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Copyright © 2018. Todos os direitos reservados à autora.

1ª edição.

Conselho Editorial:

Prof. Dr. Rafael Sânzio de Azevedo

Prof. Dr. Luiz Tavares Júnior

Prof. Dr. Francisco Tarcísio Cavalcante

Capa, contracapa, diagramação: Manoel Miqueias Maia

Impressão: Gráfica ARTCOM

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Carneiro, Stânia Nágila Vasconcelos

Dona Guidinha do Poço ou Um Narrador em Voz Alta / Stânia Nágila

Vasconcelos Carneiro; – 1ª edição – Porto Alegre: Editora Simplíssimo, 2018.

155 p.

ISBN: 9788595130821

1. Oliveira Paiva. 2. Linguagem poética. 3. Dona Guidinha do Poço. 4.

Eficiência literária. I. Título.

CDD: B869

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por quaisquer médios

(eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer

sistema ou banco de dados sem a permissão escrita da detentora de direitos.

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A DEUS, sempre:

A minha mãe, MARIA WILANI, minha mestra que, com humildade e

simplicidade, ensinou-me a correr atrás de meus sonhos, tendo sempre

como princípios básicos a honestidade, o amor e o respeito ao próximo.

Minha mãe, exemplo de dedicação e fé;

A meu pai, FRANCISCO MENDES (in memorian), grande homem,

exemplo de simplicidade, perseverança e firmeza, não medindo

esforços e dedicação para oferecer o saber sistematizado aos filhos, pois

sempre dizia: “Quero meus filhos estudando, pois o homem sem estudo

não é nada”;

Ao meu marido, KLEBER JUNIOR, cúmplice de todos os sonhos,

dificuldades, certezas e, sobretudo, alegrias da vida. Meu grande

incentivador e colaborador de todos os momentos, a quem tanto tenho

a agradecer;

Aos meus filhos, GLADSTON e SOFIA, pela paciência e respeito com

que aceitaram meu pouco tempo disponível. E pelos quais, às vezes,

faço-me forte;

Ao meu sogro (e também pai), KLEBER CARNEIRO, por sempre

acreditar que sou capaz;

Aos meus irmãos, por simplesmente existirem, principalmente, ao meu

irmão FRANCISCO JOSÉ, que me incentivou a fazer a inscrição na

seleção deste curso, quando eu resistia, por não me julgar capaz de obter

êxito;

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Às minhas amigas professoras da UECE – FÁTIMA LEITÃO, NOÉLIA,

ANA ÉRICA, GORETE GUERREIRO e ANA GORETE, especialmente, a

amiga VERBENA LÚCIA, pelo estímulo permanente, e por me darem a

certeza de sua amizade, apesar da distância e do tempo;

Ao PROF. DR. TEOBERTO LANDIM, pela contribuição na fase inicial

deste trabalho;

Ao PROF. DR. ROBERTO PONTES, pelas primeiras orientações, quando

este trabalho ainda era apenas um projeto;

Ao PROF. DR. TAVARES, por suas preciosas sugestões no momento da

Qualificação;

Ao PROF. DR. FRANCISCO TARCÍSIO CAVALCANTE, por dedicar seu

tempo à leitura deste trabalho;

Aos colegas do Curso de Mestrado, pelos momentos de alegria e

dificuldades compartilhados, gerando amizades preciosas como a das

ELISALENE e REGINA CLÁUDIA;

À coordenação do Mestrado em Letras, na pessoa da PROFA. DRA.

ODALICE DE CASTRO E SILVA, na época coordenadora do curso.

E, finalmente, à FUNCAP, pelo apoio dado, propiciando esta pesquisa.

Poderia aqui ter acrescentado mais nomes a quem devo gratidão mas

reservo-me o direito de deixar apenas aqueles que viveram de fato o

período da escrita desta pesquisa.

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Ao PROF. DR. RAFAEL SÂNZIO DE

AZEVEDO, orientador sábio,

paciente e humilde, modelo de

integridade profissional a ser

admirado e respeitado, sempre. Ser

humano inesquecível.

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À memória de meus avós maternos,

PAIZINHO (SIGEFREDO), ainda escuto

sua criativa e alegre música “tengo

tengo lengo tengo...”, e MÃEZINHA

(GUIOMAR), eterna conselheira e

guardiã de fé, que adorava contar suas

memórias, embora nem sempre

encontrasse ouvintes que a

merecessem.

ETERNAS SAUDADES.

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Aqueles cuja fecundidade reside no corpo, dirigem-se da

preferência às mulheres, e assim realizam à sua maneira

de amar, acreditando que pela criação dos filhos atingem

a imortalidade, a celebridade e a felicidade eternas. Os

que, porém, desejam procriar pelo espírito – pois há

pessoas que mais desejam com a alma do que com o

corpo (e ela é mais fecunda ainda que o corpo) – esses

anseiam por criar aquilo que à sua alma compete criar. É

a criação desses homens a quem chamamos de poetas, e

daqueles outros aos quais denominamos inventores.

PLATÃO – O Banquete

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SUMÁRIO

PREFÁCIO ................................................................................. 15

INTRODUÇÃO ............................................................................ 21

CAPÍTULO 1 – O REGIONALISMO EM

DONA GUIDINHA DO POÇO .................................. 27

1.1. REGIONALISMO – A REALIDADE SERTANEJA ................... 29

1.2. REGIONALISTAS – LÍNGUA FALADA ACIMA DA LÍNGUA

ESCRITA ............................................................................ 32

1.3. A LINGUAGEM E O ESTILO DE OLIVEIRA PAIVA EM DONA

GUIDINHA DO POÇO .......................................................... 34

1.3.1. A ARTE DA ADJETIVAÇÃO NA ESTILÍSTICA USADA

PELO AUTOR ............................................................ 40

1.3.2. EXPRESSÕES ........................................................... 47

1.3.3. A FORÇA DOS VERBOS EM DONA GUIDINHA DO POÇO

............................................................................... 57

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1.3.4. O DIMINUTIVO EM DONA GUIDINHA DO POÇO ......... 61

1.3.5. GLOSSÁRIO ............................................................. 67

1.4. PERMANÊNCIA DO FOLCLORE ......................................... 72

1.4.1. O FOLCLORE NA OBRA ........................................... 76

CAPÍTULO 2 – PROCEDIMENTOS

NARRATIVOS: O PROCESSO NARRATIVO

EM DONA GUIDINHA DO POÇO ......................... 95

2.1. O DOMÍNIO DO NARRADOR .............................................. 97

2.2. O PROCESSO NARRATIVO EM DONA GUIDINHA DO POÇO 101

2.2.1. UM NARRADOR EM VOZ ALTA ............................... 103

2.2.2. UM NARRADOR QUE FALA PELO OUTRO ................ 112

2.2.3. UM NARRADOR QUE SE AUSENTA .......................... 122

CONCLUSÃO ............................................................................ 137

BIBLIOGRAFIA ........................................................................ 148

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PREFÁCIO

Eis-me aqui, fazendo o prefácio do meu próprio livro.

Vocês têm que convir que é, no mínimo, estranho e atípico!!!!!

Mas não poderia ser diferente visto que tentei entrar em

contato com a única pessoa que gostaria e acho ser merecedor de

prefaciar este livro, oriundo de minha dissertação de mestrado:

meu renomado professor na graduação, meu orientador no

mestrado, acadêmico da Academia Cearense de Letras, ocupante

da cadeira 1, pertencente a Justiniano de Serpa, PROF. DR.

RAFAEL SÂNZIO DE AZEVEDO. Exemplo de ser humano e de

profissional a ser seguido, pois não deixa seus mais de 20 livros

e um punhado de poesias afastá-lo das boas conversas, dos

conselhos, do exemplo de humildade a ser seguido por todos,

principalmente com seus alunos.

Considerado o pesquisador mais sério da literatura

cearense, hoje, aos 80 anos, ainda faz história. Foi este homem

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Prefácio

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quem me acompanhou na escrita destas linhas durante dois anos,

que exigia incansavelmente orientações semanais, que lia

minuciosamente linha por linha… infelizmente não pude entrar

em contato com ele, apesar de ter tentado, PODERIA E

DEVERIA TER TENTADO MAIS, NO ENTANTO devido aos

trâmites editoriais, foi-me impossível.

Diante disso, resolvi de forma impulsiva, eu mesma fazê-

lo. Entretanto, na hora de escrevê-lo ‘caí na real’, como diriam os

mais jovens. Pensei: “Nunca antes fiz um prefácio de um livro

meu; como devo proceder para escrever um? ”. Resolvi então

primeiramente reler os escritos, pois havia me distanciado deles

desde 2004 quando este foi apresentado e aprovado com louvor

em uma banca não menos elegante que meu orientador: Professor

Dr. Luiz Tavares Junior e Professor Dr. Francisco Tarcísio

Cavalcante E DECIDI PREFACIAR sobre aquilo de que mais

gostei no trabalho escrito.

Escrevo então sobre o afeto, a sensibilidade e outras várias

emoções e reflexões que o trabalho nos evoca, quando nos

deparamos com a linguagem e o estilo tão peculiares de Oliveira

Paiva nesta obra Dona Guidinha do Poço, escrita entre 1890/1891.

O autor escreve aos poucos. Com segurança, com

sabedoria, sua técnica estilística atinge o apuro preciso no gênero

que abraçou. Revela viveza de espírito, sagacidade de percepção,

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domínio de léxico rico, que ele sabe amoldar convenientemente,

produzindo o que se viu em Dona Guidinha do Poço.

Com grande simplicidade, mas com uma simplicidade

profundamente sábia, ele solta a imaginação e, com ela, arrebata

temas, motivos com que edifica, através das palavras bem

coordenadas, verdadeiras joias estilísticas. A linguagem e o estilo

de Oliveira Paiva. As expressões, as comparações escolhidas a

capricho, as figuras marcadas pelo sabor do original, as

onomatopeias vibrantes, os modismos, as construções são

elementos que merecem pesquisa. É também este um dos pontos

altos do livro: a riqueza léxica, incluindo que a língua requer para

que seu dinamismo continue expressivo, encontrada em alta

escala da primeira à última página.

O autor doa à fala brasileira, com a liberalidade de quem tem

tudo a mão-cheia, vasto cabedal linguístico, que, estudado, vai

enriquecê-la de maneira extraordinária. O fato, porém, é que sua

linguagem apresenta grande segurança e o material linguístico que,

ao lado dos costumes regionais, ele exibe em Dona Guidinha do

Poço apresenta valor inestimável e fonte de sérias buscas aos que

apreciam este gênero de trabalho.

NA SUA PROSA, EM QUE TUDO É FORÇA TELÚRICA – A

TERRA, A GENTE APEGADA A ELA POR AMOR, - ENCONTRAMOS

TONS DE POEMAS – TRAÇO INCONFUNDÍVEL DE SUA ALMA CHEIA DE

TERNURA E DE LIRISMO.

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Prefácio

18

Observamos como os adjetivos usados por Oliveira Paiva

enriquecem seu estilo: riqueza própria, vinda de uma imaginação

fecunda, cheia de naturalidade. Os adjetivos, dinamizados,

oferecem característica original. Refletindo índice psicológico,

eles como que descrevem os sentimentos que animam a alma

humana, manifestando amor ou aversão, diminuição ou

intensidade. Retratam, assim, o que vai à imaginação do escritor:

delicadeza, lirismo, fatalidade, esperança, tristeza, alegria,

galhofa ou zombaria.

Então adjetivos como acabranhado, nervudo,

escarmentado, ricaço, aboletado ou termos como arranchado,

estrídulo, empanado, estropiado, burlesco, espiagaitada,

grelado, embiocado

Mergulhado profundamente nos costumes populares de

uma época e de uma região, Dona Guidinha do Poço está repleto

de expressões populares, de rifões, que representam a sabedoria

popular. Muitas dessas expressões populares ainda são comuns

hoje.

“Antes de você alcançar a vila, estou-lhe nos mocotós”

(p.23).

“... que fazia derramar ancoretas de vinho nas suas festas,

senhora de suas ventas, ...” (p.31).

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“... Seu moço, desta banda é mais fresco” (p.32).

“Diabo de caminho desgraçado! Gente chega i aos

boléus” (p.47).

Dona Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva, favorece a

instauração do processo de leitura anteriormente referido, uma

vez que conduz o leitor a uma reflexão a respeito de uma série

de temas relativos a sua conduta de homem, como é o caso

daqueles que envolvem as relações interpessoais, como a paixão,

a sinceridade e o amor, e, ao mesmo tempo, leva-o a refletir sobre

efemeridade de sua própria existência, quando confrontado com

situações-limites como a traição, o crime, a perda da liberdade e

a morte. Contundo, ao lado desses aspectos de caráter

universalizante, a narrativa do romancista cearense faz-nos

vislumbrar a vida de uma cidade do interior do Ceará no século

XIX, quando então nos apresenta um sem-número de pormenores

do cotidiano no sertão: a miséria dos retirantes, a secura agressiva

da paisagem, a fartura da fazenda no inverno, as festas

tradicionais – vaquejadas, desafios, rezas, danças.

Vicente de Ataíde afirma que “o texto literário necessita,

em primeiro lugar, da percepção da realidade pelo artista, em

segundo lugar, da montagem desta percepção num todo

organizado e novo” (p.4). Assim o que faz de um texto obra de

arte literária é o arranjo feito, pelo autor, dessa nova realidade,

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Prefácio

20

organizada, através da linguagem por sua imaginação criadora. A

qualidade estética de uma obra depende, em última análise, da

nova estrutura criada, da montagem artificial e consciente que lhe

dá o artista.

Se o artista se limitasse a uma imitação servil da realidade,

passado o tempo, desapareceriam o prazer e a fruição estética, é

o que o já citado autor nos confirma:

Graças à criatividade, o circunstancial e o

passageiro entram no nível do perene e do

universal. Um texto antigo causa tanto prazer

quanto um texto moderno. O nível da arte não

é o nível do real ou do natural, mas é o nível

do admirável, do impossível, do crível; é uma

realidade fora do real. (ATAÍDE, 1974.p.11)

Enquanto isso, deleitemo-nos com a leitura deste belo e

instigante trabalho, fruto de uma discussão entre uma nova e uma

antiga e sábia geração de pesquisadores.

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INTRODUÇÃO

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

23

Dona Guidinha do Poço é uma obra prima da arte regional

brasileira. Esse romance encanta pela maneira com que focaliza

os traços clássicos¹1 do mundo interiorano. Oliveira Paiva

escreveu-a para retratar a própria terra, revelando, a cada passo, o

vigor da vida nordestina. Resultou daí que Dona Guidinha do

Poço apresenta a força das grandes obras do popular, cujos traços

nascem da convicção de que nela condensam os impulsos

essenciais da vida. Em suas páginas vibram os movimentos, as

cores e os ritmos do Nordeste. Além dessa propriedade telúrica,

percebe-se no romance uma aguda consciência dos recursos

narracionais, com os quais o autor ordena e diversifica os

estímulos dessa arte.

Escrito possivelmente entre 1890 e 1891, a obra está

enquadrada pela historiografia como “romance realista”, pela

técnica e pelo espírito, ou como um “romance regionalista”, pelo

tema e pela linguagem; e assim pode ser lida. Mas não há

características, nem modelos que a impeçam de ser vista como

um discurso imaginoso, fantasioso, que, na repetição, é capaz de

romper com estruturas e marcar sua diferença.

Assim sendo, a análise aqui empreendida se norteia na

eficiência literária de Oliveira Paiva em Dona Guidinha do Poço.

Como toda produção literária é autônoma e exige um tratamento

1 Utilizamos o termo clássico, referindo-nos a linguagem utilizada a partir do

ano de 1500.

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Introdução

24

específico, tentamos nos centrar na obra, analisando-a quanto ao

trabalho linguístico cuidadoso utilizado pelo autor. Desta forma,

não deixamos de, através da contextualização histórica do

romance, verificar tal domínio linguístico-literário, que nessa

obra marca uma postura rara no romance do fim do século XIX.

Dividimos nosso trabalho em duas partes: na primeira,

objetivamos trabalhar a obra inserida no contexto histórico.

Realizamos a fundamentação teórica para a análise da obra de

Oliveira Paiva, enquanto produção literária realista a partir,

principalmente, dos textos de Lúcia Miguel-Pereira, PROSA DE

FICÇÃO (DE 1870 A 1920) (1973); de Afrânio Coutinho,

INTRODUÇÃO À LITERATURA NO BRASIL (1998); de Nelson

Werneck Sodré, O NATURALISMO NO BRASIL (1965) e

HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA (1982). Como nessa

primeira parte apreciamos o romance também como uma arte

literária regionalista, iniciamos o segundo capítulo com uma

breve explanação sobre o regionalismo com sua linguagem típica

e a técnica utilizada por seus adeptos. Em seguida, analisamos a

obra escolhida procurando nos centrar, tanto quanto possível, no

material linguístico, filológico e semântico nela contidos. Como

nos deparamos com palavras interessantes que lhe compõem a

estrutura quer no campo semântico, quer no linguístico,

apresentamos a feitura de um glossário elaborado com a ajuda do

Prof. Doutor Sânzio de Azevedo.

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

25

Fizemos também um levantamento, sem jargões técnicos,

dos vários elementos folclóricos, etnográficos, de costumes e

superstições de uma sociedade, que estão contidos na referida

obra.

Os elementos abstratos, estéticos, linguísticos, estilísticos

de uma obra podem configurar a sua legitimidade artística. Não

serão, contudo, os elementos culturais, presentes nas obras que se

destacam e transpõem o seu tempo, que lhes darão essa

perenidade? É uma indagação de difícil resposta. Assim,

tentaremos aqui levar em conta o que se tem de vivo, de

testemunho de uma época, de retrato ao natural de um Ceará rural,

enfim, uma verdadeira leitura da obra de Oliveira Paiva.

Nesse instante do nosso trabalho, foram de importância

vital as contribuições das obras críticas sobre Regionalismo

elaboradas por Lúcia Miguel-Pereira, principalmente o capítulo

intitulado “Regionalismo” de sua PROSA DE FICÇÃO (DE 1870 A

1920) (1973); por José Maurício Gomes de Almeida com A

TRADIÇÃO REGIONALISTA NO ROMANCE BRASILEIRO (1857 –

1945) (1999), além do REGIONALISMO E MODERNISMO (1978)

de Lígia C. de Moraes Leite. Para nossa fundamentação sobre

folclore, lemos, QUE É FOLCLORE? (1974) de Maria de Lourdes

Borges Ribeiro; LITERATURA DO NORDESTE EM TORNO DE SUA

EXPRESSÃO SOCIAL (1983), de Maria Elisa Collier Pragana, além

de Leonardo Mota e Luís da Câmara Cascudo.

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Introdução

26

Em seguida partimos para a análise da obra quando

abordamos a linguagem e o estilo particulares de Oliveira Paiva

que, buscando elementos na fala simples do povo, transporta, para

o livro, o que a língua nos legou em seus primórdios, revivendo

palavras, expressões, locuções inteiras refletidas na maneira de

sentir as coisas da vida.

A segunda parte deste trabalho engloba os dois últimos

capítulos quando fizemos uma análise literária da obra. No

terceiro capítulo, a nossa leitura centrou-se, principalmente, no

domínio do narrador sobre o processo narrativo e nos recursos de

que se vale para tal empreendimento: o dar a voz ao outro, através

da multifacetação de narradores e narrativas, na qual a verdade

vai-se deslocando a todo instante. No quarto capítulo detivemo-

nos na organização do discurso, referindo-nos, sobretudo, aos

aspectos relacionados à apresentação das personagens no texto,

ao tempo e ao espaço na obra, às descrições no romance às

“pistas” deixadas no texto pelo autor para o leitor, além dos

aspectos estilísticos contidos na obra.

A tentativa de descobrir como a história é contada, como

os fatos estão dispostos, como se dão os artifícios da linguagem,

a inclusão das falas sertanejas, os jargões jurídicos, a presença

feminina, é a grande chave para ler o romance como jogo de

marcas que se dá na inexistência explícita de um narrador com

autoridade visível sobre o que é contado/escrito.

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CAPÍTULO 1

O REGIONALISMO EM

DONA GUIDINHA

DO POÇO

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

29

No Brasil, como em todos os países colonizados, a

ideologia de agregação apresenta-se excepcionalmente ativa,

essencialmente ligada à necessidade popular de afirmação de uma

nacionalidade incipiente. Este parece ser o ponto fundamental de

todo o questionamento em torno do papel do regionalismo na

instituição da literatura nacional.

A ansiedade nacionalista caracterizou a nossa literatura

desde quando, ainda no período colonial, mesmo filiado à

inevitável importação cultural, um escritor como Gregório de

Matos Guerra destaca-se pela mínima aproximação que sua obra

possa apresentar em relação à realidade social brasileira.

O regionalismo literário vem constituir uma forma de

continuidade dessa ansiedade nativista, rumo ao

amadurecimento. Mesmo as limitações, que fizeram da maior

parte dos nossos regionalistas observadores ufanistas dos

aspectos pitorescos da terra e da gente brasileira, justificam-se

pela mesma contingência da transplantação cultural.

1.1 – REGIONALISMO – A REALIDADE SERTANEJA

Na literatura brasileira o tema sertão, que tão grande

fortuna irá conhecer depois do Romantismo, nasce da junção de

três pontos que em muito condicionarão o seu entendimento: o

das descrições da terra brasileira e da terra lusitana, o do mundo

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

30

rural e do mundo urbano, e do tempo passado e do tempo

presente.

