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1 Semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, v.7, n.1, p.20-34, Jul. 2017 | ISSN 2178-5368 semeiosis SEMIÓTICA E TRANSDISCIPLINARIDADE EM REVISTA TRANSDISCIPLINARY JOURNAL OF SEMIOTICS resumo Pretende-se neste artigo formular ideias acerca da escolha de imagens para comunicar fatos. Como a linguagem não-verbal antecede à verbal, como a leitura das fotos é decisiva para o interesse na leitura da matéria jornalística. Como as opções, mesmo que variadas, no processo de edição da página de jornais impressos interferem na continuação da leitura e como essas escolhas interferem critica e politicamente na opinião do receptor, obedecendo a uma perspectiva multimodal. Para exemplificar, ilustram-se dois casos de publicação em periódicos de Portugal. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação, linguagem não-verbal, fotografia, edição jorna- lística, multimodalidade abstract This article intends to formulate ideas about choosing images to communicate facts. Whereas non-verbal language precedes verbal, reading photos must be decisive for the interest in reading the news. Many options, even if varied, in the process of editing the news in a printed press can interfer in continuation of the reading and how these choices can interfere critically and politically the view of the recipient, obeying a multimodal perspective. There are examples witch illustrate two cases of publication in periodicals in Portugal. KEYWORDS: Communication, non-verbal language, photography, journalism, multimodality A imagem certa: a influência da fotoleitura na decodificação da notícia ALCANTARA, Juliana Alves de. Mestranda em Jornalismo e Comunicação na Universidade de Coimbra, Portugal | [email protected] Semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, v.7, n.1, p.20-34, Jul. 2017 | ISSN 2178-5368

resumo · Em alguns casos, como charges, histórias em quadrinhos, a regência do maestro, ... No século XIX, ainda se mantinha o discurso de mimese, ou seja,

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Semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, v.7, n.1, p.20-34, Jul. 2017 | ISSN 2178-5368

semeiosisSEMIÓTICA E TRANSDISCIPLINARIDADE EM REVISTA

TRANSDISCIPLINARY JOURNAL OF SEMIOTICS

resumoPretende-se neste artigo formular ideias acerca da escolha de imagens para comunicar fatos. Como a linguagem não-verbal antecede à verbal, como a leitura das fotos é decisiva para o interesse na leitura da matéria jornalística. Como as opções, mesmo que variadas, no processo de edição da página de jornais impressos interferem na continuação da leitura e como essas escolhas interferem critica e politicamente na opinião do receptor, obedecendo a uma perspectiva multimodal. Para exemplificar, ilustram-se dois casos de publicação em periódicos de Portugal.

PALAVRAS-CHAVE: Comunicação, linguagem não-verbal, fotografia, edição jorna-lística, multimodalidade

abstractThis article intends to formulate ideas about choosing images to communicate facts. Whereas non-verbal language precedes verbal, reading photos must be decisive for the interest in reading the news. Many options, even if varied, in the process of editing the news in a printed press can interfer in continuation of the reading and how these choices can interfere critically and politically the view of the recipient, obeying a multimodal perspective. There are examples witch illustrate two cases of publication in periodicals in Portugal.

KEYWORDS: Communication, non-verbal language, photography, journalism, multimodality

A imagem certa: a influência da fotoleitura na decodificação da notícia

ALCANTARA, Juliana Alves de. Mestranda em Jornalismo e Comunicação na Universidade de Coimbra, Portugal | [email protected]

Semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, v.7, n.1, p.20-34, Jul. 2017 | ISSN 2178-5368

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IntroduçãoQuando Guilherme entra no labirinto do mosteiro em busca de um

específico livro, fica tão encantado com tantos títulos que se perde. E só se dá conta que está numa construção feita para se perder quando é justamente isso que acontece. A metáfora da biblioteca de Umberto Eco, em “O Nome da Rosa”, fala do conhecimento. Já o caminho para o autoconhecimento é encontrado numa sala que para entrar é preciso decifrar um enigma e, sendo sua porta de entrada um espelho, um convite para encarar a vaidade e o medo, e dar um passo adiante deixando-os para trás.

