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 · DUA S P A LA VRA S A E correr mundo este livro. Largando- o das mi nhas mãos, faço votos para que elle n ão nau frague no mar umas ve z e s e n ca pe lla do, outras ve zes

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ZA CHABIAS D'

AÇA

Caçadas

Portuguezas

P a iz agens — F iguras do campo

LISBOASecção Ed z

'

ío n'

a l d a Compa n h i a Na ci o n a l Ed i t o r aA DM.

—ª ]Ús r mo GUEDESL a r g o d o C o n d e B a r ão , 50

1 898

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DUAS P A LAVRAS

A E corre r mundo e ste l ivro . Largando-o da s m i

nhas mãos , faço votos para que e l l e n ão nau

frag ue no mar umas ve z e s e n cape llad o , outra s ve

z e s morto — da publ i c i dade . Não arvora bande ira de

Facção li t t e r a r i a , não lhe puz div i s a , e , ape sa r do e s

t r o n d e a r da fuzi l ar i a , não'

Va e a conqui s tar ; mas o

t itulo d iz que o an ima o e spiri to d a nossa te rra

fa l a d e coi sa s po r t u g u e z a s .

D e tigre s e l eõe s poderi a eu con tar hi stori a s tra

g ica s e horripi l an te s , mas nunca me defron te i com

e l l e s , e não me seduz o pape l de chr o n i s t a i n co n

sc i ente de a l he ias proeza s . O que se contém nªe s t a s

paginas são a s minhas impre s sõe s d 7um mundo ,muito proximo de nós

,mas de que , quasi todos o s

qu e e screvemos , andamos muito a lhe i a do s — o mun

do dos campos .

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DUAS PALAVRA S

Os capítu los todos d 'e ste l ivro — afora doi s o u

t res são capi tu los da minha vida , e quando o s re

cordo,al egra—se—me ainda o coracão . E signa l ce rto

d e que foram dia s bem passados , é que a inda não

se me apagou da memoria o so l , que o s a lumiou . So l

que bri l ha no passado,so l poen te ho j e para m im

Mas as nuven s,que e l l e doi rava na s sua s pha n t a s

t ica s evoluçõe s,eram brancas e tran sparente s ; fugi

t iva s,como o s sonhos da moc idade , n ão fazi am man

cha s n o céu,como tambem não me de ixaram som

bra s n a v ida .

De quan tos dia s e l l a s e compõe,e ste s de que aqui

fa lo , e poucos mais , são o s un icos que eu que re ri a

reviver . Porque — não t'

o dire i,l e i tor amigo

,se n ão

é s cacador , que'

não me entenderia s,e aos que me

podem entender n ão e'

nece s sar io exp l i ca r- l h'

o . Os

e n thu s i a sm o s e os arroubos da paixão so os com

pr ehe n d e bem quem j á os experimentou .

Do na sce r a o pôr do sol s en timo—nos outro s e s

tamos em contacto ín t imo e con stan te com a natu

reza ., O corpo e a alma teem a con sc ienc ia

,e e stão

no pl eno exerc ício d e todas a s sua s facul dade s,de

todas as suas energi as ; man ife stam-se,de sen vol

vem- se , sem pe i a s , nem con strangimentos . A l egra se

nos a a lma e spraiando a vi s ta pe l a pa i z ag em ,e e s sa

a l acridade , sente -a tambem o corpo,rec ebendo

,em

che io , as onda s d'

e sse banho enorme de lu z ; aspi

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DUAS PALAVRAS 7

rando,a p l enos pu lmõe s , a s l argas corrente s do ar

puro e oxigen ado dos campos e da s fi o r e s t a s .

Ha em todo s nós a lguma coi sa do se lvagem ,um

re s to do homem prim itivo , e e sse , ante s de tudo

fo i c açador — preou,como quas i todos os a n ima e s ;

O com requin te s d e tra j o,de mesa

,e de

h abi ta ção , i nven çõe s d e a rte s e sc i e n c i a s , e sse fe z -s e

d epoi s é obra do tempo . Os hi stori adore s re l ega

ram o p r imi t ivo para os primordio s da hi stori a , e

parece -nos,ao l e l—os

,que o t r o g lo dyt a lá fi co u s e

pu lt ad o na s sua s caverna s . Mas n ão — e l l e v ive,e,

dentro d e nós , como o e scravo dos t r iumpho s roma

n o s , ven ci do e a gri lhoado , ve i u - nos acom panhan do,

a s si stin do e re s i st indo a todas a s c ivi li sa ç õe s . É e l l e

quem faz o s caç adore s — e é e st a a phi l osoph ia da

c aça .

E ba sta d e prefac io e d e ph i lo so ph i a s , que me po

de riam l evar l onge,e fari am e ffe i t o con trario n o le i

t o r, qu e m e deixari a i r — s em m e acompanhar .

Indiv idua l i dade complexa,e sta do caçador t em al go

do sol dado , do via j ante , do aven ture iro e do art i sta .

D e tudo i sto pare ce -me que o l e i tor en con trar á a l

gun s reflexos e vi s lumbre s na s pagina s d'e sta s n ar

r a t iva s . Quadro s , scen a s , pa i z a g e n s , marinha s , fi gu

ra s tudo é de senhado ou e sboçado do natura l,com

excepção da Tr a g ed i a n akca ç a

, qu e m e foi contada

por te stemunha pre se nc i a l , qu e n ão hg u r a no l ance ,

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8 DUAS PALAVRAS

e do F i n a l d º

uma ca ca d a — uma tradição da minha

famíli a .

E a gora , para t e rmin ar e sta apr e s e n t a cão se t u ,l e i tor b enevolo

,s en ti re s

,ao l e r e sta s h i stori a s

,n ão

o q u e e u s enti , quando as viv i , porque s eri a impo s

s ivel, mas um pouco do praze r que a inda t ive a o

e scr eve l-a s dar-me-he i por sati sfe i to e pago do me u

tra balho .

Va le .

4 d e j u n ho d e 1 8o8 .

ZACHARIAS DªA c i x .

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O O O O O O O O O O O O

Bu lhão P alo

P oela P z'

n lor d o ma r Spa/'

Uma ”

E ce rta s o r g a n i sa ç õe s po e t ica s , e spi ri to s singula rme n t e dotados pe l a n atureza , podemos d iz e r que o decorre r do tempo , os ba ldõe s da

vida , os as sa l to s da má fortuna , a i n co n s t a n c i a dasort e , todo e ste mar revol to do mundo , o a ffr o n t am

e l l e s com o olhar se reno, e o an imo impavido . Ne sta

tortuosa navegação,com a experien ci a de tan tos nau

fr a g io s— os proprios e os a lhe ios e l l e s são como

e sse s g rande s navegadore s qu e , a despei to dos ventos

,dos mare s

,e dos homens — ainda peore s i n im i

gos , não de sconfi am da sua e stre l l a , e con seguemchegar - ao porto do seu de sti no !São e ste s o s poeta s d e raça , os verdade i ro s po e

ta s : para e ste s não ha a n n o s de prosa . Cantam na

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IO CACADAS P ORTUGUEZAS

mocidade , n a primavera da v ida ; ca n tam no e stio ;o outono i l lumina-os , doira-os com os t ons me lanco l i cos da saudade , e o i n ve r n o da vida -dã- l he s umaseren idade a l t iva

,a t r a n qu

'

illi d ad e das a l ta s regiõe se spi r i t u a e s , em que a alma , sempre viva e l uc i da

,

na sua con stante evo lu cão , a lhe i ad'

a das paixõe s te rr ena s

,como a chrvsali d a va e -s e tran sformando

,para

s e abri r em novos mundos !A e s t a

'

pr iv ile g i a d a famíli a , a e sta a r i st o cr a ci a i nt e lle c t u a l

,pertence Bulhão Pato . Todos o conhecem ,

todos o sabem ; n ão é i s to novidade , que preci s e ded emo n s t r a cão .

Neste logar n ão fal aremos e spec i a lmente dogran de e scr ip t o r , d a s suas a l ta s e fi nas qual i dade sd e prosador e de poeta . Aqu i as l e ttras não são dece rto n em extranhas

, n em ma lvi n d a s , mas nos campos soam mai s do que os accorde s da lvr a a s trompa s e o vo z e

ºr dos c acadore s .

O auctor da P a qu i t a e' do L ivr o d o Mo n t e — o

s eu u l timo e prec ioso l ivro n ão é um e sc r i p t o r sedentari o

,não é um poeta d e gabi nete , i nven tando

s e n sa co e s,compondo com sent imentos imagin arios

s i t u acõe s em que nunca se encontrou ;n ão , e os seusl ivros — poemas

,narrat iva s

,cantos

,e sa t i r a s a

sua prosa e a sua poesi a , são obra s viv idas : e stãoa l l i o s personagen s

,a s scena s

,os epi sodios , os l an

ce s do drama da sua vida , s ão aqu e lle s o céu , a ste rras

,os mare s

,os homen s e a s mulhere s , qu e e l l e

v iu . qu e e l l e conheceu e que e l l e amou .

A lma curiosa e sedenta de impres sõe s , não se li

mitava a gosar dos encan to s do mundo das sa l a s ;

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CA CA ÍMS P ORTUGUEZAS I

e e l l e sa i a d'

um bai l e e parti a para uma caçada,

e d i ah i para uma larga digre s são pe l a s nossas prov i n c i a s , .

o u i a- se de fo z em fora até a i l ha de S. Migue l , a Hespanha o u a I ta l i a

, com um ve rdade i ropraze r , e não era n ece s sario que n o l-o di s se sse , po rque bem se l h e v i a n o rosto

,que o sent ia .

São e sple n d id a s de verdade a s sua s pa i z a g e n s ;comum t oque ou doi s d a-nos o arti sta a impre s são domundo rea l, e e stamos vendo e ouvindo o s seu s a ld eõe s , os seus rusti cos . Os seus o lhos fi xam e gravam em s i para sempre o s movimentos

, o s ge stosdos a n ima e s — os da terra e os do ar , e o s aspe ctosda n atureza . A s grandes scena s mar ít ima s , a s l a rga s

pa i z a g e n s ocean icas que e l l e nos pinta — não digodescreve — na P a qu i t a ,

são o bra s—primas,quadros

agi tados,em que o turvar da a tmo sphe r a , o as sob iar

do vento na s e n x a r c i a s , o fuzi l a r do raio e o e stal a rdo trovão

,te em ta l certeza nos traços, ta l v iveza n o

co lor ido,que

,quando os l emos, como que nos acon

chegamos no gabinete,tanto a r ea lid a d e da descri

pção do tremendo espectaculo se impõe ao nos soe spír i t o !

No ma r e s t á o poeta no seu e l emento . No'

s momentos - so l emne s

,em pl eno vendaval , no mar dos

Açore s,quando os pa s sage iros re colhiam aos be l i

che s, e no co n véz só se viam os homen s .da fa in a

com as sua s j aponas e o s seu s n o r d e s t e s breados ,

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CA CA DA S P ORTUGUEZA 5

e u ve j o,na minha imagin ação

,na popa do vapor ,

quatro vul to s , os doi s homen s do leme , o capitãoTel l e s Machado

,ve l ho lobo do mar , e Bulhão Pato .

E tudo a Que um tempo ra l n aqu e lle s mar e s é d e t remer ! Os naufra

'gios são , as vezes , as duz i a s

,quando o vento se l evanta , e a s ondas se enca

p e l l am n aq u e lla s costas !Era ahi que o poeta rec ebi a a impre s são di rec ta

do“

grand io so e medonho scenario das fo rm id ave i st ragedi a s do mar !Os o r ig i n a e s d o s s eus quadros viu- o s o grande ar

ti sta bem de perto de d i a , e mai s temeroso s aindad e noi te ! E com que a l to e s t vlo e l l e o s

'

p i n t o u l

Q u a n do o m a r,d e impr o v iso , se e n cape lla ,

Q u em n e sse i n sta n te a co r da,j u lg a um so n ho

,

Ho r r íve l so n ho , o a ssa lto d a p r o c e l la !

A fa i sca r , em v i r o tõe s , o r a i o !R i bo mba va o tr o va o

,i n da d i sta n te

O so l. a ca fr o ad o e d e so s la i o,

To ca va a s de n sa s n u ve n s d o l eva n te ;D a n do ás c r i sta s d a s o n da s r eb e n ta da sA e spa ç o , u ma tin ta co r u sca n t e !

F a i n a g e r a l ! O ve n to d e sg a r rão ,

A u s t r a l, ,i n t e r ca d en t e , a ca r r eg a r ,

E a r a j a d a ma io r qu e o r e ca lmão !

In ve stin d o fu r io sa s , a i n t e s t a r ,A s t o r va s o n d a s d e fuma n te e spuma ,Co

'

a s n u ve n s a ch a ta da s so b r e o ma r !

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CA ( mm s P OR'

I'

UGUF ZAS 3

O '

m a r ! q u a n do a r e fr e g a v io l e n taEm pyr am ide a s o n da s t e a l e va n ta

,

Q u em se a t r e ve com t i g o n a t o rm e n ta ?A b e sta fer a a o t e u b r am i r se e spa n ta !Som e n te o ho mem t e co n tr a sta o s ímpe to s !El l e so co n tr a t i se n ão q u eb r a n ta !Em tu a s so l idõe s d e sampa r ado ,O l ha n do pa r a o céu —

qu e , em t a e s m o m e n t o s,

P a r ece po r Sa ta n r e co n qu istado !Ma i s a u da c io so q u e o fu r o r d o s ve n to s ,P a i r a a c ima d o ho r r o r d a n a tu r ez a

,

C o m o um D e u s, po r seu s a lto s pe n same n to s !

Tem o mar os seus amante s,o s seus apaixona

dos , e nós compr ehe n d emo s o sentimento de orgulho , que as a lmas forte s devem experimenta r

,ao

a ffr o n t a r em a s col e t a s imme n sa s do Oceano !Levantarem— s e - l he s a s ondas em montanhas

,e de

subi to ,'

e logo em segui da,cavar- se - l he s o abysmo

verde -n egro e medo-nho,entrevendo—se

,lá em baixo ,

a s fauce s do grande tragador,a bôcca e scan carada

e o se io da immen sa sepul tura ! Soprar- l he s o vento'

n o s r cabo s o hym n o de svai rado da proce l l a — os int er va llo s do s i l en c io t ragico cortados pe lo gemer arr a st a d o do arvoredo ' E as i nve stidas d l e sse maro des abar d

i

e s sa s montanhas,e ssa ba ld ea çã

'

o enorme ,em qu e e l l a s

'

se prec ip itam,onda sobre onda , e co r

r em e l avam -o co n véz de pr ôa a pôpa , e levam earr a stam tudo ! E as lufada s do vento , e as cam

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.I4 CACADAS PORTUGUEZAS

b i a n t e s da a tmo sphe r a , e o fu lg u rar dos r e lampa

gos,e o sc i n t illa r do ra io , os gri tos d e te rror , a pal

li d e z dos rostos , o tremor das voze s , o a n ce io dosanimos

,o trep idar dos coracoe s ! . E tudo i s to a

su cce d e r - s e n a expre s são —dos olhos,e spe lhos da

a lma ! . Oh ! quem tive r as s i st i do a tae s s c enas,

se duraram hora s , pode co n t al—a s por secu los !Mas

'

os que e s capam as furi a s da tempestade,n ão

vo l tam as costas ao mar ! Ante s pare ce qu e mai s lhen c am querendo ! Já o Camõe s pi n tou e sse amor ,quan do poz na bôcca do Ad ama st o r aq u elle s ve r

sos,de se spe rados e saudosos

To d a s a s d eu sa s de sp r e z e i d o céu,

so po r ama r d a s ag u a s a pr i n ce z a !

Tem s ido navegador o nos so poeta , tambem foicava l l e i ro

'

; e quem e scapou da s tormentas do mare steve a pique de perder- s e em te rra

,e num r i o

sem ag ua ! Um mi l agre e ste , s e não maior , pe lo me

nos mai s ve ríd ico do que o su cced i d o ao bom e a

valle i r o D . P ua s R o u pi n ho , qu e o nos so grande poe taCasti lho immo r t a li so u na sua Cháca r a d a Sen ho r ad a Na za r eth .

Deu- s e o ca so um dia que Bulhão Pato s a íra apasse io pe los arre dore s da Arruda

,na companhi a

do V i sconde de As seca,Sa lvador Corrêa , pa e

'

d o

actua l t i tul ar . O cava l lo que e l l e montava,e r a um

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CAÇADAS r o a'

rUGu z—JZA s 5

potro d l

A lt e r fo go s i s s imo , e o poeta , então na exube r a n c i a de forca s dos V i n te a n n o s , deu—l he l a rgas :o que a princíp io era t rote pa ssou a ga l ope

,e n a

de sen fre ada carre i ra chegaram a ponte,pequena e

i rregul ar , mas que mede ta lvez trinta pé s di

a lt o . O

parape i to é baixi s s imo,e o l e i to d o r io e stava secco

,

a de scoberto .

Bulhão Pat o quiz vo l ta r o potro,ao entrar na

ponte , mas j á n ão po u d e ! . O impul so da corridae r a maior

,e cava l lo e cava l l e i ro sa lvaram a s guar

das , e ca í ram no l e i to pedregoso do Si z a n d r o ! Ocava l lo fi cou i n u t i li s a d o , o cava l l e i ro inco lume ! Nãotinha uma be l i s cadura ! Valeu - l he o se r magro e depequen a e statura

,dirão : va l eu—l he a fortuna

,porque

o sal to e ra morta l !Quando a l gun s homen s corre ram para o r io ,

j áacha ram o poeta d e pé , sacudindo a terra de s i , eapre stando—se para sa ir do que quas i l he fôra tumulo ! E, impos sive l de screver o pasmo que d

'

e l l e s s eapossou , ao ve rem o caval l e i ro dize r- lhe s

— Você s v i nham para me l evar ! ? Hein ! Poi s , obrigado , eu cá vou andando . Se quize rem levem o cava l lo : e s se é que de ce rto não pode coms ig o .

Na vi l l a apontavam o poeta,e ol havam—n —o depo i s

com certa admiração re spe itosa .

'

Parec i a com e ffe i t o

que e l l e c ruzara os terríve i s humbr a e s'

d a morte !El l e

,todav ia

,preferiu a s campinas e a s varze as , o

mundo,a qu e tão cedo o qu iz e r a arrancar o fogoso

co r se l !

E por mare s e r ios , monte s e —val l e s , , o v i emosa companhando

,e cá e stamos com e l l e n as varzea s

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CACADAS P ORTUGUEZAS

e nas campina s , na s vi nha s e n o s p i n ha e sê— numa

pa l avra,no campo das sua s ca ç a d a s .

No s eu tra j o de c acador , rodeado d o s compa n he iros — grupo sempre p ittore sco

,pe l a vari edade d o s

typo s , e a que dão a inda mai s vida e re al ce os cãe s ,o s perdigue iros , com a dese nvol tura dos s eus mo

v im e n t o s — Bulhão Pato l embra—nos um d e s se s 6d a lg o s d

loutro tempo,poetas corte sãos e fr a g u e i r o s ,

tão conheci do s nos saraus do paço da A lcãcova,como

n a s bati da s e monte ria s de Sa lvate r ra e d”

A lme i

rim ; aqu e lle s que corri am com egua l ardor as aventura s d o amor e a s da guerra , afi

'

r o n t a n d o - l he s o sperigos com a me sma galha rdia .

Ind ivi dua l i dade como a sua , tão a cce n t u a d a , tão

c he i a de carac te r,n ão conheco outra en tre os nos

sos poeta s co n t empo r a n eo s : e'

poe ta em toda a parte,

a toda a hora,com toda a gente — na rua , n o café ,

a mesa d'um hote l como no l ar domesti co

,n o sa

lão das duquezas como na s sa l a s da Academia ! EmVeneza

,-um“

d i a , entrando num dos hote i s mai s e legante s

,para j antar

, o creado u m ori gina l,que sã

bi a o Dan te de cór — a pouca s pa l avras trocada sencaran do com o nos so amigo , di s se —lhe , i n te rrogando e a fli rma n d o ao me smo tempo com o gesto

— Vo i s i et e p o et a ?

E d 'ahi a pouco os doi s t inham travado dia logosobre li t t e r a t u r a .

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CACADAS P ORTUGUEZAS

Nasce - s e caçador , como se nasce poeta , como senasce orador . Bulhão Pato e

'

tudo i sto,de n a cão ,

como diz a inda o nosso povo d o s campos . Ser cac ador e

'

n e l l e quas i um tal ento,uma das formas do

s eu se r .

At i rar as co do r n iz e s nos t r i g a e s , persegu ir a s pe rd ize s nas v inhas , chofrar a s n a r ce j a s nos a lag ame n

t o s , de scobri r'

as g a lli n ho la s na s e xs t eva s , n o s pinhae s ,e spera r a pas sagem das rôla s e dos pombos

,car

re gar uma l ebre na campina,corre r um veado

, em

»

p r a z a r um j aval i , faze l -o sai r da ma n cha , e spe r a l-o

de cara numa p o r t a , é um prazer , para os que p r ocuram essa s sen saçõe s fora da vida banal das c idade s

,nos campos , nas Ho r e s t a s , nos mattos ermos e

se lvagens . E é mai s fac i l s en ti l-o , do qu e ex plica l-o

a o s qu e , e x t r a n ha n d o -o,por i sso me smo não 0 po

d em comprehen der . Tanto val eri a exp l i car a um surdo , ou a um cego, a s be l l ezas da musi ca e da pa i z ag em .

Haurindo o ar fre sco e embal samado d o s campos ;d ilatando a v ista pe l a s verde s e exten sas pradarias ,o ndulante s como o mar

,pe lo s doi rados vinhedos

pe los c imos quebrados da s serra s , en tra—se em maisi ntima commu n hão com a natureza .

Não são rua s a l inhadas e poei ren tas ,.

e d ihc io s r e

c t a n g u la r e s , sombras geometri ca s no chão , nem céure cortado

,aqui e a l l i , pe los te lhados da ca saria u r

bana . Terra,l uz e ar , estão al l i a de scoberto , não

n-o l—a s en cobre a mão do homem . O so l i rradi a e s

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1 8 CA CADA s P ORTUGUEZXS

ple n d id o no l impo azu l do â rmame n'

t o , a aragem epura

,e a propri a terra e nvi a—nos o pe rfume das e r

va s raste i ra s e das Ho r i n ha s agre ste s,que p i samos .

Neste contacto com a terra o homem r e j u ve n e sce

,e a se re ni dade dos campos re sponde em nós uma

a l egri a,que nao e a que

rompe dªe n t r e o co n v iv10

das fe sta s rui dosas,mas outra , mais funda , de que

depoi s nos l embramos,e n o s appa r e ce , no e n t a r d e

ce r da vida , com o i n effave l encanto da saudade .

E no meio d e s se scenario rustico aqu e lle poeta ,que todos — os qu e sentimos e amamos a natureza ,t raz emos d entro de n os , occu l to e tac i to , acorda , en os vamos seguindo-o

,e a phanta s ia vae com e l l e a

voe j a r,a voe j ar .

Nasci do em Bi lb au e c re ado em Deusto a l de i aproxima

,diz o poeta

,nas su a s u llemo r i a s, « que era

a peste d o s n inhos » . A l l i pe rto e stavam a s En ca rª

la cto n es, onde nasc eu Anton io de Trueba , o popula r i s s im o auctor do L zbr o d e lo s ca n t a r es, e po rventura então outro i n imigo das ave s i n ha s . J á LaFonta in e o di s se : Cet ag e est sa n s e e l la s pod e rão dize r que as outras e dade s não são m e lhore s .

Os cantos da infanc i a ouviu—os e l l e truncados pe l oe strondear da fuzi l ari a : e ra a caca ao homem — a sembu sca d a s e recontros de ca r li st a s e de chr i st z

'

n o s .

Scenas d r ama t i ca s,t ragedi as , como a da hi storia

d”

aqu ella Mari a Sa lomé,que e l l e s fuzi l aram ! Vã

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20 CACADAS P ORTUGUEZAS

g n i fi ce n c i a das suas cacadas , o fi da lgo do Farrobo ,em tudo grande — grande senhor e grande arti sta .

Havia n 'e s se tempo mai s riqueza nos pa l ac iose mai s caca nos campos .

Ficaram n a memoria dos ca ç a d o r e s a s famosase spingarda s i n gle z a s de Manton , d e Burdey , qu e s epagavam de vin te a quare nta moeda s ;e os que vi ram ,

n e sse s d ia s afortunados , trabal har o s cãe s da s racasdo Marquez das Minas , do conde da Ata l a i a e dov i s conde da Praia , recordam- s e ainda ho j e com saudade da be l l ez a d e formas , da e l eganci a e da fi rmeza d

'

e sse s ma g n i n co s a n ima e s . Racas ho j e e x t i ncta s e não su bs t i t u íd a s . Os do vi sconde da Pra i acomprou-os e l l e em Pari s , numa expos ição , e d eu ,s e não me engano , ci ncoenta l ib ras pe lo casa l . E ,

seme engano no pre ço

,é para menos .

Não são menos famosa s as cacada s princ ipe sc asna s terra s do Farrobo .

F o i com este s amadore s — em tudo mestre sne sta gran de arte da caça , os cu r i o so s, os ama d o r es,é qu e são os me stre s , e só e l l e s

'

o podem ser,tão

compl exa e l l a e'

, porque , sen do arte , é fe i ta de se i enc i a s fo i , digo , com tae s mestre s qu e o j oven poeta ,tão p recoce n

º

e s t e s campos como no das l e ttra s , feza s sua s primeira s armas .

Quando e u m e al i ste i na venator ia confrari a foiBulhão Pato meu padrinho

,e n a companh ia d 'e l l e

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(SACADA S P ORTUGUEZA S 2 !

perpetre i os meus primei ros c rimes . Que Santo Hu

berto m"o s pe r dôe . A minha primeira ví ctima fo i um

maçarico . lamos no catraio do Lourenço para 0 J u nca l da T rafari a , que então — hela s f — ainda t inhaco d o r n iz e s , l ebre s e n a r ce j a s . F o i ha trinta a n n o s , epare ce—me que o e stou vendo

,a o pe rna l to

,ca i r n a

agua !Ante s d

'

i sto ja me tinha exerci tado , at i rando ao s

g a ivõe s , que todas a s tarde s vi nham faze r a s sua scorre ria s ae rea s no al to da quinta d o Desembargador , e po r c ima da minha casa , em S. Franci sco dePaula .

A angloman ia não se apoderara d o poeta , ape sarda moda e da tradi ç ão

,j á antiga . A sua e spingarda

e n tão e ra uma be l l a arma he spa n ho la de Eyba rcanos de lzer r a d u r a s — como ne l l e s se l i a em le t

t ra s d”

oiro,e o i t ava do s até um terco . D

ªo i r o e ra a

mi ra , e com e l l e di scretamente ornada na bôcca eemvo lt a da fe char ia . Nada de orien ta l n e sta o r

n ame n t a ção sobri a — um fi l e te apenas . O guardamatto ti nha mol a d e seguranca . Elegante e so l i da ,e sta caca d e i r a havia dado as suas provas : a e s setempo entrara j á em muitas bata lhas

,e pouco an

te s Lopes Cabra l — um ath le ta — matou com e l l aem um d ia

,na Go lle gã, setenta e cinco co do r n iz e s .

A Eyba r su cce d e u Pari s , e a e spingarda q u e l heconheco em effe c t ivo se rviço , ha mai s de vinte a n n o s ,é uma Ga s t i n e —Renette , do systema Le fa u cheu x , cinze la da e acabada com a maior perfe icão . Arma finae d e pre ço .

Ga s t i n e —Renette e um dos mai s i l lu stre s entre os

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22 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

fabri cante s dº

a rma s co n t empo r a n e o s . F o i o A r qu e

bu síer de Napol eão I I I , o seu fornecedor p redi l e c tode armas de caca e de guerra .

No cabi de de a rmas do poeta vêem—se mai s duasuma de fogo centra l , be lga , e outra Flobert -R e

m i n g t o n .

Tr a ico e i r a e sta u l t ima — Como os machos d 'arrie i ro morde e da

'

couc e ! O cão l evanta,e o ti ro

vem,as veze s , tambem para a cara do ati rador ! Pe

rigoso systema .

Do s cãe s da e spingarda para os da s perdize s atran si ção e

'

fac i l,e e sta fe ita .

O capitu lo d o s nos so s fi e i s a lli a d o s , e dedi cadoscompanhei ros

, e para nós a inda mai s importan te d oque o das armas :

,com uma e spi ngarda med ío c r e

pode— s e cacar - é com e l l a que ati ra a maior partedos cacadore s mas com um cão mau é impo s s ive l : a caça que l evanta é po r aca so , e , depoi s demorta o u fe rida , uma n ão s e acha , a

' outra perde -seo ra stro

,

,e a maior parte fi c a no campo para a s ge

netas , r apo z a s e m ilha fr e s .

Poi s os pa r a g r apho s d'

e ste capi tulo são bri l hante s '

Bulhão Pato t em t i do .a fortuna de cacar na companhia dos seus amigos , com o p t imo s perdiguei ros , e ,entre os seu s

,conhec i a lgumas esp a d a s de primei ra

ordem . Teve o P ombo,sobe rbo an imal pre sente ,

s e n ão me engano,do morgado Anton io Borges da

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CACADAS P OR'

l'

U(3UEZA S

Camara Medei ros , d i s t in c t o amador,da i l ha de

S . Mi gue l : a Ni ed o'

r a,l i nd i s s ima perdigue ira

,uma

e s tampa , hn a .de de senho e de côr,e que era o en

l evo de A l exandre Hercu l ano,ape sar d e l l e n ão se r

c acador .

A e ste s seguiu - s e o Aía qepp a um verdade i ro tyrano do s campos , que a nada pe rdoava : o qu e e l l een contrav a deante de si havi a de i r para o ar Branco ,todo e l l e , al to , a cabeça grande , a ore lha curta , r obusto de formas , d um enorme a lcance de ol fac to

,

c acando com uma certeza e a di stanc ia s,prodigio

sas,era um be l lo e spectaculo vel—o traba lhar em

campo largo . Apontava a caca d e cabeca e rguida,

ia di re i to a e l l a,com ta l fi rmeza

,que n ão seri a

maior,se e l l e a v i s se !

Como toda s a s formosa s ti nha um senão — n ão

traz ia a caca ao dono ! Porque um ta l defe ito eman imal de raça , e tão â n o como este e ra

,a o c erto

n ão o se i Podia te l -o de natureza o u adquirido . Of

fe r e c i do ao i l lu stre poeta pe lo seu ve lho ami go , o

genera l S c'

hwa lbach,mandara -lhªo e ste d o Porto ,

a inda novo,mas

,s e bem me l embro

, j á fe i to , e ac acar . Ta lvez la fos se en si nado po r a l gum amadoringl ez , e e s te s , como se sabe , costumam , cacandocom doi s ou mai s

'

cãe s, de l egar no r et r i ever a s funcco e s subal te rna s de procurar e trazer a

'

mão a ave ,a l ebre

,o u o coe lho , l evantados pe lo s s eu s nobre s

p ow t er s ou set t e r s . Fosse o que fos se , Al a gepp a e ra ,ape sar d i

e s t a falta , um bri lhantí s s imo exp lorador .

La dy ,a cu j a morte o poe ta como outros , BV

ron,por exemplo — ded icou senti dos versos , n ão

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24 CACADAS PORTUGUEZAS

de smerec i a d e st e s , e e r a dº

uma me ig u i ce notave l ed

º

uma rara d e d i cacão .

Eu n ão Hz versos aos meus , não sou poeta ;masquando e l l e s fe charam os ol hos para sempre , os meusnunca fi caram enxutos .

'

Madrugadas de caça

O dia oi to d e setembro e r a o escolhido por BulhãoPato para a abertura da s suas cacada s d o i nve rnono su l do Te jo , e o s i tio pre fe r ido o Jun ca l da Trafari a .

A mei a hora de caminho de Li sboa , e com uma trave s s i a encantadora n e s se s formosos di as do outono,t i nhamos al l i

,por a ss im dizer

,a nos sa coutada

nos s a e d e poucos mai s , fe l izmente . Os outros fre

qu e n t ad o r e s eram os rancho s d e'

J o sé Mari'

a Vi l l a r,

e de João Lourenço,ambos creados da Ca sa Rea l

,

e os s rs . Go u r lad e s . da Junque i ra . Os cacadore s deLi sboa , a un s de sv iava—os de la o terem de i r embarco de ve l a , e a outro s l evava-os para os pinhae sde Corroios a fal t a de bon s cãe s ou a ambicão das

g alli n ho la s . A s s im divert i dos d e concorre rem com

nosco , era raro encontrarmos competidore s .

Qua n do,pe l a s c in co da manhã

,eu chegava , equi

páti o e armado,a .ca sa do poeta

,que morava então

1 867— na rua das Pracas

,a Lapa , j á l a

'

e stavam ,

sentado s à porta , doi s vu l tos , que d e l onge e pe lo

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CACADAS P ORTUGUEZAS 2 (J

'

e scuro eu apena s di st ingui a e ram o Lourenço daPinha , o nosso barque i ro de Bel em

,e um d o s ti

l hos .

O ba irro j az 1a , as ruas e ram ermas , mas la dent r o tudo estava a p é . A morada d o poeta

,que ainda

hoj e con se rva o mesmo aspecto,é sobre s i e tem a

appa r e n c i a d,

um co t t a g e rez —d o - chão,primei ro an

dar , e , sobre e ste , outro pavimento mai s baixo , comquatro j an e l l a s , d onde se d e sfr u c t a , po r c ima d o ste l hados fronte i ros , o Tej o — vi sta que tanto r e a lca

e al egra a ca sari a d'

e ste s ba irros da Lapa e deBuenos Ayre s .

O F a lz'

e'

r o e a iWed o'

r a , ja de spertos , l at iam n o

can i l , ru idosos e co n t e n t e s ;. n a coz inha o José,r o

busto e sympa th i co rapaz , honra da raca d, a l ém Mi

nho , com as suas bota s d i agua,a camiso l a de fla

ne l l a d e l i s ta s,a sua cara sempre a legre , e ,a Ma

r i a, a cre ada , davam a ul t ima demão nos apre stos

do a lmoco e no arran j o das bagagen s,porque

,as

veze s , e sta s excursõe s duravam dia s . O poeta,i n s

ta l l ado no seu quarte l genera l ven atorio,em casa da

s r .

a Maria do Adri ão,na Costa

,havendo caca e di a s

amenos,deixava—se la fi car , at é que algum sudoe ste

bravio,do s qu e costumam acoit ar aque l l a pla n íc ie

d are ia , o . fo r cava a l evantar vôo e recolher aos abrigos da c idade .

A prime ira pe s soa qu e e u v i a aque l l a hora matin a l

,e que , no al to da e scada , me dava o s bon s d ia s

era sua i rmã,a s r .

ªD . Maria da Pie dade , com o seuar senhori l

,e a sua

'

vo z a l ta e vibrante . Muito parecida n as fe icõe s com e l le, não o era menos no fi no

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A.

20 CACADAS P ORTUGUEZA S

e spír i t o e na amenidade d o trato . Mai s ve lha do queRaymundo fo i , po r ass im dize r

,sua segunda mãe .

A companhou —o na vida , e tudo com e l l e parti c ipoua glori a e a advers idade . Tinha um animo varo

n i l a i l lu stre senhora : aqu elle s primeiros anu os dasua mocidade

,pas sados em Hespanha

,no meio das

guerra s c ivi s , deram— l he a tempera . Era uma almaforte , e po r i s so mesmo egua l , se rena e re si gnada ,na bo a e n a ma fortuna .

Este s Bu lhõe s são de bom e antigo sangue . Man ue l de Bulhão fo i um homem em t o d a a a ccep ca

'

o

da pa l avra — honrado,forte

,e va lente .

Tran sposta e sta prime ira e stação , em c ima estavao poeta

,j a' a p é

,ve st in do- se

,e spre itando pe l a s j a

ne l l a s,vol tadas a o su l , o cari z d o c éu , e o rumo d o

vento,e fazendo o prognost ico da cacada .

A l l i e ra o seu m i radouro,o s eu gab in e te de tra

balho , a l l i re ceb i a o s seus in timos,al l i compunha os

s eu s poemas . Apos en to mode sto e simple s,que ti

nha n a s parede s, po r un i co ornato , uma cercadura

fe i ta com os be l lo s retrato s d o s co n t empo r a n eo s i l

l u stre s,gravados po r Souza , para a Revi st a Co n

t emp o r a n ea .

la eu subindo a pequena e scada de doi s la n co s , e

j á o ouvia fa l ar .

É s tu,Zachari a s ?

E logo,em seguida , quando eu abria a porta

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28 CACADAS P ORTUGUEZA S

na e strada,mas e u

,fe l izmente

,sempre fu i mais novo

que a minha e d ad e . E ainda ho j e tenho e s se defe i to .

Su rp r ehe n do , as veze s , em mim ingenuidade s i n fa nt i s — aurora s , e spl endore s , e soe s po e n t e s

'

d e dia s ,que ha muito pas saram . Na minha memoria evocoe sse s phanta smas , que me app ar e cem vivos , e travodial ogo com e l l e s . E tudo i s to é p ela v i r t u d e d o

mu i t o ima g i n a r . A phantasi a , a memoria viva , fazem—nos o milagre d e sta s r e su r r e icõe s !Tomado o viat i co , a cce so s o s c i garros Pato pre

fere a c ig a r r i lla a o ha va n o — d e spe d i amo —n o s deD . Maria da Pie dade

,e part íamos . El l a He ava a l

gumas veze'

s tambem n o s acompanhou ne stas excu r sõe s — mas nós tí nhamos a c ertez a de que o seupen samento não n o s de samparava

,porque no seu

e spír i t o , como no de todos , a i de'

a da caca an davaa s soc iada a d o perigo .

De sc íamos a rua de S . Domingos e chegavamo s

a rocha do Conde dª

Obi do s , atrave s sando as ruasa inda dese rta s . Os Lourencos e o Jos é t inham marchado na fren te com as bagagens .

A ss im abriam para n os e s se s di as — j ama i s e squ e c i d o s . A lvoradas a l egre s d e rosado

'

ori e nte e c éudªa n i l

,ou manhãs pardacentas , humidas e tri ste s

,

encontravam em nós o me smo animo . Nos dias bon i to s tínhamos a crença ; nos fe ios e r a a e sperança ,e em todos a grande poe s i a da mocidade . .

O tempo voou,mas

,todos o s a n n o s . nos primei

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(JA CAHAS P ORTUGUEZAS 29

r o s dias de setembro,nas l i ndas madrugadas d o o u

tono , se rena s e che i a s de luz,l embro-me com sau

dade de quando , ao en tra r n o quarto d o poeta , eue r a saudado com o s versos da cacada d o A l ca ideMór d e Af on so Henriques :

Ma n hãs fr e sc a s d e se tembroqu a n d o o r va lho e stá a ca i r ;

A rocha do Conde de Obidos — João LourençoBulhão Pato no Juncal

Aque l l a rocha do Conde di

Ob i d o s — a s s im chamada por se r

'

a lli j unto o so l ar,o pal acio dos i l lustre s

Hd a lg o s di

e s t e ti tu lo — vemo l-a ho j e mascarada comparape ito s

,varandas e e scada s , e coroada , n o a l to ,

c om uma pequena praça a j ard inada,donde se gosa

a l inda vi sta do n os so r i o . Qúa n t um mu t a t a a b i llo !

Era então toda egua l a uma ne sga , que ainda l á secon serva — uma encosta pedregosa , adusta pe lo sol ,bat ida d o s ven tos

,e scalva d a pe l a s chuvas , coberta

aqui e a l l i por uma ve g e t a cão rachit ica e parda . Umtre cho da n atureza se lvagem

,uma verdade i ra arrib a

do mar !De sc i a-s e para o r i o po r um longo corre dor , e n

t r e doi s muros — um do pal ac io , e outro da céreado convento da s A l be rta s — e a e scada que conduz ia aO

'

pequ e n i n o cae s , lá em baixo , e ra um verda

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º

DO LA CA DA S P ORTUGUEZA S

de iro quebra-costa s — tortuosa , o s degraus i r r egu lare s , aberto s un s n a rocha , outros na te rra . Do al to darampa , ve rdade iro pr e c ipíc io , ví eu um d ia , sendomuito novo

,ca ir um mari nhe i ro in glez ébrio . Um

horror !Parece impos s íve l que a qu i llo fos se , at é a o s nos

sos dia s , um d o s c ae s de de sembarque dªe s t a be l l ac i dade ! Era ah i que embar cavamo s .

Arrumadas a s mal a s , seguros o s cãe s , os remo sca íam na agua .

Je su s ! diz i a Lourenco .

Mari a ! segundava o hlho .

E o catraio segu ia , de voga arrancada , r i o abaixo ,d ire i to a Trafari a , quando n ão a Be l em ,

onde i amosbu scar o João Lourenco o João da Burra , comolhe chamavam de sde pequenino , d

ªu ma burra com

que da sua vi l l a n o s arredore s C in tra,cre io eu

costumava e l l e vi r a c idade .

Cacador de E l -Rei D . Luiz , morava em Be lem ,

e,quando n ão t inha serviço n o P a co , '

a compa n hava

n o s ne stas digre s sõe s ao Juncal .De bo a e statura

,e robusto , o olho pequeno e v ivo

a t e z ro sada,as fe i ç o e s regul are s , o nariz aqui l i no ,

João pareci a um abba d e minhoto , dos que tem bon spre suntos n a de spen sa e bom vinho na adega .

Bo a e sp ingarda,bom garfo

,bom copo

,bom rosto ,

e,portanto

,bom companhe iro

,e ra , a l ém de tudo i sto ,

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(J A F «XI)A S P OR'

l'

UGUl—lZA S

li no como um cora l . Rapaz,fi lho d o povo

,li z e r a —se

homem na cidad e , tin ha , o que é raro n o s homen sda sua c l a ss e e profi s são

,aprendido a sc ie n cía d íflí

c i l d e se mante r sempre n o s eu logar . mas quandoqueri a obse quiar a l guem , faz ia—o com a gent i l ez ad 'um fi dalgo .

Um exemplo .

Homem v i d e i r o,abri ra e l l e em Be l em

,defronte

dos J e r o n ymo s, um re staurante , a que po z o nome

de Ca ca d o r . Um dia , em que eu fui vi s i ta r a egre j a ,demore i—me mai s , e e ram horas de j antar

,quando

d e lã sa í . A minha ca sa fi cava l onge,dirigi-me a o

Ca ça d o r .

Prevenin do j a a hypothese de l a' e star o dono , e ntre i pe l a porta do l ado . O cre ado que ve i u recebera s minhas orden s

,parece qu e me conheci a , porque

el l e a vo l tar costas , e João a appa r e ce r com o seurosto praze'nte i ro . Eu dis se —l he o que queria , e l l esen tou—s e no logar fronte i ro

,e t ravamos a conver sa ,

e'

c l aro,sobre a mater i a vasta — a caça

,e arte s e

hi stori a s corre l at ivas .

Quando eu i a no fim do primeiro prato , João , t omando os ventos

,di s se —me

Está-me che i rando bem . Parece -me que lhe façocompanhi a

,se me d a l i c en ca .

Ora es sa . O João e sta na sua ca sa .

E j antamos os doi s,e n t r eme i a n d o o paio com e r

v i lha s,e as e i r o z e s gre lhadas , com hi s tor i a s , a lg u

mas mai s s al gada s d o que os gui sados , que iamossaborean do .

Quando a cce n d emo s os charutos , e eu pedi a

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CA CADAS PORTUGUEZASconta , e l l e fez um signa l ao servo

, qu e d e sappa r e

ceu , e l ogo vol tando—s e para mimV . Ex .

ª d eu -me a honra de j an tar comigo naminha casa , e e u e stou pago . Não deve n ada .

E ' c laro que n ão i n sís t i . Se te imas se , eu e que e r am al'cr e a d o .

Tempos ante s fi z e ra-lhe uma pequenina fi neza,e

e l l e quiz—me mostrar qu e n ão a havi a e squec ido . Pod i a contar d i e l l e outras h i stori a s . mas e sta ba s ta .

Joao Lourenco traz ia coms ig o , para a s nos sa s cacada s

, o s seus cãe s , n a companh ia dos quaes vi nhama l gun s

,que perte nci am a Ca s a Real , e que , s e j a dito

de pa ssagem,n ão envergonhavam os nos sos . E n ão

t raz i a so i s so mui t a s veze s ve sti a tambem o seu pi tt o r e sco tra jo do Rea l s ervico , e com e l l e vinham outros cacadore s da Ca sa , bem armados , e bon s ati radore s .