Pode-se afirmar com isso que desde muito cedo a

realidade sertaneja se afirmou como um espaço privilegiado de

interrogações e questionamentos. Assim, o sertão é um lugar onde

se afirma e se nega, é reino do fantástico e do mítico.

Há múltiplas e complementares leituras do sertão

iniciadas praticamente no Romantismo, e que não mais cessam

até os dias de hoje. Os primeiros a fazê-las foram os poetas, desde

a segunda metade do século XIX: Gonçalves Dias, Casimiro de

Abreu, Junqueira Freire, Castro Alves que celebram a natureza

florida e os amores que eram o seu prolongamento natural. Mas

vão ser, sobretudo, os romancistas os que mais se ocuparão do

sertão. Nessa primeira fase, duas datas avultam como

fundamentais: 1869, com a publicação de O Ermitão de Muquém,

de Bernardo Guimarães, e 1875, com José de Alencar lançando O

Sertanejo, a obra prima de síntese do sertão romântico e tranquilo,

onde a paz e a felicidade se dão as mãos para que tanto o senhor

como o servo se sintam felizes.

No ano seguinte, Taunay quebraria esse encanto com uma

obra perturbadora, Inocência (1876), operando a mudança para

uma segunda fase em que a tensão dramática substituiria a

quietude contemplativa.

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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Assim se passou de um entendimento predominantemente

romântico dos sertões para uma visão mais situada, de teor

realista, que havia de ser aprofundada por Franklin Távora em

1876, em O Cabeleira, e por Oliveira Paiva ao escrever o seu

Dona Guidinha do Poço, postumamente publicado em 19522.

A publicação em 1902, de Os Sertões, de Euclides da

Cunha, e de outras obras contribuiu para consolidar a temática

sertaneja como, por exemplo, Luzia-Homem (1903), de

Domingos Olímpio, Sertão (1896), de Coelho Neto, Pelo Sertão

(1998), de Afonso Arinos ou ainda A Fome (1890), de Rodolfo

Teófilo.

Uma terceira fase, caracterizada por uma ultrapassagem

da problematização social dominante e pela proposta de uma

visão diferente da realidade de teor mítico, é inaugurada por

Guimarães Rosa no Pós-Modernismo, em 1946, com Sagarana,

e solidamente estruturada principalmente em Grande Sertão:

Veredas, de 1956.

Mas, por mais diversificadas que sejam estas três formas

de tratamento, a realidade de base que lhes empresta a

2 Autores distintos como Lúcia Miguel-Pereira e Nelson Werneck Sodré apontam

o naturalismo, por sua influência sobre o regionalismo, como o primeiro momento

significativo da reação literária à transplantação cultural, no Brasil. Cf. MIGUEL-

PEREIRA, Lúcia. Prosa de Ficção – 1870 a 1920. 1956 p. 181 e SODRÉ, Nelson

Werneck. História da literatura brasileira, 1976, p. 405.

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

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legitimidade de transformações e de simbolizações é uma só: só

há um sertão, concretizado em muitos sertões.

1.2 REGIONALISTAS – LÍNGUA FALADA ACIMA DA LÍNGUA

ESCRITA

O escritor regional, reclamando estilo e método diversos,

lança mão de maneira clara para expor as ideias e de linguagem

fácil para se expressar. Buscando elementos na fala simples do

povo, transporta para os livros o que a língua nos legou em seus

primórdios, revivendo palavras, expressões, locuções inteiras

refletidas na maneira de sentir as coisas da vida. Assim, volta,

com naturalidade e graça, aos longínquos matizes do idioma,

resgatando falares perdidos.

Como a linguagem é o mais belo dom do homem, ele o

reconhece e, através dela, exterioriza emoções, de maneira

simples, fácil, eloquente, e capta impressões, que devolve ao

público, que o lê. E fazendo-o, estende ao linguista campo de farto

cabedal para as mais variadas pesquisas. Substituindo a frase

polida pela simples, sem rebuços, ele recorda os substratos que a

tradição plebeia deixou, com raízes profundas, incrustados na fala

simples. O homem fala a língua de seu meio, de sua profissão.

Ninguém duvida de que a nossa língua (fonética, léxica,

morfológica e semanticamente) tenha tomado rumos diversos, já

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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nos afirmava Arlindo de Souza, na década de 60 3. E tais

evoluções, não vamos encontrá-las nos meios eruditos, mas nas

favelas, nas roças, nas fazendas, nos meios rurais, enfim. O que

nos afirma, sem sombras de dúvidas, que as fontes de

investigações linguísticas são inúmeras, fecundas.

Se bem que os modernos escritores, analisados, sobretudo

em relação à sintaxe, deixam transparecer, claramente, que

lançam as bases para a independência de nossa língua, não

podemos negar a presença, em suas construções, da sintaxe

arcaica portuguesa. As mais variadas fontes se apresentam nessa

linguagem gostosamente pitoresca com que nos deliciam, através

das páginas bem escritas, onde os temas mais variados se

encontram: fontes portuguesas, ameríndia, africana fazem-se

presentes. E em contribuição total, isto é, abrangendo o campo

léxico, semântico e sintático.

Outra face interessante no escritor regionalista é o

personalismo evidente que revela e que não o prende ao

formalismo gramatical: usa de maneira irregular a colocação dos

pronomes; o verbo ter pelo impessoal haver, não observa a

concordância com o sujeito coletivo geral; a preposição em com

verbos de movimento; o pronome reto como objeto direto; e

3 Souza, Arlindo de. A Língua Nacional, 1960, p.20.

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

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muitos pontos mais que a linguagem clássica não admite. Se,

porém, de um lado, descuida propositadamente do apuro da

língua, por outro se distingue pelo alento que dá às ideias, à

maneira simples de expressar, trazendo o espírito liberto de

qualquer norma sintática rígida.

Nenhuma literatura reflete melhor a alma, a consciência,

a filosofia do povo que a regionalista. Espontânea, natural, revela

toda a beleza, toda a pureza da alma simples, além de

desempenhar tarefa interessante: recriar a língua, estilizando-a,

dinamizando-a, tornando-a elástica, amoldável, original,

interessante.

1.3 A LINGUAGEM E O ESTILO DE OLIVEIRA PAIVA EM DONA

GUIDINHA DO POÇO

O homem traz, dentro de si, um universo de impressões

que exterioriza através dos pensamentos expressos. O escritor, ao

fazer, cria, através do estilo e de acordo com o temperamento, a

inteligência, a imaginação, belezas que edificam.

Oliveira Paiva escreve aos poucos. Com segurança, com

sabedoria, sua técnica estilística atinge o apuro preciso no gênero

que abraçou. Revela viveza de espírito, sagacidade de percepção,

domínio de léxico rico, que ele sabe amoldar convenientemente,

produzindo o que se viu em Dona Guidinha do Poço.

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Com grande simplicidade, mas com uma simplicidade

profundamente sábia, ele solta a imaginação e, com ela, arrebata

temas, motivos com que edifica, através das palavras bem

coordenadas, verdadeiras joias estilísticas. Seu estilo supõe o

relevo, a imaginação, o poder e a riqueza das palavras, dando

força às descrições, aos motivos, através das circunstancias com

que, a cada passo, se depara em seu livro, graças a seu fecundo

poder imaginativo.

Considerando o aspecto linguístico, grande é o valor do

romance: revivescências arcaicas, aliadas a valores sinestésicos e

a forças semânticas, unificam-se em misturas sólidas, oferecendo

o campo vasto para um estudo fundamentado.

As expressões, as comparações escolhidas a capricho, as

figuras marcadas pelo sabor do original, as onomatopeias

vibrantes, os modismos, as construções são elementos que

merecem pesquisa. É também este um dos pontos altos do livro:

a riqueza léxica, incluindo que a língua requer para que seu

dinamismo continue expressivo, encontrada em alta escala da

primeira à última página.

O autor doa à fala brasileira, com a liberalidade de quem

tem tudo a mão-cheia, vasto cabedal linguístico, que, estudado,

vai enriquecê-la de maneira extraordinária. O fato, porém, é que

sua linguagem apresenta grande segurança e o material

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

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linguístico que, ao lado dos costumes regionais, ele exibe em

Dona Guidinha do Poço apresenta valor inestimável e fonte de

sérias buscas aos que apreciam este gênero de trabalho.

Fugindo ao tabu que a gramática estabeleceu, ele dá livre

expansão à sua fala, enriquecendo-a a sua maneira. Em todos os

sentidos – semântico, léxico, sintático, etc... – a riqueza é enorme

e ele pode-se tirar, examinando-o, o mais sólido proveito.

Na parte fonética, por exemplo, há grandes curiosidades

como: Inhora (no lugar de senhora) (p. 21); Té (no lugar de até)

(p.23); crusidade de muié (curiosidade de mulher) (p.24); M’pai

(no lugar de meu pai) (p.33); Uviu (no lugar de ouviu) (p.53);

s’ingane cuntigo (no lugar de se engane contigo) (p.64); mó de

que (no lugar de de modo de) (p.65); Zsus! (no lugar de Jesus)

(p.70); adespois (no lugar de depois) (p.98); dento (no de dentro)

(p.119); s’interrá (no lugar de se enterrar); munta (no lugar de

muita) (p.121); arrecebê (no lugar de receber) (p.132). E, assim,

há, em sua linguagem, farto material a ser estudado, em prova

evidente da riqueza que oferece.

Seu estilo é forte, rico, com todas as qualidades exigidas

para uma linguagem popular, bem brasileira. Assim, ritmo e

sonoridade há na linguagem selecionada pelo autor de Dona

Guidinha do Poço, que consegue efeitos ao utilizar o vocabulário

regional, que ele soube entrelaçar com arte. As figuras de que, às

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vezes, lança mão, pintando quadro de viva beleza, ressaltam sua

segurança quanto ao estilo.

Na sua prosa, em que tudo é força telúrica – a terra, a gente

apegada a ela por amor, - encontramos tons de poemas – traço

inconfundível de sua alma cheia de ternura e de lirismo.

O jogo das metáforas confere-lhe colocar em destaque

estético as construções originais. Integrado em seu mundo

regional, ele evoca joias realmente preciosas com o empenho

exclusivo de cantar seu solo, suas riquezas, as alegrias e/ou

misérias dos sertões sem fim. E maneja, assim, habilmente as

palavras por meio das quais exterioriza a ideia, o pensamento que

lhe fervilha no cérebro e que ele sabe transfigurar em belo,

distribuindo-o artisticamente nas frases emocionante.

Segundo Serafim da Silva Neto4, o maior mérito da

imagem consiste na justeza, isto é, na precisão com o que retrata

e reforça a apreensão de um aspecto, episódio ou ideia. Assim,

suas imagens têm força de vida: Oliveira Paiva sabe que as

palavras se subordinam a uma escala de valores, cuja

expressividade traduz a riqueza do contexto.

Atentando bem na essência desse romance, encontramos,

em seu conteúdo, traços de profunda psicologia. O romancista,

4 SILVA NETO, Serafim da. Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa,

1963.

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dono de estilo forte, dota-o com a riqueza de imagens que fogem

à banalidade. Localiza, no tempo e no espaço, as descrições

seguras, permitindo a visualização do que descreve.

Revelando capacidade rara, procura expressões próprias

ao estilo regionalista, surpreendendo pela justeza e pela

originalidade. E agindo assim, dá cor extraordinária ao estilo, que

mostra hora impressões reais, hora metafóricas.

Às vezes, difícil de interpretar, seu estilo apresenta

material idiomático rico e variado. Através da metáfora, a mais

importante das figuras, Oliveira Paiva pinta quadros ricos, em

jogo extraordinário de palavras.

Rolando Morel Pinto faz referência a linguagem

metafórica de Oliveira Paiva:

Mas, posso me referir às comparações. Está claro

que ele estruturou um mundo para poder ter

sentido a sua história, se não esta seria banal. Já

que ele estruturou um mundo, esse mundo está

inter-relacionado em todos os seus aspectos: a

natureza com o homem, o homem com a flora, a

fauna, tudo aquilo vivendo numa verdadeira

comunhão. Daí as comparações curiosas que

podemos levantar, uma delas também já

encontrada em todas as observações, que é.…, o

preto do olho amarelo com as meninas

esverdinhadas, semelhando a tapuru. Ou esta

outra: “A Guidinha criou-se como a vitela do

pasto”. Ou mais esta: “ele estava caído sobre a

testa como crista de peru”. Há, portanto, toda

espécie de comparação com a natureza, com os

animais, com a flora, com toda aquela realidade.

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Assim ele integra o homem e o seu mundo

(MOREL PINTO, 1975, pp. 123/124).

Enriquecendo estas observações feitas acima podemos

citar ainda: “O pobre emigrava como as aves, que vivem ambos

do suor do dia... (p.17) ” ou “Margarida era como um palácio cuja

fachada principal desse para um abismo. (p.18) ” ou mesmo “E

enquanto o moço matava a sede da pele a remexer-se n’água

como um pato...” e mais “A voz do vaqueiro serpenteava como

um rio”. São estes, e muitos outros mais, exemplos de uma

linguagem primorosamente cuidada que tenta manter uma relação

intrínseca do homem com o meio em que vive.

Logo, os substantivos e os verbos trazem belo colorido às

suas construções, o que dá a impressão de que ele o seleciona a

capricho. Traz ideias, comparações novas. E como a comparação

constitui um dos mais fortes traços estilísticos, podemos afirmar

que Oliveira Paiva, dentro de sua simplicidade sertaneja, soube

enriquecer seus casos com esse recurso.

Vejamos esse trecho:

Entrou março, novenas de São José.

O calor subira despropositadamente. A roupa

vinha da lavadeira grudada de sabão. A gente

bebia água de todas as cores; era antes uma

mistura de não sei que sais ou não sei de quê. O

vento era quente como a rocha nua dos serrotes. A

paisagem tinha um aspecto de pelo de leão, no

confuso da galharia despida e empoeirada, a

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perder de vista sobre as ondulações ásperas de um

chão negro de detritos vegetais tostados pela

morte e pelo ardor da atmosfera. As serras

levantavam-se abruptamente, sem as doces

transições dos contrafortes afofados de verdura.

(p.17)

O autor, através dessa descrição e das comparações entre

o vento e a rocha por conta da quentura do verão, ou da paisagem

com aspecto de pelo de leão, ou das serras que se levantavam,

agora abruptamente devido à falta da plantação, dinamiza a

linguagem, dotando-a de expressões que lhe convêm para

exprimir suas ideias, manejando com facilidade as palavras, à sua

maneira, no que é extremamente hábil.

1.3.1- A ARTE DA ADJETIVAÇÃO NA ESTILÍSTICA UTILIZADA

PELO AUTOR

Oliveira Paiva esmera-se em apontar, em cada passo, o

valor intelectual e o afetivo de sua adjetivação, assumindo ela

todo um ritmo que valoriza as construções.

Adjetivos de índole popular às vezes, muitos deles pouco

comum, são trazidos à baila por sua pena forte. Ele os busca na

singeleza da fala do povo e em meios aos costumes do sertão; a

viva com eles a força léxica e a semântica, colorindo-as com o

primor da originalidade.

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Reconhecendo ser o adjetivo a alma do substantivo e o

consequente adorno da frase, Oliveira Paiva emprega-o com

moderação, de acordo com as circunstancias e a conveniência.

Busca-o em campo seguro, em que a verdadeira forma de

expressão prima pela autenticidade.

Assim, pois, usa-o naturalmente. Não o força. Nenhum

adjetivo destoa em suas frases. Ele os ajusta com sucesso aos

nomes aos quais corresponde pela afinidade, pelo valor.

Observamos como os adjetivos usados por Oliveira Paiva

enriquecem seu estilo: riqueza própria, vinda de uma imaginação

fecunda, cheia de naturalidade. Os adjetivos, dinamizados,

oferecem característica original. Refletindo índice psicológico,

eles como que descrevem os sentimentos que animam a alma

humana, manifestando amor ou aversão, diminuição ou

intensidade. Retratam, assim, o que vai à imaginação do escritor:

delicadeza, lirismo, fatalidade, esperança, tristeza, alegria,

galhofa ou zombaria.

Citaremos alguns adjetivos colhidos nas páginas de Dona

Guidinha do Poço:

Tipo acabralhado... (p.18)

- Acabralhado – adj. Brás. (de + cabra+ alhado): Diz-se do

mestiço que puxa ao tipo de cabra (mestiço de mulato e negro)

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Amara a Margarida em demasia, creio e o vigor nervudo

e musculento da herdeira... (p.18)

- Nervudo – adj. Fig. Forte, robusto, musculoso.

- Musculento – cheio de músculos.

...matuto cearense escarramentado... (p.25)

- Escaramento – adj. (escarmentado): Sabedor por

experiência custosa; experimentado; experiente.

...tio ricaço. (p.25)

- Ricaço – adj. Popular: diz-se de um homem muito rico,

milionário.

O hóspede achava-se realmente bem aboletado. (p.26)

- Aboletado – adj. Acomodado, alojado, instalado.

No mais com muitos amadores, bem caiadas, com a sua

barra de cor sarapintada de verde e encarnado. (p.26)

- Caiados – adj. Revestidos de cal

- Sarapintada – adj. Que tem pintas variadas; pintalgada.

...depois de você estar aqui arranchado, ... (p.28)

- Arranchado – (vem de rancho); adj. hospedado (verbo

arranchar).

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...grito estrídulo... (p.32)

- Estrídulo – estridente, altíssimo

O cavaleiro empanado riscou... (p.33)

- Empanado (part.de empanar), coberto com panos, isto é,

vestido com roupas diferentes das do vaqueiro.

... costume velho... (p.34)

- Velho – antigo, de época remota.

…matutos agigantados... (p.35)

- Agigantados – enormes, homens de grande corpulência.

...paisagem vicejante e lavada. (p.39)

- Vicejante – tem viço, vegetar com opulência,

exuberante.

- Lavada – limpa pelas águas da chuva, molhada.

... ele ficou todo arrupiado... (p.45)

- Arrupiado (verbo pop. arrupiar, variação de arrepiar);

ouriçado, arrepiado.

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.... pestanas sapiranguentas... (p.47)

- Sapiranguentas- Sapiranga (do tupi e’sá, ‘olho’+ pirãga,

‘vermelho’.); olhos inflamados.

“Ao desperdir-se, o reverendo fez cumprimentos meio

rasgados”. (p.50)

- Rasgados – exagerados.

“... chamou-lhe grandessíssimo veiaco, ...” (p.50)

- Veiaco (velhaco) – que é traiçoeiro, fraudulento.

...português estropiado, que ele achava burlesco... (p.55)

- Estropiado – mal executado, cantado.

- Burlesco – cômico.

... olho grelado... (p.59)

- Grelado – olhar parado observando algo;

.... o escutava esqueixelado (p.64)

- Esqueixelado – (pop.) de queixo caído; atentamente.

.... dizia muito espigaitada... (p.68)

- Espigaitada – animada, excitada.

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.... espichado na rede... (p.79)

- Espichado – deitado, estendido, esticado.

... que se deixava ficar embiocado na rede... (p.84)

- Embiocado – envolvido em um lençol, cobrindo a

cabeça.

.... alegre e bondadosa... (p.87)

- Bondadosa – (haplologia): bondosa, que tem bondade,

benévola.

... estava acanhado... (p.92).

- Acanhado – tímido, retraído.

... ao rufo medonho das patas... (p.93)

- Medonho – que causa medo, assustador.

... forças quebradas... (p.94)

- Quebradas – diminuídas.

E agora eis o Quinquim, taciturno, especado entre dois

desgostos... (p.97)

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- Taciturno – (Do lat. Taciturnu), calado, silencioso,

tristonho.

- Especado – (do v.t.d. especar), escorado, parado,

estacado.

...e o outro logo estatelado e estirado no duro, de papo pra

riba. (p.98)

- Estatelado – estirado no chão.

- Estirado – estendido ao comprido, deitado, esticado.

Amanhecer morta uma vaca amojada. (p.98)

- Amojada – diz-se da vaca e de outras fêmeas de animais

preste a parir e, por isso, com o úbere desenvolvido.

...burro velho choutão... (p.110)

- Choutão – adj. choutador, que anda a chouto, trote miúdo

incômodo.

...gado erado... (p.120)

- Erado – diz-se do animal bovino gordo, bom para o corte.

...a dois sujeitos avezados ao uso da faca e do clavinote,...

(p.128)

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- Avezados – acostumados, habituados.

Ventania revezada... (p.131)

- Revezada – que trocava de posição, alternava-se.

Procuramos dar a cada adjetivo o valor que nos pareceu

adequado a cada um. O certo é que todos, como foram

empregados pelo escritor, definem claramente seu pensamento

achando-se, portanto, em lugar justo.

1.3.2 – EXPRESSÕES

Anotamos, nestas páginas, em certos aspectos, pontos

característicos da fraseologia de Oliveira Paiva. São expressões

usadas, no meio rural, no falar do dia a dia e para as quais

procuramos dar a interpretação conveniente. Vejamos:

“Antes de você alcançar a vila, estou-lhe nos mocotós”.

(p.23)

- Estou-lhes nos mocotós – bem perto de você,

acompanhando-o bem próximo.

“... que fazia derramar ancoretas de vinho nas suas festas,

senhora de suas ventas...” (p.31)

- Senhora de suas ventas – independente, dona de si.

