , um dos seus o l hos e r a um tanto vesgo .
Do tra j o, que di re i ! Quando , ao romper da man hã, um pouco e n n evo a d a , el l e me entrou pe l a portada qui nta e nvol to no gabão , e depoi s o l argou , most r a n do - s e n a sua bri l hante t o i let t e , semi -d om i n gu e ira
,semi—caçadora , o pe scoco envol to num ca che-n e;
branco com l i stra s a z u e s , e atrave s sando atraz,n a
c inta,um enorme guarda—chuva , azu l , de ca s tão d e
buxo e grande ponte i ra de l atão o tempo e stavade aguacei ros — eu t ive pena d e n ão t e r de m eu o
l ap i s do Ramalho ou do Gameiro , para o retrata r !
202 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
Que fi gurão que e l l e fari a , no sa l ão do Gr emi o A rt i st i co ! Era com certez a um dos clo u s da Exposi ção .
'Os nos sos arti sta s , ou via j am pouco , ou não aprove i t am o que vêem . Perdem j oias , como esta , e
quanta s mai s !Mas do qu e mestre Dominguizo mais s e vanglo
r i ava n ão e r a dos seu s t r iumpho s de co n t i s t a , nem da'
fi rmez a e rap i dez das sua s pontari as,não — do que
e l l e mai s se pre sava e r a da sua pe ríc i a n a arte .
Uns sapatos,umas bota s
,sa ídas da minha mão ,
dão -se logo a conhece r — diz i a e l l e,e a ccr e sce n t ava
c om orgulhosa int imativa — Aqui , dez l eguas em
roda,não ha quem ta lhe e metta uma fi o r êt a como
e u ! E ni sto é que e s t á todo o segredo , e onde sec onhece a mão do mestre .
A s sim se conta de Lord Byron — mal comparadoque aprec i ava mai s o s e lo g io s que A l i , o famoso
pachá de Jan ina , lhe fez um di a a pequenez da so re l has e a fi nura 'ari stocrati c a da s mãos
,do que os
-maiore s louvore s que a crí ti ca lhe te ceu as be l l ez a sd o Ch i ld Ha r o ld e do D . J u a n .
!
Lá e stão parados os cãe s . Uma,duas .
“Mal mestre Dominguizo pronunci ara e sta s pal av r a s
,accentuando —as com doi s movimentos pe rpe n
d icu lar e s da e spingarda , sa l taram dua s perdize s , e
204. CAÇADAS P ORTUGUEZAS
um homem,que fal ava para nós
,gesti cul ando com
vio lenc ia,mas o vento e r a co n t r a r i o e não perceb i o
que e l l e d iz i aP omo-nos app r o x ima n d o , e
“v imos então o que era .
Estava feri do — t i nha s ido al c ançado pe lo chumbodo meu vi s inho abe lhudo .
Pasmo em toda a l i nha !Como podia e l l e se r fer ido
,s e nos Heava muito a
dire i ta , quando a l
pe r d i z e o tiro foram ambos parae squerd a ? Não havendo arvore s em qu e o chumbofi ze s se r i cochete , como podi a e l l e mudar de d i r e ccão no ar ?! Hão de confe s sar que era caso e ste
,
apparen temente,de d ifi i c i l exp l i cação .
Todos fa l avam a u m t empo,olhando para a vi
c t ima,e a todos parec i a imposs íve l a re al idade
,a co
m eça r pe lo auctor , pe lo protagon i sta d a qu e lle tri s teepi sodio ! Não cacara nunca
,e pegara n a pr imeira
e scopêt a que encontrou ! Joaquim e stava pal l i do comoum defunto , vendo o san gue que
"corri a d e duas féri das, qu e o V i nhate i ro mo s t r ava
'
em uma das face s .
Depoi s d e examinarmos o homem , que t inha mai sdoze ou quatorz e grãos de chumbo , e spa lhados pe locorpo
, pegamo s no in strumento do i nvoluntario cr i
me para o examin ar , a ver s e e l l e nos exp l i cava coma sua bôca s i l en ciosa, o que nós c om a nos sa d e sva i r a d a l oque l a n ão po d e r amo s faze r .Era n a bôca da e spi n g a r d a , . qu e e stava com e f
fe i to a re sposta,a so lução do prob l ema
,que em vão
bu scavamo s , no cano dire ito , do l ado de fora , haviauma fra ctura de forma tr i angul ar . Foi para m im ,
CAÇADAS P ORTUGUEZA S
de sde logo,evidente se r aque l l a a causa d o de svio e
do de sa stre .
Tinham ati rado muita s veze s com e l l a , sem feri rn inguem ? Teriam
,s im
,porque a aba d o chumbo
de sv iado nunca encontrara n inguem ;mas era que stão de tempo
,e mai s d i a , menos di a , um homem ,
o u
a l gum cão dos proprio s cacadore s , s eriam v íct imasda ímpr evi d e n c ia do seu pos sui dor .
Foi uma l i ção para os que a s s i st i ram a es ta sc enae se l -o -ha tambem ,
dece rto,para os que a l erem
narrada aqui por um dos e spectadore s , que n e s semomento não e stava tão sereno
,como agora que a
de screve .
— Não ganhou para o susto — dirá algum l ei tor ,pen sando no pobre j orna l e i ro .
Se o su sto d e l l e foi grande n ão se i — cre io mesmo qu e nao foi , mas o que pos so afi i rma r é que ret i rou p ara cas a logo , e que no d ia segui n te j á l á andava na fai n a ! Tomara e l l e te r mai s j o r n a s comoa d aqu elle d i a . menos o chumbo . Ganhou quinzetostõe s !Mestre Domin guizo enfiou mai s uma hi stor i a n o
se u ros ario , e d ah i por deante , sempre qu e , em ca sado prior , ou do seu compadre S i lva ,
“
o barbe iro,e l l e
se propunha a entret er a soci edade, se acertava é s
ta r p re sen te o Joaqu im —
qUe , entre parenthe s i s , e ra
206 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
bom moco — o(P i ca nç o , pis can do—l he 0 ol ho , e ap
pr o x ima n d o -s e d e l l e,diz ia- l he ao ouvido
Fica , fi ca . Pode s fi car,que eu não conto a hi s
tori a .
Mas contava—a , s e 0 outro sa ia . Não fos se e l l e arti sta
2 08 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
— Pequeno s ! Fi lhos ! Q u e bul ha e e s sa ? Se eulá vo u ! . gri tou- l he s mãe — a s r .
ªMari a Dom in ga s a
_
t i a Domin gas , como lhe chamavam .
-'
De ixa l á os rapaze s . Estão n a sua e dade.
. Q u ehã0
'
d e e l l e s fazer ? observou 0 Manue l .— Sim , tu diz e s sempre i s so , mas e u é que cá
e s tou , para os l avar e cose r . Aque l l as ca l ca s , qu e0 Anton io e st re iou domingo de P a scho a , j á e stãot odas e sfr a n g alha d a s , _
mesmo um l ixo,uma vergo
n ha l . Se a gente os de ixa rasgam—s e todos , e nós é
q u e 0 pagamos . Eu n ão sou da tua systema . D e
p equ en i no s e torce 0 pep ino .
O Manue l n ão rep l icou .
Quere s a lmoçar ? A s migas e stão pr omp t a s . E
q u e boa s que e l l a s e stão !_ Quero , s im .
A t i a Domingas chegou a porta do pateo . A bulhad o rapaz io ce s sou d e repente .
— Andae ca, menin os . Vamos almo ca r . A í, Fe rn a n d i n ho ! Como vindes a sse ado e composto ! E vósA nton i co , o lha e , como trazei s a s ca lcas ! Ca tendesa e scrava , para vos remendar !A pequenada en trou d e rol dão pe l a porta , atro
p e l ando-se com receio d a l guma ca cho le t a . Q u e é lle s bem sab i am que a merec iam .
Fo i 0 A t o ín o .
D e ixe fal ar , mãe , foi e l l e qu e me botou ao chão— re trucou o outro
,ameaçando com a mão sít a 0
a ccu sa do r .
— Ca luda ! Nem mais pio !A e sta i n t imacão da mãe , os g r u lhi t a s ca l aram- s e ,
CACADAS P ORTUGUEZAS 209
s entando—s e n o s bancos , e i nve stindo vo r a zme n t e
com a s m i ga s fumegante s,depoi s de um re l ance
d'
o lho s a o s pratos , a ve r se a l gum ti nha mai s .
Agora reparo , Manue l — d i s s e Domingas , a
meio do almoco — tu ten s a l guma coi sa,h0mem ;
n ão fa l a s,não diz e s nada ! A qu illo que eu di s se .
Não,não , n ão é i s so . Nem me lembra j á o qu e
t u di s se steA t i a Domingas olhou para e l l e fi xamente com
u m modo inte rrogat ivo , e depoi s continuou :Então , Manue l , se não fo i i s so
,é outra coi sa .
Porque tu ten s a lguma coi s a ho j e .
Não tenho nada .
Tens , ten s . D iz e l á o que é . Quem é para oamor , é para os traba lhos , e eu sou t u a
'
mu lhe r — tub em o sabe s .
Mari a Domingas e r a uma mulher deci di da — mu
lhe r d a rma s,como se costuma dize r — e em ca so
d e nece ssi dade mane j ava uma r o ca d o i r a com umvi gor mascul i no . Nem todos lhe 'me t t i am medo . Emc asa a vo z mai s a l ta que se ouvi a , era a d e l l a , e nos i tio
,quando se fa l ava d e l l a , diz ia- s e
_ Va e a ca sa da t ia Domingas .
Venho de “ casa da t i a ! Domingas .
— A -s va cca s'
d a t ia Domingas .
Ell e — o Manue l do Jal e co —
'
v'iv i a n a sombrae r a um bom homem
,que nun ca dera que fa la r , , n uma
1 4
2 1 0 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
pal avra , um pobre homem . Nessa conta 0 t inhame a ss im fôra até a l l i .Uma ve z acordada a cur ios idade na cabeça d uma
fi l ha d Eva , qu a e squ e r qu e se j am as sua s vi rtudes,
n ão d e sca n ca , em qu a n t o l h'a n ão sat i s fazem a inda
qu e se j a com uma menti ra . Mas o Manue l é que n ãoera de guardar segredos com a famí l i a .
— Como e u j á s e i que tu me vae s matar o b ichodo ouvido com as tuas pergunta s
,j á t e dig o o que
é , para fi care s so ceg a d a . Chega-me para aqui Ocafé . Olha o pequ eno , qu e quer mai s pão . Tu sabe s qu e e sta qui nta d ante s tinham
_por costumeentrar ne l l a , l á ao fundo junto as ol ive i ra s , pe lomuro qu e es tava derrubado , e faz i am por aqui s e r.
ve n t i a para a e strada . O doutor Mende s , que é quema tinha , quando eu a compre i , mandou l evan tar osmuros
, e , como era O j u iz e t inha cá um creado e
um fe i tor qu e não eram para graça s , o povo r e spe itava—lhe a casa , e perdeu 0 ve so ao caminho , e dav aa vol ta em redor da quinta . Agora pa re ce—m e qu e
querem torn ar a antiga .
Como tornar a antiga ? —perguntou a ti a Domin gas
,fi n cando os co to ve llo s na mesa , e franzindo
le n t ame n t e a s gros sa s sobrance lhas . Então a -gen te
j á não é senhora do qu e é se u Mas eu ain da hontem de i a vol ta da qui nta , e não v i nada !
— Não v i ste nada., porque e u compu z o qu e e l l e sderrubaram . Olha
, e e ntram exactamente pe l ome smos it io
,por onde costumavam d ante s . Ha tre s dia s
qu e acho a lgumas pedra s ,ca ída s em baixo , ao p é da
ol ive ira grande .
2 1 2 CAÇADAS P O
'
RTUGUEZAS
d e,l ogar por onde 0 seu Manue l l he di s s era que e n
t ravam .