Quem vi s se então no Junca l Bulhão Pato,e os

seu s amigos, com aque l l a comi tiva de cacadore s

,

perdigue i ros,e batedore s d o sít i o , que se n o s ag g r e

g avam ,e attenta s se n a chapa , com as armas r e a e s

de prata re luzente, q u e orn ava o chapéu a Mo squ e

t e i r a do nosso mo co d o mo n t e, cuidari a que eramosa lgun s principe s sac iados de caça , que , para variaro men u cyn eg e t ico de Mafra e Vi lla

'

V i ç o sa , i am , pe

de stre e bu r g u e zme n t e , atirar a l l i á s co do r n iz e s e

n a r ce j a s .

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(SACADAS P OR'

I'

UGUEZAS 3 3

Cacadore s r eae s e verdade iros e ramos n os,e pri n

c ipe s tambem ás veze s i am doi s : um era.

Lope s Çab ra l que nós e leva r amo s a e s sa dign idade , o outrot inha- se e l evado a s i propr io , e ra Bulhão Patom a s o seu prin cipado era , e é , na Repub l i ca dasLettras . Tem menos fausto

,menos repre sentação

,e

i n comparave lmente menos rendimentos,mas tem

sobre os outros uma vantagem,uma ab soluta supe

r i o r i da d e : os , seu s su bd i t o s podem não lhe t i ra r ochapéu

,podem d i scu t i l-o , podem não o l er qu e é

maxima affron ta — mas o que não podem é obri

g al-o a abdi car !As corôa s dos poeta s e stão ac ima das r evo lu cões !

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36 CA ç A DA s P ORTUGUEZAS

o poeta d e todos os a s sumpt o s t i ra p art i do ; e e l l e ,qu e não é um natura l i sta , um sab io

, é—um fi no

observador da natureza , e n a sua conversação omundo rea l re força e co n cr e t i sa o imagin at ivo .

A s s im como os companhe iro s , variavam os a ssumptos . Se eram art i sta s

,musi cos

,pre dominava o ly

r i smo — S. Carlos , os teno re s , a s p r ima s-d o n a s,os

ma est r o s ; se nos acompanhava a l gum pol ít i co ca soraro

,que os pol i t i co s ati ram a outra caca — e r a a

oratori a t r ibu n i c i a — José Estevam,Pas sos Manue l ,

Rodrigo , Rebe l lo da S i lva , Garre tt , s e iam mundanos

,então ba i l e s , amore s e aventura s . Não fal tavam

a s sump t o s para os quadros , nem ao arti sta a s côr e spara os pintar .

Uma coi sa h avi a prohib i da n a nos sa soci edadeo si l e nc io . Quando nós

,ao l argar da Rocha

,nos con

se r vavamo s c in co m inutos ca l ados , Bulhão Pato prote s t ava

Leva de rumor ! — dizi a e l l e , apo s t r opha n d o com icam e n t e o nosso muti smo . Parece que morreuaqui a l guem ! O '

D i ogo,tu pa s sa ste mal a noite ?

D . D i ogo,d 'uma antiga e nobre fami l i a do A l em

te j o, e r a u m dos mai s íntimos amigos do poeta .

Era -o desde a infanc i a : t inham fre quentado j untoso co l l e gio in g l ez da rua do Que lhas . Nascera na Ind ia . Os olho s e os cab e l lo s pretos

,os dentes a lv i s

s imos,e a côr bronze ada do ros to , denunc iavam

ne l l e o exot i smo da procedenci a,a i n fi u e n c i a do

sangue ori en ta l . Exce l l e n te rapaz e i nte l l igente , e r aum mag n ífi co c ompanhe i ro — d e ste s qu e não se se nt em , qu e não p e sam .

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c A t zA n A s P OR'

rUGUEZA s 3 7

Como todos os cacadore s que são um pouco art i s t a s

,D i ogo não de sgostava d o pittore sco

,e tinha

,

de tempos a tempos , os seus capri chos de t o i le t t e .

Um d ia , depoi s de osten ta r a o s nossos ol hos deamadore s un s l i ndos ce i fõe s am a r e llo s d e pe l l e decabra

,preparada a co r d o ve z a , d ebr u a d o s de e n ca r

nado , e or lados de pha n t a sío so s fi o rõe s , abertos sobr e panno da me sma côr obra -prima d 'a lgum arti s ta anda luz — para comple tar o e ffeít o t i rou da saccaum barre te verme lho

,um f ez, com uma longa e fo r

n ida borl a preta , e pol - o na cabeca , ag e i t a n d o - o art i s t i came n t e . D iogo não era bon ito

,mas aqui a côr

sa lvava o de senho .

Um '

e sple n d id o model o para um F o r t u n y ! A pal eta comple ta — uma orgia de côr e s ! Vermel ho , preto ,encarnado

,ama r e llo , e s t r e lla n t e s , i llumi n a d o s pe lo s

ra ios do so l na scente,e de stacando sobre o fundo

gl auco do mar ! O que fal tou fo i o pin tor .

Chegou a vez do cigarro , e a bol sa do tabaco eo fuzi l de D iogo tambem e ram e legantemente hi stor i a d o s .

Depº i s de o accender , e l l e r e la n ce o u o s ol hos a legre s sobre nós

,acabando pe los pôr em Bulhão Pato .

No olhar d e D iogo havi a uma provocação á galho fa , na sua bôca brincava um sorri so ga iato .

Então Pato,que e stivera a olhar para e l l e , desde

a imprevi sta appa r i cão do barre te verme lho , di s s elhe , com uma grande se ri edade

Estás boni to,e stás . Parece s o bey de Tuni s !

O e ffe i t o foi fulminante , e a garga lhada gera l . Opropr io D iogo ri a como um perdi do .

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38 CA c ADA s P OR'

l“

UG lílíZA S

ataque não fi cou,porém ,

sem répl i ca . Cruzad o s os fe rros , houve a lgun s co z/p s d e bo u t o n bemexecutados

,bon s ataque s e boas re spostas , propri as

de doi s j ogadore s que se conhec iam , que se e st imavam e que se re spe i tavam . Um assa l to de ch i ste spa ra a ri sota .

Travado sobre a su pe r fíc i e das aguas , parti c ipouda natureza d

'

e l l a s — os golpe s n ão e ram sanguinol en tos , mas e ram sal gados . E po r i s so lá fi ca ramno sa lso a r g

º

en t o .

E nós ainda a ri r,um barco a pa s sar perto

,e um

d o s fi l hos d o Lourenco a gri ta r- l he :—Aí

,minha perna

,sr . doutor !

Os varino s acudiram a resposta,n a l in guagem qu e

l he s é pecu l i a r,e que

,s e é propri a , não é correc ta .

El l e s u sam de braga s — mas n ão e'

n a l i ngua .

A s nossa s bate ria s vol taram - se então para e l l e s,e

quando,j á longe

,n ão o s pod íamos ouvi r , a inda o s

viamos ge sticul a r . Era uma d ive rsão aque l l a qua siob rigada

,en tre o s frequen tadore s d o r io .

A s ga ivota s vinham , as veze s , reconhece r—nos detão perto

,que , ape sar de n ão cu l t ivarmos e ste g e

n ero de sp o r t , s e e l l a s s e con ta s sem a i da , haviamde achar a lguma de menos .

Is to,porém

,e ra raro . Patos tambem

,s e passa

vam a o a l cance,eram saudados , mas de ord inario

a l teavam , ao ve r—n o s,e ape sar d o que se costuma

diz e r , não lhe s chegava o chumbo — não ca íam .

Um d i a fo i que o [ eve r d e r i d ea u — o prologoe steve quas i a s er a tragedia . A e spingarda de Eulhão Pato era a de Evba r — de ixara—a e l l e

car em

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MZA l iA s [ 'U R I I u r l:/ x s

A lem t j u e r , n ude fu ra ca ç a r , e ( ]abra l , q u e d e la a t ru nxe ra , m a n d n i t lh

'

a u a ve spe r a . C a bra l — um g randee e Xpe r ime n t a d o caçador - e r a tudo qua ntu ha demai s cui da doso ;pu d ia -se -llt e chamar

,sem troca di lho

,

re i da s c a ute la s . Mas uma ve z t o d o s e rram, e

quando Bulhão P a to , que t inha o costume de darum l

'

u g a chn a e spinga rd a ,a nte s de princ ipi a r a a t i

ra r,n fe z sem a me n o r d e sco n li a n c a , porq ue nenhum

d o s p i st o n s t raz ia fulminante , d'

um d o s canos sa iui ncendiada a polvora sôlt a

,mas o o u t r o di spa rou um

ti ro a va l e r ! En ca r aí'n u —n o s t o d o s . Estavamos l'

e

lízme n tc i lle s o s .

O q u e n o s va leu fo i o t e r e l l e , tambem prudente ,d i spa rado

,como usava s empre , po r c ima da borda .

Hein ! di s se poeta de q u e n os e scapamos !Mestre Cab ra l d

'

e sta ve z e squeceu-se !E fo i e s te

, em tantos anuos , o un ico acc idente , queteve as somos de gra v idade .

E o mar,ne s sa s t rave ss ia s ? pe rgunta ra o le i tor ,

c urioso d'

e ste s pormenore s .Como a o outono se segue o i nverno , alg uma s ti

z emo s em que o c atra io d o pat rão Lourenço dan

ç ava um tan t o sobre a s aguas .

Um d i a, q u e nós t ínhamos e scol hido pa ra dar uma

sa ltada a o J unca l,amanhec eu-nos ca rregado o ceu ,

a spe rrimo sudoe s t e , promettendo de inun

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40. CA CA DA s P ORTUGUEZA S

dar um Saha r a l. A r e so lu cão e stava tomada, e

nós fomos por te rra a Be l em . Lourenco, qu e n ão

nos v iera buscar , por ve r a fe i a catadura do tempo ,l evou—nos ao cae s , e ah i , com os bracos abertos e a s

mãos e spa lmadas , mostrando-nos a s ondas ve rde-e scuras

,cre spas , picada s pe lo vento , fran j adas de e s

puma,e o mar de serto

,di s s e -nos :

Os senhore s bem vêem . Nem um pau aocimo d

'

agua ! E a ccr e sce n t o u , para reforçar — Osoutros senhores que aqu i tambem costumam vi r , fo

ram - s e para ca saEntão você , Lourenço , não nos quer l evar .

Tem medo ? perguntou Bulhão Pato,o lhando depoi s

para m im .

Eu não , senhor . Medo não tenho,mas é qu e

os senhore s fi cam enxovalhados . Leval -os,l evo-o s

eu . Agora enxutos . Por i s so é que e u n ão re spondo .

E o intrep ido a l garvio e l l e e r a de Ferragudochamou, com

'

o mesmo rosto sereno , os âlho s , e sa ltamos todos para o barco . Armada a ve l a

, qu e ovento logo e n fu n o u , part imos . Atrave s samos

,com a

borda quas i s empre rente da agua , e , uma ou duasveze s

, ,eu sent i fugir o banco debaixo de m im .

Já e s t á morto um dos,nos sos companhei ros d '

e n

tão, qu e em tae s casos s e sentava logo em ba ixo ,

nos pane iros .

P r a t i co s do r i o , hab i tuados a viver n e l l e , os nossos homen s conhec i am—n -o como os seu s dedos ; a scorrente s da agua e do vento v iam- n - a s tam bem qu e ,ne sta manobra d e vi rar de bordo

,debaixo do vento ,

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e x c i u ms r o n'

r u c u ez A s 4 l

o catra io o be d e c ia como um h n o corce l,qua s i sem

parar n a carre i ra , com ta l c e rtez a e r a fe i ta , tão a j u stados s e concertavam o s mov imentos do que ia a o

l eme com o que cambi ava o panno !Iamos faze r o ul t imo bordo

,mai s perto da terra

,.

e qu e e ra o mai s serio .

Agora ! di s se o ve lho Lourenço,com os olhos

na ve l a , ao fi l ho , que i a em pé junto do mastro . O

c atra io , que estava a tocar n o vento , parou um in stante , atrave ssan do ; a ve l a cambiou e e l l e seguiu .

Mas , nes se s momentos , quem vae no barco e n ão

é do mar , é qu e l he sente o bal anco .

Conforme e l l e d is sera,chegámos a sa lvo

,s e não

enxutos . A i n da a s sim a a spersão fo i l evi s s ima , sea t t e n d e rmo s ao que pr ome t t iam o céu , e o mar !

Bulhão Pato teve muita s mai s o cca s iõe s de a fi r o ntar torva catadura do Padre Te jo , e depoi s , aol argo

,a s temerosa s i ra s do Oce ano . Mas , como tanto

se pode morre r afogado aqui como la, sente- se umgrande prazer

,quando

,roçando pe lo perigo , l he e s

c apamos . pe l a tangente .

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44 CA CADA s P ORTUGUEZA S

t i n u o pe l a s febre s . A s agua s do i nverno,e stag n ada s

em charcos,tornados paú e s , fermentando—as o so l

ardente da can icul a,evo lavam de s i mia smas mor

taes,que o vento n ão varri a , e que não poupavam

n em a s c r e a n ç a s , nem os adul tos .

Em dia s de sol , com o ar parado,aqu elle ermo

de scampado é uma amos t ra da pa iz ag em afri can a !Ao fun do

,para o lado do Oceano

,a s cabanas d e

colmo d o s pe scadore s,baixas e negra s

,e perto d ”

el

l a s a cape l l i nha branca ; de fronte o cemiterio , comos cyp r e s t e s e sguios , ba lo u ca n d o

-como nós — e n

tre a vi da e a morte , a e squerd a o Monte — aridarocha a pi que , com o seu aspecto de fortal eza ; ad ire i ta a prai a e o marNada mai s t ri ste ! Um dia

, em que la âqu e i , ouvi ndo , ao sol posto , o toque da s A ve -Mari as , d e uem mim ta l me l ancol i a

,que de sate i a chorar !

Não era ameno o s iti o , tampouco o foi , em t empos ,a fama : dos seus moradore s .

_ Anda fugido na Costa — e r a uma phrase corren te n a bôca do povo

,quando s e fa l ava d e a l gu m

criminoso faca n hu d o , que d e sappa r e ce r a d e L i sboa .

Tran sposto o Te j o,l adrõe s e a ssas sinos a l l i se

acoi tavam e e scondiam na s compa n ha s dos barcosde pe sca . A s sim escapavam no mar aos qu ad r ilhe iros de Li sboa

,quando l á i am pe r se gu i l

-os . Uma vi

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( :A t ziu ms vo a'

r u o ín i z a s t o

s it a da j ust ic a a Costa — quando a pol íc i a e stavalonge de ser o que é hoj e — e ra uma exped iç ão ar ri sc ada , e quasi sempre inut i l .A c ivi li sa ção ja la chegou , e , s e n ão mudou a na

t u r e z a , mudaram o s costumes . A i n da a ss im n ão po

demos dize r que re i na a l l i sempre uma pa z octavi ana . Um d i a , logo depoi s de sa í rem de la o s nossosamigos , um homem

,chamado Damião

, fo i e sfa

qu e a do .

A cas a da sr .

ªMari a do A d r ião — o nos so hote le r a re spe itada , e nós , sa in do de lá , n ão faz íamos

«detença n a povo acão .

Os pescadore s , pobre gen te , quando ha pe ixe an.dam na sua fa ina ;quando e l l e fa l ta vêem- s e a portad a s choça s , ou na praia , olhando , tri ste s e sombrios ,p ara o mar a l to . E ' d'al l i que lhe s vem a ventura ea de sgraça . Aque l l a vida

,que para nós tem uma

grande poe sia,traz—l h e s s empre deante dos o lhos

duas sombras n egra s a fome em terra,quando e s

ca sse i a o pe ixe , e a morte , quando os su rpr ehe n d e o

'vendava l !Serios e concen trados , mantinham um discreto

s i l e nc io,quando appa r e ci am onde nós es tavamos .

Com os rostos semi -o ccu lt o s , os g abõe s ca ídos eml arga s prega s

,t inham um quer que d e sombras

,mo

v e ndo-se l e ntamente n aqu e lle fu nebre scen ario .

A nota a legre,un i ca

,mas esta viv i s s ima , e ram as

c r e a n ç a s . Essa s,s im

,que vinham sempre vi s i ta r

nos . Nós,para e l l e s

,e ramos a n o vid a d e — com o s

n ossos tra j os,armas

,e perdigue i ros . El le s — o bando

b ul içoso,sa l tão e gárru lo corr iam para n os , cheios

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40 CA CADA s P ORTUGUEZA S

de pi ttore sco e de vi da . Uns de g abõe s i t o s pardos ,outros de camisol a s ri scadas , branca s , a z u e s , vermelhas ; a l gun s semi—n ú s , mostrando pe los ra sgõe s d ofato a pe l l e trigue ira , com os seus ton s fu lvo s ; todosdesca l ços ; os cabe l l o s , pretos lo i ros

,arru ivados ,

cre spos e revol to s ; queimados os rost inhos pe lo sol ,e cre stados pe lo norde ste .

A l gum,mai s atrev ido

, co lle ava , l en ta e so r r a t e i

r ame n t e , at é a ca sa do j antar ; os outro s miravamnos de longe por entre a s portas

, com os ol hos v i “

vo s , e sperando a sa ída . Poderi a a vi s ta sat is faze rlhe s a curios idade , mas nós , a e ste praz e r , puramenteopt i co

,a j u n t avamo s al guma co i sa mai s tang íve l .

Os pr imeiros a recebe r os nos sos don s e ram o smai s ve lhos

,os que nos tinham pre stado al gum se r

viço,que e l l e s

,no a cto

,não s e e squec iam de a l l e

gar . A e st a d i s t r i bu i cão seguia - s e outra , que e r a

ge ra l . A t i r avamo s para o monte .

Tinha qu e ve r então ! O bando prec ip itava- s eavi do e furio so , sobre a s mea lhas e sparsa s na area .

Era uma confusão v ivi s sima de corpos as r eba t i n ha s ,de cabec i ta s re sfol egante s e afogueadas

,de mãos

a d u n ca s , lu c t a n d o , qua l de ba ixo , qual de c ima , pe laposse do meta l . Aqui e a l l i

,d entre a r evôlt a mole ,

e rguiam-se al gun s , che io s de a le g r i a e de poe i ra ,mostrando orgulhosos o premio da lue ta . E e l l a r epet i a— se

,se um olho mai s agudo de scobri a no chão

al gum cobre,que aos outros e scapara .

Depoi s os vencedore s di sper savam . A l gun s , raros ,.

paravam nos l imite s da povoação,l evando a s mãos

aos barrete s , outros i am— se l ogo,

r e t o u ca n d o,a o s

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CACADAS P o a'

r u d u em s 47

pu lo s , pe lo area l . Mas a lgun s ainda nos acompanhavam . Não e r a o amor

,nem a grat idão .

Não tinham apanhado nada,e vinham la s t íma n

do-se , até que al guma alma , impaci ente o u api edada ,repart ia com e l l e s o s u l t imos miudos . Um vintempara cinco , dez ré i s para Conta s d ífi i ce i sde fazer , mas que e l l e s lá reso lviam com a sua arithme t i ca de pequeninos .

Eram os p r emi o s d e co n so la cão .

Com t itulo s ba stante s para ser procurado pe lo s :

mestre s da venatori a , não os t inha e g u a e s e ste sít io

para se r frequen tado por senhora s . Quem al l i a sl evava , não e r a a fama das amen idade s do l ogar

,

e ramos nós , os caçadore s , auxi l i ados po r um certo .

e stimulo arti s t i co,o da curios idade do contraste

ve r a povoação dos pe scadore s , com as suas ca sasd e colmo , armadas sobre os barcos ! Um trecho daAfri ca

,á vi sta

, e a doi s pas sos de Li sboa !Da s c las s e s populare s tambem algun s a l l i iam fã

z e r a s sua s agapes campestre s . Mas e ss a s , n ão raro

,t inham um epílo g o comico , quando não tragi co .

Vinho quas i s empre,e,as vez e s , sangue .

Casa s d e cal e a r êa havi a lá então duas ou tre s .

Na parede exterior d uma d e l l a s l i a- se uma i n scr ipção

,em gros sas le ttra s d a lmag r e , commemorando

qu e a mode sta v ivenda fôra honrada , ta l di a , por

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48 CA CA n A s P ORTUGUEZAS

um r e i nosso . Se bem m e recordo,foi D . João VI .

E tambem me mostraram o t inte iro d e fa i a n ca nacion al , pintal gado de ama r ello

,verme lho e ve rde

tons crus — de que e l l e s e serviu para e screver oua ss i g n a r n ão me l embro o qu e .

Este se rt ão , i n ho spi t o para gente cív i li sad a,fo i

,

.durante muitos a n n o s , t a lvez pe lo seu e stado denaturez a prim it iva

,um para í so para os cacadore s !

Um compl eto m a t t a gal, al to , den so , e espinhoso . Inve rno s hav ia , porém , aben çoados , em que pare c iat e r - se al l i aberto a a rca de Noé ! A caca d e arribacão em bando s ! Eram ab ibe s , t a r ambo la s , n a r ce j a s ,patos , ma ca r i co s r e a e s , g alli n ha s d

'

agua , bo r r e lho s ,t o i r õe s

,co d o r n iz e s , e depo i s l ebre s , e at é g a lli n ho

l a s e perdize s , que de sc i am do monte — tudo com os eu acompanhamento de ave s carn i ce i ra s

,corvos ,

gri fo s e m i lha fr e s !Quando Bulhão Pato comecou a fr equ e n t al—o com

o s s eus amigos , a inda o Junca l e r a i sto . Hoj e lembra o lo cu s u bi Tr oj a fa i t . Aqu í foi o Junca l ! .

Catado de norte a sul, d e l e ste a oe ste , d iz em-me

qu e n ão de i ta de s i quatro co d o r n i z e s !

Não vou la, ha talvez quinz e a n n o s , e no ul t imod ia as

'

m inha s perdiguei ra s l evantaram apena s dua s !Ephéme r o s todos os pa r aíso s ! At é o s dos caca

d ore s !

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ÉQQSCÉ AÉ A ÉÉA É É ãºêm㪪êA 㺠ÉA õ

fºê-aªâ

Tªí, —Tª? QST D

ETajTªígôâº)

Uma caçada no j unca l

A l-Zmílío A ch i lle s Mo n t e v e r d e

A QUELLE d i a , ao romper da manhã — uma man hãde novembro

,fr e sca e luminosa — abi cava

ao cae s do Aterro,fronte iro ãRocha

,toda a

e squadri l ha do patrão Lourenco — tre s be l lo s cat r a i o s , governados po r e l l e , pe lo seu fi l ho mai s ve lho ,João — um rapagão d e s emba r a ca d o , e po r outro arrae s

,al to e membrudo como um athl e ta , e que hoj e

é mestre d um dos vapore s de Caci lha s .

Mocos e ve lhos,e ram todos marí timos as dire i ta s ,

e n aqu e lle s ba rqu i n ho s i am e l le s a pe sca , e po r l áa ndavam

,sem medo e a ventura , fora da barra !

Quantas veze s,para n ão fa l tarem á sua pa lavra ,

e l l e s nos vi nham buscar a l l i,t endo perdido a noite

no mar ! E i sto pe r cebiamo l—o nós pe lo arran j o dobarco, denunc iante d o servico da noi te . D a bôcanão lhe s saiu nunca uma palavra , que pode sse s e r

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DO CACADAS,P ORTUGUEZAS

tomada como um encarec imento in tere s sado,um ap

pe l l o a no s sa gen eros i dade !João Lourenco já vin ha com e l l e s d e Belem

,tra

zendo as suasmelhore s e spadas—'

o!Thi er s

,aNo rma ,

o Ti ba u,e outros . A companhavam—n -o o Euseb io

,e 0

Joaquim Tavare s , da Junque i ra , como e l l e c readoda Casa Rea l , bo a e spingarda e s i z u d o companhe i ro .

Um exce l l ente rapaz .

Iam senhoras tambem com n o sco,mas

,s e eu e s

c r eve sse em e s tylo c l a s s i co , não poder i a dize r quenós fo rmavamo s o corte j o de D i ana

,a caca d o r a .

Nem a sr .

“ D . Mari a da Piedade,a irmã do i l lu st re

poeta , nem as outras senhoras , suas amigas , t inhama minima pr e t e n cão a sp o r t swomen .

A maré era boa,e aproamos a o Torrão , evi tando

o fadigoso tran si to pe lo are a l .

Bem ausp ic iado o dia . Encontramos logo as cod o r n i z e s a beira mar

,no princ ip io do matto . Cru

z avam -s e o s rastros , como de costume , mas os cãe s ,

pr a t i co s do te rreno e conhecedore s da caça , l ogode stri nçaram a meada . D

"ahi a pouco estavam todo s

p a r a d o s a mostra do que i a na frente .

Formoso e s ingul ar espectacu lo ! Impre s s iona atodo s e ste repentino e stacar dos perdigue i ro s . A

pa sso ,'

a trote,a galope

,que vam , ao sentirem a

caca proxima,fi cam de improvi so immove i s , na po

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52 CA çADA s P ORTUGUEZAS

caca,que lhe s fugira . Não tardaram em achal —a , e

e i l—os outra vez e stac ados . No rma mantinha a d i ante ir a — a codorn iz t i nha—a e l l a apontada . E como j a'

não havi a defez a,porque e stava n o l imite do matto

,

e l l a pôz —se nas az a s .

O vôo,e s t r i du lo no arrancar , denunc iava um ma

cho . Naqu ella e s t a ção ,'

n a qu elle s l ogar es a s codorn i z e s encontram abundante e succul ento pas to n asmyr i a d a s de -pequeni nos ca r a co e s , que cobrem li ttet a lmente a s j o i n a s . A l l i s e preparam para a grandetrave s si a da sua emigração para a Afri ca .

Aque l l a,como não havi a ve nto

,voava ba ixo

,mas

di s tanc iava-s e rapidamente . Ouviu—se um ti ro . A cod o r n i z caíu .

A pontari a certe i ra foi de Bulhão Pato — pensaráo l e i tor

,que vae seguindo

,e as veze s ant icipando

,

o s fa ctos .

Não foi,e dev i a ser . Era o mai s ve lho

,o mai s

graduado — e ra o cabeça , o chefe .

Mas entre nós havi a um que,por ser o mai s

novo,o menos experimentado , s e e squeceu de tudo

i s so,e, e n thu s ia sma d o com os l ance s d aqu e lle jogo ,

não s e conteve . A codorn iz caiu redonda,mas eu

qu e fui o ta l at irador — t ambem ca í l ogo em m ime v i que , apesar d a pontari a certe i ra , havi a e rrado !Aqu i fi c a o meu — P eccam

'

.

Pato,confi ado em s i , t inha—a de ixado al argar . Não

vi u d onde part i ra o ti ro,e perguntou d e quem fôr

'

a .

— F u i eu .

Está bem . Bom tiro . De ixa-a vêr — di ss e e l l e .

— Es tãgorda . Mas aqui ha mai s . Vamos devagar .

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n

U

n

CACADAS P ORTUGUEZA S

Effe c t ívame n t e a s parada s repeti ram- se,e d

'

ahi apouco d e z co d o r n i z e s t i nham al l i en contrado su a fim .

Escusado é dize r que foram quas i toda s mortas po re l l e , que e r a de todos nós a mel hor e sp ingarda .

Coitada s , como o seu desti no era a trave s sa r ume stre i to , pas saram po r um — mas n ão fo i o de C ibr a lt a r .

O sol ia apertan do . A s senhora s de ixaram-n o s , etomaram , com as creadas

,o caminho da Costa .

A' nos sa e squerda t inhamos

,em frente

,a vinha

do Miran da,bom abrigo para a caça

,e,a di re i ta

,

de scobr ia—se a prai a fron tei ra ao mar ;mas no l imited e l l a , a bei ra do matto , appa r e c i am -nos

,aqui e a l l i

,

al gun s l agos , qu e as chuva s do outono t inham fo r

mado . A agua e r a tão límp id a , que se l he v i a ofun do ; apenas al guma s moitas de j uncos lhe sombreavam a su pe rh c i e , que refle ctia a s rara s nuvemz i n ha s branca s

,que pairavam quieta s no ar .

A qu elle s l agos eram tentadore s . Se e l l e s t ive ssemn a r ce j a s .

— Vou—me aos l agos — di s se eu ao meu amigo .

Está-me sorr indo a i de'

a de la encontrar c erta s sen ho r a s .

Poi s va e . Eu não vou,não me quero agora mo

lha r . Tu não te importa s com i s so . Talvez l á e stej am al gumas . Eu ea vou andando para a t ap a d i n ha .

Eu fu i , e e l l a s l a'

e stavam . Não eram a o s centos ,

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f"

3 4 CACADAS P ORTUGUEZAS

ainda a ss im encontre i a s bastante s para errar umaduzi a de t i ros . Mas não erre i todas .

Não se i o que a s n a r ce j a s t e em commigo , o queé ce rto é que eu —

q u e em theori a , a frio , prefi ro asperdize s e as g a lli n ho la s — quando defronto com el l as

,

n o s te rrenos alaga d i co s , que são o s s eus predi l e ctos ,perco a cabeça , e n ão ha l amas , n em agua s

,nem

lodos de m a r n o t a s,que me impeçam de as fuz i l ar !

Se r á a d iffi cu ld a d e d o t i r o Í/ ITa lve z . E é provave lque se j a , porque é a caca qu e mai s se e rra .

Entrar n aqu e lle s lagos era o mesmo que entrarem um t anque . A agua e stava tão fri a

,e em al gun s

e ra tão a l ta,que t ive de sa i r d um rapidamente

senti a j á um comeco de ton tura . O que n ão m e im

pediu de me mette r l ogo em outro,e de andar as sim

mai s d uma hora , a entrar e sa i r da agua , debaixod

'

um so l'

ardente , e num si t io tão se z o n a t ico . Masparec e que eu andava então a guarda de Deus ! Nems e z õe s , n em nada !A s n a r ce j a s ti nham j á d e sappar e c i d o deante de

mim n o s l agos , e a fuz i l ari a conti nuava a ouvir—s epara a s b andas da t ap a d i n ha .

Encaminhe i-me para lá .

Bo a caçada . Pato e stava radiante — a s co d o r n i z e ssa l tavam- l he da s j o i n a s aos pare s ! E e l l e j á s e h rm ava

com el l a s,por c ausa da bri s a que se l evantara , e tam

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CAC /XDA S PORTUGUEZA 8

bem '

po r cau sa d o s cartuchos . Contava —as a e l l a s,e

ja o s contava a e l l e s, qu e i am ra re ando n o c in to .

Então a t ap a d i uha rende . d i s se - l he eu . Mereceo nome que lhe

'

po z e s t e .

E,

como vês . Tudo i sto e s t á che io d e l l as . Mastu tambem achaste n a r ce j a s .

Trago a qui c inco , mas fi caram-me la muita s .

Estão um pouco asperas .

— Olha o s c ãe s , Zacharia s .

Pal avras não eram dita s e t re s co do r n i z e s a sa ltarem . Estavam e spertas , n ão e speravam . Bastava

qu e o s cãe s a s apontas sem .

Tre s t i ros . Pato dobrou a duas,e eu mate i a te r

c e i ra .

—Dã c á , Thi er s . Olha,e stão m ag n ihca s . E di

z endo i sto , pas sava -me a mão um e sple n dído macho ,n egro e d e pe i to redondo . Todas a s s im — a ccr e sce n

t o u e l l e . E , a sa zão da partida .

João Lourenço appr o x im a r a - se com o s seu s com

pa n he i r o s . Estendemo—n o s em ordem , e a fuzi l ari acont inuou nutri da . Parec i a o ti rote io d uma l inha deat i radore s !Cruzavam- se

,por veze s

,os t iros , porque a c aça ,

e spal hada pe lo Juncal,i a- s e l evantando deante de

nós em toda a exten são da l inha . Os nos sos impr ovi sados mo co s d e mo u t e — r apa z i t o s do sit io , ques empre se n o s ag g r e g avam

— â cavam—se atraz , ade scançar n as raras sombras d o s m édão s , e Pato j ái a repart i ndo comigo o s de spo jos , q u e l he come ca

vam a pe sar n a rede .

A bri sa da 'manhã ce ssara,mas as n u vemz i n ha s

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56 CAçADA s P ORTUGUEZAS

branca s quebravam,de quando em quando , o ardor

do sol, qu e n os prin cip iava a morder .

- Só a s melg asnos persegu iam

,obrigando-nos a fazer dos l e ncos

guarda-nuca s .

Aqui ha rastro d uma lebre , sr . Pato — di s se oJoão Lourenço , que i a atrave ssando um claro daare i a . E la va e e l l a ! — gri tou e l l e . Vae a o l ongo domedão ! A h i a sua di re i ta !Com effe i t o e l l a i a- se furtando por entre a s j oma s

e o s j uncos , ao s sa l to s . Estava perto de n os .

D eixa-a endi re i ta r a carre i ra — di s s e Pato .

Era a prime ira , que eu a l l i v i a .

Agora . E ati rou - l h e .

A l ebre , ao ti ro , deu um sa l to , e atrave ssou , co rtando pe lo Juncal . Ia fe ri da

,e os cãe s

,que a tinham

vi sto , segu iram- n —a, e não tardou que a agarra ssem .

Estava cr ivada de chumbo .

— Agora vae um cigarro . E vamos as n a r ce ja s ,emqu a n t o o so l n ão aperta mai s . Eu não entro naagua — ape sar do nome — mas você s n ão fazem ce

r emo n i a s,e sacodem-m

'

a s para fora .

Quando chegamos j a lá e stavam outra ve z a s r e

g a cha s, como lhe s chamam na provi nci a , e princ ip i aram a e spi rra r d en tre os j u n co sít o s , que bordavam o s l agos .

O t i rote io re dobrou en tão de in ten s idade,porque

e l l a s — ha pouco batida s por mim — andavam levantada s , e s al tavam umas atraz da s outras , a roda denós , c ruzando- se no ar em todas a s d i r e ccõe s .

A e st a e spe c i e são doi s o s momentos em qu e sel he pode ati rar — quando l evantam

,e então é um

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CAÇXl) .XS P ORTUGUEZA S

t i ro de chofre , o u quando , depoi s de faze rem o s seu sz igzagues , e l l a s ace rtam o vôo . O mai s seguro écho fr a l-a s — o que , em todo o caso , é um tiro deaca so — porque

'

n ão ha tempo para apontar . Depoi sé quasi sempre tarde , ao endire i tar vam saindo doa lc ance .

Quem não é prat ico, e n thu s ia sma - s e

, da muitost i ros , e não mata n enhuma . F o i o que me su cce

deu nas primeira s veze s . O commum d o s cacadore sn ão gosta d e l l a s por i s so

,mas o s outros capricham

em emendar a mão,e vol tam . E ha ta l que as pre

fere a tudo .

O i l lu stre poeta j á então era optimo ati rador . Euadmirava—o , quando o vi a dobrar o s t i ros

,e tambem

ingenuamente me admirava,quando v i a cai r alguma

d a qu e lla s bicudas , que eu mal entrevi ra , ao d e sfecharPara arredonda r a conta das n a r ce j a s appa r e ce

ram doi s ma r r equ i n ho s .

Fe l iz a nos sa vi s ita a região dos l agos .

Curta s a s tarde s do inverno . O so l desc i a rapidamente sobre o hori sonte

,e a s nos sas sombras prin

c ipi avam a a longar- s e no chão . Era tempo de n o s

appr o x im a rmo s da Costa .

Iamo s subindo pe lo Juncal,quando a minha cade l

l a a J o i a que acabava de me apontar com grande

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58 CACADAS PORTUGu EZA sfri eza uma codorn iz

,deu uma fi ada rapida

,e logo

outra,formando um angulo recto com a prime ira , e

fi cou—se como uma rocha . Uma n a r ce j a perdidaa l l i

,e que apena s sa l tou ca iu . E logo em seguida

uma codorn iz .

Fin i s sima perdigue i ra — cacada pe lo Manue l Candido

,da Charneca

,as n a r ce j a s , as l ebre s , as gall i

n ho la s e as perdiz e s — a primeira ve z que a l eve iao Juncal , vendo o s outros cã e s a cce so s n o rastroda s co d o r n i z e s , não fazi a caso nenhum d

'

e lla s i'

e'

p arava a ol har para mim,como admirada

,e x pr o

brando—me ta lvez o eu te l—a arrancado a o s s eusfrondosos p inhae s da Amora e de Corroios

,para

l evantar pa s sarinhos n aqu e lle area l ! D epoi s hab it u o u - se

,n ão deixava e scapar uma — m a s e ra só por

cump r i r .

At é chegarmos ao fim d o Juncal , as Cabanas , acaca não ce s sou de sa l ta r .

A h i t ivemos uma scena — armada de impr o x i so ,que s e apre sentou desde l ogo com torvo aspecto .

A o l ongo do caminho sobrance i ro,que atrave s sa ,

n o a l to do Junca l , para a s cabanas d o s pe scadore shavia uma nesga de chão , que o trabalho perti nazdo homem tentara tran sformar em horta . Em cima ,a bei ra d o ta l caminho , um poco exp l i cava , e , atéc erto pon to

,« j u st ifi cava aque l l a pr e t e n cão . Couves

de ta l o r i j o,e sgrouviadas

,e meio se cca s , e ra apenas

o que a l l i s e vi a !A ! e squerda

,em terreno mai s a l to

,duas choca s de

cólmo domin avam e sta hort icu l tura , pobre , t ri ste , eagre ste

,como toda a regi ão d aqu e lla costa . O couva l

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bo ç A ç A o A s P ORTUGUEZA S

ç ava para e l l e com os punhos cerrados o u e st ari ala a lguem

,que o segurou ?

Quando n os , seguindo o me smo tri l ho de BulhãoPato , atrave s samos a horta e depoi s , trepando pel arampa

,pa s samos em frente da palhota

, o lha'

mo s pa r a

lá . No escuro da porta n ão havia n inguem

Vol tara o s i l e nc io aqu e lle s l ogare s . A nuvem n e

gra,que de repente surgiu , a turvar - n o s a límpi d a

a tmo sphcr a d aqu e lle formoso dia , d e sappa r e ce r a ,varrida pe l a vo z d o poeta .

D'

al l i a pouco e stavamos todos reun idos n a cas ade j antar da s r .

ªMaria do Adri ão . Ao l ado , na sal a ,de paredes e stucadas

,e tecto com re l evos — uma

surpre sa para nós aque l l a re s tauração — a menin aCaz im i r a e x t r ahia das gaveta s da s suas be l l a s commodas de polimento

,e mostrava ingenuamente as

senhoras,as ri quezas e o s primore s da sua guarda

roupa — cha l e s,ve stidos de côr e s garri das , sai a s com

renda s ti nas , camis as bordadas , l encos de seda deramagen s

,que tão bem fi cam

,e tanto rea lc e dam

aqu elle s rostos campesinos , ja i llum i n ad o s de ton squente s pe lo ar do campo e pe l o so l.

Uma fi gura g o th i ca — e s ta men ina Ca z 1m1r a . A l tae de l gada de corpo , nem pal l i da , nem cór a d a

,a vo z

d um t imbre a lgo dori do , avara de pa l avras , o s olho ssempre posto s no chão

,e um n ão se i que de tri ste

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CACADA S P ORTUGUL'

ZA S

e enigmati co , davam-me a impre s são de quem n ão

anda sati s fe i to cá na te rra .

Estas fi g u r a s , _ qu a n d o te em uma pl a st ic a indiv ídua l , e caracter í st i ca , po r apagada que se j a ne l l a sa expre ssão da vida , são

,como as e statuas

,s u g g e s

t iva s . Imprimem- se i n d e leve i s na memoria,e entram

na gal e ri a d o nosso mundo inte rior . E ”

com e sta simagen s , cu j os con tornos o tempo vae e sbatendo .

que os art i s tas e o s poetas compõem o s s eus quad r o s , os seu s romances , e os s eus poemas .

Aque l l a donze l l a,se rena e s i l en c iosa

,recortava -se

a l l i , aos m eus olhos — de stacando d o di s corde scenario , e parec i a ter sa ído d

º

a lg um velho paine l flamengo , de Van Eyck o u de Meml ing — in te ri or decathedra l g o thica , ou comitiva ca s t e llã, em ca ç a d a fi

dal ga,com pag e n s , lebr e u s e fa l cõe s .

A 's Ave —Maria s v ínhamos nós n o s barcos , ja devol ta

,aconchegados na s mantas , fumando e conver

sando . Nos pane i ros o s cães , enroscados , dormiam .

Ouviam — s e,rio ac ima

,a s s inetas de bordo , e , para

o norte,o ti ro de peca da torre de Be lem annunci a

vã,com o seu ru idoso pregão

,o pôr do so l— um sol

poente de outono,i l luminando e doirando os a e r e o s

ca s t ello s das nuvens,tão cambiante s , d iapha n o s , e

fugit ivos,como os da minha phantas i a , n aqu e lle s

a u r e o s tempos da mocidade ! .

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UANo o chegamos a Bel em vinha rompendomanhã . O mar e stava se reno

,o ceu azul fe r

rete e l impo de nuven s , apenas uma bri sali ge ira da terra encre spava a agua

,que corri a ra

pida na va sa n t e,mostrando aqui e a l l i grande s man

chas escuras,j unto as duas margen s , e em vol ta d o s

n av io s d al to bór do,surtos em frente do Lazareto .

O sol , erguendo—se detraz d umas nuven s d i aphanas , n acaradas , e com uns ton s .al a ran j ados n o centro

,parec ia affa s t a r brandamente a s faixas em que

tinha j az ido, e com toda a natureza acordar tambem

para o traba lho,para a v ida .

A s gaivota s,com os seus gri tos e s t r i d u lo s , cruza

vam—se no ar,e desenhavam as su a s graciosa s cur

va s,ora sub in do

,ora de scendo , a ade j ar , poi sadas

nas aguas quie tas,mergulhando n o s s it ios onde a

babu g em l he s a t t r ahía o s olhos penetrante s e gulo so s .

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CACADAS P ORTUGUEZA S

Ja se ouvi a o rumor da terra.

,que pri nc ipi ava a

despertar . No r i o o toque das s ine tas , o virar dosç abr e s ta n t e s , a s cornetas a bordo , a vo z arrastadados ca t r a e i r o s , o som compas sado dos remos

,os

apitos d o s vapore s , tudo mostrava que a fain a domar começava a par da l abutação na te rra .

O fri o da manhã entorpe ce ra -me o corpo . Levant e i -me

,pass e i da pôpa para a pr ôa , a spi re i a pl enos

pulmõe s a bri sa do norte,saudei como um orienta l

o so l nascente , aconchegue i me lhor o gabão, acce nd ium charuto

,e sente i -me outra ve z , e puz -me a olhar

para tudo o que me ce rcava , neste vago s c i sma r

que sempre provoca em nós a contemplação d o sgrande s e spe ctacu los da natureza .

A ” dire i ta erguiam- s e as rochas n egra s e e scalva

das da Outra Banda ; a e squerda a s terra s e col l in a s averme lhadas do norte ;a c idade prolongando—s epara o fundo , e stendida em amph i t he a t r o . Aqu i ea l l i i llumín avam - s e as v i draça s das torre s e d o s mírante s

,as grimpas dos co r u cheus e campanarios , a

fr o n t a r ia'da A j uda , a torre da s Nece ss idades , a

cupol a da E stre l l a : os pr imeiros fulgore s do so l nascente i am accendendo n as a l turas , como fachos dealmena ras , focos de s lumbrante s de luz fa i scan te ev iv i s s ima

,que pareci am incendios , de spedindo os

seu s reflexos i r i sa d o s , fu lvo s e verme lhos comochammas . Ao centro , e enchendo o val l e pr o fu nd ís s imo que j az entre as duas montanhas , o r io l a rgoe t ranquil lo , re cortando- s e n as gra ndes curvas da smargen s

,aqu i pardacen to e e spe lhado , al ém em

plena luz ; be i j an do mol l emente a terra com o l eve

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cA e Am s vo a'

r e u r íi z A s (35

e fre sco rumor das s u a s aguas,como um tímido

amante , que murmuras se o seu a fl'

e c t o a mulhe ramada ; de ixando depoi s na praia a s sua s pero l asv iva s e e spumosas , i r i s a d a s pe lo so l

,que pa r ec ia

be i ja l- a s tambem , embalando o s ba rqu i n ho s e legante s e os grande s navio s ; e indo depoi s po r uml ado l ancar- se no mar , e pe lo outro abri r , ac ima dac i dade , a larg a e adm i r ave l bahía de S anta A polon i a !