O saber além, no topo da torre, guarda escritos heréticos. E, nada mais libertador que a comédia proibida na Poética de Aristóteles, como um convite ao pecado do riso.

Tanto o livro, quanto o filme homônimo, são repletos de símbolos e autenticidades inerentes à linguagem. Cada personagem criou o seu repertório pelo que aprendeu e pelo que não aprendeu, pelo que teve a chance de viver e pelo que nem sonhou experimentar.

Essa escolha é pessoal e imposta ao mesmo tempo. Nossas interpretações são traçadas pelo que nos é apresentado e, como complemento, pelo que nos interessa.

A linguagem, que faz parte do nosso processo de percepção do mundo, serve para comunicar. A fala é uma de suas funções, que aliada a outras formas verbais, ganhou com o tempo diversas formas de expressão: as línguas. Atrelada ao silêncio, à pausa e à total falta de ação e ao verbo entre os interlocutores, a comunicação torna-se ainda mais incontestável. Exemplo disso é quando numa briga, um dos interlocutores se cala. Ele perde o verbo, mas não perde a ação. Comunica da mesma forma. E comunica de tal maneira que só a relação entre duas pessoas pode decodificar. Ora, se todos os dias um colega de trabalho deseja “bom dia” e numa determinada manhã ele deixa de fazê-lo, alguma coisa está a dizer.

Em alguns casos, como charges, histórias em quadrinhos, a regência do maestro, e mesmo no cinema mudo, a comunicação sem traços linguísticos serve para completar a expressão verbal propriamente dita (Yaguello, 1997). A mímica, o gesto e a intensidade da expressão servem para dar ênfase ao que se quer comunicar. O que se pretende discutir nesse artigo é a complementaridade das duas formas de comunicação na imprensa escrita.

A escolha das fotos, ou de uma imagem apenas, que ilustrará a notícia é de importância tanto para a compreensão do leitor quanto para a continuação da leitura. Portanto, o interesse por determinado assunto, e, dentro dele, o de

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uma informação específica, passa pela escolha de um clique fotográfico.

Importante é pensar nas imagens criticamente, considerar seus significados e como estes estão relacionados com posições sociais, culturais e políticas e, por conseguinte, articuladas com o poder.

Este trabalho surge como uma introdução, por meio de uma revisão de literatura, como caráter exploratório, sobre a decodificação da leitura jornalística. “Prestar atenção nos efeitos das imagens é fundamental para um novo campo de estudo que vem emergindo dos últimos anos. […] Se as formas de ver são historica, geografica, cultural e socialmente específicas, tão, como você ou eu olhamos, não é natural nem inocente” (ROSE, 2001: 9, 10 e 16, tradução nossa).

Primeiramente, serão expostas as bases bibliográficas, que nos darão suporte para seguir para a etapa das exemplificações.

O primeiro exemplo diz respeito ao relato do Diário de Notícias sobre a reunião dos BRICS, ocorrida entre os dias 3 e 4 de setembro de 2017. O encontro aconteceu na China, onde se reuniram os representantes do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A matéria contém uma foto considerada editorialmente relevante pelo seu tamanho na página, correspondente a um terço do espaço ocupado, e por estar correlacionada ao título.

Através da análise por comparação, na segunda exemplificação traz-se duas matérias jornalísticas sobre o mesmo assunto, na mesma data, e em ambos os casos em publicações portuguesas. No dia 3 de setembro de 2017, Público e Diário de Notícias publicaram sobre a visita ao Texas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e sua esposa, Melania Trump, após o furacão Harvey ter devastado o estado. A ida do casal na semana anterior causou euforia na imprensa pela roupa que a primeira-dama usava. O salto agulha escolhido representou o desrespeito pelos cidadãos que perderam parentes e viram suas casas serem destruídas.

Com base nessas duas apresentações, a discussão da pesquisa gira em torno da influência da foto para o entendimento da notícia da maneira mais completa possível.

O corpo falaComo as fotografias de imprensa contam, na maioria dos casos, histórias

através de pessoas esta parte do artigo está relacionada à importância da linguagem corporal. É ela que mostra como o indivíduo reage inserido em determinado contexto. Além de considerar como uma pessoa responde a alguma situação, importa como as outras reagem aos estímulos exteriores. E,

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como numa grande rede de comunicação e significados, cada um constrói sua própria interpretação.