Esta s i n spe cco e s , por in fruct íferas , princip iaram a
s erenar- l he um pouco 0 e spi ri to,porque
,por mai s
ma t i n ae s que e l l a as âz e s se , - e chegara a ponto d e l a'
e star d e vi g i a ainda com as e stre l l as no ce u,n ão
con segui ra vêr 0 atrev ido invasor . Elle , t0d avi a , qu emque r que e r a , cont inuava a vi o la r O muro , atravé ss an do a quinta para a e strada .
Como é então qu e e l l a não 0 vira nunca , n em d e scobri a os ve st igio s d a sua pas s agem — as pedrasc aí das e a s pég a d a s no chão ?Não querendo a l terar a paz domest ica
,a santa
pa z , em qu e at é a l i t inham viv ido , e contrar iar'
a suacompanhe i ra
, pr o hib i n d o—a de se i n t r ome t t e r n aqu elle
caso — que e l l e entendi a se r da sua j u r i sd i ccão , comohomem — não l he o ccu lt o u o facto , mas quando se
t ratou do s it io assa l tado,não lhe apontou o ve rda
dei ro . E e r a por v arios a entrada .
D e forma que,ao pas so que a ti a Domingas se i a
t r a n qu illi sando , a ponto de n ão in s i s t ir j á no as sumpto , . a e l l e é qu e l he custava muito o ccu lt a r —lhe a
p r e o ccupaça o , que 0 dominava .
Tinha e x g o t a d o todos os modos de av i sar 0 invaso r d e que fôra de scob erto , de sde a s pedra s , cuid a d o samen t e reposta s no mesmo logar , d onde a s t inham tirado
,a t é a o s , doi s paus , qu e e l l e se l embrou
d e armar em c ruz,bem a vi sta ; pen sando qu e e sta
ame aca s er i a entendida , e pori a fi m aos as sa l tos .
Nada,porém
,surt i r a effe i t o , e e l l e s repet iam—se
como d antes , .nao con seguindo .e l l e a in da vêr quem
cx c x n x s r o ar u o u ez x s 2 1 3
e ra o audacioso , que , a hora s tam de sencontradas ,por a li transitava .
Manue l do Ja le co e ra a e ste tempo , um homemde trinta e c inco a n n o s , m eão de e statura , l a rgo dehombros , de grande s forca s e de aspecto r o bu s t i s
s imo g mas , pertencendo a uma fami l i a de r íx o so s eva lentõe s
,t inha ta l bo n homía e pacatez , que a to
do s admirava . O que faz i a dizer a ti a Domingas ,na sua l inguagem sentenc iosa e pi ttoresca
,que , as
veze s , d uma ove lha preta nasc i a um corde iro branco !Na sua a lma , forte e so ffr e d o r a , a paci enc i a quas i
n ão tinha l imite s . Em certas o cca s iõe s viam-n -o fechar os punhos
,como para sent ir a forca dos seu s
bracos he r cu le o s ; i n i c i ar a a ccão de arregaçar a smanga s da camisa , mas cerrava os dente s , e fi cavas e . Estas ame a ca s de tempe stade ti nham ,
porém,ta l
e lo qu e n cía , qu e e ram logo perceb ida s ! Não era e l l ed aqu elle s i t io , mas coms ig o trouxera a t r a d ícão doss eus paren tes— fa ca n hu do s b r i g o e s . E , um d i a ,
quando vol tara costas , um ,que 0 conhec i a de mai s
l onge , di s se na venda do l ogar prox imoE
,
o tio , o Jos é do Jal e co , como quem o pintou .
E , mansi nho como um corde i ro,é ter ca n te l l a com
e l l e . E da mesma raca , e, bem procurado
, t em o smesmos hg a d o s . Vo s seme cês n ão o conhecem . Euvi -o , aqui ha dez a n n o s
,na fe i ra clã A tho u gu i a .
De ixou às porta s da morte c in co ou se i s , e n ao s e
2 14 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
d eu a pr i são senão ao sargen to da cavalla r i a do de st a came n t o ! E olhem que no fi m da bara lha não tinh auma be l i scadura !
Este — ob servou um dos as s i ste n te s .S im , e ste — re spondeu 0 outro e s e t em d u
v ida vá-lh ,
0 perguntar , que e l l e é homem para lheresponder .
Estavam as co i sas ne sta a l tura em ca s a d a ti aDomingas , quan do , num dom ingo de m anhã
,l hes
entrou pe l a porta dentro o s eu compadre João A hd r é . Eram rara s
,e em d ias certo s do anno
,as v i s i tas
do sr . A n d r és i n ho diminut ivo que não lhe a ss ent ava
,porque o re cém - chegado e r a de agigantada
e statura ; porém ,como de pequen ino as s im lhe cha
maram , fi cou- l h e ao que e l l e achava graça , porque ,diz i a , não gostava de se r tão a l to , não pertencendoa fam í l i a dos Pinhe iros .
Mai s ve lho do que o Manue l do Jal e co,padrinho do
casamento e amigo da sua famil i a,o dr . João A n
d r é e r a o homem d e m aior porte e va l imento quetra nspunha os humbr a e s da casa do nos so l avrador .Rico , fôra el l e quem dera a mão ao afi l hado , lhearran j ara o ca samento com Domingas
,e l h e em
pre stara a l gum dinhe iro,quando e l l e comprou a
qu inta aos herdei ros do fal l e c i do j uiz d e direi to .
Era portan to um amigo devera s , e para os Ja l ec o s grande s e pequenos não havi a pes soa mai s
2 1 6 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
— Po i s s im ,e u ponho- o na cabeça
,porque i s so
te dá gosto,mas tu sabe s qu e eu e stou costumado
ao t empo . E está—me bem , e sta. Quem é qu e metomou a medida ? — d iz e la
,Maria Domingas — por
q u e quem 0 fez j á e u . s e i . A i nda são as mesmasmão s in ha s de prata , como diz i am minhas i rmãs
,
quando tu l á e stavas .I s so e r a favor das senhoras .Ecomo e stão e l l a s .
perguntou Domingas .
Vam , v ivendo . Estão boas . Mandam-t e recados .
E por c á n ão ha n ovid ad e , Manue l .Ha
'
a s nov idade s d a terra e , ante s que me
e squeça , c á receb i 0 dinhe i ro do vinho . Não e r a
pre s sa , e muito obri gado .
Não tº
o demore i , porque podias prec i sar para0 amanho da v inha , ou para outra coi sa . Tu aindae stás em princ ip io d e vi da .
— Mas , graça s a Deus , outros i rao peor . O quem e fundiu menos do que nos outros a n n o s foi a v in ha ;t ive menos , mas mai s maduro . Eu deixe i - l he cai ro sol , «e vindime i—a no tarde . Pagaram-mb bem
pena foi se r pouco , mas i s so não esta n a nos sa mão ,e sta na vontade de Deus .
É, verdade
,a mim tambem me su cce d eu 0 mes
mo . E , mal gera l,que a t odos pe r se g u e .
.Va e vive ndoa g a lli n ha com a sua pevide . Este
, qu e e stás bebendo , é d o teu do anno pas sado ?
E ' s im,senhor . Tive mai s me ia duz ia de p ipa
s ita s , e guarde i a l gum para nós . Tambem somos fil ho s de Deus .
— O meu compadre da l icenca — di s s e a ti a Do
CACADAS P ORTUGUEZAS 2 1 7
m i n g a sl pondo-s e em pé . Meninos — Padre nos
so
Os pequerruchos com a s suas vo z ít a s foram acom
pa n ha n do a mãe , que , n o fim da reza,l he s de itou a
be n cão .
Faze s bem em educar a s s im os teus fi lhos,para
n ão vere s aqui o que se vê ahi em mui tas casa s .
E,
como fui c reada,e n ão me tenho dado ma l
com i s so .
Agora vamos dar uma vol ta pe l a qu inta,em
quanto o so l não aperta mai s ; que depoi s o que hama i s , para vêr , é a sombra — di s se o dono da casa ,l evantando-s e .
— Vamos todo s — di s se João André — eu gostode vêr correr os pequeno s . Quantos são e l le s j á ?
Quatro,com a graça de Deus . O Fernando , 0
A ntonio , a I sab e l e a Mariquinhas .
Vamos la,Manuel
,que j á pode s fi car por ahi .
O Jal eco en col heu o s hombros , e re spondeuOito eramos n ós , os fi l ho s de meu pa i , e todos
n o s cre a'mos . E ' verdade que o s tempos então eramoutros .
Iam andando e convers ando , at é que chegaramj unto da ol ive i ra grande . Da hi dominava-se toda aquinta
,o te rreno e levava—s e um pouco : os de ca sa
chamavam-lhe o A l t i nho— Sentemo -nos aqui . Toma lá um charuto
,Ma
nue l . A Mari a d a l i cen ca .
2 1 8 CACADAS P ORTUGUEZA S
Dou , dou , mas desculpe , o meu compadre andaa mette r-lhe O ví cio no corpo
,e e l l e
,de ve z em
quando,j á ahi me appa r e ce de charuto n a bôca ,
como um se n ho r i t o .
Não te a s suste s , não t e afogues em pouca agu a .
Quando e l l e t e appa r e ce cá a fumar de charuto , quemlhªo s dá sou eu . E se não , repara , qu e é só nos dia s
que l á va e a casa .
O m eu compadre bem sabe que de vagar seva e ao l onge
S im,e o que e u tambem se i é qu e e sta quinta
e sta- s e fazendo bem bon ita . Quando cá v im a u l
t ima ve z e stava um tempo frio como O demo , e n ãoa pude vêr a vontade . Agora
,s im . Faz muita diffe
r e n ç a para me lhor do que e r a,quando para cá vie
ram . Tu , Manue l , e stás um l avrador as direi ta s ! E,
que e stá tudo no s eu l ogar,cada cu l tura no s i tio pro
prio ! Onde aprendeste ? Porque t u sempre fôs t e g e itoso
,mas O saber é outra coi s a . Quem t e en s inouEu lhe digo , compadre . Aqui perto ha uma
quinta bem a'
manhada,e a inda l á havemos de i r ;que
eu bem se i que o me u compadre t em vi sto tudo o
qu e é bom — mas é para a ver . Lá é qu e e u t enhoob servado a l guma coi sa , e d ahi faço aqui como ve j o
qu e lá fazem .
— E que bon i ta vi s ta a d e sse va l l e , que vae porahi fora ! Não t inha reparado n i sto da s outras veze sE
, ta lvez porqu e não e stivemos parados aqui . A casatambem faz muito melhor vi sta : a u gme n t a s t e a adega .
E aque l la s ba cellad a s s ão novas , Manuel ?
São,s im
,senhor . E tambem é novo a qu elle po
220 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
o l e ss e,
“ não lhe tomari a as doutrin as , em materi a depropriedade
,re spon deu
,confi rmando com a s pal a
vr a s e o ge sto a opin ião da sua in terl ocutora , vo lt ando—s e ao mesmo tempo para o Ja l eco
,como dese
j ando o u v i l—o sobre 0 ca so .
— E, verdade o que e l l a d iz , é — di s s e e ste . Eu é
que d e i pe l a marosca,mas
,apesar das mi nhas e s
pe r a s , . a i n d a não de scobri 0 marau .
—E eu tambem não — a cc r e sce n t o u a Domin gas .
— E” que talvez e l l e mudasse de s it io — rep l i cou 0
Manue l sorrindo .
Mas,entre e l l e por onde entra r
,o que é pre
c i so é a g a r r a l- o — ob servou o doutor .
O meu compadre d i z bem , d iz at é muití s s imoMas se e l l e não s e de ixar agarrar ? E eu
posso prende i - o , n ão sendo a u c t o r i d a d e ?
— P0de s . Prende —0 como um ladrão,que entrou
n a tua quin ta .
E se e l l e r es i st i r,e me der ?
Nes se ca so , como tu e stas em tua casa e é s oatacado , d as - l he t ambem . Estas no teu dire i to , defende s - te . E eu cá e stou tambem ,
para o que fôrpre ci so . Mas
, o lha lá , não mate s o homem .
Ora i s so é que é fa l ar — apoiou a t i a Dominga s .
Essa l in gua entendo eu . Olha Manue l , tu é s bom d e
mai s ; ao t io Jos é Jal e co é que e l l e s n ão faz iam e staarreli a . Já a e stas hora s t inham as co s t e lla s numfe ixe .