O mar in spi ra os poeta s , po r que tem a grandezae a sol i dão. Quem, no me io d a vasta exten s ão dasaguas , não sente o e spi r ito l eva n tado , e impe llid oír r e s i s t ive lme n t e para a contempl ação interior d o utros mundos , d outras épo ca s , . d o u t r a s sociedade s ,d outra s c ivi li sa ç õe s ? I so la- s e a a lma de tudo que ace rc a

,e l eva—se , e pa ira na s regiõe s da hi stori a .

Neste logar em que e st amos , quan tas geraçõe spas saram ! Quantos homens i l lus tre s vi ram este smesmos rochedos , aque l l a s me smas torre s , quea gora contemplamos , nós , que pas saremos tambemcomo e l l e s !

Sobre a s aguas do mar quanta s tragedi a s sangu in o le n t a s , quanta s batal ha s famosas , deci di ram dasorte “dos povos e dos re i s ! Aqu i — d i z o via j ante- é Sal amina , e j ul ga . ouvir o som das e spadas edas l anças nos e scudos gregos , acompanhando oshym n o s fr eme n t e s da vi cto r i a ! Aqui é-Actium , as

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' CACADAS PORTUGUEZAS« s i s t e a fuga ' d e C l eopa tra , a deshonra

'de Ma rco'

A n

ton io ! Aqui é Lepanto, e vê as e spadas hespa n ho

l a s e i ta l i ana s t i n c t a s'

no sangu e dos orgu lhosos Osma n li s , de stroçados e me t t íd o s a pique ! Aqui é Trafalg a r , uma das feri da s sempre abertas no fl anco domoderno P

_

r ome theu ! Aqui é Navarino , e vê surg ira Grec i a l ivre !E n ós ? Não fo i d aqu i mesmo que l evantaram

ferro a s naus de Vasco da Gama ? E todas a s daA fr ica , da Ameri ca , e da Indi a ? Oh ! os mare s e o srios tambem teem sua hi storia

,e a h i stori a d o

Te jo anda l i gada a nos sa , no as sombroso períododa sua gran deza !F o i j á moda , e ntre certo s e spi ri tos , fa z e r

'

mo fa do

g rande , do e splen d i do r io . Sem ideas , e até sem

grammatica,al gun s di s s eram mal d e l l e , mas o Pa

d r e Te jo é generoso , e squece a in j uri a , l ava—a na suacorrente , e tambem o s

ª

lu s t r a a e l l e s , quando , poracaso —o procuram !

Ora fo i exac tamente n e ste ponto de l avagen s quee stava a gente do nosso barco

,quando e u acordei

da s minha s divagaçõe s . A tripul ação andava - j á n al abuta diurna .

t L ouren co — o a r r a e s enxugava com um'

pa n n o

os bancos,molhados pe lo . o r va lho da noite , em

quanto o fi lli õ '

ma i s v e l ho. l avava com o '

lambaz'

o

e xter ior do : bote .

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68 CA CADA s P ORTUGUEZAS

ve lo s com a forca da corren te , e l avou a c ara. D epoi s fo i a proa , e - a j oe l hando , vol tado p a ra o so ln ascente

,r e so u . Percebi—o , q uando e l l e s e be n

zeu .

Novo para mim,e ine spe rado , aqu e lle pequenino

epi sodio,fi que i-me a s c i sma r n a qu e lla saudação

orienta l a qu e lle d ialogo de duas aurora sTerminada a re sa vol tou e sentou—s e no fundo d o

bote,a calç a r os s apatos para i r a terraJoão — d i sse o a r r a e s para o fi l ho mai s ve l ho ,

l eva e s se comt ig o , e a mãe, que te dê o gabão .

Talvez se j a prec i so , la para a tarde — comple tou e l l e ,e,olhando pa ra mim : O senhor ha -de quere r o

s eu c afé,ma s te nha paci enc i a de e sperar um “ nadi

nha,porque o ra io do fogare iro apagou —se , e agora

vamos a cce n d el-o outra vez .

Esta fre squ inho . Vae uma golada,Lourenco

Isto não e'

nada , j á pa ssa : é a aragem da man hã. Obrigado

,patrão . Esta é de Paraty .

E"

de Paraty 'no Braz i l, mas aqui é para nós .

O senhor s empre e sta com a caninha na agua .

Lourenco — o Lourenço da Pinha — e ra então onos so barque i ro . Bulhão Pato , José C a l ache , Lope sCabra l

,D . D iogo Bote lho

,Emi l io Monteverde

,quasi

todo s o s cacadore s de Be l em,n ão queri am outro

para a s suas e x cu r so e s ao sul .Tr igue i ro , robusto , curado pe l a b risa aspera do

Te j o, apez a r dos c incoenta j á pass ados , faz ia. go s tovel-o e ncarar o mar e o vento

,governar o barco e

mandar a compa n ha .

E ninguem a t inha me lhor : e ram os s eus fi l hos .

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CACADAS P ORTUGUEZ AS

Quanta s veze s , durante a s nos sas trave ss ia s eu m e

su rpr ehe n d i a ob servar aqu e lle homem , aqu e lle s rapaze s — a lhe ios a tudo — fa l an do só na sua vi da

,sem

inve j as , e sem ambiçõe s ! Em terra o l a r aco n che

gado , al l i a bei ra d o I'

lO I,n o mar o s barcos — t inham

doi s — e a s rede s : n i sto se cifrava o seu pa ssado,o

seu pre sente e o seu futuro . Deus, o mar , e a fã

mil i a , e i s os ponto s ca r d e a e s d o mundo d aqu e lle s homens verd ade iramente s imple s — no bom sentido dapa l avra — e como hoj e só se encontram

,n aqu e lle

e stado de pureza , na gente d o mar e d o campo .

A qu elle s e spi ri tos , s inceros e crente s , eram virgen s de toda s as duvi da s , de todas a s negaçõe s domundo moderno

,e repre sentavam ao s meus olhos

o povo de outras e ras . Demoraram—se n a e strada dac ivi li sação , chegaram mai s tarde , e achavam- se n o

meio d uma soci edade , formada de e lementos parae l l e s de sconhec i dos .

Entre e ste s traba lhadore s i sol ados sc i sma d o r e s

forçados pe l a sua vida , ora embalados n o dorso da sondas

,ora sacudidos pe lo vento e n ão raro affr o n

tando a morte.

— e os operarios da s c idade s , sem educação moral

,e mui tas veze s pervertidos pe l as le i t u

r a s ,onde e l l e s pro curam o recre io e a i n s t r u ç ção , e

encontram o veneno d o s odios , das ambiçõe s vãs , eda s i llu sõe s de tanto v is ionario — hã um abvsmo

!

Um espir i to,cego e rebe l de , que i n fi u e a s ge raçõe s

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7o CAÇADAS P ORTUGUEZA S

a c t u a e s , orgu lhosas pe l a sc i e n c'

i a, e d e sm o r a li sad a s

pe l a po lít ica , e l he s dá o valor para i n sul tarem todasa s j e r ár ch ia s e div i ndades , e , como o A j ax ant i go ,a ffr o n t a r em o c éu , de punho cerrado , não pode morar n o pei to d e ste s homen s , porque , quando o ventol evanta o oceano , l he erri c a a s ondas , e o faz br amar como um le ão enf urec ido

,e l l e s sentem—s e pe

qu e n o s deante de tamanha grandeza ! .

Ouviu - s e o toque da s ineta n a ponte d o s vapore s .

Era a re al i dade do mundo exterior a de spertar-meoutra vez das m inh as meditaçõe s . Logo depoi s , n ocae s

,a vo z do João Lourenço , o s l ati dos d o s cãe s

e as saudaçõe s amiga s dos companhe i ros , que vinham ao nosso encontro .

A bri s a refre scara um pouco . Armou- s e a ve l aarrumou -s e a gente toda a uma banda , e o catraiod o Lourenco l argou e seguiu ve loz , arfando , e cortando a agua

,que a lj o fa r ava a prôa com a sua e s

puma i r i sad a e bri lhante .

Lourenço con seguira,fi na lmente , aquecer—nos o

café : bap t i z amo l-o com a l gumas g o t t a s d um cognaca lambr e ad o e fi n íss imo

,e brindámos a l egremente a o

i gnoto , ao futuro ! O”

mocidade !A pp r o x imavamo -nos do su l : a que l l a trave s s i a com

vento norte faz - se de pre s sa . A Trafari a j a'

rumore

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CA C XDA S

j ava : o s rapaze s e o s cãe s r e t o u ca x am na p í a ía .

Tambem lá e stava um amigo a nossa espe ra .

Emí l io Monteverde , rodeado de monte s de pe ixe svario s , dava as ul t imas ordens , como gene ra l eXpe r imentado , e nós fomos recebidos com todas a s honrasd o e s tylo e com uma saboros ís s ima ca l de i rada

,fe ita

a l l i,a o ar l ivre , e regada com um vinho branco ex

cepc io n a l. A melhor ca l de irada e o melhor vinhobranco de que he i con servado memoria .

I sto fo i ha muitos anuos . Que saudades d e ssetempo ! Lembram-me , ne ste momento , a qu e lle s sentidos versos da In t r o d u cção d o F a u st o , de G oe the ,que o Garre tt c i ta n as Vi a g en s n a m i n ha t e r r a :

R e su r g i s o u t r a ve z,vag a s fi g u r a s

Va c i l lan te s ima g e n s, qu e á tu rb adaV ista a cu díe i s d a n te s

Tr a z e is -m e a imag em d e d ito so s d ia s,

E d 'a h i se e rg u e mu ita s o mb r a am ada !

E lá,a o l onge

,perdidas n as b rumas d o e spaco

e d o tempo .. entreve j o agulha s de cypr e s t e s .

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Ufma partida demestres

ERDIZ feri da com o s pé s de sembaraçados , emterreno que a a j ude a de fender- se

,qua s i sem

pre d a agua pe l a barba a c ãe s e cacadore s .

E as vez e s e l l a n ca lã, e então o big o d e é completo !I sto é ve l ho , e todos temos casos d e s te s para co n

tar .

Agora faze r uma codorn iz o mesmo , te r a s m e s

mas hab i l i dades ! . é mai s raro .

Andando eu a caça r no Junca l,uma d e sta s se

n ho r a s deu,dean te de mim

,sota e az ao F a d i st a ,

ome lhor cão que eu conhec i para co do r n i z e s n a qu e lles i t io

,então um campo unico de exame e prova s

pub l i ca s para bon s narize s de perdigue iro s ! Poi s e raum me stre na arte de cobrar o ferido

,o que se chama

um ti ra - te imas,tanto n i s so como em as l evan tar .

Aponto o l ogar da s suas proezas , e quemo fr equ e n

tou,hã vinte a n n o s

,fara i dea da s ventas do animal .

e,sobretudo

,da sua pertinac i a no ataque !

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74 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

'

l zr a t e ima s é qu e e l l e se dev1a chamar , é o que

l he a ssen tava bem,porque d e fadista é que e l l e não

t i nha n ada ._ Com ,

e ffe i to n a da, n o, ,sen phys i ç o , ,lem

brav a o exterior d e s te typo ori gina l das n o s sa s c i

dade s . Parec ia mais um porco,do que um perdi

g u e i r o !

Pequeno e fe io - absolutamente fe io — rusti co,

gros se i ro,sem um atomo d e d i s t i n ccão . A pellag em

castanha escura , l onga , cre spa e hi rsuta , atarracadoe baixo de perna s ; a cab eça de um g o so z, os ol hospequeno s , sumidos e humil de s , a s ore lha s com a flex ibi li da d e d uma sol a

,e a cauda gros sa e curta

, com

um longo p in ce l de pello s na extremidade : e i s o i nvo lu c r o

'

e x t e r i o r ! Mais um caso do fe io de corpo , ebon ito de . nariz .

Genealogi a Não lh e e r a conheci da . Não havi a'

emtodo o re ino de Po rtugal e A l garve k en n el—bo o lc ari st o cr a t a , bu r g u e z o u v i l ão

,que lhe t ive s se regi strado

a ascendenc i a : e ra um e n g e i t a d o , um fi l ho das e rvas ..

Mas D'

A lembe r t tambem o fo i , e nem por i s so o filho de Madame de —Tencin de ixou de ser um grande .

sabio e fundador da Eu c r clop ed i af

. O nosso her o e , n ão podendo se r um grande sabio , re signou—s ecom a sua sorte

,e fo i um grande . cão de codor

n i z e s !

Vadio — tudo o que ha de mai s bohemio,faz ia e l l e

uma ou duas appa r i ç o e s po r d ia em ca sa de BulhãoPato , e a noite pedi a ho sp ita l i dade a D . D i ogo , queva i d o same n t e s e in t itul ava seu dono . Ahi , em ve s

pera de caçada,vigiavam—n —o cuidadosamente , para

que , a hora da partida , e l l e e stive s se pre sente a cha

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76 ç AçA n A s P ORTUGUEZA S

A scen a do costume ! d i ss e Bulhão Pato . F a

d ist a ! Vol ta aqu i !O cão ouviu , l evantou a cabe ça , olhou para n os

,

e . continuou n a su a faina .

Repeti ram—se as chamadas em todos os tons ag udos

,e e l l e aos pul os , z igzagu e ando furioso po r entre

as j o i n a s , não arredava pé de la ! Ja'

l adrava !A l gum o u r i ç o . l embrava um .

Uma cobra . diz i a outro .

— Tudo i s so pode se r , mas n ós nem o deixamosca, nem havemos de fi car aqui

,a e spera que l he

pas se a phanta sia — e diz en do i sto encaminhe i-mepara a s j o i n a s .

Não sal tava n ada,e o F a d i st a amarrava - s e

,des

amarrava— s e , rodeava e c ruzava as moita s , l adrando ,e at i ran do—se para c ima d e l l a s P arec i a doido !Eu pri nc ipi ava a e star muito i nt ri gado com aque l l a

scena,cu j o desen l ace me appa r e c i a um pouco nebu

loso,e j a fal ava tambem ao cão , e j á apo s t r ophava

o mys t e r i o so , o e squivo an imal , que tanto s e e sco nd i a !

O que e s tava a l l i,que s e fu rtava con stantemente ,

e q ue o cão , por veze s , pare ci a vêr ? Umas poucaso de ix

'

e i l á sos inho , a contas com aque l l a i n cog n i t a ,

e outras tantas,dados a l gun s pas sos , vol te i atraz ,

parti lhando j á d aqu e lla e spec i e de fa scinaç ão , quea e l l e o pr e n d i a a l l iFinalmente

,depoi s de mui tos ce rcos

,vol ta s , r e

viravo l ta s e sa l tos,o F a d ist a deu uma pa n cad a a o

c entro d'

um ma c i s so de j o i n a s , e sa iu de l a'

com umacodorn iz n a bôc a ! Tr iu mpha r a a sua pertin ac i a .

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(:A e ADA s P o a'

rc o vez i xs 7

A codorn iz , extenuada da lu c t a , agachou -s e,e

e l l e,que a viu

,abo co u -a .

Estava fe rida . d aza c la ro . Quem fôra ? Nen hu n s outros cacadore s

,al ém de n os

,andaram la

n aqu e lle dia , e n os de manhã , encontrando a l l i c aca ,

t ínhamos-l he ati rado .

Aque l l a codorniz, com que acabava de s e íllu s t r a r

mais uma ve z o nosso cão , e ra a l guma das quec humbámos , e que al l i s e con se rvou a e spera d aque l l e ma u zra zs qu a r t d

'

he u r e , que fo i o ul t imo capitulo da s sua s peregr inaçõe s .

O F a d i st a ganhara a parti da..

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Coelho por lebre

A J o se Au g u s t o C a lache

EBA IXO dos pé s se l evantam os coe lhos e , ásveze s

, ao mesmo tempo , os trabal hos . Estecaso _que vo u contar , não fo i , mas i a sendo

serio .

Era n umerosa n aquelle d ia — um domingo — a

' cohorte d o s caç adores , que nos aprazáramos para oJun cal . Muitos

,e de diver sas procedencia s — o que ,

' se é bom para a variedade , é mau para a ordem .

Não eram os meus companhe iro s habi t u ae s , comtudo

,como fos sem todos conhe c idos e bon s rapaze s ,

correu as m il marav i l ha s a ca ç ad a . Havi a muita scod o r n iZe sg —e todos e st avam contentes . Tive r amo s

bom ve n t o .

'

á . i da , e a tarde pare ci a amena para avol ta .

Um be l l o'

. d i a d e'

ca ç a , emfim ;

Explorado o J u n call fomo s subindo , e a chavamo

nos defronte das Cabanas da Costa , quando deantede nós se l evantou um an imal , que partiu a o s sa l

l t o s , po r entre o matto , mais r a r o'

n a qu elle s ít io

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(SACADAS PORTUGUEZA S'

Uma lebre l— gritou X,o m eu

companhe i ro"

da d i re ita .

— Uma'

lebr e ! repeti ram em toda a l inha .

— E'

um coe lho — di s s e e u ao ami go X. Não lh eat ire s — porque te ns de paga l-o .

E” l ebre — re spondeu e l l e,e avançou rap ida

men te , na d ire cção que e l l e l evara .

X era bachare l , e n ão desmentia a fama de quegosam os seus pa t ríc i o s : — e ra mui to te imoso , e levava muito tempo a desce r da burrinha — como secostuma diz e r . E como n aqu e lla o cca síão , não havi a ot empo nece s sario

,e l l e n ão desceu

,ati rou a lebr e , e

matou um coe lho !Um bicho enorme , e o que havi a d e mais manso !

Leg ít imo fi lho. da coe l he i ra , nasc ido e cre ado al l icom as couve s e as a l face s da horta .

Quando X vol tava com o i nnoc ente roedor suspen so da mão, acaric i an do-o com um ar guloso , masnão glorioso , di s s e—l he eu *

— Então para i s so foste tu a Coimbra formar—teem di re ito ! Para não re spe i tare s a proprie dade a lhe ia !At é a tua e sp ingarda e st a

' de bôca aberta ! Que ta la lebr e ?E'l l e — me t t i a d o . Que comprimento de nari z !

Santo D eu s ! P are c i a te r morto al guem .

Ca l l a- te,Zachari a s

,e stou deshonrado ! E então

dean te d e sta gente , qu e e u não conheço , e que mevae pôr pe l a s ruas da amargura ! . Não ten s ahiuma lebre , que me pas se s ?

— Para qu ê? Estas tonto ! Aqui de cada ve z . não

appa r e ce sen ão uma . Vamos andando . Mette o

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c x t zAuA s P OR'

I'

UGUEZAS 8 1

c oe lho na sac a , «e diz - s e—l he s que fo i l ebre . Den trod a

' rede poder a pa ssar .

Estava , porém , d e c i d id o'

qu e o inc idente não fi"cas

'

s e por al l i . D'

umas'

choças a nossa e s'querda,saiu

uma mt i lli e'

ra ç a, g

'

o r dan chu d a , e detraz d e l l a , a po uc o s passos,

'

d o i s homen s , n ovo s , . reforçados , t r ig u e iros e bar bad o sª, d irig indo- se todo s ' para 'nos . Emfrente e do l ado da s Ca ba n a s, como

'

e r a domingo,

havi a tambem e spectadore s encostados as sebe s .

A matron a e r a a dona do coelho . O rosto coler ico , e o ar a s so

'mado .

Então“ os “senhore s ve '

e n'

f aqui ma ta r a «—cr e acão

d a voci fe'

ro u '

ella '

n'

um fa l set e, qu e não c

'orre spondia a o

'

ag i ga n t ad o d a e statura .

Su rpr ehe n dído co.m'

o coe lho n a mão , X travouu m

'

dialo'go' an imad íss imo com '

a ve l ha matrona , quen a o me

'

par e ceu lo'

g oªd e fac il composição . Naqu

'

e lle

pl e ito o r eu corr i a o ri s co de não sa lvar a s sua s prosap ia s

'

d e ca ç a dor . F ôr a apanhado em fi a g r a n'

t e .

— i al cr e a ç a o , t i a s i n hã? r ep l i cou e l l e ..

O meu co elho ,"í

e

'

si

se qu e o sen hor t em ahi n amão — di s s e e l l a com o gesto a ccu sad o r

'

e a vo z i rada .

Coe l ho ! A uma lebre é que e u ati re i .Ora ve j am observou um dos do povo ati

rou a ' uma l ebre,e matou um coel ho !

X i n s i s t ia em qu e er a- l ebre . A parte queixosa co r .

t r a d i tava , ace rrima ,'

que e ra

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82 ç A ç A n A s P ORTUGUEZA S

Finalmente o doutor , forçado n o s ul t imos - entr inche i r ame n t o s , dec l arou te rm in antemente qu e n ão t in ha obrigação d e d i stingu ir l ebre s d e coe lhos d a qu e lletamanho , a quarenta metros d e di stan c iaA s e s sao pr o t r ahia -se , e po d ia , d

'um instante parao outro , tornar- se tumul tuosa .

Um confl icto a l l i s e r ía caso grav í s s imo . Eramosmu itos — ta*lvez d ez — e todos armados com e spi n ga r

da s d e do is canos , de carregar pe la cul atra . Comoeu to dos ti nham a m i;nha pa rte

, co sramava levar .

setenta cartuchos , a lgun s emba lados : Abat idos o s

qu e d i sparara , a inda me re stari am c in coen ta , E a

maior —parte dos f rú êu s companheiros'

n ão 'eifam li o

mens d e vol tar : a s costas . Mas tinhamos o r i o n a

re taguarda e haviamos d e embarcar deante do inimigo , e pe lo fi anco e sque rdo ter íamos contra n ós agente da Trafari a . Era um de sastre ce rto , e ,

n ão

poder íamos vol tar lá ma i s . Uma sen sabori a enorme .

Naquella s ituação uma pa lavra imprudente podiaprecip ita r o s aconte cimentos . X mant ive ra-se at éa l l i te imoso , mas correcto . Um dos outros é qu eprinc ipiou a a l te rcar com os homen s , e como as pal avr'a s — «diz o povo são como as cere j a s

,o dia logo

j á se i a azedando .

Era tempo d e i n t ervir na pendencia. Corn o, eu se i,

"

e nunca “

me e squeço , qu e e ste s casos , quando se

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CAÇADAS P ORTUGUEZAS

Nesta a l tu ra do d ial ogo ti n ham-se aprox imado d emim

"uns pequenos, e um "d e l l e s d iz iaEl l e anda va por ah i fug ido

,ha mai s d e quinze

E verdade , s egundou o_ço u t r o ê e tambem ha

ma is d e vi nte. El l a “nem —j á sabi a d e l l e . Eu não lhedava n em uma de X.

'

Ch'amava-lhe um -fi go, 6 Z é .

A gora , sr .ª'Ma r g a r i d a , como n ós . n ão havemos

de fi ca r aqu i parados continue i e u , qu e não pe rder

'

a as palavras“ dos r apaz i t o s , vamos a fa l ar s erio

quer o coe lho o u dinhei ro ?— Ora e ss a ! Leve V . S .

ª o coe lho — e qu e lhe

faca muito bom prove ito .

Os pequenos continuavam os seus apartes .

º

— O t i a Margar ida , você'

?fez negocio . Tinha j áperdido o an imal , e agora compram—lh o !

De ixa-me re smungou e l l a sa cu d i d ame n t e .

Qua n to val e o bÍCho ? ,d ig a l á ;O que

,

o'

senhor "q'

i i íz e r dar .

:

Não me s erve e s sa '

r e spo s t a . D i ga quan to quer .- Nada , n ão , s e nhor : O que .V . S.

ª di s ser e stábem dito .

Então fi ca b em pago por doz e vi n t en s ?

Sim , s e n hor . Muito obrigada;Depoi s

,de l_h'

os da r , ai n da ín s i s t i para que e l l a fic as se com o coe lho . Era gra n de gen e rosi dade danos sa parte , mas , ao mesmo temp o , e r a boa pol it i c a .

A t i a Margari da re cus'

Oi i —se , porém , a acceít al-o .

Os olhos de t o d a'

a qu e lla ge n t e“

, há pouco“

ameaca d o r e s ,

"s eguiam a gora,s ere n os como os de “ s imple s

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CAÇADAS r omDOUEZAS 85

e spectadore s,a s n egoc iaçõe s . Quem sabe se a l gu ns

já l he inve j ari am o dinhe iro , que e l l a acabava demette r n a a lgibe i ra .

A human idade é ass im . A nota mora l d a qu e lla

scen a ti nham—n - a dado o s aparte s d o s rapaz inhos .

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Em V a l d e Z e b r o

ESSA no ite — a d e 28 d e novembro de i 86 .

u e noite , e qu e fr io ! — nenhum d e n os fa ltou ao praso dado

,que e r a a meia-l aran j a do

Terre iro do PacoR ecebe r amo s o santo e a senha de Lope s Cabralo chefe d a expedição — e al l i nos achamos todos ,

às tre s hora s da manhã , com armas cãe s e bagagen s .

Eramos muito s , e tantos que o Lourenco — o n o sso

barq u e iro , qu e o l e i tor j á conhece .

— trouxe ra doi sbp t e s ca t r aío s magnifi cos , costumados com e l l e a a f

fr o n t a r o _ma i' da barra .

Feita a chamada pre sente s todos os bote s atracaram ao cae s

, e procedemos ao embarque com as

caute l as '

.qu e exigiam o escorregadio do l agedo, asbotas ªpreg

'

ad aªsç ro s

'

cãe 's se n ºs em

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88x x ?

ba r acavam er

o r a'

t raª'

zíiª, fi a s'êãva ba rcos

A n õ i te e s t áva e ra com “b Aª'

co rfiªp a r a'

êão

t em a côr loca l, e e ve r e i ra : quasi que n ão . n o s

vi amos un s ao s outros !Arrumada s a s bagagen s e os c ãe s , e di s tribu i

dos os l ogare s , armaram-s e as ve l a s , e l argámos ,aproando ao su l . Pouco a n tpS

.de nós parti rmos t inham caído uns l ige iros bo r r i fo sªi ma s o ceu l impara ,e só v i amos

,na ampl i dão imme n síã, as e stre l l a s sc i n

ti l l ar v iv í s s ima sUm de unos

,n

'otando o extraordin ario b ri lho d a sco n s t ella cõe s , d i s

'

se

-Lavaram a cara com a agua da chuva .

O dito fo i fe ste j ado e pôz -nos l ogo de bom__hu

_

rp o r' E a'

apre s en tacão'

do'

s intere s sante s caçadore s ?

A h i'

Va e L

Bulhão Pato .

. Jose Jac i ntho Lope s Ca bra l de Mede iros '

,d e

Vil l a Franca do Campo —.umme stre n a ar te d a cag a ,

perfeito em toda —a espe cie de t iro , e m'

ilag r o so . i i o .

das n a r ce j a s .

Il s ig n o r e Co sselli , marido dap r ima -d o n n a Ca r

lo t a'Mar c-bi s io , grande amador .

_de pi ntura e , ,d e , ca :cadas cavalhei ro mag r o , , palli d o , phys io n omia

dís t i n ct a,e l egantemente ve sti do . .

Mandava a de l i cadez a qu e e st e fos s e o prime i roapre sentado , vi sto s e r extrange iro — por

'

i s so p e ç ode sculpa da minha fa l ta .

Dr . José d A vellar — medico pe l a e scol a d e Lisboa — ín t ellíg e n c i a e fi gura e levadas , e um dos mai s

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CAÇADAS r o a'

r u cvem s 89

formosos typos de homem,olhos pre to s , rosto ova l

e moreno, emmo ld u r a d o por uma be l l a barba preta

a s se t i n a d a , qu e dava .a sua phys io n om i a um aspec t o or i enta l , s eren o e mag e s t o so , como o d

'

um fi lh odo P r ophe t a .

Carlos e Jayme Br amão — e ste al to , forte e sym

pa thico moço e agradabi l í s s imo companhe i ro , ,

e o

outro , Carlos , . baixo , r e forçado , rosto franco e a l e

g r e , mui_to e stimado e'

d i s t i n ct o no mundo mus ica l .Este s t re s

,no segundo bote , são o João Louren ço ,

0 Eusebio , um exce l l en te homem e uma boa e sp ingarda

, e o

J oaqu im Tavare s , da'

J u n qu e i r a , todo s j ánossos conhec idos .

,

Re sto eu — e a l não digo ;

Q u a n d o cheg ámo s atme i o ri o a c orrente da maré

vasau re. e r amapi d a a _ n qg t ad a , se qç a e ri j a , bo java a sve l a s , : e .met t ia r n o s

,a bord a n a a g u a .

, A n o i t e , ,ape sa r

do e scuro da lu a , não pod ia ser mai s bella, n aquellae sta

'

ção , ma s o frio tambem não podi a s e r maiorpen e trava nos at é aos os sos !

Vamo s ao .café , rapaze s ? di s se Cabra l .Lourenço

,Sse t

' á possivel faze r; l ume ?

Vamos a ve r , meu sen hor .E Lo urenco d e se n ca n t o o u da cas i nha do ca o com

pasmo nosso um fogare iro, e ca rvão , e ca r qu e j a , e

uma cafete i ra chei a d e café , e ch ícara s , e tudo

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90 CAÇADAS PORTUGUEZAS

Um= esplendor ! Lopes Cabr alh ão . se e squece ra d ecoisa alguma , segundo o

*

se u costume .

Mas t e'

r'a pre ci so con tar com o ma r : uma vol ta dobarco voltou tambem o fogarei ro , qu e se partiu !

Mgldíçãõ ! clamgímo s nós , como um côr o d e

t raged ia ant iga .

A provi den c ia , porém , ve l ava ainda sobre n ós . O .

p r i n cipe'ma n d a r a comprar doi s fog arei ros , e a oper ação pr o se g u iu , a de spe ito da s i ras

"do Te j o !

Dentro do catra io o nos so aspecto e r a immen sa

men te p ittore sco , quando a s l abaredas da carque j alan çaram sobre n ós os seus c l aroe s , ve rme lhos e int erm i t t e n t e s .

norte. a : u n s dera ton s vi o lace o s , a .outros au

gmen t a r a a nat iva pa lli d ez . Os gabõe s, as manta s l i st r ad a s e os v i stosos co br e jõe s , var i avam d e a spectocom os '

effe i t o s da luz , vaga e in ce r t a r —A s —cabeça sd o s cães , friorentos , su r g iam

'

aqu i e a l l i , t entandoappr o x imar

-se do lume bemfa z e j o , e nós com os ded o s e ntorpec idos pr o cu r avamo s

,nas vasta s a l gibei ras

dos nossos casacos d e caça , a c i g a r r eír a amiga .

O Te jo , n aqu ella s paragen s e em noite s e scuras ,toma umas proporçõe s grandiosa s e imponente sparece um mar ! Os olhos , c i r cumvag a n d o , não eu

c o n tr avam senão a s luze s da illum i n ação d e Li sboa

qu e s e r efi e ct iam n a agua em l ongas fi tas tremula s-o » r esto e ram t r evas .

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02 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

l adainhas . pi care scas , q u e nos faz i am est a l ar d eris o !F i na lmente s urgiu o c afé ,fumegante n as mãos doLouren ço

,que tomara aos n o s sos o lhos proporções

épica s , e “mag i ca s , de sd e que sa í ra vi ct o r i o so d a s u alue t a com as onda s r evôlt a s do ve lho r i o , apparecendo-nos co m aqu elle l íquido maravi lhoso , qu e va

l i a para nós , n aqu e lla s a l turas , —ma i s dº , qu e t odosos eli x i r es d e lo n g a . vid a dos ve lhos _

alch im i s t a s !

E rompeu um côr o d e .,a cclama ç o es —

_

tr,emul a s

de frio mas a r d e n t e s ,f. eri thu s ia s t ica,s .e convencidas— um côr o em vo z baixa i como a gen t e as vez e s

os : ouve « em S . C arlos , , sem ..a attenuante das tre shoras da madrugada , no meio do Te j o !E , porque o café e r a sup erior — Mok a l egi t imo .

Lope s —Cabra l , pr imo r o so n e s t a s co i sa s , achou umcafé soberbo d i g n o , d um pa chá d e tre s caudasphrase que na .bôca o cumulo dofausto e da r iqueza !Sobre o café appa r eceu um Vi eu x Cog na c

]fu e Champ a g n e conhec ido dos frequentadore s doantigo Ho t el. d

Í

Eu r op e, , e qu e t inha e n ca n ec i do , nalon ga ociosi da de de muitos a n n o s . O

, , Co g n a c daboa 'madame Radegonde !

Iamo-nos cheg ando a .te rra .

,En t r á izamo s no e ste iro

d e 'Valf d e Zebro .

Quantas horas são ? perguntou José d A vella r .

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CACADAS P ORTUGUEZAS

Esta a romper o d ia — re sponde u um dos bar

q ue iros .

A i nda n ão — repl i cou outro .

Estavamos a accend'

e r um pho spho r o para ve r

«

quanta s hora s e ram ,quando

,de repente ªe sobre a s

n ossa s cabe ça s , uma pequena nuvem branca princ ipío u a t ingi r—s e com a mai s be l l a côr de la ran j a , quev i em v ida m inha ! Um des lumbramento !F icámos todos e x t a t i co s a olha r para e l l a , e Cos

.se l l i , qu e e ra arti sta,correu a prôa , agarrou—se ab

mastro , e al l i e s teve pre so d aqu elle formos í s s imoe spect acu lo , em quanto ell e durou .

-Bello ! b'

e'

llo l r epe t ia e l l e , extas i ado .

Era be l l o'

e e r a s i ngul ar ! Toda a a thmo sphe r a

ainda em treva s , e só a quell a n uvem com o d e slumbrante

"

color ido , forte'no centro e e sbat ido 'suave

rri e n t e'

nas Orl a s — refle'

ctindo -Se m a i s fraco n a aguadormen te ! '

Que deli c ioso e arrebatador quadro,se

fos se poss ive l r epr o d u z i l- o , como a l l i o v íamosVol tamos lá muita s veze s

,mas n unca mai s as s i s

t imos a uma alvorada como aque l l a ! F o i decerto ume spectacu lo seme lhan t eªqu e i n sp i rou a poes i a d ave lha Grecia , quando e l l a creo-u

a radios a fi gura da”

Aurora , abrindo , com o s'

d edo s rosado'

s ,'

as p ortasdoi rada s do o ri e nte ! ”

—A t teh cã'

o — di s s e Cabra l em voz baixa . Olhemah i — e apontou com ' a e spingarda para a nos sa

Bai xando os ol hos n a d irecção i ndicada , e afi i r

mando-n o s,vimos

,sobre a ag u a

'

t r a n qu i lla e ai ndan o e scuro , uma la rga man cha , mais e spe ssa e carre

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94 CAÇADAS PORTUGUEZASgada , e , continuando a olhar , lo br igámo s dois vul tose levando—se sobre a mancha .

Uma enorme bandada d e » patos . Os do is vul tose ram as se n t i n e lla s .

Estavamos sobre e l l e s . Romp ia a manhã .

_ C i a a“

r ei ! — mandou o Lourenco . E d e vag ar . »

Os ca t r a i o s re cuaram . Estando mui to chegadosaos patos , o chumbo emba lado “ pouco destroçofari a ne l l e s .

*A um signa l de Lope s'

Cab r a l fi zemos fogo . Os

pato s ' l evan taram,mas n o

'

a r ainda os a l cançou a se,

gunda de scarga , e d uma e: outra fi caram mu i tos n a

agua , mortos un s , outros fe ridos , e force j an do po rse e scapar .

Este s egundo acto o d e re colhe r a caç a e stro

pe ad a é muito“

mai s an imado do qu e o pr ime iroo s barcos se guem—n -a , e os cãe s , sa l tando a agu a ,travam com os pa lm ípede s uma lu c t a d e ve loc idadec om pe r ípe c i a s , qu e a tornam d r ama t ica . Os marrecos defendem a vida . E então

,se a s margens e stão

proximas , e te em j uncos,onde e l l e s se ' furtem aos .

c ãe s,, ou e ste s ca n cem e desa i i imem , a lgun s man cos .

por lá ficam , pa ra con tarem aos outros da bata lha .

Levavamo s bon s cãe s para a caça d'agua , e por

isso foram poucos os qu e con segui ram l ivrar-se d ocapt i

'

Ve i r o . e do e speto .

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CAÇAI 'AS P ORTUGUEZAS

Sa l tamos em t e rra e d ah i a pouco e stavamos a lmo ç a n d o numa ca smha de Val de Zebro

,muito

a ce i ada e ri sonha , cu j a porta , orl ada de trepade i ra s ,com a sua folhagem verde e as flo r i t a s verm e lhas

, .

contra stava a legremente com a ar idez da pa i z ag em .

A lmoço que l eváramos , é c la ro , ma s a qu e o loca l forne ceu

'

um contingen te de ,pr ime ira ordem

as ostras .

Ostra s,do Mont i jo , que n ós al l i encontrámos fre s

qUISSlm&5,' e qu e foram acompanhada s pe lo sequi to

a qu e t inham l egit imo d ire i to — um a lambr e ad o Bu

ce l la s — o Buce l l a s da quinta da s Romeiras — domarquez d e Ca ste l l o Me lhor !Boa caçada

,boas ostras , bons vinho s e melhor

conve rsa , ia j a' o sol bem a l to , quando algu em pe r

g u n t o u , se iriamos exe cutar o segundo numero donos so programma .

— A s n a r ce j a s ? di s se o Cabral .— 1 1 est u n p eu t a r d p o u r les be

'

ca ss i n es — o bse r

vou Co s selli .Tambem achamos . E

º

tarde, e o so lestá qu en te

d i s seram todos.

E fi caram 'a s n a r ce j a s para outro di a .

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Uma caçada pr incipesca

A o d r . Ma n u e l Be n t o d e Sou sa

sr o , as veze s é sugge st ivo diz i a-me , ha dias ,um amigo

,a quem e stava mostrando as minhas

co lle ccõe s de gravuras .

Tinha raz ão o meu amigo . Uma d e s sa s gravura st i rada da Cha sse i llu st r e

'

e de 1 867— e que e sta

d e ante de m im ,traz -me viva a l embrança , com to

d o s os seus epi sodios , uma das me lhore s cacada s

q u e fi z emos , e que todavi a , por um aca so , é que não set ran sformou em tragedia para todos os que ne l l a t iveram parte !Um desenho de Riou

,apenas regu l ar . Não é pe lo

s eu m ere cimento , que eu s into prazer em a ver ,n ão , não é por i s so ; é porque , s endo uma pura phant a si a do arti sta francez , os quatro cacadore s , quen e l l a fi guram

,são quas i retrato s d e todos nós o s

co mpanhe i ro s e amigos que , um d ia , fomos , com

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CAÇADAS PORTUGUEZASoutros

,at i rar a

'

s n a r ce j a s , nos a r r o z a e s de Va l de Zebr o .

Este a qu i , no prime iro p l ano , é Bulhão Pato , v i s tode costa s . Todo in te i ro como se costuma dizerum pr o díg io de sem e lhança ! A sua fi gura , os seuscabe l lo s l ongos , appa r e c e n d o deba ixo d um chapéude fe l tro , de abas l arga s , exactamente como o quee l l e traz i a , a sua tun i ca de belbu t i n a fr a n ce z a , e a s

sua s bota s a l ta s . At tentando ne l l e parec e qu e d aparte do art i sta houve a i n tenção de o retrata r

,como .

s e o conhece s se !A qu e lle mai s affa s t a d o

,a e squerda do i l l u str e .

poeta,e mai s a l to e encorpado

,com a barba toda ,

da-me o contorno , o—perfi l athl e ti co de Lo peS

'

Ca

bra l . Perna l to e br a c i lo n go , e s t á parado , pr omp t oa fuzi l ar a s n a r ce j a s , e a dob rar o s ti ros, como s e

at i ras se a co d o r n i z e s ! Estou a ve l- o com o seu j a

qu e tão feu i lle-mo r t e, o chapeu.

de pal ha , veteranode cem campanhas

,e a s a l ta s bota s fr a n ce z a s , for

rada s de gutta-percha, com que e l l e s e sent i a capaz .

de a fi'

r o n t a r todos os l ame iros,e as propria s tor

rente s do d i luv io !A l ém , ma i s l on ge , e stá um com a cabeca mu ito .

de e sco r ç o,mas que tem a corporatura do me u

amigo J avm e Br amão , e , fi na lmente , o ul t imo , oquarto , que vae atrave ssando o campo , ao fundo ,vol tando— se para o s companhei ros

,parece - s e com o

que eu era então,aos tri nta a n n o s .

Ao pé de Bulhão Pato, a e squerda , aqu elle ele

gante p o i n t e r branco , malhado , é a minha cad e l'la

a J o i a nome com que e u, pr o phe t icame n t e , a ba

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I00 CAÇADAS PORTUGUEZA S

d r o s do Te j o , que vam dar a Val de Zebro . A um

e outro l ado as margen s , lódace n t a s , cobertas d umar elva z i n ha verde-escura , en cobrem , sob e s sa apparenc i a innocente

,um perigo , as veze s morta l , para

o s que se arri scam a pôr -l he o pé . Um abysmo d e

l ama,um sorvedoiro , d onde é quas i imposs ive l ar

r ançar-se,sem aux í l io extranho

,quem t ive r a i n fe

li c i d a d e de n e l l e cai r !Ia romper a manhã

,quando entramos no e ste iro :

C o n t avamo s encon trar patos , e não nos enganámoslá e stavam . A meio c aminho uma mancha e scurad onde se de stacavam duas s e n t i n ella s

,d e c abeça

e rguida,de olho a mira

,fez -nos engat i l har

,s i l en

c io sa e rapidamente , a s e spingardas , ape sar do frio .

que nos i n t e i r i cava os dedos . Ao me smo tempo so

p e avamo s com o gesto o João Lourenço,que

,pas

s ando para a pr ôa do nosso catra io , se preparavapara l he s dar a saudação matin a l .Neste momento todos con tínhamos a s re spi ra

cõe s , encurtavam-se as remadas,para evi tar quanto

pos s íve l o r u íd o , e ava n cavamo s , l entamente , sobrea mancha

,immo ve l na superfi c ie da agua . De re

pen teio João m e t t e u a arma a cara .

O João,n ão ati re . Por Deu s, não ati re . A i nda

e s tão longe .

El l e — um vete rano e squecendo-se d e que apruden ci a tambem é nece s sari a aos cacadore s

,ava

l iando mal a di stanc i a,e não podendo re s ist i r ao de

se j o de se r o prime iro a e s t r e ia r -s e,ati rou . O chumbo

d e u na agua doi s ou tre s metros para c á,e a ban

dada l evantou o vôo,di spersan do-se i ntac ta n o ar !

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CA CAD .

-XS P ORTUGUEZA S 1 0 1

Uma de scarga gera l,mas pre cip itada , t i rou -l h e

muita penna,mas não ca iu nem : um ! Tinham a

pel l e ri j a,e guardaram a carn e para outro s caca

dore s .

E para mai s ca sti go nosso,logo adean te l evan

tou -se outra,maior a i nda

,que al l i e stava encoberta

po r uma curva do terreno , e que nos achou j á comas armas de scarregada s ! Naqu ella madrugada o s

patos fomos nós !A fa l ta de prudenc ia recorremos a re s i gnaç ão ,

ape llamo s para Santo Huberto e para a s n a r ce j a s ,e seguimos avante .

Os palm ípede s líbr avam - se nas a l tura s , a cemm e tros

,e pareci am-nos os seu s bando s r ede s trian

g u la r e s d e cruz inha s,de sdobradas no e spaco , e

l evadas pe lo Vento .

Um extravi ado ! — gritou um dos nos sos com

pa n he i r o s , que i a numa das chata s , que o Manue lda Charneca t inha al l í a nossa di sposi ç ão .

Lopes Cabra l,que di ri gi a a c açada

,faz i a as coi s a s'

em -grande,e mandara vi r quatro canoas , sem qui lha ,

para andarmos mai s l ivremente n aqu ella s aguas depouco fundo .

Era um pato , que vinha de pei to para nós . Ou

v iu - se um ti ro , e e l l e vo lt e o u de c abeca , e ca iu numa

da s margen s lodosa s . Ir l á bu scal- o , era arr is cado .