Sob à luz da psicologia, Paul Ekman identificou sete expressões que considerava inatas: raiva, alegria, tristeza, surpresa, medo, aversão e desprezo. Diferentemente dos gestos, que estão intimamente ligados à cultura, essas manifestações faciais estão presentes em todas as épocas da história e possuem igual significado. Em seus estudos, o psicólogo chama a atenção para crianças que nasceram cegas e exteriorizam o que sentem pelo rosto, sem imitar ninguém.

O efeito da linguagem não-verbal é tão grande que foi desenvolvida uma equação, baseada em estudos, sobre a comunicação. Esta análise foi explicada por Weil e Tompakow (1982):

O impacto da expressão que foge ao verbo, da linguagem não falada nem escrita, para a compreensão é tamanho que resultados de pesquisas de Albert Mehrabian, professor de psicologia da Universidade de Los Angeles, California, apontaram para a regra 7-38-55. Nela, os números equivalem, respectivamente, à comunicação verbal (apenas palavras), à vocal (inclui-se aqui tom de voz, entonação e ritmo) e a não-verbal (como expressões faciais, postura, gestos e outras formas de manifestações). A empatia, a que ele se refere, está baseada nessa equação. (p. 44)

Vê-se aqui a importância da não-fala; quando se trata de sentimentos ou atitudes com outras pessoas, a influência maior da comunicação mora no comportamento não-verbal. Uma linguagem complementa a outra. Barthes (1985), por sua vez, trata da limitação da escrita quando é “analisada de um modo isolado”.

Há….uma liberdade da narrativa (como há uma liberdade de qualquer locutor em relação à língua), mas esta liberdade é, à letra, limitada: entre o código forte da narrativa estabelece-se, se assim podemos dizer, um vazio: a frase. […] Os signos são constituídos por diferenças. (p.128 e 150).

Afinal, o corpo fala, mas ele diz tudo? E sendo a expressão necessária para a compreensão exata e que não deixa margem a outra interpretação, por que mesmo assim faz-se uso da linguagem verbal, muitas vezes? Os autores acima não são os únicos a citarem Barthes. Joly (2003) pega emprestado as palavras do pensador francês e explica a redundância da linguagem em diversos tipos de mensagem, inclusive na fotografia de imprensa.

Qualquer sistema semiológico lida com a linguagem. A adequação visual,

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por exemplo, confirma seus significados dobrando-se por uma mensagem linguística (este é o caso do cinema, publicidade, quadrinhos, fotografia de imprensa, etc.) de tal forma que pelo menos uma parte da mensagem icônica seja uma relação estrutural de redundância ou repetição com o sistema de linguagem ... De agora em diante, é necessário admitir a possibilidade de que a proposição de Saussure possa ser revertida um dia: a linguística não é uma parte privilegiada da ciência geral dos sinais; é a semiologia que é parte da linguística: muito especificamente, aquela parte que cuidaria das grandes unidades de significado do discurso. (p 263 e 264, tradução nossa)

O instante captadoEscrever através da luz. É essa a apreciação da palavra “fotografia”, que

se origina do grego. Porém, pode ela “escrever sozinha”? Ou é preciso uma sequência de fotografias para contar uma história? A verdade, o acontecido, pode ser registrado apenas por uma máquina? Uma vez ocorrido, estará o fato, desse modo, eternamente guardado? Sontag (1977) trata do momento captado de forma romântica: “Após o fim do evento, a foto ainda existirá, conferindo ao evento uma espécie de imortalidade (e de importância) que de outro modo ele jamais desfrutaria” (IDEM, 1977: 223).

No século XIX, ainda se mantinha o discurso de mimese, ou seja, acreditava-se na reprodução do mundo tal como ele é (DUBOIS, 1994). Deixando de lado a, pode-se chamar, inocência da época, essa visão é encontrada atualmente como se um registro fotográfico fosse prova irrefutável e indiscutível de algo que sucedeu. Todavia, “tanto literalmente quanto metaforicamente, esses esboços…registram um ponto de vista” (BURKE, 2004: 24). É impossível que a mensagem esteja livre de subjetividades, preconceitos, expectativas, o que deixa o olhar objetivo e limpo, sem qualquer interferência, completamente fora de questão.