— P o r i s so tambem 0 mataram a ti ro — di s s e oManue l
,muito se reno
,como se aque l l a c i t acão do
n ome do tio o n ão e st imul as se la no intimo .
CA (IA 1)AS P ORTUGUEZAS 22 1
João André,entretanto
,t i rava da a l gibe i ra uma
ca ixa , que passou as mãos da afi lhada .
São j a'
horas de re ti rada ; ainda vou po r ca sado Anton io Ri cardo
,e tudo i s so de i ta-me lá para a
noi te . Ah i t e fi ca e ssa lembranç a ; quem ta mandaé a I sabe l
, qu e s empre fo i muito tua amiga . E , paraa ahlhad a , a Isabe li n ha .
— Ora ! A s senhora s Eu não se i como he ide agradec e r tantas fi neza s . Olha
,Manue l
,que
br incos tam boni to s !
S ão muito l indos,s ão . Quando l á formos
,do
mingo que vem ,ha de l eva l-os . Não os e stre i a antes .
Mais para agrade cer,meu compadre
Quando j á e stava a cava l lo,João An dré
,de spe
dindo- s e,d is s e para o afi lhado
,que lhe segurava o
e str iboOlha
, Manue l , quan to ao homemz i n ho o ditodito . Segura-o , mas com geito . E eu cá e stou . Adeus ,Maria . Adeus
,rapaz e s .
E j á n a e strada,vol tando-se para traz , gri tou
lhe s— Levem os pequenos . Venham todos .
Ne s se di a , depoi s da partida do doutor os doi sco n ju g e s n ão trocaram mai s pal avra sobre o assumpto que os traz i a pr e o ccu pado s , mas o dono da cas a
j á t i nha tomado a sua re solução . A' no i te , depoi s da
ce ia , d e i tados os 61h03 , foram a adega , e l á e st ive
222 CAÇAD AS p o ar u o u ez x s
ram l abutando numa coi sa e noutra , at é qu e a t i aDomingas , não de sconfi ando d e nada , 0 de ixou sóe fo i-se de i tar .Apenas se apanhou sos inho o Jal e co fechou a por
t a , encostando a roda de coi ro da chave a fe chadu ra .
Dªah i fo i a uma grande arca d e carvalho
,toda cha
pe a d a d e ferro , com bon itos lavo r e s , que e l l e ti nhacomprado no l e i l ão do c onvento , abriu-a , ti rou parafora uma e spingarda d e doi s canos
, e arrumou—a aum can to com t o do o cuidado . Este s movimentoseram acompanhados de meia s pa l avras, de phrase sentre cortada s
,. di ta s muito baixinho
,como se ré
ce i a sse das propr ias parede s .— Com que então . Sim ,
querem ve r quem éo Se é sobrinho do Jos é hei n !Esobrinho , é — e uma ca squ i n a d a em surdin a acom
pa n ho u e sta s pal avras .
Depoi s da e spingarda arrumada voltou a arca , quee r a o seu arsenal , e , mergulhando 0 braco , trouxedo fundo tres paus ferrados e uma foic e r o ç a d o i r a ,pol ida e bri l hante como a fol ha d uma e spada .
— O armamento j á aqui e stá . Vamos a escol her .
Todos os pau s são bon s — di ss e e l l e , pas san do-osem revi sta , e pegando num — mas este é re st io , éde mai s confi ança . I s to é um pau rea l .E prolongando-Se com e l l e , deu um pulo , fe z doi s
sari lhos,e ati rou doi s golpe s no ar , qu e a s sobi aram
como duas ba la s .
-Está n a conta ; n ão me de ixa fi ca r mal — e , s e
gu r a n d o-0, carregou—lhe com a mão no meio .
224 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
Seriam pouco mai s de tre s hora s , e ainda mal seentrevi a a prime ira c l ari dade
,a dubi a lu z do cre
pu scu lo da manhã , quando se abriu e cerrou cautelo same n t e a porta da co s i n ha , e um vul to, atravé ss a n d o o pateo
,entrou na quinta
, d e i t a n d o . lo g o forao ci garro qu e l ev ava acce so , parando de quando emquan do
,com o ouvido a e scuta ;e , procurando como
qu e romper'
a s trevas com o ol har fi xo e pr e sc r u t ador
,tomou pe l a rua qu e c i r cumd ava as te rras , por
ser caminho batido onde os pas sos menos ruido havi am de fazer .Era o nos so Manue l . Chegado ao s it io , qu e e l l e
agora e scolhera,encostou a e spingarda ao muro
,
depoi s d e pôr os cãe s no prime iro descanco , e coma foice ao l ado , fi cando com O pau ferrado na mãosentou- s e num tronco d arvore ca í do , onde ja passaraa lgumas hora s d e inuti l s en ti ne l l a .
Ter ia de corrido 0 tempo de fumar um cigarro , quee l l e não fumou , para n ão denunciar a sua pre sença ,quando lhe pare ceu ouvi r ao longe rumor de passos .
Prestou 0 ouvido e re conheceu que não se enganavao s pas sos appr o x imavam- se
,e de ixaram de se sen ti r
mesmo junto do muro . Manue l poz - s e em p é , e e n
c o s t o u —se a parede,encobr indo —s e com e l l a . Acabava
e l l e d e faz e r i sto,quando as somou no al to uma ca
beça , e logo em se guida,
. l e stamente,um homem
sal tou para dentro,a
"
quatro ou cin co pas sos .
Era chegado o momento .
CACA DAS lªOR'
l'
UGUl-ÍZA S
A t é que fi na lmente — di s se Manue l,avançando
para o de sconhec ido com pas so fi rme,e de modo
a cortar -l h e a deante i ra .
Ao ouvi r e sta s pal avras 0 homem parou , e , vo lt ando-s e de r epe llão , perguntou a o Jal eco de sabridamente O que é que l he que ria .
Q u e r o va r ia s coi sa s — r epo n d e u- lhe e ste muito
s e reno . A primeira é dizer- l h e que ha muita s n o r
t e s , e stou a sua espera,para l he receber a vi
s i ta — gosto que só tenho .ne sta o cca s ião . Depoi s
q uero me diga o -que .o traz aqui,e com quem é o
n egoc io , vi sto que n ao e comigo . E não sen donegoci o , nem de macho
,nem de femea , quem lhe
d e u l i cenca para entra r por aqui n a minha quinta .
?
Esta i n t e rpe lla cão ao seu in tru so hospede , pr o n u nc io u -a 0 quinte iro com uma t r a n qu illi d a d e a s sustad ora
,que impre s s ionari a outro que n ão fos se a qu e lle
a quem fôra di ri gi da,e que era , n em mai s nem me
nos,um dos mai s tem íve i s e temidos contrabandi sta s
«d aqu e lle s s ít ios .
Poi s s im,senhor , goste i de o ouvi r . Vossemecê
fa l a bem , e , se eu não e stive sse com pres sa , ta lvezc o n ve r s a ssemo s um bocadin ho , mas agora não tenhot empo — e , di tas estas pal avras , o outro fe z 0 ge stod e
'
se de spedi r .Venha cá , homem de D eus , que ainda tenho
mai s uma coi sa para lhe diz e r . Vossemecê va e e r
rado por e s se caminho : o caminho é aqu e lle— e
o Jal eco apontou - l he com o pau o muro por ondeo contrabandi sta sa l tara .
Agora j á percebo . Vossemecê e sta ahi de guar15
226 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
da,e quer-se en treter ;ma s , eu j á l he di s se , n ão lhe
posso dar tre l a , e 0 m eu caminho e u é qu e o s e i
E,como o Jal e co de ss e um passo para a frente
e l l e , mudando d e tom ,l evou a mão a a l tura da cara
,
e perfi l ando um dedo, em ar d e ameaça
,d i s s e-lhe
Olhe que e u sou o S imão Co n t r a ba n d i st a .
—Fi co sab endo , e eu sou o Manue l de Sousa, o
Manue l J a leco . Somos ambos bap t i sad o s, mas 0 casoé outro agora . O seu caminho
,sr . S imão
,é por al l i ;
eu n ão o en ca r r e g u-c i de abri r c aminho pe l a minha
te rra , e portanto va e vos semecê desandar 0 qu e a n
dou , sae por aqu e lle muro , e não vol ta aqu i mai s !I s so é mu i to comprido
,s eu Jal eco ; torne lá a
Eu e stou fa l ando com o sr . S imão , mas o sr .Simão é qu e não sabe com quem fal a . Você e staa br incar com 0 fogo
,homem de Deus ! Ve j a lá
, qu e
s e queima !— I s so é somno
,seu Manue l . Vã- se de itar , qu e a s
pulga s e stão a sua e spera — rep l i cou o co n t r aba n
di s ta , com um ar in so l enti s simo .
O confl i cto e stava imminente . S imão , homem d ec i d íd o e d e pul so — os guardas fi sca e s conhec iam-lhe
a a stuc ia e a bravura não re cuava fac i lmente deanted outro .
O Jal eco l embrou—se ne ste momento da r e com
me n d a cão do compadre , « Não mate s o homem »
e,como grande j ogador que era , t inha j á fe i to
mentalmente o golpe,ante s de o executar . A
'
s u lt imas pa l avra s do seu adversario , dando doi s pa s sos ,e stendeu a mão
,e com um ge sto imperioso di s se - l h e
lv
lo
l CACADAS P ORTUGUEZA S
Neste l an ce fi na l o s ve iu encontrar a t i a Mari a Domingas . Não vira nada , mas o si l enc io e a att i tudedos doi s homens , a expre ssão da phys i o n om i a docontrabandi sta , que era d e s i mal encarado
,e o sor
ri so contra fe ito com que o Man ue l a acolheu,tudo lhe
diz i a qu e houvera novi dade , porém fo i em vão queo s s eus olhos cu ri osos procuraram —os ve stigio s dalu c t a entre o s do i s .
Então era e ste .
O Jaleco n ão a de ixou prosegui r,acenou—lhe com
a mão,e di s se—l he
A ppa r e ce s t e em boa o cca s ião . Manda mette r osboi s a o carro , e que me arran j em a egua
,porque
n os vamos j á para a vi l l a . Este homem,ao sa l ta r
a qu i o muro , ca iu mal , e vim acha l—o com um bracode smanc
'
hado,o u coi sa que 0 valha . Anda
,vae de
pre s sa, qu e eu almoco lá em casa do compadre .
A pouco e spaco atraz da t i a Dominga s segui ramos doi s
,ambos c ab i sbaixos e tri ste s , um por se ve r
feri do,humi l hado e pre so
,e o outro por e star met
tido em traba lhos por cu lpa al he ia .
Não t i nham trocado uma palavra entre s i , quandochegaram perto da ca sa . Ja se ouvia a voz da pa t r ôae os gri tos a l egre s dos pequenos , qu e vinham correndo ao encontro do pae .
Os mocos atrave s savam acodados 0 pateo , paraonde dava tambem uma das portas da estrebari a ,t razendo ja os boi s , doi s a n ima e s corpu l entos e ne
(SACADAS l OR'
l'
llGUEZAS 221)
dios,que a t t e s t a vam 0 e smero d o t ratamento . A uma
argol a , pre sa po r uma corda , e ja a r r e ia d a e prompta
,e stava a egua .
— A egua j á e s ta a r r a co a d a , patrão — di s se O moço ,e vae -se mette r o gado a o carro . Agora vos semec êdi ra se manda mai s a l guma coi sa .
Olha,Antonio
,a inda ahi e sta uma pipa , que
hav ia de i r para ca sa do boticar io . Me t t am -n — a ah i n o
c arro,que aprove ito a o cca s ião , e de ixo -lh
º
a la.
E vol tando—s e para o con traband i sta :A vos semecê v inho n ão l he o ffe r e ç o
,porque se i
que agora lhe faz ma l,ma s se que r come r alguma
coi sa , e s t á às sua s orden s .
Obrigado,não tenho vontade — respondeu o
outro .