A in da as s im um dos barque i ro s,mo ç o e l eve

,atre

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1 02 CACADAS P ORTUGUEZAS

veu -se a sa l tar , mas , a pouco trecho , e stava empegado até a barriga , e

i r a va n te n ão se a tr eve

Os cãe s do Cabra l ! . d i s se o que t inha atir ado

,e n ão queri a perder a preza .

A l gun s prote staram ; eu fu i um d e l l e s . Não val iaa pena arri scar um an imal d aqu elle s por causa d

'umpato

,porque , s e o cão não pode s se l ivrar—s e do

l odo,n i nguem o i a l á bus car . Cabra l

,s empre ama

v el para os seus companhe iros ,—

a de spe i to do per i go , mandou sal tar a agua o seu P r omp t o .

O P r omp t o obedeceu e a t irou-se l ogo ao charco .

Era um animal j a ve lho , e n ca n e ci d o no servico— cobrar o feri do n a caca d

'

agua fôra sempre asua e specia l i dade — e n i sto e r a d e primeira ordem .

O an imo tinha—o o me smo , as forcas é que lhe e s

ca s se avam ,e quando o vimos . d e sappa r e ce r numa

dobra do terreno , fi c ámos todo s com os Ol hos fi xosn aqu e lle ponto , com a respi ração suspen sa , como see st iv e s s e a l l i correndo perigo a v ida d um ho

D ecorreram uns i nstante s,que nos pare

c eram horas , até que , fi nalmente , v imos surgi r acab eca do bravo an imal

,muito affr o n t ad o , com o

pato n a bôca , parando a cada pas so , e fazendo

g rande s e sforços para se desencravar do lodo , em

q u e s e enterrava .

— Bravo ! Bravo ! P r omp t o ! g rít ámo s todos a umt empo .

Foi uma fe sta . Não o abraçamos , porque v inha

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CACADAS P ORTUGUEZA S

Ni sto um gri to,uma exclamação .

Outro pato !O m a r r equ i n ho passou ao al c ance do Bulhão ,

e l l e fel-o descer com um t i ro de r e i , a l to , ma g n í

fi co .

Agora somos doi s — di s se o poeta , mettendo-ona saca , mas e ste é mudo e não faz versos .

O sol ía subindo : eram hora s de almoçar .

O nosso p avi l hão de caça , n aqu elle s s i t ios , e r a a

casa da s r .

ªLuz ia .

Entre os conviva s havi a medi cos,lít t e r a t o s , e arti s

ta s,e entre e ste s Co sselli .

Ninguem fal tou ao emp r a sam e n t o , e ã-hora marcada todos se achavam re unidos na povoação, emfrente da mode s ta ven d a

,ao ar l ivre , a sombra d um

ve lho pal aci o em ru ínas, d onde a s se z o e s impla ca

ve i s t inham afugentado para sempre os nobre s hãb i t ad o r e s .

Es tavamos nós contempl ando uns a n ima e s hera ldi cos — uns ursos muito fe io s —

qu e s e ameaçavamatravez d um br a zão , qu e pr o cu r a vamo s dec i frar ,quando nos appa r e ceu o Manue l da Charne ca — ç a

cador da Amora — acompanhado d outro , para n ós

de sconheci do , e que nos chamou desde logo a mt en ção .

Era um homem de tri nta a n n o s fe itos ; robu sto ,,

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c x c x n x s P ORTUGUs s 1 05

trigue i ro , côr de aze i tona , nari z aqui l ino , cabel l o ebarba pre ta e revol ta

,olhos e scuros

,muito re don

d o s , com a pu p i lla'

a de scoberto o lhos d'

a n ím a l

de rapina . Tra j ava j a l eco e c a lç a s de saragoça , comapplica cõe s de panno d outra s côr e s . P hys io n om ia

e t ra j o n ao e ram d a qu e lle s s i tios . Pareceu-me l ogoum cigano . Era - o e ffe c t ivame n t e , e l egitimo .

Manue l Candido,i nte rrogado po r Lope s Cabra l

sobre a i denti dade do s eu companhei ro,affi a n co u -o .

E ' meu compadre,e andamos a caçar j untos

ha quinze d i a s . Não ha de have r novidade , s r . Ça

bral . Fico po r e l l e : e ste j a o s enhor d e sca n cad o .

Cabra l,como todos os homens prudente s e pra

t i cos , não gostava de andar n a companhi a de individuos , cu j o s h abi t o s e prendas e l l e des conheci a .

Poi s bem,s e j a a ss im

,mas tenha- o voc ê l á

com s i g o , porque nós c á n ão o conhecemos .

E caminhando para n os , di s se—n o s , com uma certavi sa g em e um me n e i a r de cabeça , que e lle tinhaquando a s coi sa s não l he corri am bem :

- Bast a de he r a ld i ca e de c iganos ! Vamos ao a lmoço .

O oiro e'

magico — com dinhe iro faz - se tudo . O

p r i n czp e tran sformara a casita pobre e humi l de , eimprov i sara a l l i uma sal a de j antar

,como as do s

me lhore s hote i s da cap i tal !O que vimos , ad entrar , não era a fumegante as

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i o õ CA çA o A s P ORTUGUEZAS

s orda ru sti ca,n em o baca l hau

,pratos apre ciados

p e los e st oma go s qu e trabal ham em s ete d iamante s,

como diz i a o nos so chorado e ch i s t o so vi sco nde d eBe n a lca n fo r —

qu a n dó são a companhados com v inhomouro

,t i rado de sobre a mãe a nossa vi sta

,e be

b ido em a l tos e l argos copos de fi gura — n a phrasepi ttore sca dos amadore s , não , não era e s se o e spec t acu lo qu e s e n o s defrontava . A

l

s duas m e sa s reun idas — nós e ramos muito s — cobri a -as a lv í s sima elu xuosa t o alha

,

'

d e e l egante s e fi nos desenhos ; a baix ella e r a i n g le z a fi ore s ao centro . Não fal tava nada— n em os chr i s t o fi e s , nem os c r i s t a e s desdizi am dore sto e emqu a n t o a man j are s ostras , mortade l l ad e Milão , fi ambre s , sa l ame , peixe ,

a s sados,paste i s ,

torrão d A li ca n t e , emfi m os mai s aprimorados produ ctos da co s i n ha do Ho t el d u r op e e dos fornosdo Balt r e squ i ! E Borden s , e Buce l l a s , e Champagne .

Um fe st im do Café Ri c/ze ou do C/í'n g la i s , n um ca

se br e d e Coina !

O)

t emp o r a l O”

cacada s !De screve r uma d estas agape s rui dosa's

,ho j e , a

d i stan ci a de tantos a n n o s e empres a imposs ive l .D i s se - l he s que era sup erior o ele n cho d esta companhia . F i guravam ne l l a a rti sta s d e p r imo ca r t ello , e ,

para a tornar de primei ra ordem bastava-lhe a presen ca de "Bulhão P a t o

í

e stre l l a então n a forca davi da e na compl eta e fflo r e sce n c i a do s eu bri lhante esp iri to

,do s eu formoso ta l en to

,o poeta , d e quem

outro — Casti lho me d iz ia,por e sse tempo

, qu e dev ia andar sempre acompanhado d um s t e n o g r apho ,

qu e nos con se rva s se os e loquen te s e des lumbrante s

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'

I08 CACADAS PORTUGUEZASa l guem se referiu a uma rece ita i n fallive l, para a s

caçar,a pé enxuto ! Uns servi dore s

,l eve s e sem rheu

ma t i smo s,nem receio de os vi rem a ter

,entram n o s

chabo u co s , e fazem n as l evantar . Os amadore s hyd r ophobo s

— n ão confundir com d am n a d o s — e speram-n a s , o ccu lt o s , e armados bín o c u lo s

,

v êem- n -a s poi sar , a l l í perto, a oi to ou d e z metros ,e fuz i l am—n -as , no chão , sem mi se ri cord i a ! Uma caç ad a i deal ! Era nova em fo lha : v inha na Cha sse

i llu st r e'

e . Bem diz i a o outro , que tudo se encontranos l ivros !F o i a cclamad o com calorosas gargalhada s o e n

g e n ho so e a n o n ymo i nventor d e ste novo me tho do

venatorio . Quando e l l a s se r e n a r am ,

!

J o sé d Ave llar

— o medi co que ha pouco fal l e cen — e que s e conse r va r a tri ste e me r e n co r io no meio da gera l alegria

,l evantou-se , e apontando para a s sua s a l tas

e e l egante s bota s tambem novas em fo lhadi s se :

— Poi s , meus amigos , eu , pe l a minha parte , n aoprec i so d e reco rre r a e s s a i nvenção , n ão careco dobi n o cu lo : subs ti tuo-o , e com vantagem ,

pe l a s obrasdo meu sapate iro . Esta s botas

, qu e ho j e ca l ce i p e l aprimei ra ve z . s ão a dm i r ave i s : a s outra s botas sãopara andar , e stas s ervem para e star parado , exactamente como os tae s caçadore s ! Agora

,emqu a n t o a

a l cance, n ão s ão d e s ete l eguas , dei tam muito maisl onge ! Não

'

são bota s,s ão doi s te l e

'

scopios ! Comel l a s não me e scapa n em uma n a r ce j a gal l e ga , d a sma i s pequenas !

Não percebo bem . ob se rvou um .

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c a r./u ms r o a r u o u ez A s 1 09

— E' porque e u com e l l a s ve jo tu do . Se até ve j o

a s e stre l l a s ! Ca l ce -a s' voc ê,e ve r á !

A vo z de Jos é d A vella r e ra d o r i d a , mas as gar

g a lhadas re tumbaram , e s t r u g i r am , po r toda a ca s a .

Cabra l,que se l evantara para dar as suas orden s

para o regre s so da expedi ção appa r e ce u entre po rt as , j á armado , e com tom imperat ivo

,apo n t a n

d o -nos para o campo , di sseMessi eu r s, ces d ames n o u s a t t e n d en t . i

'

l/Ia r cho n s !

O dia e stava e sple n d id o . Atrave s sámos os tabol ei ros dos a r r o z a e s e d ir igimo-n o s ao p inha l : eraquasi certo encontrarmos al l í a s g alli n ho la s .

E , bom varia r d e caca , e depoi s t inhamos cãe sd e primei ra ordem , esp a d a s para tudo . E com assympa th i ca s bi cu d a s l evantar-s e - i am tambem n a r ce

j as,que segu ndo o costume , se teri am la re fugiado ,

e spantadas pe l a nos sa fuzi l ar i a . Para completar at r indade impluma d a tambem uma que outra codorniz s a l tari a

,de improvi so

,deante dos caçadore s .

Estava o te rreno um pouco encharcado : choveranos dia s an tecedente s . Entrados no pinha l os cãe sderam logo pe lo rasto da s g alli n ho la s . A minha cadel l a

,a poucos pas sos achou uma :

,mas era uma

me stra . Quatro l evante s lhe deu,s em eu l h e poder

a ti rar ! Não e sperava,mas a J o i a pareci a qu e a v i a

poi sar , tão certe i ra lhe acud ía a .r evo ad a ! Primoroso

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i O CAÇADAS PORTUGUEZAS

animal ! Só quem vê traba lhar a s s im,deante de s i

,.

d e cabeça a l ta,a vent os , um p o i n t er , é qu e pode

aval i ar o praze r i ntenso , d r ama t íco,que sentimos n o

s eguimento d uma perd iz , ou d uma g alli n ho la , comoaque l la

,que mostrava conhecer todos os re cantos do

pinha l , on de tão bem se defendia , e s e furtava amos savi sta . Poi s se ha bon s o lhos

,eram os meus d e n tão .

Mas an na l sempre ve iu para L isboa,com as sua s

primas do arroza l . Q u e e l l a s , a j ulgar pe l o b i co , devem ter entre Si al gum parente sco .

Havia g a lli n ho la s no pinha l , mas não eram tanta scomo as n a r ce j a s em baixo , nos a l agamentos . Vo lt amos para e l l a s . Cabra l e Bulhão Pato pre fe ri amn -as : e ram doi s e specia l i s ta s e go stavam de fazertorne io .

Quando desc íamos a encosta,muito l amacenta e

e scorregadia , como e r a po sswel que a lgum de nósapalpas se a mãe -te rra

,e alguma e spingarda s e di s

para sse , ouviu - se uma voz forte e

'

br eve :

— Armas no d e sca n ç o !Iamos todos

,em magote

,descendo a rampa . A

'

minha dire i ta,e um pouco atraz — em se rra-fi l a

v inha o cigano ;— adeante de m im e um pouco so

bre a esqu e rda i a Lopes Cabra l . De repente ouviu- se um t i ro , que partiu no me io de nós .

Cabra l,um pouco e nfi ado , mas com o olhar fi rme , .

vol tou- se , e perguntouO que fo i i s so ?

Eu olhara para o cigano,que me segu i a .

O cão da e spingarda , qu e me escapou d i s see l l e

,com a voz-sumida .

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I I 2 (SACADAS P ORTUGUEZAS

Apen as po z em o s d e novo o pe'

nos a r r o z a e s r e come

co u o t irote io . Ao cigano l evantou -se - l he uma narce j a

,e e l l e

,como para mostrar que sab ia p egar

numa e spingarda , chofrou - a, e tão de perto o fe z

que a e sfr a n g alho u- fi cou fe i ta num bolo .

Seguiu a caçada , e fi ndou sem ma i s in c idente s .

Este pas sou rap ido , e as s im como o céu,n aqu e lle

d i a,não t inha a mai s pequena sombra , que lhe ma

cula s se o puro azul,não mai s nos l embramos

,n em

do tiro,n em do desas trado caçador . Eramos muitos

,

e novo s , e portanto a l egre s . Nas nos sas a lmas haviatambem o azul do fi rmamento .

Um d i a cheio . E,graça s a Deus , chegamos a L i s

bo a todos e intactos . Quando e n t rãvamo s,ao cai r

da noi te,no Ba lt r e squ í, da rua

“ dos C apelli s t a s , adescan çar e a beber o copo da de spedida , entroutambem um amigo e conheci do de quas i todos o s

que a l l i e stavam,e,vendo um ce sto che io de caca

,

pergu ntou—nos quantos d i a s t inha durado a fe sta .

Fomos hoj e de madrugada — re spondeu Bulhão

— Então , s im , senhor . Boa caçada — boa de le i !Quanta s n a r ce j a s ?

C i ncoenta e c inco al ém do mais patos,gal

li n ho la s,e co d o r n i z e s .

A minha caca e'

maior,mas

,quando e stou fe l iz

,

o mai s que dou e um ti ro .

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CACADAS P ORTUGUEZA S 1 1 3

Era Jos é Mari a de Carvalho Cos ta,grande amigo

d o c e l eb re Mira — o g e n er a l dos cacadore s do A l emte j o

,e s eu companhe iro nas famosas monte ria s aos

j ava r d o s .

P o ís « m e s t r e Cabra l , que al l i e s ta, a sua partematou vinte e duas , e dobrou duas veze s os t iros .

El l a s amam-n -o muito , l ançam- s e - l h e nos b raçosd i s se Bulhão P ato , olhando para o p r i n c ip e, quegostava immenso , e que r i a como um perdido

,

quando o poeta o faz ia a lvo d o s s eu s imaginosos e

p i t t o r e sco s grace j os .

Eu,continuou e l l e , trate i de não faze r ma

'

fi

gura , e ande i as s im ao r ez do Cabra l,menos o

d obrar,que em d obr a s é e l l e ma is r ico do que eu .

'Tem a fortuna de não se r poeta ! I s so l he bas ta .

E seguiu a l l i o t i rote io de chi s te s , em que B u lhãoPato não t inha r ival — porque os seus improvi sos

,

ne ste genero,e ram como uma de s lumbran te maj / o n

n a i se, em qu e se s aboreava ver ve fr a n ce z a , osa ler o andaluz , e a graça portugueza — tudo temperado por mão de mestre .

E,fi nalmente , para fechar d is se e l l e e por

q u e e st e s senhore s e stão a cair d e somno com a sminhas graças

,gostos não se di s cutem , e uma caçada

aos j ava r do s , comp o r t a s e uma pe s soa al l i parada , dearma ao hombro

,amigo Costa , para mim não é uma

caçada,é uma sentine l l a . Tenho dito .

E agora a quarte i s di s se Lope s Cabra l . Cosse l l i

, a u r evo i r .

Esta caçada , que foi para nós uma festa por tod o s os motivos i n o lvi d avel, fôra o ffe r e c i d a ao

'arti s ta8

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I 14 CAçAo A s P ORTUGUEZAS

au s t ría co , qu e , na sua qual i dade de pintor , mostraraaos seus amigos de se j os de ve r os campos e a paiz ag em do sul do Te j o .

Devia fi car sat i sfe i to . Uma madrugada e sple n d i d a ,um formoso dia , op t imo s at i radore s , muita caça ,uma pa i z ag em sobri a de effe i t o s , mas caracte ri st i ca ,c avaco do ma is fi no

,rui doso

,al egre

,e espumante.

como o Champ a g n e ! E ,fi nalmente

,para qu e não

fal ta sse nada a um amador de t he a t r o , teve 0 a n

t ego s t o d uma tragedi a !

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I 1 6 CACADAS P ORTUGUEZAS

t am,com ar sol emne

,os sít i o s onde ha caça e onde

a n ao hã '

, qu e mand am em tudo ; qu e passam o diaa cruzar o te rre no em todas a s dire cçõe s , fazendorodar a l i nha a todo o momento

,e

,dando , s em s e

ca n ça r em ,tremendas e stafas nos de sgraçados qu e

vam na outra ponta ! Uns senhore s muito amigos d es i,que n a s paragen s tomam a melhor sombra , ao

j antar o me lhor bocado,n as pousadas a me lhor

cama que teem sempre os melhore s c ãe s , a s me lhor e s e spingardas , e a s mais ext raordin aria s hi stor iasd e t i ro s raros e de fabulosas aventura s , com quemas sam cl ero , nobrez a e povo ! Verdade i ros i rma o s

t er r ive i s d e sta maçonari a de San to Hu be r i o , d e

qu e e l l e nos l ivre — a t i,honrado le itor , s e é s con

frade , e a mim emqu a n t o o fôr !O nosso amigo , poi s , n a qu elle momento o qu e qu e

r ia e r a almoçar , e ape sar dos meus prote stos , l evava -se como um galgo na direcção da ca sa

,para

onde o seu e stomago faminto despo t icame n

'

t e o im

pellia . Farto d e o chamar,vo l te i at raz

,em busca da

g alli n ho la , mas dona B i cud a não e sperou por mim ,

l evantou , e , a d e j a n d o por e ntre o s p inhe iros,su

miu- se .

E e r a uma vez uma g a lli n ho la , e uma caçada ! Dosa l agamentos n ão sa l tou n em uma n a r ce j a , n em uma

codorn iz . Uma sol i dão completa !A

's tre s horas , t ermi nada a exp loração dos terrenos , d aquelle s u be r r imo s a r r o z a e s , d onde BulhãoPato , Lope s Cabra l , Jos é C al ache , Antonio A lve s ,eu , e outros t r o u x e r am o s , umdia , c i ncoenta e c i ncon a r ce j a s , al ém d e patos

, co d o r n iz e s , e outras b iche

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CACADAS P ORTUGUEZAS 1 7

zas , afamadas n a g a s t r o n om i a , di s se -me X — o ta lamigo — com ar me r e n c o r i o :

Bem , a ava l i ação d e sta s te rra s e d e ste s pi nhae spor ho j e e stá fe ita , podemos vol tar para Li sboa . Lál avra ras o auto .

Rimo—nos do grace jo,mas o ri so devia se r um

pouco ama r e llo .

— Para a outra vez se rá . Tambem nem sempre

g alli n ho la s l.

Como para tudo ha compe n saço e s , Santo Hubertol embrou-se do s s eus fi e i s , e , á vol ta para L i sboa , doi sep i sodios i n d emn i sa r am -nos da s emsabo r i a da malograda excurs ão .

Traz i a muita gente o vapor na coberta,a t r avan

cada,demai s

, com grande s c estos , malas , e bahu s .

Os pas sage i ros formavam grupos animados . Entree l l e s des cobr i al gun s , meus conheci do s .

Então boa caçada ? pergunto u-me um .

Nada,o peor pos s ivel . Viemos ás n a r ce j a s ,

mas o tempo aqueceu, e não vimos n em uma . E gal

li n ho la s , uma por j un to , e e ss a mesma l evantou , e .

foi-se !Poi s eu fu i mai s fe l iz , rep l i cou e l l e ; e , de sv ían

do-se um pouco , mostrou-nos se i s magn ifi ca s ga l l in ho la s , pre sa s pe lo b ico , secu n d um a r t em, e oste ntando- se — como uma e stre l l a sobre uma das e scot ilha s env idraçadas do vapor .

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I 1 8 CACADAS P ORTUGUEZA S

Dou-lhe os paraben s , di s se eu . Onde as encont rou

— Longe . Venho do A lem t e j o ,”

e d e l á a s trag o .

E não repare em e u estar a ss im ve stido . De ixe i l átudo — fa rpella , cãe s e e spingarda .

Com e ffe i t o eu notara a e l eganci a e a impropr iedade do tra j o do fe l i z cacador . Sapatos de po limen

to , calça pre ta , fr a k , capa a he spa n ho la , e sombre iroa l to ! Comt u d o podia ser .

Então vol ta para la ?

Vol to . A inda l á vou e star un s d ia s . E ia a ffa sta r- se .

De ixa -as a l l í ? ! Olhe que li aNão tem duvida .

Ficou por aqu i o dia logo . Havia l á , a um cantoun s olhos negros , que o chamavam , impac ientes j át a lvez da long a ausenci a .

Sente i-me , olhando ora os pas sage i ros , ora o céu ,que me o ffe r e cía um espectacu lo be l l i s s imo — umpôr do sol de s lumbrante , ora a s g a lli n ho la s , juntodas quae s e stavam d e p é un s , qu e me parec iamciganos

,de rostos trigue iros e agudos , os ol hos grande s

e re dondos , os nariz e s a d u n co s . E,ao vel-os al l i , pas

sava -me pe lo e spír i t o a idea d e qu e o meu di tosoconfrade não chegari a ao cae s do Terre iro do Paçona pos se effe c t iva das suas se i s g alli n ho la s .

Ao meu l ado vi e ra s entar-se outro col l ega caça

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I 20 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

Todavia , decorri dos minutos , os ingenuos e se n

t ime n t a e s foragidos vol taram ao vapor ! E novosgritos agora de admiração e de r e go s i jo saudaram o seu regre s so !Se o amor os l evara , o amor os trouxe , porque

nas gaiol a s tambem vinham “a s pombinhas,sua s

companhe i ras . E e l l e s vieram .

d a l d i s i o ch i ama t e

como do Paol o e da France sca de Rimin i d i s se ogrande fi orenti no .

Um i dylli o a qu e só fa ltou um Anacreonte , parao tornar immorta l .

Chegamo s ao cae s . D e semba r cãmo s , e eu , depoisde me despedi r dos meus confrade s da má fortuna

,

entregue i,na Arcada , os meus cãe s ao fi e l Me n

d o n ça , ant igo sol dado , honrado homem de grande sbarbas

,que g o sava e merec i a a confi anca de todo

o bai rro da Estre l l a .

E , e stava e u parado a e squina da rua do Oiro,

a e spera d um carro,quando vi app r o x im a r - se o

meu fe l iz confrade .

“Olá !O senhor v iu aque l l as g alli n ho la s , qu e e u tra

z i a .— di sse -me el l e com um ar dubio , e r e t i ce n

ci a s em cada pal avra .

D e certo que vi . Eram sei s . Fal ta -lhe alguma ?

pergunte i,l embrando-me logo dos c iganos .

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CACADAS P ORTUGUEZA S 1 2 1

— Falta-me uma . Quando desembarque i ache i

S i nto muito,mas eu é que n ão a tenho . E leve i

a mão a saca , para lhº

a mostra r .Or a

'

e ssa agora ! Eu,nem por sombras

— Poi s Sim . Está c l aro que nem por sombra s ,mas ve j a sempre ; pode e l l a te r-s e cá m e t t i d o , sem

eu dar por i s so C on sol e - s e , amigo , que aindalhe de ixaram cin co . Eu avi se i- o , para que a s guardas se , mas o s e n hor não fez caso . Queri a gosar d o sseus t r i umpho s . E por i s so pagou a patente .

Para a outra vez se re i mai s acaute l ado .

Lembre-s e de que a o cca s ião fa z o l adrão .

E com um nariz mu ito compr ido , tão compridocomo o da sua chorada bi cu d a ,

l á se fo i o fe l iza rdo ,favori to de D i an a .

Encerr a e sta h i s tori a doi s s egredos . Nenhum d e l l e sé raro , mas o encontro , a coinci denci a dos doi s , é qu eé curiosa e pi can te .

Para m im cacador de raca qu e ainda aquime e stou de l e itando com esta s narrativa s d e ha vi nt ee t r i n t a

'

a n n o s , uma g r a d e de mai s , ou de menostão frequen te s são e l l a s en tre os que n ao s ao donosd e Mafra ou d e Vi l l a Vicosa e r a quas i i n dífferente . D e toda a maneir a eu tinha-me divert ido .

Nessa s o ccaSi o e s , senti a—me domin ado por umaverdade ira febre . Trez d ia s ante s j á eu a t i nha , e tre s

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i 22 CA çADA S P ORTUGUEZAS

d epoi s a inda e l l a durava . Uma ca ç a d a d um dia traz i a -me entreti do uma semana !

Ve r romper a manhã em terra , ou sobre as aguas '

atrave s sar a s l argas campin a s da lez i r a embrenharme pe l a immen sa fi ore sta dos pinhae s do su ldo Te j osol i tarios e sombrios ;e spre itar , aqui e all i , um 10

g a r e j o rusti co , p ittore sco , i sol ado , perdi do numa e ncosta erma e pedregosa ; de scobri r ao lon ge umapaiz agem verde j ante

,enquadrada entre duas r e n qu e s

d e a l to s pinhe iros,e logo occu l ta pe l a massa verde

e s cura do e spes so arvoredo , ob servar un s effe i t o s

de sol n o de l i c ioso verde e oi ro dos pampanos .

Tudo i sto,que e u g o sava i nten samente , supri a—me ,

nos maus di as,a ausen ci a da caca .

Mas para os que n ão são art i s tas,uma ca ç a da é

um pe r ío d o com uma só oração, e e ssa é portanto

a princ ipa l . Tirada e l l a não l he s re sta nada . Ou ante s resta no e spír i t o uma impres são , ta lvez egua l ad um j ogador

,que perdeu . Gastou

,e não ganhou

n ada .

Depoi s ha as fam í l i a s,as senhoras — a s nossa s e

a s sua s amigas . Para urnas e outra s a caca é umariva l , n aqu e lle momento preferida . E então , peranteum r eve z , e l l a s , l onge d e t erem a generosidade dasgrande s a lmas

,são impla caveís ! .O drama da caça ,.

para nós,pas sa- se no campo

,mas e l l a s as sobi am-nos

em ca sa,qu a n do não vêem o epílo go na mesa do

j an tar !Sol te iro

, e sem fami l i a então , quando eu re col hi aa Li sboa

, e pendurava a minha saca , vas ia d e caca ,não havia a l l i

,ao pé d e m im ,

n inguem qu e o extra

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[ 24 CACADAS P ORTUGUEZA S

— Eu tambem não . Encontre i c i n co perdize s, e

não trouxe nenhuma . Mas não diga i sto , porque eu ,ao pas sar pe l a Praça , vi lá uma g alli n ho la boa e

fre sca,e comprei- a , para l evar a l guma coi sa para

casa . Você compr ehe n d e

C ompr ehe n d o , s im . Pol it i ca domest i ca .

Ecl aro — di s s e e l l e,e fo i -se .

E tambem i sto podia se r .

Poucos di a s depoi s , contando eu , numa reun iaod e caçadore s , os pequenos epi sodios d e sta excursão , quando ve iu o das se i s g a lli n ho la s;um dos pr esentes

,a ri r muito , di s se

Poi s,s im , senhor , não fo i má parti da . A s se i s

g alli n ho la s v i —a s eu comprar n a e stação do Barre iroa um regatão , dos que a l l í vendem caca . D a morted aqu ella s e sta o homem innocente .

E quem lhe pi lhou a e l l e a bi cud a ? Foram os c i

Qu'e foss e uma boa parti da , n ão o dire i eu , porque ,comprada ou ca ç ad a , e r a d e l l e , mas para a v íctima ,quando , ao de sembarca r , d e u pe l a fal ta , foi decerto— uma má chegada !

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M M É M É

Campinos n a lez ira

O m a i or a l

A Bu lhão Pa t o

ISTO da pa i z ag em , como emtudo , os gostos sãod ive rsos . Uns gostam dos t e rre nos l evementeacci dentados , outros da s a lta s s erra s — eu ,

s em a s de sprezar , prefi ro os gran des p l ainos , asle z i r a s s em fim

, que'

me dam a idea,a impres são

d o mar sem l imite s .

Os meus terrenos , para caçar , s ão a lez i r a e os piu bac s . E na lez 1r a a âg u r a qu e mai s gosto de ve r é ocamp ino — o g en u ín o , o typo anti go , de barre te verde'ou pre to , col l e te forrado e av ivado d e encarnado ,calção d e fi ve l a , mei a d e l ã , e sapato d e prate l e ira .

Se eu fosse s enhor d e terra s no R ib a—Te j o e stet ra j o , o tradic iona l , e r a d e r igor nos meus cre adosn ão l he s a dm i t t ia a ma i s l eve a l te ração» Si n t u t

s u n t , a u t n o n s i n t .

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1 26 CACADAS P ORTUGUEZAS

O l e i tor perdoará e sta i rrupção do l at im em pl enacampina — mas an te s l at im qu e fran cez — e d'ahie sta s que stõe s d e gosto — que stõe s d”arte para mim

,

que vivo e me preoccupo tan to com estas fr ívo li d ad e s , como outros com a pol i t i ca e outras materia sde a l ta transcendenci a — são da maior importanci a

,

e não acho d e mais uma c i t ação z i nha da l ingua mãe .

C i tari a até sa n s k r i t o . se o soubes se .

O campi no e'

,d e todos o s hab i tante s da s nossas

terra s — a l tas e b a ixa s — o mais e l egante e typico .

Nenhum lhe so fªfr e o confronto n em os dos p l a i

nos , n em os das serras , n em os da s costa s e arribasdo mar . A um tempo povo e fidalgo é peão e ca

va lle i r o . No olhar , no porte , tem o quer que de sen ho r il, de superior , de con sc io d e s i , sem vaidaden em o s t e n t a cão .

— É o que ê— e no meio da lez i r a ,o seu todo — não e l l e — parece dizer-nos

,quando

vae cortando , ao passo seguro e fi rme do seu ca

val lo , e com o pampi lho desca ído sobre o hombroNós — eu

,o meu cava l lo

,e a minha vara aqui

governamos : i s to é no sso !

El l e o seu cava l lo, e a sua vara l Este s tre s ele

mentos con st i tuem a i nd iv idu al i dade campi n a — o

guardador .

O homem,nasc ido e creado no campo , e por a s

sim dizer entre a se l la e a manta , e'

e n t r e sêcco ,

muscu loso,agi l , e bravo — como os a n ima e s , os

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a 28 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

O seu caval lo — é como e l l e rust i co e sobriot d e sco n hece os co n cheg o s , ós conforto s da c ivi li sa cao .

Nunca dormiu numa bo x e l egante,n unca l he ve st i

ram pa n n o s de côr e s de li s tõe s variados,nunca se

m ostrou em campos de corri da s,n em gal opou

,n a

p i s ta , ouvindo os hu r r a hs d o s sp o r t smen e n t hus i a s

m a d o s . E ) fe io,e squ a li d o e h irsuto

,se o comparar

m o s com um corredor , um cha r g er de raça , e e s te“ ven ce -o n a c arre ira . Mas em servi-co , no campoao frio , ao so l , e às chuva s e u vo u por e l l e .

A vara o pamp i lho — comple ta a phys i o n om i a d ohomem com e l l a é o camp i n a , sem e l l a um campon e z a cava l lo

,como outro qua lquer . A um tempo in s i

gn i a e arma quando a empunha sente -s e r e i,t em

ne l l a o scep t r o , e a l ança , e com e l l a di rige , governa. e c asti ga os seu s i n d om i t o s e feros su bd i t o s !Coi sa s in gu lar e sta íi g u r a , tão ori gin al , mixto de

p a s tor e de sol dado,cu j a vida — perpetua bucol i ca

,

ás veze s cortada por uma tragedia — n o s parece tãosuggest iva de poe si a

,t em passado , e squec ida dos

poe tas,e n ão li g u r a no cancion ei ro popu lar da nos sa

' te rra l

A n d avamo s ás co d o r n iz e s nas hervas . Com bonscãe s , e quando as ha , é boni ta c acada .

D e repente um aguace i ro e m c ima d e nós . Nãoo fi

'

e r e c i a outro abri go a immen sa le z i r a, qu e se

, e sten di a dea nte de nós,a n ão s er uma barraquinha

,d e pa lha -

p o n t e ag u d a , que se vi a , l á ao longe , noW i o .da campina de serta . Corremos para l á .

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CACAUA S P ORTUGUEZA S 1 29

Maiora l d a l i c e nca ? d i s se J o sé C al acheum dos nos so s companhe iros di rigi ndo-s e a o campino

,un i co habi tante d i

aq u e lle palac io .

Os senhore s , podem entrar . O caso é caberem— re spondeu o guardador , l evando a mão a o barre te verde .

Era um homem de quarenta a n n o s —

.

meão d'e s

t atura,forte e atarracado , tri gue i ro , a barba rapada ,

um pouco p icado de bexiga s , olhos c l aros , o lhos dehomem val ente — o que l ogo , a primei ra v i s ta , e l l ed enunc iava pe lo bem pl antado da hg u r a e pe l a fi rmeza dos movimentos .

A chuva durou p'

ba s t a n t e para n o s molharmos .

Nós a chegarmos a pa lhota , e e l l a a para r . Saímospara fora

,e emqu a n d o faz iamos e a cce n d iamo s um

c igarro,tinha— s e travado conversa com o maiora l .

A cem metros de nós e stavam os toi ros un s animae s negros , de boa e stampa .

— D e quem é e ste gado ?- E

7 do dr . Jos é Vaz Monteiro .

— E que ta l ?

Não é mau de todo . Os senhore s lá o vêem em

Lisboa .

Olhe,lá e stão ,

aqu e lle s doi s a quere rem brigar— d i s se eu .

Jos é , vae la.

O Jos é,que a s s im fo i mandado faze r a po líc i a

do campo,e ra um pequeno de d e z a n n o s , ro l i ço e

forte,mas de quem nós n ão d e r amo s fé . El l e não

he s itou — t inha- o j á fe i to tanta ve z ?— e , sa l tando d o

c aminho o n de e stavamos para a le z i r a , fo i dire i to9

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1 30 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

aos toi ros,e com doi s berros e quatro ma t a cõe s de

terra, qu e ati rou aos d e so r d e i r o s ,

'

a cabo u a contenda .

Er a um domingo .

_ Faz hoj e o ito“

dias , i a aqui havendo u ma d e s

graça . D á-m e o seu l ume ?Tome la um charuto .

_ Muito obrigado — eu não fumo d l

i sso . Quemme tira o cachimbo , e o _cigarr i to . Poi s fo i as s imcomo lhes digo . Estava .eu aqui — al l i na barracaa comer , e va e qu e oi ço , de repente , uns gri tos

d e homem a fi i i c t o Quem me a co d e l? quem m e

aco de l? Sl

alt o'

lo g o fora , e o que havi a d e se r ? Umalma do diabo , montado num burro podre

, e ,um

dªaqu elle s toiros — aqu elle , e apontou um caraca

a contas com e l l e , j á para sa l tar a va l l a , e sta val laaqui ! Ái , senhore s , debaixo dos p é s s e l evantam o s

trabalhos ! — bem s e diz . Eu não se i como aqu i l iofoi : t inha a l l i

,fe l izmente

,a egua e a vara . Num

pr ompt o e stava em c ima do t o iro l. Mas podia—m e

l evar . o diabo o canastro , qu e e l l e é o mai s Va l e ntedos qu e t enho a minha guarda ! Custou-me a v ira l—o l

Queria i r a ma cara para cima do homem , e deume agua pe l a b arba para o arrancar d i aqui . Em

fim , como eu era pes soa co n heç i d a , l á me obedeceudi s se e l l e

,sorrin do do s eu gracejo

,e mostrando

uma fi ada de dente s brancos e curtos .

Se eu aqui não e stou , e r a um homem perdido .

Ahi fi cava e str ipado,e l l e

,burro e tudo ! E olhem

qu e a cu lpa e ra só dº

e lle . El l e propr io m'o di s se .

Sempre ha cada homem,que mai s lhe val i a ser

burro ! Ao menos ninguem se enganava com e l l e s .

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1 3 2 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

ha u m de svio , e l á va e um corno pe lo pe ito ou pe l abarriga dos qu e e stão bu lli a n d o , e e r a uma vez umtoiro ! A inda ha poucos di as qu e i s so aqui a conteceu .

E o maioral,para fechar e comme n t a r a n ar ra

uva,co n ú n u o u

— I sto é,uma compa r a cão . Arma- s e uma que stão

com amigos nos sos , e uma pes soa quer apa r t a l-os ,e va e

,entra , e mette a nava l ha ao meio , e por d e s

graça apanha um corpo dea nte d e s i . A faca faz asua obrigação . .

Aqui o campino , qu e não t i rava os o lhos da ma i

nada,gritou para o rapaz

— 'Pára ahi,Jos é — que e u l á vou .

E,sa l tando d ,um pulo p ara cima da egua , j á com

o pampi lho às costas , di s se -n os— Adeus

,meus s enhores . De scu lpem

,mas vou l á

eu . Não m e facame l l e s a l guma de sfe i ta ao pequeno .

E , meu fi l ho .

E part iu,como um ra io , a galope , pe l o c ampo

fora .

Nós vol támos para as co d o r n i z e s . Havia muita sna lez i r a , e fi zemos boa cacada .

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Na Con tada —Velha e Sesmar iasdeSua j

ªlltez a

BENAVENTE

A J o sé Q u a r e sma d e Pa u la .

oi á vol t a d 'uma grande cacada , em dezembro'

de que Bu lhão Pato me di s se vi s i tan do -o'

e u n a sua casa da rua da s PracasJá vi ste

,l á em baixo , o que ve iu de Benavente ?

Uma das maiore s cacada s que tenho fe i to . A qu i llo

e ra uma arca de Noe — menos tigre s e l eõe s ! F o ipena qu e nao acompanhasse s ;mas havemos de lá irjuntos . E qu e hosp ital i dade ! Has de gostar muito donosso Quare sma . Que aconchego d e cas a ! Havemos d e « l á i r os doi s — tornou e l l e a diz e r-me . Hade se r para o anno . Q u e a entrada d

'

e ste fo i umassombro

, e provave lmente n ão se repete tão c edo ;mas

,em todo o caso , aqu elle s pinhae s sempre d e i

tam de * s i muita caça . E depoi s , que abertos q u esão , e qu e p i so ! A i n da se r e sen t em do qu e foram

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1 34 CACADAS P ORTUGUEZAS

Pinhaes r e a e s ! Has de gostar — afi i a n co —t 'o eu .

'Equando d e sce r e s ,

'

apa r t a o que quiz ere s . Cá em cas an ão se come —tudo .

Um ann'

o depoi s,quas i dia por dia

,numa be l l a

manhã de dezembro,part íamos d e Santa Apolon i a .

com dest ino ax Benavente .

O tempo uma formosura — o ar fr io , o vento norte .

al to , o-

ce

'

u sem uma nuvem,e na s nos sas a lmas

muita a l egri a . E”

ca so

/

d e dizer aqui — o i ro sobre azul '

Na Azambu j a e n t r amo s no barco, q u e nos

haviade l evar

,pe l a va l l a

,ate

'

Benavente . A l ém d e nós i amdois pas s age i ros

,um cavalhe iro dªaqu e lla v

'

i l l a,e um

advogado d e Li sboa,o sr . dr . L . F .

,que eu então

apenas conhec i a de vi s ta . Este e r a con soc io d e Eulhão Pato , n a , A ca d em i a d a s Sc i en c i a s .

A co n ve r sa cão , a qu e a .principio me conserve ia lhe io , versou de sde logo sobre li t t e r a t u r a , como eranatura l : houve

,porém

,um momento em qu e eu que

bre i a minha hab i tua l re serva,apoiando o'meu ami go

n a di scus são . Esta entrada deveu d e c erto parecerextranha ao i llu s t r e

'

j u r i sco n su lt o . O barrete d e ' lã

pre to , qu e eu l evava de sc ido até aos o lhos — a man hã e stava fri a — a manta d e l i s tras , os ce i fõe s , a spol ain as

,os sapatos de prate l e i ra

,o cinto che io

'

d e

cartuchos , a e sp ingarda , e a tre l a d e cãe s , qu e se

g u r ava n a mão , todo e ste co n ju n ct o e r a de certop ittore sco , mas ninguem suspe itari a

,vendo-me a s

s im tra j ado,quem e u e r a .

A s s im e'

que e u costumava sair d e casa , fossed ia o u fos se noite . Quando tencion ava demorar—me

,

a mal a l evava a s ve ste s ci dadãs . Era mai s commodo ,

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1 36 CAÇADAS P ORTUGUEZAS'

Conta Loui s V i a r d o t , nos seu s So u ven i r s d e cha sse

, qu e um di a em que szr Robert Pee l , tão grande

po lít i co como apaixonado Sp o r t sma n ,andava, com

grande comitiva —de amigos e c reados,caçando n o

No r fo lk sh i r e , um dos con dados da Escoci a mai s abundante s de caça notou

,en tre os bat edore s , o reve

rendo cura da freguez i a cathol ica lQuem sabe o qu eé uma cacada n aqu e lla s te rras , compr ehe n d e r a o r eparo e o e spanto de s i r Robert ! O g ame-bo o k — diarioda caca — da re s idenc ia para onde Vi a r d o t , em 1 855

,

fora convidado,regi stava em cinco dia s de caca no

mez de outubro de 1 853 — doi s mi l quatro centos equatro fai sõe s ! R epa r e o l e i tor bem — que n ão e ramco d o r n iz e s , nem perdize s . E mesmo qu e fos sem .ca

lha n d r a s .

Quando ' chegou a hora do lu n ch, o i l lu stre e stadis ta

,dir igin do—se ao reverendo cura , e apontan do

para o ca j ado que e l l e t i nha na mão,perguntou- l he

se nunca havi a ca cad o .

Pelo contrario,re spondeu o cura — cacei muito .

Mas j á“

lhe perdi o gosto .

Eu acreditava qu e e s se gosto nunca seQuando é que deixou de cacar ?

— Quando deixe i de errar .Si r Robert fez com a bôca um t r eg e i t o , que que

r i a d izer que l he custava a a cr e d i t al—o , e qu e os gaba r o la s appa r e c iam em toda a parte ate

'

no condado

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(SACADAS vo a'

rUGm—j z i xs 1 37

de Tyrone e sob as ve ste s humi l de s d'

um cura d 7 a ld êa !

Este percebeu .

D u v id a e s ? J u lg a e s que min to ? P e rm i t t ís queeu prove o que di sse ?

E,pegan do em uma das espin gardas de s i r R o

bert , quando r e com eco u a cacada , po z - s e ao l adod

j

e lle , e com do ze t i ros,e uma po r uma , matou

doze peças . Então , vol tando- se para e l l e , di s s el he

A caba e s de ve r , que eu fal ava verdade . Foide sde que de ixe i de e rrar

,que eu perd i o '

amo r a

caça .

E,dita s e stas pa l avras

,re sti tuiu - l he a e spingarda

,

com que j u s t i fi ca r a'

tão bri lhantemente o qu e di s sera

,e retomou o seu logar n a l inha d o s batedore s !! r ev .

º prior de Be n aven t e ,'

qu e com outros amigos seus e de Bulhão Pato

,nos ve iu e sperar n a

ponte,e cu j a hosp ita l i dade i amos recebe r

,não po

deri a ta lvez di sputar o campionato d o ti ro com e stei dea l cura e sco sse z , ade strado em rtão opulen tas capoe i ras — quero diz e r em tão opul entas co u t a d a s º

mas o que posso affi rm a r a'

e vi sa , é que ,'

duranteos quatro di a s que durou e sta noss a cacada

,não

me lembro de elle “

e r r a r um tiro .