A revelação do real nada mais é que uma noção icônica. O que está captado pela imagem representa a verdade. Cartier-Bresson valorizava o clique rápido e o resultado certeiro, no que ele chamava de “momento decisivo” (AVANCINI, 2011). O fotojornalista francês divide o mesmo pensamento com o húngaro Robert Capa, que dizia que o profissional deveria estar o mais próximo possível do evento para conseguir fotos boas. A atenção deve ser total no espaço e no tempo em que ocorre o episódio a ser noticiado (SOUZA, 1994).

Ainda que a história venha – e deva vir acompanhada de texto –, no caso das publicações jornalísticas, compreende-se que é possível “ler” uma fotografia. O peso de cada significante se diferencia conforme os fatores editoriais, como a paginação, por exemplo. A escolha do tamanho da foto, se ela é publicada do lado direito ou esquerdo da página, assim como na parte superior ou inferior, e se na página par ou ímpar a peça está espelhada; tudo significa.

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1 Em português: modo de ver. (tradução nossa).

De forma alguma crê-se que a fotografia seja mais importante que o texto. Pelo contrário, um serve de complemento ao outro. Essa ligação e interação entre os dois elementos não se excluem, mas sim “alimentam-se e exaltam-se mutuamente” (JOLY, 2012: 54).

“A relação entre a imagem e seu contexto verbal é íntima e variada. A imagem pode ilustrar um texto verbal ou o texto pode esclarecer a imagem na forma de um comentário. Em ambos os casos, a imagem parece não ser suficiente sem o texto […]” (SANTAELLA & NÖTH, 2012). A reflexão é completada por Souza (1994):

Evidentemente, não basta a existência de uma fotografia para chamar a atenção do leitor; para que este mobilize a visão e se concentre na mensagem, a fotografia deverá dizer-lhe algo. Ou seja, terá de ser lisível, ter um forte conteúdo informativo, ser acompanhada de um título e um bom texto. (p. 228)

Os paradigmas que regem essa leitura, além dos que carregam os receptores da mensagem, são designados pelas próprias testemunhas do caso, ou seja, os fotógrafos. A percepção do profissional é subjetiva. Uma vez que é ele quem escolhe o ângulo da câmera, seu posicionamento, o zoom, a abrangência da foto, capturando ou não reações, a escolha do que se lê tem início no seu clique. Exemplo disso é quando há cobertura de um protesto e o fotógrafo se mantém atrás dos policiais transmitindo, assim, uma multidão ameaçadora. Se a foto for feita do ponto de vista dos manifestantes, mostrar-se-á a repressão das autoridades (LANGFORD, 1989).

[…] É muitas vezes necessário encapsular um acontecimento no que virá a ser a imagem definitiva. O momento da expressão ou da ação deve sintetizar a situação, embora se possa manipular o registro escolhendo quê, quando e, de onde, se fotografou. Até recentemente, havia a assunção, largamente difundida, de que os fotógrafos eram observadores imparciais, documentando acontecimentos como eles se apresentam. Mas a realidade é diferente, pois ninguém pode ser totalmente imparcial. Os fotógrafos têm suas próprias crenças e partis pris1. (IDEM, p. 27)

Como o entendimento é facilitado através de imagens, a fotografia ganha ainda mais importância em jornais populares, já que nesses tabloides o espaço de texto é reduzido. Segundo Lima (1988), “a notícia vinculada com a fotografia em um jornal é sempre mais lida”.

A perda da inocência e a verdade sobre o que se vêPara Barthes, o “acontecimento nunca se transforma em outra coisa”

(2015: 12). Ou seja, a fotografia imprime – nas palavras do sociólogo: “repete mecanicamente”- o que jamais poderá acontecer de fato novamente. Mas, sem perder o eixo, afirma ser a fotografia de imprensa unária. Explica-se: é “quando

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transforma enfaticamente a realidade sem a desdobrar” (IDEM, 2015: 50).