A a tmo sphe r a , a princ ipio e n n evo ad a , fôra cla
re ando no rapido decorre r d e sta s scena s , e quandoa ti a Domingas
,chegou ao pé dos recém—chegados ,
e se affi rmo u no con trabandi sta , reconheceu—o : fôra0 seu prime iro conversado , quando e l l a e st ivera em
Q u ad r a z a e s . Passava ja de doze anuos que i s so t inh asi do
,mas e l l e não lhe e scapou
,e,quando lhe ouviu a
voz , fi cou certa de quem era o de sconheci do .
Guarde—a Deus,sr .
ªMari a Dominga s dis s ee l le . l evando a mão ao chapeu .
Então é vos semecê quem n o s deu e ste s trabalhos .
230 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
Por me u mal , sou e u , sou . Nós vamos embora , e eu quero de ixar tudo bem cl aro aqui . As s imcomo a s sim , j á n ão tenho n ada a perder em dizer averdade . Eu ando a monte . Entende—me ? Andofugido da te rra . Vae j á para nove mezes que s a i de
Q u a d r a z a e s .
— Por c ausa dos guardas ? pergu ntou o Jal eco .
Por outra coi sa . Acon teceu-me uma desgra
A l guma morte ?
S imão fi cou s i l encioso,e depoi s
,me n e i a n d o a ca
b eca,como se lhe custa s s e fa l arLa vae tudo . Tanto se me d a . Denunciaram
nos,e os guarda s eram muito s em nossa per segui
ção,e quas i todos a c aval l o . Tivemos de l argar a
carga,e perdemos tudo
,a fazenda e a s be stas . A n
dou ta lvez por se i s centos mi l r é i s o pre j u ízo . Um diaencon tre i-me com o denunci ante numa serra . Quandoo vi , vi o di abo ! Fugiu-me a luz dos o lhos . F o i aminha pe r d icão ! Agora aq ui e stou , e se ra o que Deusquizer .
D á Cá uma c in ta , Mari a , para e ste homem mette r o braço ao pei to .
Esta tudo p r omp t o , patrão — ve in dizer ne stemomento 0 Anton io .
Então vamos . Tome la a ci nta , e sub a para 0
carro,sr . S imão . A j uda e s se homem ,
A ntonio .
E 0 Manue l Jal eco , afastando - se com a mulher ,di s se- l he a l gumas pa l avra s em vo z baixa . A t ia Domingas empa lli d e ce u .
E agora ?— pe rguntou e l l a,com a voz anciosa .
23 2 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
s er mui to,mas não gosto de ver de p é dean t e d e
m im se não os meus creados . Vie st e acompanhan do0 carro . O que trouxe s te ?
“ Trouxe o V i nho para O sr . A lme ida .
'
O boti car io ? Fize ste bem ,que e l l e j á me t inha
di to que o e sperava . Com aque l l a gente é bom é st a rmo s de boa s avença s , por causa das doenc a scomo d i z c á o nosso pr ior .
— E a l ém d o vinho tambem lá vem outra e n commenda
,e e ssa é para o sr . doutor .
Para mim ?
Sim, senhor , para o meu compadre . Talvezse j a depoi s tambem para outra s pe s soas
,mas
, po r
o r a , é só para o senhor ; e depoi s o senhor dirá o
de sti no,que se lhe ha de dar .
Homem,d e sembu cha la
' com i s so . Estás a ss imcom o s modos de quem engul iu um ma rmello , e 0
t em atrave s sado n a s goe la s !A fa l ar a ve rdade
,n ão anda longe d i s so
,que
e l l e não é mau ma rme llo , e at é é ce rto que j á hoj e0 provou , e quem lh
'
o deu a provar fu i eu .
Bem digo eu,Manue l . I s so é a l guma adivi nha
ção . Se é , j á te digo que a s massadas e stão p r o hibi das . Leva e s sa para 0 A lmei da , que e l l e d a 0
cavaqu inho por uma charada .
Ora cha t em e l l e lá muito n a boti ca ! O casoé outro
,s r . compadre .
' En tão rebenta p ara ahi com i sso ! O qu e é , li .n a lme n t e
La'
v a e . Trago a li o homem .
Qua l homem,Manuel Estas -me intri gando , e
(IARA )A S PORTUGU S
João André cofi ava a ba rba,e n a phys io n om ia a t
t en ta lía -s e - l he a curiosi dade .
Eu de “i n triga s e qu e n ão so u . Então o meu compadre n ão adivinha o que é
,que eu lhe trago ? !
— Não , e r e n ão ! D e sembu cha po r uma vez !O homem que sa l tava o muro !Ta , ta , ta ! Então apanhaste -o , he in ! (Sa iu o
lobo n a ratoe ira h n a lme n t e . Já n ão e ra sem tempo .
A i nda bem , agora e stas d e sca n cad o .
— ls s0 de d e sca n ç ad o é um modo de d ize r ;quemt em ca sa , tem cuidados . Mas é que o caso a inda nãoes tá l impo .
Como não esta ! Tu agora , ja se vê , que 0 t raz e s prezo
,para o entregare s a justi ça . E
'
0 que ten sa fazer
,e 0 qu e te convem para e scarmento d outros .
- Poi s ahi é que bate o ponto . El l e caír a n o s fe rros d º
e l—Rei,mas nan j a que eu lh
'
o vá entregar !Então porque E
ª teu amigo,teu parente , o u
ten s medo d e l l e ?— Não é nenhuma d e s sas coi sa s — nem am igo
,
nem parente,nem medo . Eu lhe digo
,compadre ,
como 0 caso se pa s sou .
E 0 Manue l Ja l eco narrou,com todos o s po rme n o
r e s , o s in ci dente s do l ance , a que O l e i tor j á a s si st iu ,até ao ponto em que o de sconhec ido se d e sma sca
rou,dizendo quem era . Ao ouvir o nome d o S imao
Contrabandi sta João André abriu muito o s olhos , edeu um as sobio muito prolongado .
Conhece—0, compad r e P
— perguntou o Jal eco .
Se conheco ! I s so é um menino ! Não é so cont r aba n d i s t a , é matador !
- 34 CACADAS P ORTUGUEZAS
Bem se i . El l e contou-me tudo . Como j a n ão
t em nada a perder , veiu dizendo—me , pe lo caminho ,como ti n ha s i do a morte que fi zera
,e outras coi sa s
q u e até me me t t e r am tri stez a . E tanto é que eu mu
d e i de t e n cão, e venho pedi r- l he para lhe faze r 0
curativo , e depoi s e l l e que fu j a , que s e vá com Deus,
o u com Sa t a n a z .
Tu estás doido Manue l !Não , senhor , nunca e st ive mai s em meu j u izo .
Mas e n t r e g al—o e u a j u st iça,i sso é qu e nunca ! Juro
lhe por a lma de meu pae , qu e D eus tem . Nunca ta lfare i !A s s im como ha almas e ssenc ia lmente perve rsa s
,
h a outras e ssenc ia lmente boas , tão i n a cce ss ive i s assu gg e s tõe s do mal , que não ha no mundo força ca
pa z de a s faze r de svi ar uma l i nha do tr i lho do bem .
Aos qu e são a s s im , a in da .
quando não receberame d u cação de e spec i e a lguma , parece que a v irtudeo s i l l umina , e l he s de sfaz os sophi smas tenebrososc om que , ás veze s , o vi cio ve ste e e ncobre , aos o lhosdos s impl e s e dos i gnorante s , os actos mais torpes ,os c rime s mai s hedion dos ! Manue l Ja leco era umd e s te s homen s si nceros , honrados , absolutamentebon s .
O doutor André ol hava para e l l e e spantado . Nuncao j u l gara capaz de o impre s sionar , a e l le !
— Anda ca'
,homem . Então e s se sa l teador entra
n a tua casa,in sul ta—te
,te nta matar—t e , e matava—te ,
se tu não fosse s mai s va le n te do que e l l e ; e agoratu . depoi s d i s so , e de sabere s pe la sua propri a bôcaque e l l e anda fugido por uma morte que fez , quere s
236 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
não ha de ser preci so . Vamos l á ve r 0 homeme,depoi s d uma paus a , o do utor acre scentou : Sem
pr e te di go que e l l e sa l tou'
n a. tua qu i n t a'
com 0 pédire i to . D eu com t ig o , porque , s e fos se com outro ,a est as hora s e stava aba cella d o .
E , que eu ti nha-o j á n a frente , e ainda me é st ava a lembrar da sua r e comme n d a cão : — OlhaManue l
,não mate s o homem .
O doutor e stava aturdido . q uanto fazi a o pensoda fractura o lhava attentamente ora para o feri do
,
o r a para Manue l Ja l eco , mas quando fi tava e ste e rade sos l aio
,e n o s seus o lhos l i a i s e o e span to e a ad
m i r a cão .— Que homem ! pen sava e l l e com s i g o .
Terminada a operação , que e ra simples , vol tarampara almo ca r . Nunca os gui sados sem p r e t e n ç õe s dasua co s i n ha provinc ian a tinham pare c ido a João And r é tão saborosos , e o cavaco dos me lhore s conversa d o r e s d o s hote i s de Li sboa e do Porto achava-opal l ido a o pé do mode sto e fami l iar dia logo
,t ravado
com 0 . seu conviva .
A' despedida o doutor pegou em meia duz ia de
charutos :Toma lá . E tua mulher
,quando te vi r de cha
ruto na bôca , pode dize r—t e , sem menti r,que são
fuma ca s de va l e nte !Adeus
,compadre . E
,
o melhor d ia da minhav ida e ste . Quando entre i aqu i traz ia o coracão pe
cm;/ma s P OR'
l'
UGUIi ZA S 2 3
qu e n i n o como i sto . Obrigado,muito obrigado — e
abraçou- se ao outro, a chora r .
Di
ah i a pouco o s j orna l e i ro s que se c ruzavam com
e l l e , e que o viam bem montado a o l ado d o seucarro , de charuto na boca , rosto al egre , saudando —o s , e cantarolando pe l a e st rada fô r a , diz iam unspara o s outros
E )
o Jal e co . Amanha - se bem .
Ora , aqu i llo va e num s i n o l
Bom n egoc io fez e l l e . l ' ae can tando !Não fôra bom n egocio
,fo i mai s d o que i s so
,fo i
uma boa acção .
Quando chegou a ca sa , Mari a Domingas , que o
e sperava anc iosa,apena s de longe o v i u
,correu para
e l l e .
Já princip i ava a e star com cuidado em t i .
E en tão . fi cou pre so .
?
Não o en tregue i a j us ti ca . Mudei de ten ção . Lá
o de ixe i n as mãos do compadre — e Manue l fez umsignal a mulher .
D'
ah i a pouco,na adega
, Ma r i a Domingas ouvi ada bôca de seu mari do a n arrat iva da vida do co n
t r aba n d i s t a,como e ste lha contara e todos os mai s
pormenore s do que se pas sara n aqu ella manhã .
E agora,depoi s de curado ? perguntou e l l a .
Que fuj a,que procure a sua v ida . O resto é
com e l l e e com Deus,que é Pae de mís e r i co r d i a !
CACADAS P ORTUGUEZAS
n he co ! Cada garimpo ! E rapariga s então ! Mocetonasde verga a l ta
,ve stida s e o i r a d a s a _p r
'
e ce i to ! A l gumasv i eu agora , que , quando não t e n ham ,ma i s nada
,o
q u e trazem em cima de s i é j á uma boa folha,para
um rapaz de porte se governar . O meu Jos é l á é st ava de conver sa com uma . Eu bem o v i
,mas fi z
que n ão . Que e l l e para a l l i não va e mal guiado .
Toda e l l a era o i ro ! Arrecadas , ao s pare s , em cadao re lha , cordõe s a s s im as vo l ta s ,
'
e g ros so s ;coraçõe s ,a l gun s tre s , e c ruze s muito boni tas dua s pequenase uma grande ! E tudo aqu i llo s e v ia que era novo .
D i nhe i ri nho fre sco . . Umas parti lha s de ha pouco .
É fi l ha de l avrador . O pae dizem que de ixou umc a são ás hlha s , que são duas . F o i o que me di s se ram .