E ' v erdade que a s g a lli n ho la s e a sç

'

pe r d iz e s n ão

sa l tavam aos mi lhe iros,como nas abe n co a d a s t erra s

que Vi a rdo t — o fe l i zão teve a ventura de e x plo

rar : todav ia , s e e l l e n ão e r a i n fallive l, s e não atti n'

gira aque l l a semsabo r o n a perfei cão digamos a ve rdade o nos so amigo José Quare sma era uma boa

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1 38 CACADAS P ORTUGUEZA S

e spingarda — a g o o d sho t , como e l le s dizem — osin su l ares do Re ino—Un ido .

Não seri a aqui de e x t r a n har uma pequeni na amostra da minha e r u d i cão archeologic a , l imitada q u efos se as ant igas cacadas r e a e s n e sta s coutadas e sesmari as ; mas , com a mão na con sc ien ci a e n a memori a

,dec l aro, e at é j uro , se prec i so for , que neste

momento sou comple tamente ignorante em todosos cap itu los da archeologi a be n ave n t i n a .

O que e spero me perdoarão os meus sab ios co ll egas da Commi ssá

'

o d o sMo n umen t o s ;porque , quantoaos l e i tore s; e sse s darão graças a Deus d

i

e s t e m e u

exce s so de con scien ci a,e d e . i gnoranc ia .

- Fiquemos poi s na s cacadas moderna s , e fi camosbem .

Benavente e ra,com e ffe i t o

,merecedora do s gabos

do'

meu i l lu stre amigo . A pura verdade,quanto e l l e

m e d i s se ra de coi sa s e pe s soas .

O te rreno a dm i r ave l— quas i p l ano em toda a parte ; mag n i â co s o s pinhaes , d i s t ahc i a d a s as r e n qu e s

do arvor'

ed'

o, .de forma a poder— se segui r por entre

e l l a s uma gallinhola'

a t odo o a lcance do t iro ; e da sv inhas e mattos

,que marg in avam os caminhos , at é

debaixo d o s pé s d o s cava llo s,na propri a e strada ,

sa l tavam as co d o r n i z es!

' E,como se i sto n ão fos se bastante para nos sa

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I40 CACADAS P ORTUGUEZAS

nos appa r e ce um cava lhe iro da terra , o sr . EugenioPaim dos Re i s , q u e , i nformado do inc idente , coma 'maior amabi l i dade

me o ffe r e ceu o j eri co qu e e l l emontava

,perguntan do

,porém

,previ amente , s e eu

e stava costumado a andar a ssim — e apontava paraum m a g n ífi co a lbardão , sem e s tr ibos . El le, - apezar de r e co n he ce r _ OSo m e r e c im e n t o s

'

d o bi cho , nãolhe ' con cedi a a s honra s da cavalla r i a : transportava- s en 'e l l e sentado .

Em tudo o ma i s o maior a sse i o e e s

me ro — o pêlo br o s sa d o , macio e l uz idio como 0'

d'

um puro—sang ue os arre io's dos melhores —

'

a ferragem “ compl eta e nova .

Respondi—l he,com o maior despl ante , que s im ! Não

sei se che gu'

ei '

a d iz er- l he, qu e nun ca andara em bur

ros d i

o u t r a mane i ra A qu elle an imal : — que D eu s meperdoe caír a al l i do ceu . E seri a quas i o ffe n d el-o ,não me aprove i tarPassar de cava l l o para burro — não é b om ,

masn aqu e lle d ia eu não perdi n a troca — ante s pe lo cont r a r i o .

Os meus amigos — u n a u o ce — te ceram o e logiodo an imal , enumerando as apostas , que o seu donot inha ganho com e l l e em vista do que me r e co '

m

me n d a r am,que me segura s se .

Eu , para n ão perder a cacada , sent ia -me capaz demon tar em pêlo um potro se lvagem dos Pampas !

Senti a—me g a ucho a t é a raiz d o s fcabe llo s ! E , comonão havi a tempo a perder

,sal t e i l ogo para c ima do

albardão . a trote !Pato , o padre Quare sma , o doutor Borra lho , Ma

nue l Couti nho,Thomaz da Rocha

,e os outros com

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CACADAS P ORTUGUEZAS 1 4 !

pa n he i r o s , fi caram—me r e sa n d o pe l a pe l l e , quandovi ram a andadura que o bi cho tomara . Eu so u al toe gros so , e e l l e e ra ba ixo de perna s . Os menos ima

g i n o so s pr o phe t i s avam varia s fi guei ras , a ensombrar a e stra da , o s outros , mai s a s su s t a d ico s e tra

g i co s , fa l avam em cabeca partida o u coste l l a amol

Eu , que i a t rotan do , s ent ia -me admirave lmente,e

pos so affi rma r que nunca tive me l hor mo n t a d a ,como

dizem,em cal ão d e ca serna

, o s'd a cava lla r i a . A qu e lle

podia l evar um copo che io de agua,que n ão a e n t o r

n ava !A e strada fi cou v irgem de n e i ra s

,por mim p lan

tadas . E parece que,á ri j ez a d o s musculos a llia va a i n

t elli g e n c ia , aqu e lle raro an imal :'

fo i o meu tran sporte , e s eri a t ambem o meu guia , s e fos se nece s sario . O

endemoninhado , fi rme e rapido como um cha r g e r ,

nunca ma is parou,nem mudou de pas so, a t é chegar

mos a o s pinhae s ! Monte s de pedra bri tada , charcosp ite ira s , que am e acavam a inte g ridade das nossa sre spect ivas epi dermes , tudo e l l e sa l tava o u torneava ,s em me dar tempo para eu faze r um movimen to !Os meus amigos

,montados nos seus grande s ca

va l l os , de ixe i—os logo para traz , e a poucos pas so spe rd i—os completamente de vi sta !Não t orne i mai s a encontrar o fe l iz pos sui dor d

il

a

q ue l l e maravi lhoso exempl ar d'

uma e speci e , qu e nãoprima nem pe l a ce l e ridade , n em pe la e sperteza ,mas ,apenas chegue i a Li sboa

,n a primei ra carta que e s

c r ev i ao nosso am avel e hosp ita l e i ro amigo , pedi - lh e

q u e l he renovas se os meus agradec ime n tos pe l o pra

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1 42. CACADAS P ORTUGUEZAS

z er d'

aqu e lla s duas corridas , que fi gu ram na minhamemori a de cacador , sem o enxova lho da mai s l evesombra d e fi gue i ra !

F ôr a excepciona lmente grande a entrada d e ga lli n ho la s em Portugal, nos doi s anu os anteriore sappa r e ce r am até em horta s e quinta s d e n t i o d e Lisboa ! 0 Manue l Can dido

,da Amora

,e 0 Anton io

da Gata , tambem cacador d e profi s são , em um dia ,até as duas horas da tarde

,m e t t e r am na saca

,nos

pinhae s da Amora e d e Corroios , trinta e se i s , abandonando o te rreno . por se lhe s terem a cab ado a smu n i cõe s E o , s r . Franci sco Negrão um d i s t i n ct oamador — t a l abundanci a encontrou em Salvate rra ,que , tambem num d i a matou vinte e oito !

As nos sas esperança s , ou melhor di re i — os nossosde se j os

,não s e r e

'

a li sa r am ,porém

,d e todo ne ste

anno : ainda ass im fo i um anno regular . A s tarambol a s e os abibe s viam—se em bandos n umerosos ,r evo lu t e a n do sobre os campos

,porém as nossa s

quatro cacadas fi z emo l-as nos pinhae s , e apenas umdia ati ramos tambemas perdiz e s

,n a s vi nhas e n a

charneca . Dirigiu—a s toda s o nos so bom amigo JoseQuare sma

,prat i co nos terrenos

,e , como j á dis se ,

be l l i s s ima e spingarda .

Ca cavamos , segundo as boas praxe s ,'

em l inha,

mantendo cada um o seu' lo g ar ; e , quando entrava

mos em pinhal mais fechado,a s .vozes de a ler ta

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CAÇADAS P ORTUGUEZAS

Na caça,como no j o go , revezam—se a -fortuna e

o azar . Naqu elle pr ime iro di a sorriu —me a sorte,

.e a s g alli n ho la s deram-me a preferencia , a quee u corre spondi com egua l co r t ez i a z— bem sa l tadas

,

mal sal tada s,não erre i u ma : a toda s de i ho sp i t a li

dade na minha rede . Foi pena serem poucas,por

que eu e stava afi nado , e n a saca , apesar de nãose r g rande , cabiam muitas ma is .

Era a primeira ve z que e u entrava n aqu elle s p i

n ha e s,os seus hab itante s qu i z e r am por i s so o bse

qu i a r-m e

, e co r t ezm e n t e v ieram ao meu -encontro .

No di a seguinte fo i Bul hão Pato o r e i , com muita s

g a lli n ho la s— uma dªe lla s morta com -

um t i ro qua s ia prumo

,verdadei ramente rea l .

Como d i s se,a minha e strei a fo i fe l iz . C a cavamo s

na Coutada Velha —. ve lho e ra tambem 0 pinhal ,

aberto,com grande s c l aros no arvoredo -quando

d e repen te me surde uma g a lli n ho la , . vo a n d o de bi copara m im . Vinha ba ixa

,a meia a l tura dos pinhe i ros

,

m a s, quando m e de scobriu , quebrou d

º

a z a sobre adi re ita . Estava quas i a cava l l e i ro

,ao levantar

,e su

bi a ob l iquando : e ra um ti ro verdade i ramente d iffi c i le de acaso ; mas perdi a—a , s e a de ixas se entrar n ae spe ssura d o arvoredo . A t ire i - l he poi s . El l a seguiu

,

e e u tambem a segui com os olhos até á grimpad

7

um pinhei ro , onde , de repente , s e sumiu .

Aque l l a vae e scapa — di s se um .

Não lhe deu a fli rmo u outro .

E ass im,até ao fim da l i nha

,todos a j ul garam i a

co lume : A m im parec ia—me,todavi a ter-lhe a ce r

t ado ; vi ra —a e stremece r , e portanto , ape sar da gera l

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C A C A UA S UUUIzZA S 1 4 3

n e g a cão , como tinhamos fe i to uma pa r a g em , e u ande id i re i to ao pinhe i ro , onde e l l a s e me furtara a v i s t a º

e , olhando atten tamente em vol ta , v i que n ão meenganara a g alli n ho la lá e s tava morta n o chão .

Coi s a s ingu lar nem uma mancha de sanguenas pennas

,n em ve s t íg io d

'

um bago de chumbo n asperna s , nas aza s o u na cabeca ! Um exemplar ma

g n i fi co para museu . Não morreu de susto,de certo

nem eu verifi que i d epoi s po r onde a morte l he entrara .

Ver e cre r , como S . Thomé — n a caça,como em

tudo . Se eu n ão vi s se , la fi cava a lmoco fi no para a lguma rapoza aventure i ra . Na queda a bícu d a encobrir a - se de ta l modo com o s t ron cos e a r am a r i a dopinhe i ro

, qu e n inguem a viu cai r!

E todos i riam j urar que eu a ti nh a e rrado !

Um d o s nossos bon s companhe i ro s'ne sta s excur

sõe s foi Manue l Coutinho .

Conhec i a e ste nome,havia ja muitos anuos . Uma

noite e s t avam o s — eu e outros condi sc ípulo s meusda Esco l a P o lvt e ch n i ca — na barraca da Lima

,n a

fe ira da s Amore i ra s,que então se armava n a P a

t r i a r ch al — hoj e praça d o Prin cip e Ondei s to va e ! Foi;ta lvez , em 1 856 o u 57 . O a ssump t o

do cavaco eram toiradas . D”e l l a s pa s sou - s e a fal a r

da vida do campo a l gunsd o s que a l l i e stavam eram1 0

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146 CAÇADAS l—ORTUGUEZAS

fi l hos do Ribate j o . E d'

ahi , das le z i r a s , d o gado edos g u a r d a d o r e s , , pe lo natura l pen dor , e ntrou - se nod r ama t i co e i n e x g o t ave l cap i tu lo da s va l en ti as .

Rapazes e po r t u g ue z e s fi da lgos,bu r gu e z e s o u

plebeu s — ? quando conversam é de amore s,ou de

proezas e aventura s . Se são i llu s t r ad o s princip iampe los l ivro s , romances , versos , ou t he a t r o , mas d

"ah i

a pouco l á vam parar . São aq u e lle s os e ixos sobreque gira a conversação .

Entre outros epi sodio s,um do s pre sente s narrava

uma grande de sordem . n uma_fe i r a

,onde os p impõe s

os ga l lo s do campo,fi zeram actos grande s de va l en

ti a ; e pronun ciou en tão o nome de Ma n ue l C o u t inho , pondo-o em evidenc i a como homem agi l e de stemido . Esqueceu a minha memoria o s pormenore sda bri ga , e tambem o nome d o chr o n i s t a , ma s guardou o nome do heroe , com quem e u , qu as i vintea n n o s depoi s

,havia de cacar n o s pinhae s de Bena

vente .

Manue l Coutinho ra ste j ava pe los se s senta anuos .

Homem de boas mane i ra s_e poucas pal avras . Baixo

e secco de carne s,não' te r1a si do de grande s forca s ,

mas tinha a s condiçõe s apparente s da agi l i dade , e ,apesar de j a quebrado e doente , no campo aindanão faz i a ma fi gura ao pé do s novos . Era de boatempera . F o i e ste o meu compan he iro habitual , e omeu guia .

Apesar da s ma g n iâ ca s recordações q u e d e la trouxe , nunca mai s vo l te i a Benavente a gente n ão fa ztudo o que de se j a — e não me fi cou de memori a at o po g r aph ia d o s te rrenos em qu e n os ca cámo s ;mas

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1 48 CACADAS P ORTUGUEZAS

c eu dª

aqu e lla'

m i n ha'

a t t e n c i o sa fín ega , como e l l e lhechamou

,e,em cartas que depoi s me e screveu , ai nda

a e l l a s se referia , d izendo que a s con serv ava comol embranca minha .

A lma ingenu '

a e grata,l embrava—se de ta l i n s ign i

fi ca n c i a ! Eu ti rara -as das m inha s mãos , para lh'as

dar : era i sto que o penhorara . Mas na cacada dodia seguinte , fi cou -me e l l e d evendo muito maior tinez a . Se eu fôsse , como muito s , imprudente ,t e l - o —hia morto

,ou

,pe lo menos , fe rido gravemente .

Das mãos d outros ta lvez não e scapasse s em grandeavaria .

Exten so 0 pinhal que iamos atrave ssando e muitoe spe s so e sombrio . O acampamento dos toiro s jafi cava para traz . De repente achamo -nos i nundadosde luz ' O contra ste e ra viol ento

,mas os nossos

o lhos t ive ram mais,para os de s lumbrar a l egremente

,

o maravi l hoso e encantador quadro , qu e al l i s e nosdefrontou .

E aqui n ão ha penn a que valha , só o pin ce l di

um

grande art i sta o poder ia reproduzi r . Estacamos todos

,na orl a do pi nha l ! E

"

qu e'

n aqu elle momentotodos se sent iram pre sos — tanta era a be l l eza doin e sperado espectaculo ! V i a -se

,aspi rava- se

,sent i a- se

a fr a g r a n c i a e a fre scura da s pa i z ag e n s m a t i n ae s !

Em frente de"

nós , para o fundo e'para os l ados

,

e stendia-s e um vive i ro cerrado de pinhe i rinhos,em

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CÁCA ILXS POR

toda a e fi lo r e sce n c ia e vigor da se ix a j uven i l . D e lgados

,fle x u o so s , e l egante s , com toda a pu j ança e

fre scor da mocidade , mas pequenos e ra ste i ro s ai nda ,fi cariam sepul tados na grande massa d o arvoredo q ueo s rodeava , se n ão fôs se a lu z d o so l, que , de scobrindo- se por c ima da copa d o pinhal

,de improvi so

o s i llum i n o u !

A manhã ia a inda n o se u c re sce r . Os raios sol are sobl íquos

,que prime iro lhe s tocaram n o a l to a s fi nas

agulhas,i am de sce ndo

,reve l ando-o s e colori ndo—o s .

Verde e oi ro a côr na caruma,verme lha e mai s v i

g o r o sa nos tronco s , mais c l a ra na s rugosidades , carregada e baca n o s planos in teriore s . P o r c ima e a o

l onge so br e sa i a—l he s a grande mancha ac inzentad a eindec i sa do p inhe i ra l , que segu i a .

A lu z continuava baixando ; a l a st rando-se sobre omassico do p l an ti o

,e,cre scendo com e l l a o mo vi

mento e o e ffe i t o das sua s c ambian te s,in a n t i n ha o

contra ste com a sombra .

Como se a terra qu i z e sse amparar , no seu cre sc imento

,a qu e lle s ve g e t a e s adol e s cente s , i n vo lv i am - l he s

o s troncos os fe to s e as e s t eva s,e n le i a n d o -o s , abra

cando—os , cob r i n do -o s e defendendo- os com as fi na sve r go n t e a s , com o seu recortado e e l egante fol hedo , tocado de ton s r o se o s , verde s e nacarados !E o sol

,Subindo , continuava a vari ar e a faze r

val er,ao s nossos o lhos . a s harmon ias do colori do

o s ton s e meios ton s d aqu e lle agre ste mas suav i ss imo quadro , que a natureza — a suprema arti sta compo z e r a , des enhara e e sculpi r

'

a,e que e l l e

— o divino decorador — nos vinha a l l i reve l ar,t i

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CAÇADAS P ORTUGUEZA S

rando-o das treva s , dando- l he a v ida , i l luminando -0

com a sua pal e ta de s lumbradora !No chão sombrio , a s e r vi n ha s sêca s

, o matto ra st e i r o , rude fr o u x e l dos campos , tosado pe los rebamhos

,reque imado pe lo s e s t io s

, completava , com amesc l a da sua morte -côr , a mol dura d a qu ella par ad i sía ca pa i z ag em ,

que tinha a o fundo,a massa

e scura do pinhal , e em cima , no a l to , o puro e frioazul do céu !Corr id as todas a s e sca l a s ch r oma t i ca s , chegara

ao seu termo a symphon ia da luz ! . Nenhuma ssombras re stavam — tudo i llum i n a doQuebrámos

,fi na lmente o encanto d

'

e sta magiadominadora . E mandamos entrar os cãe s n aqu e llej a rdim

,amostra

,vi são de parai so .

Era quas i uma p r o fa n acão !

A”

s u rp r e z a d o s a rti sta s s u cce d e u a su rp r ez a doscacadore s : o vive i ro d e pinhei ros parec i a tambemum v i v e iro de g alli n ho la s ! Estava chei o ! Nunca vitanta s

,reun ida s em

i

tão curto e spaco ! As qu e nãoencontramos em toda a manhã tinham- se recolhidon aqu e lle sombrio e de l i cioso bosque . E é pre ci soconfe ssar que tiveram bom gosto n a e scol ha— bomgosto e até j uizo , porque como defeza era optimo .

A o primei ro rebate , que os perdigue iro s l he s deram

,da nos sa chegada , fo i logo um l evan tar doi do ,

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CACADAS PORTUGUEZAS

Mas o pinhei ra l novo , o vive i ro , e s se nunca mai so e squec i . Ficou-me n o s olhos ; a inda o e stou vendo !

A nossa excursão do di a segui nte uma quartafe ira

,s e não me engano — e a ult ima

, fo i umm osaicode pa i z ag e n s : corremos vinha s , charneca s , e pin ha e s . E com o s te rrenos tambem va r ia r am

i

a s e s

pec i e s— ati ramos a co d o r n i z e s , t a r ambo la s

,perd i

z e s,l ebre s e g alli n ho la s .

Este s nome s,em rima , davam para uma quadra

— famosa se o nosso companhe iro e amigo BulhãoPato a fi ze sse — e ainda sobe j avam as l ebre s

,que

nas febre s de Benavente tinham um terrive l consoante ! Nos aprove i tamos tudo

,menos a quadra que

n ão s e fe z , e a s febre s , que tambem l a'

fi c aram . Epara despedida , e sta caçada fo i uma das me lhore s ,e d

i

e l l a r e i o nossol

amphi t ryão e amigo José Quare sma

,que na vol ta fo i e n thu s i a s t icame n t e pr o cla

mado e saudado , a mesa , com um eloquente impr ovi so de Bulhão Pato .

Começamos pe l a s l ebre s . Acompanhava-nos umcaçador da te rra

,que era n i sto pratico

,ex pe r im e n

tado . Conhec i a- l he s bem os habi tos,e de longe a s

lo b r i g ava na cama . Manue l Coutinho tambem tinhabom o lho para a s desencantar . E parece -me q u egostava mai s d e l l a s qu e d asg a lli n ho la s . A caca d i e sta s é mai s arti st ica

,a outra mai s co s i n he i r a .

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(J A F NUAS POR ]'UGUEZASSaimos mai s c edo da vi l l a

,e,ape sa r de i rmos a

caval lo , n ão t e n c io n avamo s corre l -a s : nenhum den ós com excepção de Bulhão Pato e Manue l C o ut inbo — era corredor de l ebre s . A s nove da manhãtinhamos nas saca s tre s sa l tadoras . Uma fo i mortaa minha vi sta .

Cam i n havamo s pe l a orl a d ªum pinha l,quando Ma

nue l Coutinho me fez s igna l de parar,e,apon tando

na d ire cção d i

um pinhe i ro,que fi c ava na frente de

Bulhão Pato,di ss e -me '

Vê ? A l l i e s ta uma na cama .

Eu olhe i , e n ada vi .

Não vê a s sim um vapo r z i n ho a o de c ima date rra ? i n si sti u e l l e .

Baixe i—me,para v er melhor ao rez d o chão , mas

debal de .

Vamos de vagar,e faça si gnal a o s r . Pato para

e l l e n ão avançar . E rode amos,para l he cortar a re

t i rada do pinha l .A s s im se fe z . Mai s perto é que eu percebi o ta l

nevoe i ro , que e l l e de l onge de scobri a . A l ebre com

o frio da manhã estava entorpec i da,e com pouca

vontade de abandonar o n inho . D eixou— n o s app r o x i

m a r a t i ro , e só então é que l evantou mas queria - s ede sfor 'rar da demora e sa lvar a pe l l e

,porque partiu

,

como uma ba la,

. em d i r eccão ao pi nhal . Na carre i r acega que l evava

,i a topar com Bulhão Pato .Demos— l he

um gri to,e ou por i s so o u porque o v i u

,

'he s i t o u,e

vol tava j á para fôr a , . qu a n d o fo i a l cançada pe l o t i roce rte i ro

,que e l l e l he di sparou . Uma cabrio l a n o ar

,

e

'

fi cou-s e : e stava morta . Era uma m a ca r ica . A s o u

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CACADA S P ORTUGUEZA S

t ra s duas ca íram aos ti ro s do nos so am igo Quare sma e de Manue l Coutinho .

O capít u lo das l ebre s na cama e stava fechado .

Pas samos as vinha s , e ah i a chamo s co d o r n i z e s

bastante s para dobrar , e at é trip l i car os ti ro s A s ce

pa s d e spa r r a d a s não a s defendiam , e e l l as eram prompta s no l evan tar . Uma boni ta caçada , que durouemqu a n t o t ivemos vinha a percorrer .

Continuam aqui a andar perdize s observouo guia , quando chegámos ao extremo , onde com ec ava a charn eca .

Poi s vamos a e l l a s di s s e o_nos so chefe . A i nda

que e l l a s aqui e stão no seu ca ste l lo .

E e ffe c t ivame n t e e stavam . Eram más de l evan tarmas de at irar

,porque j á corri a uma bri s a um nadi

nha forte , e mas de achar ou morta s ou fe ridaspe l a e spe s sura e forta l eza do e steva l .Aos cãe s che irava- l he s , mas as e s t eva s e as .s i l

v a s cast igav am - n —os,e e l l e s l argavam a todo o in s

tante o r astro,para procurarem melhor tr i lho

, e com

e sta s manobra s davam tempo as pe rdiz e s , que sei am refugian do no mai s ce rrado do ma t t a g a l. Mas naprimei ra inve stida , a entrada , a inda se a lca n ca r am

a l gumas .

Uma d 7e l l a s,um ti ro l argo do m e u am i go Qua

re sma c o r i o u - l he o vôo , ma s,feri da d

"aza

,ca iu no

matto,e la' fi cari a

,se e l l e n ão l he t iv e s s e marcado

bem a pancada , e se as fi na s“ venta s da sua P omba

não lhe tiv e ssem seguido,como a v i s ta , a peugada .

A charneca e r a dec l ive , e e l l a n ão corria . voava ,porque para aqu elle l ado a s e s t eva s i am rare ando .

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156 cx c x n x s P ORTUGUEZA S

baixa, qu e e ra um mau tir o . Vendo—me

,ob l iquou a

dire i ta,i ndo pas sar para a nossa retaguarda pe l a mi

nha e squerda , entre mim e Manoe l Coutinho . Cont i n u ava a se r um t i ro d i fli c i l e arri scado , porém eutinha-a j á na mira . Mas o meu compa n he i ro

,que

momentos ante s eu acabava de ve r , d e sappa r e ce1

Olhe i , por cima da espi n garda , para todos o s l ad o s . Nem sombras de Manoe l Coutinho Ea -

g alli n ho la i a voando , i nternando- se no p i nha l .E e u não a queri a pe rder

,nem chumba l-o a e l l e .

Eu não o v i a,mas e l l e devi a e star a pouco s passos

de mimO le itor imagina b em o s tran s e s d

º

aqu e lle s rap id o s momentos . Eu fôr a -me torcendo , girando sobremim , para acompanhar a ave . Fina lmente

,quando

a g a lli n ho la i a j á muito para traz de n os,completa

mente fór a da l inha dos cacadore s , at ire i - lhe . Eraquas i um ti ro perdido . A pe z a r d i s so a minha Sco t t ,e o chumbo , fi zeram a sua obrigação caiu re dondaE l l a no chão , e Manoe l Coutinho a sair detraz

d uma ma cho ca de pi nhei ros novos ! Encobriam—n —o

compl etamente,ma s

'

n ão o defenderiam ,se eu de s

fechas se n aqu e lla di recção . Quando e l l a pas sou al l i .é que estava a bom al cance

,e se eu aprove i ta sse

o en se jo — o que todos fariam, com raras ex ce

p ç õe s— o pob re Manoe l Coutinho seria um homem

morto , o u , pe lo menos , e stropeado ! A minha espi ngarda era nova e muito forte

,e o s cartuchos e sta

vam carregados por mim com po lvora i n gle z a echumbo n .

º 5! Uma carga de re spe ito !

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( IA C A I'A S P O R'

I'

UGUli ZA õ

Bravo ! Be l l o ti ro,e que e spi ngarda !

— Obrigado,Manoe l Coutinho . Mas o que n ós

ambos t ivemos fo i oração boa ! E' e x pliq u e i- l he o

ca so,para e l l e pe rcebe r bem a s minhas pa l avra s .

— De que eu , e scape i ! Como as veze s se podemandar uma pes soa para o s an j inho s ! Bo a o r a

cão ! Bom companhe i ro é que e u t iv e !Aqui o mais contente dos doi s fui eu . Eu é que

v i bem ,e sen t i o perigo que e l l e correu .

Com este epi sodio , que i a sen do tragico , termin aram e sta s cacada s em Benaven te . De tudo . eprinc ipa lmente dos exce l l en te s e amabi l í s s imos com

pa n he i r o s , que al l i encontre i , e dos qu ae s a lgun s j ásão mortos , con se rvo g rat í s s ima s recordaçõe s .

As duas horas da madrugada de -

1 4 de dezembro ,d e spe d i am o -nos

,Bulhão Pato e eu , d o nosso bom

amigo José Quare sma,que tão bi sa r r ame n t e n o s

recebera e hospedara,e nos ve iu acompanhar .

O tempo e stava se reno,mas o frio e ra cortante .

Duas horas da noite . No b arco da val l a havi a gros sose nce rados e fogare iros a cce so s , e n os v í nhamos re sguardados com encorpados g abõe s : eu traz i a muitoscasacos e grossa s me ias de campino , e pol a in a s decoi ro forte s e sapatos

'

de tre s sol l a s , e cobri ra—mecom a minha manta de A lmodovar , que pe sava comoo pe cca d o . Poi s bem , ape sar d o nosso gros so e

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1 58 c x c x n x s P o a'

r u o u ez x s

abundante equipamento,nunca sent i ta l fri o

,e ne s sa

noite memo r ave l fi quei fazendo idea perfe i ta da ve rdade d

e sta phra se : o fr i o cheg o u-me a o s o sso s

que,as veze s , a gente ouve , e que n o s parece exa

gerada ! Em vão me revolvi a e appr o x imava do fogar e i r o , e aconchegava a roupa so o c alor do so l damanhã e

'

que havi a de pôr te rmo ás horrorosa s dóre s , que sent i a em todo o corpo ! Finalmente e l l erompeu

,e acabou com o meu m a r tyr i o ! A be n co ad o

a stroTeve outr'ora 0 pinha l da Azambuj a terr ive l fama

pe los seus sa l teadore s . Os bandidos foram-se masainda lá fi cou aqu e lle l adrão do frio , que nos tortura e nos rouba o somno ! Con tra o s outros recorri am os medrosos as perna s d

'

um bom caval l o ,os val ente s aos canos da s sua s e spingarda s ; mascontra e ste he rde i ro dos antigos si car ios

,con tra o

frio,so nos pode va l er o sol !

E ainda ass im ha de se r , quando as nuven s n ãoe stive rem na o ppo s i cão

'

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ca ç a n a s P ORTUGUEZAS

Nenhuma repet ia “ o fu n cc io n a r i o , _ como o

e cho .

A not ici a e spal hou-se , chegou aos j o r n ae s , e dº

ahi

a dias os pe r i o d i co s de todas a s côr es ped iam isto ,a qu illo e aq u ell

'

o u t r o para o paiz e para e l l e s —'

e tam

bem polvora para os cacadore s .

D'

ahi a mai s di a s e ram at t e n d i do s , i n p a r t i bu s , e

o governo havi a . por bem concede r— l he s i s to , aqu illoe aqu e ll

i

o u t r o , mas'a re spe i to d e po lvo r a , nem uma

pa lavra — quero dizer,n em uma caixinha !

O caso pr i n c ipi ava s a in trigar-nos . D i rigimo-nos aodepos ito d e A l c antara , e pedimos polvora . Obtivemos a me sma l aconi ca re sposta

Não ha n enhuma .

Emprega'

mos todos os recursos da nos sa e lo qu e nc i a , desde a voz commov i da até as l agrima s , masforam bal dado s os nos sos e sfo r co s : '

n em D emo s the

ne s se r i a bem su cced i d o nesta empreza ! Não havian em um grão de polvora nos depositos do e stado !Saimos d

'

al l i t r i ste s e m edi tabundos, j a ama ld i

coando o monopol i o,

que nos privava da mate ri aprima de qu e prec i savamos , ja su spei tando vagam ente a exi s tenc i a de al guma temerosa con sp iração ,preparada de longa dafa , e que , para os seus tenebr o so s fi n s

,fos se

,a pouco e pouco , comprando toda

a polvora que appa r e c i a a' venda nos deposi tos da

fabri ca de Barcarena .

Recolhendo-n o s a casa desa l e ntados,achamos a

vi s i ta de um nosso vel ho amigo,caçador

,que vive

n o campo , n o s suburbios da capi ta l , e que nos deuo grande praze r de confi rmar con i a sua na *

r—a cão a

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CACADAS P OR'

l'

UGUlí ZA S

a ex i sten c ia da trama suspe i tada , que ho j e para n ose'

j á uma certeza .

Ha d ias , es tando e l l e a armar al gun s l aços paraapanhar un s' coe lhos , que lhe andavam na horta colhe n do a s tenra s prim íc ia s das sua s murci ana s

,e

j az endo tudo no mais profundo s i l enc io,s ent iu um

pequeno rumor por en tre a s l e i ra s do couva l . A mão

p r ompt a e stendeu— se para a e sp in garda , fi e l compan he i r a , mas parou no seu movimento , quando o caç a d o r ouviu um leve sus surro , como o d e voze s fãl ando mans inho , q u a s i em segredo . Poz-se a e scuta

,

e mbora não vi s se n inguem ,e su rpr ehe n d eu o se

g uinte d ialogo'

Então s empre foste— F u i .

E qu e .ta l—Bem . O mini stro recebeu-nos perfe itamente

, e

.

.a fli a n co—t e '

qu e temos o . negoc io re so lvi do. a

- nos sofavor , di s s e a segunda voz , com tom empha t íco eimportan te . Mas

,continuou ell a , ve j o que —te n s curio.

s íd ad e de saber como se pas sou tudo , o que lhe d i ssemo s , a re sposta d

i e l l e , e t c .

Sim , muita curios id ade ; todo e u sou ore lhas .Bem se vê. Tu não e stive ste nun ca em L isboaNão , n em

_ tenho vontade .

—' Compr ehe n d e- s e por um lado . p e lo da co

s inha . Mas nós e n t r amo s para a sa l a , e então cor-r eu . t u do ás mi l maravi lha s . q uan to a t r ave s—s e i ac idade com os meu s companheiros

, v i qu e e ramosa lli . muito e stimados e co n hec idos , e qu e , at é me smo

d epoi s d e mortos a i nda n o s procuravam ; chegandol

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1 6 2 CACADAS P ORTUGUEZA S

o in te re ss e que mostram os habi tante s , pe la s nos saspes soas

,ao ponto de darem muito bom din hei ro

pe lo s nossos ca d ave r e s , as veze s j á pôdr e s ! Vê látu aonde pode chegar a pa ixao Mas vamos ao caso .

F ômo s introduz i dos.

no sa l ão d e s . ex .

ª,o grande

min i stro da guerra , e sempre te di go qu e fi cámosum pouco encol hi dos quando e l l e

,l evantando os ol hos

d e c ima de un s pape i s,nos pergun tou qu e negocio

da publ i ca admini stração nos l evava a l l i— El l e falou n a pub l i ca admin i stração . Hum !

_ Fa lou,s im

,e nós , pequen inos . e com uma

vontade d e bater cane l l a , qu e nem tu imaginas ! Ma s

ca em baixo,a porta , e stava um malvado com uma

e spingarda . e então nós chegamo—nos un s parao s ' o u t r o s

,e o João Coe lho , que era ,um dos da

comm i s são,tomou a pal avra, e fez um magn ifi co

di scurso , que produz iu sobre o min i s tro grandee ffeít o , porque o vimos todos cruz ar pr ime iro a s

mãos,depoi s encostar—s e para t raz n a cade ira , d e

poi s fechar os olhos,e He ar a . pen sa r .

A pen sa r,ou a dormir ?

A dormir . I s so s im . Quem t em cui dados n aodorme . Á pensar — digo t o eu .

Então o João Coe lho fa lou bem ?Se fal ou ! A qu i llo , tu sabe s , e j á d e famí l ia ,

São todos e spertos . Vê l á tu,0 Latino , 0 qu e e stá

na Academ ia de Li sboa e qu e s abe t u do , , aín d a é .

parente dest e , . e'

o qu e e s creve no D i a r i o d e No t i

c i a s tambem; por i s so o que e l l e 'd i s se —fe z um '

e fªfe i

t a r rão ! E depois apre sento u—s e bem , i a bem . e n fa r

'

pellad o , e como el l e é da quin ta do nosso regedor ,

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1 64 CACADAS P ORTUGUEZAS

ain da tem'

umas pern a s magnifi ca s : tambem é defami l i a , e ahi

,no Ri ba-Te j o , não havi a quem lhe

g anhas se na carre i ra ! — Hoje ainda s e mexe bem .

Com a con sc ienc ia do seu meri to di scorreu l argamente sobre a conveni enc ia qu e haveri a em o g o.verno t e r a sua d i spo s i cão um i n dividuo como e l l e ,e fo i e sple n d i d o no momento em que , pintandocom viva s côr e s as grande s lu ct a s pol ít i cas , di s s e aomi n i stro « Chegado o momento sol emne em queo paiz t em de man ife star a sua op in i ão

,l ivre d e to

da s as co a cç õe s , como é proprio d 'um povo c iv i l is ado e l ib era l como o nosso , v . e x .

ªpode ter a cert ez a

'

d e que não trepidaremos deante da execuç ão dass uas orden s , e que g alopi n a r emo s — s im

, e x ce lle n t i s

s imo senhor, g a lop i n a r emo s p o r monte s e va l l e s , ad e spe i t o d e todos os obstaculos d i urna oppo s i ção ,

facciosa , ambicio sa do poder e ingrata,que não

quer reconhece r o s a l to s pensamentos do grande _m i

n i s t r o,que diri ge os negocios : da pub l ic a admin i s

t ração ! »A dmi r avel, é ve rdade . Esple n d i do ! C em vez e s

e sple n d i d o !

A cousa não fi cou aqui . O min i stro j a se mostrav

'

a bem d i sposto,mas n ão di s sera ainda nada po

s i t ivo . S aiu então di

um canto o Rapozo , e , adeant ando —se para o meio da sa l a

,com aqu elle ar qu e

nós lhe conhecemos,princ ipiou a fa l ar .

— A proposi to , ha mui to qu e e l l e n ão frequentacao s itio ! .

Bem se i . E l l e teve ahíuma questão com o guarda , por causa d iurnas g alli n ha s , qu e lhe d e sappa r e

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c x cx u x s P ORTUGUEZA S 1 65

ram . O guarda encontrou-o , peg a r am se,e o Rã

pozo ía apanhan do uma c arga de chumbo ! Mas olha,

mano Coe l ho , que e l le tem graça as pi lhas,i s so é

ve rdade . Sempre é um partid i sta ! El l e l argou umas

poucas de pi ada s ao min istro , mas tão encoberta sque quas i se n ão sent iam ! Falou—l he no seu . an te «

pas sado Rodrigo e na primei ra Regene ração,a gran

de , e de ta l mane i ra di scorreu que , sem fal ta r a ve rdade

,l ouvou uma época

,e deixou entrever uma cen

sura para a outra,i s to r e che i a d o de tanta s a n e cd o

ta s ch i s t o sa s e d e di tos tão p icante s,que o Barj ona ,

que e stava pres ente , r i a a bom ri r , e qu e r i a j á l evard

a l l i o Rapozo par a o Gremio !Findara a audi en cia . S . e x .

a l evantou- s e,affa g o u

o bigode,e , com o seu mai s magn ifi co sorri so , de s

pediu-n o s , dizendo—nos que fari a tudo o que nós , comtanta j u sti ça , ped íamos , e que fos semos em paz paraos nos sos campos . — E sub l i nhou e sta s ul t imas pal avra s .

Bravo ! Vou j a l evar a noti c i a a fami l i a . Adeus .Adeu s .

Os inter locutore s sumi ram—se por entre a s l e i ra s ,e o nos so am igo

,depoi s de os procurar em vão para

t e r ma is pormenore s,re t irou- se t ambem ,

r e capi t u

l ando o que e scutara, e parec endo- l he re so lv ida a

que stão , pe lo que acabara de ouvir .A s famíli a s dos Coe l hos

,Lebre s , P êg a s , R apo z o s ,

e provave lmente mai s a l gumas,t inham e l e i to uma

comm i ssão , que fôra a Li sboa procurar o sr . m in íst r o da guerra

,o ffe r e ce r - l he os seus serv iços pol i

t i cos , e pedir- lh e uma coi sa . .

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1 66 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

Ora este p edido,devi a ser da maxima importanc ia

para e l l a s , uma vez qu e os s eus mai s i l l u stre s r ep r ese n t a n t e s t i nham arrostado o s perigos d”uma grandevi agem ! . Era

,portanto

,uma questão d e vi da ou de

morte,cu j a re solução depen dia da vontade —do m i

n i s t r o .— Logo e r a a que stão da polvora .

E aqu i est á o motivo porque em vão a procuravam todos o s caçadore s !

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1 68 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

os p i t t o re sco s =l o s de core s garr idas, cur 'vam-se

sobre a s cepa s a e alliviam- l he s as for tesvara s do s d e r o s o s á m aduros c achos . Entrea V inha e o lagar cruzam-se os ce stos , u n s qu e vol

tam,e outros qu e vam — che ios , a t r e ssu a r e a g e

me r , como se a carga l he s pe sa sse .

A poe si a vem a l i ge i rar e s sas hora s de“

trabalho ,

Os cantare s ao de safi o , n a redondi lha penin sular ,tão fac i l e tão harmon iosa , entoado s pe l a vo z al ta eargentin a das rapari ga s , a qu e re spondem , em t om

mais grave,os mocos vindimadore s

,dam um singul ar

encanto a e sta scena,e transformam qua s i em a le

g r e fe sta , e,as veze s

,em poeti co torne io

,aque l la

dura fain a,se entre e l l e s se acha al guma cantadei ra

c e l ebre,ou o trave sso Cupido al l i vem armar o s

seu s a r r a ia e s , e di sparar os t e rr ívei s dardos contrae sse s agre ste s

,mas sen s ive i s co r ac õe s .

A l ém , na adega , o quadro é outro . A s grande s .

portas encarn adas,abertas de par em pa r , de ixam

ve r as r e n qu e s dobradas dos va stos ton ei s , de stacan do sobre a a lvura da s parede s a l ta s e nuas .

Os la g a r e i r o s , d e sca lco s e arregaçados , vam e vem ,

pr e o ccu pado s com o s trabalhos pr epa r a t o r i o s do fab r i co , e com o ar de

'

quem t em a con sci enc ia d a simportante s fu n cç õe s que exerce .

No meio d 'e l l e s o l avrador , com o s eu gros soj aquetão abotoado

,o chapéu sobre a ore lha , uma

vara na mão,atten de a tudo como um -genera l n o

calor da re frega : diri ge os trabalhos , di s tribue a s tar efa s , da ordens ao ca se i ro , e stimul a os pregui çosos , galhofa com as rapariga s ;e , re cordando-s e com

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c a ç a o x s P o n'

ru o u cz a s 1 69

a s'maís ve lha s d i

um pas sado saudoso , vê o pre sentea sorri r- l he n os amplos tone i s que e spe ram o espumoso l i cor , nos compradore s que vam afi i u i r

,e so

br e t u d o na a l egri a da s cr e a n ca s que o rodei am,e

d e n tre a s quae s se de stacam os rostos a n g elíco s eo s ol ha re s

,fag u e i r o s e che ios de prome s sa s , dos fi

l ho s do seu amor !

E rapida e sta phase da v ida agrícol a . CÁd i eu , p a

n i er s, . u en cla n g es so n t fa i t es — dizem os fr a n ce z e s . V inha s

,c e sto s e l agare s

,tudo vol ta a antiga quietação

e i sol amento,apenas acabam as vindimas . Ermam

se d e novo os campos , j á de spo j ado s da s suas ri queza s ; os bandos da s pe rdize s expatr i ada s tornam aser o s un icos hab itadore s d aqu elle s l ogare s , ain daha pouco tão che io s de bul ício

,e o canto do perd i

gão , re c l amando as t ímidas companhei ra s , é a un icavo z

,que a e spaços quebra o si l en cio dªaqu e lla s sol i

Esta .voz,que parece c l amar no de serto , e ou

vi da . Dl

e n t r e o s mattos e as pe n ed ia s re spondemlhe outras :

,e , sol tando o e s t r i d u lo e l argo vôo , e i s

a s foragida s outra ve z d e vol ta ao pa t río torrão , are conhe ce rem o s ít io

,e como que a tomarem de novo

pos se dos seus an tigo s domin ios .

E' sedentar i a a perdiz — não emigra como a poet i c a andor inha

,i a

,

sombri a g a lli n ho la , a e l egante e

e squ iva n a r ce j a . Act iva e vi go rosa,a formosa ga l l i

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1 70 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

macea ama a terra em qu e n as ceu : ah i v ive e ah i

morre .

Ei l -a , poi s , a percorre r em todas asdír e cço e s , pore ntre as rugosas cepa s

,os seus tri lhos conhec idos

e predi l e ctos . Os movimentos são rapidos ; aqui ea l l i va i colhen do , as b icadas e aos sal tos , os fructose squeci dos ou d e sp r e sad o s pe l a mão do homem . Sãoe s se s fructos

,é a uva

,quem dá a sua carn e o del i

c ioso perfume , tão grato ao pal adar , e q u e tanto ad i stingue das sua s irmas da charneca

,menos favo

r e cida s da fortuna .