Ainda para o sociólogo, o que constitui a sua natureza da foto é a pose. Como tratamos do corpo e de sua “fala” no primeiro tópico, nada mais coerente que trazer à tona a fotografia posada – mesmo que brevemente, já que é especificamente de linguagem de mídia impressa que englobamos o estudo.

(…) o que constitui a natureza da Fotografia é a pose. Pouco importa a duração física dessa pose; mesmo que dure um milionésimo de segundo (a gota de leite de H. D. Edgerton), há sempre pose, porque a pose não é aqui uma atitude do alvo, nem mesmo uma técnica do Operator, mas o termo de uma «intenção» de leitura: ao contemplar uma foto, incluo fatalmente no meu olhar o pensamento desse instante, por muito breve que tenha sido, em que uma coisa real ficou imóvel diante do olho. (idem, p.88)

Essa impressão de Barthes é o que Van Djik (2005) chama de modelos mentais. São “únicos e pessoais, e determinam o conhecimento (e as opiniões) sobre uma situação específica de tempo, espaço, ações/eventos e participantes” (VAN DJIK, 2005: 22). Muitas matérias jornalísticas são construídas a partir desse preceito. Os leitores acrescentam à interpretação opiniões e associações próprias.

Van Djik elenca itens que ajudam, permeiam e criam a compreensão das notícias pelos receptores. Resumidamente, perpassam pelo conhecimento comum, aquele entendimento geral das palavras e construção de frases; o conhecimento linguístico; o do gênero do discurso, sobre os elementos característicos de uma matéria jornalística – a manchete, por exemplo. Assim como pelo conhecimento especializado do objeto; os conhecimentos comum e pessoal; velhos modelos e o conhecimento social/situacional, em que é considerado o contexto e que acabam por trazer correlações com outros temas e/ou assuntos repetidos. E, por fim, o aprendizado, que segundo o autor envolve vários tipos de conhecimento geral “que podem ser formados ou modificados diretamente pela informação (geral) do texto” (IDEM, p. 25).

Mas, Van Djik também considera outros aspectos no processo de leitura. Destacam-se entre eles: variação (leitura rápida e superficial versus leitura cuidadosa); monitoração, quando os leitores avaliam os locutores/escritores quanto ao próprio conhecimento do que se escreve; ordem processual; construção do modelo contextual, quando o conhecimento sobre o jornal influi; reconhecimento do gênero, ou seja, quando há a tentativa de identificar o formato da notícia levando-se em conta a diagramação, tipografia, colunas, etc.; identificação do tópico e estabelecimento de coerência global, que ocorre pela interpretação do título da matéria.

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Figura 1: Publicação de 3 de setembro de 2017

Fonte: Diário de Notícias, página 41.jpg

ExemplosUm fato e diferentes interpretações

Uma página da edição de 3 de setembro de 2017 (imagem 1), do Diário de Notícias, foi dedicada à reunião dos BRICS, grupo político formado por representantes dos países Brasil, Rússia, Índia e China e África do Sul. Um terço da página ímpar, a mais nobre por ter maior atenção dos leitores de jornais (SOUZA, 1994), é destinada a foto que ilustra a matéria. A tentativa da manchete de fazer menção à imagem logo abaixo do título ‘Na China, os BRICS dão as mãos em nome da economia’ é falha. Vê-se que o presidente do Brasil em exercício à época, Michel Temer, não acompanha o ato dos outros personagens.

Antes mesmo que o leitor passe a etapa da leitura, a primeira impressão já está atachada na interpretação. O espaço escolhido editorialmente para estampar a notícia, o topo da página, força o leitor a “ler” a fotografia antes de buscar ou se aprofundar nas informações. É nesse momento que a comunicação se estabelece. “O silêncio não só intervém na comunicação [...] mas ele é também a condição que permite a existência de qualquer comunicação. Sendo que o próprio silêncio também comunica mensagens intencionais” (CARDOSO E CUNHA, 2005: 44). E, sendo proposital, baseia-se em alguma referência cultural.