— De forma — di s s e mestre João — que a vocêt ambem lhe n ão vae mal n a fe sta , faz negocios em comprar , n em vender : emprega o se u fi l ho . El l et ambem mere ce —o — que
,s em offender n inguem
,é
um rapaz como uma flôr .
Mal me fi ca d i z e l—o — mas lá i s so é . E ape sa rde t er a qu e lle corpo , e s er homem as d ire i ta s ,o lhe que nunca me fa l tou ao re spe i to . Nem a mim
,
n em a mãe,que D eus haj a . A inda não me d e u um
de sgosto como i sto . E com o po lleg a r 0 Joaquimapontava a cabeç a d o dedo m ínimo .
É verdade , é verdade d i s se ram os que e stavam pre sente s n a loj a d o mestre Joao — o regedorno l argo , em frente da egre j a .
Eu tambem os ou vi hon tem,sr . Joaqu im .
La e stavam ao de safi o . E mai s é que e l l a,sobre se r
bon ita cachopa , canta bem . Dl
aqu e lla pode - se dize r
(SACADAS P ORTUGUEZA S 24 1
que se o pe i to é d oi ro , a garganta é de prata . El indas cant iga s
,que e l l a tem no regi s t ro ! A i nda me
l embra e sta :
D e sc e i,an j o s ! D e sce i
,a n j o s !
V in de po isa r n o C a l va r i o !V i n de c o br i r c om a s a z a s
a Se n ho r a d o Ro sa r i o !
Ora a fe sta é a Senhora do Rosario , e en tão jávêem como a cantiga vinha a j u s ta . E todas e ramas sim
, fi nas , como e sta . A qu illo j untou- se a l l i gente ,
qu e , s e ca i s se um alfi nete , não ca i a no chão .
E O amigo Si lva apanhou - l he logo a canti gaNão fosse voc ê tambem cantador
Aprendemos un s com os outros . I sto n ão andanos l ivros
,e então v ae de o u t iva . Quem mai s e me
lhor ouve,mai s sabe .
“Mestre João, qu e , s entado na sua cadei ra , dentro
d o bal cão , pre si d i a a e sta academi a ru sti ca , era oregedor da te rra . O sr . Joaquim do Gie sta l
,que
voltara da sua ronda pe l a fe i ra,exerc i a a s fu n cçõe s
d e cabo ge ra l . Refre sc ara- se com um copo d e vi nhoverde , e sen tara- se tambem . Os outros soc ios e stavam d e pé , en costados ao bal cão e as porta s .
Propri e tario , l avrador e logi s ta — o digno fu n cc i onario e r a das pe ssoa s mai s gradas do logar
,e por
t odos e stimado . Quem o vi s s e com a sua barba aindanegra , e spe s sa e cre sci da
,grande s sobrance lhas
,a s
mãos forte s e cabe llu d a s , e a vo z gross a d e baixoprofundo , tom a l -o —i a por um F e r r abr a z d e r e spe i
to , mas todos afli rmavam q u e e r a a bondade em1 6
242 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
pe ssoa . Apen as a lg u n s ,
'
d o s qu e lhe fa z íam'
0ppo s i
cão nas e le i çõe s , diz iam qu e e l l e , .
quando moço , sepegara um di a com um dos va l ente s do l ogar , 0 d e sarmara
,e de ita ra por uma rib an ce i ra . Outros afli r
mavam qu e não , e e ram i n venções dos seus in imigo spol i t i cos .
Tudo podia se r —
qu e os homen s bon s , quandote em força , e os provocam
,fazem como os outros
—'saem dos seus e ixos e dam para ba ixo .
De pouca s pa l avra s,i s so e r a e l l e . Mas havia uma
phra se, qu e lhe andava sempre n a bôca : e r a e sta
— Tempos c a lamitosos !Tempos cal amitosos ! — costumava e l l e dizer
,
a mai s l eve sombra , que surg isse no seu horizonted e homem , de l avrador ou de au ct o r i d ad e .
Tornar-se - i a uma a l cunha, e moer iam- n —o com e l la
os seus adver sarios,se fos sem seu s in imigo s pe s
so ae s ;mas a verdade é que e l l e n ão os tinha , e d ah ia d i caci d a d e sertane j a não repara em coi sa s tão p équenas . Mestre Joao ouvi ra aque l l a s palavras a umcandidato a deputado
,di s correndo deante dos seus .
e l e i tore s — e , como 0 orador a s r epe t ír a varia s veze s ,deram—lhe no goto
, e e l l e guardou- a s, e recorr i a a
e l l a s nos ca so s graves . Eram o seu bordão .
Tran sbordava o Mondego , inundavam—se os campos , fa l tavam as chuvas , e morri a o gado á sêd e ;
ca i a o m in i ster io, qu e e r a da sua pol í ti ca , chegava
lhe a noti c i a d a lgum motim e l e i tora l numa te rra vis inha
'
; afundava um tempora l dua s ou tre s l anchas.
po ve i r as;'
vinha a lgum desta camento, qu e e l l e t inha
d e aboletar . Tudo i s to e l l e commentava com a su a
244 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
desvai rados,e o ffe g a n t e da corri da , l evou as mãos
enc l av inhadas quas i a' c ara do regedor .
Vamos l á . Vamos — di s s e e l l e . Mas o qu e é ?
D i z e—me,Mariquinhas !
El l a,sem re sponder
,vo ltara costa s
,parti ndo , a
gritar como louca , pe l a rua foraQue d e sg r aca na minha c a sa ! Acudam ! Acu
dam !
Quando mes tre João chegou a porta do Domingos 'da Azenha
,e i a a entrar , e stacou d e repen te .
Os que o acompanhavam fi zeram o me smo .
— Je sus ! — di s se e l l e , abr indo os bracos , com asmãos l evantadas , no ge sto de quem repe l l e al gumaco i sa
,e re cuando .
— Je sus ! O que é ?Eo Domingos repet iam eperguntavam , no po vo le u , os que não viam a causado e spanto do regedor .
Ao me io da cas a d e entrada,d uma das trave s do
tecto , pend ia , suspen so no ar , um grande vul to . Aquadra era grande e e scura
, e d e fora para dentronão se vi a b em , mas me stre João afli rma r a—se , e v iraque e r a com e ffe i t o um homem enforcado .
— Não é o Domingos . E quem é morreu agora—di s se e l l e , vol tando- se para os outros .
A s u l timas co n t o r sõe s da morte acabava de asvêr , e por i s so re cuara .
Su spensos deante do extranho e sin is tro e spe cta
CACADAS P ORTUGUEZAS 242
culo,n inguem se atreveu a entrar
,e nos primei ros
momentos hca r am todos em frente d a porta,olhando
para dentro , immo ve is como e statua s .
Os gritos da R u ssa e a pre senca da a u ct o r i d ad e
chamaram logo a l l i toda a gen te, qu e os ouvi ra .
O qu e é , t ia Maria ?
O que foi ?Mataram o Domingos ! re spondeu um .
Nada,não . Enforcou- se e l l e — emendava ou
Porque se ri a ? in s i s t i am as curios idade s , agucada s j á para os pormenore s .
Não se s abe di s s e um terce iro,com are s gra
ve s , dando o caso j á por certo .
E assim i am os curiosos e alvi ca r e i r o sdi s creteandod e grupo em grupo
,ouv indo
,i nventando
,e e spa
lha n d o d is l ate s e menti ra s como é de uso tambemnas grande s c idade s .
Ao longe ouvi a- se o som grave do bombo e a s
notas agudas e s ib i l ante s d uma ga ita de fol l e s , rebo a n do nas quebradas da se rra frontei ra , e pel ae st rada vinha um rancho para a fe sta , cantando a
F a r r ap e i r a .
O'
a i ! O '
a i !
Q u em'
sco r r eg a , tamb em ca e !
246 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
Uma cho r éa rus ti ca , a l egre e rui dosa .
El l e s — os rapaz e s — com os grandes chapeus bra
g u e z e s , ornados d e enorme s bor l a s de t o r ç al preto ,cami sas d e pr e g u i n ha s , a l gumas com botõe s d e prata
,
“ j aqueta s d e a lama r e s , larg as c intas ve rme lhasama r e lla s , pre ta s , a z u e s , verde s; outros d e barrete s ,tambem de côr e s va r i eg a d a s ; todos de sapatos b ranco s com os seus pe spo n t o s vi stosos , e grande s ca
j a d o s , com as ponte i ra s bri lhante s como oi ro . Nosd e mai s e d a d e as côr e s eram neutras , fazendo dest ac ar a qu e lle s ton s v ivos e cru s , que , como os d umk a le i dósco po , remo inhavam na dança .
El l as — com as sua s cami sa s bordadas , os corpet e s j us tos , apertados n a c inta , e avivados d e côr e s
c om botõe s d e meta l l uzente — contorn a'
ndo—l he s osbustos forte s e e l egante s , a s sa ia s rodada s e curtas ,as meias brancas
,a s chi n eli t a s de b ico revol to
,a
m ei o pé,e n a cabeça
'
o chapeli n ho , a' l avrade i ra
,
sobre garri dos l en cos d e ramagen s , que , na de se nvol tura dos movimentos
,ora cob riam ora de scobriam
o s rostos morenos e rosados , d onde l he s sa l tavamos o lhos a l egre s e bul i çosos . Olhos pen insul are s
,
«olhos de vint e anu os,que , n a sua v iveza , faz i am
concorrenci a vencedora ao e sp l endor das arre cadas,
aos grande s co r acõe s de fi l i gran a e d oiro bat ido , eá s core s e s t r e lla n t e s dos l en ços ,
"
que e svo acavam !
Sobre e sta symphon i a po lych r oma, desordenada
'nos pormenore s,mas harmon ios a no co n ju n ct o , d e s
tacavam — como un s p i g i ca t o s, che ios d e e spo n t a
n e i d ad e e d e fre scura — a s v ivas notas colori das da sflôr e s do campo
,com qu e e l l e s e e l l a s pe lo cami
248 CACADAS P ORTUGUEZA S
A t a do Domingos da Azenha entrara , sem hés i tar e sumira-se no i nterior . Er a '
a n imo sa a pequena . F ôr a dar uma vol ta pe l a ca sa — não se t ive s sel á me t t ído al guem , emqu a n t o e l l a foi chamar soccorro .
Mestre João , depoi s d e fa l a r com o seu cabo g eral
,entrou , de scobrin do—s e . At raz d e l l e s egui ram to
dos,de ixando no meio , em volta do morto , um e s
paço l ivre . Era o natura l re spei to pe los mortos , e ai d éa do crime , o que os affa s t ava do si n i stro vu l todo enforcado .
A l gun s,mai s atrevi dos , correram os quartos todos ,
como em busca da exp l icação d '
aqu e lle mys t e r io .
Com e ffe i t o 0 ca so e r a para faze r pen sar ! Um ladrãoenforcar-se na propri a casa , qu e queri a roubar ! .
Nunca s e v i ra ta l coi s a ! E em te s to s ri j o s,como
aqu e lle s , n ão entrava fac i lmente a poss ib i l i dade d eseme lhante tragedia !Esquadrinhados todos os recantos
,vol ta ram e e s
tacaram deante do morto,olhando ora para e l l e
,ora
para o regedor,ora para a Mari quinhas
,que
,ainda
so lu ca n do , estava a um canto , encostada a arca , s obr e a qua l se vi a uma grande faca .
Mestre João sentara - se,perco rrendo com os ol hos
a ca sa , e encaran do attentament e o enforcado
qu e e l l e j á re conhecera . Depoi s l evantou-se , e , comopara ti rar duvidas , fo i ao pé d e l l e , e examinou -o deperto .
CAÇA n A s P ORTUGUEZAS 249
—E” e l l e
,é . Está d isfa rçado
,mas bem se conhece .
Cortou barba, e n ca r vo o u
-se,e amarrou um lenço
aos que ixos .— Enganou a pequena , mas a mim não
me emba cava .
E term inado e ste monologo i nte rior , chamou o fi e lJoaquim e di s se- l h e em segredo
E ,
0 Jos é Ta n o eír o . Mas como e l l e arran jou e st epar de bota s para i r para 0 outro mundo , é qu e e unão posso at in ar !