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“... Seu moço, desta banda é mais fresco”. (p.32)

- Desta banda – deste lado.

“De menhanzinha, quando...” (p.46)

- De menhanzinha (de manhazinha) – bem cedo, ao

amanhecer do dia.

“Diabo de caminho desgraçado! Gente chega i aos

boléus”. (p.47)

- I aos boléus – aos trambolhões, aos encontrões.

“... não perca esse costume de alinhavar tudo”. (p.47)

- Alinhavar tudo – contar tudo pela metade, sem os

detalhes.

“...e pelo caminho não se andava aos trancos e barrancos

como alí na fazenda (p.7)”.

- Aos trancos e barrancos – de qualquer jeito.

“Secundino estava demorando por denguice, que isso lá

cara de pau ele a tinha bastante. (p.58) ”.

- Cara de pau – descarado, pessoa cínica.

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“Deixe de custo, que as muié tão esperando...” (p.58)

- Deixe de custo – não demore.

“... mas louvado seja Deus...” (p.64)

- Louvado seja Deus – é uma expressão que a todo instante

o homem do campo, quando conversa, pronuncia. Parece que se

julga mesmo na obrigação de fazê-lo, para estar em paz consigo

mesmo.

“... confiar a sorte de sua filha a um forasteiro sem eira

nem beira. ” (p.74)

- Sem eira nem beira – sem reputação, sem família, sem

nome, sem honra.

“O Secundino papocou-lhe na rosca da venta, a proposito

de uma questão do Capitão Chiquinho... (p.75)”

- Papocou-lhe na rosca da venta – disse de supetão, de

imediato.

“... casada com um homem que era um anjo de

bondade...” (p.87)

- Anjo de bondade – pessoa boa, caridosa, inofensiva.

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“-Nem tanto, é que eu tenho andado moído...” (p.87)

- Andado moído – cansado.

“Chegou em casa pondo os bofes pela boca ...” (p.99)

- Pondo os bofes pela boca – muito cansado.

“Lá vai agora o fio da meada: ” (p.102) (grifo do autor)

- Fio da meada – inicio de tudo, desde o início.

“O juiz deitou verbo à prosperidade do ditoso casal

Barros...” (p.105)

- Deitou verbo – elogiou.

“... Só queriam viver amarrados na saia dela! (p.112). ”

- Amarrados na saia dela- sempre próximos dela.

“A Mercês desembuxou a valer...” (p.116)

- Desembuxou a valer – (de des - + embuchar.), descobrir,

confessar.

“... concentrava-se para a ação, e não gotejava pingo de

palavra.” (p.118)

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- E não gotejava pingo de palavra – não dizia uma só

palavra, ficava calado.

“Puxe pur aqui, seu cachorro! ” (p.119)

- Puxe pur aqui – saia daqui.

“... O fazendeiro ia ficando fulo”. (p.120)

- Ficando fulo – ficando com muita raiva.

“... que ia determinar ao delegado que tomasse a peito os

negócios do Major... (p. 122) ”

- Que tomasse a peito – priorizasse o caso.

“Eis volta o homem para o sertão com a cabeça cheia de

caraminholas, na crença de que o Secundino seria revê

catrafilado.” (p.122)

- De caraminholas – de fantasias, de imaginações.

“... o diabo do homem todavia batia o pé que não voltava

para o Poço! (p.126)

- Batia o pé – implicava, teimava.

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“... Ela porém saíra-lhe com quatro pedras na mão...

(p.126) ”.

- Com quatro pedras na mão – agressivamente.

“O Quim segredou-lhe que contava com duas testemunhas

de papoco, o Néu mais o pai”; (p.127)

- Testemunhas de papoco – testemunhas de grande valor,

importantes.

“... enquanto o demo esfrega um olho. (p.128) ”.

- Enquanto o demo esfrega o olho – de surpresa, às

escondidas, rapidamente.

“... ia-lhe no cheiro...” (p.131)

- Ia-lhe no cheiro – acompanhava-a bem próximo.

A par das expressões já vistas e que são comuns à fala

usada pelo autor de Dona Guidinha do Poço, registraremos outras

mais que vão constituir este tópico e que, pelo valor sintático que

apresentam, merecem o destaque que lhes passamos a dar:

A expressão é que

“Ali é que se arrancham aqui essas gentes...” (p.25)

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“... Mas me admira como é que se come tanta gordura

assim! ” (p.39)

“... O senhor é que deve dizer o que é isto. ” (p.119)

“O povo é que firmava de mais em mais o seu juízo a

respeito. ” (p.122)

Nas orações acima, a expressão é que é mera expressão de

realce, expletivo, recurso estilístico, idiomático. Serve para dar

ênfase à construção. Dotado de grande poder expressivo, a

locução é que dá realce ao sujeito, sendo normalmente, invariável.

A concordância verbal, no caso, é feita com o substantivo que a

precede.

Essa expressão, segundo Artur de Almeida Torres5, surgiu

no século XIX ou fins do século XVIII, tem caráter de elemento

reforçativo ou enfático. Equivale, mais ou menos, a- é certo, é

exato.

Cônego Bueno Sequeira6 afirma seu aparecimento de uma

generalização analógica. Segundo sua opinião, é que começou a

ser empregada com um sujeito masculino do singular. Logo,

5 TORRES, Artur de Almeida. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa,

1967. 6 SEQUEIRA, Cônego Bueno. A ação da analogia no Português, 1954, p.91.

“E quedê lo gado? (p.86)

“E quedê lo Seu Majó? (p.112)

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porém, que se generalizou, passou para o feminino do singular e

para o plural dos dois gêneros. Em sua opinião, a construção

original seria esta:

“O homem é o que ofende a Deus”.

“A mulher é a que deve obedecer”.

“As mulheres são as que não querem”;

porém, com a eliminação do demonstrativo e a conservação da

frase no singular, a expressão fixou-se na língua, na forma

masculina nesse primeiro exemplo simplificado – “Pilatos é que

havia de fazer asco”.

Assim, passou a invariável, abrangendo os outros casos.

A expressão Quede/quedê

Quede ou quedê (que é de), forma popular que se emprega

interrogativamente, tem por variação cadê. Largamente usada na

fala brasileira é, sendo Cândido Jucá Filho7, uma evolução de

“que é feito de?”, enquanto cadê o é “de-que há de?”. Sílvio Elia8

classifica tal expressão um misto de verbo e advérbio, um

verdadeiro verbo adverbial com sentido de onde está? onde estão?

A expressão Seu

7 JUCÁ FILHO, Cândido. Língua Nacional (As diferenças entre o português

de Portugal e do Brasil), RJ. 1936. 8 ELIA, Silvio. Ensaios de Filologia, 1963, P. 109.

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“Seu Joaquim, vá seguindo, que eu já lhe pego. ”

(p.23)

“- Inhor, sim, é seá Dona Guidinha...” (p. 24)

“ – Para aqui, Seu Moço, desta banda é mais fresco. ”

(p.32)

“Seu Silveira diz que Vosmicê há de i...” (p.55)

Seu é forma popular de senhor. De sinhô/inhor (senhor)

veio o feminino sinhá. Tal simplificação, entretanto, foi mais

longe: siá – siô.

De siá, originou-se talvez o correspondente masculino

que, sob influência do possessivo, que transformou em seu. Mario

Marroquim9 apresenta-nos esta evolução: sinhô – sinhá

siô – siá

seu – sá/seá.

A expressão Mode

“Mó de que esta noite uvi o novio gaitá pra Lagoa? ”

(p.21)

“... Mas mode coisa que é gente de Pernambuco? ”

(p.22)

“Por mó disso, os bezerros...” (p.39)

9 MARROQUIM, Mário. A Língua do Nordeste, 1943.

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“Virge! Mó de quê home?” (p.113)

Mode, expressão de fundo adverbial – a modo de que –

segundo ainda Mário Marroquim10 é uma deturpada pelo povo em

a mode que, mode que, mode, mó de, mode coisa que, por

analogia com pru mode, originária de – por amor de, a que ele se

refere como sendo “um caso interessante de apócope e em que há,

também, aférese”, resultando daquele expressão. Usada, ainda

hoje, no velho português, acha-se arraigada na fala do povo.

É um manancial riquíssimo, desafiando um estudo

especializado de lexicografia, das ligações dessa ciência com a

antropologia, os hábitos e costumes do povo sertanejo do século

XVIII.

Somando-se às expressões populares, ao modo de sentir e

pensar do povo dessa época poderemos incluir uma boa leva de

ditados. Nesta forma de traduzir o seu pensamento, o povo

concentra, numa simples frase, todo um conceito moral e de bom

viver de séculos a séculos. Não importa o nome que se dê a síntese

da fórmula popular. Rifões, adágios, provérbios, ditados, ou outro

qualquer. O essencial é que todos eles exprimem uma ideia moral

ou crítica, uma síntese do bem pensar e sentir do povo.

10 Obra citada

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1.3.3 – A FORÇA DOS VERBOS EM DONA GUIDINHA DO POÇO

No livro de Oliveira Paiva, os verbos transportam para a

massa linguística, valores semânticos variados. Através deles,

seguindo a índole da língua, o autor busca, na fala dos simples,

afirmações que valorizam as frases. E ele se revela profundo

conhecedor do idioma.

Encontramos, não raras vezes, exemplos de sinestesia

verbal que bem atestam o vigor de uma linguagem que, na

literatura nacional, conquistou a posição merecida.

Transcrevemos, não só os que se contaminam pelo efeito

semântico, mas também os que se revestem de cunho interessante.

“O marido, ligando ideias...” (p.19).

- Ligando – V. ligar (T.d.); aqui utilizado no sentido

figurado: entender.

“Ali é que se arrancham aqui essas gentes...” (p.25).

- Arrancham – V. arranchar – hospedar-se, estabelecer-se

provisoriamente.

“...não queria arriscar palavra sem primeiro conchavar

com a Guida.” (p.33)

- Conchavar – V. conchavar – (v.t.d.) – combinar, acertar.

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“E as visitas foram arribando”. (p.36)

- Arribando – v. arribar (v.i.) – sair.

“Guida forçou o mancebo a tomar uma cadeira de

palhinha, e aventou jogarem bisca. ” (p.36)

- Aventou – V. aventar (t.d.) – expor, enunciar, propor.

“O marido concordava, e Dona Anginha abodegava para

o moço que não se avexasse...” (p.39)

- Abodegava – v. abodegar (t.d.) – insistir.

- Avexasse – v. avexar/vexar (v.i.) – apressar.

“Estruge, ao rufo medonho das patas dos cavalos...” (p.93)

- Estruge – v. estrugir (v.i.) vibrar fortemente, estrondear.

“Arengava muito com a irmã. ” (p.50)

- Arengava – v. arengar (v.t.i.), fazer intrigas, mexericar.

“...e, estalando as castanholas dos seus dedos rijos, ...”

(p.56)

- Estalando – v. estalar (v.t.d.) – produzir estalidos, em

fazer estalar.

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“- Não arreparem, minhas donas! ” (p.68)

- Arreparem – v. arreparar/ reparar (t.d.) – observar.

“...que se embasbacava com as gauchadas pimponas do

namorado. (p.73) ”

- Embasbacava – admirava.

“Era caso de tabaquear, para quem fez tão pouco caso da

vida”. (p.94)

- Tabaquear – v. tabaquear – fumar tabaco ou rapé.

“Os vaqueiros das outras partes arrebanhavam, cada qual

escoltava as suas reses...” (p.94)

- Arrebanhavam – v. arrebanhar (t.d.) – cuidar, juntar,

recolher gado.

“Os vaqueiros, que estavam a abeberar no riacho

Ipueirinha, caçoando do coitado do grão Senhor do Poço da

Moita! ” (p.99)

- Abeberar – matando a sede

- Caçoando – zombando, escarnecendo.

“Ficou a abugalhar, absorto para um ramo que,

trepidando ao luar...” (p.99)

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- Abugalhar – v. abugalhar – abrir muito os olhos,

esbugalhar.

“A Guida, vendo que não havia mais esticar conversa...”

(p.107)

- Esticar – prolongar.

“A Mercê desembuxou a valer”. (p.116)

- Desembuchou – v. desembuchar (t.d.) – (sentido

figurado) falar tudo, não esconder nada.

“Mas, pelo brando, o cabra, sob o olhar animador da ama,

vai caqueando nos cós: ...” (p.120)

- Caqueando – v. caquear – procurar às cegas.

“...contribuindo isso para afugentar mais depressa do

pensamento...” (p.126)

- Afugentar – afastar.

“... mas o primeiro se acurvou com uma dor de uma banda,

...” (p.126)

- Acurvou – v. acurvar – encurvar-se, abaixar-se.

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1.3.4 – O DIMINUTIVO EM DONA GUIDINHA DO POÇO

Oliveira Paiva usa, em abundância, o diminutivo. A

Estilística nos mostra que o estudo dos sufixos tem maior

importância que o dos prefixos. São dotados da função

importantíssima de acrescentar à palavra simples uma ideia

exclusivamente intelectual, que oferece sequência de aspectos e

impressões de maneira fértil e variada.

Refletindo índice psicológico, eles como que descrevem

os sentimentos que animam a alma humana, manifestando amor

ou aversão, diminuição ou intensidade. Retratam, assim, o que vai

à imaginação do escritor: delicadeza, lirismo, fatalidade,

esperança, tristeza, alegria, galhofa ou zombaria.

O sufixo inho, principalmente, é visto, muitas vezes, em

uma mesma página de se livro. É um salpico de afetividade com

que ele ornamenta, de vez em quando, seu estilo.

É realmente o sufixo uma das mais extraordinárias

características de todas as línguas, constituindo para os que sabem

manejá-las substancioso filão da expressividade.

Passaremos a citar exemplos do autor cearense:

“Aquela família, que tivera o seu gadinho, as suas

bestinhas, e hoje a correr mundo...” (p.19)

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- Gadinho, bestinhas – exprime quantidade, pouco gado,

poucas bestas.

“Em 25, ela ainda era pequenota...” (p.37)

- Pequenota – afetividade.

“... e hoje tenho o meu vintezinho para as precisões...”

(p.50)

- Vintezinho – expressando quantidade.

“Tem um defeitozinho, por amor da educação...” (p.20)

- Defeitozinho – afetividade, expressando quantidade e

ironia.

“Zé Tomás, que sentia umas dorezinhas cansadas nos

músculos...” (p.56)

- Dorezinhas – diminutivo normal.

“Depois ficaram os dois homens, que atiraram em duas

raparigas donzelas, cunhazinhas do Itambé. ” (p.59)

- Cunhãzinhas – afetividade.

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“A loicinha é veia, mas porém o café é bem torrado...”

(p.68)

- Loicinha – sugere humildade, e, portanto, uma

afetividade doce, simples.

“Meu bem se assente, Guidinha! Eu chamo ela

Guidinha...” (p.68)

“... passaram pela casa da Aninha Balaio...” (p.68)

“A Lalinha fazia de muito sabida, mas...” (p.105)

- Guidinha, Lalinha, Aninha – afetividade. O sufixo

diminutivo anexado a nomes próprios lembra carinho, afeto.

“O chão indicava, ainda fresquinho, o ciscado dos

sapateadores. ” (p.69)

- Fresquinho – indicando ideia de tempo, de pouco tempo.

“Sem o marido dar por ela, fazia mesmo o sacrifíciozinho

de algumas embirrâncias...” (p.51)

- Sacrificiozinho – classificando um grau de um

sentimento, apresenta o ato ou efeito de sacrificar-se

“A casinha do Silveira mergulhava num lago...” (p.44)

- Casinha – ideia afetiva. (Casinha – s.f.)

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“Ela usava essência de rosas, que trazia em um frasquinho

pequenininho de cristal...” (p.62)

- Frasquinho – pequenininho – ideia normal de

diminuição.

“... abanando-se com o seu lenço cheiroso, bem

penteadinho, bem escovado”. (p.72)

- Penteadinho – indicando exagero.

“E não era sem um riso de ironia que o Rabelo,

promotorzinho demissionário, ouvia...” (p.81)

- Promotorzinho – tom de ironia, com ideia depreciativa,

em face do suposto mau comportamento do moço.

“-Boa vida, hem, meu amiguinho?” (p.87)

- Amiguinho – aqui encontramos uma certa ironia por

parte de Guida ao se referir ao Secundino.

“Todos dizem: Coitadinho!...” (p.95)

- Coitadinho – o adjetivo coitado, por si, evoca grande

força de tristeza, que se torna mais evidente quando, como na

presente frase, tem sentido figurado. Anexando-lhe o sufixo inho

confere-lhe alto grau de afetividade.

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“... se lembraram de matar a sede, cavando cacimbinhas

na seca areia do leito;” (p.95)

- Cacimbinhas – indica proporção, tamanho, ideia

dimensional, com tom afetivo.

“Dois vaqueirinhos imberbes, aproveitando o novilho...”

(p.94)

- Vaqueirinhos – afetividade, expressando a juventude

(jovens vaqueiros).

“... e imateriais desejos de todo aquele corpozinho. ” (p.

104)

- Corpozinho – afetividade expressada pela delicadeza do

corpo de Lalinha.

“... ir a gente no seu cavalo gordo com o seu rico

maridinho, também no seu cavalo...” (p.108)

- Maridinho – tom de ironia.

“... e por qualquer coisinha estavam eles pegados com o

seu santo patrocínio. ” (p.109)

- Coisinha – tom depreciativo

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“... como o voo da borboleta ao ventozinho rasteiro da

manhã”. (p.110)

- Ventozinho – expressa ternura.

“Festa, a gente cumpareceu, fez ali o seu dançadozinho, e

boa romaria faz quem im sua casa está in paz...” (p.114)

- Dançadozinho – expressando tempo, duração de tempo.

“Bem razão tinha a Mercê: passar os bichinhos no cobre,

que ali não podia deixar de acontecer algum destroço”. (p.119)

- Bichinhos – afetividade, expressando quantidade.

“... aí vem mesmo certinho um motivo irrecusável para

despedida...” (p.120)

- Certinho – expressa intensidade.

“... e fez seus presentezinhos aos meninos, com

especialidade ao afilhado” (p.121).

- Presentezinhos – tom diminutivo normal, expressando

afetividade.

“Foi penetrando, porém, aos bocadinhos, o mais adiante

que pôde” (p.132).

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- Aos bocadinhos – (Advérbio de tempo); ideia de leveza,

de suavidade.

“A casa do papai dela estava entupidinha de povo”

(p.133).

- Entupidinha – indicando exagero.

“- E sabes de quem é essa letrinha?” (p.137).

- Letrinha – tom de ironia.

Assim são os diminutivos no estilo de Oliveira Paiva

trazendo, algumas vezes, o traço da criticidade ou da tristeza, na

maioria delas sugere carinho, afeto, ternura – ricos em beleza,

suavizando a força de seu estilo.

1.3.5 – GLOSSÁRIO

Examinando mais demoradamente o romance de que nos

ocupamos, deparamo-nos com palavras interessantes que lhe

compõem a estrutura quer no campo semântico, quer no

linguístico. Sugerem mesmo a feitura de um glossário11.

11 Na primeira edição (1952) de Dona Guidinha do Poço, Américo Faço sentiu a

necessidade de elaborar um glossário a fim de facilitar uma maior compreensão

dos termos e/ou palavras regionais encontradas no romance.

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É o que passamos a realizar12:

Abrir (cansar-se): “O cavalo abria se não era amestrado”.

Adjunto (ajuntamento): “Por mó do adjunto de povo”.

Ai daí! (sai daí): “Ai daí! Esgoelava o seu Antônio”.

Aferventar (fazer apressadamente): “A Corumba tinha

aferventado o serviço”.

Abodegar (incomodar): “Abodegavam-lhe os ouvidos os

chocalhos”.

Alteração (altercação): “Foi uma alteração que, se fora dentre

gentinha, era logo cadeiame velho”.

Arrojado (solene): “Era uma festa muito arrojada”.

Atra (outra): “Amanhã chove atra vez”.

Briba (víbora): “Diabo te mate, língua de briba!”.

Beneficiar (castrar): ”M’pai, fale a seu Majó para se beneficiar a

Muniz”.

Brochote (rapazinho): “Vez por outra chegava um brochotezinho

do agregado com recado para Guida”.

Cabear (segurar o rabo da rês): “O que vai cabear e o que faz

esteira”.

Ca (que): “Ca maçada”.

12 A maioria destes termos foi-nos cedidos pelo Prof. Dr. Sânzio de Azevedo, que

já os tinha catalogado.

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Cabrinha (rapaz esperto): “Aqui, o moço foi puxando um diálogo,

falante que era o cabrinha”.

Catrafilar (encarcerar): “Na crença de que o Secundino seria

breve catrafilado”.

Capucho (espuma): “Comadre, despeje esta cuia no pote e me

mande um capucho”.

Chamurro (novilho castrado tarde): “Aquilo não presta senão

mais pra chamurro”.

Crusidade (curiosidade): “E fale da crusidade de muié...”

Cabeça-baixa (porco): “...porque o torpe cabeça-baixa impestava

os bebedouros”.

Chega (que, a ponto de): “diabo de caminho desgraçado! gente

chega i aos boléus”.

Cupiá (copiar, alpendre): “Vivia o cupiá atravessado de redes”.

Decomer (comida): “as negras na cozinha fazendo o decomer”.

Divulgar (vislumbrar): “Divulgava-se para o sul, que era o lado

da frente, um pico azul...”.