Paz ephemera , fortuna pouco d u r a d o ír a , é e s s a !Gosa a l ib erdade e os seus encantos , in te re s santeave : de spede—t e d e ss a s vinhas , tão banhadas pelosol creador — dos abrigos e nsombrados , qu e tu procurava s para a s sés t a s do e st io da fonte e scondida

,

rumorosa e sempre fre sca do val l e,onde t e desse

dentava s — d e tudo i s so , qu e e r a t eu,e qu e domi

navas do a l to dos montes , ca st e llo s roque i ro s , qu ej u l gava s i n a cce ss iveís ! D i z adeus a tudo e foge ! Osteus d i a s e stão contados .

Neste t he a t r o , onde ha pouco se repre se ntava uma

bu co li ca v i r g i li a n a , toda“

r e sce n d e n t e dos suave s e

penetrante s aromas do campo,vam entrar novos—pe r

so n a g e n s , su cce d e r-se .nova s scenas , e tu serás a vi

ct ima e scolhi da da nova e fatal t ragedi a Quem vem

acordar agora o s e chos dos montes e an imar e sta

pa i z ag em , não é o côr o a legre dos campo n e z e srui doso mas pac ífi co hymn o do trabalho e do amor— é o e strondear da fuz i l ari a

,os l ati dos das mati

l has , os gri tos dos cacadore s !

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1 72 CACADAS PORTUGUEZAS

i nve stiam com o portão , como se O'

qu i z e ssem levard e a s sa l to, » ora pu l avam em v ol ta dos do nos , . l ad r a n d o , como , para o s despertar d

i

aqu ella aborreci da immobi li d a d e .

Eram esse s be l los a n ima e s,quasi todos

, p o i n t er s

i n g le z e s então ai nda pouco conhec idos em Portugal . P e r n a lt o s , e l egante s e ardent e s , t inham o cr a n eoarredondado e proemin ente

,olhos grande s

,che ios

d e fogo , ven ta s largas e humidas,a bôca '

sêca , o

pei to vasto , r i n s forte s e arqueados como os d ogal go , a cauda fi n a e curta

,a s patas pequenas e

n ervosa s,toda a muscu latura de senvolvida

, e de senhando—se vigorosamente debaixo da pe l agem , fi n i ss ima e rara .

Raça n d alg a e exoti ca,producto do ho u n d e d o

navarro he spa n ho l— o ld spa n i sh d og denun c iavamnas qual i dade s a sua dupl a origem .

Esbe l tos , rap idos nos movimentos , d i s t a n ce a n do -se

do caçador,e exp lorando em c inco minutos uma

are a em que outro perdigueiro gastar i a me ia hora ,e ste s cãe s t inham 'herdado a ce l eri dade do gal go corredor , o antigo companhe i ro , o lebr éu dos ri cossenhore s do s t empos fe u d a e s , porém no t i r a r a

'

ven

t o s a caça , fa zen d o -a a di stanc ia s prodigiosa s , n a

certeza da s mostras,na fi rmeza do parar

,mostra

vam possui r a s sol i das qua l i dade s do antigo perd i

gu eír o navarro , qu e em nada t inham desmerec idocom o cruzamento

,ante s pareciam t e r requintado

nas suas pe r fe i co e s .

Estava- se então n o mais acce so da bata lha ent reos antigos e os modern os . Uns , os ve lhos amadore s ,

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CAÇADAS P ORTUGUEZA S 1 73

j uravam a inda pe lo navarro , os novos e ram todospe lo p o i n t er . Q u a n t o s . d u e llo s , quan ta s V i c tor ia s ,quanta s derrota s '

: O p o i n t er , aventure i ro de sconhecido , invadira apen in su l a

,pe l a prime ira ve z :

,n aªcom i t iva dos o fli c ia e s

i n g le z e s de Bere sford e de W e l l e s l ey , e i llu s t r o u - s ecom a l tos ' fe i to s n a s pla n íc i e s e enco sta s d e Torre sVedra s ! Se não traz i a e spada , e l l e proprio e ra umae spada , tão fi e x ível e bri lhante com o uma folha d eToledo , e o seu nariz podia competir em a l cance e

ce rteza com os mai s de stro s e expe rimentados r iflesdos fuzi l e iro s e sco ce z e s de Spence r e d e P i cton !Como um meteoro e ste be l lo e ve l oz exp l orador

“pas sou —

e d e sappa r e ce u , mas não fi cou e sque c ido“

n a memoria dos nos sos cacadore s ; e al guns , maisi nte l l igente s

,procuraram conse rvar nos seus can i s

uma parc e l l a do sangue genero so , qu e i anto os mar avi lha r a .

Tempo depoi s,n a epocha da nos sa h i stori a

,tor

nam a appa r e ce r e ste s heroe s no campo das sua s

p roezas , e ah i travam renhi da pe l e j a com os r e .

ª

pr e se n t a n t es d o pa ssado , qu e e l l e s pre tendiam .d e s

t hr o n a r . O ve lho e sp iri to nac iona l o ppo z —lhe s o n a

y a r r o , cão d e porte severo e mag e s t o so , e spa d au d o

e possante , mas vagaroso e demorado nos mov ime n

tos — an imal d i s t i n c t o pe l a s lon gas ore l ha s , qu e a u

gme n t avam as avantaj adas dimen soe s da sua enormec abeça . Grave e comedi do , digno d e fi gurar n asc açadas dos nobre s e de sembargadore s do tempod

'e lre i D . Jos é e de D . Mari a I , havi a entre e l l e e

o cão ingl ez a mesma d iffe r en ça qu e entre um po e

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[ 74 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

ma d e Garre tt e uma o d e d e Anton io Din iz — ummundo !A caçada qu e tentamos de screver , fo i mai s um

epi sodio d 'e ss a longa c ampanha , mais um l ance doencarn içado due l lo entre a s duas raças

, qu e só d ev i a te rminar pe l a derrota e compl eta a n n i qu i la ção

dos fi e i s companhe i ro s dos nossos avós . Hoj e o n ava r r o portugu ez perte nce a hi stori a .

Requ i esca t i n

p a ce .

O e stampido seco dos fo g acho s a n n u n c i a ra a u lt ima scena d e s se prime iro acto , preparator io obr igado d e toda s as ant igas cacadas . O portão d e fe rro

, qu e , dava i ngre sso para o pateo , abriu -s e d e parem par

, e tod a a cohorte venator ia gol fou impetuosapara o campo , e e st endeu- se l ogo em l inha d e atir ad o r e s , com um garbo e fi rmeza verdade iramentema r c i a e s .

Detraz d '

e lle s o u vi u -se outra vez o ranger d o sgonzos

,e o som d o s fechos , qu e Jos é Domingos , o

ve l ho case iro , corri a l entamente , ao mesmo tempo

qu e ia seguindo com os olhos pa smados a a la d o s

bri l hante s caçadore s .' José Domingos

,o t io Domingos

,como lhe cha

mavam no s iti o,t i nha v i sto mui ta co i sa n a sua longa

vi da de g uarda d e vinhas e d e ca se i ro d'

aqu ella quintamas cu r i o so s a s s im é que e l l e nunca v ira . O bomdo homem “ e stava boquiaberto no pateo , quando

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CACADAS P ORTUGUEZAS

São al guns principes“ encobertos — re spondeu oco s i n he i r o ,

que e stava sempre em o ppo s i ção com os e u i n te rlocutor , ape sa r , ou por causa , d

ªuma s frie

cõe s de marme l e iro , que o guarda lhe appli ca r a certodia em qu e e l l e se e x ce d e r a .

- Eu se i l á s e são , ou de ixam de se r . O ques e i , e o qu e você não pode negar , n em n inguem , éa mane i ra porque cá o patrão os trata — e que égente muito r i c a tambem é certo . Basta o lhar -parae l l e s . Eu cá n ão sou como certa s pe ssoa s : sempregoste i de vêr homen s que s abem empregar o seudinhei ro . Sem fazer offensa a n inguem

, cá nos s i t iosn inguem se apre se nta a ss im . El l e s

,hontem a ce ia ,

Joanna — continuou o case i ro,vol tando—se para um

canto da casa — olha qu e não fa l aram senão de —é s

p i n ga r d a s i n gle z a s d e quarenta moedas , de se tentamoedas ! Eu se i Tambem

,e l l e é verdade ,

quando a gente v ê ass im uma coi sa mais fi naa inda que mal pare ça

,e u s empre digo — ha de ser

extrange i ra . El l e,d'ante s , tambem cá se faz iam ri cas

armas : e u,quando e st ive em Salvate rra , l á as v i .

Eram do sr . D . Mi g u eh Q u e riqueza d i

e sp i n g a r d a s ,

e como aqu i llo punha , santo D eus ! Era como se agen te po z e sse o chumbo com a mão !Falando e ge sti cu l ando

,o tio Domingos fôr a-se

chegando para a chamin é , e pegando num t i cão

accendera o c igarro , depoi s , s i l en cioso , pr inc ip ioucom o pau tostado a faz er pontos negros n a paredecaiada de fre sco .

— Ahi e s t á você a su j ar-me a parede — voci ferou ,fora de s i

,o Va t e l se rtane j o .

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CACADAS P ORTUGUEZA S [ 77

Não é por sua conta — re spondeu se ren amenteD omingos . Olhe

,

!

e ra ass im juntinho,que a s e spin

g a rda s de S a lvate rra punham o chumbo .

— Ora e sta ! P ara que havia agora de lhe dar !“

r e smungou me stre Anton io . Se o patrão vê aqu i llo

v a e ahí tudo pe lo s are s ! Vol ta—se contra m im , e e ué que tenho de o ouvir ! — E

,vi rando-s e para o t i o

D omingos , que o olhava de sos l a io e se l embrava dom arme l e i ro , continuou : Leve o diabo as e spi n ga r

d a s ! Você diz que cu stam quarenta moedas ! Entãoé um pre d io de ca sa s , qu e cada um d e sse s homen sleva as costa s J á é ma n i a ! São cinco . A quaren ta“moedas — faz duzentas moedas . Duzenta s ! E acha

q u e é bem empregado tanto dinhei ro ?! Hei n ! Pois»e u n ão digo o mesmo . A qu illo faz i a a sua fortuna»ou a e a e l l e s de qu e l he s se rve ? Para,a ndarem por ahi aos ti ro s as perdiz e s e aos coe lhos ?

Para i sso qua lquer cha n fa lho ve lho se rv e — e me s

t r e Anton io , che io d e avarez a e di

i n ve j a , apon tava ,c om o l abio in fer ior de sdenhosamente de sca ído ,

'

p a ra a ve l ha ca cad e i r a do ca sei ro , encostada a umcanto .

— A qu illo , s r . Domingos , às veze s é a perd icão d

'

um homem . Olhe qu e é .

Je sus ! Credo ! Você sempre tem coi sas , sr . Ant on io ! Não diga ta l : nem pen sar n i s so é bom ! Longevá o s eu agoiro ! Umas pe ssoa s tão hon radas e boa sc omo Deus o s l ivre ! Amen .

A vo z do l en te e can ca d a da t i a Joanna , qu e rom

p e ra o si l e nc io , provocada pe l a s s in i stra s refl exõe sd o co s i n he i r o , ba ixou logo de tom ,

e continuou quasis um ida a s sua s reza s , marcadas pe l a s contas e scu

1 2.

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1 78 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

ras e po l i da s dl

um ve lho rosario, qu e lhe passavam

vagarosas por entre os dedo s ve rme lhos , os sudos el ust rosos , curtidos pe l a s geadas d e se ss en ta i nvern o s ,

Ninguem rep l i cou a ve lha c ase i ra, e tudo recaiu

no mai s profundo s i l e ncio . Apenas se ouv i a o cr e

p itar d o s ramos verde s, qu e s e torci am e que imavam

na l are i ra .

O t i o Domingos pegou num podão, so br a co u a

e spingarda,e s aiu em direcção da v inha

,can taro

l ando uma cantiga .

Mestre Anton io,depoi s de at içar o lume , mett i

das as mãos,nos bol sos das ca l ç as

,âco u quedo ,

encostado ã hombr e i r a da chaminé , e pare c ia , pe lovago do

olhar e pe l a comple ta immo bi li d ad e do vul to ,achar—se ta lvez entregue a profundas cogitaçõe s sobrea in j ustiça da fortuna

,que a uns dava riquez as fabu

losas, e co n d em n ava outros , como el l e , a eterna

manipul ação do perú r eche i ado e d o pa io com ervil has

,numa co s i n ha provinc iana !

Os terrenos,em qu e s e faz i a a caçada , eram do

brados e trabalhosos ; a s cepas a l tas , a s va r a s fo rt íss ima s

,o chão r evo lt o ,

'

o torr ão duro como p edra .

Para todos os l ados só s e viam col l in a s , monte s eencostas cobertas de vinha

,e apenas , d e l onge em

l onge,

uma'

pequ e n a chapada , reve st ida' de matto ,

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1 80 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

Muito ob rigado , es tavam perto : ass im fossem

João d e Betten court — o doutor —

qu e dir igia acaçada , por se r dos ma i s pr a t i co s nos sít i o s , e r a umhomem entre tr inta e se i s a quarenta a n n o s , de é statura median a é reforçado

,m a s enxuto d e carne s ;

uma barba pre ta e a s s e t i n a d a emmo ldu r ava —l he orosto trigue i ro

,e o -bigode farto , mas cortado nas

ponta s,a moda da epocha

,sombreava- lh e a bôca

fi na e bem í fechad a , i n díc i o d e grande fi rmeza : oso lhos pretos e vivos eram che ios d e vivaci dade e energi a . Vesti a e l egantemente uma ca cad e i r a c l ara combotõe s d e meta l , um col ete dire i to , ca l çõe s d e ve

l udo côr d e vinho e grande s botas , qu e lhe de senhavam as perna s

, bem torneadas e musculosas . Traz iaum chapeu d e castor a lva d i o . Um dup lo chumbeír o

e um po lvõ r i n li o d e s eguranca ornavam-lhe a c inturae neste momento acabava d e e sco r va r a magn ífi cae spingarda d e doi s t i ros , em cu j a fi ta s e l i a o nomece l ebre d e J o seph Ma n t o n

,d e Londre s .

F ôr a e ste, d e todos os hosped e s do s eu patrão , o

qu e mais a t t r ahi r a a s a t t e n ço e s e o olhar ex pe r ime n

tado do nosso t io Domingos . Não lhe er a extranhaaque l l a fi gura . Avivando recordações , l embrava—s e d et e r vi sto o doutor em Salvaterra , qu e foi ant igamente ,no tempo das coutadas réac s , uma especi e d e academia

,o n de se formaram os mais afamados caçado

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CAÇADAS P ORTUGUEZAS 1 8 1

re s . Effe ct ívame n t e o doutor,ao vol ta r de Coimbra

,

frequentara,no i nverno . Sa lvate rra e Benavente , e

conqu is tara os seus prime iros lo i ro s , matando ga l in ho la s na Coutada ve lha e nas Se smaria s de SuaA l tez a .

João d e Bettencourt era um dos mai s afamadosat i radore s do s eu tempo , e n ão hav ia reunião d esp o r tsmen em que não s e narra ssem as a dm i r aveísproeza s dos seus Cãe s e da sua e spingarda

,sa ída da s

o fii c i n a s do grande arcabuze iro ingl ez . A s sua s opin iõe s em materi a de caça , e ram um evange lho ; osseus t i ros reputavam—se ín fa llive i s ; a admi s são naroda qu e e l l e p re s id ia equ iva l i a a um t itulo honorifi co ; caçar n a sua companhi a e r a favor a poucoscon ced ido ; s e r e logiado por e l l e , -no syn hed r i o

'

em

que se reun iam os mestre s , a inda e r a ma i s raro ; e ,sobre tudo , o mai s d ifli c il de a l cançar , o qu e os n eo

phi t o s con s ideravam como a maxima honra , e r a. sepre senteado por e l l e com um cão da sua apu r a u iss ima raca .

I sto corre spondia a uma'med alha d e hon ra , no

exerc ito dos caçadore s !O doutor mandava matar todo s os fi l hos da s suas

pe r dígu eír a s ; re servando apena s al gum para s i oupara um ami go muito i n t imo . Não era i sto avareza

,

e r a amor a pureza da raça , qu e e l l e nao qu e r i a vêr

abastardada por caçadores menos escrupulosos .Um dia

,s abendo qu e um dos seu s creados nao

executara ri gorosamente a s sua s orden s e ven deraum cachor ro , chamou-o ao seu quarto

,tosou-o ,

'

e

despediu-o !

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CACA'DAS PORTUCUEZAS»

Carre gada a e sp ingarda , to dos o s cacadore s re tomaram os s eus logare s , e a al a avançou , s i l en cios a el entamente

,pe l a encosta .

Os p o i n t er s brancos , malhados , uns d e preto , o utro s d e ca stanho ou ama r ello , das raças de m aiornomeada então , fr a n cez e s de S a in t-Germain , ou i n

gle z e s , rapi dos n a busca,s eguros nasmostras , eram oqu e nós chamamos , esp a d a s de primei ra ordem .

Na frente do doutor t raba lhavam admirave lmentedoi s soberbos perdigue iros brancos e castanhos

,e

e l l e s eguia-os , attento aos seus movimentos , qu e den u n c i avam

'

caça j á proxima . Aos prime iros r ep a r o sd

'

um d'e l l e s correra o outro e co nfi rma r a -o s s e

g u i ram-se a s mo st r a s, e d e f a d a em j i a d a , at é qu e

chegaram a p a r a d a fi rme : a perdiz t inha fer r a d o .

Os -cãe s parec iam du as r ochas .

— Está a D i an a — di s se o doutor ao s eu compan he i r o da dire it a . Quer—lhe at i rar ?

Muito obrigado,mas parece-me qu e j á se p a s

so u e e s t á'

ao cão .

— Não,rep l i cou o doutor ,

ha d e sa l tar a cad ellae l l a p ár a ma i s longe , co r r em—lhe mais os ventos .

En tra,D i an a

A ca d ella d eu a p an cada , e . a perdiz l evantou—s e ;Ouviu-se um tiro , e a ave , que tomara para a e s

q u e r d a , sub iu a “prumo e foi ca ir dentro d iurn aqu inta , conheci da por se r o couto das perdize s d

'aque lle s arre dore s .

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1 84 CAÇADA S P ORTUGUEZAS

Foram as prime ira s pal avra s que e l l e d ir igiu ao

doutor .João d e Bettencourt , -mediu o homem, e viu im

mediatamente que tinha deante d e s i um d estesguarda s do campo , ás veze s as sa s s inos façanhud

'

os,

qu e al gun s propr ie tarios r u r aes e ncar regam da d efeza das suas quinta s e herdades

,sem se l embra

r em do odioso que i s so acarreta sobre e l l e s,e d o s .

grande s pre ju ízos e pe r igos , qu e d'

ahí l he s podemadvi r .

— Sou um cacador , e venho bu scar uma perdiz, ,

qu e ca iu morta n aqu ella vinha — repl i cou o doutor,.

como se não t ive s se reparado n a s palavra s e no t om!

i n so l en t i s s imo do case i ro .

Qual perdiz,n em qua l d i abo ! Você n ão me em

baca a mim ! O'

qu e você quer é cacar a s perdizesaqui da qui nta

, e e ntão vem dei tar—me lôa s , a ve r“

se

eu ca io . Olhe , i s so e r a bom no tempo do o u t r º“

para cá n ão pega .— Rua !

— Já lhe di sse o qu e dev i a dize r . A perdiz e st aal l i morta

, e eu não saio da qu i s em e l l a . Foi parai s so que vim cá, entenda vo ceme cê — repl icoudoutor , apparen tando uma grande sere n idade .

“ E

principiou a camin har para o logar qu e apontar a .

Debaixo dos pé s se l evantam os traba lhos, d iz O»

po vo , e é verdade . A re solução do dou to r e stavatomada : havi a de sa ir d

i

alli com a perdiz , cu sta sse .

o qu e custas se . Er a sua , t inha con sc ienci a do seu

dire i to, e pe l a primeira vez l h'o negavam com um

modo tão insolente . Estava costumado a se r r e spe itado em toda a pa r t e

, e nao e r a - homem qu e se d e i

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CAÇADAS P o ar u cu sz x s 1 85

x a sse enxova lhar impunemente : n ão ser ia aqu elle

víllão quem o faria recuar .O guarda

,vendo o mov imen to do caçador , rosnou

uma praga , e atrave s sou- se,voci fe rando , na frente

do se u

'

contendor .Saia j á da qu i pa ra fora

,seu a lma do diabo !

Você , cãe s e tudo — e depre s sa , que j á 0 nao ve j o !E o rosto negro do ca se iro t inha uma expre ssão

d e fe roc idade best i a l , os olhos in j e ctados parec iamquerer s a ir- l h e da s orb i ta s

,a voz tremia—l he e os g e s

tos eram fur iosos ! Sa e , ou não sa e ? — rug iu e l l e ,chegando , com os punhos cerrados , quas i a tocar n ae sp ingarda do doutor .

Não sa io da qu i sem a perdiz , e , se nao que r

qu e e u entre n a v inha , leve os cãe s , e vá-m'

a buscar . Se não , vou e u .

— Va e ?! d i s se e l l e , como admi rado d'uma ta l au

dacia , e com um sorri so te rr ive l .Vou , e j á— re spondeu o doutor

,dando l ogo um

pas so avante .

Espere , qu e eu j á l h'a dou — e diz en do i s to o

gu arda corr eu a ca sa . O doutor s egu iu—o , mas poucos passos t inha dado , no pequeno terre iro qu e ade fron tava , qu e j á o homem estava d e vol ta , com umafoice r o cad o i r a , e a r r eme t tía contra e l l e , a t i r a n dOe lhe

e sta s pa l avra sTome l á aperdiz acompanhada s d'um golpe

temeroso á cabeça — uma pancada redonda — comolhe chamam no jogo do pau , e qu e dada com uma

foi ce é sempre morta l .João d e Be t t encou rt conhecia todos os segr edos

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11 86 CAçADA s P ORTUGUEZAS

d aqu e lle jogo . Nas suas vi s i ta s a Sa lvaterra fr equ e nt ara os melhore s j ogadore s do Riba—T e j o

,ape r fe i

ç o a r a-s e em Lisboa

,na e s col a do ce l ebre José Maria

,

nos logare s por onde pas sara t i n ha'

d e i

_x ado recordaçõe s da força do se u braço , da sua dest reza e agi l i dade . D eu um salt o a retaguarda

,e a foice

p assou—lhe , como um relampago, deante dos o lhos .

Cre sceu - o outro sobre e l l e , e at irou -lhe o segundo

g olp e tambem a t r ave ssad o, , que n ão

'

o al cançou,e ao

t er ce i ro , d e ponta , o doutor , furtando o corpo , d e sfe

O estrondo do ti ro confundiu-s e com um grito«o malvado caiu . Estava morto !

A s sim , o qu i z e s t e — dis se o doutor,encarando

cadaver , qu e lhe j az 1a a o s pés , e carregando a é s

(p i n g a r d a .

Depoi s,com . a phys i o n om i a co n t r ah id a pe l a im

p re s são da t r a g e d i a , _d_

e qu e a sua ma' fortuna o fi z e r a

p rotagoni s ta , olhou em vol ta de Sl . Não hav ia n i n

g uem . Deante d 'e l l e e stava só a fi e l D i ana com uma

p erd iz n a bôca .

O pobre a n imal,ouv indo o tiro , entrara n a vinha ,

«c i—'d e lá ,

t r o u x e r a a causa innocente da qu e lla tri stea ventura

Dá cá,D i an a — d is s e 'o caçador

,vol tando-lhe as

c osta s , e , pegando na perdiz , r ela n ce o u os olhos ac asa sol i taria do guarda , s eguiu -pel a r u a l arga da

(1 ) J o sé Ma r i a d a Si l ve i r a — 0 Sa lo i o , ape sa r d a alcu n ha

n ão o e r a, po r qu e n a sceu em Li sbo a , n a ca lçad a d a Gr aça .

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1 88 CAçA DA s P ORTUGUEZAS

do bronze chr i s tão , chamando os h ei s á o r acão d a

tarde,perdeu-se l e ntamente n a a tmo sphe r a tr iste

dos campos abandonados !No di a segui nte e spalhou-se no sít i o a noti ci a d e

t er s ido encontrado morto com um tiro o Migue lMaltez

,case iro da quinta

,e tempos depo is o tio Do

mingos , que sab ia tudo , contava n a co s i n ha aos trabalha do r e s , reun i dos em vol ta da l are ira

,a h ist or ia

da pe rdiz e do p er d igão .

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lNHA-ME, n a vé spe ra , di to o nos so hospede iro ebom am igo, Ulpi o da Ve iga , qu e ir íamos as perdize s , e te r iamos para guia 0 Anton io P i a s .

Com e ffe i t o , ao romper da manhã — uma formosamanhã dos pr inc íp ios d e s etembro d e l 87o

— punhamo—nos a caminho

,e i amos bater a porta do rustico

c açador .Um casebre grande d e pedra quas i e n so ssa , com

u ma , cobertura d e te l ha vã, e outro egual , co n t íg u o ,p ara o gado e uten s í l io s agri col a s . Na frente da cas aum g rande terre iro — a e ira .

O modesto casa l as sentava numa pequen a chapad a , na enco s ta d

'

um terreno d e v inha — a s famosa sv inhas da Arruda — bom couto d e pe r diz e s , ondeé dífli c i l ba te l-as e ç a —çal

—as , tam dob rado é o chao ,t am a l ta s e val ente s são a s varas do V inhe do !A fam í l i a d o rm i a ainda . Procurava eu com os

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[ 90 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

ol hos a . porta,quando um do s - companheiros apon

tou para um grande buraco n a parede , uma espec ied e j ane l l a

,que o tempo al l i t inha .aberto

,e por qn d e :

entrava o ar e a l i t z . Espre ite i para dentro . Ehe'

o s

tada a parede e s tava uma cama e stendi a mão e toquei num hombro . O homem acordou : e r a 0 A n

ton io,um dos fi l hos do ve lho Pias .

D'ahi a nadinha

,a D i a n a ,

uma D i ana muito fe iae de sengraçada de formas

,ma s muito me lhor cac a

dora do qu e outras D i anas de m a i s a l tos e e le

gante s co thu r n o s , ve iu compr ime n t a r -nos , a nós , eaos seu s i rmãos do mesmo pêlo

, qu e do a l to da ssuas bri lhante s co lle i r a s olhavam de sdenhosamente .

para a ve lha perdigue i ra .

Dm instante depois appa r e ce r am-n o s'

o s —d o i s i rmão s

homens de — trin ta a“

quaren ta a n n o s , fe ios , cara s.angulo sa s — de barre te s n a mão . P hys i o n om i a s ín

genu as , humi l de s e boa sEntão os senhore s querem caçar ? perguntou :

um d'e l l e s .

— Queremos,s im .

l— E7

qu e nós a inda não di s semos“

n ada aoUns r apaze s de d ez a n n o s

'

dos bem . e ducado s ,j á se vê

,o qu e princ ip ia a se r raro não pr o n u n

cía r i am aque l l a s pal avras com o -tom d e d e safi'

ect ad o

re spe ito com que e l l es as di s seram !Estavamos em

'

frente da porta . O .pae appr o x i

mou—se . Era um ve lho — uma c abeca fi na , rosado ,de fe içõe s co r r e ct i s s ima s , olhos br i l hante s , nariz aqu íl ino

,cabe l l o ane l ado

,branco como a neve . Tinha oi

tenta a n n o s fe itos , mas ninguem o di r i a , tam a pr u

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l92 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

A ave , com e ffe i t o , depo is do e s t r eme ção qu e

dera ao re ceber o t iro , s egu ira com o me smo v igor ,e ba ixou a g rande d is tanc ia d e nós , como se nãofoss e tocada .

No emt a n t o o Pias , qu e se afas tara , achava do i scoe lhos e uma perd iz

,n a sua vol ta , e traz ia -os j á a

c inta,todo ufano , n ão d e s i , mas da sua e spi n g a r

da — uma caçadei ra b ri l hante como prata,j á com

um malbete d e e stanho num dos canos,atte stando

não a ex celle n c i a do t o r cha d o , mas a ímpr evi d e n c i ae a ignoranc i a do homem , qu e traz i a n as mãos ta linimigo !

— É certa para a caça — d i s se-me e l l e , acar ic i ando a e scopêt a , quando eu lhe gabava a de st reza .

'

— E certa para a caça , é , e i n certa para vocêobserve i e u , apontando para o malbe te , a ccu sad o rd lum acc idente .

I sto não foi nada . At é fi cou mai s forte ! Poraqui não torna e l l a a rebentar . Aqu í onde e stá

,cus

tou-me doze mi l r é i s . A gente é pobr e s i n ha , o senhor bem vê. E de sgraças a todos acon tecem . Emfi m,

andamos todo s a mercê d e Deus .

Ignoran t e s e pobre s,

. exte nuados d o trabalho ma l

c om idos , mal dorm idos , e ste s homen s são maisfe l ize s do qu e mui tos de nós . Teem as mesmas

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(SACADAS P ORTUGUEZAS 1 93

a l egri a s e a s me smas tri s teza s,mas aque l l a s mai s

i nten sas,mai s d e spr e o ccu pa d a s , mai s n a t u r a e s z

,e

t eem,sobre tudo i sto

,uma coi sa

,que n ós j á n ão

t emos,um sentimento que e l l e s n ão a n a lys am ,

e quen em podem di scuti r , nem j usti fi ca r — a crença i naba lavel e ab soluta n a i n t e r ve n cão con stante da P r ovíd e n ci a — Para e l l e s o bem é sempre um premio

,

e o ma l um castigo .

São mai s fe l iz e s,são .

Quando encontro al guma d e sta s a lmas,s inge l a s

e cre nte s , nunca m e vem ao e sp íri to o perturbar— l hea se ren idade , l evanta r a mai s l eve ruga , l anca r amai s pequena nuvem sobre a superfi cie d 'e sse l ago

,

que só r efi ec t e o azu l e as e stre l l a s do cé u ! .

Que lhe dari a eu em troca da sua fé,que o faz

e ncarar a morte como uma i n t r o d u cção á D iv i n aPre sen ça

,á vida e tern a ? A s minhas duvidas Nada

mai s . O roubado,o e spol i ado seri a e l l e , e o que

lucrari a eu com i s so ? -Tanto ma is que a s minha ssombras

,la n ca d a s ne s se e spiri to de sarmado , tornar

s e —l h e- i am l ogo em treva s !

— Mas,

Antonio,continue i eu — a sua e sp in

garda n ão curs a tanto como a minha .

Lá i sso,com perdão do senhor , cursa e l l a .

Ora vamos vêr .

Tinhamos fe ito a l to a' sombra d'

um moinho Sa iu

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I CAÇADAS P ORTUGUEZAS

um (D i a r i o d e No t i c i a s de dentro da saca d'

umde nós

, e d ivi dido ao me io . pregadas as duas me i a sfolha s com doi s pau s i t o s aguçados n a parede domoinho

,servi ram-nos d i

a lvo . Medimos c incoentapassos , e di spara'mos . A minha esp ingarda crivouo pape l

,a d i e l l e metten um bago aqui

,outro acol á !

Pias v i a , e não queri a acreditar nos seus o lho s .

O ar vi ctorio so que e l l e t inha,quando

,depoi s d e

at irarmos,cam inhou para o j orn al

,tornou-s e -lhe na

expre s são tri st e dos ven ci dos . Uma i llu são de me

nos ! Pobre An ton io !P oi s s im , senhor — diz ia e l l e

,sen tan do -se numa

pedra,e cruzando a sua companhe ira sobre o s j o e

l ho s . Vencida esta e l l a por e s sa fi dalga,porque o

dinhe i ro sempre mostra o que é,mas aqui por e s

t e s arredore s não appa r e ce u ainda quem a bate s se .

S ão a s mãos do dono,que a fazem va le r An

Não,s enhor

,desculpe a sua pal avra honrada ,

n ão,s enhor é que canos como este s

,não queri a

que os houve s se melhore s . E não sou e u que odi go . O mestre Augusto

,que o senhor ha de conhe

cer muito bem,tambem me di sse o mesmo , quando

e l l a l á e steve em Lisboa a concertar .

I sso se rá tudo verdade,mas quem bate aqui

tudo,toda s a s e spingardas pre sente s

,pas sada s e

futura-

s,é a minha r ey u n a

Vol tamo- n o s t o d o s para o novo interlocutor . Era umrapaz reforçado

,l ouro

,de cara boa e j ovi al , que até

a l l i no s acompanhara,sem dize r pal avra

,e sem dar

um ti ro ; El l e empunhava e expunha aos nos sos ol hos

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1 96 CAÇADAS PORTUGUEZA S

e l l a ! Observe i- l he o r is co , qu e todos iam correr comaque l l a v i s i n ha n ca .

Não ha medo . I s to é sol ido : é capaz d e aguentar um pa iol

,quanto ma i s uma carga !

E,dizendo i s to

,foi carregando a arma

,a ol ho

uma mão che ia d e polvora , outra de chumbo ! Umaenormidade !

Agora marquem a di stanc ia gritou e l l e .

C em pas sos — será ba stante ? perguntou um .

Vá os cem .

Contaram—se os cem pas sos . A t o u t se ig n eu r t o u t

ho n n eu r .

Eu e os outros co llo cámo -nos a re spe itosa di s tanc ia .

Preparar ! Apontar ! Fogo ! di s s e um .

A' terce ira vo z o t iro part iu . E , com sobre sa lto e

t e rror d e todos , Xav ie r ca iu re dondo , d e costas nochão , l evando as mãos a cabeca !Corremos a leva n t a l-o . Não es tava ferido fe l iz

mente,mas na te sta t inha uma grande mancha , n e

gra e verme lha .

Fomos examin a r a colubri na . A borrachinha tinha d e sappar e c i d o , e fôra e l l a que , proj ectada a cabeça do pobre rapaz pe l a viol enc i a do t iro

,o de itara

ao chão .

— D'e s ta vez e scapou

,mas si rva -lhe de li cão , e

não torne a ati rar com espingardas fe rrugentasd i s se - l he um dos nos sos companhe iros

,pondo ao

hombro a sua caca d e i r a d e ferro fundido .

— Bem o prega fr . Thomaz — pense i eu,vendo

e s te tão arri s cado como o outro !

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CACADAS P ORTUGUEZAS 1 97

O sol pr incipiava a de sce r,e e stavamos longe

d e casa . F íz emo —nos de vo l ta,e fomos engordando

a s saca s, vi c t ima n do aqu i uma perd iz

,al ém um coe

lho , até que dêmos e ntrada no nos so quarte l—genera l .A

' porta Jos é D in i z — o ve lho case iro — apre sentou-me uma perdiz .

— Eª aque l l a

,a que o senhor ati rou de manhã

,e

qu e fo i para aMa r t i n a cha . Ia fe rida — eu bem v i . El ladepoi s vol tou

,e ve iu morre r lá em baixo

,ao .pé d o

r i o .

Eque não me quiz de ixar por ment iroso .

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200 CACADAS PORTUSUEZAS

Mestre Dominguizo não e r a um campo n i o vul gar ,di st ingui a—se entre os seu s pa t ríc i o s e r a um typo .

D e z lego a s á vol ta do torrão qu e o vira nascer , c itavam - se a s sua s hi storias

,a sua e spingarda

,as suas

botas , e o seu nariz ! Comqu a n t o as Gracas n ão t ive ssem de certo ausp ic iado o seu despontar n e s t emundo , e r a engraçado , e onde e l l e e stive sse não parava a tri steza .

Tinham um quer que d e comi co as fe içõe s e a 6gura do m e u companhei ro d e caca . Meão de estaturae e n t r e sêco , o que avul tava em mestre Dominguizoera o nariz — um nariz enorme

,cu j a are sta

,s inuosa

e fi na,vi n ha termi nar em ponta aguda

,l adeada por

duas l arga s n arin as d e seg u a e s e dotadas d uma mobi l i dade e spantosa .

Quando e l l e contava al guma das i n n ume r a s hi s

t o r i e t a s do seu vasto repertorio , era d e ve r como el la si am acompanhando os l an ce s da n arrativa — bra ndas e suave s no i dyllio , l ubri ca s n a scena amorosa ,fr eme n t e s no drama

,di l atadas e furiosas n a trage

d i a ! Um nari z as s im va li a meio ta l ento . Estavapedindo um Talma

,um F r éd éríc k Lemai tre !

S e um grande actor o pos su í s s e , qu e e ffe i t o s nãot irari a de tão portentoso orgão

,de tão flexive l e v i

brante in strumento !Ao appendic e n asa l devi a o nosso homem o co

gnome,com que o appe li d avam

— o P i ca n co . Bem

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CACADAS P ORTUGUEZA S 20 !

sabi a e l l e i s so,mas não se lhe dava de ta l

,an te s

commentava a a lcu n ha . com va r i acõe s da sua l avra,

e hi storia s,faceta s e garotas

,de monge s n arigudo s

— un ic a heranc a que t ive ra de seu pae e mestre,

que fôra sapate iro dos frade s da vi l l a . E qu e fre sca s , que e ram as tae s hi s tori a s ! Umas

,ape sa r do

seu tra j o rusti co,conhec ia-se que v inham di rec ta

mente do Boccacc io —

po r i nte rmedio d o s reverendosmonge s ; outra s a cce i t al—a s -h i a de bom grado o A rmand S i lve stre para a s ve st i r , ou , ante s , para a s de spi r com a sua penna u l tra —g a u le z a !No fi m do j an tar

,entre a p itada e o ci garro

« Sou um poço de costumava e l l e d iz e r é

qu e mestre Dominguizo gostava de osten ta r o s seusta l e n to s de n arrador . Então era d ifi i c i l, ainda ao mai sfleu gma tíco dos seus ouvinte s , con servar o s erio , pri nc ipalmente se lhe attentasse n a physío n om ia , e vi s sea mascara do arti s ta acompanhar a phrase

,su bli

nhando os pontos mai s inte re s sante s da n arrat iva !Esqueci a-me dizer que , a l ém do nariz e x t r ao r d i n a

r i o , um dos seus o l hos e r a um tanto vesgo .

Do tra j o, que di re i ! Quando , ao romper da man hã, um pouco e n n evo a d a , el l e me entrou pe l a portada qui nta e nvol to no gabão , e depoi s o l argou , most r a n do - s e n a sua bri l hante t o i let t e , semi -d om i n gu e ira

,semi—caçadora , o pe scoco envol to num ca che-n e;

branco com l i stra s a z u e s , e atrave s sando atraz,n a

c inta,um enorme guarda—chuva , azu l , de ca s tão d e

buxo e grande ponte i ra de l atão o tempo e stavade aguacei ros — eu t ive pena d e n ão t e r de m eu o

l ap i s do Ramalho ou do Gameiro , para o retrata r !

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202 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

Que fi gurão que e l l e fari a , no sa l ão do Gr emi o A rt i st i co ! Era com certez a um dos clo u s da Exposi ção .

'Os nos sos arti sta s , ou via j am pouco , ou não aprove i t am o que vêem . Perdem j oias , como esta , e

quanta s mai s !Mas do qu e mestre Dominguizo mais s e vanglo

r i ava n ão e r a dos seu s t r iumpho s de co n t i s t a , nem da'

fi rmez a e rap i dez das sua s pontari as,não — do que

e l l e mai s se pre sava e r a da sua pe ríc i a n a arte .

Uns sapatos,umas bota s

,sa ídas da minha mão ,

dão -se logo a conhece r — diz i a e l l e,e a ccr e sce n t ava

c om orgulhosa int imativa — Aqui , dez l eguas em

roda,não ha quem ta lhe e metta uma fi o r êt a como

e u ! E ni sto é que e s t á todo o segredo , e onde sec onhece a mão do mestre .

A s sim se conta de Lord Byron — mal comparadoque aprec i ava mai s o s e lo g io s que A l i , o famoso

pachá de Jan ina , lhe fez um di a a pequenez da so re l has e a fi nura 'ari stocrati c a da s mãos

,do que os

-maiore s louvore s que a crí ti ca lhe te ceu as be l l ez a sd o Ch i ld Ha r o ld e do D . J u a n .

!

Lá e stão parados os cãe s . Uma,duas .

“Mal mestre Dominguizo pronunci ara e sta s pal av r a s

,accentuando —as com doi s movimentos pe rpe n

d icu lar e s da e spingarda , sa l taram dua s perdize s , e

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204. CAÇADAS P ORTUGUEZAS

um homem,que fal ava para nós

,gesti cul ando com

vio lenc ia,mas o vento e r a co n t r a r i o e não perceb i o

que e l l e d iz i aP omo-nos app r o x ima n d o , e

“v imos então o que era .

Estava feri do — t i nha s ido al c ançado pe lo chumbodo meu vi s inho abe lhudo .

Pasmo em toda a l i nha !Como podia e l l e se r fer ido

,s e nos Heava muito a

dire i ta , quando a l

pe r d i z e o tiro foram ambos parae squerd a ? Não havendo arvore s em qu e o chumbofi ze s se r i cochete , como podi a e l l e mudar de d i r e ccão no ar ?! Hão de confe s sar que era caso e ste

,

apparen temente,de d ifi i c i l exp l i cação .

Todos fa l avam a u m t empo,olhando para a vi

c t ima,e a todos parec i a imposs íve l a re al idade

,a co

m eça r pe lo auctor , pe lo protagon i sta d a qu e lle tri s teepi sodio ! Não cacara nunca

,e pegara n a pr imeira

e scopêt a que encontrou ! Joaquim e stava pal l i do comoum defunto , vendo o san gue que

"corri a d e duas féri das, qu e o V i nhate i ro mo s t r ava

'

em uma das face s .

Depoi s d e examinarmos o homem , que t inha mai sdoze ou quatorz e grãos de chumbo , e spa lhados pe locorpo

, pegamo s no in strumento do i nvoluntario cr i

me para o examin ar , a ver s e e l l e nos exp l i cava coma sua bôca s i l en ciosa, o que nós c om a nos sa d e sva i r a d a l oque l a n ão po d e r amo s faze r .Era n a bôca da e spi n g a r d a , . qu e e stava com e f

fe i to a re sposta,a so lução do prob l ema

,que em vão

bu scavamo s , no cano dire ito , do l ado de fora , haviauma fra ctura de forma tr i angul ar . Foi para m im ,

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CAÇADAS P ORTUGUEZA S

de sde logo,evidente se r aque l l a a causa d o de svio e

do de sa stre .

Tinham ati rado muita s veze s com e l l a , sem feri rn inguem ? Teriam

,s im

,porque a aba d o chumbo

de sv iado nunca encontrara n inguem ;mas era que stão de tempo

,e mai s d i a , menos di a , um homem ,

o u

a l gum cão dos proprio s cacadore s , s eriam v íct imasda ímpr evi d e n c ia do seu pos sui dor .

Foi uma l i ção para os que a s s i st i ram a es ta sc enae se l -o -ha tambem ,

dece rto,para os que a l erem

narrada aqui por um dos e spectadore s , que n e s semomento não e stava tão sereno

,como agora que a

de screve .

— Não ganhou para o susto — dirá algum l ei tor ,pen sando no pobre j orna l e i ro .

Se o su sto d e l l e foi grande n ão se i — cre io mesmo qu e nao foi , mas o que pos so afi i rma r é que ret i rou p ara cas a logo , e que no d ia segui n te j á l á andava na fai n a ! Tomara e l l e te r mai s j o r n a s comoa d aqu elle d i a . menos o chumbo . Ganhou quinzetostõe s !Mestre Domin guizo enfiou mai s uma hi stor i a n o

se u ros ario , e d ah i por deante , sempre qu e , em ca sado prior , ou do seu compadre S i lva ,

o barbe iro,e l l e

se propunha a entret er a soci edade, se acertava é s

ta r p re sen te o Joaqu im —

qUe , entre parenthe s i s , e ra

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206 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

bom moco — o(P i ca nç o , pis can do—l he 0 ol ho , e ap

pr o x ima n d o -s e d e l l e,diz ia- l he ao ouvido

Fica , fi ca . Pode s fi car,que eu não conto a hi s

tori a .

Mas contava—a , s e 0 outro sa ia . Não fos se e l l e arti sta

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2 08 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

— Pequeno s ! Fi lhos ! Q u e bul ha e e s sa ? Se eulá vo u ! . gri tou- l he s mãe — a s r .

ªMari a Dom in ga s a

_

t i a Domin gas , como lhe chamavam .

-'

De ixa l á os rapaze s . Estão n a sua e dade.