El l e sempre fo i ma r e z . E por i s so ve iu corr idol á de Vi l l a Nova de Gaia — di s s e 0 cabo gera l .— Q u ee l l e n ão é nas cido aqui . Ma rez — s im ,
mas não e r atol o . A h i j á se rosnava d e l l e , e eu , cá por coi sa s ,traz i a-o j á d e olho .
Vamos lá ouvi r a pequena — di s se a l to me streJoão .
— E o sr . Joaquim tome n ote das re spostasd'e l l a , e os senhore s pre sente s s e j am te stemunha s .
Q u e e u d is to l avra re i auto — cá para me u governo — auto que o s senhore s a s s ig n a rão como souber em .
Ora anda cá, menina, e agora , qu e j a e stásmai s so ceg a d a , conta-nos como foi i sto tudo . Eu querosaber tudo
,de sde o prin c ípio . E quem é e ste ho
mem ,se tu 0 conhece s . Em Em tudo que é para
e u dize r a j ust iça, e tu d e sca n ça r e s , e t eu pa e
não t e r traba lhos — porque,no fim de tudo , 0 qu e
nós vemos , por agora , aqui , é um homem m ortoem tua casa , e então é pre c i so sabermos como i sto
E depoi s d e ste p r e ambu lo ,'
qu e não foi ci ce ron ico , mas qu e todos en tende ram ,
fe z - se si l en c io .
250 CAÇADAS PORTUGUEZA s
A Ru ssa s a i rá do s eu canto , e j a e stava em pédefronte de me stre João .
—Eu vo u diz e r como foi . A O princ ip io n ão o con heci ;
Ao pri ncip io ?— ob se rvou o regedor . I s so a s“
s im parece-m e qu e não va e bem .
Sim , s enhor , ao pr incip io — r epe t iu'
e lla . Por
q u e e l l e t raz i a a cara tapada , e fa l ava com outravoz .
— Mas o lha,menina
,ha de haver outro pr inci
p io ante s d e s se .
D e scu lpe o sr .
- João .— Eu ainda n ao e stou bem
em m im . D á-me a ss im baque s a cabeça . Pare ceme que me fal ta o ar ! Mas eu conto . Eu vou con
t a r tudo de sde O pri n cíp io .
Quando m e u pae , ho j e de manhã cedo , foi paraa azenha
,l evou a e sp ingarda , e d isse—me que não
abri s se a porta a n inguem,e que
,se e l l e matas se
a lguma perd iz na serra,m
i
a mandava ca, ou vi nhae l l e traze l—a
,mas qu e o mai s ce rto e ra manda l -a .
E foi—se , repet indo -me : Tem cuidado com a porta..
Parec ia e l l e que adiv inhava ! Eu cre io que e l l e andavadesconfi ado d al guma coi sa , porque j á n ão saía d eca sa s em a arma .
Ha pedaço,e stava eu lá dentro , s ent i mecher n a
porta,e pergunte i
,mesmo de l á , quem era . A voz
.qu e me re spondeu , pare ceu-me a do Ca ba ca , que é
252 CAÇADA s P ORTUGUEZAS
E eu , toda a tremer , fi cou-me aqu i a vo z pre sa ,e puz a cara no chão .
J á e stavamos cá em baixo — a l l i,aque l l a porta
e apon tou para a porta i n te rior . El l e n ãot inha l argado a faca da mao . Agarrou-me pe lo pe scoço
, e com u n s o lhos as s im, qu e lhe sa l tavam da
cara , diz-me
— C0mo quere s tu morre r ?Com a faca n ão ! Não ! gri te i e u .
— Não gri te s , que n inguem t e acode . Vae s en tãomorrer enforcada . Uma corda ! Va e buscar uma
corda .
— Não s e i onde e stá .
A pe z a r do medo grande , e u ia—lhe re sponden do , .
Queri a vive r . .
Olha , e stá a l l i uma n aqu elle prego — e fo i bus
— A i ! senhore s , d e que eu e scape i ! Foi Nos saSenhora qu e me val eu ! . E num in stante fez um
l aço , e , sub indo aqu elle banco , armou-o n a t rave ,puchou po r e l l e com forç a
, e chamou—me , que lheseguras s e o banc o . E quando e u lh
i
o e stava segurando , e t remia como vara s verde s
,o malvado d i z
me as s im , com uma cara . A i ! sr . João, eu ainda
i s to me parece menti ra !—Mas o que te d is se e l l e ?
— Q u e queri a experimenta r , ve r se o l aço corri abem , para n ão faze r doer .
Q u e grande malvado ! O pati fe , ainda em cima ,e stava a mangar comt i go !
E va e,me t t eu e l l e a cabeca no l aço
CAÇADAS P ORTUGUEZAS 253
E depoi s — pe rguntaram todos,que i am acom
pa n ha n d o , com os olhos a t t e n t o s na rapariga , a narr a t iva .
Depoi s,não se i como fo i . Eu não lhe segu
rava j á o ban co , que lhe fugiu dos pé s E e l l e ficou a s s im no ar ! . Eu
,quando o vi a dar com as
perna s, e com as mãos agarradas ao pe scoço , corri
ao sotão,s a l te i para o quinta l
,e de la dei te i pe la
e strada fora , a gr ita r .
Porque n ão'
foste por e sta porta ?Não
,senhor
,que e l l e t inha me t t id o a chave n a
al gib e ira . Eu j á di s se . E el l a l á ha de e star,mai s
o dinhe iro .
Mas e l l a e stava aberta .
E , que a arrombaram , depoi s d e eu sai r d aqu i .Então tu não o a judaste a bem morrer D iz e
l á ! Tu se r ia s capaz d e l he pu cha r pe l a s pernas , vendo -o a l l i s eguro
,he in ?— E mestre João fi tava os
o lhos d a (
Ru ssa ,a ve r s e de scobri a ne l l e s a co n fi r
mação da suspei ta , que lhe pas sara pe lo e spír i t o .
Eu ! s enhor João ! — respondeu e l l a,com O olha r
e spantado , e um ar de medo e pasmo . E recuandodeu um gri to , e ca iu no chão
,e scondendo o rosto
na s mãos convul sas .Corre ram a leva n t a l-a .
— A i nda e st á vivo ! — g ri tava e l l a , debatendo—s ee spavori da , apontando para o morto , qu e balo u cavano a r .
— Foste tu qu e l h e de ste com as costa s , quandorecuaste . So ce g a , pequena , que e l l e e stá mor to e bemmorto . Tirem-n -o d ahi , e ponham—n -o aqu i no chão .
254 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
O 'Jos é da Magda l e na di s se o rege dor , apontan dopara um dos p re sente s — é que fi ca de gu arda acasa
,e vam avi sar o Dom ingos d e qu e t em c á um
hospede,e que , se matou a
'
pe r d iz , hã-aqui quem
lhi
a a jude a comer . E vamo—nos embora, qu e e s t a
e stava- nos.
guardada para o fim da festa !E o dinhe iro de meu pae
,que . e l l e t em al l i n a
al gib e ir a ? — perguntou a Ru ssa .
Já lá vamos , meni na . Tu sabe s quanto e r a ?
Eu não , senhor ..
Então va e—se véiªD á—m'o ca.
Eu ! — d is s e a pequena , toda encolhida .—O
senhor José .
Jos é, d ei
-mi
o tu .
—Vamos la, qu e O l adrão ti nha faro ! Ol é , se t inha .
'
Tem seu pe so obse rvou o Jos é, sope sa n d o
o saco,quando 0 t i rou das al gib e i ra s do morto .
Os que estavam al l i fi taram os olhos no the so uro
, qu e pas sara as mãos de mestre João . O regedorva so u -o em cima da arca
, e contou para s i o d in he i r o . Depoi s do que tornou a m e t t el-o n o saco ,que atou muito bem
,e,abrin do a arc a
,deixou -o
cai r dentro e fe chou—a .
— Agora fi ca aqui . O que t u dirás , José , ao t ioDomin gos , quando e l l e v i e r . E c a
'
.l evo a chave d a
arca . Tu ten s medo d e aqui fi c a r ? Estás as s im com
cara de g a lli n ha cos i da ! Todo arrip i ado !Se lhe parece que o c aso n ão é para i s so , me s
t r e João !Olha l á .
— Como a ca sa tem saída pe lo quin ta l ,qu e âqu e outro de vocês de guarda as t r a z e i r a s . .
256 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
Mestre João o uviu , e, vol tando—se para o l adod onde parti ra a cen sura , d i s se
—' Eu quero qu e
' s e j a e l l a quem fa l e aqui deantede todos
,porque dos do is
, qu e entraram ne ste caso ,um j á não fa l a
,e ainda q u e fa l a s se e r a su spe ito : re sta
a rapariga . Eu j á a interrogue i la, no l oca l do crime ,e j á fi z a minha i dea . Mas é p r e c i so tambem qu e ossenhore s a ouçam . E eu tambem quero fi c ar s em asombra d uma du vida ace rca do modo por que aqu i llose pas sou . Como regedor tenho de dar parte do casoao senhor admini strador do conce lho e ao senhorprior d a freguez ia — aqu i mestre João fez um apa u sa
re spe itosa . Quero por i s so e star b em certo do qu el he s tenho a dize r . Agora dize tu , Mariquinhas , comotudo se pas sou . Este s senhore s , que são todos amigos d e t eu pae , t e em muita vontade de t e ouvir .
Terminada a narrat iva,a a s sembléa foi—se e scoando
l entamen te,impre s s ion ada pe l o tragico acontec i
men to , e admi rando , ao me smo tempo , O sanguefrio da rapari ga , que , em tão apertado l ance , nãoperdera d e todo a cab eça , e procurara defender odinhe i ro do pae , e a v ida , tão sér i amen t e ameacada !Nas fi l e i ra s da o ppo s ição fi zera e scanda lo o grace jo
do regedor , quando se referiu ao hospede, qu e o Do
mingos v inha achar em casa , para o a judar a comera perd iz . Um horror ! O Esteves , quando o soube ,foi l ogo co n t a l-o ao Gon ça lve s
, e e ste pa s sou-0 aoTavare s da Galli n he i r a antigo regedor que 0 assen tou no caderno das accu saçõe s , qu e e l l e havi a d e
CACADAS r o ar u o u eza s 257
faze r val er contra o me stre João , qu ando o se u pa r
t ido sub i s se ao poder .O d a Galli n he i r a — al c u nha qu e lhe vi e ra d amãe
— ao ou vi r a hi stori a , o lhou para o s eu compadreS i lva
, e , pi scando 0 olho , repl i cou-lheNão me admira . El l e sempre fo i l eve d e lín g u a
e de mãos .
O riva l venc ido e despe i tado a llu d i a mal i c iosamente ao ca so da ribancei ra .
S im , sim confi rmou o outro, com tom se n
t e n c i o so . Neste s.l ogares tem a gente obrigação d e
medir as pal avras . E com os mortos n ão se brinca .
O nosso prior tambem não ha de gostar , quando osou be r ..
- E. n a tu r alrr i e n t e não ha de tar dar mui to . Eu
vou l á agora, e j á vo u encontrar a novidade , aposto .
E vo u,po rque tenho que fa l ar com e l l e po r causa
d uma certi dão .
Estas u lt imas pal avras di s s e—a s o Esteve s por di s
far ce . O ún i co motivo que o l evava a procura r opr i or
,er a in form al—o do esca n d a lo so procedimen to
do regedor . Não podia pe rder uma o cca51ao taoa zada para o i n tri gar .
Mestre João , quando se v iu só na lo j a com 0
J oaquim do Gie sta l , depoi s d um s i l e nc io d'
al gun sm i n u t o s ,
'
em que esteve d e certo mergulhado em! 7
258 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
t étri co s pen samentos, su spi rou , l evantou os olhos a oal to
,e exc l amouJoaq ,u im ,
Jo aqu im'
!“Tempos ca l amitosos !
Des cu lpe eu c ontradizer a sua pal av ra ho nrada — rep l i cou o x o u t r o n— r mas 0 que devemos dizer ne ste caso
, aé : . qu e onde e l l a s s e faz em ,ahi s e
pagam !E tambem é certo que D eus e screve di re i to
por linhas tortas,e stava eu cá pensan do agora
acre scentou me stre João l evantando-se e pondo a
mão no hombro do Joaquim .