Doía (degas, a pessoa falando de si): “Quem botou o rei foi a

doía”.

Enfarinhado (entendido): “No sertão não havia gente bastante

enfarinhada nestas questões”.

Embiocar (em+bioco+ar): envolver

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Espigaitado (espigado, aprumado): “...logo o foi reconhecendo

pelo corpo espigaitado”.

Estrupir (estrupido): “Um estrupir tremendo entrou por uma

moita”.

Esqueixalado (pasmado): “A ama escutava-o esqueixelada”.

Fábrica (auxiliar de vaqueiro): “Desde que passara de fábrica a

vaqueiro”.

Fracatear (fraquear): “Mas o Trovão não fracateou”.

Horror (ror): “um horror de léguas”.

Grelar o olho (arregalar o olho): “-Dúvida? Disse ela, grelando o

olho”.

Impreensão (apreensão, preocupação): “a impressão dos

arretirantes era só voltar pra trás”.

Impor (acompanhar): “entre os cavaleiros que o foram impor

estava o Major”.

Improado (emproado, orgulhoso): “...e quando eu vi foi cada quau

gritando mais improado”.

Inchando (ficando com raiva, enfurecendo-se): “E foi inchando.

Quis chamar-lhe a atenção, mas se atreveu.”.

Liforme (uniforme): “Diabos deste liforme ta ficando veio...”.

Lua (coisa efêmera): “A panelada foi lua, não chegou para quem

quis”.

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71

Magote (indica quantidade): “... mas de frente, o magote de

homens seguidos por um cavalo...”.

Manginga (bruxaria): “Mas o chumbo trelia, urubu tinha

mandinga, apenas um ficou penso”.

Matotage ou matotagem (matalotagem): “Na véspera haviam

feito matalotagem de uma vaca”.

Mucica (repuxão): “No ato da mucica, o cavalo abria se não era

em amestrado”.

Onça (forte, resistente): “O poço da catingueira, o mais onça da

ribeira do Banabuiú...”

Pandoiar (pandegar, levar vida de boêmio): “Deixe-se de andar

pandoiando”.

Papoco (formidável, excelente): “A dança, na véspera, esteve de

papoco:..”.

Peguero (Apego): “Só mesmo aquele Deus do Céu pode pôr

termo a semiante peguero”.

Parecero (parceiro): “-você é a minha paracêra!”.

Pé-de-poeira (pessoa de baixa condição): “uma canalha ruim

como eram aqueles pés-de-poeira”.

Pichosamente (com esmero): “Vestiu-se com vagar e

pichosamente”.

Prosear (conversar): “As meninas continuaram a prosear com a

Aninha”.

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

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Rispe (ríspida): “...às vez usava de barbaridade, às vez era muito

rispe”.

Terronantes (aterrorizante): “Quem vê assim sacudido, he de

pensa que ele é de terronantes”.

Temero (atrevido, temerário): “O sujeitinho temero!”.

Torado (decepado): “... e o caluniador caiu côa língua torada”.

Vintém (dinheiro): “... e hoje tenho o meu vintenzinho para as

precisões...”.

Vôte (longe de mim): “Diabo leve esses costumes de praça!

Vôte!”.

Zanoio (estrábico): “Um, o mais veio, qui era zanoio, chamava-

se André Virno”.

1.4 – PERMANÊNCIA DO FOLCLORE

Durante muito tempo não se tomou sentido do Folclore

como ciência. Era como uma substância que penetrava em todos

os caminhos da cultura humana sem ser identificada, sem ser

separada do tecido comum. Um enfeite, quando muito, ou um

toque de exotismo que passava despercebido, sem personalidade

científica.

No entanto, folclore não é uma ciência nova. Embora a

Arqueologia, a História, a Sociologia, a Etnologia, depois de um

certo período procurassem incluí-lo em seu domínio, a situação

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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continuou indefinida. Porém, no século XX, ao abandonarem-se

as ideias empíricas, embora férteis dos primeiros pesquisadores,

é que se conseguiu dar-lhe o verdadeiro lugar de ramo da

Antropologia Cultural.

Muitos séculos antes da era cristã, já se pesquisava, já se

recolhia em obras importantes a contribuição anônima do povo.

Já se percebiam a beleza e os ensinamentos que há em todo esse

repertório de crítica, de humor e de bom-senso, a que somente

uma cultura coletiva é capaz de dar perenidade.

Representa o folclore, de início, o fundamento da história

de qualquer povo, numa época em que não havia a linguagem

escrita, e a oralidade, através de gerações e mais gerações,

conduzia o estrato da vida e da origem de cada cultura. Daí a

afirmativa de Renato Almeida1213, de que “O Folclore muitas

vezes se torna uma infra história”. Era fácil destruir a cultura

material de um povo subjugado, mas a sua cultura espiritual

perenizava-se na memória e na oralidade coletiva.

Seria, portanto, inocência ou ignorância negar o valor, a

profundidade e a permanência da criação popular como base de

inspiração ou recriação literária. Daí a importância que as culturas

13 ALMEIDA, Renato. Inteligência do Folclore, 1957, p.35.

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

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modernas dão à pesquisa e à exegese do fato folclórico, depois

que a sua conceituação conquistou foro de ciência.

Em nenhuma literatura, por mais requintada que seja, o

elemento folclórico deixa de estar presente, consciente ou

inconscientemente. Quando não constitui o arcabouço temático, a

sua recriação, como em Macunaíma, de Mário de Andrade, o

substrato e a paisagem humana baseiam-se na vida, nos costumes

e, inclusive, no vocabulário, como toda a ficção nordestina de

tantos autores. Mesmo na ficção de fundo psicológico, intimista,

e por vezes hermético, o modismo, a gíria, ou certas maneiras de

pensar do povo entram inconscientemente diluídos na narrativa

ou no poema.

É como afirma Reginaldo Guimarães14:

Em todas as formas de arte, de maneira consciente

ou inconsciente, o folclore penetra às escâncaras

ou de mansinho, como consequência da situação

gregária, social do homem. Não se pode, portanto,

fugir a tradicionalidade. Ela continuará com esta

ou aquela roupagem. Se parece desaparecer

momentaneamente de uma região, por qualquer

traumatismo social ou econômico, ressurge

revigorada ou transmudada em outros rincões,

atravessando oceanos e continentes.

Modismos, rifões e lendas que nos pareciam tão nossos, já

existiam antes de a América ser descoberta. O ditado “as

14 GUIMARÃES, Reginaldo. O folclore na Ficção Brasileira, 1977, pp. 2021.

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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aparências enganam” vem de época anterior a Hesíodo, que viveu

na Grécia entre o IX e o VIII séculos antes de Cristo. A história

da baratinha, que tinha dinheiro na caixinha e queria casar “já

havia sido registrada em uma coleção de estórias da Índia, há

quase dois mil anos”, conforme chama a atenção Maria de

Lourdes Borges Ribeiro do seu saboroso Que é Folclore?15, a

propósito do anonimato do fato folclórico.

Não nos importa neste momento discutir o valor das

doutrinas explicativas. O que nos parece mais importante, agora,

é registrar o fato. E ele existe, dessa ou daquela forma. Reginaldo

Guimarães nos afirma que:

Pode um fato folclórico vir de outras eras ou de

outras regiões. Se com o tempo, a aceitação, a

funcionalidade e o dinamismo tomaram forma e

aspecto nacional, passa a fazer parte de nossa

cultura popular. Não se trata de alienação. Basta o

povo sentir. Só ele e apenas ele deve e pode reger

esse conjunto de leis folclóricas: anonimato,

aceitação coletiva, transmissão oral,

tradicionalidade e funcionalidade. Fora dessa

imposição coletiva, nada é folclore. Quando muito

pertencerá ao setor da tradição histórica, jamais

tradição estórica

Não é a falta do regional ou do nacional que

empresta universalidade a uma obra. Ao contrário.

Em ultima análise, não há elemento mais

universal que o fato folclórico. Ele apenas se

transforma, e o seu magma coletivo toma

características locais, pelo dinamismo, pela

15 RIBEIRO, Maria de Lourdes Borges. Que é Folclore? 1974.

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

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funcionalidade e pela aceitação, três leis das mais

importantes a fim de entendermos, com lucidez, a

ciência folclórica. Por isso a ficção do Nordeste,

do Planalto e do Sul continuam vivas, em sua

essência pioneira, ou pela recriação periódica. Seu

conteúdo continua a desafiar a análise, o estudo de

problemas que não se modificam apenas com a

boa vontade. A região agrária é sumamente

conservadora, não acompanha, com o mesmo

passo, a evolução urbana. E nas constantes

migrações de populações rurais, acossadas pelo

desequilíbrio social, para as metrópoles, vem

também todo um manancial de tradições para as

diferentes partes do território nacional.

(GUIMARÃES, 1977, pp. 21-22)

Assim, a alma nacional dessa gente, retida nos costumes e

na cultura folclórica, mostrou a sua face de universalidade. Os

romances de Jorge Amado, de Guimarães Rosa, de Graciliano

Ramos, de José Lins do Rego ou a epopeia de Os Sertões, de

Euclides da Cunha, e o estudo da sociedade patriarcal do Brasil

de Casa Grande e Senzala começaram a ser traduzidos porque

trazem em seu bojo toda uma tessitura da alma regional, e

desembocam no humanismo universal.

1.4.1 – O FOLCLORE NA OBRA

Logo ao início do livro, no primeiro capítulo, Oliveira

Paiva apresenta-nos particularmente um inventário da família de

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Guida16, deixando-nos perceber exatamente quão detalhados

eram os inventários da época. Como podemos verificar abaixo:

Aqui vai o resumo de uma relação ou nota do que

lhe achou, imperfeita e truncada como o são

geralmente os inventários, mas autêntica,

encontrada num alfarrábio do Padre Costinha,

quase ilegível:

OURO

“Moedas de ouro de 20$ e de 40$ (estava apagado

o algarismo) ”.

Pares de fivela de ouro cortado, 40 oitavas

(a2$500 a oitava).

Par de fivelas grandes de liga, cortadas (não sei

quantas oitavas).

Grande crucifixo com cruz de caixão, 14 oitavas.

Par de brincos, 5 e meia oitavas e 13 grãos. (...)

PRATA

Jarro grande d’água de mãos lavrado a cinzel, 224

oitavas ($160).

Bacia, 312 oitavas.

Leiteira cinzenta, 112 oitavas. (...)

COBRE

Tacho, oito libras.

Bacias de cozer doces, de sangria, de dar água às

mãos (latão).

Bacia de barba (latão).

Um sino.

FERRO

16 Parece-nos ser um bom exemplo da preocupação formal em Dona Guidinha do

Poço essa insólita enumeração dos pertences da família. Trata-se, a nosso ver, de

um procedimento poético destinado a arcaizar o relato, promovendo na

imaginação do leitor a coisificação dos bens materiais da personagem.

É algo próximo do que faria mais tarde a vanguarda contemporânea, como se

observa, por exemplo, em “Os bens e o sangue”, poema de Carlos Drummond de

Andrade incluído em Claro Enigma (1951). Esse poema, a que o poeta dava muito

importância, baseia-se igualmente na transcrição de um documento antigo, com

uma longa relação de nomes extravagantes.

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

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Ferragens de carpina. Serra braçal. Uma menor.

Aço em vergas. Serrotes de serrar gados. (...)

BENS MÓVEIS

Oratório de três vidros. Móveis de pau-amarelo,

de imburana, de cedro.

Cômodas. Canapés. Dois tremós com mesa de

assento de pedra-mármore e pés dourados, com

dois espelhos grandes de vestir. (...)

BENS IMÓVEIS

As terras das fazendas Poço da Moita, Amparo,

Bom – Sucesso, Mazagão, Mulungu e Imoatá. (...)

(pp, 13,14)

Através desses objetos acima descritos podemos perceber

como viviam as pessoas mais abastadas da região, o que possuíam

e em que empregavam o dinheiro que ganhavam. Mas não é

somente o inventário a única manifestação descrita ou solta na

narrativa. Rara é página do romance em que não encontramos um

dado, uma pincelada de um tema tradicional.

Poderíamos classificar as tradições populares, inseridas

em Dona Guidinha do Poço, em vários motivos: crendices

populares, música e instrumentos populares, festas populares,

sincretismo afro-brasileiro-católico, gíria, ditados e rifões, tipos

sociais do povo, vestuário e costumes locais e da época, e muito

mais.

Além dessa conjuntura folclórica e social, encontramos

também na obra um esboço de levantamento topográfico da

região cearense. Assim a Fazenda Poço da Moita ficava

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localizada “na ribeira do Curimataú, afluente do Jaguaribe17” e a

casa grande...

“A margem esquerda do impetuoso escoadouro

hibertino, a casa grande amostrava-se num alto, de

onde enxergava grande distancia em derredor,

principalmente pela seca. Durante o inverno, a

superabundância de folhagem restringia

sensivelmente o campo de visão. Para leste via-se

uma série de colinas que faziam o sol aparecer

mais tarde. Divulgava-se para o sul, que era o lado

da frente, um pico azul, o serrote da Meruanha; e

para o ocaso, em no horizonte, mais uns três ou

quatro dentes das serras do Batista e do Papagaio,

que abriam um boqueirão ao rio Curimataú”. (p.

11)

A fazenda Goiabinha, onde Secundino fora morar, é

também assim, situada: “Do Poço da Moita passava-se, logo ali,

o Banabuiú, enfiava-se pela catinga do Jiqui, e, espaço de hora e

tanto, se ia bater mesmo na fazenda Goiabinha” (p. 77).

Logo as distâncias existentes entre as fazendas; das

fazendas para a vila ou destas para os lugarejos traduzem um fato

popular, uma comunidade profissional ou étnica.

- FESTAS TRADICIONAIS E POPULARES

As festas tradicionais e populares que encontramos no

romance de Oliveira Paiva, quase todas, estão lidadas direta ou

17 Jaguaribe: rio do Ceará.

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indiretamente o culto católico, mesclado ao sincretismo religioso

afro-brasileiro.

Captando o grande interesse popular pela festa, o escritor

vai, aos poucos, descrevendo o dançar do povo, o comportamento

deste diante da dança:

Até que enfim, executadas diferentes afinações,

em cima e embaixo, o da viola de melhor regra fez

a postura do baião, entrando em seguida a marcar,

com o polegar no bordão, ao passo que com

aquele outro dedo passava a pontear um sapateado

sereno, encrespado de quando em vez por um

trecho vermelho de rasgado. O toque produzia nos

circunstantes aquele susto que é sintonia de

profundo prazer. (...)

A viola enfiou no rojão, amarrando o toque, e

naquilo seguiram casadinhas que era um regalo.

(...)

Os dois pares fizeram os seus volteados, trocaram

as damas uma pela outra, e repetiram as mesmas

figuras. Ficaram depois as damas que atiraram em

outros homens.

Já os cantadores haviam entrado em desafio, que

o Secundino reclamava em não poder apreciar.

A mulher do Silveira não enjeitava partido, muito

ancha e pimpona.

Quando dançava, via-se-lhe a sai tremer sobre os

quadris, ao ritmo das violas, que acompanhava às

vezes na boca; pcht, pcht, pcht...

Os cantadores largavam a goela no mundo,

impregnando no verso a volúpia do baião:

Todo ranço quer ser rico,

Todo mulato é pimpão,

Todo cabra é feiticeiro,

Todo caboclo é ladrão.

Viva seá Dona Guidinha,

Senhora deste sertão.

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Prolongavam muito determinadas sílabas no

misto de canto e de aboiado, principalmente ao

final do último verso. (...) (pp. 56-57)

Segundo Tinhorão17,18, o romancista, na fala da

personagem Silveira, registra a resistência do homem sertanejo à

dança de origem negro-escrava e crioula frente a sua cantoria de

viola:

“-Neste fordunço, a cantoria se perde quase toda!

- fez-lhe ver o Silveira. Eu não gostei nunca de

cantá im samba po mó disso mesmo. No pinho,

outro galo me cantava, eu decidia cá a meu gosto.

Mas também, a bem dize, só aprecio hoje im dia

baião de ponta de unha, bem explicado na regra,

como eu cá sei. Home! Essa fonção de samba só

mesmo pra quem qué se mete na vadiação... (p.

57)

Em seu romance, Oliveira Paiva também faz referência às

danças de salão, dirigidas aos senhores de terras locais e à

pequena classe média que habitava na vila:

“Bailes e mais bailes. Criara-se um clube, à

imitação do da Capital, Justo contentamento para

Lalinha. Só a sanção social da dança poderia

entregá-la de seu ao braço do cavalariano tão

ebriamente arrochado pela tirana do Poço da

Moita. (...)”.

O clube estava em antigo prédio construído no

século passado, pelo referido Antônio Manuel (...)

Um paraíso para Lalinha aquele palácio que o

Secundino, se não fora o momentâneo acelero de

18 TINHORÃO, José Ramos. A Música Popular no Romance Brasileiro. Vol I,

pp. 231-232.

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sensualidades, incluiria no número dos pardieiros.

(p. 66)

As procissões, as novenas marcaram época. Eram sempre

motivo para o prolongamento e os desdobramentos de outros

festejos. Nas páginas 108 e 109, o narrador descreve a novena da

Senhora Sant’Ana com todos os seus sincretismos paralelos, sem

deixar de frisar:

O Vigário não gostava lá consigo de semelhantes

solenidades, que faziam concorrência ao seu sortimento. O

Miguelzinho sabia disso, mas por um lado a devoção aproveitava,

e quando o seu pai estabelecera os terços do Vavaú, fora porque

já via nisso um meio indireto de lucro e de fazer aquele ponto

merecedor de vir com o tempo a ser até uma povoação.

Antigamente havia lá um capelão pago pela

melhor gente; mas o Miguel não esteve pelos

autos, porque os contribuintes começaram a

encostar-se. Assim mesmo, na véspera e dia da

festa, sempre mandava buscar o Vigário, porque

nos matos não há chamariz para o povinho como

um ministro da igreja. (p. 110)

Vamos à novena e aos festejos:

Era agora pelas novenas da Senhora Sant’Ana,

que dá o seu nome ao mês de julho. Na véspera da

primeira noite havia o levantamento da andeira,

no pequeno arraial do Vavaú, a uma légua e três

quartos do Poço, à beira da estrada que vem do

Aracati. (...)

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Concorria o povo de muito espaço em derredor

aos terços de Sant’Ana porque aquilo era mesmo

um bom divertimento e devoção. Vendiam

garapa, rapadura, fumo, sodas, aguardente barata,

bolo de mandioca e de milho, pé de moleque,

tapiocas, beijus. O oratório era um quarto isolado,

coberto de palha, sem ladrilho, com frente para a

estrada no sítio do Miguelzinho, para cuja vivenda

Margarida tomada quando lá ia. (...)

Tocava o sininho, dependurado num esguio

trapézio de estacas, debaixo de um cajueiro. Dos

casebres, das veredas e de um e outro lado da

estrada convergiam os ranchos de povo. A

Sant’Ana do Vavaú gozava reputação de

milagrosa, e por qualquer coisinha estavam eles

pegados com seu santo patrocínio.

Havia um ou dois sambas todas as noites, e no

repique da entrada e do sinal soltava uns três

foguetes, ao toque de rabeca e viola, que

formavam a orquestra. Tiros de roqueiras de dia e

de noite. Margarida babava-se daquilo, e tinha

realmente fé na Santa! (p. 109)

Os terços oferecidos a Nossa Senhora durante o mês de

maio (e que ainda hoje se realizam) são também registrados por

Oliveira Paiva:

Riscou no Poço da Moita no dia do samba, já com

escuro, a fogueira começando a arder no terreiro

do Silveira, cuja palhoça, com uns lampiões na

frente, apresentava uns ares de novena.

Efetivamente havia terço antes do samba.

Guida assistiu à reza, o Secundino ao seu lado, e

ficou para apreciar a função. De joelhos,

debruçado sobre um mocho, em olhares e

momices, o sobrinho caçoava para ela

discretamente daqueles pés de poeira, a fazerem

as suas devoções num cantoria interminável, com

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latinórios de ladainhas e oremus e um português

estropiado, que ele achava burlesco.

O terço foi oferecido a Nossa Senhora, em honra

de santo mês de Maria, na intenção de Sea Dona

Guidinha... (...) (p. 55)

A tão conhecida Festa de São João não é esquecida pelo

narrador e é assim retratada:

“A Guida, porém, foi passar por lá o São João.

Não voltou senão a 26 do mês. Ai! Que aquilo era

fina!

Sua casa na vila era situada ao desembocar na rua

Grande, com quatro portas, na frente um frondoso

pé de tamarindo, em uma espécie de praça. Fez-se

a fogueira de grossos troncos de pau zarolho, com

o mamoeiro no vértice da pira, bem no pátio, e

para lá se descia por uns degraus de alvenaria

acostados à calçada. Às seis horas e tanto

acendeu-se a fogueira.

Na mesma rua, nas outras ruas se avistam outras

fogueiras. Noite já escura, o lugarejo oferecia um

espetáculo ardente, com moças, meninos e

rapazes a brincarem de pistolas, busca-pés,

tranques, e quanto fogo, ao clarão das labaredas.

(...)

À noite, a fogueira, milho assado na palha, café,

bolos, jogos de prenda, violão e modinhas. (pp.