. Q u ehã0

'

d e e l l e s fazer ? observou 0 Manue l .— Sim , tu diz e s sempre i s so , mas e u é que cá

e s tou , para os l avar e cose r . Aque l l as ca l ca s , qu e0 Anton io e st re iou domingo de P a scho a , j á e stãot odas e sfr a n g alha d a s , _

mesmo um l ixo,uma vergo

n ha l . Se a gente os de ixa rasgam—s e todos , e nós é

q u e 0 pagamos . Eu n ão sou da tua systema . D e

p equ en i no s e torce 0 pep ino .

O Manue l n ão rep l icou .

Quere s a lmoçar ? A s migas e stão pr omp t a s . E

q u e boa s que e l l a s e stão !_ Quero , s im .

A t i a Domingas chegou a porta do pateo . A bulhad o rapaz io ce s sou d e repente .

— Andae ca, menin os . Vamos almo ca r . A í, Fe rn a n d i n ho ! Como vindes a sse ado e composto ! E vósA nton i co , o lha e , como trazei s a s ca lcas ! Ca tendesa e scrava , para vos remendar !A pequenada en trou d e rol dão pe l a porta , atro

p e l ando-se com receio d a l guma ca cho le t a . Q u e é lle s bem sab i am que a merec iam .

Fo i 0 A t o ín o .

D e ixe fal ar , mãe , foi e l l e qu e me botou ao chão— re trucou o outro

,ameaçando com a mão sít a 0

a ccu sa do r .

— Ca luda ! Nem mais pio !A e sta i n t imacão da mãe , os g r u lhi t a s ca l aram- s e ,

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CACADAS P ORTUGUEZAS 209

s entando—s e n o s bancos , e i nve stindo vo r a zme n t e

com a s m i ga s fumegante s,depoi s de um re l ance

d'

o lho s a o s pratos , a ve r se a l gum ti nha mai s .

Agora reparo , Manue l — d i s s e Domingas , a

meio do almoco — tu ten s a l guma coi sa,h0mem ;

n ão fa l a s,não diz e s nada ! A qu illo que eu di s se .

Não,não , n ão é i s so . Nem me lembra j á o qu e

t u di s se steA t i a Domingas olhou para e l l e fi xamente com

u m modo inte rrogat ivo , e depoi s continuou :Então , Manue l , se não fo i i s so

,é outra coi sa .

Porque tu ten s a lguma coi s a ho j e .

Não tenho nada .

Tens , ten s . D iz e l á o que é . Quem é para oamor , é para os traba lhos , e eu sou t u a

'

mu lhe r — tub em o sabe s .

Mari a Domingas e r a uma mulher deci di da — mu

lhe r d a rma s,como se costuma dize r — e em ca so

d e nece ssi dade mane j ava uma r o ca d o i r a com umvi gor mascul i no . Nem todos lhe 'me t t i am medo . Emc asa a vo z mai s a l ta que se ouvi a , era a d e l l a , e nos i tio

,quando se fa l ava d e l l a , diz ia- s e

_ Va e a ca sa da t ia Domingas .

Venho de “ casa da t i a ! Domingas .

— A -s va cca s'

d a t ia Domingas .

Ell e — o Manue l do Jal e co —

'

v'iv i a n a sombrae r a um bom homem

,que nun ca dera que fa la r , , n uma

1 4

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2 1 0 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

pal avra , um pobre homem . Nessa conta 0 t inhame a ss im fôra até a l l i .Uma ve z acordada a cur ios idade na cabeça d uma

fi l ha d Eva , qu a e squ e r qu e se j am as sua s vi rtudes,

n ão d e sca n ca , em qu a n t o l h'a n ão sat i s fazem a inda

qu e se j a com uma menti ra . Mas o Manue l é que n ãoera de guardar segredos com a famí l i a .

— Como e u j á s e i que tu me vae s matar o b ichodo ouvido com as tuas pergunta s

,j á t e dig o o que

é , para fi care s so ceg a d a . Chega-me para aqui Ocafé . Olha o pequ eno , qu e quer mai s pão . Tu sabe s qu e e sta qui nta d ante s tinham

_por costumeentrar ne l l a , l á ao fundo junto as ol ive i ra s , pe lomuro qu e es tava derrubado , e faz i am por aqui s e r.

ve n t i a para a e strada . O doutor Mende s , que é quema tinha , quando eu a compre i , mandou l evan tar osmuros

, e , como era O j u iz e t inha cá um creado e

um fe i tor qu e não eram para graça s , o povo r e spe itava—lhe a casa , e perdeu 0 ve so ao caminho , e dav aa vol ta em redor da quinta . Agora pa re ce—m e qu e

querem torn ar a antiga .

Como tornar a antiga ? —perguntou a ti a Domin gas

,fi n cando os co to ve llo s na mesa , e franzindo

le n t ame n t e a s gros sa s sobrance lhas . Então a -gen te

j á não é senhora do qu e é se u Mas eu ain da hontem de i a vol ta da qui nta , e não v i nada !

— Não v i ste nada., porque e u compu z o qu e e l l e sderrubaram . Olha

, e e ntram exactamente pe l ome smos it io

,por onde costumavam d ante s . Ha tre s dia s

qu e acho a lgumas pedra s ,ca ída s em baixo , ao p é da

ol ive ira grande .

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2 1 2 CAÇADAS P O

'

RTUGUEZAS

d e,l ogar por onde 0 seu Manue l l he di s s era que e n

t ravam .

Esta s i n spe cco e s , por in fruct íferas , princip iaram a

s erenar- l he um pouco 0 e spi ri to,porque

,por mai s

ma t i n ae s que e l l a as âz e s se , - e chegara a ponto d e l a'

e star d e vi g i a ainda com as e stre l l as no ce u,n ão

con segui ra vêr 0 atrev ido invasor . Elle , t0d avi a , qu emque r que e r a , cont inuava a vi o la r O muro , atravé ss an do a quinta para a e strada .

Como é então qu e e l l a não 0 vira nunca , n em d e scobri a os ve st igio s d a sua pas s agem — as pedrasc aí das e a s pég a d a s no chão ?Não querendo a l terar a paz domest ica

,a santa

pa z , em qu e at é a l i t inham viv ido , e contrar iar'

a suacompanhe i ra

, pr o hib i n d o—a de se i n t r ome t t e r n aqu elle

caso — que e l l e entendi a se r da sua j u r i sd i ccão , comohomem — não l he o ccu lt o u o facto , mas quando se

t ratou do s it io assa l tado,não lhe apontou o ve rda

dei ro . E e r a por v arios a entrada .

D e forma que,ao pas so que a ti a Domingas se i a

t r a n qu illi sando , a ponto de n ão in s i s t ir j á no as sumpto , . a e l l e é qu e l he custava muito o ccu lt a r —lhe a

p r e o ccupaça o , que 0 dominava .

Tinha e x g o t a d o todos os modos de av i sar 0 invaso r d e que fôra de scob erto , de sde a s pedra s , cuid a d o samen t e reposta s no mesmo logar , d onde a s t inham tirado

,a t é a o s , doi s paus , qu e e l l e se l embrou

d e armar em c ruz,bem a vi sta ; pen sando qu e e sta

ame aca s er i a entendida , e pori a fi m aos as sa l tos .

Nada,porém

,surt i r a effe i t o , e e l l e s repet iam—se

como d antes , .nao con seguindo .e l l e a in da vêr quem

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cx c x n x s r o ar u o u ez x s 2 1 3

e ra o audacioso , que , a hora s tam de sencontradas ,por a li transitava .

Manue l do Ja le co e ra a e ste tempo , um homemde trinta e c inco a n n o s , m eão de e statura , l a rgo dehombros , de grande s forca s e de aspecto r o bu s t i s

s imo g mas , pertencendo a uma fami l i a de r íx o so s eva lentõe s

,t inha ta l bo n homía e pacatez , que a to

do s admirava . O que faz i a dizer a ti a Domingas ,na sua l inguagem sentenc iosa e pi ttoresca

,que , as

veze s , d uma ove lha preta nasc i a um corde iro branco !Na sua a lma , forte e so ffr e d o r a , a paci enc i a quas i

n ão tinha l imite s . Em certas o cca s iõe s viam-n -o fechar os punhos

,como para sent ir a forca dos seu s

bracos he r cu le o s ; i n i c i ar a a ccão de arregaçar a smanga s da camisa , mas cerrava os dente s , e fi cavas e . Estas ame a ca s de tempe stade ti nham ,

porém,ta l

e lo qu e n cía , qu e e ram logo perceb ida s ! Não era e l l ed aqu elle s i t io , mas coms ig o trouxera a t r a d ícão doss eus paren tes— fa ca n hu do s b r i g o e s . E , um d i a ,

quando vol tara costas , um ,que 0 conhec i a de mai s

l onge , di s se na venda do l ogar prox imoE

,

o tio , o Jos é do Jal e co , como quem o pintou .

E , mansi nho como um corde i ro,é ter ca n te l l a com

e l l e . E da mesma raca , e, bem procurado

, t em o smesmos hg a d o s . Vo s seme cês n ão o conhecem . Euvi -o , aqui ha dez a n n o s

,na fe i ra clã A tho u gu i a .

De ixou às porta s da morte c in co ou se i s , e n ao s e

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2 14 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

d eu a pr i são senão ao sargen to da cavalla r i a do de st a came n t o ! E olhem que no fi m da bara lha não tinh auma be l i scadura !

Este — ob servou um dos as s i ste n te s .S im , e ste — re spondeu 0 outro e s e t em d u

v ida vá-lh ,

0 perguntar , que e l l e é homem para lheresponder .

Estavam as co i sas ne sta a l tura em ca s a d a ti aDomingas , quan do , num dom ingo de m anhã

,l hes

entrou pe l a porta dentro o s eu compadre João A hd r é . Eram rara s

,e em d ias certo s do anno

,as v i s i tas

do sr . A n d r és i n ho diminut ivo que não lhe a ss ent ava

,porque o re cém - chegado e r a de agigantada

e statura ; porém ,como de pequen ino as s im lhe cha

maram , fi cou- l h e ao que e l l e achava graça , porque ,diz i a , não gostava de se r tão a l to , não pertencendoa fam í l i a dos Pinhe iros .

Mai s ve lho do que o Manue l do Jal e co,padrinho do

casamento e amigo da sua famil i a,o dr . João A n

d r é e r a o homem d e m aior porte e va l imento quetra nspunha os humbr a e s da casa do nos so l avrador .Rico , fôra el l e quem dera a mão ao afi l hado , lhearran j ara o ca samento com Domingas

,e l h e em

pre stara a l gum dinhe iro,quando e l l e comprou a

qu inta aos herdei ros do fal l e c i do j uiz d e direi to .

Era portan to um amigo devera s , e para os Ja l ec o s grande s e pequenos não havi a pes soa mai s

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2 1 6 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

— Po i s s im ,e u ponho- o na cabeça

,porque i s so

te dá gosto,mas tu sabe s qu e eu e stou costumado

ao t empo . E está—me bem , e sta. Quem é qu e metomou a medida ? — d iz e la

,Maria Domingas — por

q u e quem 0 fez j á e u . s e i . A i nda são as mesmasmão s in ha s de prata , como diz i am minhas i rmãs

,

quando tu l á e stavas .I s so e r a favor das senhoras .Ecomo e stão e l l a s .

perguntou Domingas .

Vam , v ivendo . Estão boas . Mandam-t e recados .

E por c á n ão ha n ovid ad e , Manue l .Ha

'

a s nov idade s d a terra e , ante s que me

e squeça , c á receb i 0 dinhe i ro do vinho . Não e r a

pre s sa , e muito obri gado .

Não tº

o demore i , porque podias prec i sar para0 amanho da v inha , ou para outra coi sa . Tu aindae stás em princ ip io d e vi da .

— Mas , graça s a Deus , outros i rao peor . O quem e fundiu menos do que nos outros a n n o s foi a v in ha ;t ive menos , mas mai s maduro . Eu deixe i - l he cai ro sol , «e vindime i—a no tarde . Pagaram-mb bem

pena foi se r pouco , mas i s so não esta n a nos sa mão ,e sta na vontade de Deus .

É, verdade

,a mim tambem me su cce d eu 0 mes

mo . E , mal gera l,que a t odos pe r se g u e .

.Va e vive ndoa g a lli n ha com a sua pevide . Este

, qu e e stás bebendo , é d o teu do anno pas sado ?

E ' s im,senhor . Tive mai s me ia duz ia de p ipa

s ita s , e guarde i a l gum para nós . Tambem somos fil ho s de Deus .

— O meu compadre da l icenca — di s s e a ti a Do

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CACADAS P ORTUGUEZAS 2 1 7

m i n g a sl pondo-s e em pé . Meninos — Padre nos

so

Os pequerruchos com a s suas vo z ít a s foram acom

pa n ha n do a mãe , que , n o fim da reza,l he s de itou a

be n cão .

Faze s bem em educar a s s im os teus fi lhos,para

n ão vere s aqui o que se vê ahi em mui tas casa s .

E,

como fui c reada,e n ão me tenho dado ma l

com i s so .

Agora vamos dar uma vol ta pe l a qu inta,em

quanto o so l não aperta mai s ; que depoi s o que hama i s , para vêr , é a sombra — di s se o dono da casa ,l evantando-s e .

— Vamos todo s — di s se João André — eu gostode vêr correr os pequeno s . Quantos são e l le s j á ?

Quatro,com a graça de Deus . O Fernando , 0

A ntonio , a I sab e l e a Mariquinhas .

Vamos la,Manuel

,que j á pode s fi car por ahi .

O Jal eco en col heu o s hombros , e re spondeuOito eramos n ós , os fi l ho s de meu pa i , e todos

n o s cre a'mos . E ' verdade que o s tempos então eramoutros .

Iam andando e convers ando , at é que chegaramj unto da ol ive i ra grande . Da hi dominava-se toda aquinta

,o te rreno e levava—s e um pouco : os de ca sa

chamavam-lhe o A l t i nho— Sentemo -nos aqui . Toma lá um charuto

,Ma

nue l . A Mari a d a l i cen ca .

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2 1 8 CACADAS P ORTUGUEZA S

Dou , dou , mas desculpe , o meu compadre andaa mette r-lhe O ví cio no corpo

,e e l l e

,de ve z em

quando,j á ahi me appa r e ce de charuto n a bôca ,

como um se n ho r i t o .

Não te a s suste s , não t e afogues em pouca agu a .

Quando e l l e t e appa r e ce cá a fumar de charuto , quemlhªo s dá sou eu . E se não , repara , qu e é só nos dia s

que l á va e a casa .

O m eu compadre bem sabe que de vagar seva e ao l onge

S im,e o que e u tambem se i é qu e e sta quinta

e sta- s e fazendo bem bon ita . Quando cá v im a u l

t ima ve z e stava um tempo frio como O demo , e n ãoa pude vêr a vontade . Agora

,s im . Faz muita diffe

r e n ç a para me lhor do que e r a,quando para cá vie

ram . Tu , Manue l , e stás um l avrador as direi ta s ! E,

que e stá tudo no s eu l ogar,cada cu l tura no s i tio pro

prio ! Onde aprendeste ? Porque t u sempre fôs t e g e itoso

,mas O saber é outra coi s a . Quem t e en s inouEu lhe digo , compadre . Aqui perto ha uma

quinta bem a'

manhada,e a inda l á havemos de i r ;que

eu bem se i que o me u compadre t em vi sto tudo o

qu e é bom — mas é para a ver . Lá é qu e e u t enhoob servado a l guma coi sa , e d ahi faço aqui como ve j o

qu e lá fazem .

— E que bon i ta vi s ta a d e sse va l l e , que vae porahi fora ! Não t inha reparado n i sto da s outras veze sE

, ta lvez porqu e não e stivemos parados aqui . A casatambem faz muito melhor vi sta : a u gme n t a s t e a adega .

E aque l la s ba cellad a s s ão novas , Manuel ?

São,s im

,senhor . E tambem é novo a qu elle po

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220 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

o l e ss e,

“ não lhe tomari a as doutrin as , em materi a depropriedade

,re spon deu

,confi rmando com a s pal a

vr a s e o ge sto a opin ião da sua in terl ocutora , vo lt ando—s e ao mesmo tempo para o Ja l eco

,como dese

j ando o u v i l—o sobre 0 ca so .

— E, verdade o que e l l a d iz , é — di s s e e ste . Eu é

que d e i pe l a marosca,mas

,apesar das mi nhas e s

pe r a s , . a i n d a não de scobri 0 marau .

—E eu tambem não — a cc r e sce n t o u a Domin gas .

— E” que talvez e l l e mudasse de s it io — rep l i cou 0

Manue l sorrindo .

Mas,entre e l l e por onde entra r

,o que é pre

c i so é a g a r r a l- o — ob servou o doutor .

O meu compadre d i z bem , d iz at é muití s s imoMas se e l l e não s e de ixar agarrar ? E eu

posso prende i - o , n ão sendo a u c t o r i d a d e ?

— P0de s . Prende —0 como um ladrão,que entrou

n a tua quin ta .

E se e l l e r es i st i r,e me der ?

Nes se ca so , como tu e stas em tua casa e é s oatacado , d as - l he t ambem . Estas no teu dire i to , defende s - te . E eu cá e stou tambem ,

para o que fôrpre ci so . Mas

, o lha lá , não mate s o homem .

Ora i s so é que é fa l ar — apoiou a t i a Dominga s .

Essa l in gua entendo eu . Olha Manue l , tu é s bom d e

mai s ; ao t io Jos é Jal e co é que e l l e s n ão faz iam e staarreli a . Já a e stas hora s t inham as co s t e lla s numfe ixe .

— P o r i s so tambem 0 mataram a ti ro — di s s e oManue l

,muito se reno

,como se aque l l a c i t acão do

n ome do tio o n ão e st imul as se la no intimo .

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CA (IA 1)AS P ORTUGUEZAS 22 1

João André,entretanto

,t i rava da a l gibe i ra uma

ca ixa , que passou as mãos da afi lhada .

São j a'

horas de re ti rada ; ainda vou po r ca sado Anton io Ri cardo

,e tudo i s so de i ta-me lá para a

noi te . Ah i t e fi ca e ssa lembranç a ; quem ta mandaé a I sabe l

, qu e s empre fo i muito tua amiga . E , paraa ahlhad a , a Isabe li n ha .

— Ora ! A s senhora s Eu não se i como he ide agradec e r tantas fi neza s . Olha

,Manue l

,que

br incos tam boni to s !

S ão muito l indos,s ão . Quando l á formos

,do

mingo que vem ,ha de l eva l-os . Não os e stre i a antes .

Mais para agrade cer,meu compadre

Quando j á e stava a cava l lo,João An dré

,de spe

dindo- s e,d is s e para o afi lhado

,que lhe segurava o

e str iboOlha

, Manue l , quan to ao homemz i n ho o ditodito . Segura-o , mas com geito . E eu cá e stou . Adeus ,Maria . Adeus

,rapaz e s .

E j á n a e strada,vol tando-se para traz , gri tou

lhe s— Levem os pequenos . Venham todos .

Ne s se di a , depoi s da partida do doutor os doi sco n ju g e s n ão trocaram mai s pal avra sobre o assumpto que os traz i a pr e o ccu pado s , mas o dono da cas a

j á t i nha tomado a sua re solução . A' no i te , depoi s da

ce ia , d e i tados os 61h03 , foram a adega , e l á e st ive

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222 CAÇAD AS p o ar u o u ez x s

ram l abutando numa coi sa e noutra , at é qu e a t i aDomingas , não de sconfi ando d e nada , 0 de ixou sóe fo i-se de i tar .Apenas se apanhou sos inho o Jal e co fechou a por

t a , encostando a roda de coi ro da chave a fe chadu ra .

Dªah i fo i a uma grande arca d e carvalho

,toda cha

pe a d a d e ferro , com bon itos lavo r e s , que e l l e ti nhacomprado no l e i l ão do c onvento , abriu-a , ti rou parafora uma e spingarda d e doi s canos

, e arrumou—a aum can to com t o do o cuidado . Este s movimentoseram acompanhados de meia s pa l avras, de phrase sentre cortada s

,. di ta s muito baixinho

,como se ré

ce i a sse das propr ias parede s .— Com que então . Sim ,

querem ve r quem éo Se é sobrinho do Jos é hei n !Esobrinho , é — e uma ca squ i n a d a em surdin a acom

pa n ho u e sta s pal avras .

Depoi s da e spingarda arrumada voltou a arca , quee r a o seu arsenal , e , mergulhando 0 braco , trouxedo fundo tres paus ferrados e uma foic e r o ç a d o i r a ,pol ida e bri l hante como a fol ha d uma e spada .

— O armamento j á aqui e stá . Vamos a escol her .

Todos os pau s são bon s — di ss e e l l e , pas san do-osem revi sta , e pegando num — mas este é re st io , éde mai s confi ança . I s to é um pau rea l .E prolongando-Se com e l l e , deu um pulo , fe z doi s

sari lhos,e ati rou doi s golpe s no ar , qu e a s sobi aram

como duas ba la s .

-Está n a conta ; n ão me de ixa fi ca r mal — e , s e

gu r a n d o-0, carregou—lhe com a mão no meio .

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224 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

Seriam pouco mai s de tre s hora s , e ainda mal seentrevi a a prime ira c l ari dade

,a dubi a lu z do cre

pu scu lo da manhã , quando se abriu e cerrou cautelo same n t e a porta da co s i n ha , e um vul to, atravé ss a n d o o pateo

,entrou na quinta

, d e i t a n d o . lo g o forao ci garro qu e l ev ava acce so , parando de quando emquan do

,com o ouvido a e scuta ;e , procurando como

qu e romper'

a s trevas com o ol har fi xo e pr e sc r u t ador

,tomou pe l a rua qu e c i r cumd ava as te rras , por

ser caminho batido onde os pas sos menos ruido havi am de fazer .Era o nos so Manue l . Chegado ao s it io , qu e e l l e

agora e scolhera,encostou a e spingarda ao muro

,

depoi s d e pôr os cãe s no prime iro descanco , e coma foice ao l ado , fi cando com O pau ferrado na mãosentou- s e num tronco d arvore ca í do , onde ja passaraa lgumas hora s d e inuti l s en ti ne l l a .

Ter ia de corrido 0 tempo de fumar um cigarro , quee l l e não fumou , para n ão denunciar a sua pre sença ,quando lhe pare ceu ouvi r ao longe rumor de passos .

Prestou 0 ouvido e re conheceu que não se enganavao s pas sos appr o x imavam- se

,e de ixaram de se sen ti r

mesmo junto do muro . Manue l poz - s e em p é , e e n

c o s t o u —se a parede,encobr indo —s e com e l l a . Acabava

e l l e d e faz e r i sto,quando as somou no al to uma ca

beça , e logo em se guida,

. l e stamente,um homem

sal tou para dentro,a

"

quatro ou cin co pas sos .

Era chegado o momento .

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CACA DAS lªOR'

l'

UGUl-ÍZA S

A t é que fi na lmente — di s se Manue l,avançando

para o de sconhec ido com pas so fi rme,e de modo

a cortar -l h e a deante i ra .

Ao ouvi r e sta s pal avras 0 homem parou , e , vo lt ando-s e de r epe llão , perguntou a o Jal eco de sabridamente O que é que l he que ria .

Q u e r o va r ia s coi sa s — r epo n d e u- lhe e ste muito

s e reno . A primeira é dizer- l h e que ha muita s n o r

t e s , e stou a sua espera,para l he receber a vi

s i ta — gosto que só tenho .ne sta o cca s ião . Depoi s

q uero me diga o -que .o traz aqui,e com quem é o

n egoc io , vi sto que n ao e comigo . E não sen donegoci o , nem de macho

,nem de femea , quem lhe

d e u l i cenca para entra r por aqui n a minha quinta .

?

Esta i n t e rpe lla cão ao seu in tru so hospede , pr o n u nc io u -a 0 quinte iro com uma t r a n qu illi d a d e a s sustad ora

,que impre s s ionari a outro que n ão fos se a qu e lle

a quem fôra di ri gi da,e que era , n em mai s nem me

nos,um dos mai s tem íve i s e temidos contrabandi sta s

«d aqu e lle s s ít ios .

Poi s s im,senhor , goste i de o ouvi r . Vossemecê

fa l a bem , e , se eu não e stive sse com pres sa , ta lvezc o n ve r s a ssemo s um bocadin ho , mas agora não tenhot empo — e , di tas estas pal avras , o outro fe z 0 ge stod e

'

se de spedi r .Venha cá , homem de D eus , que ainda tenho

mai s uma coi sa para lhe diz e r . Vossemecê va e e r

rado por e s se caminho : o caminho é aqu e lle— e

o Jal eco apontou - l he com o pau o muro por ondeo contrabandi sta sa l tara .

Agora j á percebo . Vossemecê e sta ahi de guar15

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226 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

da,e quer-se en treter ;ma s , eu j á l he di s se , n ão lhe

posso dar tre l a , e 0 m eu caminho e u é qu e o s e i

E,como o Jal e co de ss e um passo para a frente

e l l e , mudando d e tom ,l evou a mão a a l tura da cara

,

e perfi l ando um dedo, em ar d e ameaça

,d i s s e-lhe

Olhe que e u sou o S imão Co n t r a ba n d i st a .

—Fi co sab endo , e eu sou o Manue l de Sousa, o

Manue l J a leco . Somos ambos bap t i sad o s, mas 0 casoé outro agora . O seu caminho

,sr . S imão

,é por al l i ;

eu n ão o en ca r r e g u-c i de abri r c aminho pe l a minha

te rra , e portanto va e vos semecê desandar 0 qu e a n

dou , sae por aqu e lle muro , e não vol ta aqu i mai s !I s so é mu i to comprido

,s eu Jal eco ; torne lá a

Eu e stou fa l ando com o sr . S imão , mas o sr .Simão é qu e não sabe com quem fal a . Você e staa br incar com 0 fogo

,homem de Deus ! Ve j a lá

, qu e

s e queima !— I s so é somno

,seu Manue l . Vã- se de itar , qu e a s

pulga s e stão a sua e spera — rep l i cou o co n t r aba n

di s ta , com um ar in so l enti s simo .

O confl i cto e stava imminente . S imão , homem d ec i d íd o e d e pul so — os guardas fi sca e s conhec iam-lhe

a a stuc ia e a bravura não re cuava fac i lmente deanted outro .

O Jal eco l embrou—se ne ste momento da r e com

me n d a cão do compadre , « Não mate s o homem »

e,como grande j ogador que era , t inha j á fe i to

mentalmente o golpe,ante s de o executar . A

'

s u lt imas pa l avra s do seu adversario , dando doi s pa s sos ,e stendeu a mão

,e com um ge sto imperioso di s se - l h e

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lv

lo

l CACADAS P ORTUGUEZA S

Neste l an ce fi na l o s ve iu encontrar a t i a Mari a Domingas . Não vira nada , mas o si l enc io e a att i tudedos doi s homens , a expre ssão da phys i o n om i a docontrabandi sta , que era d e s i mal encarado

,e o sor

ri so contra fe ito com que o Man ue l a acolheu,tudo lhe

diz i a qu e houvera novi dade , porém fo i em vão queo s s eus olhos cu ri osos procuraram —os ve stigio s dalu c t a entre o s do i s .

Então era e ste .

O Jaleco n ão a de ixou prosegui r,acenou—lhe com

a mão,e di s se—l he

A ppa r e ce s t e em boa o cca s ião . Manda mette r osboi s a o carro , e que me arran j em a egua

,porque

n os vamos j á para a vi l l a . Este homem,ao sa l ta r

a qu i o muro , ca iu mal , e vim acha l—o com um bracode smanc

'

hado,o u coi sa que 0 valha . Anda

,vae de

pre s sa, qu e eu almoco lá em casa do compadre .

A pouco e spaco atraz da t i a Dominga s segui ramos doi s

,ambos c ab i sbaixos e tri ste s , um por se ve r

feri do,humi l hado e pre so

,e o outro por e star met

tido em traba lhos por cu lpa al he ia .

Não t i nham trocado uma palavra entre s i , quandochegaram perto da ca sa . Ja se ouvia a voz da pa t r ôae os gri tos a l egre s dos pequenos , qu e vinham correndo ao encontro do pae .

Os mocos atrave s savam acodados 0 pateo , paraonde dava tambem uma das portas da estrebari a ,t razendo ja os boi s , doi s a n ima e s corpu l entos e ne

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(SACADAS l OR'

l'

llGUEZAS 221)

dios,que a t t e s t a vam 0 e smero d o t ratamento . A uma

argol a , pre sa po r uma corda , e ja a r r e ia d a e prompta

,e stava a egua .

— A egua j á e s ta a r r a co a d a , patrão — di s se O moço ,e vae -se mette r o gado a o carro . Agora vos semec êdi ra se manda mai s a l guma coi sa .

Olha,Antonio

,a inda ahi e sta uma pipa , que

hav ia de i r para ca sa do boticar io . Me t t am -n — a ah i n o

c arro,que aprove ito a o cca s ião , e de ixo -lh

º

a la.

E vol tando—s e para o con traband i sta :A vos semecê v inho n ão l he o ffe r e ç o

,porque se i

que agora lhe faz ma l,ma s se que r come r alguma

coi sa , e s t á às sua s orden s .

Obrigado,não tenho vontade — respondeu o

outro .

A a tmo sphe r a , a princ ipio e n n evo ad a , fôra cla

re ando no rapido decorre r d e sta s scena s , e quandoa ti a Domingas

,chegou ao pé dos recém—chegados ,

e se affi rmo u no con trabandi sta , reconheceu—o : fôra0 seu prime iro conversado , quando e l l a e st ivera em

Q u ad r a z a e s . Passava ja de doze anuos que i s so t inh asi do

,mas e l l e não lhe e scapou

,e,quando lhe ouviu a

voz , fi cou certa de quem era o de sconheci do .

Guarde—a Deus,sr .

ªMari a Dominga s dis s ee l le . l evando a mão ao chapeu .

Então é vos semecê quem n o s deu e ste s trabalhos .

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230 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

Por me u mal , sou e u , sou . Nós vamos embora , e eu quero de ixar tudo bem cl aro aqui . As s imcomo a s sim , j á n ão tenho n ada a perder em dizer averdade . Eu ando a monte . Entende—me ? Andofugido da te rra . Vae j á para nove mezes que s a i de

Q u a d r a z a e s .

— Por c ausa dos guardas ? pergu ntou o Jal eco .

Por outra coi sa . Acon teceu-me uma desgra

A l guma morte ?

S imão fi cou s i l encioso,e depoi s

,me n e i a n d o a ca

b eca,como se lhe custa s s e fa l arLa vae tudo . Tanto se me d a . Denunciaram

nos,e os guarda s eram muito s em nossa per segui

ção,e quas i todos a c aval l o . Tivemos de l argar a

carga,e perdemos tudo

,a fazenda e a s be stas . A n

dou ta lvez por se i s centos mi l r é i s o pre j u ízo . Um diaencon tre i-me com o denunci ante numa serra . Quandoo vi , vi o di abo ! Fugiu-me a luz dos o lhos . F o i aminha pe r d icão ! Agora aq ui e stou , e se ra o que Deusquizer .

D á Cá uma c in ta , Mari a , para e ste homem mette r o braço ao pei to .

Esta tudo p r omp t o , patrão — ve in dizer ne stemomento 0 Anton io .

Então vamos . Tome la a ci nta , e sub a para 0

carro,sr . S imão . A j uda e s se homem ,

A ntonio .

E 0 Manue l Jal eco , afastando - se com a mulher ,di s se- l he a l gumas pa l avra s em vo z baixa . A t ia Domingas empa lli d e ce u .

E agora ?— pe rguntou e l l a,com a voz anciosa .

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23 2 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

s er mui to,mas não gosto de ver de p é dean t e d e

m im se não os meus creados . Vie st e acompanhan do0 carro . O que trouxe s te ?

“ Trouxe o V i nho para O sr . A lme ida .

'

O boti car io ? Fize ste bem ,que e l l e j á me t inha

di to que o e sperava . Com aque l l a gente é bom é st a rmo s de boa s avença s , por causa das doenc a scomo d i z c á o nosso pr ior .

— E a l ém d o vinho tambem lá vem outra e n commenda

,e e ssa é para o sr . doutor .

Para mim ?

Sim, senhor , para o meu compadre . Talvezse j a depoi s tambem para outra s pe s soas

,mas

, po r

o r a , é só para o senhor ; e depoi s o senhor dirá o

de sti no,que se lhe ha de dar .

Homem,d e sembu cha la

' com i s so . Estás a ss imcom o s modos de quem engul iu um ma rmello , e 0

t em atrave s sado n a s goe la s !A fa l ar a ve rdade

,n ão anda longe d i s so

,que

e l l e não é mau ma rme llo , e at é é ce rto que j á hoj e0 provou , e quem lh

'

o deu a provar fu i eu .

Bem digo eu,Manue l . I s so é a l guma adivi nha

ção . Se é , j á te digo que a s massadas e stão p r o hibi das . Leva e s sa para 0 A lmei da , que e l l e d a 0

cavaqu inho por uma charada .

Ora cha t em e l l e lá muito n a boti ca ! O casoé outro

,s r . compadre .

' En tão rebenta p ara ahi com i sso ! O qu e é , li .n a lme n t e

La'

v a e . Trago a li o homem .

Qua l homem,Manuel Estas -me intri gando , e

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(IARA )A S PORTUGU S

João André cofi ava a ba rba,e n a phys io n om ia a t

t en ta lía -s e - l he a curiosi dade .

Eu de “i n triga s e qu e n ão so u . Então o meu compadre n ão adivinha o que é

,que eu lhe trago ? !

— Não , e r e n ão ! D e sembu cha po r uma vez !O homem que sa l tava o muro !Ta , ta , ta ! Então apanhaste -o , he in ! (Sa iu o

lobo n a ratoe ira h n a lme n t e . Já n ão e ra sem tempo .

A i nda bem , agora e stas d e sca n cad o .

— ls s0 de d e sca n ç ad o é um modo de d ize r ;quemt em ca sa , tem cuidados . Mas é que o caso a inda nãoes tá l impo .

Como não esta ! Tu agora , ja se vê , que 0 t raz e s prezo

,para o entregare s a justi ça . E

'

0 que ten sa fazer

,e 0 qu e te convem para e scarmento d outros .

- Poi s ahi é que bate o ponto . El l e caír a n o s fe rros d º

e l—Rei,mas nan j a que eu lh

'

o vá entregar !Então porque E

ª teu amigo,teu parente , o u

ten s medo d e l l e ?— Não é nenhuma d e s sas coi sa s — nem am igo

,

nem parente,nem medo . Eu lhe digo

,compadre ,

como 0 caso se pa s sou .

E 0 Manue l Ja l eco narrou,com todos o s po rme n o

r e s , o s in ci dente s do l ance , a que O l e i tor j á a s si st iu ,até ao ponto em que o de sconhec ido se d e sma sca

rou,dizendo quem era . Ao ouvir o nome d o S imao

Contrabandi sta João André abriu muito o s olhos , edeu um as sobio muito prolongado .

Conhece—0, compad r e P

— perguntou o Jal eco .

Se conheco ! I s so é um menino ! Não é so cont r aba n d i s t a , é matador !

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- 34 CACADAS P ORTUGUEZAS

Bem se i . El l e contou-me tudo . Como j a n ão

t em nada a perder , veiu dizendo—me , pe lo caminho ,como ti n ha s i do a morte que fi zera

,e outras coi sa s

q u e até me me t t e r am tri stez a . E tanto é que eu mu

d e i de t e n cão, e venho pedi r- l he para lhe faze r 0

curativo , e depoi s e l l e que fu j a , que s e vá com Deus,

o u com Sa t a n a z .

Tu estás doido Manue l !Não , senhor , nunca e st ive mai s em meu j u izo .

Mas e n t r e g al—o e u a j u st iça,i sso é qu e nunca ! Juro

lhe por a lma de meu pae , qu e D eus tem . Nunca ta lfare i !A s s im como ha almas e ssenc ia lmente perve rsa s

,

h a outras e ssenc ia lmente boas , tão i n a cce ss ive i s assu gg e s tõe s do mal , que não ha no mundo força ca

pa z de a s faze r de svi ar uma l i nha do tr i lho do bem .

Aos qu e são a s s im , a in da .

quando não receberame d u cação de e spec i e a lguma , parece que a v irtudeo s i l l umina , e l he s de sfaz os sophi smas tenebrososc om que , ás veze s , o vi cio ve ste e e ncobre , aos o lhosdos s impl e s e dos i gnorante s , os actos mais torpes ,os c rime s mai s hedion dos ! Manue l Ja leco era umd e s te s homen s si nceros , honrados , absolutamentebon s .

O doutor André ol hava para e l l e e spantado . Nuncao j u l gara capaz de o impre s sionar , a e l le !

— Anda ca'

,homem . Então e s se sa l teador entra

n a tua casa,in sul ta—te

,te nta matar—t e , e matava—te ,

se tu não fosse s mai s va le n te do que e l l e ; e agoratu . depoi s d i s so , e de sabere s pe la sua propri a bôcaque e l l e anda fugido por uma morte que fez , quere s

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236 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

não ha de ser preci so . Vamos l á ve r 0 homeme,depoi s d uma paus a , o do utor acre scentou : Sem

pr e te di go que e l l e sa l tou'

n a. tua qu i n t a'

com 0 pédire i to . D eu com t ig o , porque , s e fos se com outro ,a est as hora s e stava aba cella d o .

E , que eu ti nha-o j á n a frente , e ainda me é st ava a lembrar da sua r e comme n d a cão : — OlhaManue l

,não mate s o homem .

O doutor e stava aturdido . q uanto fazi a o pensoda fractura o lhava attentamente ora para o feri do

,

o r a para Manue l Ja l eco , mas quando fi tava e ste e rade sos l aio

,e n o s seus o lhos l i a i s e o e span to e a ad

m i r a cão .— Que homem ! pen sava e l l e com s i g o .

Terminada a operação , que e ra simples , vol tarampara almo ca r . Nunca os gui sados sem p r e t e n ç õe s dasua co s i n ha provinc ian a tinham pare c ido a João And r é tão saborosos , e o cavaco dos me lhore s conversa d o r e s d o s hote i s de Li sboa e do Porto achava-opal l ido a o pé do mode sto e fami l iar dia logo

,t ravado

com 0 . seu conviva .

A' despedida o doutor pegou em meia duz ia de

charutos :Toma lá . E tua mulher

,quando te vi r de cha

ruto na bôca , pode dize r—t e , sem menti r,que são

fuma ca s de va l e nte !Adeus

,compadre . E

,

o melhor d ia da minhav ida e ste . Quando entre i aqu i traz ia o coracão pe

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cm;/ma s P OR'

l'

UGUIi ZA S 2 3

qu e n i n o como i sto . Obrigado,muito obrigado — e

abraçou- se ao outro, a chora r .

Di

ah i a pouco o s j orna l e i ro s que se c ruzavam com

e l l e , e que o viam bem montado a o l ado d o seucarro , de charuto na boca , rosto al egre , saudando —o s , e cantarolando pe l a e st rada fô r a , diz iam unspara o s outros

E )

o Jal e co . Amanha - se bem .

Ora , aqu i llo va e num s i n o l

Bom n egoc io fez e l l e . l ' ae can tando !Não fôra bom n egocio

,fo i mai s d o que i s so

,fo i

uma boa acção .

Quando chegou a ca sa , Mari a Domingas , que o

e sperava anc iosa,apena s de longe o v i u

,correu para

e l l e .

Já princip i ava a e star com cuidado em t i .

E en tão . fi cou pre so .

?

Não o en tregue i a j us ti ca . Mudei de ten ção . Lá

o de ixe i n as mãos do compadre — e Manue l fez umsignal a mulher .

D'

ah i a pouco,na adega

, Ma r i a Domingas ouvi ada bôca de seu mari do a n arrat iva da vida do co n

t r aba n d i s t a,como e ste lha contara e todos os mai s

pormenore s do que se pas sara n aqu ella manhã .

E agora,depoi s de curado ? perguntou e l l a .

Que fuj a,que procure a sua v ida . O resto é

com e l l e e com Deus,que é Pae de mís e r i co r d i a !

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CACADAS P ORTUGUEZAS

n he co ! Cada garimpo ! E rapariga s então ! Mocetonasde verga a l ta

,ve stida s e o i r a d a s a _p r

'

e ce i to ! A l gumasv i eu agora , que , quando não t e n ham ,ma i s nada

,o

q u e trazem em cima de s i é j á uma boa folha,para

um rapaz de porte se governar . O meu Jos é l á é st ava de conver sa com uma . Eu bem o v i

,mas fi z

que n ão . Que e l l e para a l l i não va e mal guiado .

Toda e l l a era o i ro ! Arrecadas , ao s pare s , em cadao re lha , cordõe s a s s im as vo l ta s ,

'

e g ros so s ;coraçõe s ,a l gun s tre s , e c ruze s muito boni tas dua s pequenase uma grande ! E tudo aqu i llo s e v ia que era novo .

D i nhe i ri nho fre sco . . Umas parti lha s de ha pouco .

É fi l ha de l avrador . O pae dizem que de ixou umc a são ás hlha s , que são duas . F o i o que me di s se ram .

— De forma — di s s e mestre João — que a vocêt ambem lhe n ão vae mal n a fe sta , faz negocios em comprar , n em vender : emprega o se u fi l ho . El l et ambem mere ce —o — que

,s em offender n inguem

um rapaz como uma flôr .

Mal me fi ca d i z e l—o — mas lá i s so é . E ape sa rde t er a qu e lle corpo , e s er homem as d ire i ta s ,o lhe que nunca me fa l tou ao re spe i to . Nem a mim

,

n em a mãe,que D eus haj a . A inda não me d e u um

de sgosto como i sto . E com o po lleg a r 0 Joaquimapontava a cabeç a d o dedo m ínimo .

É verdade , é verdade d i s se ram os que e stavam pre sente s n a loj a d o mestre Joao — o regedorno l argo , em frente da egre j a .

Eu tambem os ou vi hon tem,sr . Joaqu im .

La e stavam ao de safi o . E mai s é que e l l a,sobre se r

bon ita cachopa , canta bem . Dl

aqu e lla pode - se dize r

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(SACADAS P ORTUGUEZA S 24 1

que se o pe i to é d oi ro , a garganta é de prata . El indas cant iga s

,que e l l a tem no regi s t ro ! A i nda me

l embra e sta :

D e sc e i,an j o s ! D e sce i

,a n j o s !

V in de po isa r n o C a l va r i o !V i n de c o br i r c om a s a z a s

a Se n ho r a d o Ro sa r i o !

Ora a fe sta é a Senhora do Rosario , e en tão jávêem como a cantiga vinha a j u s ta . E todas e ramas sim

, fi nas , como e sta . A qu illo j untou- se a l l i gente ,

qu e , s e ca i s se um alfi nete , não ca i a no chão .

E O amigo Si lva apanhou - l he logo a canti gaNão fosse voc ê tambem cantador

Aprendemos un s com os outros . I sto n ão andanos l ivros

,e então v ae de o u t iva . Quem mai s e me

lhor ouve,mai s sabe .

“Mestre João, qu e , s entado na sua cadei ra , dentro

d o bal cão , pre si d i a a e sta academi a ru sti ca , era oregedor da te rra . O sr . Joaquim do Gie sta l

,que

voltara da sua ronda pe l a fe i ra,exerc i a a s fu n cçõe s

d e cabo ge ra l . Refre sc ara- se com um copo d e vi nhoverde , e sen tara- se tambem . Os outros soc ios e stavam d e pé , en costados ao bal cão e as porta s .

Propri e tario , l avrador e logi s ta — o digno fu n cc i onario e r a das pe ssoa s mai s gradas do logar

,e por

t odos e stimado . Quem o vi s s e com a sua barba aindanegra , e spe s sa e cre sci da

,grande s sobrance lhas

,a s

mãos forte s e cabe llu d a s , e a vo z gross a d e baixoprofundo , tom a l -o —i a por um F e r r abr a z d e r e spe i

to , mas todos afli rmavam q u e e r a a bondade em1 6

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242 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

pe ssoa . Apen as a lg u n s ,

'

d o s qu e lhe fa z íam'

0ppo s i

cão nas e le i çõe s , diz iam qu e e l l e , .

quando moço , sepegara um di a com um dos va l ente s do l ogar , 0 d e sarmara

,e de ita ra por uma rib an ce i ra . Outros afli r

mavam qu e não , e e ram i n venções dos seus in imigo spol i t i cos .