A mensagem tende a ser clara com a leitura completa do texto, mas esbarra no momento em que a fotografia foi tirada. O registro do fato não é o

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4 Fonte:<http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/o-estupro-a-histeria-coletiva-o-sociologismo-vagabundo-e-as-distorcoes-da-militancia-de-genero/>

fato. O acontecimento só pode ser relatado por quem lá esteve e presenciou o que antecedeu e o que sucedeu. Digamos que houve uma distração do personagem em questão, ou mesmo possa ter sido um ato pensado, em forma de negativa. Esse instante pode representar que ele não é aceito no grupo ou que não se inseriu no contexto por se sentir superior, de se colocar como importante diante do grupo.

Quando se lê a legenda, fica claro que a foto é de arquivo e diz respeito à reunião do ano anterior. A verdade é que o leitor só poderá saber se no texto houver informações que sanem tais questionamentos. Fora isso, conclui-se que, a visão 360 graus, nesse caso, nunca se dará.

A compreensão, segundo Umberto Eco (1989), transpassa o conhecimento das palavras. Elas devem fazer sentido num enquadramento amplo, pois senão o entendimento permanece raso.

Perante uma expressão como “Aquele homem vem de Milão” opera-se na nossa mente uma relação unívoca entre significante e significado…a expressão é um puro acervo de termos convencionais que exigem, para serem compreendidos, uma colaboração minha, e exigem mesmo que eu faça convergir sobre cada termo uma soma de experiências passadas que me permitem esclarecer a experiência em causa. Bastaria que eu nunca tivesse ouvido pronunciar o termo Milão e que não soubesse que ele se refere a uma cidade para que a comunicação que dele recebo ficasse infinitamente mais pobre....Se, portanto, Milão estiver ligada na minha mente a uma soma de recordações, saudades, desejos, a mesma frase despertará uma onda de emoções que um outro ouvinte não estaria em situação de compartilhar. (p. 103)

Pode-se, por isso, inquirir se para o leitor leigo em política internacional, a foto comunica uma relação diplomática com cenários diversos, ou tão somente um registro da reunião de políticos que formam um grupo econômico.

Mesmo fato, fotos diferentesÀ data de 3 de setembro de 2017 (imagens 2 e 3), dois periódicos de

Portugal publicaram a mesma notícia com títulos e fotos diferentes. Os exemplos a seguir, para melhor aferição, apontam termos de comparação em relação aos recursos visuais escolhidos para dinamizar a leitura.

À primeira vista, as duas escolhas editorias são as mesmas: página ímpar da publicação, reforçando a importância da divulgação, e fotos no topo da página, o que valoriza todo o conteúdo e não faz com que a manchete desequilibre o texto (SOUZA, 1994).

Porém, com o olhar crítico, podemos aferir os dois exemplos. No Diário

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Figura 2: Publicação de 3 de setembro de 2017.Fonte: Diário de Notícias, página 43

de Notícias, a foto da primeira-dama com look despojado (boné e blusa jeans) acompanha o título “Trump e Melania levam compaixão até Houston”. Enquanto no Público, a preferência para ilustrar a matéria foi uma imagem da esposa do presidente vestida formalmente e que se seguiu ao tom de reprovação com o título “Melania Trump fê-lo outra vez: foi para o Texas de saltos altos”. O texto da matéria conduz ao contexto da reprimenda. Na semana seguinte ao furacão Harvey que devastou parte de um dos estados do sul do país americano, o casal fez sua primeira visita às vitimas e a vestimenta escolhida pela primeira-dama foi justamente um salto agulha, o que, segundo analistas e formadores de opinião, demonstrou seu total descaso com o acontecido.

Neste caso, a imagem orienta a uma determinada interpretação, que varia conforme qual periódico o leitor escolheu. Segundo Breton, “o silêncio

Figura 3: Publicação de 3 de setembro de 2017Fonte: Jornal Público, página 19

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não é uma substância, mas uma relação” (BRETON, 1997: 77). Ou seja, é uma das formas de comunicação. A sua interpretação só se dá quando analisada em âmbito cultural e dentro de um contexto. Por isso, em casos jornalísticos, a fotografia não fala por si só. Ela é complemento da apuração, da matéria redigida, das palavras que a acompanham. Apesar de ser a imagem o que chame, primeiramente, a atenção do leitor, o entendimento completo da notícia só se dá com a leitura do respectivo texto. Um analfabeto, por exemplo, que lê o jornal através das fotos tem um entendimento parcial. Portanto, sua compreensão do que está sendo noticiado não poderá ser condensada nem a cruzar informações com outros veículos, sejam eles audiovisuais ou radiofônicos, nem capaz de estruturar críticas perante o que se lê.