100-101)

- CRENDICE POPULAR

Na página 29, quando Secundino vai tomar banho no rio,

Carolina grita para ele: “- Olhe! Non se esqueça de fazer o Pelo

sinal... Antes de se meter n’água! Vosmicês quando ficam

homens não se importam mais com rezar!” Acredita ela que

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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aquele gesto pode defender o homem de qualquer coisa ruim.

Costume disseminado em todo o Brasil e que ainda persiste,

principalmente, nas famílias católicas.

Mais adiante na página 99, narrando a visagem que o

Major viu, o próprio narrador se pergunta: “Quem é que não crê

em almas do outro mundo?” (p. 99).

Aninha Balaio, “véia”, alegre, além de “boa vendeira e

conhecidíssima rancheira” (p. 68), entendia também de feitiçaria.

Assim, o Major encontrando-se meio cabano” (p. 117), procura-

a:

- Terão lê botado feitiço? Oi lá! Non vai caí

nalgua. Deixe-se de anda pandoiando...

- Feitiço só pega quando Deus é servido, Aninha.

Faça-me lá uma xícara de café, ande.

- Agora isso é assim mesmo. O cão também tem

os seus poderes, para castigo dos pobres

pecadores. O Major não conheceu a Chicorra?

Aquela que esteve com o Capitão Chiquinho?

Apois um dia ela entifou em querer que o

Manezinho da Minervina fosse aquele dela, mas o

minino só fazia nega o estribo, que a cara mesma

era munto da enjoada. Ela fez quanta urucubaca

havia neste mundo! Um dia pegou nus ossos de

minino pagão, que de nada serviram, e

desesperou-se e queimou... mas o caso que queria

dizer era este: Que a cabra um dia fez café de sapo

torrado para o minino, mais porém o minino não

foi quem bebeu. Quem bebeu foram as amigas

dela, a Anastácia e a Joana Boneca...

- E não ficara doentes?

- Não ficárum, não, porque não era pra elas.

O Major sorriu. Que ela não lhe fosse dar também

café de sapo torrado... (p. 117)”

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Além da crença “em quebranto”, em “trabalho feito”,

acreditava-se também os prenúncios dados pela própria natureza,

assim quando Lalinha escuta o canto de acauã, “tapou os ouvidos

e correu às gargalhadas dos circunstantes para esconder-se no

interior da vivenda. (...) Lalinha sentia com aquilo um arrepio

íntimo, um vexame, uma gastura como ao conhecido Jesus! Jesus!

que é costume lamuriar ao ouvido dos moribundos” (p. 52).

Conhecida no sertão nordestino como ave de mau agouro, diz-se

que seu canto é prenúncio de desgraça.

Mais além dessas crendices é o povo sertanejo cheio de fé.

O nome de Deus é sempre invocado, até nas menores ações, logo

expressões como “louvado seja Deus”, “com Deus amanhecesse”,

“pela graça de Deus”, “com Deus adiante”, “Deus lhe perdoe!”,

“Vamo-nos embora com Deus e a Virge Maria”, “Graças ao

Senhor Santo!”, “com Deus amanhecesse”, estão constantemente

nas falas das personagens. A ida à missa, aos domingos, é

sagrada: (“Era domingo aquele dia 26. Quinquim, ao quebrar das

barras, montara a cavalo para ir à vila, a ouvir a sua missa”. (p.

21); (“No domingo o Quim não foi à missa, mesmo porque no

sábado seguinte...” (p. 35); “Em geral o cristão sertanejo, o que

vai ver aos domingos e dias santos é a missa, não quer saber de

mais nada...” (p. 89)). Tal missa nos é ricamente descrita pelo

narrador:

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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O corpo da igreja estava cheio. A missa ainda

custou. Os homens esperavam na fresca , do lado

de fora; alguns, recrutados pelo sacristão, o

Mariano Bonfim, entraram para tomar opa.

No coro, a interminável afinação dos instrumentos

e alguns prelúdios para prova. Acesas todas as

luzes, como gado à rama acudiram os homens, e

tudo ficou tomado. Veio a irmandade com os

brandões, um menino com o missal, um com

turíbulo e naveta, e o padre, de casula vistosa de

damasco branco.

A irmandade enchia a capela-mor. Tirado o

barrete, colocando o cálice entrou a missa.

Ajoelhou tudo. Guida botou a cabeça no lenço de

labirinto, dobrado em triangulo, e entrou a desfiar

as continhas de ouro de seu rosário.

Ao evangelho, subiu ao púlpito um padre ainda

novo que viera para coadjutor da freguesia, e

contou muitas proezas de Santo Antônio. Os do

adro e da capela-mor voltaram costas ao altar,

para ver e ouvir. Lá estavam a cara gorda e lisa de

Quim, melhor para abade, a caraça queimada e

barbuda do Miguelzinho do Mazapão, o rosto

pálido e macambúzio do Tomás do Timbó... (...)

Foi longa a missa e acabou com muito sino e

foguete, indo os infiéis uns para suas casas,

cansados e com sede, outros para a feira, que era

grande naquele dia por mó do adjunto de povo.

(pp.71-72)

A devoção aos santos não é esquecida:

Gostava muito da igreja. Rezar diante dos santos,

daqueles mantos dourados, daquelas fisionomias

luzentes sob os resplendores em cauda de pavão,

não distraía tanto o pensamento, os olhos da alma

pelos da carne; ao passo que a oração, sem ter-se

a vista nas Imagens, puxava muito pela mente, o

sentido estando sempre a esvoaçar para as coisas

mundanas.

Como o vigário lhe queria bem! (p. 89)

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

88

“Deus a não castigaria? E por que Nosso Senhor

não mudava os corações? E punha-se a rezar. Era

mui devota dos seus santos de pau. (p. 97)”

Tal fé, às vezes, apresenta-se-nos um pouco cômoda,

indicando um certo conformismo, como podemos perceber em

certas passagens:

E, dando corda ao pessimismo conformado do

matuto cearense escaramentado, ele,

pernambucano, sentia-se confuso pisando em

aquelas regiões sertanejas, que pareciam palpitar

de um sentimento e de uma alma.

O matuto respondia-lhe que, ele visse, tudo ainda

estava uma lástima. Estava vendo naquela baixa

aquele tijolo preto? Pois era uma lagoa que 25 não

secou.

- Mas podia ter sido, daí, aterrada a pouco e pouco,

no correr do tempo, objetava o outro.

- Qual, meu branco honrado! Quando Deus Nosso

Sinhô não qué... Isso é como a morte, que sempre

tem uma desculpa pra rouba um pobre pai de

famia. (p.25)

...Se fossem os filhos grandes, ele teria navegado

para o Aracati ou para a capital para aventurar a

vida em outras paragens. Ao menos ia correr

terra... Mas Deus Nosso Senhor permitiu –

concluía – que a do Senhor Quimquim Damião; e

ficaram todos ali de morada. (p.29) (grifos nossos)

Muitas dessas práticas populares, que Oliveira Paiva

registrou no sertão cearense, ainda existem, conduzidas pela

oralidade, e usadas com a mesma crença.

- INDUMENTÁRIA

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

89

Se desejarmos realizar um levantamento do vestuário da

época, no sertão nordestino, encontraremos na obra um subsídio

importante. Para começarmos, deparáramo-nos, logo na página

18, com o tipo do retirante...

Entre os retirantes passou um da Serra do Martins,

Rio Grande do Norte, com a mulher, seis filhos e

dois cunhados, cada um deste com quatro filhos e

uma mulher. Tipo acabralhado, alto, corpulento,

de topete caído sobre a testa como crista de peru.

Já vinha muito roto o seu chapéu de couro. A

camisa e a ceroula já não tinham mais cor.

Ao cair da tarde, arranchado ele com a sua gente

em uma casa abandonada, ao pé do alto, perto da

trempe das pedras onde fervia o feijão com arroz,

recortava de uns tampos de couro cru umas

palmilhas para as alpercatas; pois, coitado, as suas

estavam roídas e sem correias. A apregata, aos

sertanejos, lhes pé tão indispensável como o

cachimbo e a faca no quarto. (Pág.18)

E do fazendeiro:

“De feito, aproximados, reconheceu um homem

gordo, com um chapéu de manilha, vestindo brim

pardo, botas vermelhas, cavalgando um bom

cavalo de sela cardão rodado; e, em seguida, um

pajem, mulato novo, ainda moleque, de roupa de

couro e amplo matulão na garupa”.

Os cavaleiros subiram o alto, foram apear na porta

da fazenda. (Pág. 18).

Secundino ao desfazer as malas apresenta-nos suas

vestimentas de homem da cidade:

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

90

“Precisou abrir uma das malas para mudar os

chinelos, porque os que ali havia, de trança

portuguesa, eram quentes e também para meter-se

no seu paletó e calça de brim, mudar camisa etc.

arredou a mala preta e de pregaria para o meio da

casa, meteu a chave e abriu. Não encontrava mais

camisa limpa. Era preciso ir à outra mala. Feito o

mesmo, foi remexendo. Ainda não havia tocado

naquela. Estava tido direitinho como lhe saíra de

casa, o espaço aproveitado com usura, a roupa

leve por cima, a pesada embaixo, as meias pra um

canto, as gravatas, os botões, os alfinetes, os

frasquinhos de cheiro, de amoníaco, os

remediozinhos previdentes.” (Pág. 26)

Nas personagens de Guida e de Lalinha encontramos as

personagens da classe enriquecida assim vestidas e descritas:

“Guida almoçou por comprazer, para não afrontar.

Vestiu-se com vagar, e pichosamente, com o

auxílio de duas escravas e de uma vizinha. E olha

lá o balão por aqueles mundos, cintura de formiga,

vestidão azul vivo, decote, pafos, babados, oirama

ao pescoço, ao peito, aos pulsos, nas orelhas, e na

tartaruga dos pentes, e mais rubis e diamantes. No

cabelo, um coque volumoso, e cachos bilaterais

adiante, e a risca ao meio”. (Pág. 71)

“Despreocupada, na sua perene abstração de

amante visionária, a Lalinha ergueu-se da rede,

meio vestida na camisa de talho de rendas, que era

só em que parecia luxar, como para festejar em si

mesma todos os imensos e imateriais desejos de

todo aquele corpozinho. Enfiou a meia do pé

direito, e ao pegar na outra, correu coma mão

acudindo no seio à mordidela de uma pulga, que

se foi, porque nisso de dentadas a gente não deve

ir só por coceira, mas de ponto feito logo ao bicho

que ferrou.

Calçou a meia do pé esquerdo e apertou o atilho,

acima do joelho, naquela delicada coluna de

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

91

carne, que lhe sustentava o corpo, tabernáculo

onde Amor acendia lâmpada sacramental a um

coração. Poá ao pescoço um terço de contas, que

pendurava sobre um quadro de Nossa Senhora,

quando ia deitar-se.” (Pág. 104)

Estas senhoras saíam a passeio ou à missa e quando

avistadas pelos homens, estes “lhes tiravam o chapéu, fazendo

mesura de cabeça” (p.71).

Mostrando a simplicidade das pessoas dentro de casa,

sobretudo, dos homens, o romancista dá-nos um retrato meio

jocoso do Major Quim, já que o clima obrigava às pessoas,

mesmo às de posses, a vestirem pouca roupa no interior da

resistência. Assim, enquanto Guida jogava baralho com

Secundino e dois fazendeiros no alpendre de sua fazenda, o Major

Quim surgia no cenário assim trajado:

“De quando vez em, como uma lufada, vinha por

ali uma gargalhada coletiva dos que cercavam ao

Quim, que estava sentado no batente, à

mangalaça, com seus chinelões de couro de

maracujá, seu camisolão de chita encarnada e

amarela, amostrando o peitaço que parecia uma

chã de rês descansada. Guida voltava então a

cabeça para a troça, e ao tornar punha um olhar na

esbelteza do parceiro, no seu todo bem

espanadinho de gato de casa de boa gente, que

sabe lamber-se, ou de ave solta, que se cata à sesta

e não tem sujo de gaiola.” (Pág. 36)

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Capítulo 1: O Regionalismo em Dona Guidinha do Poço

92

Ou mesmo de Secundino, que se sentindo já um

fazendeiro, assim se apresenta vestido quando Guida vai visitá-

lo:

“Passou na Goiabeira, mandou o pajem gritar pelo

Secundino, que estava lá para dentro:

- Ô de casa!

- Ô de fora! – respondia o fazendeiro, que pouco

depois aparecia em ceroulas e tamancos. Vendo,

porém, uma senhora, recuou para voltar de calças

de rim e paletó de alpaca”. (p.87). (grifos nossos)

Domingos Tobias, proprietário de uma “venda”

(mercearia), quando visitado pelo juiz, é assim descrito:

“A casa deste, algo afastada do caminho, tinha por

pátio a esplanada do alto, olhando para o Nascente

com seus currais e cercados. Estava ele metido na

sua toca, debruçado sobre a metade da porta,

espiando de lá os transeuntes”.

O Sabino, apeando no cupiá:

- Veja uma caninha, Seu Domingos, que nós

viemos secos.

O ancião baixo, com uma cara de guariba, puxou

a taramela e pareceu com os seus tamancos,

ceroula e a camisa de algodãozinho”. (Pág. 135)

O tamanco, que veio com os portugueses, facilitava a

respiração dos pés, evitando acúmulo de suor e proliferação de

parasitas, como frieiras e pé de atleta. Além disso, era barato – o

seu soado de madeira representava matéria prima abundante e de

pouco custo.

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

93

Em Sobrados e Mucambos18,19, Gilberto Freyre chama a

atenção para o uso generalizado para o tamanco, e diz que “O

comércio de tamancos chegou, no meado do século XIX, a ser um

dos mais importantes nas cidades brasileiras”.

E ainda mais, “é tradição oral, pelo menos – que até os

irmãos do S.S. Sacramento desfilavam de tamancos nas

procissões”. Daí a sem-cerimônia com que estes homens

aparecem de tamancos, diante de visitas. Era um hábito arraigado,

com raízes profundas dos costumes populares da época, fato que

hoje pareceria ridículo.

19 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 1951.

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CAPÍTULO 2

PROCEDIMENTOS

NARRATIVOS: O PROCESSO

NARRATIVO EM DONA

GUIDINHA DO POÇO

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

97

2.1. O DOMÍNIO DO NARRADOR

Segundo Vicente de Ataíde, o grande drama que vive o

artista é o de exprimir aquilo que percebem direta ou

indiretamente. É uma luta pela expressão. Devido à ambiguidade

natural da linguagem e a própria natureza do artista, a expressão

da realidade apreendida em uma dificuldade20. Assim, em um

romance é a linguagem que forma o substrato sobre o qual

existirão os constituintes ficcionais.

Logo, narrar não é reviver ou recordar, pois isso se faz no

devaneio solitário. Narrar é transformar, é escolher uma ordem

particular, destacar alguns detalhes, deixar outros na sombra. E

contar implica a imperiosa necessidade de um interlocutor,

necessidade palpável na situação corriqueira de um narrador oral.

Na escrita, a necessidade pode ser menos perceptiva, mas nem por

isso menos impositiva. Em função do olhar atento do ouvinte,

guiamos a história.

É dessa maneira que Oliveira Paiva vincula, em Dona

Guidinha do Poço, o prazer do contar à conversa, ao prazer da

presença de um interlocutor, ao olhar de um cúmplice para a

20 ATAÍDE, Vicente de Paula. A Narrativa de Ficção. 3ed.rev.São Paulo:

McGraw-hill do Brasil, 1974. p. 75.

pela oralidade, conferindo-lhe um caráter de originalidade no panorama do

romance brasileiro, principalmente, pelas circunstâncias de época em que foi

escrito.

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

98

narração. É na sequência da leitura que se vai desmontado o

romance, sem que o narrador se preocupe em explicitar a relação

entre as personagens, visto que esta se cria a partir do mundo

interior dessas personagens.

A introdução deve-se à possibilidade de se ler

explicitamente a relação entre o que se conta e o como se conta,

num livro de formas discursivas diversas: fala regional, escrita

fonética, cantigas e motes, cânticos e orações, descrições de

paisagens, frequência marcante de diálogos, estruturação de

romance de aventuras, técnicas de folhetim (como a repetição),

redação e reprodução de um inventário, expressões jurídicas,

histórias marcadas

Assim, nossa leitura centrar-se-á, principalmente, no

domínio do narrador sobre o processo narrativo e os recursos de

que se vale para tal empreendimento: o dar voz ao outro, através

da multifacetação de narradores e narrativas, onde a verdade vai

se deslocando a todo instante, visto que com o desenrolar do

enredo, não há predomínio de primeira pessoa, nem predomínio

de uma objetividade impessoal e a História, na sua especificidade,

se perde na história, porque:

A narradora, como o geral dos roceiros, falava

sempre muito alto, num entono impossível de

representar com os sinais da nossa escrita. (DGP

p.45)

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

99

Seja dito que, com um certo gáudio para o Quim,

a Guida arriara bandeira, concordando que o

sobrinho dele devia realmente casar com a

Lalinha, a quem agora incensava, às ventas do

Major, gabando-a e dizendo que era uma moça de

cheirar e agradar, que nem parecia gente de praça

(...) (DGP p.79)

Sim, senhor, passou-se, passou-se. Princípios de

junho.

Deu uma garoa ali pelas nove horas da manhã e as

vacas, muitos açodadas, ao meio dia, sobem o

pátio a chamar pelos bezerros, que já era tempo de

verem voltar com suas crias. (DGP p.86) (grifos

nossos)

A observação de mais alguns aspectos é a melhor maneira

para confirma a originalidade do livro. Romance que traz uma

narrativa sedutora, resultante de jogos e trocas entre a História e

o fato, a realidade e o inventado, o leitor e o autor (a nossa escrita

p.45), o crime e o castigo, o homem e a mulher, o desejo e a

proibição, a fala e a escrita, “o poço” e “a moita”. Organizamos

nossa leitura neste jogo de manhas e malícias que não dão nem

em uma imagem idealizada romanticamente nem retratada

realisticamente. As coisas em Dona Guidinha do Poço acontecem

“por trás da moita...”

“beijava a mão da tia Dona Guidinha, figurando-

se consigo mesmo um cavaleiro de novelas,

arrastando esporas e grandes botas, recebendo a

suprema graça de cortejar uma princesa de

roqueiros castelos. Mas, costas para o solar do

titio, enveredado no caminho da Goiabeirinha,

estourava num riso brejeiro e perverso”. (DGP

p.78)

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

100

“Nesse dia, que já era da quarta semana de abriu,

o Quim recebeu cartas dizendo que o Secundino

fora absolvido! A mulher sentiu caírem os véus

negros que lhe enlutavam os nichos da alma. O

sobrinho estaria pelo Poço da Moita por todo o

mês de maio. (DGP p.85) 221

A tentativa de descobrir como a história é contada, como

os fatos estão dispostos, os artifícios da linguagem, a inclusão das

falas sertanejas, os textos religiosos, os jargões políticos, a

presença feminina, a grande quantidade de aforismos, é o grande

passo para ler o romance como um jogo de marcas que se dá na

não existência explícita de um narrador com autoridade clara

sobre o que é contado:

Estando Aninha Quenquém lavando roupa em um

poço do rio salgado – é a história - e tendo

conduzido consigo uma filha de treze anos, de

nome Berta, deu-se o caso pela seguinte forma

(DGP p.102)

Mais etonce, continuou o outro no fio da

narração, o pobe ainda chegou a corrê, toda

ensanguentado, ca facada no peito, gritando que

Seu Jonzinho lhe acudisse... Mais, porém, pouco

aturou... (p.114) (grifos nossos)

- E que respondeu a esse padre, Seu Conrado?

21 . Notem-se os itálicos do autor, neles percebe-se a malícia, a informação não

dita, mas conhecida pelo narrador e pelo leitor.

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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- Nada, vi que era um falso profeta. Disfarcei, com

pena dele, porque fora meu amigo. Lá vai agora o

fio da meada: (p.102) (grifos do autor)

José Maurício Gomes de Almeida, referindo-se à linguagem

utilizada por Oliveira Paiva no referido romance, afirma:

A característica estilística mais marcante do

tecido narrativo de Dona Guidinha do Poço está

na natureza totalmente despojada, não ornamental

de sua linguagem, que antecipa muitas das

conquistas expressivas da ficção nordestinas 30.

(...)

Nele (Oliveira Paiva) a construção sóbria, alheia

ao melodramático e ao sentimental, é

admiravelmente sublinhada pela linguagem

contida, substantiva, que consegue alta eficácia

expressional com estrema economia de meios. O

imprevisto das imagens, as analogias

surpreendentes, a forma elíptica que toma por

vezes a sintaxe provocam efeito de rara

modernidade. 3,22

2.2. O PROCESSO NARRATIVO EM DONA GUIDINHA DO POÇO

A questão do narrador tem sido uma das preocupações

maiores dos teóricos da literatura nestes últimos anos. Nesse

sentido, vem-se construindo toda uma teoria que tem por objetivo

a análise da narrativa a partir da figura do narrador como

elemento central da constituição do texto narrativo.

22 ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A Tradição Regionalista no Romance

Brasileiro, 1999, p. 166.

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

102

Levando-se em consideração os vários estudos realizados,

o narrador passa a ser visto como o mediador entre a criação do

texto e o texto final, como elemento que determina a existência

de um texto como narrativa, o que significa afirmar que ele é visto

como organizador da obra. Nessa medida, será a partir dele que

se poderá proceder a uma análise completa dos elementos que

constituem a estrutura de qualquer texto narrativo.