Tudo podia se r —

qu e os homen s bon s , quandote em força , e os provocam

,fazem como os outros

—'saem dos seus e ixos e dam para ba ixo .

De pouca s pa l avra s,i s so e r a e l l e . Mas havia uma

phra se, qu e lhe andava sempre n a bôca : e r a e sta

— Tempos c a lamitosos !Tempos cal amitosos ! — costumava e l l e dizer

,

a mai s l eve sombra , que surg isse no seu horizonted e homem , de l avrador ou de au ct o r i d ad e .

Tornar-se - i a uma a l cunha, e moer iam- n —o com e l la

os seus adver sarios,se fos sem seu s in imigo s pe s

so ae s ;mas a verdade é que e l l e n ão os tinha , e d ah ia d i caci d a d e sertane j a não repara em coi sa s tão p équenas . Mestre Joao ouvi ra aque l l a s palavras a umcandidato a deputado

,di s correndo deante dos seus .

e l e i tore s — e , como 0 orador a s r epe t ír a varia s veze s ,deram—lhe no goto

, e e l l e guardou- a s, e recorr i a a

e l l a s nos ca so s graves . Eram o seu bordão .

Tran sbordava o Mondego , inundavam—se os campos , fa l tavam as chuvas , e morri a o gado á sêd e ;

ca i a o m in i ster io, qu e e r a da sua pol í ti ca , chegava

lhe a noti c i a d a lgum motim e l e i tora l numa te rra vis inha

'

; afundava um tempora l dua s ou tre s l anchas.

po ve i r as;'

vinha a lgum desta camento, qu e e l l e t inha

d e aboletar . Tudo i s to e l l e commentava com a su a

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244 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

desvai rados,e o ffe g a n t e da corri da , l evou as mãos

enc l av inhadas quas i a' c ara do regedor .

Vamos l á . Vamos — di s s e e l l e . Mas o qu e é ?

D i z e—me,Mariquinhas !

El l a,sem re sponder

,vo ltara costa s

,parti ndo , a

gritar como louca , pe l a rua foraQue d e sg r aca na minha c a sa ! Acudam ! Acu

dam !

Quando mes tre João chegou a porta do Domingos 'da Azenha

,e i a a entrar , e stacou d e repen te .

Os que o acompanhavam fi zeram o me smo .

— Je sus ! — di s se e l l e , abr indo os bracos , com asmãos l evantadas , no ge sto de quem repe l l e al gumaco i sa

,e re cuando .

— Je sus ! O que é ?Eo Domingos repet iam eperguntavam , no po vo le u , os que não viam a causado e spanto do regedor .

Ao me io da cas a d e entrada,d uma das trave s do

tecto , pend ia , suspen so no ar , um grande vul to . Aquadra era grande e e scura

, e d e fora para dentronão se vi a b em , mas me stre João afli rma r a—se , e v iraque e r a com e ffe i t o um homem enforcado .

— Não é o Domingos . E quem é morreu agora—di s se e l l e , vol tando- se para os outros .

A s u l timas co n t o r sõe s da morte acabava de asvêr , e por i s so re cuara .

Su spensos deante do extranho e sin is tro e spe cta

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CACADAS P ORTUGUEZAS 242

culo,n inguem se atreveu a entrar

,e nos primei ros

momentos hca r am todos em frente d a porta,olhando

para dentro , immo ve is como e statua s .

Os gritos da R u ssa e a pre senca da a u ct o r i d ad e

chamaram logo a l l i toda a gen te, qu e os ouvi ra .

O qu e é , t ia Maria ?

O que foi ?Mataram o Domingos ! re spondeu um .

Nada,não . Enforcou- se e l l e — emendava ou

Porque se ri a ? in s i s t i am as curios idade s , agucada s j á para os pormenore s .

Não se s abe di s s e um terce iro,com are s gra

ve s , dando o caso j á por certo .

E assim i am os curiosos e alvi ca r e i r o sdi s creteandod e grupo em grupo

,ouv indo

,i nventando

,e e spa

lha n d o d is l ate s e menti ra s como é de uso tambemnas grande s c idade s .

Ao longe ouvi a- se o som grave do bombo e a s

notas agudas e s ib i l ante s d uma ga ita de fol l e s , rebo a n do nas quebradas da se rra frontei ra , e pel ae st rada vinha um rancho para a fe sta , cantando a

F a r r ap e i r a .

O'

a i ! O '

a i !

Q u em'

sco r r eg a , tamb em ca e !

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246 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

Uma cho r éa rus ti ca , a l egre e rui dosa .

El l e s — os rapaz e s — com os grandes chapeus bra

g u e z e s , ornados d e enorme s bor l a s de t o r ç al preto ,cami sas d e pr e g u i n ha s , a l gumas com botõe s d e prata

,

“ j aqueta s d e a lama r e s , larg as c intas ve rme lhasama r e lla s , pre ta s , a z u e s , verde s; outros d e barrete s ,tambem de côr e s va r i eg a d a s ; todos de sapatos b ranco s com os seus pe spo n t o s vi stosos , e grande s ca

j a d o s , com as ponte i ra s bri lhante s como oi ro . Nosd e mai s e d a d e as côr e s eram neutras , fazendo dest ac ar a qu e lle s ton s v ivos e cru s , que , como os d umk a le i dósco po , remo inhavam na dança .

El l as — com as sua s cami sa s bordadas , os corpet e s j us tos , apertados n a c inta , e avivados d e côr e s

c om botõe s d e meta l l uzente — contorn a'

ndo—l he s osbustos forte s e e l egante s , a s sa ia s rodada s e curtas ,as meias brancas

,a s chi n eli t a s de b ico revol to

,a

m ei o pé,e n a cabeça

'

o chapeli n ho , a' l avrade i ra

,

sobre garri dos l en cos d e ramagen s , que , na de se nvol tura dos movimentos

,ora cob riam ora de scobriam

o s rostos morenos e rosados , d onde l he s sa l tavamos o lhos a l egre s e bul i çosos . Olhos pen insul are s

,

«olhos de vint e anu os,que , n a sua v iveza , faz i am

concorrenci a vencedora ao e sp l endor das arre cadas,

aos grande s co r acõe s de fi l i gran a e d oiro bat ido , eá s core s e s t r e lla n t e s dos l en ços ,

"

que e svo acavam !

Sobre e sta symphon i a po lych r oma, desordenada

'nos pormenore s,mas harmon ios a no co n ju n ct o , d e s

tacavam — como un s p i g i ca t o s, che ios d e e spo n t a

n e i d ad e e d e fre scura — a s v ivas notas colori das da sflôr e s do campo

,com qu e e l l e s e e l l a s pe lo cami

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248 CACADAS P ORTUGUEZA S

A t a do Domingos da Azenha entrara , sem hés i tar e sumira-se no i nterior . Er a '

a n imo sa a pequena . F ôr a dar uma vol ta pe l a ca sa — não se t ive s sel á me t t ído al guem , emqu a n t o e l l a foi chamar soccorro .

Mestre João , depoi s d e fa l a r com o seu cabo g eral

,entrou , de scobrin do—s e . At raz d e l l e s egui ram to

dos,de ixando no meio , em volta do morto , um e s

paço l ivre . Era o natura l re spei to pe los mortos , e ai d éa do crime , o que os affa s t ava do si n i stro vu l todo enforcado .

A l gun s,mai s atrevi dos , correram os quartos todos ,

como em busca da exp l icação d '

aqu e lle mys t e r io .

Com e ffe i t o 0 ca so e r a para faze r pen sar ! Um ladrãoenforcar-se na propri a casa , qu e queri a roubar ! .

Nunca s e v i ra ta l coi s a ! E em te s to s ri j o s,como

aqu e lle s , n ão entrava fac i lmente a poss ib i l i dade d eseme lhante tragedia !Esquadrinhados todos os recantos

,vol ta ram e e s

tacaram deante do morto,olhando ora para e l l e

,ora

para o regedor,ora para a Mari quinhas

,que

,ainda

so lu ca n do , estava a um canto , encostada a arca , s obr e a qua l se vi a uma grande faca .

Mestre João sentara - se,perco rrendo com os ol hos

a ca sa , e encaran do attentament e o enforcado

qu e e l l e j á re conhecera . Depoi s l evantou-se , e , comopara ti rar duvidas , fo i ao pé d e l l e , e examinou -o deperto .

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CAÇA n A s P ORTUGUEZAS 249

—E” e l l e

,é . Está d isfa rçado

,mas bem se conhece .

Cortou barba, e n ca r vo o u

-se,e amarrou um lenço

aos que ixos .— Enganou a pequena , mas a mim não

me emba cava .

E term inado e ste monologo i nte rior , chamou o fi e lJoaquim e di s se- l h e em segredo

E ,

0 Jos é Ta n o eír o . Mas como e l l e arran jou e st epar de bota s para i r para 0 outro mundo , é qu e e unão posso at in ar !

El l e sempre fo i ma r e z . E por i s so ve iu corr idol á de Vi l l a Nova de Gaia — di s s e 0 cabo gera l .— Q u ee l l e n ão é nas cido aqui . Ma rez — s im ,

mas não e r atol o . A h i j á se rosnava d e l l e , e eu , cá por coi sa s ,traz i a-o j á d e olho .

Vamos lá ouvi r a pequena — di s se a l to me streJoão .

— E o sr . Joaquim tome n ote das re spostasd'e l l a , e os senhore s pre sente s s e j am te stemunha s .

Q u e e u d is to l avra re i auto — cá para me u governo — auto que o s senhore s a s s ig n a rão como souber em .

Ora anda cá, menina, e agora , qu e j a e stásmai s so ceg a d a , conta-nos como foi i sto tudo . Eu querosaber tudo

,de sde o prin c ípio . E quem é e ste ho

mem ,se tu 0 conhece s . Em Em tudo que é para

e u dize r a j ust iça, e tu d e sca n ça r e s , e t eu pa e

não t e r traba lhos — porque,no fim de tudo , 0 qu e

nós vemos , por agora , aqui , é um homem m ortoem tua casa , e então é pre c i so sabermos como i sto

E depoi s d e ste p r e ambu lo ,'

qu e não foi ci ce ron ico , mas qu e todos en tende ram ,

fe z - se si l en c io .

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250 CAÇADAS PORTUGUEZA s

A Ru ssa s a i rá do s eu canto , e j a e stava em pédefronte de me stre João .

—Eu vo u diz e r como foi . A O princ ip io n ão o con heci ;

Ao pri ncip io ?— ob se rvou o regedor . I s so a s“

s im parece-m e qu e não va e bem .

Sim , s enhor , ao pr incip io — r epe t iu'

e lla . Por

q u e e l l e t raz i a a cara tapada , e fa l ava com outravoz .

— Mas o lha,menina

,ha de haver outro pr inci

p io ante s d e s se .

D e scu lpe o sr .

- João .— Eu ainda n ao e stou bem

em m im . D á-me a ss im baque s a cabeça . Pare ceme que me fal ta o ar ! Mas eu conto . Eu vou con

t a r tudo de sde O pri n cíp io .

Quando m e u pae , ho j e de manhã cedo , foi paraa azenha

,l evou a e sp ingarda , e d isse—me que não

abri s se a porta a n inguem,e que

,se e l l e matas se

a lguma perd iz na serra,m

i

a mandava ca, ou vi nhae l l e traze l—a

,mas qu e o mai s ce rto e ra manda l -a .

E foi—se , repet indo -me : Tem cuidado com a porta..

Parec ia e l l e que adiv inhava ! Eu cre io que e l l e andavadesconfi ado d al guma coi sa , porque j á n ão saía d eca sa s em a arma .

Ha pedaço,e stava eu lá dentro , s ent i mecher n a

porta,e pergunte i

,mesmo de l á , quem era . A voz

.qu e me re spondeu , pare ceu-me a do Ca ba ca , que é

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252 CAÇADA s P ORTUGUEZAS

E eu , toda a tremer , fi cou-me aqu i a vo z pre sa ,e puz a cara no chão .

J á e stavamos cá em baixo — a l l i,aque l l a porta

e apon tou para a porta i n te rior . El l e n ãot inha l argado a faca da mao . Agarrou-me pe lo pe scoço

, e com u n s o lhos as s im, qu e lhe sa l tavam da

cara , diz-me

— C0mo quere s tu morre r ?Com a faca n ão ! Não ! gri te i e u .

— Não gri te s , que n inguem t e acode . Vae s en tãomorrer enforcada . Uma corda ! Va e buscar uma

corda .

— Não s e i onde e stá .

A pe z a r do medo grande , e u ia—lhe re sponden do , .

Queri a vive r . .

Olha , e stá a l l i uma n aqu elle prego — e fo i bus

— A i ! senhore s , d e que eu e scape i ! Foi Nos saSenhora qu e me val eu ! . E num in stante fez um

l aço , e , sub indo aqu elle banco , armou-o n a t rave ,puchou po r e l l e com forç a

, e chamou—me , que lheseguras s e o banc o . E quando e u lh

i

o e stava segurando , e t remia como vara s verde s

,o malvado d i z

me as s im , com uma cara . A i ! sr . João, eu ainda

i s to me parece menti ra !—Mas o que te d is se e l l e ?

— Q u e queri a experimenta r , ve r se o l aço corri abem , para n ão faze r doer .

Q u e grande malvado ! O pati fe , ainda em cima ,e stava a mangar comt i go !

E va e,me t t eu e l l e a cabeca no l aço

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CAÇADAS P ORTUGUEZAS 253

E depoi s — pe rguntaram todos,que i am acom

pa n ha n d o , com os olhos a t t e n t o s na rapariga , a narr a t iva .

Depoi s,não se i como fo i . Eu não lhe segu

rava j á o ban co , que lhe fugiu dos pé s E e l l e ficou a s s im no ar ! . Eu

,quando o vi a dar com as

perna s, e com as mãos agarradas ao pe scoço , corri

ao sotão,s a l te i para o quinta l

,e de la dei te i pe la

e strada fora , a gr ita r .

Porque n ão'

foste por e sta porta ?Não

,senhor

,que e l l e t inha me t t id o a chave n a

al gib e ira . Eu j á di s se . E el l a l á ha de e star,mai s

o dinhe iro .

Mas e l l a e stava aberta .

E , que a arrombaram , depoi s d e eu sai r d aqu i .Então tu não o a judaste a bem morrer D iz e

l á ! Tu se r ia s capaz d e l he pu cha r pe l a s pernas , vendo -o a l l i s eguro

,he in ?— E mestre João fi tava os

o lhos d a (

Ru ssa ,a ve r s e de scobri a ne l l e s a co n fi r

mação da suspei ta , que lhe pas sara pe lo e spír i t o .

Eu ! s enhor João ! — respondeu e l l a,com O olha r

e spantado , e um ar de medo e pasmo . E recuandodeu um gri to , e ca iu no chão

,e scondendo o rosto

na s mãos convul sas .Corre ram a leva n t a l-a .

— A i nda e st á vivo ! — g ri tava e l l a , debatendo—s ee spavori da , apontando para o morto , qu e balo u cavano a r .

— Foste tu qu e l h e de ste com as costa s , quandorecuaste . So ce g a , pequena , que e l l e e stá mor to e bemmorto . Tirem-n -o d ahi , e ponham—n -o aqu i no chão .

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254 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

O 'Jos é da Magda l e na di s se o rege dor , apontan dopara um dos p re sente s — é que fi ca de gu arda acasa

,e vam avi sar o Dom ingos d e qu e t em c á um

hospede,e que , se matou a

'

pe r d iz , hã-aqui quem

lhi

a a jude a comer . E vamo—nos embora, qu e e s t a

e stava- nos.

guardada para o fim da festa !E o dinhe iro de meu pae

,que . e l l e t em al l i n a

al gib e ir a ? — perguntou a Ru ssa .

Já lá vamos , meni na . Tu sabe s quanto e r a ?

Eu não , senhor ..

Então va e—se véiªD á—m'o ca.

Eu ! — d is s e a pequena , toda encolhida .—O

senhor José .

Jos é, d ei

-mi

o tu .

—Vamos la, qu e O l adrão ti nha faro ! Ol é , se t inha .

'

Tem seu pe so obse rvou o Jos é, sope sa n d o

o saco,quando 0 t i rou das al gib e i ra s do morto .

Os que estavam al l i fi taram os olhos no the so uro

, qu e pas sara as mãos de mestre João . O regedorva so u -o em cima da arca

, e contou para s i o d in he i r o . Depoi s do que tornou a m e t t el-o n o saco ,que atou muito bem

,e,abrin do a arc a

,deixou -o

cai r dentro e fe chou—a .

— Agora fi ca aqui . O que t u dirás , José , ao t ioDomin gos , quando e l l e v i e r . E c a

'

.l evo a chave d a

arca . Tu ten s medo d e aqui fi c a r ? Estás as s im com

cara de g a lli n ha cos i da ! Todo arrip i ado !Se lhe parece que o c aso n ão é para i s so , me s

t r e João !Olha l á .

— Como a ca sa tem saída pe lo quin ta l ,qu e âqu e outro de vocês de guarda as t r a z e i r a s . .

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256 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

Mestre João o uviu , e, vol tando—se para o l adod onde parti ra a cen sura , d i s se

—' Eu quero qu e

' s e j a e l l a quem fa l e aqui deantede todos

,porque dos do is

, qu e entraram ne ste caso ,um j á não fa l a

,e ainda q u e fa l a s se e r a su spe ito : re sta

a rapariga . Eu j á a interrogue i la, no l oca l do crime ,e j á fi z a minha i dea . Mas é p r e c i so tambem qu e ossenhore s a ouçam . E eu tambem quero fi c ar s em asombra d uma du vida ace rca do modo por que aqu i llose pas sou . Como regedor tenho de dar parte do casoao senhor admini strador do conce lho e ao senhorprior d a freguez ia — aqu i mestre João fez um apa u sa

re spe itosa . Quero por i s so e star b em certo do qu el he s tenho a dize r . Agora dize tu , Mariquinhas , comotudo se pas sou . Este s senhore s , que são todos amigos d e t eu pae , t e em muita vontade de t e ouvir .

Terminada a narrat iva,a a s sembléa foi—se e scoando

l entamen te,impre s s ion ada pe l o tragico acontec i

men to , e admi rando , ao me smo tempo , O sanguefrio da rapari ga , que , em tão apertado l ance , nãoperdera d e todo a cab eça , e procurara defender odinhe i ro do pae , e a v ida , tão sér i amen t e ameacada !Nas fi l e i ra s da o ppo s ição fi zera e scanda lo o grace jo

do regedor , quando se referiu ao hospede, qu e o Do

mingos v inha achar em casa , para o a judar a comera perd iz . Um horror ! O Esteves , quando o soube ,foi l ogo co n t a l-o ao Gon ça lve s

, e e ste pa s sou-0 aoTavare s da Galli n he i r a antigo regedor que 0 assen tou no caderno das accu saçõe s , qu e e l l e havi a d e

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CACADAS r o ar u o u eza s 257

faze r val er contra o me stre João , qu ando o se u pa r

t ido sub i s se ao poder .O d a Galli n he i r a — al c u nha qu e lhe vi e ra d amãe

— ao ou vi r a hi stori a , o lhou para o s eu compadreS i lva

, e , pi scando 0 olho , repl i cou-lheNão me admira . El l e sempre fo i l eve d e lín g u a

e de mãos .

O riva l venc ido e despe i tado a llu d i a mal i c iosamente ao ca so da ribancei ra .

S im , sim confi rmou o outro, com tom se n

t e n c i o so . Neste s.l ogares tem a gente obrigação d e

medir as pal avras . E com os mortos n ão se brinca .

O nosso prior tambem não ha de gostar , quando osou be r ..

- E. n a tu r alrr i e n t e não ha de tar dar mui to . Eu

vou l á agora, e j á vo u encontrar a novidade , aposto .

E vo u,po rque tenho que fa l ar com e l l e po r causa

d uma certi dão .

Estas u lt imas pal avras di s s e—a s o Esteve s por di s

far ce . O ún i co motivo que o l evava a procura r opr i or

,er a in form al—o do esca n d a lo so procedimen to

do regedor . Não podia pe rder uma o cca51ao taoa zada para o i n tri gar .

Mestre João , quando se v iu só na lo j a com 0

J oaquim do Gie sta l , depoi s d um s i l e nc io d'

al gun sm i n u t o s ,

'

em que esteve d e certo mergulhado em! 7

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258 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

t étri co s pen samentos, su spi rou , l evantou os olhos a oal to

,e exc l amouJoaq ,u im ,

Jo aqu im'

!“Tempos ca l amitosos !

Des cu lpe eu c ontradizer a sua pal av ra ho nrada — rep l i cou o x o u t r o n— r mas 0 que devemos dizer ne ste caso

, aé : . qu e onde e l l a s s e faz em ,ahi s e

pagam !E tambem é certo que D eus e screve di re i to

por linhas tortas,e stava eu cá pensan do agora

acre scentou me stre João l evantando-se e pondo a

mão no hombro do Joaquim .

Como as s im ? —

pe r gu n t oui

o do Gie sta l,s em

perceber o sentido das pa l avras do s eu amigo .

"

- Você não entende ? Eu lh i

o exp l ico . Quando ohomem se v i u descoberto , p e rdeu a cabeca , e , s enão acha uma corda a l l i a mao

, e r a uma ve z a R u s

sa .

! El l e degol ava a pequena . Que a furi a dos med r o so s é d e t emer ! E nós t i nhamos agua pe l a barbapara darmos com o l adrão , com tanta gente

,que

ah i e stá de fora ! E fo i e ste o cal cul o d e l l e , aprove i tan d o e sta o ccas ião . No qu e se enganou , e t ambem em j ulgar que e l l a não o conhec ia , as s im di sfa r cad o . Mas 0 diabo cobre com uma manta , e d e scobre com um chocal ho

,e a R u ssa pescou o marau

pe l a voz . Já se vê d a qui , que , quem sa lvou a vidada R u ssa e 0 dinhe iro do pae , fo i a corda . Se e l l anão appa r e ce a l l i e l l e matava e roubava ! . E talvez se Hca s se a r i r da tropa ! As s im ,

agora , fi coutudo como e stava

,e ha um l adrão -a menos ! Deus .

es creve d ire i to por l inhas torta s ! — A l inha aqui éa corda

, qu e é tambem uma l inha gro s sa e torta . E

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Ulm oas is emCar n ax ide

A o d r . Lu ca s F alcão .

A n d avamo s , Joao For j az , eu , e outros , at irandoás perdiz e s nos arre dore s de Li sboa .

C acavamo s em te rrenos de sconhe cidos,abr a z ava

nos o calo r,a sede começara a torturar-me

, e n aoviamos fonte algu ma ! Aproximamo-nos , portanto , dopovoado

,e,av i stando uma quinta de b e l l a appa r e n

ci a , muros al to s , e l argo portão , di rigimo—nos para l á .

A ! fa l ta de perdiz e s,que n ao e n co n t r a r amo s , i amos

matar a sêd e . E poderi amos tambem d e ste modosoph i smar agradave lmente a vergonhosa g r a d e, quej á nos ame acava .

O mag e s t o so portao e stava cerrado , mas , aprox ima n do —me , senti o grato mu rmu r i o da agua corrente !Um o a s i s no de serto , aque l l a v ivenda , qu e al l i se

nos deparava ! Uma verdade ira s a lvação — porque

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262 CAÇADAS PORTUGUEZAS

a inda qu e , em ve z de Z achar i as eu me chamas s eMoysés

,e t ive s s e nas maos a mi l agrosa vara

,fa l

t ava me o rochedo ! Ao perto e ao lon ge, quanto oso l hos .pod iam a lcan ç a r , nn a o v iamos sen ão re s tolho e

ca lh aus !

Uma verdadei ra d e so la cão ! Uma d aqu ella s ari das

pa i z a g e n s d o Oriente , que Lot i nos pi nta em quatrotracos ! Faltavam- l he so os came l los e os bed u i n o s !Mas se a sêd e continuas se

,quem sabe s e n os che

g a r i amo s as a llu cín a cõe s da mi r a g em, e então com

ple t a r- se - i a a vi s ão

,para al l i tran sposta

,do Grande

De serto ! E ver íamos camel los,bedu ínos

,e tudo !

A porta,com a sua grande argol a e a a l ta e l arga

mol dura de can tari a,t inha a a ss i g n a t u r a do se

cu lo XVI I I,e impunha re speito .

Esprei te i pe l a fechadura . Em frente,n ume spa

coso pateo,vi uma fonte

, d onde corri a um l argo

j orro d a gu a'

c rís t a li n a ! Levante i o argol ão e bati , eao cre ado

,que immediatamente no s appa r e ceu , ped i

agua para mim e para os meus companhe iros . Mandou-nos logo entrar

,facu l tando-nos a alme j ada lym

pha .

A O ruido da noss a entrada e a appa r i ção dos i ndi s cre to s perdigue iros , as somou a

'

porta da magn ifi ca v ivenda o seu propri e tario . Reconhec i-o l ogoe r a o meu companhe iro da barca d a Azambu j a . R e

conheceu—me e l l e tambem,e com e ste an imo hospi

t ale i r o , tão nos so , convidou-nos a de scançar. e tivemos qu e lhe agradecer n ão só a de l i c iosa agu a dasua fonte

,

'

mas a cerve j a e a s bolachas qu e , em se

guida,nos o ffe r e ceu ,

l evando a amab i l i dade ao ponto

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264 CAÇADAS P ORTUGUEZA S

evocavam-nos a l gun s dos per sonagens , qu e entrevemos

,t ão bem de senhados , nas famosa s carta s d e

W i l l iam Beck ford . Era aque l la,decerto uma das

e le gan te s quin tas,de que e l l e nos fa la

,em belli ss i

mas d escr i pç õe s , e po d er i a b em se r a que i n sp irouas famosas qu i n t i lha s do nosso chi s t o so poeta .

Um typo , um specimen este , a dmirave lmen te conse rva do dos sym e t r ico s j ardin s e s tylo Luiz XIVdo cl as si co Le n ôt r e . Um a e spaçosa e en can tadoravivenda , dominando um va l l e , que va e des ce ndosuavemente , e , apertando- se entre acci dentada s e

grac iosa s col l i n as,deixa ve r la em baixo

,ao fundo

,

o Te j o e os monte s da Outra Banda .

Maus con se lheiro s d izi am ao doutor qu e fi z es s esurgi r a arte moderna n o l ogar d aq u ella velha r i a

El l e pergun tou-me a minha op in ião . O l e i tor imagina bem qua l foi .Vote i

,votamos todos pe l a co n se rva cão do passado .

D e s trui r um exemplar tão perfei to,como aq u elle ,

e d uma época tão caracter i st i ca n a arte dos j ard in s,

quando e l l e s , i nfe l izmente , j á são rar í s s imos en trenós

,sub sti tuindo-0 po r un s cante i ros rasos , pe l a s

ba n a e s co r be i lles , que se en contram em todos o s

j a r d i n z i n ho s e praça s da ci dade , seri a um acto dei co n o cla s t i smo , al t amente bu r g u ez e d eplo r ave l ! Etanto mai s digno d e censura , quan to e l l e — o doutor — é um amador das arte s

,e , depoi s d e canc ar

os o lhos com a calyg r aphia a r r eve z a d a dos proce sso s , gosta d e os de scançar , n a sua gal eri a , numa

pa iz ag em , .n uma scena , fi amenga ou ho lla n d ez a ,d al gum mestr e dos bons tempos .

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(SACADAS P ORTUGUEZAS

Saímos fi nalmente do o a s i s , e achamo-nos outravez no de se rto ! — R e s t o lho , e ca l haus , e um so l derachar ! Val l e s e encosta s , tudo o me smo ! Sombranenhuma ! . Nem mesmo . a das perdize s !Estava e s cripto mai s uma j a n ella ! Um do s

meus companhe i ros, qu e e r a fol gaz ão , diz i a —nos que

j a'

vi era d e ca sa com ruim agoiro . Ouvi ra de noitep iar um mocho nos co r u cheu s da egre j a de S . Franc i sco de Paul a

, e de manhã , logo ao sair , dera umatopada ! E por i sso não topámos nós com as perdiz e s !Mas se e u de lá n ão trouxe caça , trouxe a im

pre s são agradab i l í s s ima da minha imprevi sta v i s i taao me u amigo

,o dr . Lucas Fal cão ; e verá aqu i o

i l lu stre j uri scon su l to,ne ste auto de scriptivo

,que a

con servo tam fre s ca n a memoria,como

'o era a aguada Naya d e da sua bel la casa d e campo da Qu intad e C ima d e Carnax ide .

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268 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

cac adore s José Pedro da Cost a — falle cen ain dan ovo

, em 1 824. Prim o e concunhado de m eu pa-e ,

fo i gr a n de c acador.Esta hi storia , t ão dolorosa e trag ica re cordacao

nos de ixou,que só a mi nha irmã a ouvi , e a muito

custo a repetia . Era extremamente devota , a boa s enbora

, e , no decurso da narrat iva do caso nefando ,l embro-me

qu e , ás vezes , se benz i a , como s e 0 e spir i to mau lhe appa r e ce s se a l l i , e e l l a 0 qu i z e s se e s

con ju rar !Nós — eu e a s outra s cr e a n cas de ca sa — e r a e x a

c t ame n t e a qu e mai s g o s t avamo s de ouvi r . E, com

effe i t o , n ão t inhamos mau gosto .

Era uma vez . Como i sto se pas sou ha mu i to,

pode a h i stori a p ri ncipi a r as s im .

Era,poi s

,uma ve z um caçador . Nao

,não digo

bem — não e r a um , porque eram cinco os que andavam caçando , no A lem t e j o — nas imme d ia cões d e

Moura,Ferre i ra , ou Serpa ? Ao certo não o sei

s e m º

o di sseram , e squec i—o . El le s eram d es s a s terra s , mas , para n ao ment i r , n e sta hi s tor i a ve rdade ira ,fi ca em branco o nome do s itio — que e l l e tambempouco importa para o ca so .

Andavam , poí s , ca can do os bon s caçadore s , quando ,l onge d e todo o povoado

,o s su rpr ehe n d er am a s som

bras da noi te . Muita vez ta l l he s succedera nas sua sexcursõe s

,nem ell e s , hab ituados a vi da fr ag u e i r a ,

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CACADAS r omº

u o u ez x s 269

e stranharam i sso : e ram cin co homen s forte s e val en te s , costumados a l evanta r e força r o s l obos e o s

j ava r d o s no covi l , de di a e de noi te , a faca e a ti ro ;mas tambem t inham , como o s fracos , vontade d ec e i a r , e não lhe s sorri a de forma a lguma a pe r spec t iva de uma noite pa s sada ao re l en to

,obse rvando

a r o t a cão dos a stro s .

E iam caminhando,e não viam nada . Nem gente ,

n em vi s lumbre d uma casa !E a no ite i a cre scendo

,e em vão procuravam lo

br igar al guma luz,que os guiasse n aqu ella s treva s .

Nada viam .

E appli cavam o ouv ido a terra , de i tando-s e nochão como os se lvagen s

,a vêr se perceb iam algum

ru mor , qu e denun ci ass e proximidade d e gente viva .

E nada ouviam .

Tudo de se rto,tudo s i l enc ioso

, n aqu elle s campose charneca s ! Nem v iv'a lma ! E as trevas crescen do ,e a noi te avan çando .

E iam cam inhando .

Senão quando,lá ao l onge

,furando as treva s ,

appa r e ceu- lhe s uma luzinha

, qu e ora bri l hava , or ase sum ia .

Olha al ém . Uma luz !_ Estamos sa lvos ! —

g r i t0u um .

Estamos sa lvos ! — repet i ram todos .

— Em boa hora 0 di gamos— di s s e Jo sé P edro0 mais ve l ho dos c inco .

E e s t u ga r am O passo os bon s cacadore s .

Ei s qu e l he s appa r ece um vul to .

Era uma ve lhin ha .

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(SACADAS PORTUGUEZAS

— Ti a s i n ha , guarde—a Deus .Que D eus os guarde

,senhore s ,

O que ha n a qu e lla ca sa ?

Mau couto para c aça dore s .

Vá de brincade i ra . Não é o s it io az ad o paraoute iros . Vocês parece que e stao a faze r versos !

Mora gente a l l i ? — perguntou Jos é Pedro .

_ Morava sim , senhor . Era o Lu iz Preto , O guarda— mas agora não e stá l á n inguem vivo

—E aque l l a luz ?

Está-o a llum i an d o , que e l l e morreu ho j e . Euvenho de l a

'

agora .

E a ve lha sumiu—se n a e scuridão da noite .

Olha que encontro ! Ti

a r r e n eg o ! Uma ve lha e

um d e fu n c t o ! O , Jos é , não te che ira aqui a e nxofre ?

A qu illo é a lguma bruxa , ou o d iabo em pes soa !C ruze s ! — di s se um dos companh e i ros , com vo z

grossa,que queria parece r fi rme .

— Aqu i nes ta s a l tura s,amigos , não ha por ond e

e scolher . Na guerra como na guerra . Vamos te r com0 morto .

— Talvez que fos se ce ia r com o diabo — ob servouo da vo z gross a . Pois fe z mal , que , se e speras se pornós

,i a a co n cheg ad i n ho .

— Se morreu de fome,com e s t e p a i o e e sta p inga

ainda e r a capaz de r e su sc i t a r ! — acre s centou outro .

E,di scorrendo ne ste e s tylo , qu e não é o do medo ,

mas que as vezes o e ncobre , chegaram ao tugur ioos c inco caçadore s .

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272 CA ÇADAS'

P ORTUGUEZAS

A l a re ira j a crepi tava , e os a l egre s companhe iro s ,uns sentados

,outros encostados a parede , l amenta

vam que o c atre e stive ss e o ccu pa do por quem j án

ã

o apr e ci ava os rega los e as doçura s da vida .

— E!

qu e se arr ei a ao chão ; va e para cima damanta . El l e j á lhe não dóe nada — diz i a um c reado .

Cama fôfa ou terra dura — para aqu elle é tudo omesmo . Quantas vez e s dormiri a es s e fi d algo n o proprio do chão

,para o estranhar agora

,depo is d e

morto !Mas nós ain d a não lhe vimos o rosto ! — e o

qu e: di z ia es ta s pal avras — o A l exan dre — r apagão

verme lho , a l to e e spadaú do,appr o x imo u -se do ca

t r e , e leva n t o u'

o l encol .-Ca r amba .

! Ma la ca r a t i e n e l— di sse e l l e,r e

cu a nd o um pouco,com o s olhos pregados no cada

ve r . É grande, e n egro como o. demonio ! Parece

da'

pau santo. ! I sto an dou n a Serra Morena !— Po i s s e andou

,olha

,A l ex andre

, qu e não en r i

que ce u n o offi cio .

— Cá es tá a e spingarda do homem ! — ! g r itou deum can to um dos caçadore s .. Se e lla fa l a s se .

— Q u e grande g i lvaz e l l e t em na cara ! Agora r eparo continuou o A l ex andre , baixando—se para vêrmelhor — sã o doi s. golpe s a ss im — e com os de dosfez uma cruz .

— E” a Cruz do mau l adrão !

E ,'

ri ndo a bom ri r,dirigin do-s e para a l are i ra

,

A lexandre abriu uma g r a n d e'

cu chi lla , e díz po z—se a

atacar um gordo paio . A s borrachas n egra s tinhamj á sa ido dos su r r õe s , e o sten tavam os boj udos ventre s a luz viva do br a z i d o d'um tronco de a z i n ho ,

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CAÇADAS r o ar u o u ez x s 273

q u e Jos é Pedro de scob ri ra afi nal no pobre a l be r

g u e .

Então , A l exandre , t em ma ca ra o nos so pat rão ? — perguntou Jos é Pedro .

Se tem'

! Bon s os sos é qu e e l l e mostra . Secocomo um pau ! Que pena e l l e não a r r a n cha r a ce ia !E hi stori as , que aqu illo havi a de saber ! Agora j ánão da horas , e s t á parado . Po is n ão sabes o qu eperdes ! di s se o face to la t agão , vol tando-se para ocatre , com a borracha j á numa da s mãos e um grandenaco de paio na outra .

Com os mortos n ão se brinca — di s s e Jos é P cdro , com um tom seca º

El l e não t em de qu e se offe n de r . At é,se me

ouvi ss e,havia de agrade ce r a l embrança . N i s to

é que e l l e nunca pôz os be iços — e mostrou o pa io .

Aque l l a s c arn e s c r e a r am—s e corn baca l hau !E com uma gargalhada acompanhou o grace jo o

forte A l exandre .

Houve uma pausa . Jos é Pedro, depoi s da s u l t ima s pa l avras do seu companhe i ro , fi cara muito serio . Os outros rodeavam—n -o , em frente do l ar . Voltando—se para o s doi s , que lhe e stavam mai s pr o x imos

,e l l e e stendeu a mão

,como quem va e fa l a r .

— Parece -me que vocês e stão ahi conversando d ea lminhas do outro mundo .

w Es t avamo s , s im . Mas nós não acreditamos .

Era por fa l a r e por causa do encontro .

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274 cx çx n x s po ur u cu az x s

Sim,a o cca s ião é propri a — a noi te escura e

fe i a,a ve lha

,o morto a l l i . O scenar io e stá com

ple t o . So fal tam as va s soura s para - a s bruxas montarem : aqui é coi s a qu e n ão ha . q uanto e l l asa s bruxas — não appar ecem por ahí

,vou—l he s eu

contar a h i stor ia d uma alma do outro mundo, masverdade ira .

— Verdade i ra ! ? A a lma,ou a hi s tori a ? Como foi

então ?Verdadei ra a h i s tori a

,s im . Estão v ivos mui tos

d e s se tempo , que conheceram os actore s : o prinClpal fo i o Jos é Noguei ra d e Arau j o . Lembram—sed e l l e ?

—Se l embr amos ! Valente homem ,que e l le e r a !

De ixou fama .

— Poi s o ca so foi a s sim .

— C0n t a la, conta lei — « d i s seram todos,e a cce so s

os c igarros , âca r am immo ve i s .

Não posso — d is se Jos é Pedro — marca r,ao

certo,quando i s to foi . Jos e Nogue ira e r a j á ve l ho

devi a andar pe los s e ss e nta,mas a fi bra e r a ainda

a mesma . Uma noi te,em casa

,a c e i a

,d is se ram

deante d e l l e que,hav ia dia s

,pe l a vol ta da s duas ho

ras da noite,appa r e c i a n aqu elle s s i tios uma grande

phan tasma branca, d uma al tura enorme , arra stando

ferros . Era grande o pavor com ta l appa r i ção , e damei a noi te em deante n ão havi a j á quem se atreve s se 'a sa i r a rua !Jos é Nogue i ra ouviu com grande a t t e n ção a nar

r a t iva , qu e todos l he affi rmavam se r verdadei ra , e ,sorrindo

,di s s e

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276 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

narrador — n i n g u em se de spiu em casa do Jos é Nogue ira . Fizeram semb l ante de s e de i tar , mas todosfi c aram nos quartos

,de ouvido a e scuta , prompt o s

a sa ir a rua , apenas ouv is sem voze s , e rumor d elu ct a .

App r o x imavam - s e a s duas hora s a hora da phanta sma . Na rua Ancha estava um vul to , embu cado nocapote

,e encostado a uma e squina . Era e l l e — o

nos so homem .

Duas hora s a dar na egre j a mai s proxima , e aouvir—s e um som d e ferros

,a rras tando- se l e ntamente

pe l a ca l çada . Jos é Nogue i ra voltou-se l ogo para 0

l ado d onde e l le vinha,principi ando a andar ne ssa

d irecção .

D e repente appa r e ce a phantasma n a bôca d arua . Era como lh'a tin ham d e scr ip t o . A O vel—a e l l eparou , e e sperou

,de sembainhando a sua Neg r a

uma e spada preta,colubr ina

, qu e entrara em muitare frega e v ira muito sangue .

Vinha j á perto a ave n t e sma . Quando a jul gou aboa di s tanc i a atraves sou—se-lhe dean te

, e mandou-a

parar . A phanta sma não re spondeu, e continuou a

caminhar . Jos é Nogue i ra deu um passo a frente ,d e sembu ç a n d o -se todo

, e , l evando da e spada , fezsegunda i n t imaçao .

Você pára, o u não par a ?

E como a phan tasma não parou,a e spada revo

lu t eo u, s ibi l ando no ar , e e l l a

,dando um agudo

gri to , ve iu a terra . A O baque , ao r u íd o dos fer ros eaos gem idos do homem

,abr iram-se a s po r t a s,

. d o s

vi s i n ho s , qu e acud iram com lanterna s . A a lma pe

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CACADAS P ORTUGUEZAS 277

nada e ra um cabo do regimento de cava lla r i a , a l l iaqua rte l ado

,que julgara a qu e lle di sfarce o me l hor ,

para re al i sa r umas entrevi sta s amorosa s ! O infe l i znamorado

,al ém da grande queda

,que deu das an

da s em que vi nha trepado,ti nha um raspão numa

perna !E acabou- s e a hi stor i a . Ao feri do

,corrido de ver

gonba , e mu ito amofi nado , quebrou- s e—l he o enca nto

,e fo i curar- se

,s enão da pa ixão

,pe lo menos do

g ílvaz . Os vi s i n ho s puderam d ah i por deante andarn a rua

,a hora s mortas

,s em rece io do ru im encon

tro ; a fam í l i a de Jos é Nogue ira fi cou s o ce g ad a , ee l l e

,o ve lho bri gão

,contan do s i n g elame n t e o caso ,

e refe r i ndo—s e a sua e spada , a Neg r a — d iz ia comgraça :

E agora marquem mai s uma a p r et a .

!

A h i s tori a acabara-se . O v inho es se é que nãot i n ha ai nda s a í do todo das borracha s dos bon s ç acad o r e s , e com longos tragos lhe s foram corre ndoas hora s d e senfa s t i ad a s e de spercebidas , - ao contrario do que e r a d e e sperar

,no pr i n cíp i o d aqu ella te

n ebr o sa noi te , tam mal ausp ic ia da .

E e l l e s — como de costume — s e t inham bom v i

nho nas sua s borrachas,tambem t inham largo pro

vimento d e boas hi s tori a s , a l egre s , sal gada s , e pi cant e s

_como 0 pimentão qu e l he s temperara os pa io s ,

e l he s a cc i r r ava o appeti te de amiudarem as g o lad a s .

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278 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

E O vento continuava a a ssob i ar no s soutos,e o s

lobos,ao longe , uivavam n a charneca !

El le s e stavam bem a l l i , a l a re i ra . A caçada fôraboa

,e sent iam- s e contente s n aqu e lle de samparado

a lbergue, qu e , comparado com as suas h abi taçõe s ,

pa r e c i a uma cavern a d e bandidos !

A l are ir a crep i tava,pareci a ri r . Nunca vi ra tama

nha fol i a , t ão ru idosos e j ovi a e s conviva s ! Afora Ogros so tronco d e a z in ho , ard i a quan ta made ira e n

co n t r a r am a mao, e a c asa , com as suas paredes par

da s d e pedra e n so ssa , e stava i llumi n ad a como set ive s se de n tro o so l !Subira d e ponto a hi l aridade ;a s gargal hada s suc

cedi am—s e : eram a troadora s ! Do morto , que a l l i j azia , ninguem j á s e l embrava ! E que se lembra sse .

El l e e stava morto . Um morto é um ausente . Está, eé como se n ão e stive s se !Beberam a memor ia de Jos é Nogue ira

, e depoi sa d outros e outros

, e , fi na lmente , a qu elle que davapel o nome de A l exandre — uma alma '

d amn ad a,

como lhe chamavam os s eus companhe iros,um es

p i r i t o fo r t e , como então d iz iam u

'

o s fr a n celho s — tomou á sua conta o fi nado

, qu e j az i a h irto , ao fundo ,no seu pobre catre !

Estamos chegados á scena fi na l . Aqu i vae , comoa ouv i conta . O caso d eu —se , e a l e sao morta l , qu earrebatou Jos é P edro a inda moço , na força da v ida ,

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280 CAÇADAS P ORTUGUEZAS

as sobio s denunciaram- l he a pre senca dos compan he i r o s . Abriu a porta .

Eram el l e s,e muito povo , a lvorotado com a nar

r a t iva do e stranho succe sso . Estavam affas t ad o s , todos

,em frente da casa

,como r e ce i a n d o appr o x ima r

se ! D efronte , a doi s pas sos , e stava e stendido , e semmov imento

,um homem . Era o Luiz Preto

,o guarda

,

agora rea lmente morto !E este fo i o fi nal da ca ç ada dos bon s cacadore s !