Como as s im ? —
pe r gu n t oui
o do Gie sta l,s em
perceber o sentido das pa l avras do s eu amigo .
"
- Você não entende ? Eu lh i
o exp l ico . Quando ohomem se v i u descoberto , p e rdeu a cabeca , e , s enão acha uma corda a l l i a mao
, e r a uma ve z a R u s
sa .
! El l e degol ava a pequena . Que a furi a dos med r o so s é d e t emer ! E nós t i nhamos agua pe l a barbapara darmos com o l adrão , com tanta gente
,que
ah i e stá de fora ! E fo i e ste o cal cul o d e l l e , aprove i tan d o e sta o ccas ião . No qu e se enganou , e t ambem em j ulgar que e l l a não o conhec ia , as s im di sfa r cad o . Mas 0 diabo cobre com uma manta , e d e scobre com um chocal ho
,e a R u ssa pescou o marau
pe l a voz . Já se vê d a qui , que , quem sa lvou a vidada R u ssa e 0 dinhe iro do pae , fo i a corda . Se e l l anão appa r e ce a l l i e l l e matava e roubava ! . E talvez se Hca s se a r i r da tropa ! As s im ,
agora , fi coutudo como e stava
,e ha um l adrão -a menos ! Deus .
es creve d ire i to por l inhas torta s ! — A l inha aqui éa corda
, qu e é tambem uma l inha gro s sa e torta . E
Ulm oas is emCar n ax ide
A o d r . Lu ca s F alcão .
A n d avamo s , Joao For j az , eu , e outros , at irandoás perdiz e s nos arre dore s de Li sboa .
C acavamo s em te rrenos de sconhe cidos,abr a z ava
nos o calo r,a sede começara a torturar-me
, e n aoviamos fonte algu ma ! Aproximamo-nos , portanto , dopovoado
,e,av i stando uma quinta de b e l l a appa r e n
ci a , muros al to s , e l argo portão , di rigimo—nos para l á .
A ! fa l ta de perdiz e s,que n ao e n co n t r a r amo s , i amos
matar a sêd e . E poderi amos tambem d e ste modosoph i smar agradave lmente a vergonhosa g r a d e, quej á nos ame acava .
O mag e s t o so portao e stava cerrado , mas , aprox ima n do —me , senti o grato mu rmu r i o da agua corrente !Um o a s i s no de serto , aque l l a v ivenda , qu e al l i se
nos deparava ! Uma verdade ira s a lvação — porque
262 CAÇADAS PORTUGUEZAS
a inda qu e , em ve z de Z achar i as eu me chamas s eMoysés
,e t ive s s e nas maos a mi l agrosa vara
,fa l
t ava me o rochedo ! Ao perto e ao lon ge, quanto oso l hos .pod iam a lcan ç a r , nn a o v iamos sen ão re s tolho e
ca lh aus !
Uma verdadei ra d e so la cão ! Uma d aqu ella s ari das
pa i z a g e n s d o Oriente , que Lot i nos pi nta em quatrotracos ! Faltavam- l he so os came l los e os bed u i n o s !Mas se a sêd e continuas se
,quem sabe s e n os che
g a r i amo s as a llu cín a cõe s da mi r a g em, e então com
ple t a r- se - i a a vi s ão
,para al l i tran sposta
,do Grande
De serto ! E ver íamos camel los,bedu ínos
,e tudo !
A porta,com a sua grande argol a e a a l ta e l arga
mol dura de can tari a,t inha a a ss i g n a t u r a do se
cu lo XVI I I,e impunha re speito .
Esprei te i pe l a fechadura . Em frente,n ume spa
coso pateo,vi uma fonte
, d onde corri a um l argo
j orro d a gu a'
c rís t a li n a ! Levante i o argol ão e bati , eao cre ado
,que immediatamente no s appa r e ceu , ped i
agua para mim e para os meus companhe iros . Mandou-nos logo entrar
,facu l tando-nos a alme j ada lym
pha .
A O ruido da noss a entrada e a appa r i ção dos i ndi s cre to s perdigue iros , as somou a
'
porta da magn ifi ca v ivenda o seu propri e tario . Reconhec i-o l ogoe r a o meu companhe iro da barca d a Azambu j a . R e
conheceu—me e l l e tambem,e com e ste an imo hospi
t ale i r o , tão nos so , convidou-nos a de scançar. e tivemos qu e lhe agradecer n ão só a de l i c iosa agu a dasua fonte
,
'
mas a cerve j a e a s bolachas qu e , em se
guida,nos o ffe r e ceu ,
l evando a amab i l i dade ao ponto
264 CAÇADAS P ORTUGUEZA S
evocavam-nos a l gun s dos per sonagens , qu e entrevemos
,t ão bem de senhados , nas famosa s carta s d e
W i l l iam Beck ford . Era aque l la,decerto uma das
e le gan te s quin tas,de que e l l e nos fa la
,em belli ss i
mas d escr i pç õe s , e po d er i a b em se r a que i n sp irouas famosas qu i n t i lha s do nosso chi s t o so poeta .
Um typo , um specimen este , a dmirave lmen te conse rva do dos sym e t r ico s j ardin s e s tylo Luiz XIVdo cl as si co Le n ôt r e . Um a e spaçosa e en can tadoravivenda , dominando um va l l e , que va e des ce ndosuavemente , e , apertando- se entre acci dentada s e
grac iosa s col l i n as,deixa ve r la em baixo
,ao fundo
,
o Te j o e os monte s da Outra Banda .
Maus con se lheiro s d izi am ao doutor qu e fi z es s esurgi r a arte moderna n o l ogar d aq u ella velha r i a
El l e pergun tou-me a minha op in ião . O l e i tor imagina bem qua l foi .Vote i
,votamos todos pe l a co n se rva cão do passado .
D e s trui r um exemplar tão perfei to,como aq u elle ,
e d uma época tão caracter i st i ca n a arte dos j ard in s,
quando e l l e s , i nfe l izmente , j á são rar í s s imos en trenós
,sub sti tuindo-0 po r un s cante i ros rasos , pe l a s
ba n a e s co r be i lles , que se en contram em todos o s
j a r d i n z i n ho s e praça s da ci dade , seri a um acto dei co n o cla s t i smo , al t amente bu r g u ez e d eplo r ave l ! Etanto mai s digno d e censura , quan to e l l e — o doutor — é um amador das arte s
,e , depoi s d e canc ar
os o lhos com a calyg r aphia a r r eve z a d a dos proce sso s , gosta d e os de scançar , n a sua gal eri a , numa
pa iz ag em , .n uma scena , fi amenga ou ho lla n d ez a ,d al gum mestr e dos bons tempos .
(SACADAS P ORTUGUEZAS
Saímos fi nalmente do o a s i s , e achamo-nos outravez no de se rto ! — R e s t o lho , e ca l haus , e um so l derachar ! Val l e s e encosta s , tudo o me smo ! Sombranenhuma ! . Nem mesmo . a das perdize s !Estava e s cripto mai s uma j a n ella ! Um do s
meus companhe i ros, qu e e r a fol gaz ão , diz i a —nos que
j a'
vi era d e ca sa com ruim agoiro . Ouvi ra de noitep iar um mocho nos co r u cheu s da egre j a de S . Franc i sco de Paul a
, e de manhã , logo ao sair , dera umatopada ! E por i sso não topámos nós com as perdiz e s !Mas se e u de lá n ão trouxe caça , trouxe a im
pre s são agradab i l í s s ima da minha imprevi sta v i s i taao me u amigo
,o dr . Lucas Fal cão ; e verá aqu i o
i l lu stre j uri scon su l to,ne ste auto de scriptivo
,que a
con servo tam fre s ca n a memoria,como
'o era a aguada Naya d e da sua bel la casa d e campo da Qu intad e C ima d e Carnax ide .
268 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
cac adore s José Pedro da Cost a — falle cen ain dan ovo
, em 1 824. Prim o e concunhado de m eu pa-e ,
fo i gr a n de c acador.Esta hi storia , t ão dolorosa e trag ica re cordacao
nos de ixou,que só a mi nha irmã a ouvi , e a muito
custo a repetia . Era extremamente devota , a boa s enbora
, e , no decurso da narrat iva do caso nefando ,l embro-me
“
qu e , ás vezes , se benz i a , como s e 0 e spir i to mau lhe appa r e ce s se a l l i , e e l l a 0 qu i z e s se e s
con ju rar !Nós — eu e a s outra s cr e a n cas de ca sa — e r a e x a
c t ame n t e a qu e mai s g o s t avamo s de ouvi r . E, com
effe i t o , n ão t inhamos mau gosto .
Era uma vez . Como i sto se pas sou ha mu i to,
pode a h i stori a p ri ncipi a r as s im .
Era,poi s
,uma ve z um caçador . Nao
,não digo
bem — não e r a um , porque eram cinco os que andavam caçando , no A lem t e j o — nas imme d ia cões d e
Moura,Ferre i ra , ou Serpa ? Ao certo não o sei
s e m º
o di sseram , e squec i—o . El le s eram d es s a s terra s , mas , para n ao ment i r , n e sta hi s tor i a ve rdade ira ,fi ca em branco o nome do s itio — que e l l e tambempouco importa para o ca so .
Andavam , poí s , ca can do os bon s caçadore s , quando ,l onge d e todo o povoado
,o s su rpr ehe n d er am a s som
bras da noi te . Muita vez ta l l he s succedera nas sua sexcursõe s
,nem ell e s , hab ituados a vi da fr ag u e i r a ,
CACADAS r omº
u o u ez x s 269
e stranharam i sso : e ram cin co homen s forte s e val en te s , costumados a l evanta r e força r o s l obos e o s
j ava r d o s no covi l , de di a e de noi te , a faca e a ti ro ;mas tambem t inham , como o s fracos , vontade d ec e i a r , e não lhe s sorri a de forma a lguma a pe r spec t iva de uma noite pa s sada ao re l en to
,obse rvando
a r o t a cão dos a stro s .
E iam caminhando,e não viam nada . Nem gente ,
n em vi s lumbre d uma casa !E a no ite i a cre scendo
,e em vão procuravam lo
br igar al guma luz,que os guiasse n aqu ella s treva s .
Nada viam .
E appli cavam o ouv ido a terra , de i tando-s e nochão como os se lvagen s
,a vêr se perceb iam algum
ru mor , qu e denun ci ass e proximidade d e gente viva .
E nada ouviam .
Tudo de se rto,tudo s i l enc ioso
, n aqu elle s campose charneca s ! Nem v iv'a lma ! E as trevas crescen do ,e a noi te avan çando .
E iam cam inhando .
Senão quando,lá ao l onge
,furando as treva s ,
appa r e ceu- lhe s uma luzinha
, qu e ora bri l hava , or ase sum ia .
Olha al ém . Uma luz !_ Estamos sa lvos ! —
g r i t0u um .
Estamos sa lvos ! — repet i ram todos .
— Em boa hora 0 di gamos— di s s e Jo sé P edro0 mais ve l ho dos c inco .
E e s t u ga r am O passo os bon s cacadore s .
Ei s qu e l he s appa r ece um vul to .
Era uma ve lhin ha .
(SACADAS PORTUGUEZAS
— Ti a s i n ha , guarde—a Deus .Que D eus os guarde
,senhore s ,
O que ha n a qu e lla ca sa ?
Mau couto para c aça dore s .
Vá de brincade i ra . Não é o s it io az ad o paraoute iros . Vocês parece que e stao a faze r versos !
Mora gente a l l i ? — perguntou Jos é Pedro .
_ Morava sim , senhor . Era o Lu iz Preto , O guarda— mas agora não e stá l á n inguem vivo
—E aque l l a luz ?
Está-o a llum i an d o , que e l l e morreu ho j e . Euvenho de l a
'
agora .
E a ve lha sumiu—se n a e scuridão da noite .
Olha que encontro ! Ti
a r r e n eg o ! Uma ve lha e
um d e fu n c t o ! O , Jos é , não te che ira aqui a e nxofre ?