Ao lado desse reconhecimento da importância do estudo

do narrador para a compreensão da narrativa, há um outro que

coloca o narrador como ente ficcional e, portanto, integrando a

própria estrutura da narrativa, determinando a existência de mais

uma instância a ser estudada – a do narrador.

Vários são os trabalhos realizados a respeito do narrador.

Vão eles desde o estudo precursor de Jean Pouillon aos estudos

de Todorov, Kayser, Wayne Booth, Kate Hamburguer e Rousset,

que contribuem de forma expressiva para a elucidação da questão

do narrador. Entre eles o que se pode perceber, salvo algumas

divergências de posicionamento, é uma complementação

gradativa que se estabelece do mais antigo ao mais recente dos

trabalhos. Assim, neste estudo, serão utilizados alguns conceitos

veiculados pelos autores referidos, à medida que isto se fizer

necessário para a compreensão e o desenvolvimento do processo

narrativo desenvolvido por Oliveira Paiva em Dona Guidinha do

Poço.

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2.2.1. UM NARRADOR EM VOZ ALTA

Não é difícil perceber, logo à entrada do romance Dona

Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva, um locutor que, parecendo

falar em voz alta, põe destaque, no ao ato silencioso de ler, mas

ao de ouvir4,23:

De primeiro havia na ribeira do Carimataú,

afluente do Jaguaribe, uma fazenda chamada Poço

da Moita. Situada no século passado pelo

português Reginaldo Venceslau de Oliveira,

passou a filhos e neto. Se não fora o desgraçado

acontecimento que serve de assunto principal

desta narrativa ainda hoje estaria de pé com ferro

e sinal. (DGP 1981:11)

De primeiro havia... Instiga-nos a imaginar e,

consequentemente, requer um salto no tempo e no espaço, quer

pela “simples reprodução de sensações na ausência dos objetos”,

quer pelas “criações da nossa fantasia”24. Aí já vai primeira regra

literária ditada por Oliveira Paiva: o ato de criar, tanto no autor

quanto no receptor, advém da carência – necessária a imaginação

23 A esse respeito Rolando Morel Pinto afirma: “Este tom de narrativa consciente

de quem vai contar uma história mostra segurança de sua criação artística, porque

as crônicas que ele mandava do interior eram crônicas de observador e aqui, não,

aqui ele não é observador, é um transfigurador, um artista, um homem que está

apanhando aquela realidade e contando. Ele que contar uma história”. (PINTO,

1975 p. 123)

24 BERNIS, Jeanne. A Imaginação. RJ: Jorge Zahar Editor, 1987, p. 9.

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

104

– ou da impossibilidade de se estar em contato físico com pessoa

e objetos que, uma vez presentes, saciaram a vontade e

inviabilizariam, portanto, o estímulo à criação.

Aliem-se a esse ato de suplência a voz alta ou a escrita

compensatória. Os contadores de história, os escritores, todo os

que lidam com a linguagem têm, mais ou menos, a consciência de

que a palavra é – no caso da literatura, sobretudo – um ser

substituto do objeto a que se reporta (assim um convite à

imaginação).

Mas, justamente por substituir ou fazer às vezes de ela – a

palavra -, e agora especialmente a palavra escrita, que adia o

momento da recepção na troca linguística, não só retarda os

efeitos da comunicação, como, sobretudo apaga os vestígios de

vida e calor que a forma mais direta de comunicar, a forma oral,

exige.

Verificada, na e pela escrita, a perda da naturalidade que

o ato de comunicação requer, o efeito seria outro, se fingisse que

o contato com o interlocutor se dá pelo diálogo oral, direto. Daí

Oliveira Paiva busca o artifício da voz viva, seja pela

coloquialidade:

As negras receberam ordem para meter no serviço

a gente do tal compadre Silveira (p.20)

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Seja dito de passagem, todavia, que o Secundino

ia já desgostando do seu negócio, quando o Quim

o convenceu a passar-se para fazendeiro. (p.73)

Daí vai a Aninha ao doutor: Que o Secundino ia

mandar citá-lo, e que haverá de lhe tomar o cavalo

lazão. (p.75)

Sabia lá! Entrava-lhe por um ouvido, saía-lhe

pelo outro (p.118)

O Antônio ia-se chegando para o pé do amo,

como quem não quer e querendo. (p.120) (grifo

nosso.)

Seja pela explicitação do recurso da auditividade:

Ouvia-se o grito estrídulo dos capotes, para detrás

da vivenda, áspero como lixa, selvagem como o

maracá. (p.32)

Ouvia-se o poeta Barbado cantar já um tanto

longe...(p.95)

Já mal se ouvia a voz do Barbado. (p.95) (grifos

nossos)

Seja pelo diálogo com o leitor:

Ajuntem a isto as retiradas, que procedem do

sertão do Canindé, do Quixadá, e de tantos outros

e vejam se é possível em tão pouca terra, com tão

pouca rama e pouca água, ter o bastante para uma

boca. (p.16)

Mas, que fossem pelo amor de Deus! Bem sabia

ela que dois dias depois o retirante se tornava a

agregado. E agregado para quê? (p.17)

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Entretanto, por milagre não sei de quem,

Margarida estava uma excelente esposa, como

não o fora ainda. (p.51)

A última seca e a penúltima, com intervalo de uns

três lustros, haviam deixado no lugarejo um cunho

de devastação íntima como essas moléstias de que

se fica ou morto ou aleijado. Imagine-se que

naquele povoado, tão rural e tão bucólico (...),

havia trechos de rua onde duas, três, quatro, cinco

casas seguidas, tinham desabado sobre o silêncio

misterioso de longos anos de ausência dos seus

donos... (p.74)

Um dia perguntou a Seu Antônio que conluio era

aquele de baixa. Seu Antônio que respondeu?

Respondeu assim (...) (p.118)

Seja pelo recurso onomatopaico dentro do texto:

Guida caminhou pela vereda, de lenço e rosário na

mão. E a seda do seu vestido – fru, fru, fru...(p.71)

Quando dançava, via-se-lhe a sai tremer sobre os

quadris, ao ritmo das violas, que acompanhava às

vezes na boca: pcht, pcht, pcht, pcht... (p.57)

Ou seja, pelo esclarecimento do narrador ao leitor:

Amara à Margarida em demasia, creio, e o vigor

nervudo e musculento da herdeira do marinheiro

Reginaldo Venceslau era como um moirão a que

o Senhor Quinquim se deixara gostosamente

sojigar (p.18)

A apregata, aos sertanejos, lhes é tão

indispensável como o cachimbo e a faca no

quarto. (p.18)

- Você é minha parecera! – roncou o Miguelzinho,

o cabeludão, que era torto (uma ponta de pau

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

107

quase o cegara em rapaz, quando botava o cavalo

a um barbatão). (p.36)

Cobriram-na de aplausos. Ninguém melhor que o

sertanejo pobre sabe agradar a tempo e a

propósito. (p.68)

...A palavra eleições, para o povo em geral, havia

perdido o sentido da sua raiz; era como se

dissessem: barulho, salseiro, desordem. (grifos

dos autor) (p.81)

Usavam da aguilhada mais para fazer guia.

A aguilhada sabia? Aquela vara potente com um

forte espigão de meio palmo encravado na ponta,

engastada em couro, a que eles aplicam uma forte

bainha quando não em serviço... (p.90)

Era procurador do Santíssimo, e fora por Frei

Serafim escolhido para zelador da capelinha das

Almas, que estava em ruínas, como em geral todas

as coisas do outro mundo, neste vale de lágrimas.

(p.101)

Além disso, o narrador dirige-se ao leitor como quem se

dirige a um público ouvinte presente ao ato de enunciação –

situação em que não só é flagrante utilização de dêiticos:

Não seja para admirar a sequência, logo ali assim,

de dois postos militares, capitão mor e major.

(p.11)

Aqui vai o resumo de uma relação ou nota do que

se lhe achou, imperfeita e truncada como o são

geralmente os inventários, mas autêntica,

encontrada num alfarrábio do Padre Costinha,

quase ilegível: (...) (p.12)

E estão, só ali, no espaço de três léguas, cincos

fazendas. Ajuntem a isto as retiradas, que

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

108

procedem do sertão de Canindé, do Quixadá, e de

tantos outros... (p.16)

Do Poço da Moita passava-se, logo ali, o

Banabuiú, enfiava-se pela catinga do Jiqui e,

espaço de hora e tanto, se ia bater mesmo na

fazenda Goiabeirinha... E olha lá! Mandou

reforçar o açude, consertar os cercados, bater o

pátio e o vaquejador. (p.77)

O riacho estava logo ali. (p.96)

Como também a grande quantidade de aforismos. São

provérbios, expressões populares, máximas ditas, escritas,

descritas, citadas, incorporadas e até explicadas na narrativa, ora

no discurso direto dos personagens:

Silveira para Secundino:

“cuma cachorro sem dono”. (p.28)

Fazendeiro Miguelzinho para Guida:

“- Largue o cabresto, que a besta é alheia”. (p.37)

Quim para Secundino:

“- Não interrompa, vá de fio a pavio. (p.42)”.

Guidinha para o vaqueiro Antônio:

“- Cada macaco em seu galho” (p.65)

Guida para o padre:

“- quem não deve não teme”. (p.123)

Cangaceiro para Guida:

“- fica o dito pelo não dito”. (p. 130)

Seu Antônio para Secundino:

“Se amarra o burro onde o dono manda”. (p.78)

Promotor.

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

109

“- mas voltando à vaca fria...” (p.101)

“- lá vai agora o fio da meada”. (p.102)

Ora no discurso indireto, incorporado na maioria das

vezes ao pensamento dos personagens:

Jagunço Silveira

“quem nasceu pra derréis não chega a vintém.”

(p.27)

“a filharia é a riqueza do pobre”. (p.28)

Seu Antônio:

“onde o carneiro maia e andorinha dorme” (p.20)

“Só sabia assim, que quem bem me avisa meu

amigo é” (p.118)

Padre:

“nem com tanta sede ao pote”. (p.102)

Secundino:

“quem ama o feio, bonito lhe parece” (p.79)

Guida:

“a ruim fama corre mais que o pensamento”.

(p.124)

Ou Guida citando, tendo em vista o grifo e o destaque no corpo

do livro:

“O besouro também ronca

vai se ver não é ninguém” (p.127)”.

O cantador:

“Seguro morreu de velho.

Desconfiado ainda é vivo”. (p.95)

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

110

Ainda o diálogo-desafio e premonitório entre e tio e sobrinho

(Joaquim e Secundino), no prazer lúdico “adivinha”:

“- O que quer dizer chuva com sol?”.

- Casamento de raposa com rouxinol p.40).”

(E se houvesse a inversão “sol com chuva”? A (in)

esperada resposta seria “casamento de viúva? ”)

Mas o exemplo mais importante e síntese da função do

provérbio na narrativa é a história “da moça dos cinco muitos”,

contada dentro do enredo, por Dona Carolina (Dona Calu, esposa

de Seu Antônio) a Guidinha no início do romance, para explicar

por que se diz: “Antes com pena sentir que sem remédio chorar”

(p.46).

Fica evidente que a função do provérbio é moralizante. E

da estrutura do romance é ilustrador das soluções, das

justificativas, dos saber, das respostas prontas, das verdades

eternas, mas muito mais como “verdades” que sabiamente

convencem.

Sendo este texto o dos provérbios, que falam por si, Dona

Guidinha do Poço é ainda mais: não só fala, mas lê. Todos no

espaço do livro leem. Vejamos:

“O cangaceiro sorrindo, recebeu a arma, que

desembainhou, mirou como quem lê, admirou a

deu a palavra”. (p.129)

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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“O rapaz nem se lembrava de abrir os livros de

histórias e novelas que traziam para matar o

tempo”. (p.35)

“Ah! Então aquilo é o canto da acauã? Tenho lido,

tenho lido”. (p.52)

“Leia com seus olhos, Quinquim”. (p.43)

Enquanto a fala e a leitura se dão no plano do romance, é

sintomática a presença da escrita de Guidinha sempre em

destaque gráfico. Guidinha é quem escreve, uma escrita “ambígua

e dissimulada”: “Ah! Mas aquela pronúncia!...”(p.55).

Secundino, o destinatário da maioria dos bilhetes, recados e

cartas, não conseguem ler o que está “por trás da moita”. Além da

escrita direta e explícita em relação ao receptor, Guidinha se vale

de destinatários falsos, de carta anônima e de uma oração

“incriminatória” colocado no pescoço, “como um breviário”, uma

possibilidade do “corpo fechado” no pescoço do assassino. E foi

esta escrita, “a letra” da letra do texto, que a condenou. E

“ironicamente” uma letra reconhecida pelo Juiz, figura

dissimulada e contraditória.

Disse o juiz nos autos do processo:

“- e sabes de quem é essa letrinha? Disse

o juiz de direito, dobrando o papel sujo: Há de ir

para os autos.

- De quem é então?

- Da Excelentíssima senhora Dona Mar-

garida Reginaldo de Sousa Barros! (pp.137-138)

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

112

Dona Guidinha do Poço fica assim sendo um romance que

se faz pela palavra, seja na fala ou na escrita.

2.2.2. UM NARRADOR QUE FALA PELO OUTRO

À primeira página do romance, apresenta-se um narrador

onisciente, na terceira pessoa, que introduz o relato.

À margem esquerda do impetuoso escoadouro

hibernino, a casa grande amostrava-se num alto,

de onde se enxergava grande distância em

derredor, principalmente pela seca. Durante o

inverno, a superabundância de folhagem

restringia sensivelmente o campo de visão. (p.11)

Outro motivo para explicar o alto preço com que

encareciam os barreteados títulos, outorgados

pela munificência administrativa, seria a

persistência dos costumes portugueses onde tudo

que descia del-rei era como se Deus viera. (p.111)

O caso é que ela cresceu com todos os pendores

naturais, uns por enfrear, outro por desenvolver.

Criou-se como a vitela do pasto. A avó, mulher do

primeiro Reginaldo, tão ríspida na educação dos

filhos, foi de uma notável frouxidão para com a

neta Guidinha. (DGP p.114)

Nessa introdução da história, que ocupa o primeiro

caítulo, o narrador onisciente, além de descrever os pertencentes

da família, favorecendo a visualização dos bens materiais de

Guidinha na imaginação do leitor, apresenta a personagem central

do texto: Margarida Reginaldo de Sousa Barros, contando

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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inclusive para isto com a ajuda de outros personagens. Assim, ora

é o narrador que a apresenta, ora o Rev.Visitador:

Casou Margarida, finalmente, aos 22 anos, já

morto o velho Venceslau. Naquele sertão havia

por esse tempo muita abastança, por modo que um

grande pecúlio não era lá nenhum desses engodos.

Os mancebos, que frequentavam-na sem dúvida

por causa da moça, por via de ser ela muito de

liberalidades, muito amiga de agradar, não

poupando nem mesmo as pequenas carícias que

uma donzela senhora de si pode conceder sem

prejuízo da sua física inteireza. (DGP p.15) (o

narrador)

- Feiosa, baixa, entroncada, carrancuda ao menor

enfado, disse ele, não admito que homem algum

se apaixone pela filha do Capitão-Mor, salvo se

não é aquela que eu tenho visto no Poço da Moita,

aonde cheguei a passar mais de uma semana com

as febres. Vão ver que ela usou de feitiçaria... Ora

se não é isso! Vão ver. (DGP p.15) (o Rev.

Visitador)

No entanto, no que se inicia a trama propriamente dita,

esse narrador onisciente cede a palavra às personagens que

passam a narrar em primeira pessoa. Ora é Dona Anginha quem

fala:

“- Eu quero ver é onde fala em D. Maria. Eu sei

que era ela, ora se era! Ouvi muitas vezes com

estes ouvidos a meu pai, que até assistiu ao

levantamento do pelourinho”. O papel estava

meio encardido. Os caracteres muito rabiscados,

cor de ferrugem, nas páginas seguintes

desapareciam quase. (DGP p.42)

Ora são os vaqueiros, as escravas...

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

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“- Apois eu sei. A Sá Carolina me dixe. Me dixe

munto contrafeita, hoje quando eu vinha do piero,

que o Secundino tinha sido pronunciado sempre,

que o Silveira não chegou mais im tempo de jurá

Cuma testemunha, qui agora só no júri...

- O quê! E ele é criminoso?

- Ora se é! (p.53)

“- Seá Dona Guidinha tá acabando ca loja do

moço! Dizia ele para a Carolina. Por aqui não hai

mais ninguém nu e nem com fome. Assim é qui é

vê-se uma Senhora de bênção. Deus nosso Sinhô

é de concedê tudo qu’ela deseja!

-Mais entonce eu não dizia? Meu véio, a pinta do

ôio dela non m’inganava! (p.64)

Apesar das personagens assumirem a narrativa em

primeira pessoa, o que ocorre diversas vezes, notadamente nas

duas primeiras partes do texto, seu discurso está sempre marcado

na fala dessas personagens, recurso de que se vale o narrador para

marcar sua presença ao longo de toda a narrativa. Desta forma, é

como se ele próprio assumisse o discurso das personagens,

incorporando-o a sua narração onisciente. Observemos:

“O Silveira explicou bem o caminho e o banho ao

Secundino. Não o acompanhava porque ia ter com

Seá Dona, que desna d’onte qui queria que ele

fosse pegá um jumento pó lote... A criação de

burro tava tendo munto apreço, qui burro é bicho

bom pa carga e fácio pro penso... Ele esperava vir

a ser o vaqueiro das bestas pruque o qui estava ia

largá... (p. 29)

“ A Guida fez-lhe muitos agrados como se foram

ambas as donzelas do mesmo tope; e assim

confiou-lhe a ingênua menina o sacrossanto

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mistério de que o Secundino ia pedi-la a papai.

(grifos nossos)

- E papai quer? – interrompeu a Guida, em tom de

criancice.

- Suponho que sim... (p.52)

“Ana Balaio, durante toda a semana, não teria

outro assunto senão o ato da fia do Capitão-Mor.”

(p.70) (grifo do autor)

“A coisa principiou pela conta do juiz, que já ia

engrossando talvez um pouco mais apressada do

que o natural crescimento do afeto do credor pela

filha do devedor. A Balaio fez saber ao ouvido do

moço que o doutor caloteara a quase todos na vila,

que devia a fulano de Tal tanto, e a Sicrano de Tal

tanto, que os credores faziam que não viam, diz

que pruque o home era juiz de dereito...” (p.74)

(grifo nosso)

“Naquele tempo úmido, aquoso a abafado, ao

domínio do raio, do trovão e da chuva, andava

toda estremeções, com os olhos por longe. A

Corumba ruminou que a modo que Sinhazinha

andava istudando adivinhação pelas nuves e

pelas estrelas do céu, mas mode que o esprito é

que andava por outras terras. As outras pessoas

da casa, porém, botavam para o sentimento da

morte da Dona Anginha, e com elas o Quim.

(p.84) (grifo nosso)

Com esse recurso, o narrador garante o controle da

narrativa, além de conferir-lhes maior verossimilhança, à medida

que possibilita um relato em primeira pessoa das personagens.

Podemos assim dizer que o narrador, cedendo a palavra a vários

personagens, promove uma alternância do ponto de vista

narrativo.

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

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Essa mesma variação, que ocorre no campo da

focalização, aparece também no que diz respeito ao tempo.

Assim, haverá uma alternância entre passado presente, tendo

ainda, no passado, vários níveis que se organizam de um passado

mais distante para um passado mais recente.

Os parentes se queixavam de que o Venceslau,

viúvo, criou a menina assoluta. O caso é que ela

cresceu com todos os pendores naturais, uns por

enfrear, outros por desenvolver. Criou-se como a

vitela no pasto. A avó, mulher do primeiro

Reginaldo, tão ríspida na educação dos filhos, foi

de uma notável frouxidão para com a neta

Guidinha. (p.14) – Passado distante, infância de

Guida.

“Entre os retirantes passou um da Serra do

Martins, Rio Grande do Norte, com mulher, seis

filhos e dois cunhados, cada um destes com quatro

filhos e mulher... Os cavaleiros subiram o alto,

foram apear na porta da fazenda. (p.18) – Passado

recente”.

Ao labirinto, com as mãos esquecidas sobre a

grade, ela punha-se a olhar, a olhar pela janela

para o rumo onde o namorado se sumira pela

derradeira vez. (p.77) – Presente

A Guida, depois de estar muito tempo olhando

para o sertão, diz para o marido... (p.86) –

Presente.

Como se pode observar, a mesma alternância que ocorre

ao nível da focalização se dá ao nível da problemática temporal,

o que determina um certo grau de complexidade que a estrutura

narrativa de Dona Guidinha do Poço apresenta. O mesmo

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

117

processo pode ser observado no que diz respeito ao espaço,

embora neste aspecto a variação não seja tão frequente, já que há

um espaço especialmente privilegiado – a fazenda Poço da Moita.