Assim como a linguagem não-verbal, a verbal precisa ser enquadrada às regras, e é de suma importância para a compreensão do que se está a dizer. Saussure define a língua como meio de comunicação entre os membros de uma mesma comunidade.

A língua não é uma função do sujeito falante, é o produto que o indivíduo registra passivamente; ela nunca supõe premeditação. Ela é um objeto bem definido no conjunto heteróclito dos fatos da linguagem….É a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, e este, por si só, não pode criá-la nem modificá-la; ela só existe em virtude de um contrato firmado entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivíduo tem necessidade de uma aprendizagem para lhe conhecer as regras; a criança só pouco a pouco a assimila. (SAUSSURE, 1986,: 40).

Considerações Finais“Não existem fatos, apenas versões” (NIETZSCHE apud SILVA, 2015: 33).

Nietzsche fala da construção da verdade, da “adequação de certas proposições e juízos da realidade” (MARQUES, 1997: XXV e XXVI). Não aprofundando aqui o sentido filosófico, mas partindo desse pressuposto sobre a verdade, que chegamos ao fim desse artigo.

E, trazendo referências sobre a multimodalidade, chega-se a conclusão que a objetividade é repleta de subjetividade e que cada olhar importa. Nenhuma perspectiva é completa nem alcança toda a experiência; seria impossível.

Sendo assim, abrindo precedentes e aspiração para novos trabalhos e pesquisas nos campos semiológico e multimodal, não são olvidadas as conclusões indubitáveis de Van Djik. “[…] Em todos os níveis de produção e compreensão da notícia, existe um dinâmico e complexo processo de controle de estruturas variáveis, que é uma função dos vários tipos de conhecimento dos participantes, incluindo o conhecimento de uns sobre o conhecimento dos

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outros” (IDEM: 27).

A produção do jornalismo impresso é pensada, é racional. Não à toa fazem-se reuniões diárias ao fim do dia para discutir quais assuntos estamparão as páginas dos jornais do dia seguinte. Também faz parte da rotina de uma redação definir os tamanhos das matérias – quantos caracteres os repórteres têm disponíveis para bater cada peça e qual espaço a foto terá.

A produção online e on time vai na contramão disso, pois as escolhas têm de ser mais rápidas. O seu processo é construído de outra forma, numa produção contínua, o que abre terreno para uma discussão posterior.

Sobre a fábrica das notícias impressas importa tratar da audiência. O próximo passo dessa análise seria considerar o receptor e suas percepções do mundo. Indica-se que o estudo investigativo enverede por esse caminho sob um olhar mais atento e apurado. Levantar-se-iam questões tais como: de que modo o interesse em comunicar certa informação é codificado pelo leitor, se ele é totalmente influenciado pelo que lê. Se não o é, o porquê isso acontece. O que influencia as não-leituras, ou mesmo discordâncias com determinados veículos, e se o leitor deste século está mais crítico.

Os leitores não só decodificam e contextualizam o que leem através de suas vidas, mas também escolhem o veículo que consomem de acordo com o que acreditam e sabem sobre o mundo.

Sendo o receptor capaz de cruzar informações, ver com clareza o posicionamento da mídia, é inevitável que ele se torne mais crítico e mais senhor de si.

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como citar este artigoALCANTARA, Juliana Alves de. A imagem certa: a influência da fotoleitura na decodificação da notícia. Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista. [suporte eletrônico] Disponível em: <http://www.semeiosis.com.br/?p=2412>. Acesso em dia/mês/ano.

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Semiótica e transdisciplinaridade em revista, São Paulo, v.7, n.1, p.1-19, Jul. 2017 | ISSN 2178-5368