A qu illo é a lguma bruxa , ou o d iabo em pes soa !C ruze s ! — di s se um dos companh e i ros , com vo z
grossa,que queria parece r fi rme .
— Aqu i nes ta s a l tura s,amigos , não ha por ond e
e scolher . Na guerra como na guerra . Vamos te r com0 morto .
— Talvez que fos se ce ia r com o diabo — ob servouo da vo z gross a . Pois fe z mal , que , se e speras se pornós
,i a a co n cheg ad i n ho .
— Se morreu de fome,com e s t e p a i o e e sta p inga
ainda e r a capaz de r e su sc i t a r ! — acre s centou outro .
E,di scorrendo ne ste e s tylo , qu e não é o do medo ,
mas que as vezes o e ncobre , chegaram ao tugur ioos c inco caçadore s .
272 CA ÇADAS'
P ORTUGUEZAS
A l a re ira j a crepi tava , e os a l egre s companhe iro s ,uns sentados
,outros encostados a parede , l amenta
vam que o c atre e stive ss e o ccu pa do por quem j án
ã
o apr e ci ava os rega los e as doçura s da vida .
— E!
qu e se arr ei a ao chão ; va e para cima damanta . El l e j á lhe não dóe nada — diz i a um c reado .
Cama fôfa ou terra dura — para aqu elle é tudo omesmo . Quantas vez e s dormiri a es s e fi d algo n o proprio do chão
,para o estranhar agora
,depo is d e
morto !Mas nós ain d a não lhe vimos o rosto ! — e o
qu e: di z ia es ta s pal avras — o A l exan dre — r apagão
verme lho , a l to e e spadaú do,appr o x imo u -se do ca
t r e , e leva n t o u'
o l encol .-Ca r amba .
! Ma la ca r a t i e n e l— di sse e l l e,r e
cu a nd o um pouco,com o s olhos pregados no cada
ve r . É grande, e n egro como o. demonio ! Parece
da'
pau santo. ! I sto an dou n a Serra Morena !— Po i s s e andou
,olha
,A l ex andre
, qu e não en r i
que ce u n o offi cio .
— Cá es tá a e spingarda do homem ! — ! g r itou deum can to um dos caçadore s .. Se e lla fa l a s se .
— Q u e grande g i lvaz e l l e t em na cara ! Agora r eparo continuou o A l ex andre , baixando—se para vêrmelhor — sã o doi s. golpe s a ss im — e com os de dosfez uma cruz .
— E” a Cruz do mau l adrão !
E ,'
ri ndo a bom ri r,dirigin do-s e para a l are i ra
,
A lexandre abriu uma g r a n d e'
cu chi lla , e díz po z—se a
atacar um gordo paio . A s borrachas n egra s tinhamj á sa ido dos su r r õe s , e o sten tavam os boj udos ventre s a luz viva do br a z i d o d'um tronco de a z i n ho ,
CAÇADAS r o ar u o u ez x s 273
q u e Jos é Pedro de scob ri ra afi nal no pobre a l be r
g u e .
Então , A l exandre , t em ma ca ra o nos so pat rão ? — perguntou Jos é Pedro .
Se tem'
! Bon s os sos é qu e e l l e mostra . Secocomo um pau ! Que pena e l l e não a r r a n cha r a ce ia !E hi stori as , que aqu illo havi a de saber ! Agora j ánão da horas , e s t á parado . Po is n ão sabes o qu eperdes ! di s se o face to la t agão , vol tando-se para ocatre , com a borracha j á numa da s mãos e um grandenaco de paio na outra .
Com os mortos n ão se brinca — di s s e Jos é P cdro , com um tom seca º
El l e não t em de qu e se offe n de r . At é,se me
ouvi ss e,havia de agrade ce r a l embrança . N i s to
é que e l l e nunca pôz os be iços — e mostrou o pa io .
Aque l l a s c arn e s c r e a r am—s e corn baca l hau !E com uma gargalhada acompanhou o grace jo o
forte A l exandre .
Houve uma pausa . Jos é Pedro, depoi s da s u l t ima s pa l avras do seu companhe i ro , fi cara muito serio . Os outros rodeavam—n -o , em frente do l ar . Voltando—se para o s doi s , que lhe e stavam mai s pr o x imos
,e l l e e stendeu a mão
,como quem va e fa l a r .
— Parece -me que vocês e stão ahi conversando d ea lminhas do outro mundo .
w Es t avamo s , s im . Mas nós não acreditamos .
Era por fa l a r e por causa do encontro .
274 cx çx n x s po ur u cu az x s
Sim,a o cca s ião é propri a — a noi te escura e
fe i a,a ve lha
,o morto a l l i . O scenar io e stá com
ple t o . So fal tam as va s soura s para - a s bruxas montarem : aqui é coi s a qu e n ão ha . q uanto e l l asa s bruxas — não appar ecem por ahí
,vou—l he s eu
contar a h i stor ia d uma alma do outro mundo, masverdade ira .
— Verdade i ra ! ? A a lma,ou a hi s tori a ? Como foi
então ?Verdadei ra a h i s tori a
,s im . Estão v ivos mui tos
d e s se tempo , que conheceram os actore s : o prinClpal fo i o Jos é Noguei ra d e Arau j o . Lembram—sed e l l e ?
—Se l embr amos ! Valente homem ,que e l le e r a !
De ixou fama .
— Poi s o ca so foi a s sim .
— C0n t a la, conta lei — « d i s seram todos,e a cce so s
os c igarros , âca r am immo ve i s .
Não posso — d is se Jos é Pedro — marca r,ao
certo,quando i s to foi . Jos e Nogue ira e r a j á ve l ho
devi a andar pe los s e ss e nta,mas a fi bra e r a ainda
a mesma . Uma noi te,em casa
,a c e i a
,d is se ram
deante d e l l e que,hav ia dia s
,pe l a vol ta da s duas ho
ras da noite,appa r e c i a n aqu elle s s i tios uma grande
phan tasma branca, d uma al tura enorme , arra stando
ferros . Era grande o pavor com ta l appa r i ção , e damei a noi te em deante n ão havi a j á quem se atreve s se 'a sa i r a rua !Jos é Nogue i ra ouviu com grande a t t e n ção a nar
r a t iva , qu e todos l he affi rmavam se r verdadei ra , e ,sorrindo
,di s s e
276 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
narrador — n i n g u em se de spiu em casa do Jos é Nogue ira . Fizeram semb l ante de s e de i tar , mas todosfi c aram nos quartos
,de ouvido a e scuta , prompt o s
a sa ir a rua , apenas ouv is sem voze s , e rumor d elu ct a .
App r o x imavam - s e a s duas hora s a hora da phanta sma . Na rua Ancha estava um vul to , embu cado nocapote
,e encostado a uma e squina . Era e l l e — o
nos so homem .
Duas hora s a dar na egre j a mai s proxima , e aouvir—s e um som d e ferros
,a rras tando- se l e ntamente
pe l a ca l çada . Jos é Nogue i ra voltou-se l ogo para 0
l ado d onde e l le vinha,principi ando a andar ne ssa
d irecção .
D e repente appa r e ce a phantasma n a bôca d arua . Era como lh'a tin ham d e scr ip t o . A O vel—a e l l eparou , e e sperou
,de sembainhando a sua Neg r a
uma e spada preta,colubr ina
, qu e entrara em muitare frega e v ira muito sangue .
Vinha j á perto a ave n t e sma . Quando a jul gou aboa di s tanc i a atraves sou—se-lhe dean te
, e mandou-a
parar . A phanta sma não re spondeu, e continuou a
caminhar . Jos é Nogue i ra deu um passo a frente ,d e sembu ç a n d o -se todo
, e , l evando da e spada , fezsegunda i n t imaçao .
Você pára, o u não par a ?
E como a phan tasma não parou,a e spada revo
lu t eo u, s ibi l ando no ar , e e l l a
,dando um agudo
gri to , ve iu a terra . A O baque , ao r u íd o dos fer ros eaos gem idos do homem
,abr iram-se a s po r t a s,
. d o s
vi s i n ho s , qu e acud iram com lanterna s . A a lma pe
CACADAS P ORTUGUEZAS 277
nada e ra um cabo do regimento de cava lla r i a , a l l iaqua rte l ado
,que julgara a qu e lle di sfarce o me l hor ,
para re al i sa r umas entrevi sta s amorosa s ! O infe l i znamorado
,al ém da grande queda
,que deu das an
da s em que vi nha trepado,ti nha um raspão numa
perna !E acabou- s e a hi stor i a . Ao feri do
,corrido de ver
gonba , e mu ito amofi nado , quebrou- s e—l he o enca nto
,e fo i curar- se
,s enão da pa ixão
,pe lo menos do
g ílvaz . Os vi s i n ho s puderam d ah i por deante andarn a rua
,a hora s mortas
,s em rece io do ru im encon
tro ; a fam í l i a de Jos é Nogue ira fi cou s o ce g ad a , ee l l e
,o ve lho bri gão
,contan do s i n g elame n t e o caso ,
e refe r i ndo—s e a sua e spada , a Neg r a — d iz ia comgraça :
E agora marquem mai s uma a p r et a .
!
A h i s tori a acabara-se . O v inho es se é que nãot i n ha ai nda s a í do todo das borracha s dos bon s ç acad o r e s , e com longos tragos lhe s foram corre ndoas hora s d e senfa s t i ad a s e de spercebidas , - ao contrario do que e r a d e e sperar
,no pr i n cíp i o d aqu ella te
n ebr o sa noi te , tam mal ausp ic ia da .
E e l l e s — como de costume — s e t inham bom v i
nho nas sua s borrachas,tambem t inham largo pro
vimento d e boas hi s tori a s , a l egre s , sal gada s , e pi cant e s
_como 0 pimentão qu e l he s temperara os pa io s ,
e l he s a cc i r r ava o appeti te de amiudarem as g o lad a s .
278 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
E O vento continuava a a ssob i ar no s soutos,e o s
lobos,ao longe , uivavam n a charneca !
El le s e stavam bem a l l i , a l a re i ra . A caçada fôraboa
,e sent iam- s e contente s n aqu e lle de samparado
a lbergue, qu e , comparado com as suas h abi taçõe s ,
pa r e c i a uma cavern a d e bandidos !
A l are ir a crep i tava,pareci a ri r . Nunca vi ra tama
nha fol i a , t ão ru idosos e j ovi a e s conviva s ! Afora Ogros so tronco d e a z in ho , ard i a quan ta made ira e n
co n t r a r am a mao, e a c asa , com as suas paredes par
da s d e pedra e n so ssa , e stava i llumi n ad a como set ive s se de n tro o so l !Subira d e ponto a hi l aridade ;a s gargal hada s suc
cedi am—s e : eram a troadora s ! Do morto , que a l l i j azia , ninguem j á s e l embrava ! E que se lembra sse .
El l e e stava morto . Um morto é um ausente . Está, eé como se n ão e stive s se !Beberam a memor ia de Jos é Nogue ira
, e depoi sa d outros e outros
, e , fi na lmente , a qu elle que davapel o nome de A l exandre — uma alma '
d amn ad a,
como lhe chamavam os s eus companhe iros,um es
p i r i t o fo r t e , como então d iz iam u
'
o s fr a n celho s — tomou á sua conta o fi nado
, qu e j az i a h irto , ao fundo ,no seu pobre catre !
Estamos chegados á scena fi na l . Aqu i vae , comoa ouv i conta . O caso d eu —se , e a l e sao morta l , qu earrebatou Jos é P edro a inda moço , na força da v ida ,
280 CAÇADAS P ORTUGUEZAS
as sobio s denunciaram- l he a pre senca dos compan he i r o s . Abriu a porta .
Eram el l e s,e muito povo , a lvorotado com a nar
r a t iva do e stranho succe sso . Estavam affas t ad o s , todos
,em frente da casa
,como r e ce i a n d o appr o x ima r
se ! D efronte , a doi s pas sos , e stava e stendido , e semmov imento
,um homem . Era o Luiz Preto
,o guarda
,
agora rea lmente morto !E este fo i o fi nal da ca ç ada dos bon s cacadore s !