Voltando-se à questão do narrador propriamente dito,

pode-se dizer que a narrativa de Oliveira Paiva se apresenta

inicialmente na terceira pessoa – narrador onisciente -, narrativa

esta que é interrompida pelo discurso em primeira pessoa, sempre

marcado na fala de várias personagens. O narrador onisciente,

além de iniciar a narrativa, a conclui, procurando manter-se

afastado da mesma. Com isso, poder-se-ia dizer que a narrativa

em questão se caracteriza por ser heterodiegética (quando o

narrador está ausente da história que ele conta). No entanto, há

algumas passagens em que o narrador ele próprio se mostra em

primeira pessoa. Observa-se o exemplo:

O homem quando a desposara possuía apenas

alguns vinténs de seu. Reconhecia que era para

viver com a mulher precisava ter uma certa

habilidade, faculdade essa que lhe era, porém

inacessível. Amara a Margarida em demasia,

creio, e o vigor nervudo musculento da herdeira

do marinheiro Reginaldo Venceslau era como um

moirão a que o senhor Quinquim se deixara

gostosamente sujigar. (p.18)

O Secundino empregou em gados o dinheironho

do apuro, e, com uns cobre mais, que o Major

Quim lhe emprestou, estava fazendeiro. Da terra

não pagava renda. Chamava-se a isto um pão com

dois pedaços. E olha lá! Mandou reforçar o açude,

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consertar os cercados, bater o pátio e o

vaquejador. (p.77)

Nestes trechos, o narrador se mostra como testemunha da

história que está sendo narrada. Desta forma, a narrativa se

caracteriza como homodiegética, já que o narrador está presente

na história que ele conta, seja como personagem ou como mera

testemunha dos atos e ações narradas.

Estes exemplos evocam também a participação do

narratário, já que ele é convidado a “ver” junto com o narrador a

construção da própria narrativa.

Na verdade, está-se frente a uma narrativa mista, que

impede que se lhe impute uma classificação rigorosa, já que a

alternância do ponto de vista, acrescida dos diferentes

procedimentos e participações do narrador, determina a

construção de uma narrativa que é própria de Dona Guidinha do

Poço e não de outras narrativas. Mesmo o discurso das

personagens, embora em primeira pessoa e evidenciando um

controle do narrador, às vezes apresenta traços que parecem

escapar a este controle. Veja-se o seguinte exemplo, onde o

Professor Joaquim Ribeiro, tendo Secundino por interlocutor, se

manifesta apelando, inclusive, para o narratário:

Usavam da aguilhada mais para fazer guia.

A aguilhada, sabia? Aquela vara potente com um

forte espigão de meio palmo encravado na ponta,

engastada em couro, a que eles aplicam uma forte

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bainha quando não há em serviço... (p.90) (grifo

nosso)

Como se pode ver, o discurso do Professor apela não só

para seu interlocutor momentâneo, Secundino, mas também para

o narratário. Assim, ao mesmo tempo, em que há uma

identificação entre Secundino e o narrador, há também uma

identificação entre Secudino e o narratário. Desta forma,

Secundino é narrador, à medida que passa para o narratário a

história de que participa em parte como ouvinte e me parte como

personagem. Por outro lado, se equipara ao narratário, se visto na

relação que estabelece com o discurso do Professor Joaquim. Há,

portanto, um processo de identificação entre narrador e

personagem e entre narrador e narratário.

O que se percebe ainda através de exemplos como o já

citado é que o discurso das personagens parece também escapar

ao controle do narrador onisciente, já que consegue estabelecer

um diálogo com o narratário. Veja-se um novo exemplo onde se

reitera tal procedimento:

Os hipócritas são finos conhecedores do coração

humano, e evitam sempre o escândalo, isto é, a

evidência do mal.

Pois, minha gente, a Guida tinha lá juízo? Fazer

até o marido sair de casa ultimamente, por amor

do não sei-que-diga de um homem que parece que

só sabia era abusar das pobres das mulheres? E

sem guardar conveniências!

E assim é que foram ilhado a Guidinha, diante de

quem, aliás, ( quando tinham ocasião de vê-la),

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faziam a mesma cara alegre de antes. O Secundino

é que se tornara, na verdade, geralmente

antipatizado. (p.126)

Outra característica do discurso em primeira pessoa das

personagens é a que diz respeito ao uso constante de expressões

do tipo “eu logo vi”, “eu não disse”, “já disse”, “quero ouvir” e

“estou dizendo”. Essas expressões, notadamente “eu estou

dizendo”, aparecem nas falas das personagens. Esta característica

do discurso das personagens, além de conferir-lhe uma maior

veracidade, contribuem para diferenciá-lo do discurso do

narrador onisciente, dando-lhe maior autonomia. Observe-se o

exemplo, onde num mesmo parágrafo a expressão é utilizada mais

de uma vez:

-Secundino inchou nas apragatas, e quando eu vi

foi cada quau gritando mais improado, e por

derradeiro Majó dizê: “Puxe pur aqui, seu

cachorro!” O homem tava segurando na costa da

cedera, cum se quisesse quebra a cara do outo. O

outo non teve dúvida. Saiu cumo um raio, pulou

no cavalo, que tava no terrero e avoou no caminho

da Goiabeira. Eu cá dixe assim comigo: Arre,

diabo! Conheceu home! (p.119)

Outro elemento caracterizador do processo narrativo de

Dona Guidinha do Poço que merece ser lembrado é o que se

refere ao uso bastante expressivo do discurso direto, com a escrita

fonética de algumas falas, onde os fatos são esclarecidos ou

encaminhados:

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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Em um daqueles dias estavam uns urubus

peneirando muito para os lados do Serrote:

- Que é aquilo, Seu Antônio? - pergunto a Guida.

- Aquilo? Não é nada, inhora, não. É ua besta

morta.

- É da fazenda?

- Saberá Vosmicê que eu não sei. O Seu Silveira é

quem deve sabe...

- Pois, Seu Antônio, o senhor está dizendo que

aquela carniça é uma besta morta e não sabe o

ferro que tem, nem o pelo, nem nada?

- Eu cumade? Primita qui lhe diga que non meto a

mão na seara alheia. Quando fô gado ou criação,

ou animais de fábrica, é cumigo, mais, porém...

(pp.64-65)

Ou mesmo os diálogos sem travessão, tão cheios de

significado. Vejamos este exemplo onde Secundino, querendo

obter informações sobre Guida, “interroga” o moleque Anselmo,

morador da fazendo Poço da Moita:

Aqui o moço foi puxando um diálogo, falante que

era o cabrinha.

A Dona Guidinha tinha filho?

Que não que a Senhora non tinha fio ninhum (...)

A Senhora gostava deles?

Se gostava? Não sabia.

Era ruim para eles?

Inhor, não; era inté muito boa.

Como se chamavam eles?

Um. O mais velho, qui era zonoio, chamava-se

André Virino; o outo, o mais moço, qui fazia carro

e trabaiava de urive e de carapina, se chamava Zé

Tomais. Este bebeia...

A Senhora era boa para os escravos? (p.30)

Esses dois exemplos ilustrativos de recursos textuais

levam-nos a confirmar eu tudo é linguagem em Dona Guidinha

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

122

do Poço, um romance que merece um lugar especial na

historiografia literária do século XIX.

2.2.3. UM NARRADOR QUE SE AUSENTA

Um outro traço significativo em Dona Guidinha do Poço

é que os fatos, os acontecimentos mais importantes da trama são

relatados (depois de acontecidos) pelas personagens. O narrador

se ausenta dessa tarefa. É como se passasse a ter conhecimento

do ocorrido juntamente com o leitor. É a variação do foco

narrativo, recurso formal muito utilizado nesse romance. O

narrador transfere para as personagens a função de apresentar o

enredo. Assim quase todos os “acontecimentos” do livro são

narrados pelas personagens. Isto acontece, quando o cangaceiro

Naiú e o jagunço Silveira envolve-se em uma confusão e são

pegos pela diligência policial. Este fato é narrado pela Aninha

Balaio e complementado pela escrava Luísa:

“- O nosso brinquedo se acabou cedo ca notícia do

baruiu que houve de outra banda... Diz que

puxaram faca, e foi pau pra riba do tempo. Sabe

quem passou por aqui se escondendo e me

contou? Foi o Naiú, ali da Seá Dona Guidinha...

(...)

Luísa chegou passando um bom pedaço,

exagerando muito:

- Foi um baruião, minha senhora... Mó do Zé

Tomais, qui mexeu ca charrua do Chico Mão-

Quitola! (...)

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

123

- Inhora, não. A tropa vinha aí atrás... Um

vaqueiro da Lagoa levara uma facada no

braço...Diz que trovejou muito cacete... O tocador

da rebeca vinha preso.

E que houvera com o Silveira?

Achava que fora pegado também.

- Vejam em que dão as vadiações!

- Pior poderia ser. Não morreu ninguém, graças a

Deus. (p.69)

Quando o Major Joaquim descobre a traição de sua mulher

Guida, com seu sobrinho Secundino, tal fato é-lhe revelado

através de uma conversa entre dois vaqueiros:

Riam. Uma gargalhada espalhou-se entre eles,

terminando por esta frase, que o fazendeiro, ainda

oculto pelas jerimataias, entendeu bem ser do

Alexandre Arrebique, ou Lixande Ribiqui, na

gíria popular:

- o sujeitinho é temero! Non tarda mais é o Manjó

tá de morgado...

Outro:

- Mas cumo é qui um pobre cristão bota assim a

desgraça im casa?

Arrenego do Cão! Diabo leve esses costumes de

praça! Vote!...

- Aquele Secundino chegou aqui neste lugá cumo

tatu, que só tem o casco e....

- O Manjó hé de vê o mundo e as capas do fundo.

- Mais, home, quem jura que o tal de Secundino

faça mesmo essa traição ao Manjó?

E foram galgando a suave ribanceira, uns

montados, e outros montado.

O Quinquim não dera um passo... (p.96)

É o vaqueiro Cacheado que nos relata (e aos outros

personagens) a morte do vaqueiro Machico:

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

124

Era o Machico! Exclamavam todos, ao apear-se o

portador, que vinha logo dando a triste nova.

Onde estava? Morrera? Falava? Era bom chamar

o padre!

Pobre do Machico... Virgem Nossa Senhora!...

- Quais, senhores! – respondeu o Cacheado, que

era o núncio da desgostosa noítica. Aquele, só

Deus do Céu . Venho é ver uma rede e uns paus

para se levar o homem pra onde haja casa de

cristão, que ele ficou cós outros, que estão lá

fazendo meizinha por mó de ver se ele escapa,

mais porém que eu não acredito qui sirvam... estão

debaixo de uma moita, sem água, nem sicorro...

- Eu bem qui digo os meus filhos – comentava um

velho, a vagar choro: Mininos nom corram di

trevessa! Mininos, nom corram di trevessa...

(pp.96-97)

A história da “aparição” de Nossa Senhora é-nos relatada,

e aos personagens, por Conrado Bonfim, da seguinte forma:

Estando Aninha Quenquém lavando roupa em um

poço do rio Salgado – intuito de apanhar uns

gravetos para fazer fogo, e se demorou bastante.

A mãe, dando pela ausência, depois de passado

algum tempo, chamou, se levantou, foi procurar,

ninguém respondeu, nada viu... Dado um prazo, é

a história – e tendo conduzido consigo uma filha

de trezes anos, de nome Berta, deu-se o caso pela

seguinte forma: Berta se afastara no Aninha

aparecia debaixo de umas ingazeiras tecidas por

jitiranas, vermelha, açodada, agitada, assombrada,

quase tolhida a fala.

- Que é isso, minha filha?

A menina respondeu só estas palavras:

- U’a muié... que me chamou.

Não disse mais no momento.

- Entrou em êxtases, explicou a Lalinha.

- Assentou-se, repousou, e por fim declarou alto e

bom som que uma mulher muito bonita, com

feições de estrangeira, de branco, xale azul, pegou

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

125

a chama-la com a mão. E ela foi ao muito insistir,

até que ambas entraram nas ingazeiras. A mulher,

aí, disse a ela que queria que se cantassem sete

terços, em sete sábados... Terços esses que foram

cantados, em um altar levantado ali mesmo junto

ao rio. Daí a menina pegou a ir todos os dias, e

começou o povo a acudir. Ninguém conta nada ao

certo, uns dizem que a menina, tendo-se

confessado ao Padre Valentim, só a ele, revelou o

mais que a Santa disse. O que vi foram as

ingazeiras todas peladinhas. Sim, mais esta:

contam que a Santa ordenou que não queria que

lhe chamassem mais Nossa Senhora, porque diz

que agora tudo é senhora, mas que seu nome devia

ser o de Mãi Santíssima. (pp. 102-103)

Tomamos conhecimento do assassinato da mulher de Lulu

Venâncio, através da narração do vaqueiro Torém ao seu Antônio:

E com vagar, sentando-se ao pé do Antônio, o

Torém tirava o cachimbo da perneira. Botou-lhe o

fumo. Entrava em nova conversa, com uma fala

visivelmente comovida.

- Mas, meu camarada, você raia comigo porque me

arrecoio tarde?... Eu tive motivo pra isso...

- Qualo foi, meu amigo? Foi algum sarrabuio mó das

cunhãs?

- Foi um assassinato. O Lulu Venanço matou a muié.

- Virge! Mó de quê, home? Que desgraçado –

exclamou, erguendo-se presto, o honrado vaquiano.

- Mó de ciúme. Outros dizim que ele pegou ela em

fragantes.

- Cuma foi isso? Conta lá tudo...

- Nós tava num sambinha, im casa do Jom Bodoque,

ali dejun daquele marmeleiral do canto do sítio do

Seu Capitão Miguelzinho...

- Sei bem onde é. Tem até uns marmeleros muito bons

pra cerca de caiçara...

- Você sabe que a bodega do Jom Bodoque tem assim

um balcão de taipa, e pó detrás, ua pratelera de tábua

de caxão cuas garrafas, loiça e coisas de venda... (...)

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

126

-Entoce, tavam lá arranchado uns comboieiros

que tinham a rrumado o eito, assim pua banda, ia

porção de surrão de mio, que fazia assim mod’um

escuro. Ai diz que virum a muié do Venanço non

sei cum quem, cuas partes de toma bebida,

enquanto o povo do terreno apreciava um cantado

de fama, qui era um dos comboieiro donos do mio.

É verdade que eu vi ele vendendo, apois tinha

muita confiança co Jom Bodoque e a famia...

- Tá meio velaco isso, mais vamo lá.

- Vamo lá pra donde? A coisa é esta mesma.

Quando viu-se foi os gritos da pobe e aquele home

correndo pó marmeleiro... (...)

- Mais entonce, continuou o outro no fio da

narração a pobe ainda chegou a corrê, toda

ensanguentada, ca facada no peito, gritando que

Seu Jonzinho lhe acudisse... mais, porém, pouco

aturou... (pp.113-114)

Da expulsão de Secundino pelo tio Quim, sabemos através

de Néu, filho de Seu Antônio?

O Néu testemunhara a cena, e chegou em casa

contando:

- M’pai, o negoço ta ficando feio...

Não sabia? Pois ele tinha ido falar com Seo Major

pra dizer eu a vaca que ele (Secundino) queria que

matasse pra matotage estava amojada, que era

melhor matar a Ponta-baixa, que estava enxuta e

há dois anos não tomava cria... (...)

- E Seu Major vai e diz assim:

- Pois o senhor está na obrigação de se justificar,

modificando os seus hábitos, endireitando o seu

procedimento. O senhor bem sabe qué a calúnia

só quer é um pezinho...

- E vai o Secundino se alevanta e arresponde: -

Não tenho nada que me justificar.

- Hum! Ah, eu lá!

Vai o Major e rebateu que tinha, sim. Então o

Secundino puxa um papel do bolso, e dissera:

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

127

- O senhor é que me deve dizer o que é isto. Os

nossos parentes estão certos de que eu aqui sou

um infame por causa das calúnias do senhor, que

o senhor mandou dizer-lhes. Esta carta é do tio

Pedro Paulo... O senhor sabe o que escreveu a

ele...

- Sei, sim, disse o Major, levantando-se e gritando,

amarelo. Pedi que o fizessem retirar daqui!...

- Oê! A mina já tava ardendo quando eu nem

desconfiava, pelo que me tá parecendo, disse o

Antônio.

O Néu continuou:

- O Secundino inchou nas apragatas, e quando eu

vi foi cada quau gritando mais improado, e por

derradeiro o Major dizê: “Puxe pur aqui, seu

cachorro!” O home tava segurando na costa da

cadera, cum se quisesse quebrá a cara do outo. O

outo non teve dúvida. Saiu cumo num raio, pulou

no cavalo, que tava no terrero e avoou no caminho

da Goiabeira... (p.119)

Quando o Major é assassinado, o leitor toma

conhecimento do crime através do diálogo de duas mulheres,

numa conversa casual sobre o fato ocorrido:

- O Major Quinquim?! Mataram o Major? Quem

foi? Oh, meu Deus! Eu bem que estava sentindo

um aperto no coração – exclamou a menina, que

entrou a gritar por Dona Madalena, pelo Dr.

Fernandes, pelo Sabino do Bonfim, pelo Tonho,

como que se assombrada fora o Naiú quem o

matara aquela mandioca de varge! – explicaram as

cunhas cada qual querendo falar ao mesmo tempo.

Fora aquele arrenegado, afilhado do Seu major,

que o avia forrado na pia!... O Seu Major estava

aparando a barba, na sala, ali pela seis horas, o sol

por ali assim; ele chegou, todo encourado, pediu

um foguinho ao moleque Anselmo, filho da Gina,

que estava cuzinhando para o Senhor. O moleque

largou-se na carreira pelo corredor e o Naiú ficou

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

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debraçado na banda da porta, meio da parte de

dentro; aqui Seo Major se voltou, deu com ele e

foi dizendo:

- Ó Naiú! Você por aqui? Que anda fazendo?

Como estão todos lá? – e virou-se para a mesa,

botando a tesoura na gaveta.

Então o Naiú caminhou para ele, e, por detrás,

cravou-lhe o punhal no vão do pescoço, da banda

esquerda... Sem bulha, nem matinada!... Chega o

punhal era grande como nunca viram! De cabo de

prata e ouro, uma língua deste tamanho chega

brilhava... Elas viram esse punhal. Mais tarde, na

mão do Seu Vigário e ainda lhes arrepiavam as

carnes: a bainha, o Seu Juiz de Direito a tirou do

cós do assassino, era uma peça rica... (p.133-134)

Assim, o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço,

mediante a utilização de todos os recursos anteriormente

mencionados, simula a convivência de várias vozes, já que elas

estão subordinadas a um narrador único, quase sempre onisciente,

mas que, através de algumas manifestações, em primeira pessoa

– exemplos citados -, revela a sua verdadeira identidade. Com esta

pretensa onisciência o que se alcança é uma maior

verossimilhança e liberdade para os discursos em primeira pessoa

das personagens.

Determinar os processos de criação literária do

romancista. Quer dizer: indo do romance para a análise,

esperamos demonstrar que não se contradiz nada do que se

poderia encontrar indo da análise para o romance25.

25 C.f. POUILLON, J. (1974), p.51.

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

129

Esta problemática da existência que procuramos no

romance em relação à personagem pode ser tomada em uma

acepção próxima à acepção do verbo “olhar”, que reflete a relação

entre a personagem e o narrador.

Para muitos críticos, essa investigação é o expediente

fundamental na arte de escrever romances ou contos. Percy

Lubbock considera que “toda a intricada questão do método, no

ofício da criação, é governada pela questão do ponto de vista, -

o problema da relação que se estabelece entre o narrador e a

estória”.26

O narrador pode mostrar as personagens do ponto de vista

exterior, como um espectador parcial ou imparcial, ou pode

assumir a onisciência e mostrá-la do ponto de vista interior, ou

ainda pode colocar-se na posição de uma delas e fingir estar no

escuro, em reação aos motivos das outras. Além dessas posições,

há ainda a considerar certas atitudes intermediárias, o que

significa que a criação literária tende sempre a manter uma

coerência com o conteúdo, como se dele dependesse, em razão da

própria essência do ser.27

Em Oliveira Paiva, a história nos é apresentada, algumas

vezes, por um narrador que mostra a fala das personagens que

26 LUBBOCK, P. (1976), p. 155. 27 C.f FERNADES, J. (1982), p. 302.

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

130

constituem o centro da narrativa28: “- Não interrompa, vá de fio a

pavio”. (DGP p.42)

É através delas que procedem a narrativa e a compreensão

das demais personagens. É a partir das personagens que

conhecemos as outras personagens que compõem a narrativa.

A nossa leitura, assim, centrar-se-á neste estudo,

principalmente, na construção das personagens em Dona

Guidinha do Poço. Observaremos como o autor consegue revelar

a vida pessoal subjetiva e profunda dos seres que cria através de

retalhos de conversas de outros seres também ficcionais.

O narrador é um sujeito que não só observa os fatos, como

também participa deles. É também uma personagem que nos

revela o mundo das personagens em seu aspecto exterior e

interior:

A Guida tinha isto consigo: toda vez que a possuía

o patético, o trágico, o irremediável, um pranto

oculto lhe trazia a nadar nas lágrimas sufocadas

do íntimo a imagem da santa menina, mas dentro,

no ser, no sangue, no pulso, quer dormindo, já

acordada, ou nos trabalhos de casa, ou nas

diversões do campo, ou nos ócios da vida rica.

Deus a não castigaria? E por que Nosso Senhor

não mudava os corações? E punha-se a rezar. Era

mui devota dos seus santos de pau. (DGP p.97)

Margarida era, pois, uma criatura como ela

mesma. Em casa, de branca ela. O mais, preto,

inferior, escravo, até o próprio marido, branco é

28 VILELA, L. (1972), p. 117

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

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verdade, mas subalterno pela sua índole e por não

ter trazido ao monte um vintém de seu. (DGP p.

108)

Poucos são os traços físicos de Guidinha. Assim, seu

retrato é inegavelmente moral, voltado mais para a dimensão

psicológica. Trata-se de uma personagem de bastante

complexidade. Logo o narrador, com bastante habilidade,

apresenta tal personagem, ao leitor/ ouvinte, através das outras

personagens, reduzindo-se acumular indícios do temperamento

impulsivo e sincero de Guidinha. A personagem é sincera com ela

própria, não com o marido que tem conhecimento da ausência de

afeto da mulher em relação a ele, visto que se havia casado para

satisfazer a vontade do pai (Casou Margarida, finalmente, aos 22

anos, já morto o velhor Venceslau. p. 15). Guidinha, assim,

esforça-se por acreditar como verdadeiro o novo amor, o único

nascido espontaneamente.

Assim Dona Guidinha do Poço é o corpo feminino do

texto, personagem principal no espaço e no tempo (dela se sabe

a origem de todos os detalhes), no enredo (“o enredo arrasta, a

confidencia atrai”, p.27), na narrativa e “comentários”.

Comentários esses como o do Rev. Visitador (“feiosa, baixa,

entroncada, carrancuda ao menos enfado, não admito que

homem algum se apaixone pela filha do Capitão-Mor...” p.15);

ou do próprio marido, Mj. Joaquim Damião (“Margarida como

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

132

um palácio cuja fachada principal desse para um abismo. Só

havia penetra-lhe pela insídia, pelas portas travessas”. p. 18); do

vaqueiro (“a Seá Dona Guidinha não era de meias medidas”

p.26); do velho capataz da fazenda, o Silveira (“...a Seá Dona

Guida era uma fulô. Qui pessoa de bem! Qui coração aberto! Por

ali a bem dizê, ninguém era pobre tando junto dela...”p.(27); Seu

Antônio, o vaqueiro ancião (“...Aquela Guida também! Aquilo é

uma danada, levada da breca, da carepa, e da canita, e se ela

não fez ainda um terramote é mó de que Seu Major tem oração

forte consigo...” p.(54); ou do próprio Secundino (“Mulher

grosseira! (...) Coração de ouro! (...) Ah, geniozinho!” p.(87) e

do juiz, o pensamento (“...Exma. Sra. Dona Margarida, que

reunia em si todas as excelsas virtudes de digna esposa e de mãe

de família exemplar...” p.(105) ou até mesmo nas descobertas do

Padre João (“ Guida sempre repugnara ao Quim, (...) ela o

recebia com o apetite camal faminto, sim, mas não com o gosto

consciente (...) Era prostituta, e dai para o adultério, um triz”. p.

(124). O narrador também colabora (“Margarida era pois, uma

criatura como ela mesma. Em casa, de branca, ela. O mais, preto,

inferior, escravo, até o próprio marido, branco é verdade, mas

subalterno pela sua índole...” p. 108). E assim entre palavras,

pensamento e comentários, a personagem vai se construindo sob

o ponto de vista de cada uma das outras personagens.

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

133

Não temos mais do que estes elementos essenciais que, na

sua combinação, na sua repetição, na sua evocação, nos mais

variados contextos, permitem-nos ter uma ideia suficiente e

convincente da personagem. Embora sem a imagem nítida de sua

fisionomia, temos a noção do seu modo de ser, que é aquilo que

interessa, em função da história. As características de Dona

Guidinha vão-se evidenciando ainda mais na medida em que a

personagem vai passando pelas “narrativas e comentários”. Tais

variações se revelam ainda pelos diversos nomes:

A muito conhecida Dona Guidinha do Poço (p.15) aparece

no livro como tal, como Guidinha do Poço, como Margarida,

como Margarida Reginaldo de Sousa Barros, como Guida, como

tia Dona Margarida, como Senhora, como Seá Dona Guida, como

Exma. Sra. Dona Margarida, como Seá Dona Guidinha, como

Baronesa, conforme a circunstância e o nrrador. O mesmo

acontece com o marido Joaquim Damião de Barros, que ora é

Major, ora Quim, ora seu Quim, Quinquim, ora Damião, ora

senhor Quinquim Damião, ora Senhor, ora seu Sinhozinho. O

sobrinho chega da capital se apresentando como Luís Secundino

de Sousa Barros e passa a ser o moço, Dino e Secundino.

Tal (des) mascaramento pelo nome acontece com a urbana

Eulália, filha do juiz: Lala ou Lalinha, com o sertanejo seu

Antônio (o velho, Antônio Pereira, seu Antônio, s’Antônio,

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Capítulo 2: Procedimentos narrativos: o processo narrativo em Dona Guidinha do Poço

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s’Otonho, s’Ontonho, m’pai), com o jagunço Antônio Silveira

(Silveira, Tonho Silveira).

Concluímos que, identificadas as personagens por

sucessivas variações de seus nomes, elas assumem características

que simbolizam sua relação com quem está narrando e com os

acontecimentos narrados. Aparecendo assim, tão abundantemente

e em repetição, tudo faz pensar que isto visa a destituí-las de

personalidade constante e coerente. A narrativa é maleável no de

quem e no que se diz. A fala e a palavra em si são capazes da in-

versão das personagens.

O final do livro é a ilustração concreta do que queremos

dizer, quando Guidinha deixa de ser ela, para ser denominada com

o nome do assassino do marido. Guidinha é travestida de

cangaceiro pelo novo nome:

“De repente, por uma terrível associação de

ideias, uma voz exclama:

- Olha a Naiú! Olha a Naiú! Lá vai a Naiú!

Outro repete: Olha a Naiú! Mais outro, e o nome

do assassino reles batia como uma chuva nos

ouvidos da ilustre herdeira dos Reginaldos. ”

(p.138).

A verdade deslocada ou descolada a todo instante vem dos

personagens e dos fatos, criados e narrados com uma impecável

eficiência literária. A linguagem, mesmo ao nível das descrições

do pitoresco, em nenhum momento experimenta o excesso. O

autor dá a palavra às criaturas, ou melhor, às personagens que

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

135

inventou, de tal maneira, que elas falam e existem, porque teriam

que falar e existir para a sobrevivência do “acontecimento”. E

tudo é ajustado ao corpo de Dona Guidinha. A troca de verdades

e a incorporação de acontecimentos outros são aspectos que só

uma leitura “do canto da acauã” é capaz de apreender, porque

“por trás da moita” há um silencio enigmático...

A totalidade desses discursos é do domínio do autor que,

ao armar o romance, marca uma postura rara do romance do fim

do século XIX, especialmente, de raízes regionais: a do autor-

narrador que suspeita do seu acontecimento; ou seja, aquela

atitude de quem não possui (ou simula não possuir) o domínio

absoluto da história: “Para cada um a sua verdade”, para cada

verdade a sua forma de dizer. Dona Guidinha do Poço fica assim

sendo um romance que se faz pela palavra, seja pela fala, seja na

leitura ou na escrita.

“Sinau incoberto” no jeito pouco feminino, pouco mulher,

pouco dama, muito fêmea de Dona Guidinha, que sem “medo de

careta e sem mesmo fazer renda”, muito antes de Dona Flor,

ensinou a namorar.

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CONCLUSÃO

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Dona Guidinha do Poço ou um narrador em voz alta

139

O ato narrativo é sempre um ato fundador, porquanto

instaurador de uma nova realidade que se constrói e sobrevive

unicamente pela força da palavra poética. O artista, ao se valer da

palavra, cria um mundo autônomo e ficcional para o qual é

convidado a participar o leitor. A palavra literária, revestida de

um caráter essencialmente simbólico, ao mesmo tempo em que

aproxima o leitor de sua realidade, obrigando- a refletir sobre ela,

aponta para a distância existente entre o mundo narrado e o

mundo concreto, sendo justamente nessa faixa intermediária que

se realiza a leitura enquanto emoção simultaneamente vivida por

autor e leitor, numa troca constante de experiências, num diálogo

que se prolonga e perdura depois de encerrada a leitura da última

página do texto.

Dona Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva, favorece a

instauração do processo de leitura anteriormente referido, uma

vez que conduz o leitor a uma reflexão a respeito de uma série de

temas relativos a sua conduta de homem, como é o caso daqueles

que envolvem as relações interpessoais, como a paixão, a

sinceridade e o amor, e, ao mesmo tempo, leva-o a refletir sobre

efemeridade de sua própria existência, quando confrontado com

situações-limites como a traição, o crime, a perda da liberdade e

a morte. Contundo, ao lado desses aspectos de caráter

universalizante, a narrativa do romancista cearense faz-nos

vislumbrar a vida de uma cidade do interior do Ceará no século

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Conclusão

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XIX, quando então nos apresenta um sem-número de pormenores

do cotidiano no sertão: a miséria dos retirantes, a secura agressiva

da paisagem, a fartura da fazenda no inverno, as festas

tradicionais – vaquejadas, desafios, rezas, danças.

Vicente de Ataíde afirma que “o texto literário necessita,

em primeiro lugar, da percepção da realidade pelo artista, em

segundo lugar, da montagem desta percepção num todo

organizado e novo” (p.4). Assim o que faz de um texto obra de

arte literária é o arranjo feito, pelo autor, dessa nova realidade,

organizada, através da linguagem por sua imaginação criadora. A

qualidade estética de uma obra depende, em última análise, da

nova estrutura criada, da montagem artificial e consciente que lhe

dá o artista.

Se o artista se limitasse a uma imitação servil da realidade,

passado o tempo, desapareceriam o prazer e a fruição estética, é

o que o já citado autor nos confirma:

Graças à criatividade, o circunstancial e o

passageiro entram no nível do perene e do

universal. Um texto antigo causa tanto prazer

quanto um texto moderno. O nível da arte não é o

nível do real ou do natural, mas é o nível do

admirável, do impossível, do crível; é uma

realidade fora do real. (ATAÍDE, 1974.p.11)

Sabe-se que o poeta pode criar coisas inexistentes e

representá-las como deveriam ou poderiam ser. A narrativa deve

dar a ilusão de que tudo aquilo é como o próprio mundo. E quando

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houver algo ilógico ou irracional, a realidade fingida deve ser de

modo tal que assim poderia ser naquelas circunstâncias. Logo, a

recriação da realidade pelo artista é criadora.

Em Dona Guidinha do Poço, o romancista Oliveira Paiva

inspirando-se em um caso verdadeiro dá vazão ao seu espírito

criador e independente, analisando cenas e valendo-se de alguns

aspectos estilísticos, revolucionários da época. Portanto, temos na

obra, sem dúvida, uma imagem de realidade captada

sensivelmente caldeada pela imaginação ou fantasia do autor.

Igual trabalho, em sentido decodificador, é feito por nós, leitores,

quando o autor evita escrever cenas, acontecimentos e, por

consequência, esta se amplia nas possibilidades interpretativas.

Podemos perceber que existe no estilo utilizado por

Oliveira Paiva, ao escrever seu romance, um dado cultural aqui

entendido como um conjunto de conhecimentos, atitudes,

atividades, hábitos, técnicas, sentimentos, pensamentos de um

grupo humano dentro de seu ambiente físico, social e psíquico.

Existe alguma coisa na obra que não tenha sido buscada na

cultura? O artista é um homem que pertence a sua cultura, assim

como o autor. Dona Guidinha do Poço se faz sobre a linguagem,

que é um acervo da cultura. Contém ideias e elementos que

enriquecem os leitores.

O romance foi, assim, escrito com arte e sensibilidade.

Oscilando entre a fala pitoresca das personagens e a expressão

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Conclusão

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urbana do autor, o texto ganha um sabor especial: quando fala o

narrador, o om é equilibrado, resultante da mistura da oralidade

sertaneja com a linguagem – padrão da cidade; quando falam as

personagens, os traços da linguagem escrita se deformam em

favor da reinvenção da fala popular. Nesse sentido, Oliveira

Paiva, escrevendo em 1891, aproximadamente, antecipa a criação

do regionalismo modernista, processo em que se destacariam os

autores do Romance de 30 antecipa também o realismo de Os

Sertões, de Euclides da Cunha, sobretudo no modo mimético das

descrições agressivas da paisagem, em que o trabalho de

construção com o idioma é essencial para recriar o trabalho inútil

do vaqueiro contra aridez.

Podemos perceber que o processo narrativo adota pelo

autor, inicialmente onisciente, caracteriza-se pela cedência da

palavra aos personagens que assumem grande parte do relato.

Esse procedimento, além de garantir o pleno controle da narrativa

a um narrador onisciente, confere a ela maior verossimilhança.

Tal processo narrativo, por outro lado, determina uma alternância

do ponto de vista narrativo, o que possibilita que se afirme trata-

se de uma narrativa de focalização interna variável. Além disso,

a narrativa, que inicialmente se configura como homodiegética

através de um manifestar-se em primeira pessoa do narrador

apresenta-se como heterodiegética, o que permite se afirme trata-

se de uma narrativa mista, já que os dois procedimentos em

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questão estão claramente caracterizados. Simula-se, assim, em

Dona Guidinha do Poço a convivência de várias vozes que, em

verdade, estão subordinadas e filtradas por um narrador único,

muitas vezes onisciente.

Outro traço significativo é o uso muito frequente em toda

a extensão do romance do discurso indireto livre, em que,

engenhosamente, se opera a fusão da linguagem do autor com a

das personagens. É aí que se evidencia o mais interessante dos

recursos formais de Dona Guidinha do Poço: a variação do foco

narrativo, uma forma dramática de exposição dos eventos,

quando o narrador transfere para as personagens a função de

apresentar os elementos do enredo. Tal técnica seria mais tarde

consagrada por José Lins do Rego, sobretudo em Fogo Morto

(1943).

Antônio J. Saraiva29 estudando a tessitura no discurso

engenhoso daquele que é considerado o maior pregador do século

XVII – Padre Antônio Vieira - refere-se a estilo como “uma

maneira particular de escrever, e só se torna essência se

considerarmos a personalidade do escritor, revelando, em geral,

uma maneira pessoal de utilizar os recursos da retórica” (p.10).

assim, todo leitor de Vieira admira o brilho, a perspicácia da

29 SARAIVA, Antonio J. O Discurso Engenhoso, 1980.

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Conclusão

144

escolha das palavras. Não há nele palavras indiferentes. Cada uma

parece ocupar o lugar que lhe é lhe é próprio.

Saraiva reportou-nos à linguagem também utilizada por

Oliveira Paiva onde encontramos uma observação estilística

admiravelmente expressada. Tal linguagem, de uma vivacidade

incomum, procurar representar a vida. A consequência disso é a

oralidade, um experimento que reproduz a tentativa de capitar o

mundo tal qual se apresenta, nem melhor, nem pior. A linguagem

do romance é direta, objetiva, preocupada com o coloquial, frases

curtas e fluentes, vocabulário simples. O diálogo é também uma

força estilística na obra. Por detrás desse modo de ser da

linguagem e do estilo, assomam personagens e situações

ambientais que fazem transbordar a realidade humana. Pela

linguagem do sertanejo são despertados a vida e os efeitos do dia

a dia daquelas pessoas. Mas guarda dessa gente os segredos mais

íntimos para serem descobertos pelo leitor, ao olhar inteligente.

Sem dúvida alguma Oliveira Paiva se preocupou com a

escolha das palavras. Encontramos em seu romance um produto

de poderoso temperamento artístico, tanto quanto a expressão do

saber de alguém muito atento ao sentido e ao valor das palavras.

E, de fato, verificamos que o nosso romancista joga com a escrita

e com a oralidade, com o predomínio da segunda.

Quando passamos a discutir nos constituintes ficcionais,

alguns aspectos complementares como o tempo e o espaço na

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obra, as descrições no romance, as personagens, pudemos

verificar que o autor estrutura, onde de nada, a natureza, o espaço.

Todo romance é pontilhado de descrições, ora artística, ora

documentais, ora pitorescas por causa da linguagem ou do seu

ponto de vista, porém a paisagem sertaneja está ali toda

registrada.

Destacamos, por fim, a caracterização da personagem

central. Com poucos traços físicos, o retrato de Guidinha é

essencialmente moral, voltado para a dimensão psicológica.

Trata-se de uma personagem bastante complexa. Habilmente, o

narrador limita-se a acumular indícios do temperamento

impulsivo e sincero de Guidinha. Embora tenha sido concebida

pelos padrões do realismo, a psicologia de Guidinha não deixa de

apresentar alguns sinais da ética feminista de nossos dias,

derradeiro traço marcante desse livro cuja modernidade ainda está

por ser estudada.

Dona Guidinha do Poço foi concebida como obra

naturalista, como realista (regionalista), como portadora de

recursos de impressionismo. Dada a pertinência e a relevância

dessas analises, embora parciais, circunstâncias e marcadas pelo

tempo, elas principiaram, na totalidade, um modo especifico de

percebe-la que leva em conta, sobretudo sua excentricidade no

paradigma da história da literatura brasileira. Assim levando em

conta as várias leituras críticas e as peculiaridades técnicas

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Conclusão

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empregadas pelo autor, Dona Guidinha do Poço é também, uma

obra modernista30.

Será incoerente tentar concluir um trabalho de

interpretação, já que toda leitura se condiciona a variáveis de

ordem subjetiva e a mudança de perspectivas ensaiadas a cada

época e lugar. Em outro contexto, a obra de Oliveira Paiva traria,

por certo, novas conotações, enriquecendo-se num constante

processo de atualização. Afinal, é esta uma das características da

literatura: projetar-se em múltiplos significados, repercutir as

mais inesperadas modalidades de sugestões, possibilitando a cada

leitor um trabalho de recriação.

Dessa forma, todas as aberturas divisadas aqui decorrem

apenas de uma leitura, de uma faceta do universo literário do

autor. Um sentimento do inacabado que não redunda em

frustação, dada a certeza de haver penetrado num mundo

extremamente rico, é o que resta ao fim de um trabalho

hermenêutico. E tudo afinal parece repetir a mesma concepção de

30 Não queremos dizer, com este adjetivo, que a obra de Oliveira Paiva se insere

no movimento surgido em São Paulo com a famosa semana da Arte Moderna,

1922. Primeiro, porque há uma fração de tempo que se separa sensivelmente das

primeiras obras ligadas à Semana; segundo, porque o projeto modernista de

literatura de 22 resultou numa estratégia de vanguarda (sf. FABRIS, 1994, p.19).

Dizemos que a obra de Oliveira Paiva é, ou pode ser, modernista porque há nela

uma livre manipulação de formas e procedimentos literários que a aproxima das

obras pertencentes a essa corrente literária.

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que a realidade é um nunca terminar, um fluir incessante de coisas

que se repetem.

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SOBRE A AUTORA

Nem a própria se conhece. Alega, também, que desconhece quem

a conheça. Filha de um casal honesto e trabalhador, irmã de cinco

irmãos amados e totalmente diferentes dela, Stânia é casada há 34

anos com um maravilhoso esposo e mãe de dois filhos

incomparáveis. O título de avó babona já foi garantido e ostenta-

se ao lado dos demais que coleciona.

Apesar de seu auto incompreendimento, deixa de lado a modéstia

e alega seus defeitos: é complicada, impaciente e inconsequente.

Por outro lado, é contemplativa, curiosa ou ousada; carinhosa,

sorridente ou intrometida. Vaidosa, se julga “não tão bonita,

mas... aparecida”. Despojada de convencimentos, não liga para o

paradoxo que causa a ela mesma ao afirmar que seu maior

convencimento é o seu amor próprio.

Dotada de grande fé e donatária de sabedoria enquanto presente

divino, utiliza-se deste “gift” para falar, ouvir, pensar, ajudar

aqueles que lhe procuram e se reconhecer uma humana cheia de

imperfeições.

Em seu currículo carrega os títulos de Bacharel e Mestre em

Letras pela Universidade Federal do Ceará, assim como o de

Doutora em Ciências da Educação pela Universidad Del Norte,

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título este que recebeu revalidação pela Universidade Federal do

Rio Grande do Sul. Apaixonada por literatura, recebeu o título de

Pós-Doutora em Literacias e Ensino da Língua pela Universidade

do Minho, em Portugal, em 2016.

Foi professora convidada da Universidad Americana, no

Paraguay, e atualmente da Universidade Três Fronteras nos

programas de pós-graduação strictu sensu em Ciências da

Educação desde 2013.

É professora assistente da Universidade Estadual do Ceará (já

aposentada) e do Centro Universitário Católica de Quixadá

(UNICATÓLICA).

Seus anos de experiência lhe conferiram expertise em

Linguística, com ênfase no ensino da Língua, mais precisamente

com estudos voltados para o ensino da leitura e formação de

professores.

Como se o seu caminho acadêmico e profissional ainda lhe

parecesse curto, é membro do Comitê de Ética em Pesquisa da

UNICATÓLICA e coordenadora do Núcleo de Publicação da

IES, além de ainda estar cursando pós-doutorado em Investigação

e Docência Acadêmica.

Lia Cabral a completa, em essência, com que diz: “sei... também

não sou perfeita, cometo erros, sinto tristezas que me fazem

chorar, mas também sinto alegrias que fazem viver, sonhos que

me fazem sonhar, gosto de viver e tenho medo de morrer. ”

E a vida desta protegida pelo amor de Deus prossegue, sendo uma

grande amiga e professora amada pela família e querida pelas

boas amizades.

“Feliz!!!”

– MANOEL MIQUEIAS MAIA, um novo amigo.

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